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Pensava (.] no Brasil nesta vaga nebulosa de mito e verdade, de artesanato¢ eletranica, de selva e cidade, que seelabora, que se indaga, que se vai defininde Ferreira Gulla (1967: p. 251) ‘Temas de encarar o Brasil como 1m monsio desafiante de potencialidades culturais inéditas € desconhecidas no mundo moderne. ‘Tado um povo pode se riador, artista — ceeste seria o sentido total de uma revolugio ‘pela qual minha agdo se arrisca até a mort. (Glauber Rochat ‘A arte para mim sempre foi um aspect de trabalho, dle qualquer trabalo human. E a exploragi, hae, que impede todos de se manifestarem em arte Sergio Ferrot* ‘Se alguém me pedsse para dizer a principal crena da juventude de minha gerago, eu diria sem titubear: a atribuigéo @ arte de uma fungdo transformadora da sociedade. Lig Carlos Maciel (1996: p. 73) raw Alfedo Guevara de msio de 1971 (Rocha, 1997p. 410-411) **Depoimento a0 autor. SUMARIO INTRODUGAO 11 BRASIL, ANOS 60: povo, nacéo, revolugéo 19 Revolta ¢ melancolia, afzes e desenvolvimento 23 Circunstincias hist6ricas do florescimento revolucionirio 33 Redescobridores do povo brasileiro 43 ‘Artistas: a emergéncia de novas classes médias 52 ‘Ainda 0 romantismo revolucionirio 55 |. A GRANDE FAMILIA COMUNISTA NOS MOVIMENTOS CULTURAIS DOS ANOS 60 61 Nota introdutéria 65 ‘Avirada cultural do PCB nos anos 60 67 Politica das artes: ascensio da realidade nacional e popular 82 Cinema: em busca do Brasil 89 Por uma dramaturgia brasileira 103 Pocmas dohomem brasileiro 113 Ex rio mudo de opinifo 121 DESDOBRAMENTOS DA REVOLUGAO BRASILEIRA: artistas em dissidéncias comunistas e outras esquerdas 141 Artistas ¢ intelectuais na resisténcia nacionalista 145 Ramos maofstas da érvore revolucionéria 151 ‘Um remanescente da Ala Vermelha no Teatro de Arena — € 05 €c0s do Oficina 156 (Ovelhas desgarradas e armadas na agitacio politica ¢ cultural do pos-1964 164 Artistas guerrilheiros: Sérgio Ferro, arquitetos ¢ outros 174 ‘Mais grupos e artistas em armas 184 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO. A pequena familia trotskista em tempo de romantismo revolucionério 196 ‘Um atelié no presidio Tiradentes 207 Militancia politica e cultural romantica da esquerda cat6lica 210 IV. VISES DO PARAISO PERDIDO: Sociedade e politica em Chico Buarque, a partir de uma leitura de Benjamin 295 Nota introdutéria 229 fantasma de Castana Beatriz e outros fantasmas 233 Otempoeoartista 242 Benjamim: nostalgia critica do “Brasil” 251 \V. A BRASILIDADE TROPICALISTA DE CAETANO VELOSO 265 ‘Uma janela para o mundo no coragio do Brasil 269 Contrapartida politica do tropicalismo 280 Cabega de brasileiro 291 Modernidade em Sampa 303 TODO ARTISTA TEM DE IR AONDE © POVO ESTA: ‘efluxo e continuidade das utoplas revolucionérias 317 Nota introdutéria 321 avango da indistria cultural 323 Resisténcia dos artistas junto aos movimentos populares 334 Sobrevivéncias rominticas? 355 SIGLAS 365 CRONOLOGIA BRASILEIRA: 1958-1984 369 ENTREVISTAS 419 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 421 INDICE REMISSIVO 443, EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO (mas eseritos de modo a permitira leitura na ordem que mais convier): no prime 1, Sio expostos aspectos da constitui¢io do romantismo revolucionrio nos meios intelectualizados da sociedade brasileira nos anos 60¢ inicio dos 70, marcados pela ‘utopia da integragio do intelectual com o homem simples do povo brasileiro, su- postamente no contaminado pela modernidade capitalist, podendo dar vida a tum projeto alternativo de sociedade desenvolvida. Esse tipo de romantismo ca- racterizou as ates, as ciéncias socizise a politica no periodo, O coneceito de ro~ ‘mantismo revolucionario foi adotado nfo para colocar uma espécie de camisa-de- forga na diversidade dos problemas estudados, mas como fio condutor para compreender 0 movimento contradit6rio das diversificadas agées poltticas de ar- tistas e intelectuais,inseridos em partidos e movimentos de esquerda,' enraizados socialmente sobretudo nas classes médias (© segundo capitulo mostra aspectos da insergio no meio aristico do PCB*, 0 ‘mais inluente da esquerda brasileira até 1964, cyja linha politica praticamente nada teve de romantica, 20 contririo de seu setor cultural, marcado pelas propostas difusas de resgate das auténicas rates brasieiras. No conjunto das atividades cultu- nals, intelectuzis e também politicas do perfodo, por vezes a utopia do progress revolucionério ligava-se a busca das origens nacionais do povo. Tratava-se de pro- curar no passado uma cultura popular genufna, para construir uma nova nacio, antiimperialsta, progressista— no limit, socialista, O terciro capitulo destaca outros grupos de esquerda, depois de 1964, como as. dissidéncias armadas do PCB e os trotskistas, sempre vinculando sua atuacio com a ebuligio cultural do perfodo, com énfase na participagio de artistas em suas fi- Ieiras. Seria um equivoco qualificar esses grupos —além do proprio PCB—como passadistas. Ao contri: para eles, retr6grada era a ditadura militar, apoiada por latifundirios, imperialists e setores empresariais, a quem interessaria manter 0 subdesenvolvimento nacional. Tratava-se, portanto, de pontos de vista modemnizantes, que s6 podem ser chamados de roménticos na medida em que a alternativa de modernizagio passava por certa visio nostilgica do povo brasileiro — que variava de grupo para grupo. er vag de sigs nap. 365. 2 INTRODUGAO Para pensar 0 movimento cultural de esquerda, seria possivel tomar como parimetro a obrae o pensamento de virios artistas, marcados pela cultura politica dos anos 50 ¢ 60, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, José Celso Martinez Corréa, Augusto Boal, Vianinha, Ferreira Gullar, Antonio Callado, Hé- lio Oiticica, Edu Lobo, entre tantos mais— inclusive alguns que tiveram militincia direra em organizagbes de esquerda, como os artistas plisticos Sérgio Ferro e Carlos Zio, além de outros mencionados ao longo do livro. Dentre eles, foram tomados ‘como referenciais Chico Buarque e Caetano Veloso, por serem os artistas brasi- Ieiros mais conhecidos¢ influentes, quer pelo talento, quer pela presenga freqiiente nos meios de comunicacio de massa e pela insercéo privilegiada na inddstria cul tural, Eles jamais foram militantes; entretanto, suas trajet6rias artisticas e politcas até os dias de hoje s6 podem ser compreendidas a partir das origens na cultura politica brasileira dos anos 50 ¢ 60, marcada pelas Iutas contra o subdesenvolvi- ‘mento nacional e pela constituigio de uma identidade para 0 pove. (© quarto capitulo propée uma eitura do romance de Chico Buarque, Benjamin (1995), para fazer um balango da dimensio s6cio-politica no conjunto das obras doautor, produzidas entre 0s anos 600¢ 0s 90, perfodo revsitado em Benjamim. © romance recoloca ¢ atualiza 0 lirismo nostilgico € a eee social, paralelamente 20 cesvaziamento da variantewpica da obra de Chico Buarque, expressando aperple- xxidade da intelectualidade de esquerda 3s portas do século XX1. (© quinto capito trata da brasilidade de Caetano Veloso, Sigura destacada do ‘movimento tropicalista em 1967 e 68, seu herdeiro de maior receptividade junto a0 pablico até hoje. A hip6tese sugerida € a de que o tropicalismo traz 2s marcas da formacio polttico-cultural dos anos 50 ¢ 60, isto é, ele nfo foi uma ruptura ra- dical com a cultura politica forjada naqueles anos, apenas um de seus frutos dife- renciados, Ao encerrar 0 ciclo participante, 0 tropicalismo jé indicava os desdo- bramentos do império da indéstria cultural na sociedade brasileira, que transformaria a promessa de socializacio em massificagio da cultura, até mesmo incorporando desfiguradamente aspectos dos movimentos culturais contestadores dos anos 60. Por fim, procura-se apontar no sexo capitulo o refluxo e alguns desdobramen- tos da heranca do empenho revolucionsrio de artistas e intelectuais na sociedade brasileira a partir dos anos 70, até chegar a uma certa recuperacdo em nossos dias B EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO das antes quase esquecidasidéias de povo, Estado-nacio razes culturas, até como reagio ao impeto transnacionalizante neoliberal. Especialmente por intermédio da discussio de algumas entrevistas, buscou-se destacar um temaaser aprofundado_ em futuras investigagGes: a historia da insercio de artistas ¢ intelectuais nos proje~ tos alternativos & ordem estabelecida na sociedade brasileira a partir de meados dos anos 70, que se constituiu num esbogo de contra-hegemonia politica e cultu- ral, que se diluiria a0 longo dos anos 80, sendo finalmente derrotado com avit6ria de Collor sobre Lula nas eleigbes presidenciais de 1989, mesmo ano da queda do Muro de Berlim, ambos marcos do infcio de um perfodo de refluxo e recomposi- Go das esquerdas brasileiras e mundiais. ‘Acrescento, anexada, uma cronelagia brasileira, de 1958 a 1984, mencionando 1 principais acontecimentos ¢ obras nas esferas da politica, cinema, teatro, msi a popula, literatura, artes plisticas e outras. Niose trata de julgar aqui se, e o quanto, certos artistas lograram aproximar- se do “povo”, mas de desvendar seus imaginirios e sua acio, responsiveis por pré- ticas politicas e culturais socialmente embasadas nas classes médias urbanas. Numa formulagio sintética, o tema em anilise sio os meios artisticos e intelectuais de esquerda, que se queriam populares, e nio propriamente o povo. ‘As fontes foram varias: uso da farta bibliografia dispontvel;realizacio exclusi- vvaparaa pesquisa de iniimeras entrevistas com artistas e intelectuais; depoimen- tos aos meios de comunicacio ea outros autores; levantamento de material publi- cadoem revista jomais (Estudos Sais, Braslnse, © Metropolitan, Revita Cuilizaio Brasileira, Tempo Brasileiro, Teoria e Pratica, Aparte, Vazes, Opinio, Movimento, O Pasquim, Arte em Revista, Novos Rumos, Voz da Unidade, Em Tempo, Presenga, Teoria ¢ Debate, Vja, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo ¢ outros); além de muitas obras produzidas no periodo, como discos, romances, quadros, poemase filmes. Seguramente, as fontes sio muito mais amplas do que os limites deste livro, o que anima a continué-lo posteriormente. Faco uso freqiiente de citagbes dos depoimentos estudados. Néo se trata de mero gosto académico, nem de submissio aos discursos dos outros, mas de dar vida ao texto com as palavras dos agentes, para dialogarerefletireriticamente so~ bre sua experiéncia — a partir, € claro, de miradas dos anos 90 sobre os 60 € 70, presentes tanto nos depoimentos como neste livro, os quais portanto nao deixam 4 INTRODUGAO_ de falar sobre o presente ao tratar do passado, Procure’ ser fil aos pensarnentos expressos nas entrevistase outras fontes uilizadas, mas evidentemente sow eu quem conduz o dislogo, na diregio dos argumentos propostos, destacando o que parece ‘ais pertinente 20s propésitos do livro. Por isso, responsabilizo-me pelos pro- bblemas do trabalho e pela edigio das falas, embora deva compartilhar os eventuais réritos com todos 0s citados. “Também éimportante enfitizar que o destaque dado atividade de um ou outro artista intelectual, grupo cultural ou politico, algumas obras, bem como a certos ‘centros urbanos, nfo significa ignorar ou menosprezar a existéncia de outros ato- res e autores, em diversos locais pelo Brasil afora, que no deixam de ser impor- tantes por nfo terem sido citados. Trata-se de exemplificar com casos espectficos aexisténcia de movimentos mais abrangentes, nos quais estavam todos inseridos. ‘A tarefa de reconstituir a ist6ria dos diversos movimentos politico-culturais a partidos anos 60, paraa qual este livro busca dar sua contribuigéo, € um trabalho que esti sendo feito por muitos pesquisadores —e ainda hé muito por investiga, ag que se possa chegar a um quadro completo ¢ minucioso dessa hist6ria. Essa tarefa abrangente envolve a caracterizagio de uma época e de seus pro- blemas, que incluem vasta produgio artistica, em diversas Sreas. Assim sendo, torna-se dificil conduzir a andlise por uma ou outra obra especifica, na sua articu- lagio interna. Os criticos sociais de arte costtimam antipatizar com empreitadas ‘como a deste livro, na qual o que importa é muito mais a compreensio do movi- mento contradit6rio da sociedade do que a forma pela qual ela aparece numa dada obra de arte, Talvez eles tenham razio: a tendéncia acaba sendo a de diluir a especificdade de cada obra em conjuntos maiores, Atendendoem parte aesse tipo de recomendagéo metodolégica, no capitulo que estuda a relacio entre cultura e politica nas obras de Chico Buarque, tentei construr a argumentagio a partir da andlise de seu romance Benjamin. Mas, repito, por mais simpatia e admiracéo que tertha pelos estudos que buscam o social na trama de algumas obras especifica, nio foi a isso que me propus. Espero que a contribuigio deste estudo dos meios anstcos de esquerda compense o pecado de minimizar a particularidade ¢ 0 va- lor artistico de cada obra, Este livro, quando se refere especificamente a alguma obra de arte, ndo tem pretensbes tedricas no campo da estética. Seu objeto € a insergéo politica dos 15 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO artistas de esquerda na sociedade brasileira, pelas suas declaragées 3 imprensa, par- ‘icipagio em partidos e campanhas politicas, até mesmo pelo conteiido e pela for- ‘ma de suas obras, ainda que a andlise nao passe por critérios do que vem a ser a beleza estética, Nesse sentido, fago minhasas palavras de Janet Wolf: “no tenta- rei lidar com a questdo do valor estético. Nao sei a resposta para o problema da “beleza’ ou do ‘mérito artistico’, apenas afirmarei que nio acredito que isso seja redutivel a fatores politicos ¢ sociais” (1993: p. 7) Ocentro da pesquisa €a atuacio e o pensamento politico dos artistas, que nem sempre tém correspondéncia imediata com suas produgées: autores reaciondrios Politicamente so por vezes responsdveis por obras-primas, que exprimem as con- tradig6es de uma época, enquanto certos artistas considerados de esquerda nem. sempre produzem obras de valor estético. Apesar disso — especialmente para os artistas que se consideravam revolucionirios nos anos 60, vinculando indissociavelmente sua vida e sua obra —, parece nio ser fora de propésito anali- sar tanto os depoimentos como as agées e as obras para entender melhor a inser- io politica e social de seus autores, ainda mais quando eles explicitamente fazem reflexdes sobre a sociedade brasileira por intermédio de suas criagSes, mesmo sem as reduzir a isso. Esse iltimo aspecto, por certo controverso, merece ainda algu- mas observag6es. INio se trata de fazer uma abordagem reducionista do campo estético, como se a obra de arte fosse imediatamente identificével com uma tnica mensagern Politica, que se veicularia pelas artes. Tampouco caberia o simplismo do marxis- ‘mo vulgar, que em tudo vé 0 reflexo do econémico, reduzindo as criaghes artisticas 4 elementos da superesinturaideol6gica e politica, determinada pela infia-estrutura ‘econémica. Nos limites do trabalho proposto, nao estard em foco propriamente 0 valor intrinseco da obra de arte, mas sua temporalidade; vale dizer, a histOria de ‘uma sociedade pode ser contada também pela producéo artistca. Antes de passar ao texto, indispensivel fazer alguns agradecimentos. Sou devedor das pessoas que me ajudaram, indicando bibliografia, dando sugestOes, apresentando artistas e intelectuais a serem entrevistados, ou que debateram co- ‘igo as verses iniciais de alguns trechos do trabalho, expostos em congressos no Brasil eno exterior. A todas elas agradeco, assim como aos amigos familiares que estiveram 20 meu lado, especialmente nos momentos de sua conclusio. Vérios 16 INTRODUGAO alunos de iniciagdo cientifica contribufram bastante, com levantamento de mate- rial, transcrigdo de entrevistas ¢ debates em nossos semindtios. Os artistas ¢ inte- lectuais que deram seus depoimentos também foram muito solfctos. Agradego ainda as observagées da banca da versio inicial deste livro, que apresentei na Unicamp como tese de livre-docéncia, O pessoal responsivel pela ediglo do livro também colaborou. Enfim, muita gente ajudou, s6 nfo vou nomear todos porque ‘sio muitos, Sou grato acima de tudo ao apoio pablico, por intermédio do CNPq, dda Unesp e da Unicamp. Contra os que pretendem degradé-la ou destruf-la vale reafirmar a importincia insubstitutvel da Universidade Péblica como lugar de li- berdade, critica ¢ criagio. NOTA 1. Otermo “esquerda” é usado para designar as forgas politicas critcas da ordem capi- talista estabelecida,identificadas com as lutas dos trabalhadores pela transformagio social. Tratase de uma definigio ampla, prOxima da utilizada por Gorender, para (quer “os diferentes graus, caminhos e formas dessa transformagio social plualizam aesquerda. fazer dela um espectro de cores e matizes”(1987:p.7). Também Marco ‘Aurélio Garcia trabalha com um conceito amplo de “esquerda”, préximo do em- pregado aqui (1986: p. 194-195). BRASIL, ANOS 60: Povo, nagao, revolucéo Tudo aqulo perencia 49 mesmo universo,eraatentaiva de “fundagio de uma cultura nacional e popular no Brasil. (Cacd Diegues* O cinema é a consciéncia nacional, é o espelho intelectual, cultural, flossfico da nag. Glauber Rochat* Amo 0 povo ¢ ndo renuncio a esta paixo. Nelson Pereira dos Santos*** sjeto basio, agente das ransformagies nesse nacional-popalar, era o camponts nordestno; de preerénciao retrante, os pescadones naquelas cangies praicras todas. ‘Supunha-se que a aliang retirane-favelad seria a grande foga mouriz da Histéria [.) "Nao era 86 o pessoal do CPC. Exista isso posto no conjunt da sociedade. Esses temas invadiram toda arte, toda cultura, ‘Alipio Freiret*** (0 guard-chuva do naconalismo populitapropiiavaocontto entre stores progresisias da elite, os trabalhadoresorganizados afranja esquendizada de clase médi, ‘em especial os estudantes ea intelectualdade jovem: par efeitos ideolics, sa liga meio demagégica e meio explsiva agora era 0 povo. Roberto Schwarz (1999: p. 119) Revolta ¢ melancolia, raizes ¢ desenvolvimento" [Nas entrevistas realizadas para este livro, bem como em outros depoimentos € reflexdes sobre 0s atios 60, vérias vezes aparece 0 adjetivo romdntio para caracte~ rizar as tase as idias do perfodo nos campos da politica ¢ da cultura. Em geral, termo nao é empregado com um sentido univoco, preciso; por vezes 6 usado ‘com uma conotacéo pejorativa,identificada a cetaingenuidade e falta de realismo politico. Contudo, nao cabe tomar 0 romantismo revolucionsrio da €poca com desdém —o que € comum hoje em dia, tanto para certos autores ¢ politicos de esquerda, como pata os adeptos da politica do possivl, submissos & nova ordem mun dial, como se ela fosse inexorével, Ao contrario, nessa passagem de século, aparen- temente sombria para as forcas transformadoras da ordem estabelecida, cabe Jembrar que a questio ds reformas ¢ da revolucio social, com base no resgate de valores pré-capitalista, estava colocada no mundo todo por movimentos politicos significativos hé relativamente pouco tempo, especialmente nos anos 60..De I para ‘ci, contra-revolucio triunfou em escala internacional, mas nao foi capaz de dar resposta aos graves problemas sociais, especialmente numa sociedade como a brasileira. Em varias citagGes reproduzidas a0 longo do livro ser4 possfvel encontrar refe- réncias 20 romantismo da época, nio s6 nas falas dos agentes — por exemplo, 0 ¢x- guerrilheiro José Genofno refere-se ao “romantismo de uma geragio que nao tinha medo de corter isco. © bom era correr risco” (ix Couto, 1998: p. 113) — mas 93, EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO também em escritos de estudiosos como Sérgio Paulo Rouanet, que aponta na ccultura de esquerda dos anos 60 “uma semelhanca inconfortavel com 0 Volk do romantismo alemAo” (1988). Se o uso do termo carece de um sentido tinico nas varias falas, por outro lado essas revelam certas percepgdes de uma época dita ro- manta, A partir dessa constatagio — e considerando também as varias acepg6es em que 0 conceito de romantismo € usado pelos cientistas sociais —, tratei de propor uma hip6tese, em que se pode falar com mais precisio num romantis- ‘mo revolucionério para compreender as lutas politicas ¢ culturais dos anos 60 € prinefpio dos 70, do combate da esquerda armada as manifestag6es politico culturais na miisica popular, no cinema, no teatro, nas artes plisticas e na lite- ratura. A utopia revolucionria romantica do perfodo valorizava acima de tudo avontade de transformagio, a agio dos seres humanos para mudar a Histéria, num processo de construgio do homem novo, nos termos do jovem Marx re- cuperados por Che Guevara. Mas 0 modelo para esse homem novo estava no passado, na idealizagio de um auténtico homem do povo, com raizes rurais, do interior, do “cora¢ao do Brasil”, supostamente nio contaminado pela modernidade urbana capitalista. Como o indigena exaltado no romance Quanup, de Antonio Callado (1967), ou a comunidade negra celebrada no fil- me Ganga Zumba, de Carlos Diegues (1963), na pega Arena canta Zumbi, de Boal Guarnieri (1965), entre outros tantos exemplos. ‘Versoes diferenciadas desse romantismo estavam presentes nos movimen- tos sociais, politicos e culturais do periodo prée pés-golpe de 1964, como os de sargentos ¢ marinheiros, trabalhadores urbanos e ruras, estudantes ¢ intelec= tuais — estes tilimos mais destacados apés o golpe civil-militar. Os grupos de esquerda, que procuravam organizar esses movimentos, produziram vers6es diferentes entre si do romantismo revoluciondrio: da trajet6ria da AP, partindo do cristianismo para chegar a0 maoismo (sempre destacando a agio, a vivéncia dos problemas do homem do povo, encarnado nos trabalhadores, sobretudo os rurais); passando pelo guevarismo de diversas dissid@ncias armadas do PCB, a valorizar a necessidade de iniciar a revolucio pela guerrilha rural — caso tipico da ALN —; até outros grupos que pegaram em armas contra a ditadura, enfatizando a necessidade da acio revolucionéria imediata 2 Como ser4 exposto EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO partir dos anos 60. Léwy e Sayre véem o romantismo de modo abrangente, nio ‘apenas nas artes, mas como umma visio social de mundo, nos mais diversos cam- ‘pos. Para eles, “o romantismo €, por esséncia, uma reagio contra o modo de vida da sociedade capitalist [..] representa uma critica da modernidade, isto €, da ci- vilizagio capitalista moderna, em nome de valores eideais do passado (pré-capita- lista, pré-moderno) [..] € iluminado pela dupla luz da estrela da revoliae do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)” (Lowy & Sayre, 1995: p. 34). ‘Assim, longe de ser uma corrente artistica restrita & Europa, da revolugio francesa a uma parte do século XIX, 0 romantismo seria uma visio de mundo ampla, “uma resposta a essa transformacio mais lenta e profunda—de ordem ‘econdmica e social — que € 0 advento do capitalismo*, em todas as partes do mundo, de meados do século XVIII, com o fim da acumulagio primitiva na Inglaterra eo répido desenvolvimento da grande indiistria liberando-se o mer= cado do controle social, até nossos dias (1995: p. 33-36). Assim, na segunda metade do século XX, segundo Lowy e Sayre, dimens6es roménticas estariam presentes: no maio de 1968 francés ¢ outros movimentos da época, como os terceiro-mundistas; em certas correntes ecolégicas; na teologia da libertagéo ete. (1995: p. 219-259). romantismo seria uma forma especifica de critica da modernidade, en- tendida como “a civilizagio moderna engendrada pela revolucio industrial ea generalizagio da economia de mercado”, caracterizada — em termos webetianos — pelo “espirito de cileulo, o desencantamento do mundo, a racionalidade instrumental ¢ a dominagio burocrética (..] inseparéveis do advento do espirito do capitalismo” (Lowy & Sayre, 1995: p. 35, 51-70). A critica apartir de uma visio romantica de mundo incidiria sobre a modernidade enquanto totalidade complexa, que envolveria as relagdes de produgio (centradas no valor de troca ¢ no dinheiro, sob o capitalismo), os meios de producio e o Estado. Seria uma autocritca da modernidade, isto é, uma reagio formulada de dentro dela propria, nfo do exterior, “caracterizada pela convic- lo dolorosa e melancélica de que o presente carece de certos valores huma- nos essenciais que foram alienados” (1995: p. 38-40): BRASIL, ANOS 60 ‘Avvisto romantica apodera-se de um momento do passado real — no qual as caracteristicas nefistas da modernidade ainda nao existiam ¢ os valores huma- ‘nos, sufocados por esta, ontinuavam a prevalecer — transforma-o em utopia fe vai modelé-lo como encarnagio das aspiragdes romdnticas. E nesse aspecto {que se explica 0 paradoxo aparente: 0 “passadismo” roméntico pode ser tam- bém um olhar voltado para Futuro;a imagem de um futuro sonhado para além do mundo em que o sonhador inscreve-se, entdo na evocagio de uma era pré- capitalist (1995p. 41) («J Recusa da realidade socal presente, experiéncia de perda, nostalgia melancéliea e busca do que esté perdido: tas so os principais ‘componentes da visio romantica (Lwy & Sayre, 1995: p. 44) ‘Anegacio da modernidade captalista, segundo Lowy e Sayre, implicariaa formulagio dos valores positives do romantismo, que seriam qualitativos, em opo- sigio a0 valor de troca: 1. a exaltagio da subjetividade do individuo e da liber- dade de seu imagindrio (ligada indissociavelmente ao combate &reificagio € 2 padronizacio capitalists, portanto, diferente do individualismo liberal); 2. valorizagio da unidade ou totalidade, da comunidade em que se inserem os individuos e na qual eles se podem realizar enquanto tais, em unido com os outros seres humanos e a natureza, no conjunto orginico de um povo. Assim, ‘busca de recriar a individualidade e a comunidade humanas seria insepardvel dda recusa da fragmentacdo da coletividade na modernidade. A critica da modernidade e 0s valores romanticos positivos seriam “os dois lados de uma 36 tinica moeda” (1995: p. 45-47). ‘As formulagdes de Lowy e Sayre nio dever levar a crer que todo antica- pitalismo € romintico. Eles alertam para a existincia de um anticaptalistmo modemizador, que “critica o presente em nome de certos valores ‘modernos' — racionalistmo utilitéri, eficicia, progresso cientifico ¢ tecnol6gico —, levando a modemnidade a se superar, completar sua prOpria evolucio, em vez de voltar as fontes, mergulhar de novo nos valores perdidos” (1995: p. 49). Seria dessa ordem a corrente predominante no marsismo, formulada por exemplo pela tradigio in- telectual da Ile da III Internacional. O estruturalismo marxista, de autores como ‘Althusser — anti-humanista, valorizando a estrutura e a técnica (1995: p. 305) —, tampouco poderia ser qualificado como romagtico. EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO ‘Nossos autores procuraram formular a visio de mundo romantica como um conceito (Begrif), no sentido marxista, que busca traduzir o movimento da reali dade, trazer em si as contradiges do fondmeno e sua diversidade (1995: p. 31). Nao obstante, para compreender melhor essas contradigées, cles construiram uma tipologia do romantismo inspirada metodologicamente em Weber (Lowy & Sayre, 1995: p. 92 e segs.). Os tipos-ideais no buscam em si dar conta do movimento contradit6rio do real, so uma construcio do investigador, parcial e nio-dialética, que Lowy e Sayre usam de modo complementar em uma andlise que pretende dar conta do movimento de uma totalidade contraditéria, Para eles, as duas tentativas —a formulagio de conceitos marxistas etipos-ideais weberianos — sio mais com- plementares que contraditérias (1995: p. 31). Assim, os autores esbocam a seguinte tipologia do romantismo, “indo grasso modo da direita para a esquerda no espectro politico” (1995: p. 91-127): 1. Restitucionista, definido como aquele que aspira 3 restituigio, restauragdo ou recriagio do passado medieval, caso de Schelling na filosofia, Adam Maller na teoria politica e Novalis na literatura; 2. Conseroador, que buscaria manter um estado tradicional da sociedade existente,legitimando a ordem estabelecida com base na evolucio hist6rica supostamente natural — por exemplo, no pensamento de Savigny, Stahl, Malthus, Edmund Burke;3. Fscista, romantismo marcado pelo anticapitalismo mesclado 3 condenagio da democracia parlamentar e do comunis- ‘mo, em que a critica da racionalidade capitalista toma-se a glorificacio da forca da crueldade, com a submissio do individuo 3 comunidade, nostélgico de um passado mitico de guerra e violéncia — os autores ilustram esse tipo com 0 exemplo do artista alemio Gottfried Benn (cles esclarecem no haver coinci- déncia entre 0 espirito romantico e as ideologias fascista e nazista: nem todo fascismo é romantico — pois muitas vezes o destaque nao estaria na volta a0 passado, mas na aposta na modernidade da indistriae da tecnologia — e nem todo romantismo é fascista); 4. Resinado, que lamenta a modernidade mas re~ conhece nela uma situagio de fato, & qual seria preciso resignar-se, casos de Tonnies e Weber na sociologia; na literatura, “seria possivel considerar que muitos escritores cuja obra pertence ao que Lukics chamava ‘realismo critico’ tinham a ver com essa forma de romantismo: Dickens, Flaubert, Thomas Mann — Balzac situar-se-i, talvez, na charneira entre os romantismos restitucionista 8 BRASIL, ANOS 60 ¢ resignado”; 5. Reformador, preconiza reformas para fazer voltar os valores anti~ 05, por exemplo, Lamartine, Lamennais e Hugo; 6. Revoluciondrio ¢ ou utépico, que visaria “instaurar um futuro novo, no qual a humanidade encontraria uma parte das qualidades e valores que tinha perdido com a modernidade: comuni- dade, gratuidade, doagio, harmonia com a natureza, trabalho como arte, enean- tamento da vida. No entanto, tal situacio implica o questionamento radical do sistema econémico baseado no valor de troca, lucro e mecanismo cego do mer cado: o capitalismo” (1995: p. 325). Nesse caso, “a lembranga do passado serve ‘como arma para lutar pelo futuro” (Lowy & Sayre, 1995: p. 44).* ssa tipologia nio se pretende a tinica possivel ¢ poderia ser contestada. Mas o propésito aqui nio é discutira pertinéncia maior ou menor de cada tipo proposto por Liwy e Sayre; interessa destacar sobretudo 0 que eles chama- ram de ‘romantismo revolucionsrio” (1995: p. 113-127), subdividido em cinco subtipos: a) Romantismo jacobino-democratico,crtico das opress6es do passado edo presente com base em valores jacobinos e democréticos — esse tipo seria vinculado 20 iluminismo por intermédio de Rousseau. Seriam exemplos, na literatura, Stendhal, Musset, Heine etc. Esgotado na Europa no século XIX, teria uma sobrevida nos pafses subdesenvolvidos, como a Cuba de Marti ¢ de Castro numa primeira fase; b) Romantismo populista, que “se opGe tanto 20 ca pitalismo industrial quanto a monarquia e&servidio,e aspira salvar, restabe- lecer ou desenvolver como alteridade social as formas de produgio ¢ de vida ‘comunitéria camponesas¢ artesanais do ‘povo' pré-moderno”, presente na cbra de Sismondi, no movimento russo Narodnaya Vblya (A Vontade do Povo), na literatura de Tolstoi etc; ¢) Socialismo ut6pico-humanista — critica ao capitalis~ ‘mo em nome da humanidade softedora (ndo do proletariado), dirigindo-se a0s homens de boa vontade, casos de Fourier, Leroux, Moses Hess e mais re- centemente Erich Fromm ¢ o expressionista Ernst Toller; d) Romantismo Iibertirio, anarquista ou anarcossindicalista, de pensadores como Proudhon, Bakunin e Kropotkine, que procura estabelecer uma federagio descentralizada de comunidades locais, inspirando-se — para combater 0 capitalismo ¢ 0 Es- tado —em tradigées coletivistas pré-capitalistas de camponeses, artesios € ope- rérios qualificados; e) Romantismo marxista, vertente do romantismo revolucio- nnério com a qual Lowy ¢ Sayre se identificam, que estaria presente em autores 9 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO como Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Henri Lefebvre, E. P Thompson, Raymond Williams, Rosa Luxemburgo, E. Bloch, pensadores da Escola de Frankfurt, dentre outros, além de Marx e Engels. Nio obstante, Lowy e Sayre admitem que hé uma ambigiiidade entre marxismo e romantismo, pois até os autores marxistas “mais atrafdos pelos temas rominticos conservam uma dis- tncia critica, inspirada pela heranga progressista do iluminismo”, a qual é crf- tica de qualquer recuperacdo nostalgica do passado. Talvez por isso eles as vezes prefiram falar em autores marxistas com sensiblidade roméntica, em vez de mar- xistas roménticos. Essa corrente seria diferenciada dos demais romantismos revolucionirios por preocupar-se basicamente com 2 luta de classes, o papel revolucionério do proletariado eo uso das forcas produtivas modernas numa economia socialista (1995: p. 125-127 ¢ 133-172). Esses varios subtipos de romantismo revoluciondrio talvez permitam falar em romantismos revolucior rigs, no plural, para atestar sua diversidade. Assim, sempre que o termo roman- tismo revoluciondrio for usado ao longo deste livro, devem ficar subentendidas as nuangas diversificadas que ele comporta. Segundo Lowy e Sayre, “os produtores da visio romantica do mundo repre sentam certas fragées tradicionais da intelligentsia cujo modo de vida e cultura si hostis& civilizagio industrial burguesa”. Essa hostilidade estaria fundamentada socialmente na “contradicio entre inteligencia tradicional e ambiéncia social moderna, contradigio que é geradora de conflitos ¢ revoltas”. Contudo, se a produgio do ideério romantico ver de setores tradicionais, “sua audiéncia, sua base social no sentido pleno, é muito mais vasta. 6 composta potencialmente por todas as classes, fragbes de classe ou categorias sociais que, devido a0 adven- to edesenvolvimento do capitalismo industrial moderno, acabaram sofrendo um declinio ou crise de seu estatuto ccondmico, social ou politico, e/ou um preju- f20 no modo de vida e valores culturais a que estavam ligadas”. Eles formulam também a hip6tese de que as formas ut6pico-revolucionérias do romantismo encontram sua audiéncia, preferencialmente, entre as camadas ndo-dominantes da sociedade (1995: p. 130-132) Michael Lowy costuma lembrar a famosa frase de Goethe, expressiva do espirito roméntico: cinzenta¢ toda teria ¢ verde a drvore esplendorosa da vida. Por isso, €surpreendente observar que ele e Sayre déem pouco destaque ao que parece 30 BRASIL, ANOS 60 ser uma outra caracteristicaessencial do romantismo: indissocifvel de uma utopia anticapitalista parcialmente moldada no passado, em especial o romantismo re~ volucionério enfatiza a pritica, a acio, a coragem, a vontade de transformagio, por vezes em detrimento da teoria e dos limites impostos pelas circunstincias historicas objetivas. Justamente a submissio da teoria & experiéncia vivida, associada & nostal- gia de uma comunidade popular mitica a que estariam submetidos os int vviduos, sio aspectos que fazem certos autores criticarem quaisquer perspecti- ‘vas rominticas, pois elas abririam campo a priticas toalitirias, opressoras das individualidades, O estudioso brasileiro que mais explicitamente combate 0 romantismo— que se faria presente, por exemplo, em certas correntes mar- xistas e no seio de movimentos cat6licos, da direita 3 esquerda — talvez seja Roberto Romano, Em seu livro Conservadorismo romantic, origem do totalitarismo (1981), ele condena a obediéneia e o encantamento religioso contidos no ro- mantismo, campo fértil para o poder antidemocritico, em que o individuo se submete a sociedade: “Se nio podem subsistiros individuos, resta o Povo. Mas este, para os romanticos de todos os matizes, é eterna crianga, que deve ser ‘protegida’.[...] Ora, um povo é, segundo 0 mais acentuado dos roménticos, ‘como uma crianga, um problema individual, pedag6gico’ (Novalis)” (Roma- no, 1981: p. 79). Namesma direcio vai a critica de Sérgio Paulo Rouanet aos CPCs da UNE, em particular, ¢ 2 esquerda brasileira, em geral, cujo culto ao povo, no prinefpio dos anos 60, ele identifica ao romantismo conservador alemo: ‘© povo, nos anos 60, era visto seja como urna massa inerte, inculta, despolitizada {.-.J,euja consciéncia politica precisava ser despertada por sua vanguard, esta~ dantes ¢ intelectuzis urbanos; seja como um povo jé de posse de si mesmo, portador de uma sabedoria espontinea, sujeitoa fundamento da ago politica. Havia um povo que ainda nio 6, e deve ser objeto de uma pedagogia, ¢ um povo ‘que ji, e deve sero objeto de uma escrita, porque a sua vor €a vor da histria. [.-.] © “pov” dos anos 60 tinha muitas vezes uma semelhanga inconfortivel ‘com 0 Vilk do romantismo alemio [..]: a nagio como individualidade tnica, representada pelo povo, como singularidade irredutivel. (..] (© historismo a” EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO conservador e romantico] esté defendendo um patriménio: a propriedade, a ‘radigio a ordem socal, Mas por uma aberracio que nio peculiar a0 Brasil, historismo foi apropriado pelo pensamento critico como cosa sua. historista de esquerda combate o universal, porque o v8 como agente da dominacéo, Ele se considera um rebelde, e expulsa 0 universal como quem expulsa um bata- Ibdo de marines. £ um equivoco (Rouanet, 1988: p. 3).* Romano ¢ Rouanet parecem corretos, ao advertir para o potencial autoritério, da visio de mundo romintica, aspecto secundarizado por Liwy e Sayre. Mas foco unidirecional de sua critica dificulta a visualizacio da amplitude contradité- ria€ nfo necesséria ou predominantemente autoritériados romantismos, em par= ticular dos revoluciondrios. Podem-se encontrar aspectos potencialmente ou de fato autoritirios em varios movimentos de esquerda com afinidades romanticas, por exemplo, os mencionados CPCs nos anos 60 ou 0s movimentos cat6licos inspirados pela Teologia da Libertagio em nossos dias. Mas isso nio deve obscu- recer a riqueza e a diversidade desses movimentos, que também slo portadores, ccontraditoriamente, de potencialidades libertirias. Assim, parece empobrecedor reduira visio de mundo roménticad idéia de totalitarismo. Dessa mirada restritiva no compartlha outro estudioso do romantismo, Elias Saliba, autor de As wopias romintca, para quem: “Todas as tentativas de definir 0 romantismo, identifican- do-o esquematicamente com a revolugio ou com a reacio, redundaram em fra- asso, por ignorar a rota caprichosa deste imaginério” (1991: p. 16). Saliba destaca o desenraizamento do tempo presente como 0 ingrediente bisico das utopias romanticas. © presente seria negado, colocando-se uma interrogagio sobre o futuro, de alguma forma referido 20 passado, Haveria uma énfase roman tica na temporalidade hist6rica, a idolatria do tempo e da hiséria, 20 se verem as coi- sas desprovidas de qualquer estabilidade e colocadas potencialmente no limiar de ‘Para um contraponto vero artigo de Celso Frederico, ’A potica cultural dos comanistas”, que critica Assim, apesar de uma ou outra operagio guerrilheira bem-sucedida, a agio policial-militar desmantelou rapidamente os grupos guerrilheios, especialmente entre 1969 ¢ 1971, no hesitando em assassinar e torturar seus inimigos, que no conseguiram realizar o sonho de deflagrar a guerrilha no campo. S60 PC do B, {que se abstvera de pegar em armas nas cdades, conseguiu lancar a guerrilha ru- ral, na regio do Araguaia, no sul do Pard. Entre 1972 ¢ 1974, deu-se encarigada Tuta, que culminow com a derrota dos guerrilheiros, quase todos mortos em com- bate ou assassinados depois de capturados, sem que se tenha noticia oficial, até hoje, do paradeiro de seus corpos. Nunca é demais realcar a violencia do regime civil-militar, marcado pelo desrespeito& integridade fisica dos presos, pelo assas- sinato de membros da oposigio, sem contar as restrigbes aos direitos de expres- fo, reuniio, organizacio politica e sindical. f Sobre ov Bpecos Fprestvos do periodo, ver, de D. Paulo Evaristo Arms (Preficio, Brasil: muna mais (1085 eae ro um resumo dos 12 volumes publicados em ragem limitada pela Arquidiocese de {ie paul, dando um quadro completo da represso, com base nos processos movidos pelo regime mili Se Eun cas opostare),¢ Doi des more dexspercdes pols a pri de 196%, de Maria do Amparo [aijods at (1993) A ap2o¢ a perspectiva do aparelho burocrSco repressvo,encarepido de vghat © rnd dese aos, os suits €intlectnis de esquerda um tema que merece sr pesauisado so de sett, por exerplo, pelo esto das chas dos artistas eaboradas pr agentes do DEOPS. Estas item muito nas sobre a deolopia ca burocraiapoical do que sobre as efeivas lignes politias dos (teestipads_"e por iso tao foram privlegiadas nese lvro. oro bem observa um reper: "© DEOPS. sa rcp declan Gi psn io i ne ee deteene ‘Rrempwam, Suareagte como cbjetoerade oul etanhamento, Daf algumasbiografiasevelarem mais Sabre visio de mundo da pofciado que apoliia cultura!” (Giron, 1995: p 1. a” EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO ‘As esquerdas enganaram-se, a0 supor que o golpe implicaria a estagnagio eco- nomica. Ao contrétio, representando as classes dominantes ¢ setores das classes médias, os governos civil-militares promoveram a modemizagio conservadora da sociedade brasileira, o desenvolvimento econdmico desigual ecombinado,compondo indissoluvelmente aspectos modernos arcaicos. Houve crescimento répido das forgas produtivas, o chamado milagre brasileiro, acompanhado da concentragio de riquezas, do aumento das distincias entre 0s maisricos eos mais pobres, bem como do cerceamento as liberdades democriticas. O regime buscava sua legitimaco politica com base nos éxitos econdmicos, sustentados por macicos empréstimos internacionais, que colocariam nos ombros das geragBes posteriores o peso de om externa Efreciso lembrar, ainda, que a modernizagio conservadora pés-1964 con- solidou © processo de urbanizagio em curso, dos mais acelerados da Histria ‘mundial: de 1950 a 1970, a sociedade brasileira passou de majoritariamente ru- ral para eminentemente urbana, com todos os problemas sociais ¢ culturais de ‘tao répida transformacéo. Os trabalhadores ¢ demais despossufdos — que co- ‘mecavam a se aglomerar ¢ organizar nas cidades e também no campo, reivindi- cando direitos — foram subjugados depois de 1964. Restou a eles o que alguns sociélogos chamam de espoliagio urbana, acompanhada da violénca do cotidiano nas grandes metr6poles, sem que no campo tivesse sido resolvida a questio se- ccular da reforma agrétia, [Nesse contexto, geraram-se reagGes politicase culturais as transformagées ‘em escala nacional e internacional. Reag6es a que se podem atribuir tragos co- uns na historia recente do Brasil: resistncia ao proceso de industrializa- cio, urbanizagio, concentragio de riquezas e auséncia de liberdades democr4~ ticas; combate a0 dinheiro, & indistria cultural e& fetichizagao impostos pela seciedade de consumo do mercado capitalista; identificagéo com o camponts, tomado como auténtico representante do povo oprimido, cujas rafzes seria preciso resgatar; escola do campo como local para oinfcio da revolugio social; ‘evalorizagio da ago, da vivéncia revoluciondria, por vezes em detrimento da teoria. BRASIL, ANOS 60 Redescobridores do povo brasileiro ‘Oromantismo revolucionério esteve presente, em versbes diferenciadas, tanto nos programas de virios grupos de esquerda,* como nas produghesartisticas, que mat- caram diferentes conjunturas na sociedade brasileira como seri exposto nos pro= -ximos capitulos. Em diversos momentos, a0 longo dos anos 60, a revolugio bra- sileira em suas diversas acep bes, em geral tomando como base principalmente a agéo do camponts e das massas populares, em cujas lutas a intelectualidade de esquerdaestaria organicamente engajada — foi cantada em verso ¢ prosa na mti- sica popular, nos espeticulosteatrais, no cinema, na literatura enas artes plsticas, ‘Um dos primeijos balangos do esforgo de artistas e cientistas sociais para co- nnhecere ligarse a6 “humilhadose ofendidos que povoam o mundo rural ea cida- de” — caja staria marcada pelo misticismo e pela violéncia— foi feito por Octavig Ianni, num breve artigo para a Revista Civlizago Brasileira (1968). [Roberto Schwarz trata do tema no artigo clissico “Cultura e politica, 1964-1969" (1978), Ainda escreveram a respeito Helo‘sa Buarque de Hollands (1981), autora também de um livro com Marcos Augusto Goncalves (1982), dentre outros estudio- 0s, como Renato Franco (1998), que demonstra que o tema central em dezenas de romances dos anos 60 inicio dos70 erao lugar do intelectual de esquerda na socie- dade brasileira. Com esses romances — que elegem como her6i um artista ou inte~ lectual a refletir sobre as condigées impostas eles pela modernizacio conservado- ada sociedade sob aditadura—, talvez tenham correspondéncia as palavras de Liwy ¢ Sayre a respeito da tese de doutorado do jovem Marcuse, de 1922 (Der Deutche “Kiinstleroman), Para este, 0s romances alemes do século XIX conteriam “um pro- testo romfintico contra a indusrializacio crescente e a mecanizacio da vida econ6- mica e cultural, esponsiveis pela destruicio ¢ marginalizacio de todos os valores espirituais” (Lowy & Sayre, 1995:p.242), Como €sabido, a modernizagio alem’ foi conduzida autoritariamente pelo Estado, a exemplo da brasileira. Diga-se de passa~ gem que a retomada do romantismo nos seus esritos dos anos 50 ¢ 60 por um au~ téntico representante do racionalismo da escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, atestaia “a inadequagio das andliss ‘léssicas’ segundo as quais 0 irracionalismo seria a propria quintesséncia do romantismo ¢ de sua critica da modernidade” (Léswy & Sayre, 1999: p. 243). Esse tera também serd retomado adiante. 43a EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO Na década de 1960, a utopia que ganhava coragées € mentes era a revolucio (nfo a democracia ow a cidadania, como seria anos depois), tanto que o proprio ‘movimento de 1964 designou-se como revoluyéo. As propostas de revolucéo polt- tica,e também econdmica, cultural, pessoal, enfim, em todos os sentidos ¢ com os significados mais variados, marcaram profundamente o debate politic ¢esttico, especialmente entre 1964 ¢ 1968. Enquanto alguns inspiravam-se na revolugio ‘cubana ou na chinesa, outros mantinham-se fiis a0 modelo soviético, enquanto terceiros faziam a antropofagia do maio francés, do movimento hippie, da contracultura, propondo uma transformagio que passaria pela revolugio nos cos- ‘umes. Rebeldia contra a ordem e revolucio social por uma nova ordem manti- rnham didlogo tenso ecritivo, interpenetrando-se em diferentes medidas ma pré= tica dos movimentos sociajs, expressa nas manifestagbes artsticas e nos debates estéticos, como expressoxf Leandro Konder, num artigo da época (1967). A forte presenga cultural da esquerda nao deve elidir as articulagées da direita, qual, apesar de tudo, nunca perdew o controle do processo, num momento em {que and istria cultural comecava a ganhar magnitude digna desse nome no Bra- sil, como demonstrou Renato Ortiz, inclusive com dados estatisticos, em A mo- derna tradigio brasileira (1988). ‘A respeito do embate politico-cultural entre esquerda e direita nos meios de ‘comunicacio de massa, pode-se dar um exemplo significativo, lembrado no de- poimento que me concedew Alipio Frere. Ele comentou uma visita de Caetano ‘Veloso, em 1968, 20 programa de entrevistas que a conservadora Hebe Camargo conduzia na TV Record de So Paulo, a emissora de maior audiéncia na época. Caetano estava na fase tropicalistae recentemente langara a cancio Soy lvo por “América, de Gil ¢ Capinan, em homenagem a Che Guevara assassinado na Bolf- Via. Cantava-se o nome do homem morto, louco pela América, que a censura no permitiria dizer com todas as letras: Soy loco por ti, América yo voy traet una mujer plajera/ que su nombre sea “Mart/.../ como se chama a amante desse pais ser nome/ esse tango, esse ran- cho/ dizei-me/ arde o fogo de conhecé-la/ .../ El ‘nombre del hombre muerto/ yano se puede decir-lo/ quien sabe/ antes que o dia arrebente/ antes que o dia arrebente/ el nombre del hombre muerto/ antes que a definitiva noite/ se espalhe BRASIL, ANOS 60 em latino América/ el nombre del hombre es pueblo... espero a manhi que cante/el nombre del hombre muerto/ndo sejam palavras triste soy loco por ti de amorey estou aqui de passagenv sei que adiante/ um dia vou morrer/ de ‘susto, de bala ou vici de susto de bala ou vcio/ num precipfcio de luzes/ entre saudades, solugoy/eu vou morrer de bragos/ nos bracos, nos olhos/ nos bragos cde uma mulher/nos bragos de uma mulher/ mais apaixonado ainda/ dentro dos bragos da camponesa/guerrilheira, manequim ai de miny nos bragos de quem me queiry Homem, povo, guerrilheiro, morte do her6i, no ritmo andrquico de uma rumba, no estilo cubano: o tropicalismo reconstrufa & sua maneira 0 roman- tismo revolucionério do perfodo — tema que ser retomado no peniiltimo capitulo.* Voltandoao episédio do programma de Hebe Camargo, como relembra Alipio Beire Hebe comega a apertar o Caetano, insste: “Por que essa rumba? Quem é esse homem morto?” Vai deixando o Caetano um pouco acuado, ¢ ele termina a ‘entrevista dizendo: “Hebe, voce ndo entendeu, canto essa rumba porque € um ritmo timo para dancar.” Foi muito constrangedor. Nio se brinca com essas coisas no ar Por brincadeiras semelhantes o Randal Juliano mandou o Caetano para onde mandou. Baseado no que Ihe disse um major que o interrogou, Caetano Veloso res ponscbiliza por sua prso um apresentador de festivais de misica ¢ outros pro- igramas da TV Record e da Rédio Jovem Pan de So Paulo nos anos 60: Randal Juliano reclamara no ar por providéncias contra o suposto desrespeito a patria de Caetano ¢ outros tropicalistas Juliano teria criado “uma verso fantasiosaem que 1nés aparecfamos enrolados na bandeira nacional ¢ cantvamos o Hino Nacional cenxertado de palavroes”, Essa versio teria repercutido nos meios militares ¢ leva- doa prisio de Cactano e Gil (Veloso, 1997: p. 396-397). Slag Rid combim comps ama cng inspiradaem Guevara, Aldi: “Che, eu eeio no teu cane! ce em manto em minha dor/ que todo devencanal ea ressuscitador/ ejo o mundo dvidida/contem- Slinco o ener dh csperanga que mora no sno do teu se Che Guevara nio morred/ Alia” {enrd 1981. 185186) Eventerent, a perspectva esta & bem diferene da tropicalis 3 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO Como bem observou Alipio Freire, “o programa da Hebe é uma coisa im- portante a estudar. A reacio mais ou menos explicita passava toda por lf. Mes- ‘mo quando cla levava artistas de esquerda, 0 objetivo era a luta ideol6gica, polt- tica”, na qual Hebe e a reacio colocavam-se “em posigéo de forga”." Alipio rememora outro episédio emblemitico da reagio pela TV agitacio de esquer- da em 1968: no auge das manifestagoes de estudantes ¢ trabalhadores franceses, ‘compareceu ao programa de Hebe Camargoa legendiriaatriz francesa, radicada no Brasil, Henriette Morineau: “Depois de as duas juntas escracharem 0 que estava acontecendo em 68 na Franca, do ponto de vista mais reaciondrio possf- vel, a atriz — com fitas azul, vermelha ¢ branca no peito — recebe diploma e canta a Marselhesa.” Allpio Freire canta outro caso, em que Nara Leio deu uma boa resposta a Hebe Camargo no ar — como em geral acontecia com seus convidados de es- querda ie meio artistico: “A Hiebe tenta encostar a Nara na parede, pergun~ tando: ‘Pois é, vocé foi a musa da Bossa Nova, depois da miisica de protesto, agora voce est na tropicilia..”, alguma coisa assim, tentando desconcertar a Nara, que responde: ‘Olha, o que me surpreende é que as pessoas que hoje defendem a Bossa Nova e a misica popular brasileira, em contraposicio & tropicdlia, sto exatamente aquelas que no momento em que surgiu a Bossa Nova e insurgiram contra ela.” E Nara diz a frase: ‘So pessoas que estio sem- pre dispostas a matar o velhinho que morreu na véspera.’ Estou citando de ‘meméria, pode haver alguma imprecisio na palavra, mas foi isso que aconte- eu.” Estava em movimento, também no terreno artfstico e cultural, a reagio que se efetivaria com a edigio do AL-S. ‘Depois do AI-5 — com a repressio crescente a qualquer oposicio & ditadura militar, o esgotamento do impulso politico que vinha de antes de 1964, 0 refluxo dos movimentos de massas, as derrotas sofridas pelas forgas transformadoras no ‘mundo todo, a censura aaustncia de canais parao debate ea divulgacio de qual- «quer proposta contestadora, com a adesio de alguns a grupos de esquerda armada 0 ripido desbaratamento desses grupos pela ditadura —, foram derrotados os projetos romanticos revoluciondrios, politicos ¢ estéticos, que tiveram uma sobrevida a0 longo da resistencia & ditadura nos anos 70, tema que seré retomado no capitulo final 46 BRASIL, ANOS 60 Para entender a agitacfo cultural e politica das classes médias nos anos 60, € preciso registrar ainda que cla estava intimamente igada liberalizacio nos cost mes, Sobre isso, afirmou 0 cineasta Cac4 Diegues, numa frase debochada: “a mulher ea revolucio, o Brasil ea dor-de-como, tudo era uma coisa s6”. Segundo cle, agora com vocabulério mais apropriado: Era como se no nos permitissemos separar as coisss.[..] Estivamos de tal ‘modo convencidos de que irfamos construir um mundo melhor que nem ali- ‘mentivamos dividas: no dia seguinte o mundo seria feliz e risonho gracas 05 nossos filmes, pecas etc. Entio, isso implicava uma responsabilidade tio grande que a vida privada deixava de exist. Aescrta privada ea vida pablica tinham se tornado um s6 universo, [..] © trabalho cotidiano ¢ até mesmo as, iiasj6.ado-nos pertenciam, e sim 3 comunidade que paticipava daquilo (in Moraes, 1991: p. 107). Dependendo da ética essa liberalizagio comportamental podia ser vista como falta de seriedade politica. E assim, por exermplo, que a esquerda € retratada no romance de Antonio Callado, de 1970, Bar Don Juan (1982) — de maneira bem diferente da idealizagio do intelectual engzjado que aparecera em Quanip (Callado, 1967). Numa das itimas entrevistas que concede antes de flecer, Calladodis- sesme sobre seus amigos de esquerda, do circulo que freqientava: “Esse pessoal erametido a Don Juan, queria comer todo mundo, aquelas coisas.” Ele entendia que “obrasileironio tem é paciéncia de organizagéo. Nao tinha nada organizado” nos grupos de combate & ditadura. Para ele, ‘pessoal do Bar Don Juan era muito mais parccido comigo [do que ode Quanip] ‘Todo mundo pensava muito em mulher, em namoro, em quem € que Vai co- ‘mer, quem nio vai comer. E, no meio dessa coisa toda, desafio, no €? Aseven- tuais prides que a gente sofia. Tudo isso era parte de uma vida interessante, 8 ‘o sujeito nfo chegasse & coisa de tortura. E, af, deixava de ser brincadcira ‘Abrindo parénteses, permito-me observar: quem se dedicar a recolher 0 anedotirio, a partir de fatos do cotidiano do periodo, terd em méos material para tum livro divertido. Eis um epis6dio que ilustra ao mesmo tempo a liberagio a7 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO nos costumes e 2 importincia cultural do marxismo no inicio dos anos 60. ‘Naquela época, constituiu-se no Rio de Janeiro um grupo de jovens intelec~ tuais para ler obras de Marx. (Em Sio Paulo, reunia-se um grupo bem mais sisudo ¢ conhecido para ler O capital.) Era um tempo em que o automével mais desejado era 0 Cadillac. O grupo carioca era famoso por ser freqiientado por algumas belas mulheres. Um dos seus integrantes costumava dizer: “Quem no tem Cadillac pega mulher com o Manifesto comunista.” A frase chegou 20 conhecimento do dramaturgo ¢ jornalista Nelson Rodrigues — célebre por seu talento e também por suas posigdes de direita—, que amencionou numa crénica, para ironizar os marxistas. Mais um outro epis6dio engragado, agora sobre o nacionalismo da direita truculenta em oposicio ao de esquerda: Denoy de Oliveira contou-me que, no inicio dos anos 70, quando tentava liberar um. filme seu junto 3 Censtiya Federal, ouviu de um censor, que berrava no recin- to, referindo-se a Como era gostoso 0 meu francés, de Nelson Pereira dos Santos: €.um filme que, porra, deixa a gente, brasileiro, numa posigio muito inferior. ‘Aparece aquele francés com um puta pauzio ¢ os indios brasileiros todos com uns pintinhos pequenininhos”. Fechando parénteses, 0 cotidiano da oposigio de classe média ao regime militar foi abordado, por exemplo, num artigo de Maria Hermfnia Tavares de ‘Almeida ¢ Luiz Weis, para a Histéria da vida privada no Brasil (1998). A expres siva liberacio das mulheres no periodo aparece também em livros como ara, de Judith Patarra (1992), e Mulheres que foram @ luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho (1998). De resto, a liberacio sexual, o desejo de renovagao, a fusio centre vida pablica e privada, a Ansia de viver o momento, a fruigéo da vida boémia, a aposta na aco em detrimento da teoria, os padres irregulares de trabalho e a relativa pobreza, tipicos da juventude de esquerda na época, sio caracteristicas que também remetem & tradicio roméntica — ver, por exern- plo, o que diz Jerrold Seigel a respeito do perfil dos bomios de Paris do sécu~ lo XIX (Seigel, 1992). ‘Maria Orlanda Pinassi levanta uma tese sugestiva em seu livro sobre a re- vista Niterdi — publicada em Paris, em 1836, sob responsabilidade de Gongalves cde Magalhies, Torres Homem e Araijo Porto alegre —, considerada pelos crf- ticos um dos marcos do infcio do romantismo no Brasil. Para ela, inspirada teo- 48 BRASIL, ANOS 60 ricamente em abordagens sobre o romantismo de autores marxistas, como Lowy ce especialmente Lukics: se a revista “langou mio das formas romanticas, 0 fez de maneiraa torné-las instrumentos de oposigio a uma realidade adversa a0 ca- pitalismo. Sem aesséncia anticapitalista, na verdade, da revista Niterindo ema- na uma visio de mundo propriamente romantica” (1998: p. 163-164). Noutras palavras, se 0 romantismo tem em sua esséncia estar na contramao da modernidade capitalista, a Niteri nao podia ser romantica, na medida em que a modernidade capitalista nio se constituira na sociedade brasileira da época, ati- fundiéria ¢ escravocrata, tampouco seus autores revelavam qualquer pendor anticapitalista — ao contrério, sugeriam “os beneficios da economia burguesa para o Brasil” e suas artes, condenavam a escravidio, faziam “a apologia da divi- slo do trabalho livre” e da racionalidade capitalist, para criticar os valores do passado colonial. Pode,se argumentar que a sociedade brasileira do século XIX cestava inserida em relacées internacionais, compondo uma totalidade mais abrangente, que jé era capitalista em sentido pleno; por isso era possivel desen- volver o romantismo artistico no Brasil, como de fato fizeram varios autores." Mas isso no esvazia totalmente o argumento de Pinassi, pois a realidade inter- na imediata com que os atistas rominticos defrontavam-se dificultava colocar- se na contramao de uma modernidade que nZo existia no plano nacional. Pode- se dizer sobre esse argumento, como o célebre adagio italiano: se non 2 vero, @ bene trovato. Seguindo nessa linha de raciocinio, também se pode propor algo que, se nfo é inteiramente verdadciro, talvez seja ao menos um bor achado. Se as ‘condigées materiais para o pleno desenvolvimento do romantismo — essen- cialmente a instauragio da racionalidade capitalista moderna — nio estavam postas na sociedade brasileira do século XIX, elas viriam a estabelecer-se 20 Tongo do século XX, por exemplo, dando base ao modernismo nas artes, que pode ser caracterizado ao mesmo tempo como romintico e modemno, passadista cefuturista. Assim, a afirmagio das tradigdes da nagio ¢ do povo brasileiro como base de sustentagio da modernidade fez-se presente nos mais diferentes mo- ‘vimentos estéticos a partir da Semana de Arte Moderna de 1922: Verde- amarelismo ¢ Escola da Anta (1926 ¢ 1929, que se aproximariam politicamen- te do integralismo de Plinio Salgado, constituinte de um romantismo moderno ” EM BUSCA DO POYO BRASILEIRO ‘que pode ser classificado como fascista), seus adversirios Pau-Brasil ¢ Antro~ pofagia (1926 ¢ 1928, liderados por Oswald de Andrade), passando pela in- corporacio do folclore proposta por Mario de Andrade ou por Villa-Lobos, nos anos 30 e 40 viria a critica da realidade brasileira, associada & celebracio do cardter nacional do homem simples do povo, por exemplo, na pintura de Portinari e nos romances regionalistas, até desaguar nos modernismos roman- ticos dos anos 60, Nesse sentido, o cineasta Carlos Diegues observa com pers~ picdcia, em entrevista a pesquisadora Zuleika Bueno: “a minha geragio foi a ‘iltima safra de uma série de redescobridores do Brasil. O Brasil comega ase conhecer[.-]sobretuo com o romantsao[.] aque desjo de uma iden- tidade. [!:} Minha geragio, do Cinema Novo, do tropicalismo [...] 6a siltima representacio désse esforco secular”, ae — desenvolvida 20 longo do séculoXX, com acres cente industralizacio e urbanizagio, avango do complexo industrial-financeiro, expansio das classes médias, avango do trabalho assalariado e da racionalidade capitalista também no campo etc. — viria a consolidar-se com o desenvol- vimentismo dos anos 50 ¢ especialmente apés 0 movimento de 1964, ‘mplementador da modersizago conservadora associada ao capital internacional, com pesados investimentos de um Estado autoritirio, sem contrapartida de direitos de cidadania aos trabalhadores. Em suma,a revolucéo burguesa no Brasil foi processual ce transada entre as classes dominantes, como se pode concluir de uma letura do ‘lissico de Florestan Fernandes sobre o tema (1976). Pode-se argument, talvez com razio, que arevolugio burguesa é permanente, destruindo ¢recriandoas forgas produtivas sem cessar, o que caracterizaria a modernidade capitalista. Mas a ques- to de Florestan era outra:localizar “o momento em que essa revolugio alcanga ‘um patamar hist6rico irreversivel, de plena maturidade e, a0 mesmo tempo, de consolidacio do poder burgués e da dominagao burguesa", que selecionou “a luta de classes ea repressio do proletariado” como seu eixo, levando-se em consideragio que “as tendéncias autocréticas ¢ reaciondrias da burguesia faziam parte de seu préprio estilo de atuacao histérica” (1976: p. 203,209 ¢ 213). O proceso da revo- ugio burguesa—na sua especificidade autoritériae dependente, numa sociedade coin desenvolvimento desigual e combinado, como a brasileira, em que o atraso € 50 BRASIL, ANOS 60 estruturalmente indissocivel do progres, 0 araic inseparivel do mademo* — se- ia coroado com o movimento de 1964. ‘Nos contextos s6cio-econémico-politicos brasileiros a partir dos anos 20 — notadamente na década de 1960, no olho do furacio do processo da revolu- fo burguesa—, colocar-se na contramio da modernidade, recuperando o pas- sado, dificilmente seria dissocidvel das utopias de construgio do futuro, que envolviam o horizonte do socialismo. Daf, dever-se relativizar anilises como a jf citada, de Rouanet, 20 apontar que o povo “dos anos 60 tinha muitas vezes ‘uma semelhanga inconfortavel com o Volk do romantismo alemio [...]: anagio como individualidade tinica, representada pelo povo, como singularidade irredutivel” (1988: p. D-3). Sucede que os nacionalismos das esquerdas brasi- leas fos anos 60 no tinham semelhanga propriamenteinconfrével com 0 r0- ‘mantisiig canservador alemiio do século passado, pois néo se tratava da mesma coisa, ahaa Boe rominticos e portanto semelhantes em alguns aspectos, basicamente o de cblocar-se na contramio do capitalismo, resgatando as idéias de ‘povo e nacio. Em outro contexto, a valorizacio do povo nao significava criar uto- pias anticaptalistas regressivas, mas progressistas;implicavao paradoxo de buscar no passado (as rafzes populares nacionais) as bases para construiro futuro de uma revolugio nacional modernizante que, no limite, poderia romper as fronteiras do capitalismo. Apercebendo-se disso, sabiamente de seu ponto de vista, as classes dominantes trataram de fazer sua contra-reolugdo preventiva em 1964, um movi- ‘mento que soube incorporar desfiguradamente as utopias libertadoras nacionais. “Antes de passar 4 abordagem dos movimentos politicos e culturais de esquet~ ‘da— objeto dos préximos capitulos —, cabe fazer algumas breves consideragbes sobre a insergio social da maioria dos anistas ¢ intelectuais engajados. "ea epeta,vargumentaco desenvolvida por Francisco de Olveiracm Een baka ra drip hati (1972), rato dualita que norteou as esquerdas brasileiras pelo menos aé 1964, Ness texto, de eaten pono diferente de Florestan Pemandes, Oliveira vu no poplin forma pola da revolugso hnpuser qo Bri De qualquer manera, o que rapora aqui €indicar wm proceso marcane, especial act do final dos anos 30 aos 60, period em que floresceram romantismos revolucionios. A arica 3 Mrs dacs nfo dena de ser tamtbérn, em parte, ma autocrtica: Oliveira vinculara-se ao projeto [Jecnvolvimentist de Celso Furtado no anos €0 Por exemplo —num artigo avalando apolitica econdri- deg yonerno Castelo Branco para primeiro nmero da Revista Ciao Brasla—, Oliveira denun- cane tom tipcado nacionaismo erceiro-mandisa da poe, “caster avenareio e antnacional des~ Sevtino de Governo®, conclamando para combaté-lo “todas as forgas interessadas no desenvolvimento ‘SScsaonno da Nacio™ (1965: p. 128). Parece que Olivera ainda compartihava da interpretagéo de Furtado ‘epoca sabre aestaguago da economia braileira sob a ditadra (Oliveira, 1965, ¢ Furtado, 196). 51 EM BUSCA DO POVO BRASILEIRO. Artistas: a emergéncia de novas classes médias ‘A trajet6ria dos artistas ¢intelectuais de esquerda — que se fizeram presentes de forma marcante na cena politica brasileira entre os anos 60 ¢ 0s 80, quer por suas ‘obras, quer por suas declaragées 3 imprensa, ou pela participacio em campanhas Politicas — ¢ paradigmitica daquilo que Francisco de Oliveira chamou de super= representagio das classes médias na politica brasileira contemporanea, diretamente proporcional 3s dificuldades de representagio das outras classes (1987: p. 100-104). ‘S6 que, ao invés do “cruzamento de super-representagio e de impoténcia de re- Presentacio” implicar uma “dessolidarizacio das classes médias em relagio a0 ‘operariado e aos outros segmentos da ampla classe trabalhadora”, como sugere Oliveirs (1987: p, 104), pelo contrétio, determinados artistas intelectuais de classe ‘média solidatizam-se com aquelas classes (ou com o que imaginam ser os interes- ses populares) €} mesmo que involuntériae indiretamente, aparecem como seus Porta-vozes ou substitutos, na medida em que clas nio se fazer representar social ¢politicamente. Qual a razio de, nos anos de ditadura —e mesmo ap6s a democratizagio da sociedade brasileira, ainda que em menor medida —, ter sido tio requisitada a opinigo politica de artistas, como Chico Buarque e Caetano Veloso? Por que de- claragoes ¢ atitudes desses e de outros criadores tém tanta ressondncia politica,

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