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O FEDERALISMO NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORANEO RAUL MACHADO HORTA SUMARIO: 1. Avaliagao do federalismo. 2. Federalismo, concepgdo pluralistica e concepgao juridica. 3. Federalismo incompleto. 4. Federalismo simétrico e assimétrico, 5. Federalismo e repartigdo de competéncias. 6. Federalismo e cooperacdo. 7. Federalismo, Direito Internacional e Direito Comunitdrio. 8. Dimensées inovadoras do federalismo. 1. O ingresso do federalismo no dominio material da Constituigdo escrita data de fins do século XVIII. Na sua origem, que se localiza na Constituigdo norte-americana de 1787, a forma federal nao recebeu designagao nominal. A identificagaio entre o nome e a categoria politica fez-se no curso do funciona- mento das instituigdes e na interpretagéo que recebeu na doutrina e na juris- prudéncia, quando a forma federal adquiriu autonomia conceitual e tipoldgica. As manifestacGes pretéritas, que retratam o federalismo na versao helé- nica da Amphyctionia e da Confederagao Suissa dos séculos XV e XVI, per- duram como referéncia histérica de antecedentes embriondrios da forma fede- ral. Tomando como marco inicial a Constituigéo norte-americana dos fins do século XVIII, justifica-se, neste inicio do século XXI, o balango do federalis- mo, para projeta-lo no Direito Constitucional Contemporaneo, de modo a fixar aevolucdo que se operou na organizacao e no funcionamento da forma federal. O federalismo norte-americano e o federalismo alemao da Lei Fundamen- tal de Bonn de 1949 sao modelos representativos da evolugao percorrida pelo federalismo nos dois séculos de sua existéncia constitucional. O modelo nor- te-americano concebeu a organizag¢ao constitucional do Governo Central e dos Governos Estaduais. Estabeleceu 0 convivio entre ambos, através da atribuigao 223 dos poderes enumerados e dos poderes reservados. Invertendo a descrigao esquematica de Tocqueville’, segundo a qual o Governo dos Estados € 0 direito comum e 0 Governo Federal é a excecao, a evolugdo ulterior do federalismo dilatou os poderes centrais, com apoio na clausula da supremacia, enunciada no artigo VI da Constituigao, e na criagao jurisprudencial dos poderes impli- citos?. No modelo norte-americano, o federalismo vinvulou-se ao Governo presidencial. O modelo do federalismo alemao da Lei Fundamental de 1949, que langa rafzes na Constituig&éo de Weimar de 1919, renovou os fundamentos do federalismo, afastando-se do modelo norte-americano. Concebeu nova re- partig¢aéo de competéncias, que ultrapassou a repartigdo dual norte-americana, introduzindo no mecanismo federal a reparti¢ao mista da legislago concorren- te, ampliando a atividade legislativa dos Estados membros. Os Estados da Federagao participam nas relagdes com a Uniao Européia, quando uma questéo envolver a legislagao de competéncia dos Linder, mediante transferéncia de atribuigdes da Republica Federal aos Linder. No federalismo alemao, o gover- no federal associou-se ao parlamentarismo. Insere-se o federalismo alemao no movimento de abandono do modelo norte-americano, que Alfred Stepan? apon- tou nas democracias federativas contemporaneas. A solugao federal tornou-se alternativa com que contam os Estados de dimensGes continentais, os Estados de composigao plurinacional, os Estados de pluralidade lingiiistica e as grandes concentragdes populacionais, para equa- cionarem 0 exercicio do poder politico nos respectivos territérios. O federalis- mo contem a formula que assegura a coexisténcia da unidade na diversidade. Como tema introdutério de nossa exposigao, cabe apurar o alcance do federalismo, expresséo de adogio generalizada, que reclama a identificagao prévia de seu contetido e de sua extensdo. 2. O federalismo nao se limita ao Estado e ingressa em outros dominios da vida social: as associagées, os partidos politicos, os sindicatos, os grupos sociais. Retomando orientagao de classicos da Doutrina do Estado, — Le Fur e Jellinek — Juan Ferrando Badia* entende que o federalismo é fendmeno exterior a relag4o juridica, um princfpio geral de organizagao, que nao se limita a instituigao politica estatal. Georges Burdeau, que analisou, em profundidade, o Estado e as instituigdes politicas, no seu “Traité de Science Politique”®, inicia o estudo dedicado ao federalismo com a afirmagio de que a idéia federal supera o quadro do Direito Constitucional. O federalismo envolve a compreensao da autoridade como associagao de grupos, e toda vez que um processo de decisao envolver negociagaéo com os grupos abrangidos pela decisdo surgiré o federa- lismo. Outra dominante do federalismo é a relac&o entre a idéia federal e a 224 liberdade. Essa vinculagao entre federalismo e liberdade inspirou a caracteri- zagio de J. J. Chevalier®do federalismo como doutrina de protesto, nas formas do protesto contra o regime do Estado, protesto contra a dimensao do Estado, protesto contra a centralizacao do Estado. O principio federativo fundamenta a organizacao do Estado, da Sociedade e das Comunidades, na triplice mani- festacao do federalismo estatal, do federalismo social e do federalismo supra- nacional. O federalismo estatal é criacgio da Constituigio, cabendo ao docu- mento constitucional regular a organizagao politica do Estado e estabelecer a distribuigio das competéncias entre os componentes da Federagao. O federa- lismo supranacional provem do Tratado entre Estados soberanos, reunidos no pacto formador da Comunidade. O federalismo social é 0 dos grupos € das associagdes com vida propria e independente da organizagao do Estado. Eo federalismo na sociedade. 3. A pluralidade das formas federais autoriza conceber nesse conjunto diversificado 0 federalismo incompleto. A idéia de federalismo incompleto pressupde a existéncia de sua forma antagénica, o federalismo completo. A insuficiéncia de pressuposto deste ultimo, pela perda de sua integridade con- ceitual, gera o aparecimento do federalismo incompleto. Na estrutura do tipo federal, configurada em regra de organizagfo ou de funcionamento, a insufi- ciéncia do federalismo inacabado, que nao se completou, advird da auséncia de uma ou de mais de uma regra definidora do federalismo completo. Essa auséncia dar4 nascimento ao federalismo incompleto, que adquire autonomia tipolégica, a partir de sua comparagio com modelo representativo do federa- lismo completo. A negag&o da autonomia constitucional do Estado Federado em razio da preferéncia pelo procedimento da introdugao direta na Constitui- cao Federal da organizagao dos poderes estaduais; a consagracao da interven- ¢do federal como instrumento de uso permanente da Unido no Estado-membro; o Poder Legislativo federal sem a Camara dos Estados, o Senado ou Conselho Federal; os conflitos entre a Unido e os Estados sem a designagio do orgio jurisdicional federal, para resolvé-los; a atribui¢gao das competéncias legislati- vas limitada aos poderes da Unido. Sao praticas e regras dessa natureza que prefiguram o federalismo incompleto, pela auséncia nele da regra definidora do federalismo completo. Em fase da auséncia de regras definidoras, em maior ou menor volume, 0 federalismo incompleto aproxima-se do tipo que Wheare’ qualificou de “ qua- se federal” ou “semifederal”. Ingressam nessa categoria os ordenamentos federais que nao atendem integralmente ao principio federal ou os que desvir- tuam os fundamentos federais no funcionamento das instituigdes, dando pri- mazia 4 Constituigao nominal e semantica. O federalismo incompleto podera decorrer de fatores determinantes ou causas, que agrupamos nas seguintes modalidades: a) auséncia de requisito definidor do federalismo; b) deformagaio do princfpio federal, fundado no comportamento andmalo, discrepante de regra constitucional; c) redugao do modelo federal as formas “semifederais” e “quase-federais” . A concepgio do federalismo incompleto, nao obstante a permanéncia da terminologia federal na sua identificagio, poder aplicar-se aos casos de forma pré-federais ou de formas intermedidrias, localizadas na estrutura do Estado Unitario descentralizado, concretizadas nas formas do Estado Autonémico e do Estado Regional, em concepgées adotadas no constitucionalismo espanhol e italiano. Neste ingresso nas formas intermediarias, verifica-se a conexdo entre essas formas e a descentralizagao, justificando 0 emprego da terminologia, elaborada na doutrina federal, para associar 0 Estado Regional e o Estado Autonémico ao federalismo incompleto. O Estado regional e 0 Estado autonédmico, que nasceram no Estado des- centralizado, podem ser encarados como forma estatal nova, conferindo per- manéncia ao Estado regional e ao Estado autonémico, como formas definitivas, ou podem ser caracterizados como formas intermediarias de ente estatal, situa- do entre o Estado unitario e o Estado Federal. Focalizado na categoria inter- mediaria do ente estatal, o Estado regional e o Estado autondémico incluem-se no dominio do federalismo incompleto. Dispondo de atividade legislativa, politica e administrativa, faltam a essas formas intermedidrias, pelo menos, os requisitos da autonomia constitucional e da autonomia judicidria, que impedem 0 acesso do Estado regional ao grupo de Estados integrantes da categoria mais geral do federalismo completo. Reside na autonomia normativa das Regides e das Comunidades Autoné- micas, que se concretiza na elaboragdo do Estatuto e na atividade legislativa propria, o elemento de maior aproximagao entre essas entidades territoriais do Estado Unitario e o Estado-membro do Estado Federal. Outro trago de aproxi- magao € o da técnica da repartigao de competéncias, que alcangou apreciavel desenvolvimento na Constituigéo da Espanha de 1978. Todavia, ha profundo distanciamento entre as Regides, as Comunidades Autondmicas e 0 Estado- membro do Estado Federal nas regras da Constituigao italiana de 1947 e da Constitui¢ao Espanhola de 1978, as quais, entre outras disposigdes, impdem a tramitacdo do Estatuto no érgao legislativo central do Estado, para receber a lei estatal de aprovagao, na Italia. Consagram a Constitui¢ao italiana e a Cons- tituigao espanhola a sangao e a promulgagao do Estatuto pelo Rei, a figura do Comissario do Governo Central na Regio e nas Comunidades Autondmicas, a dissolugio do Conselho Regional por Decreto do Presidente da Reptiblica, 0 226 visto do Comissario na lei aprovada pelo Conselho Regional. O distanciamento entre Regides, Comunidades Autondmicas e Estado-membro do Estado Federal ganha profundidade pela auséncia nos entes territoriais do Estado unitario da autonomia constitucional, que confere poder de auto-organizagio, e da auto- nomia judicidria, pela inexisténcia do Poder Judicidrio regional ou autondmico. A auséncia de duas caracteristicas fundamentais do Estado-membro assinalam 0 distanciamento entre o Estado-membro do Estado Federal e as Regides e as Comunidades Autonémicas do Estado regional italiano e do Estado autondmico da Espanha. Sob o Angulo da insuficiéncia, resultante da comparagao, 0 Estado regional integra-se no modelo do federalismo incompleto. 4, A idéia de federalismo incompleto, pressupondo a inexisténcia parcial de regra ou de caracteristica constitucional do Estado Federal, como foi ela adotada no direito positivo ou na formulagao doutrinéria, demonstra que o federalismo nao corresponde a modelo Unico, a modalidade exclusiva. Nos ordenamentos positivos ha modalidades diversas de federalismo. Joao Manga- beira® retratou a realidade plural do federalismo, quando objetando aos que s6 concebiam o federalismo no figurino norte-americano, assinalou que “... a Constituigio norte-americana nao é 0 metro de irfdio conservado em Paris, como padrao da décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre. A federagaio é uma forma de Estado; um sistema de composi¢ao de forcas, interesses e objetivos, varidvel no tempo e no espago, e inerente € peculiar a cada povo”. O professor Pinto Ferreira’, fixando as tendéncias varidveis do federalis- mo na profunda e atualizada andlise que dispensou ao tema, distingue trés modalidades federais, a do federalismo classico ou de equilfbrio, a do federa- lismo neo-classico, que € o novo federalismo, e a do federalismo racionalizado ou hegeménico, concebido na Constituigao alema de 1919. O pluralismo das formas federais explica a existéncia das concepgoes organizatérias do Estado que aglutinamos nas modalidades do federalismo simétrico e do federalismo assimétrico, como manifestagdes da diversidade federal, agrupando, de um lado, ordenamentos federais homogéneos e, de outro, ordenamentos federais heterogéneos, por nao exibirem as caracteristicas que integram os ordenamentos homogéneos. O federalismo simétrico pressupée a existéncia de caracteristicas domi- nantes, que servem para diferi-lo do federalismo assimétrico, de certo modo infenso, este tltimo, a uma sistematizagao rigorosa. Se utilizarmos a caracte- rizagao légico-formal de Kelsen, para demonstragéo de nosso raciocinio, 0 federalismo simétrico corresponderd a uma estrutura normativa, distribuida em planos distintos, que identificam a concepgao federal e assinalam sua autono- 227 mia no conjunto das formas politicas. Projetada na concepgao de Kelsen'®, a simetria federal, dentro de tipologia constante, envolve a existéncia do orde- namento juridico central, sede das normas centrais do Estado Federal e de ordenamentos juridicos parciais, respons4veis, respectivamente, pelas normas federais da Unido e as locais dos Estados-membros, organizados e comandados pela Constituigao Federal na fungio de Constituigao total, fonte da repartigao de competéncias, que alimenta o funcionamento do ordenamento central e dos ordenamentos parciais. O esquema normativo assim descrito é constante e regular, compondo a estrutura normativa do federalismo simétrico. A reprodu- ¢ao posterior desse esquema normativo-ordenamento juridico central, ordena- mentos juridicos parciais, Constituigao Federal — na Constitui¢ao jurfdico-po- sitiva conduz ao modelo de federalismo simétrico, partindo da representagio tedrica e formal. A visao dos ordenamentos reais, como eles existem, concretamente, nas formas histéricas de Estado Federal, modeladas pela respectiva Constituigao Federal, permite identificar as caracteristicas do federalismo simétrico, dentro de modelo constante. Essas peculiaridades, extraidas da construgo constitu- cional, em processo cumulativo de experiéncias sucessivas, ao longo da exis- téncia da forma federal, autorizam conceber como tipo concreto de federalismo simétrico aquele que incluir na respectiva Constituigao Federal os seguintes instrumentos, Orgaos e técnicas: a composigao plural do Estado; a repartigao de competéncias entre o Governo Central e os Governos Locais, abrangendo poderes enumerados, poderes reservados e poderes mistos; a intervengio fede- ral nos Estados-membros, para preservar a integridade territorial, a ordem publica e os principios constitucionais da Federacao; 0 Poder Jurfdico dual, repartido entre a Unifio e os Estados, distribufdos entre Tribunais e Juizes, assegurada a existéncia de um Supremo Tribunal, para exercer a funcdo de guarda da Constituigao, aplacar dissidios de competéncias e oferecer a inter- pretagao conclusiva da Constitui¢&o Federal; 0 poder constituinte origindrio, com sede na Uniao; 0 poder constituinte derivado nos Estados-membros, fonte da auto-organizagao e da autonomia dos ordenamentos parciais; a organizagaio bicameral do Poder Legislativo Federal, obediente ao principio da repre- sentagao do povo na Camara dos Deputados e a da representagao dos Estados no Senado federal ou érgaio equivalente. A reuniao desses elementos indivi- dualiza o federalismo simétrico, dotado de homogeneidade e de permanéncia, nos quadros do constitucionalismo contemporaneo. Esses elementos, que ser- vem para configurar o federalismo simétrico, como tipo representativo de organizacao federal, nao operam a reducio do federalismo a um tipo exclusivo, a um modelo constitucional unitério. A norma organizatéria nao escapa aos 228 efeitos das mudangas e das transformagGes que decorrem do funcionamento real das instituigdes federais. As regras juridicas evoluem com a interpretagao que recebem nos 6rgios judicidrios e na doutrina e, também, pela influéncia da atividade politica dos 6rgaos legislativos e os grupos sociais. O federalismo simétrico nao é solucao totalitaria do federalismo tinico. Do federalismo de uma sé dimensio. A simetria federal é formada pela reuniao das caracteristicas dominantes do modelo. A disposig&o dessas caracteristicas na Constituigao é varidvel no tempo e no espago. Essa variedade é inerente & plastica do federalismo. A natureza hibrida e mista do federalismo ficou acen- tuada no Comentario classico 4 Constituigéo norte-americana, formulado por Hamilton, Jay e Madison, no perfodo da ratificagao do texto de 1787, na origem da forma federal de Estado. O aspecto compésito do Estado Federal foi enca- rado por Madison", no Comentario XXXIX do “Federalista” , quando esclare- ceu que a Constituigao proposta em 1787 nao é, estritamente, nem uma Cons- tituicao Nacional, isto é, unitéria, nem uma Constituigado Federal. E uma com- binacao dessas Constituigdes. Nas suas bases, aduzia Madison, a Constituigao € federal e nao nacional ou unitdria; nas fontes dos poderes ordindrios do governo, a Constituigéo é parcialmente federal e parcialmente unitéria ou nacional. No exercicio e na extensdo de seus poderes, a Constituigao € nacional ou unitdria e nao federal. Dentre os publicistas modernos, Carré de Malberg'* prestigia, com sua autoridade, a concepgao da natureza dual do federalismo, observando que na Constituigéo Federal convivem o principio unitario e o principio federal. O Estado Federal é, simultaneamente, um Estado e uma Federagiio de Estados. A sobrevivéncia unitéria é que explica, consoante Carré de Malberg, a tendéncia dos Estados Federais no rumo da centralizagao e do “estatismo”, lembrando o Professor da Universidade de Strasbourg que esta Ultima expressio — “estatismo” — é a do agrado dos publicistas suigos. O particularismo que reside na natureza mista do ordenamento juridico federal projetou-se na pluralidade e na diversidade das formas federais de Estado. A pluralidade vincula-se variedade dos sistemas federais e a diversi- dade identifica solugdes federais especificas, localizadas nos ordenamentos constitucionais do federalismo contemporaneo, que se propagaram pela Amé- rica, a Europa, a Asia, a Africa e a Oceania. Em todas essas reas continentais, com maior ou menor intensidade, atuam tendéncias que distinguem a estrutura federal: a tendéncia a unidade e a tendéncia 4 diversidade, que o Professor Garcia Pelayo’ qualificou de “unidade dialética de duas tendéncias contradi- torias”. A riqueza de suas formas, a pluralidade das solugées oferecidas nos textos constitucionais e o dinamismo de seu funcionamento concreto, conver- 229 gem para o dominio das “miltiplas visdes do federalismo”, analisadas por Georges Burdeau'*, em seu monumental “Traité de Science Politique” . A pluralidade das solugGes federais pode ser exemplificada no tratamento que a intervengao federal recebeu em modelos do federalismo contemporaneo, como os Estados Unidos, a Argentina, o México e o Brasil. As Constituigdes dos Estados Unidos de 1787, da Argentina de 1853 e suas reformas e a do México de 1917 cuidaram de prever a intervengao federal em regras restritas e sdbrias, traduzindo o respeito a autonomia do Estado-membro, principio fundamental da organizagao federal. No Brasil, a sobriedade normativa da Constituigao de 1891, excepcionando a intervengao para casos limites, no artigo 6° do texto origindrio, ampliou-se nas dimensées alargadas da interven- ¢4o, a partir da reforma constitucional de 1926. Os quatro casos do texto origindrio de 1891, contemplando excegdes a regra da nao intervenc¢do nos Estados, receberam a dilatagdo dos dezesseis casos, introduzidos pela reforma de 1926. A amplitude da intervengao federal tornou-se generalizada nas Cons- tituigdes Federais do Brasil de 1934, 1946, 1967 e 1988. Por outro lado, a sobriedade do instituto, tal como adotado na Constituigado de 1891, na linha da Constituigdo dos Estados Unidos (art. IV, Secdo IV), da Argentina (art.6) e do México (art. 122), nao impediu a transposigao das limitagdes constitucionais dos casos excepcionais, para oferecer 0 contraste entre o minimo da intervengao normativa na Constituigdéo e o maximo da intervengao real no funcionamento do sistema federal. O presidencialismo uni-pessoal da primeira Reptblica, favorecido pelo sistema do Partido dominante no Congresso, em verso prati- camente monopartidaria, subverteu os fundamentos federais da intervencaio federal, para converté-la em poderoso instrumento de dominagio politica. A diversidade na organizagao constitucional do federalismo pode ser ampliada as outras regras que comp6em a estrutura normativa do federalismo simétrico. E 0 que se pode evidenciar, por exemplo, no dominio da reparti¢’o de competéncias. O modelo classico dos poderes enumerados da Uniao e dos poderes reservados aos Estados, que se fixou, originalmente, na Constituicaio dos Estados Unidos (art. 1, Secfo VIII), para os poderes enumerados da Unido e na Emenda 10, de 1791, para os poderes reservados aos Estados, posterior- mente incorporados, por recepgao, as Constituigdes Federais da Argentina (1853), do Brasil (1891) e do México (1917), recebeu substancial inovagao na Constituigdo Federal da Austria de 1920 e na Lei Fundamental da Alemanha de 1949. O modelo classico da repartigaéo de compet€ncias, ainda preservado na Constituig¢éo Federal Brasileira de 1988 (arts. 21, 22, 25, 1°), convive com o modelo contemporaneo da reparti¢io de competéncias, origindrio do federa- lismo alem&o, que se projetou na vigente Constituigdo Federal, responsdvel 230 pela convivéncia dos poderes enumerados, dos poderes reservados e dos pode- res mistos, incorporados, estes tiltimos, ao campo da legislag&o concorrente da Uniao, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, I até XVI). Rupturas nas linhas definidoras do federalismo simétrico geram formas irregulares de federalismo, ingressando na figura do federalismo assimétrico. Essas rupturas tanto podem consistir em deformagées no estilo e nas regras federais, em razio do funcionamento do sistema federal, como em criagdes novas, estranhas ao conjunto identificador do federalismo simétrico. O federa- lismo assimétrico podera localizar-se no fendmeno fatico, por deformagao de institutos federais, como no ato normativo, mediante a criagéo de solugdes autOnomas, oferecidas pela norma jurfdica. No primeiro caso, a deformagao fatica do federalismo poderé advir da utilizagio permanente de técnica prevista para casos excepcionais. Foi o que se deu no federalismo brasileiro de 1891, quando a intervengdo federal, regra do sistema, para uso excepcional, conver- teu-se em instrumento de uso frequente, comprometendo a autonomia do Es- tado-membro, violada nas interveng6es politicas do presidencialismo monar- quico. O federalismo anémalo adviré sempre de deformag6es e de abusos no funcionamento das instituigdes, operando mutagGes na concep¢ao constitucio- nal. O federalismo assimétrico nado deixa de ser forma anémala, se confron- tado com o federalismo simétrico. A anomalia do federalismo assimétrico, para a concepgao que estamos desenvolvendo, nao se limita a manifestagao do fendmeno fatico. Pressupde a criagéo normativa, a existéncia de regra no ordenamento juridico federal, em contraste com os fundamentos normativos do federalismo simétrico. As normas assimétricas, embora de incidéncia parcial, podem alterar profundamente a estrutura do federalismo simétrico. Nao conhe- cendo Constituigao Federal totalmente assimétrica, é possivel, entretanto, lo- calizar regras assimétricas no corpo de Constituigao Federal. Em referéncia indicativa e nao exaustiva, identificamos formas e regras do federalismo assimétrico nas Constituigées Federais da Austria de 1920, restabelecida em 1945, da India de 1950, do Canada (The British North Ame- rica Act de 1867 — The Constitution Act de 1981), da Bélgica, na redagéo do texto reformado de 1993, da Sufca, de 1874, México de 1917, da Alemanha de 1949, da Argentina de 1853 e do Brasil de 1988. Regra fundamental do Estado Federal consiste na atribui¢’o aos Estados- membros do poder de auto-organizagao, para exercer, nesta atividade organi- zat6ria, a autonomia constitucional, da qual se irradiam a autonomia politica, a autonomia administrativa, a autonomia judicidria, a autonomia legislativa e a autonomia financeira. As Constituigées da Austria de 1920, da India de 1950 231 e do Canada de 1867 e 1981 alteraram os fundamentos da regra da autonomia constitucional, para introduzir a Constituigao Federal na tarefa de organizagio do Estado-membro, mediante a pré-ordenagdo no seu texto de érgdos e com- peténcias do Estado-membro. Na Constituigao da Austria, 0 Poder Legislativo e 0 Poder Executivo dos Estados so amplamente regulados nos artigos 95/107, abrangendo organizagao e competéncia dos referidos poderes. Ultrapassando os objetivos da pré-ordenagio, que é a de revelar, antecipadamente, na Cons- tituigdo Federal, a organizago de drgios estaduais, a Constituigdo, em regra de contetido unitario, autoriza 0 Governo Federal opor-se as decisées legisla- tivas da Assembléia Estadual (art. 98-2) e autoriza o Presidente da Reptiblica, por iniciativa do Governo Federal, dissolver a Assembléia Legislativa. (art. 100) A unificagao da Justiga na Federagao, com a supressao do Poder Judiciario Estadual, é outra manifestagdo que fere a autonomia (art. 82-1), em Constitui- ¢a0 que se tornou matriz do federalismo contemporaneo pela renovagao ado- tada na repartigao de competéncias e na implantagao da jurisdigao do Tribunal Constitucional. A Constituigao da India de 1950, que se expandiu nos trezentos € noventa e trés artigos de seu texto, contem federalismo original, que recebeu de Friedrich'* a qualificagio de “federalismo asidtico”, para distingui-lo de qualquer outra modalidade e fixar nessa designagdo a complexidade politica, étnica, religiosa, cultural, territorial e geogrdfica do federalismo indiano. A prévia organizagao dos Estados na Constituig&o Federal, procedimento que estamos designando de pré-ordenagio constitucional, € completa e absorvente, desdobrando-se nas regras minuciosas de organizagio e funcionamento do Poder Executivo (arts. 153-167), do Legislativo dos Estados (arts. 168-212) e do Judicidrio dos Estados (arts. 214-237). Na Constituig&éo do Canada de 1867 — “The British North America Act”, que instituiu a Unido Federal, a pré-ordenagio das Provincias esta concentrada no titulo denominado de “Provincial Constitutions”, que encerra as regras de organizagao, competéncia e funcionamento do Poder Executivo (arts. 58-68) e do Poder Legislativo das Provincias (arts. 69-90), em outra lesiio ao principio da autonomia constitucional. A técnica de prévio enquadramento de 6rgaos e poderes estaduais foi igualmente consagrada no singular “federalismo soviéti- co” das Constituigdes de 1936 e 1977. Esse tipo de federalismo, que se con- trapunha ao federalismo ocidental, foi a solugao encontrada para unificar Es- tado multinacional, qualificado pela Constituig&éo da URSS de 1977 de “Estado plurinacional federal unitario”. (art. 70) A Constituigo Federal da Russia de 1993,, aprovada pelo referendum de 12 de dezembro do mesmo ano, reduziu as normas de enquadramento prévio das Reptiblicas Federadas, mantendo, entretanto, a concep¢ao centralizada dos poderes federais, tendéncia atenuada 232 pela previséo da competéncia conjunta da Federagio e dos entes da Federagio, identificados pelas vinte Reptblicas, cinco Territérios, quarenta e nove Re- gides, uma Regiao aut6noma e dez Distritos aut6énomos.!° A Constituigaéo do Reino da Bélgica de 1831 recebeu, em 1993, profunda modificagao decorrente de Emenda, que transformou a Monarquia unitaria em Monarquia federal, assinalando o ingresso da Bélgica no conjunto contempo- raneo dos Estados Federais. O federalismo belga perfilhou exigéncias de nagao culturalmente complexa, na qual convivem comunidades etnicamente distintas, preservando suas linguas e suas tradigdes: as Comunidades Francesa, Flamenga e Germanica, as Regides Valona e Flamenga. As peculiaridades histéricas e lingiiisticas foram integradas no Estado Federal, realizando finalidade que torna essa forma de Estado a solugao adequada ao pluralismo cultural a as diversi- dades das nagées complexas. A adogao do Estado Federal na Bélgica é acon- tecimento de extraordindria relevancia no quadro universal do federalismo contemporaneo e serve para contraditar as vozes pessimistas de pregoeiros, aqui e ali, do declinio do federalismo como forma de organizacAo territorial, politica e constitucional do Estado moderno. Feita esta ressalva, para assinalar aimportancia do federalismo belga, que consagrou modalidade do federalismo assimétrico, quando introduziu a Comunidade e as Regides na configuragao do Estado Federal, como se 1é no atual artigo 1° da Constituigéo reformada. O Estado Federal, para reproduzir a ligao irretocavel de Carré de Malberg'’, nao éuma federagao de quaisquer coletividades. Ele € uma Federagao de Estados. Comunidades e Regides na composigao de Estado sugerem sobrevivéncia do regionalismo e a presenga de estrutura identificadora do Estado Regional. O artigo 1° da Constituigao da Bélgica contempla forma do federalismo assimé- trico na federagio de Comunidades e de Regides. Nas ConstituigGes da Suiga de 1874 e do México de 1917 a atribuigao de soberania aos Cantdes (art. 1°) e aos Estados (art. 40) introduz assimetria nos respectivos sistemas federais. Soberana, como se sabe, é a Unido. Os Estados e os Cantdes séo auténomos. A soberania recorda a experiéncia pretérita na fase confederativa, como ocorreu na Sufca. No caso da Suiga, Jean Francois Aubert'® no seu “Traité de Droit Constitutionnel Suisse”, esclareceu que a soberania mencionada nos artigos 1°, 3° e 5° da Constituigdo é uma concessao verbal feita 4 suscetibilidade dos Cantées. No tocante ao México, Ignacio Burgoa" identificou na soberania dos Estados uma “ficcao juridico-politica” e uma inexatidaio manifesta do texto constitucional de 1917. 5. A reparti¢éo de competéncias, que representa o centro de gravidade do poder federal, no federalismo contemporaneo adotou técnica que assinala a separa¢ao entre a reparti¢ao classica, consagrada, inicialmente, na Constituigao 233 norte-americana de 1787, e a reparticao de competéncias, introduzida nas Constituigdes de Weimar de 1919 e da Austria de 1920, para atingir sua forma mais evolujda na Lei Fundamental de Bonn de 1949, a sede da repartigao de competéncias do federalismo contemporaneo. A repartig¢ao classica de compe- téncias, como ficou concebida no texto norte-americano de 1787, compreendia a dual distribuigao dos poderes enumerados a Unido e dos poderes reservados aos Estados. Do federalismo norte-americano, a repartigao de competéncias projetou-se no federalismoargentino, no federalismo brasileiro, no federalismo mexicano e no federalismo venezuelano. Atravessou o século XIX e s6 veioa conhecer contraste de formulagées inovadoras no federalismo do primeiro e do segundo apés-guerra, em demarcagao que serve para abrigar a tendéncia con- temporanea da repartigao de competéncias. As Constituigdes da Austria de 1920, da Alemanha de 1949 e da india de 1950 sao as portadoras da nova concepgao, em matéria da reparti¢io de competéncias do Estado Federal, com o destaque da Lei da Alemanha de 1949, em razio do rigoroso fundamento federal da repartigao, que contemplou os Estados-membros — os Linder — com substancial matéria legislativa. Ha solugdes intermedidrias, como a da Constituig&éo do Canada de 1867 — “The British North America Act” —, que concebeu a repartigao integral das compe- téncias da Unido e da Provincia, com os respectivos poderes enunciados nos vinte e nove casos da competéncia federal e nos dezesseis casos da competéncia estadual ou provincial. Outro caso de solugao intermedidria, em menor dimen- sao, € o da Constituigao Federal do Brasil de 1934, reiterada na Constituigéo de 1946, quando se deferiu aos Estados a legislagao estadual supletiva ou complementar, enumerada no texto. (Constituigao Federal de 1934, art. 5°, $3° — Constituigdo Federal de 1946, art. 6°). A Constituigao Federal de 1988, inspirando-se na técnica da Lei Fundamental de Bonn, incorporou ao seu texto a repartigao contemporanea de competéncias, com aprecidvel desenvolvimento da legislagao concorrente, que permite aos Estados 0 exercicio de legislagéo ampla, observadas as regras da legislagéo de normas gerais (Constituigao, art. 24, XVI, §§ 1°, 2°, 3° e 4°) e a eventual participagao na legislacao privativa da Unido (Constituigao art. 22, paragrafo tnico). A Constituigao da Austria, de 1° de outubro de 1920, revigorada em 1945, distribuiu e enumerou as matérias da competéncia da Unido e dos Estados em trés niveis distintos: A — Legislacio e execugao da Federagao (art. 10-1 até 17) B — Legislagdo da Federagao e execugio dos Estados (art. 11, 1 até 5) C — Legislagao de principios (Grundsatze) da Federagao e legislagao de aplicacao e de execugio dos Estados (arts. 12-1 até 8). 234 Na Constituigio da Austria, duas regras adicionais completam a reparti- ¢ao de competéncias. Uma, dispondo que a matéria nao deferida pela Consti- tuic¢do Federal a legislag&o ou a execucao federal remanescera no dominio da ago auténoma dos Estados (art. 15). A outra regra esclarece que sendo reser- vada 4 Federacao apenas a legislagao de principio, a regulamentacéo comple- mentar, dentro do quadro fixado pela lei federal, caber4 4 legislacio do Esta- do-membro. (art. 15-6). A lei federal pode fixar prazo nao inferior a seis meses nem superior a um ano, para que o Estado elabore a lei de aplicagao. Se nao observar esses prazos, a competéncia para elaborar a lei de aplicagao é devol- vida 4 Federagio. A Lei Fundamental da Reptiblica Federal da Alemanha (Grundgesetz fur die Bundesrepublik Deustschland), de 23 de maio de 1949, desenvolveu a repartig¢iio de competéncias, originalmente sistematizada pela Constituigao Fe- deral da Austria. A distribuicao material de competéncias é precedida de regras enunciadoras de principio que sao matrizes da l6gica constitucional, aplicada ao dominio da reparticgao de competéncias, de modo a inspirar a interpretagao do texto. Dai as trés regras introdutdrias que fixam os fundamentos da sistema alemao: 1. Os Estados tém o direito de legislar quando os poderes legislativos nao forem conferidos 4 Federagio (art. 70-1). 2. As competéncias da Federagao e as dos Estados sao delimitadas pelas disposigdes constitucionais sobre a legislagao exclusiva e a legislagao concor- rente (art. 70-2). 3. Nas matérias da legislagdo concorrente, os Estados podem legislar enquanto a Federaciio nao fizer uso de seu poder (art. 72-1). A competéncia da Federagao na matéria da legislagao concorrente, que é a mais extensa da reparticéo de competéncias, nado depende de vontade discri- ciondria, mas da caracterizada necessidade de regulamentagio legislativa fede- ral com fundamento em requisitos que a Lei Fundamental explicitamente enun- ciou nas seguintes regras: I — quando uma questio nao couber na regulamentagio eficaz da legis- lagao dos diversos Estados; II — quando a regulamentagao pela lei estadual afetar os interesses de outros Estados; Ill — quando assim exigir a protegao da unidade juridica ou econdmica, notadamente a manutengao da homogeneidade das condigées de vida fora do territério de um Estado (art. 72, (2) — 1.2.3). 235 A Constituigao da [ndia, de 26 de janeiro de 1950, adotou o sistema da reparti¢ao integral de competéncias, concebido em trés listas: Lista da Unido, Lista Concorrente e Lista dos Estados (art. 245 e 246). A Lista I ou Lista da Uniao discrimina 97 matérias incluidas na compe- téncia federal exclusiva; a Lista II ou Lista dos Estados enumera 66 atribuigées que identificam a competéncia estadual exclusiva, e a Lista III ou Lista Con- corrente individualiza 47 matérias, para o comum exercicio da competéncia da Unido e dos Estados. A inovadora repartigao de competéncias, adotada nas Constituigdes da Austria, da Alemanha Federal e da India, veio conferir aprecidvel enriqueci- mento & técnica que individualiza 0 Estado Federal no dominio das formas estatais. Deu-se nova substancia a atividade legislativa do Estado-membro, permitindo-Ihe o ingresso no amplo setor da legislacao federal, sem prejuizo das regras de coexisténcia, que demarcam, com maior amplitude do que na técnica dual do federalismo norte-americano, as fronteiras normativas do Es- tado Federal. Essa repartigao, flexivel nos seus movimentos e diversificada na sua matéria, é instrumento capaz de preservar o duplo ordenamento do Estado Federal, impedindo que 0 crescimento progressivo dos poderes federais venha absorver, na exaustividade dos poderes enumerados, a matéria indeterminada dos poderes reservados. De outro lado, a participagao dos Estados em matéria legislativa mais ampla permitira o afeigoamento das normas da legislagao federal de principios e de regras gerais as peculiaridades econdmicas, sociais e culturais de cada Estado, mediante 0 desenvolvimento de particularidades que a absorvente e unificadora legislagao federal central geralmente desesti- mula e ignora. Na repartigao concorrente ou mista reside a fonte do federalismo de equilibrio, forma que se ope ao federalismo centripeto, fundado na plenitude dos poderes federais, que se expandiu nas Constituigdes Federais de 1934, 1946 e 1967. A repartigao de competéncias, estruturada na Constituigéo Federal de 1988, acolheu as novas tendéncias do federalismo e na concepgao constitucio- nal € visivel a influéncia da técnica de competéncia da Lei Fundamental da Alemanha de 1949. Inspirando-se no modelo alemao, a Constituigaéo de 1988, mantendo a legislagio de competéncia privativa, introduziu na repartigao de competéncias a técnica da legislagéo concorrente da Unido, dos Estados e do Distrito Federal, abrandando o volume da legislago privativa da Unido. A legislagio concorrente encerra apreciavel matéria legislativa, para ser objeto da atividade da Unido, dos Estados e do Distrito Federal, observadas as regras que a Constituigao estabeleceu. (art 24 §§ 1° — 2° — 3° — 4°) Na legislagao concorrente cabe & Unio estabelecer normas gerais e aos Estados deferiu-se a 236 competéncia de legislacio suplementar, que podera tornar-se competéncia le- gislativa completa, na auséncia de lei federal de normas gerais. E nao s6 na legislacéo concorrente se admitiu a atividade legislativa do Estado. No quadro privativo da legislagao federal, que abrange 0 amplo dominio do direito codi- ficado, admitiu-se legislagao estadual sobre questdes especificas, mediante autorizacio de lei complementar. (Art. 22 pardgrafo tinico) Recentemente, a Lei Complementar n° 103, de 14 de julho de 2000, que autoriza os Estados e o Distrito Federal instituir o piso salarial, a que se refere o art. 7° inciso V da Constituigao Federal, inaugurou o ingresso da legislagao estadual no dominio da legislagao privativa da Uniao. Se prosperar essa modalidade de legislagao compartilhada, o federalismo brasileiro ingressara em outra fase, a do federa- lismo de equilibrio, que tornara distante e impraticavel o federalismo centripe- to, fundado no quase monopdlio legislativo da Uniao. 6. A relacao entre federalismo, de modo geral, e cooperagao surge na etimologia da palavra federal, que deriva de foedus: pacto, ajuste, convengao, tratado, e entra na composicao de lagos de amizade, foedus amicitae. A asso- ciagéo das partes componentes est4 na origem do Estado Federal, tornando insepardveis, como lembra Charles Eisenmann”, a idéia de unio, alianca e cooperagao. Carl J. Friedrich”! destaca a solidariedade como caracteristica do federalismo, que envolve, na andlise do Professor da Universidade de Harvard, permanentes contatos entre a comunidade central e as comunidades parciais. Em estudo concentrado no exame da cooperagao na Reptiblica Federal Alema, Enoch Alberti Rovira” assinalou que o federalismo contemporaneo se distin- gue pela cooperagao. A concep¢ao do dual federalism, que se elaborou nos Estados Unidos, fundado nas relagdes de justaposigéo entre os ordenamentos da Unido e dos Estados, recebeu a contribuigao do novo federalismo, a partir da Presidéncia de F. D. Roosevelt, que intensificou a ajuda federal aos Estados, sob a forma de programas e convénios. O nascimento do federalismo coope- rativo, no caso norte-americano, observa Rovira”, nao se apresentou como o desenvolvimento planejado de um principio, mas sob a versio de método pragmatico, destinado a resolver, casuisticamente, problemas concretos. Ao contrario do pensamento dogmatico alemao, orientado na criagao de sistemas, 0 procedimento norte-americano nao se deteve no tratamento global e sistema- tico da cooperagéo, dando origem ao casuismo no desdobramento das relagGes cooperativas. Ilustram o federalismo cooperativo norte-americano, as técnicas da legislagao reciproca (reciprocal legislation), pela qual dois ou mais Estados ajustam concessées reciprocas; a legislagdo uniforme (uniform legislation) na disciplina de matéria de interesse comum e a legislacao paralela (parallel 237 legislation), quando dois ou mais Estados promulgam, simultaneamente, uma lei com idéntica finalidade e contetido. Além das técnicas legislativas, situam- se no plano do federalismo cooperativo norte-americano os organismos de relacionamento entre 0 Governo Federal e os Governos Estaduais, como 0 Conselho dos Governos Estaduais (Council of States Government), criado em 1933, do qual participam os Estados-membros; a Conferéncia dos Governado- res (Governor’s Conference), formada pelos Governadores dos Estados; a Conferéncia Nacional para Uniformidade das Leis Estaduais (National Confe- rence of Commissioners on Uniform State Law). Nos Estados Unidos, a coo- peragao financeira encontra poderosos instrumento nos federal grants in aid. Levantamento de William Shultz* indica a modéstia da subvengao federal aos Estados, no periodo de 1915-1919, com as dotagdes convergindo para a edu- cago, sem alcangar os setores de estradas, agricultura, satide, socorro, bem- estar. A partir de 1925, amplia-se a ajuda federal; mas, somente no periodo presidencial de Franklin Roosevelt, ela ingressa no dominio da satide, socorro e bem-estar, que assumiu o primeiro lugar no volume da ajuda federal. A cooperacio financeira da Unido abrange subsidios de emergéncia (emergency grants) e subsidios ordindrios (regular grants), esclarece Harold M. Somers”, que se baseia na existéncia ou nao de participagao do Estado-membro no custo do servigo subvencionado. No caso dos subsidios de emergéncia, 0 Governo Federal pode financiar totalmente 0 custo do servigo, enquanto no de subsidios ordindrios, geralmente os Estados complementam a contribuigdo federal. A concessio de volumosas verbas, a titulo de subsidios de emergéncia, demonstra falta de elasticidade da estrutura financeira estatal e local. Analisando a politica de ajuda federal, observa Harold Somers que os governos de alguns Estados ficaram na dependéncia dos subsidios federais para a execugdo de servi¢os essenciais. Nos exercicios de 1945 e 1946, os subsidios federais ordindrios representaram, aproximadamente, 15% (quinze por cento) das receitas esta- duais totais. Em 1945, acrescenta Somers, as porcentagens variaram de 5,4% no Estado de New York, para 35,2% no Estado de Nevada. Daf a conclusio de que, em alguns Estados, a ajuda federal é questdo de vida ou de morte para os seus servigos: “for some States the federal grants do have quite a life-or- death effect on States services”. Na Alemanha, a Lei Fundamental, no titulo dos Objetivos Comuns, (art. 91-a, 91-b), prevé a participagao da Federagio em atividades dos Lander, se tais atividades dispuserem de relevo para a coletividade e se a mencionada participacao for necessdria 4 melhoria das condigoes de vida. Sao incluidos na Area dos objetivos comuns da Federagiio e dos Lander a ampliacio e construgao 238 de institutos universitarios, a melhoria da estrutura econémica regional e da estrutura agraria. Nos casos dos institutos universitarios, da estrutura econdmi- ca regional e da estrutura agraria, a Federagao assume a metade das despesas. A partir da Constituigaéo Federal de 1946, comegou a adquirir relevo, no federalismo brasileiro, a figura dos 6rgaos federais que receberam a incumbén- cia de promover o desenvolvimento de determinadas regides, inaugurando os ensaios embriondrios do federalismo cooperativo. Os drgéos de desenvolvi- mento permaneceram no domjinio da administrac¢ao federal, representando for- mas descentralizadas da atividade desse nivel, sem assumir as dimensdes do Governo Regional, dotado de autonomia e de base territorial propria. A fina- lidade desses 6rgaos localizou-se na politica de desenvolvimento regional, sob o comando da Unido Federal, fazendo dos Estados, localizados na area de insuficiéncia, destinatdrios da ajuda federal. O primeiro momento dessa ten- déncia de desenvolvimento regional pode ser localizado na previsao contida no Ato das Disposigdes Constitucionais Transitérias da Constituigao Federal de 1946, que impunha ao Governo Federal a obrigagao de tragar e executar um plano de aproveitamento total das possibilidades econémicas do Rio Sao Fran- cisco e seus afluentes, aplicando-se nesse plano, anualmente, quantia nao infe- rior a um por cento das rendas tributdrias da Uniao. (art. 29). Foi organizada a Comissio do Vale do Sao Francisco, de estrutura flexivel, para elaborar 0 plano geral do Vale do Sao Francisco e exercer outras atribuigdes, como a de assinar convénios e acordos com os Estados e Municipios ribeirinhos. (Lei n° 541, de 15 de dezembro de 1948). Sucederam 4 Comiss&o, a Superintendéncia do Vale do Sao Francisco, entidade autarquica, (Decreto-Lei n° 292, de 28 de fevereiro de 1967) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do Sao Fran- cisco — CODEVASF —, empresa ptiblica, que substituiu a anterior Superin- tendéncia — SUDEVALE, (Lei n° 6.088, de 16 de julho de 1974). Em outra regra antecipadora do federalismo cooperativo, a Constituigaéo de 1946 estabe- leceu o Plano de Valorizagéo Econémica da Amaz6nia, no qual a Uniao aplicaria quantia nao inferior a trés por cento da sua receita tributdria. (art. 199). Dando sequéncia ao comando constitucional, criou-se a Superintendéncia do Desenvolvimento da Amaz6nia — SUDAM —, entidade autarquica, res- ponsavel pela elaboragao do plano de valorizagao e atuagao na regiao amaz6- nica. (Lei n° 5.173 — de 27 de outubro de 1966). A Fronteira sudoeste do Pais, abrangendo os Estados do Mato Grosso, Parana, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, recebeu tratamento assemelhado ao do Vale do Sao Francisco e da Regiaio Amazénica, implantando, na fase inicial, a Superintendéncia responsa- vel pela execugao do Plano de Valorizagao, e, posteriormente, a Superinten- déncia, entidade autarquica, com estrutura mais complexa e objetivos melhor 239 definidos (Lei n° 2.976, de 28 de novembro de 1956. Decreto-Lei n° 301, de 28 de fevereiro de 1967). A figura do érgao regional de desenvolvimento, de natureza autérquica, projetou-se na Superintendéncia do Desenvolvimento da Regiao Centro-Oeste — SUDECO — (Lei 5.365, de 1 de dezembro de 1967), compreendendo na sua drea de atuacgao os Estados de Goids, Mato Grosso e 0 entao Territério de Rondénia, por ampliagio da 4rea na Lei 5.467 de 20 de junho de 1968, e na Superintendéncia do Desenvolvimento da Regiao Sul — SUDESUL — (Decreto Lei n° 301, de 28 de fevereiro de 1967). Na vigéncia da Constituicéo de 1946, a Superintendéncia do Desenvolvimento do Nordeste — SUDENE — representou 0 modelo mais avangado do 6rgao de desenvol- vimento regional. Criada pela Lei n° 3.692, de 15 de dezembro de 1959, como entidade administrativamente auténoma, subordinada ao Presidente da Rept- blica, com 4rea de atuacfo na Regiao Nordeste, entéo abrangendo os Estados do Maranhao, Piauf, Cear4, Rio Grande do Norte, Paraiba, Pernambuco, Ala- goas, Sergipe e Bahia e, ainda, no Estado de Minas Gerais, a zona compreen- dida no Polfgono das Secas, a SUDENE submeteu suas atividades a sucessivos Planos Diretores do Desenvolvimento do Nordeste, dentro de politica progra- mada, concessao de incentivos fiscais e dispéndios. Reavaliando, sob novas inspiragdes, a atuacao dos referidos 6rgaos de desenvolvimento, 0 Governo Federal promoveu, através da Medida Provisoria no. 2.145, de 2 de maio de 2001, a extingio da SUDAM e da SUDENE (art. 41), dando-lhes estrutura e funcionamentos distintos dos que se achavam consagrados nas anteriores Su- perintendéncias de Desenvolvimento da Amazonia (SUDAM) e do Nordeste (SUDENE). Em substituic¢éo ao modelo anterior, foram criados 0 Fundo de Desenvolvimento do Nordeste e a Agéncia de Desenvolvimento do Nordeste, na 4rea da antiga SUDENE, e o Fundo de Desenvolvimento da Amazénia e a Agéncia do Desenvolvimento da Amazénia, substituindo a SUDAM. Os recur- sos de cada Fundo de Desenvolvimento provirao de dotagées orgamentérias, & conta de recursos do Tesouro Nacional, repassdveis a cada Fundo, em quanti- tativos estipulados, para alocagGes, nos exercicios de 2001, 2002 e prevista a alocag&o anual de recursos do Tesouro Nacional para cada Fundo, a partir de 2003 até 0 exercicio de 2013 (Medida Proviséria no. 2.145, atrs. 4° § 3° e 24 § 3°). Os Fundos de Desenvolvimento da Amaz6nia e do Nordeste proporcionarao recursos para realizagao de investimentos nas duas 4reas (Medida Proviséria no. 2.145, arts. 3° e 23), enquanto as Agéncias de Desenvolvimento da Ama- zonia e do Nordeste exercerao competéncias de coordenagao na implantacao dos Planos, gestao dos Fundos, aprovagao de projetos, avaliagdo de resultados, fortalecimento das estruturas produtivas da cada regiao, elaboragao de estudos de viabilidade de projetos de integragao e de desenvolvimento regional, dentre 240 outros. A substituigao das Superintendéncias do Nordeste e da Amaz6nia pelas Agéncias de Desenvolvimento inseriu-se no processo de estancamento dos focos de corrup¢éo que conviveram com a politica clientelistica de oligarquias do Brasil arcaico. A Constituigao Federal de 1988 nao interrompeu a politica de desenvol- vimento regional do federalismo cooperativo. Contemplou na Unido a compe- téncia para “elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenagao do territ6rio e de desenvolvimento econémico e social” (art. 21, IX). A compe- téncia para elaborar planos nacionais e regionais de desenvolvimento constitui uma das formas ativas do federalismo cooperativo, inaugurado na Constituigéo de 1946, em procedimentos fragmentarios, para atingir instrumentos de atuagao mais consistentes na Constituigdo de 1988. Introduziu-se no texto constitucio- nal o tratamento reservado as Regides, em seco propria, (segao IV — art. 43) embora deslocada na sua referéncia, que caberia melhor em capitulo final do Titulo III, relativo 4 Organizacéo do Estado. A finalidade cooperativa das Regides transparece na regra constitucional que faculta a Unifio us4-las como instrumento de articulagio, “em um mesmo complexo geoeconémico e social”, visando o seu desenvolvimento e a reducao das desigualdades regionais. (art. 43). Afastando a idéia da Regiao, entidade territorial, e preferindo manter a concepgao dos drgaos regionais de desenvolvimento, j4 consolidada na expe- riéncia brasileira, a partir da Comissao do Vale do Sao Francisco, de 1948, a Constitui¢do deferiu 4 lei complementar a miss&o de fixar as condig6es, definir a composigao dos organismos regionais, sua competéncia na execucao dos planos regionais, a integragdo destes Ultimos nos planos nacionais de desen- volvimento e a regulagao dos incentivos regionais. (art. 43, § 1°, I, II — § 2°, I, Il, Ill, 1V — § 3°). E pertinente, no caso, a invocagao da lei complementar, para desenvolver os objetivos estabelecidos na Constituigao, pela flexibilidade da lei ordindria, a correlagao que ela permite apurar entre a matriz constitucio- nal e as concepgées dominantes no Congresso, nao sé em relagdo ao regiona- lismo administrativo, como também a extens&o, maior ou menor, da agao da Uniaio nas dreas localizadas no territério dos Estados abrangidos pelo 6rgao regional. A Constitui¢éo de 1988 aprofundou o mecanismo do federalismo coope- rativo no plano regional, distribuindo 3% (trés por cento) da arrecadagao dos impostos sobre a renda e produtos industrializados, para aplicagéo em progra- mas de financiamento ao setor produtivo das Regides Norte, Nordeste e Cen- tro-Oeste, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, assegurando ao semi-drido do Nordeste a metade dos recursos destinados a Regiao. (Art. 159, I, “c’”). A Lei 7.827, de 27 de setembro de 1989, regulamentou o dispo- 241 sitivo constitucional, instituindo os trés fundos constitucionais de financiamen- to do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste. No rumo do desenvolvimento regional, a Constituigo manteve a Zona Franca de Manaus, criada pelo De- creto-Lei n° 288, de 28 de fevereiro de 1967, como 4rea de livre comércio, de importagao e exportagao e de incentivos fiscais especiais, para propiciar, no interior da Amaz6nia, um centro industrial, comercial, e agro-pecudrio de desenvolvimento regional. A disposi¢&o transit6ria fixou em vinte e cinco anos, a partir da promulgacao da Constituigao, a duragao da Zona Franca (ADCT — art. 40). A grandeza da Zona Franca, em termos financeiros, pode ser avaliada no volume dos recursos federais, que ela absorve. Louvando a informacao em dados divulgados, “de cada U$ 10 que o Tesouro Nacional remete a Regiao Norte pouco mais de U$ 8 ficam na Zona Franca”. 7. Em decorréncia das provagées de duas guerras mundiais, a politica de preservacao da paz incluiu entre os instrumentos assecuratérios desse objetivo a adogao nos textos constitucionais contemporaneos da regra que consagra a supremacia dos Tratados e dos princfpios do Direito Internacional, para consi- derd-los integrantes do direito estatal. A constitucionalizagao dos Tratados e dos principios do Direito internacional depende da concepcao sobre a natureza desse processo, que se divide em duas tendéncias principais. A que concebe a relagao entre o direito interno e o direito internacional, mediante a recepgao, através da qual a norma internacional adquire forga obrigatéria, e a tendéncia, que repelindo a recepgao, afirma, desde logo, a integragdo da regra do direito internacional no direito estatal, para produzir efeitos imediatos. A interpretagio dos textos constitucionais oscila entre 0 dualismo normativo, prestigiado pela doutrina exposta por Anzilotti, na Itdlia, e Triepel, na Alemanha, enquanto o monismo normativo, que preconiza a integracao da norma internacional no direito estatal, encontra na doutrina de Kelsen, fundada no primado do Direito Internacional, sua interpretagaéo consagradora. O reconhecimento constitucional das regras do Direito Internacional di- fundiu-se nas Constituigdes contemporaneas, de modo geral, ressalvada a pre- cedéncia que pertence as Constituigdes Federais da Alemanha de 1919 e da Austria de 1920 e, de certo modo, a Constituig&éo norte-americana de 1787, na consolidagéo do processo constitucional de preservagao da superioridade do Direito Internacional. No grupo das Constituigdes nao federais, destacam-se a Constituigao da Republica Portuguesa de 1976 e a Constituigao da Franga de 1958. Na Constituigéo de Portugal, o direito internacional tornou-se objeto de trés regras, que abrangem o dominio amplo do Direito Internacional geral ou 242 comum e os dominios especificos das conveng6es internacionais e das normas oriundas das organizagGes internacionais. No primeiro caso, a Constituigao proclama que “as normas e os principios de Direito Internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito portugués”. (Art. 8°, 1) No tocante as conveng6es internacionais e 4s normas emanadas de organizagGes interna- cionais observa-se uma gradagao, que reduz a imediatidade integradora do Direito Internacional no direito portugués. Com efeito, diz a Constituigao, em seu artigo 8° — 2 e 3 —, que “as normas constantes de conveng6es interna- cionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna apds a sua publicacao oficial e enquanto vincularem internacionalmente 0 Estado Portugués; ‘“‘e as normas emanadas dos 6rgaos competentes das organizagdes internacionais de que Portugal seja parte vigoram diretamente na ordem inter- na, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constituti- vos”. A reducao da imediatidade integradora é clara. As normas constantes de conveng6es internacionais vigoram na ordem interna apds a sua publicagao oficial e enquanto vincularam internacionalmente o Estado Portugués. A vi- géncia das normas emanadas das organizagGes internacionais condiciona-se ao que estiver estabelecida nos tratados constitutivos. A Constituig&éo da Franga de 1958, em seu artigo 55, estabelece que “os tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados possuem, desde sua publicagao, autoridade superior 4 das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicagao pela outra parte’. A redagao do texto francés é cautelosa. Pressup6e tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados. A superioridade deles, em relagado as leis, exige, para cada acordo ou tratado, a aplicagao pela outra parte, impondo reciprocidade. As Constituigdes Federais da Alemanha de 1919 e de 1949 e da Austria de 1920 acolheram cldusulas mais abertas, sem as cautelas que transparecem nos textos constitucionais da Franga e de Portugual. Com efeito, as Constitui- Ges da Alemanha de 1919 e da Austria de 1920, consagraram, em regras sucintas, a integragao do Direito Internacional no Direito Federal. Nessa deci- sao integradora diferem as duas Constituigdes da Constituig&o norte-americana e da Constituigao do México, que as precederam no tratamento constitucional ao Direito internacional. A formulagao classica da Constituigao norte-america- na de 1787°8 (art. VI), reproduzida na Constituigao do México de 1917”? (art. 133), limitava-se a conferir aos tratados 0 tratamento de lei suprema do Pais, no mesmo plano da Constituigaéo e das leis, sem conceber a integragéo no Direito interno e extrair as conseqiiéncias dessa absorgao. 243 O artigo 4° da Constituigao de Weimar (1919), inaugurando a técnica da integragao, dispunha que “as regras do direito das gentes que contam com acordo geral sao consi- deradas partes integrantes do direito do Reich” . A Constituigdo da Austria de 1920, em seu artigo 9°, contém regra de igual contetido, verbis: “As regras do Direito Internacional que gozam de acordo geral valem como partes integrantes do direito federal”. A Lei Fundamental da Alemanha de 1949 aprofundou o principio decla- rat6rio da integracdo, para dele extrair a constitutividade de direitos e deveres, como enuncia 0 artigo 25, verbis: “As normas gerais do Direito Internacional integram o direito federal. Prevalecem sobre as leis e produzem imediatamente direitos e deveres, em relag4o aos habitantes do territério federal” . A Lei Fundamental nao ficou na mera declaragao de sua primeira parte. A integragao do Direito Internacional faz com que suas regras prevalegam sobre as leis e, como se da com as regras do direito interno, criam direitos e deveres para os habitantes do territ6rio federal, penetrando, diretamente, no ordenamento juridico interno, alcangando 0 ambito pessoal de validez da ordem estatal, o “povo estatal” , conforme a conhecida qualificagdo de Kelsen. Em varias de suas disposigées, a Lei Fundamental introduziu a Federacio alema no Direito Comunitario, estabelecendo as articulagdes que realizam esse ingresso. No artigo 23, dispde a Lei Fundamental que, para realizar a Europa unida, a Reptiblica Federal da Alemanha participa no desenvolvimento da Unido Européia, podendo conferir poderes soberanos, mediante lei que tenha © consentimento do Bundesrat. A presenga ativa dos Lander é explicitada na Lei Fundamental, no artigo 23.2, nele se dispondo que nos negécios da Uniao Européia os Lander colaboram, por intermédio do Bundesrat. Como 6rgao da Federagao, que se comp6e de membros dos Governos dos Lénder, 0 Bundesrat se manifestard sempre que os Ldnder tiverem competéncia no plano do direito interno e nos negécios da Unido Européia. (Arts. 23.5 e 50) No federalismo latino-americano, a regra da integragdo ainda nao alcan- gou a eficdcia com que ela se apresenta na Lei Fundamental de Bonn, nem adquiriu a projecao de principio de aceitagao generalizada. O texto mais avan- ¢ado no federalismo latino-americano, no momento, é o que resultou da refor- ma da Constituigéo da Argentina, de 1994, na qual se proclama a hierarquia superior dos tratados e convengées internacionais em face das leis (Art. 22), conferindo a eles o mesmo relevo dos tratados de integrag4o, no plano da jurisdig&o supra-estatal, dotados, como os tratados e conveng6es internacionais, 244

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