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Agradeco a todas as Sagradas forcas da Geracao e da Lei ea minha Amada e Divina Senhora pela oportunidade e pelo privilégio de participar desta obra. Odoya, minha Mae. Texto revisado por Michela Carvalho da Silva Eu, Tranca Ruas das Almas, fui incumbido pelo astral de trazer uma historia veridica sobre um guardiao, enquanto vivia no plano material e seu retorno ao mundo espiritual, para que sempre se lembrem de que o Divino Criador assiste a tudo e a todos o tempo todo e, Dele e do Tempo, nada escapa. Ecom honra e alegria que relato a histéria simples deste meu irmao de fé e juizo. Vejo com fé 0 crescimento e a evolucdo espiritual da hu- manidade, na esperanca de que todos crescamos juntos, pois nds, Guardides, estamos mais perto de vocés do que imaginam. Nossa histéria comec¢a em uma vassala cidadezinha, um lugarejo situado dentro do que é hoje a Espanha... Capitulo Quase acordando, sentia um cheiro gostoso que entrava pelo meu nariz, mas ainda estava escuro. - Vamos, acorda, Miguel... - ouvi aquela voz suave e me- lodiosa cochichando. - Bom dia, mamae. - Ah, bom dia Miguel! Hoje é o teu décimo aniversario, en- tao levanta-te, tens de correr para o mar. - Mas jaesta claro? - esfreguei os olhos tentando enxergar alguma coisa. - Sim... Quase. Fala baixo, que tua irmA te espera. Anda logo, antes que teu pai se levante. Corri para juntar as minhas roupas. Estava um pouco mais frio do que o normal e, como sempre fui um me- nino obediente, fui me aprontar imediatamente. Amava meu pai e minha familia, mas minha mae... Era meu norte, meu porto seguro. Amava-a com tanta intensi- dade, que apenas o respirar dela me fazia feliz; véla em casa era uma visao divina. Minha mae era moura, como eram chamados os do seu povo, os arabes. Ela tinha cabelos negros, cacheados e brilhosos; era uma mulher muito bonita e, apesar de sua origem humilde, tinha algo que a tornava misteriosa e exuberante, além de sua grande mediunidade. Era uma mulher dedicada, sempre ajudando os que a ela recor- riam, fosse usando suas ervas ou consolando seus ami- gos. Meu pai era um espanhol objetivo, nao gostava das con- versas sobre o mundo espiritual, ainda mais, quando en- volvia o mar. Apesar disto, sempre pedia para minha mie fazer rezas e benzé-lo com ervas antes de entrar mar adentro, mas a sua fé se resumia a isto. Minha irma tinha uma personalidade parecida com a de minha mae. Eu andava junto delas sempre que podia, mas nem sempre era possivel, pois eu e meus irm4os aju- davamos meu paie meu tio com o trabalho na pesca lo- cal. Moravamos em uma casa simples, mas sempre limpa, arrumada e cheirando aos aromas das ervas que minha mae queimava, dizendo que era bom para afastar os maus espiritos. Nao passavamos necessidade, mas era uma época dificil para a Europa, pois pessoas morriam o tempo todo por causa de males desconhecidos e em funcao das frequen- tes guerras e disputas por territorios. Como ainda era pe- queno, meus irm4os cuidavam muito das “nossas mu- lheres”, como dizia meu pai; éramos felizes, apesar de to- das as dificuldades por causa das disputas locais. Apanhei minhas roupas e levantei-me rapidamente, pois sempre consideravamos muito especial 0 dia do meu aniversario, nao por que mame iria preparar doces para mim, mas pelo que eu via acontecer desde que tinha seis anos. Fui acompanhado pela minha irma até a beira- mar; levavamos os ramos de flores que minha mae havia colhido nas maos. - Vamos, Miguel. Chama-as e entrega as flores. E nao te esquecas de agradecer pela protecdo ao papai e a nossa familia. Desde os seis anos comecei a ver 0 que, para mim, eram seres encantados do mar, que me chamavam. Mame di- zia que eram sereias ou génios das Aguas, e que eu nao deveria ter medo, mas sempre respeita-las e lhes agrade- cer, e que jamais deveria entrar na Agua sem entoar uma reza, pois ela dizia que ali eram recolhidos todos os que naoachavam sentido em suas vidas. Hoje eu seio quanto minha mae era sabia! Sim, eram lindas mulheres aos meus olhos infantis, que as consideravam um milagre, como nas histdérias que minha mae contava. Meu paitinha muito medo das len- das e historias, mas desde que as vipela primeira vez, me disseram que eu nAo precisaria temé-las porque sempre estariam ali para me proteger. Meu paiacreditava no que eu dizia, entao sempre procurava me ter por perto, creio que por medida de seguranc¢a. - Anda logo, joga as flores! - minha irma, Maria, nao con- seguia vé-las, mas tinha uma certa percepcao auditiva. - Ai, calma Maria! Eu nem as vi ainda, me deixa vé-las, esta bem? - Ah, Miguel! Como és teimoso! Anda, fecha teus olhos e canta para elas o que te ensinaram! E assim fiz. Cantei um som que havia aprendido com uma delas, e esse som vibra em minha alma até hoje como o meu chamado de retorno. O sol comecava a dar seus sinais e eu cantava com o mais puro amor, pois a vi- sao delas era um presente que me acalentava e encan- tava sempre. Mas eu nao entendia o motivo pelo qual sempre me emocionava tanto. Doia dentro de mim, em minha alma e eu chorava sempre. Hoje sei o por qué de tanta dor... Pontos brilhantes comecavam a aparecer, cantos ouvia- mos, 0 aroma na praia se transformava, tudo ali se tor- nava magico por alguns instantes, e era assim que eu as via. Longos cabelos negros comecavam a se misturar na agua, que ganhava uma aura cintilante e tudo brilhava. E entao, eu ia deixando flor por flor na agua. - Ouve, Miguel, ouve...- dizia minha irm4, pulando, feliz como crianga. Nesta época, Maria tinha treze anos. Ouviamos o som mais melodioso, encantador e atrator que alguém poderia ouvir e, se alguém ja ouviu de ver- dade, sabe do que estou falando. Muitas vozes se mistu- ravam, era uma dadiva tudo aquilo e eu, emocionado, disse: - Amo vocés! Um dia vou ser um grande pescador e vou dizer a todos o quanto vocés sao lindas! E realmente sao, pois elas vibram e exalam o mais puro amor em seus cantos, por seus olhos e por todos os seus sentidos. E essas doces e melodiosas vozes cantavam e cantavam para mim, parecia durar uma eternidade aqueles breves minutos; o amor delas me envolvia de tal forma que parecia dar amplitude ao tempo, parecendo horas. Minha irma, que estava com os olhos marejados, me abragou, quando, de repente, algo diferente de tudo aconteceu. Um homem que ja aparentava certa idade, mas percebia-se nele um certo vigor, de cabelos brancos, vestindo uma calcea branca dobrada na bainha e camisa da mesma cor, saiu de dentro do mar e se apresentou: - 014, meu filho. - Ah! Vocé é o meu avé que nao conhe¢o? — perguntei. - Quem é, Miguel? - perguntou minha irma, pois nao o via. - Um vové, me deixa falar com ele. - respondi brusca- mente. - Nao sou exatamente o seu avd, apenas vim ver como vocé esta. - Ah, sim! Estou bem. Esta é a minha irma, Maria. - Sim, eu também conhego a sua irma. - Entao o senhor as vé? - e apontei para o mar. - Sim, euas vejo de vez em quando, e hoje vim vé-las com vocé. - Quem é 0 senhor? - Um amigo, Miguel. Pode me chamar de Antonio. Sabe, me disseram que és muito inteligente...— disse ele, abai- xando-se para me olhar nos olhos. - E, mamie diz que sou, mas meu pai briga comigo, diz que nao entendoas coisas, entao eu nao seise souou nao. Ele sorriu e disse: - Miguel, quero que ouca bem o que vou lhe dizer, meu filho. - Sim, papai Antonio. Posso falar assim, né? Ele encheu os olhos de lagrimas e disse: - A tua encarnacao, esta tua vida, esta destinada a que supere as tuas dificuldades com tranquilidade. Ela deve ser de paz, entende? - Mais ou menos. Nao muito, na verdade. - Pergunta a tua mae, ela vai te ajudar, vai te explicar. Mi- guel, conheceras muitos lugares, muitas pessoas, mas nado deveras nunca perder o amor a vida e as pessoas, ou- viu, meu filho? Que seja sempre ele o teu alvo. Essas mo- cas lindas que aqui estado nao poderao mais te acompa- nhar como estavam fazendo. Mas deves crescer, ser um homem honrado, de principios baseados no amor e no respeito a vida. Ouve isto e guarda no teu coracdo, meu filho. E mais ele nao disse. Simplesmente desapareceu, sor- rindo, da mesma forma que havia aparecido. O que eu ndo sabia, neste momento, era o quanto essas palavras viriam a ser importantes na minha vida; deve- ria ter optado por ser um pescador comum, tocar os ne- gocios de pesca de meu pai, construir uma familia e me realizar assim. Mas nAo, eu quis mais, sempre mais... Corri para casa com Maria, que praticamente ia me ar- rastando pelo braco, pois dali a pouco papai estaria acor- dado, se é que ja nao estava. - Salina, onde esta Miguel? - perguntou papai. - Acho que esta na rua, homem. - Nao o viainda. Ja disse para vocé nao deixar esses me- ninos preguicosos. - disse ele, sentando-se 4 mesa. Meu pai sempre foi muito carinhoso com minha mae; era um homem da terra, simples e sem instrucdo, mas dono de um grande coracdo. Era respeitado na comunidade onde viviamos, pois era muito honesto e trabalhador. Frequentemente recebia agrados do povoado por se en- volver nas causas sociais da nossa localidade. Quanto a educacao dos filhos, deixava a cargo de minha mae, mas nao abria mo deles no trabalho. Dizia ele: homem pre- guicoso é como rede furada, ndo presta para nada! Entrei pé por pé na cozinha, pois tinha escutado a voz de meu pai. - Ah, até que enfim apareceu 0 rapazote! - disse ele, le- vantando-se para me abracar. Olhei espantado para mamae, e ela rapidamente me sor- riu e balancou a cabeca, mostrando que estava tudo bem. - E, euestava ali... - Parabéns, meu filho! E hoje, como é€ o teu aniversario, vou te deixar jogar as redes grandes! - Jura? Mesmo? Posso? - disse eu muito empolgado, pois jamais me deixava trabalhar com as grandes redes. - Pode, sim. Partimos para o mar, mas era uma pesca rapida. Volta- riamos a noite naquele dia, pois papai ja pressentira que uma tempestade viria. Chegamos em casa tarde naquela noite, mas mamae e minhas irm4s, assim como meu irmao mais novo, que estava adoentado, nos aguardavam com um cheiro deli- cioso na cozinha. Minhas irmas haviam feito um bolo, al- guns doces e carne recheada para comemorar o meu ani- versario, o que nesta época era muito caro, (a carne, de- vido 4s mudangas politicas que se avizinhavam). Senti- me muito especial naquele dia. Nao que houvesse preferéncia da parte de minha mae por algum filho, mas ela, eu e Maria tinhamos alguns dons em comum, entao, obviamente éramos mais proxi- mos. Eu quase dormia na mesa, esperando meu pai e meus ir- maos sairem, para poder conversar com a minha mie, pois Maria havia dito a ela que eu havia falado com al- guém na praia. Apdés muitas risadas e brincadeiras sobre os meus erros com a pesca do dia, quase todos se retira- ram. - Vamos, Miguel, conta-me tudo. - disse ela, acariciando omeu cabeloe sentando-se ao meu lado, para me colocar no colo. Contei a ela sobre a conversa com aquele senhor, e ela me disse que talvez fosse algum antepassado ou um génio protetor. De acordo com a cultura de mame, os génios entravam em contato conosco. - Mas, de qualquer forma, Miguel, ouca-o, sao bons con- selhos. Deixa eu te contar uma coisa. Certa vez, apareceu uma mog¢a, jovem e linda e me disse que vocé era espe- cial e que eu deveria te cuidar muito bem! Acho que es- tou me saindo bem, né? - disse ela, me apertando em seus bracos. - Acho que sim, me sinto muito bem com a senhora. - beijei suas mos e cai no sono. Minha mae nos instruiu a seu modo, sempre zelando pela educacio e leitura, que dizia serem necessarias para as nossas vidas; disse ela, também, ter visto no meu fu- turo muitas riquezas e alegrias, mas que me preparasse para trabalhar duro. Meus pais nao tinham dinheiro para pagar um instrutor, minha mae mesma nAo sabia ler muito bem, mas como trabalhava na casa de nossos suseranos, ficou mais facil e, com o prestigio de meu pai, que os apoiava, algumas regalias eram facilitadas. Ela se empenhou para que aqueles de nés que quisessem, nao fossem ignorantes e tivessem o necessario para isso. Capitulo II Passados alguns anos, levando uma vida normal, ja era homem feito. Entrei para o ramo da pesca a contragosto de minha mae. Ja comandava nossa pequenissima frota de barcos pesqueiros e, certa tarde, quase com o sol se pondo, passei na lateral do trapiche e vi algo grande se movendo na agua. Sim, depois de dez anos, eu via uma sereia muito rapidamente. Fiquei estatico e senti, na- quele momento, que algo importante iria acontecer. Sentei e comecei a pensar no que poderia ser, e no por qué de aparecerem tanto tempo depois, mas nao atinava com nada. Comeceia lembrar de toda a minha infancia e, entre um gole de bebida e outro, me recordava de como as coisas eram faceis naquela época. Maria jA estava casada e tinha trés filhos, assim como minha irma mais velha, que era casada com um bom homem, também do mar. Meu pai havia falecido em um acidente no mar e mami§e continuava forte e linda, vi- vendo com os meus irmaos. Nesta época, tinhamos guerras constantes e nao era nada aconselhavel estruturar uma familia, pois teria de deixar esposa e filhos sozinhos quando tivesse de viajar. Meu pai nos havia transmitido 0 respeito pela familia e pelas mulheres e, quando fomos crescendo, nos ensi- nava como trata-las e corteja-las. Mamae dizia que eu deveria me casar, pois assim, minha esposa faria compa- nhia a ela, mas nao desejava isso, nao desta forma. Eu, na época, j4 era um sonhador; dizia que me casaria somente com a mulher certa, que teria todo o meuamor. Bem... Demorei, mas a encontrei. Nao gostava daquela vida de pesca, queria dar algo me- lhor para minha m4e e para a minha familia, mas cum- pria com as minhas obriga¢ées, como meu pai esperava. Certa noite, fui a uma taberna acompanhado do meu irmao mais novoe alguns amigos para beber e nos diver- tir um pouco, se é que me entendem. Riamos e bebiamos quando, de repente, entrou a mulher mais linda que ja havia visto até aquele dia. Loira, com a pele clara, olhos azuis e muito bem arrumada, envolta em um perfume que se espalhou por todo o salao. Olhou para mim, que estava perto da porta, e pediu ajuda, pois sua carruagem havia quebrado e o condutor estava passando mal, com febre e quase desmaiando. Prontamente, pulei da ca- deira e olhei para o meu irmAao: - Sim, senhora! Posso ajuda-la! — ela me olhou de cima a baixo e deu-me um sorriso encantador. - Venha. Ela era diferente das mulheres locais, tinha forca na per- sonalidade e era muito simpatica. Vi que o homem es- tava jogado dentro da carruagem e que ela a havia con- duzido até ali. Imediatamente a consertamos, era algo simples. Disse-nos que era da corte de um pais vizinho e que estava de passagem para ver a irma. - Fale-me de vocé - disse ela. - Ah, sou pescador, assim como o meu irmAo, e fornece- mos pesca a muitos lugares aqui. Mas, senhora, é peri- goso andar a esta hora sozinha, como vai continuar se o seu condutor esta deste jeito? — perguntei. - Nao sei, quem sabe podes me conduzir... - disse ela, en- rolando-se em mim. Meu irm4o comecou a rir discreta- mente. Neste momento, o condutor acordou de um pulo, di- zendo que tinha condigées de leva-la e que o mal-estar ja estava passando. Ela olhou-me profundamente nos olhos e me pediu que lhe entregasse uma encomenda de pesca na noite do dia seguinte, anotando o endereco da entrega. Devo dizer que, nesta época, eu nao era um rapaz de se jogar fora, ti- nha um bom porte fisico, bonitos tracos e uma educacao que chamavam a atenc4o; era realmente um bom par- tido. Fiz a entrega e devo dizer que, mesmo sendo mais velha, ela era muito sedutora, mas infelizem um casamento ar- ranjado. E, assim, nos permitimos um pouco mais de in- timidade e amor. Eu estava sendo para ela um entretenimento no inicio, mas como nao sabia fingir 0 que sentia, dei-me a ela por inteiro e ela retribuiu. Ensinou-me muitas coisas sobre cortes, reuniées e festas, mas 0 que mais me interessava era quando falava sobre os corsarios, que estavam em inicio de expans4o, e contava-me sobre as aventuras que ja havia ouvido deles... Sim, esta senhora era bem via- jada! Falou-me sobre a importancia dos corsos, e cada vez mais ela me incitava a isto, pois viaem mim a ambi- cao. Trazia-me papéis e mapas e mostroume, certa vez, uma carta de corso. Eu realmente preferia nem saber como ela conseguia isso. - Posso conseguir uma carta de corso para ti, Miguel. Anda, diga-me se queres! - Como vais fazer isso, se moro em outro pais, mulher? - Tenho os meus contatos, sao grandes amigos e sei que nado me negarao nada. - Amigos, 6? - Sim, amigos. - disse-me, rindo e vestindo-se. - Mas que custo me tera isso? Nao quero que te deites com ninguém por minha causa. - Ah, nao sera preciso, podes apostar. - Isto é sério. - disse-lhe, segurando o braco fortemente. - Estas com citimes, capitéo? Acaso esqueceste de que sou casada? -O que é uma pena. - Para, Miguel. Quero te ver bem e com dinheiro. E, quem sabe um dia, me levas embora daqui? — disse, sorrindo. Nao me perguntem como aquela dama conseguiu algo assim, mas 0 fato é que o feze, em trés meses deixei a mi- nha casa e estava em outro porto, com uma carta de corso nas maos. A partir dali tivemos de ser cautelosos em nossos encontros, pois estariamos no chao dela e qualquer problema que eu causasse seria o final da mi- nha iniciante carreira. Durante os meses seguintes, fui fazendo amizades, esta- belecendo lacos comerciais e me fortalecendo no ramo. Naquela época, os corsdrios, ainda que tivessem a per- missao para tombos em alto mar, nao eram bem vistos, pois eram encarados como escéria pelos mais abastados. Mas em pouco tempo eu iria mudar esta visdo, pelo me- nos quanto 4 minha pessoa. Ea minha linda dama, sempre que havia algum evento social de bom quilate, dava seu jeito de me colocar 1a dentro, Ela me instruia nos modos e comportamentos, e a sua lingua eu ja havia aprendido durante nossos calo- rosos encontros. Conheci grandes navegadores, mas um em especial, que é conhecido por suas voltas ao mundo. Tive o privilégio de conhecer este homem culto e sabio que me presen- teou com uma linda bussola e me disse, em um jantar, que pressentia que eu seria um grande navegador. Nes- ses encontros conheci pessoas influentes na marinha, e 1a conheci também o meu irmao de fé e juizo. Chamava- se Jean Ramiro, encarregado da guarda fiscal do porto. Era ele quem recepcionava as naus que chegavam e saiam, e por ele todos passavam. Mas 0 mais interessante é que ele havia conseguido 0 seu emprego da mesma forma que eu... Através da nossa linda dama! Iniciamos uma amizade, sempre regada a bebidas e mu- lheres. O amor pelo mar era também compartilhado. Ele me apresentou aos corsarios mais experientes e comecei a fazer viagens como acompanhante, pois ainda tinha pouca idade comparado a eles. Com eles aprendio verda- deiro manejo de uma espada eo quanto ela pode ser letal, e isso muitas noites de sono me custaria dali para a frente. Nao pensem que era facil a vida em alto mar. Combates, saques, perda de tripulantes por causa de feri- mentos e doengas... Tudo era muito duro. Pode o amigo leitor pensar apenas na poesia de se viver no mar, mas a realidade era dura, sendo dificil até mesmo de se alimentar em algumas situacées. Triste era quando aprendiamos a ter afeicao por alguém e depois tinhamos de fazer o ritual funebre em alto mar, pois fre- quentemente estavamos muito longe de casa para en- terra-los devidamente. Conheci as mais variadas armas e armadilhas com os meus mestres de corso; vi também amotinamentos, o desrespeito a mulheres e criancas e as suas justas puni- ¢des. Vi, com horror, o trafico dos homens que perdiam suas lutas em alto mar e se tornavam alvo do trafico de escravos, e decidia a cada dia que tipo de capitao seria no futuro. Mas, mesmo jovem, ensinei-lhes muitos tipos de negoci- acGes, tanto em terra como no mar, 0 que chamou muito a atencdo deles. A forma como eu lidava com a tripula- go ecom os saqueadores os deixava pasmos. Minha fama de negociante foi crescendo muito e, em pouco tempo, eu tinha uma nau para tripular com al- guns marujos avidos por dinheiro. Gente pobre, esco- lhida 4 beira do cais, na sua maioria bébados ou desiludi- dos que nada tinham a perder. Sim, esta foi a minha pri- meira tripulacao! Neste periodo, minha mae faleceu, ficando apenas os meus irmaos e suas familias; entéo resolvi ficar mais perto deles mas, para isso, teria de voltar para a minha patria com um plano. Fui até o meu suserano, mostrei a ele o meu corso, as minhas cartas, minha tripulacio e tudo o mais que possuia, pois pretendia convencé-lo de que poderiamos ganhar muito dinheiro juntos. - Miguel, conheci o seu pai e a sua familia e sei que sdo pessoas honestas, Tudo isto que me mostra me é apeti- toso para as nossas financas, mas como poderei ter cer- teza de que iras honrar o nosso trato? Que nao faras um jogo sujo? - homem gordo que era, sentou-se em suas al- mofadas ricamente ornadas com o dinheiro tomado de tantos. Eu, neste momento, quase nao acreditava na- quilo que ouvia... Inspirei profundamente e disse: - Eu nao teria necessidade de voltar para a minha patria, pois ocupava uma posicao privilegiada onde estava. Se voltei, foi para ficar menos tempo longe da minha fami- lia, senhor. Mas se o senhor se recusa a ganhar dinheiro facilmente, volto para aqueles que nao tem medo nem covardia de expor as suas fronteiras. Ele zangou-se, bateu na mesa e disse que aceitaria a mi- nha oferta, mas que cobraria um percentual alto. Nego- ciamos tal percentual por quase duas horas e parti paraa minha primeira expedic¢ao pela minha propria patria. Nesta viagem, fomos assaltados por um navio pirata, e me lembrarei sempre daquele dia... Hahaha... Pois o fei- tico virou contra o seu feiticeiro. Minha tripulagao estava em numero maior, meus ho- mens habilmente treinados com as suas armas, sendo que alguns deles eu precisava frear nos seus instintos mais violentos. Um navio pirata havia se colocado sobre nds, tendo como capitaio um homem chamado Fer- nando, homem ruivo, rude e de pele avermelhada. Além da cara brava, mancava. As vezes ainda rio dele, dizendo que foi ele quem criou a figura do pirata... Hahaha. Usando de minhas habilidades diplomaticas, entramos num acordo em troca da rendicdo dele e de sua escassa tripulacdo. Vi nele um grande negocio, que poderia me ajudar muito na minha busca. Entaéo, comecei a acres- centar mais corrupcao 4 minha vida. Convidei-o para um jantar com o meu imediato na minha nau. Servilhe uma farta refeicdo, pois era visivel que nao tinha uma ha tempos, e ofereci também alimentacao para os seus ho- mens. Ele, sempre muito objetivo ao falar, foi logo per- guntando o que iriamos negociar desta vez, pois nao era este o habito entre os homens do mar; geralmente os vencidos eram subjugados e ponto final. Fizemos um acordo de parceria entre nds, ele seria meu auxiliar em alto mar, pois Fernando nao queria se sub- meter a nenhuma hierarquia de governo, e eu sai lu- crando com o nosso negocio. A partir daquele dia, ele me acompanharia nas navegac6ées, sempre a partir de um determinado ponto no mar. Eu descarregaria uma boa parte dos espolios em alto mar, no barco dele, onde have- ria homens meus, e esta parte seria dividida entre nds. O restante eu levaria 4 patria. Jean soube do nosso acordo e também se envolveu no ne- gocio, forcosamente, retendo dez por cento dos lucros que vinham no barco. Isto, de certa forma, foi bom, pois precisavamos de alguém da nossa confianga ali, na con- feréncia da entrada. O suserano ficava com o que sobrava e ainda pagava um pouco para mim, e eu, para cada homem. No final de contas, ainda que pouco restasse, era muito bom para ele, pois sempre tinhamos muitos espdlios em nossas ex- pedicdes. Fernando repassava parte de seus saques em troca de protecdo e, assim, mantinhamos uma média com 0 nosso governante, afastando piratas de suas vis- tas. Meus trabalhos iam crescendo, assim como a minha tri- pulacdo e o numero de navios, e eu seguia me apaixo- nando vez ou outra. Mulheres casadas, solteiras e vitivas, mas aquela grande dama francesa sempre se encontrava comigo quando podia, ainda que nossos encontros co- mecassem a ficar cada vez mais escassos, 0 que me en- tristecia, pois ela me trazia alegria . Eu ja possuia sete naus, todas sob o meu comando e posse, e cada capitéo era meu subordinado. Minha fami- lia j4 vivia com conforto, eu cuidava de meus sobrinhos para que nao lhes faltasse nada e gozava de prestigio junto 4 sociedade local. Por mais dificil que seja de se acreditar, ninguém me via como ameaga ou praga, mas com bons olhos, pois eu empregava jovens rapazes, ho- mens invalidos e levava riqueza as suas familias. Minha me havia previsto esta época na minha vida e eu sempre me lembrava dela quando ia, oculto, nas horas da madrugada, com pequenas guirlandas de flores, ofe- rendar 4 Senhora do mar. Pedia protec4o para os meus homens, tentava me purificar de toda a carnificina e pe- dia perdao... Mas os meus bats ainda nao estavam cheios o suficiente para parar, era o que eu pensava. Chorava uma vida vazia, sem um amor de verdade, uma vida de ilusao e, as vezes, chegava a pensar em parar com tudo e, ali, na beira da praia, na escuridado, me remoia por toda a minha vida, pela crueldade, pelos saques, menti- ras e corrupcao. Pensava em como meu pai estaria de- cepcionado e chorava. Mas esse remorso desaparecia quando o sol comecava a brilhar e eu tinha mais um dia pela frente. Entre dias e noites, conheci uma linda dama chamada Rosana. Ela era o que se pode chamar de um encanto de muther, era educada e sabia vestir-se bem. Era uma mu- Iherja formada, mas infeliz com a vida que tinha. Apesar de possuir uma fortuna invejavel, lhe faltava o mesmo que a mim, algo maior no coracao. Nos envolvemos, obviamente. Sempre acreditei que en- contraria a minha satisfacdo amorosa nos bracos de al- guém. Quero esclarecer ao leitor que, ainda que tenha tido varios relacionamentos, para mim nao era um pas- satempo. Nao mesmo! Realmente procurava ama-las, pois isto era e é algo natural em mim. Nao me preocu- pava com o que diziam, queria preencher aquele vazio e elas se entregavam ao meu amor. Ainda que digam que é possivel amar uma mulher do mesmo modo que a outra, digo que nao é verdade, pois nenhuma é ou sera igual 4 outra; a intensidade, o tipo de amor e de sentimentos sdo diferentes, mas a nenhuma deixei de amar; alias, amo a todas até hoje. Sempre amei sem distincAo, sem exigéncias ou compro- missos, mas de acordo com o que cada uma podia me oferecer, pois minha busca nao cessava. E eu entendia que também era muito amado, pois sabia como cada uma queria que eu fosse, e assim o era. Voltando a Rosana, ela muito me ajudou, pois a conheci em um jantar da marinha, onde seu marido também operava, e onde eu desfrutava de certo respeito. Ainda que pensassem que eu era um ladrao, tratavam-me como realeza, pois toda aquela gente era corrupta, e eu pertencia 4quele mundo. Certo dia, fui tomado por uma surpresa. Rosana decla- rou-se apaixonada e queria deixar o marido para viver comigo. Ela era jovem e cheia de vida e eu nao poderia me expor tanto, justamente na marinha. Também nao poderia leva-la para a casa da minha familia e deixar a pobre 1a. Nao podia leva-la comigo a bordo, pois nao era permitido mulheres na embarcacdo, salvo no caso de al- gum resgate ou em saques, onde a elas eu exigia total se- guranga fisica e moral. Além do mais, eu nao amava Ro- sana a ponto de ser capaz de tal insanidade. Obviamente, ela endureceu o seu coracaéo comigo, fez ju- ras e promessas de vinganca e, ali, naquele momento, nado dei importancia, crendo ser apenas palavras ditas por um coracdo dolorido. Meses depois, soube que ela, gravida, havia fugido com um amigo. Ela queria viver aventuras, queria liberdade e assim o fez. Seguicom a minha vida normalmente, com os saques, a diversdo e os amigos. Vivia apenas momentos fugazes, nos quais a plenitude de sentimentos inexistia e, assim, passei a me reservar; nao procurava os meus familiares e ficava dias sem vé-los. Soube que alguns dos meus ir- maos haviam morrido sem que eu houvesse tomado co- nhecimento e aquilo me atingiu como uma pedra na agua, me deixando muito abalado. Dei provimentos para os meus sobrinhos e o que restou da minha familia. Fernando, sempre bom amigo, vendo minha tristeza, tentava me alegrar, mas eu pensava muito na minha vida e no rumo que estava dando a ela. - Para homem, vais ficar louco pensando o dia todo! Alias, nem sei em que pensas tanto! - disse ele com sua voz rouca, bebendo rum e sentando-se ao meu lado na cabine. Olheibem nos seus olhos e pousei meu braco nos ombros dele: - Vou me casar e constituir uma familia. - Hahaha! Estas louco? Para qué? Tens a mulher que qui- seres! E vais mesmo querer ficar em terra? Tu nado aguen- tarias isto mais do que dois meses! Nao mesmo, nAo tu, Miguel. Tu que amas o mar, amas fazer o que fazes. Essa nao, enlouqueceste de vez... - Entéo quem cuidara de nds quando ficarmos velhos? O barco? Tu que nao pensas, tu vives sem amor a vida, Fernando. - Nao mesmo, nao sabes o que falas, Miguel. Amo viver, amo tanto que nao quero ficar preso em terra com crian- cas gritando nos meus ouvidos. - Fernando, além das mocas que tu pagas, tens alguém que te espera em terra? Tens alguém que te ame? - Nao tenho isso que dizes, mas tenho tudo o que preciso aqui. — disse ele muito sério, fumando o seu charuto e me mostrando o barco. - Sera? — disse Jean, que até o momento so nos escutava. De repente, nés trés nos olhamos e vimos que tinhamos tudo o que o dinheiro poderia comprar, mas a felicidade do amor, de uma familia e de uma mulher nao tinhamos. Algo duradouro e estavel nao havia. Capitulo III Comecei, entao, a minha procura por uma esposa e, mo- déstia 4 parte, apareceram muitas candidatas, mas nao quis nenhuma delas. Passei seis meses visitando lugares, frequentando festas e homenagens. Neste periodo, Jean Ramiro ja havia encontrado uma boa moca, de familia nobre, rica, cheia de prendas e educada, como todas as mocas da nobreza da época. Fernando continuava fu- gindo, entao o acompanhei, certa noite, a uma casa que ficava em um porto na Europa, casa esta bem recomen- dada. Dirigimo-nos até o local e, quando la chegamos, vi um luxo que ainda nao tinha visto em nenhum lugar da- quele tipo. - Esse vai custar caro... Hahahal- disse Fernando. - Vamos ver o que nos aguarda. Eu pago para ver! Imedi- atamente quis conhecer o proprietario, para elogiar a administracgao do lugar, pois eu sempre via al- guma coisa nova para aprender nos negocios. Alguns instantes depois, eu via a mais sensual e bela mulher que havia visto na minha vida descer as es- cadas. Uma linda morena, cabelos longos, olhos claros, com uma voz sedutora e um corpo cheio de curvas, ves- tindo um belo vestido negro e trazendo um cravo entre os dedos. - Oras, 0 que o traz aqui, capitao? Ja estiveste em minha cidade varias vezes e nao quiseste conhecer as minhas meninas... - Senhora. - beijei-Ihe a mdo. - E um prazer estar aqui, em tao encantador lugar. Mas me desculpe a pergunta, como sabes sobre mim, se vim ou nao a sua cidade? - Eusei de tudo por aqui, capitao, e temos um amigo em comum, Ramiro. Ele vem aqui de vez em quando e me contou um pouco sobre as tuas aventuras. Disse-me ele que um dia te traria aqui. - Ah, sim, Ramiro. Ele é um diplomata, nao é mesmo? Continuamos nossa conversa noite adentro. Esta mulher tinha algo muito especial por detras da atitude durona e ao mesmo tempo extremamente sensual; eu sabia que ali havia uma mulher doce e meiga. Ela me ofereceu suas mocas e a todas neguei. - Oras capitao, ja lhe disse que ndo deito com os homens que aqui vém. Sou diferente, apenas coordeno este local de prazeres, no qual creio que devo fazer algumas melho- rias, pois nenhuma das minhas meninas lhe agradou. - Apenas a senhora me agradou, grande dama. Além de jovem e belissima, sabe comandar um grupo tao coeso assim... - Es um homem interessante, capitao, tens um olhar in- tenso e ao mesmo tempo muito observador. - Lidamos com pessoas semelhantes, senhora. Eles bus- cam alegrias e dinheiro, e tentam esquecer, através do seu oficio, as amarguras da vida, refugiandose no mar ou em um lugar de sonhos como este. Ela, neste momento, parou, me olhou bem nos olhos, os quais se encheram de lagrimas, bebeu um gole de sua be- bida doce e, apdés uma tragada em uma cigarrilha que eu havia lhe presenteado, disse com a voz mais rouca e se- dutora que eu havia ouvido: - Creio que sim, capitao, creio que sim. Conheces bem as mulheres? - N&o tanto quanto gostaria, mas pelo pouco que co- nheco, aprendia amar cada uma a seu modo. - Tantas assim? — soltou um sorriso. - Nao, apenas as necessarias para aprender a amar... Seguimos nossa conversa bebendo e rindo, e por causa dela nao sai daquele lugar por trés semanas. Em um quarto sofisticado, estavamos rodeados dos per- fumes extasiantes que havia naquele lugar e 0 sol come- cava a dar sinais de que iria romper. - Minha senhora, disse ao me ajoelhar, pegando suas m§os delicadas - Aceitas casar-te comigo? Sair daqui e ter uma familia, uma casa e tudo o que necessitares? - Hahaha! Oras, Miguel! Estas zombando de mim? - disse ela, enrolando-se nos lencdis e colocando os brincos que eu havia lhe dado. - Por que, Madalena? Por que dizes isto? Nao crés que posso amar-te? Nao te satisfaco, é isso? Ou nado queres te casar? - Miguel, anda, acorda, olha para mim! Sou uma comer- ciante do sexo, acaso vais conseguir viver com isso? E os teus amigos, 0 que vao dizer? - levantou-se bruscamente sem me olhar nos olhos. - Anda, me conta a verdade. Faz poucos dias que te co- nheci, mas sei que 0 que dizes nado é 0 que sentes. Conta- me o motivo de trabalhares aqui. Ela afastou-se até a janela para ver o sol e, apds um sus- piro, disse: - Desilusdes, Miguel, muitas! Fui expulsa de casa, mas tive a sorte de minha mae haver me dado um bom di- nheiro, apesar de nao ter ousado enfrentar o meu pai. Eu fazia parte de uma familia rica, em boa posicao social, entao quis meu corac4o se apaixonar por um dignatario, um homem casado. Eu 0 amei de verdade; nos encontra- vamos as escondidas, por razdes dbvias, até que fomos vistos juntos por um funcionario dele. Em cidades pe- quenas as noticias correm, e meus pais souberam na mesma hora. Entéo, como em uma cena de teatro, fui ar- rastada pelo chao por ele mesmo, o homem que eu amava; me arrastou até a praca publica dizendo menti- ras, que eu me oferecia a ele, um homem casado e pt- blico. Negou seu interesse e amor por mim e me ofendeu na frente daquela gente toda - ela comecou a deixar as lagrimas escorrerem. - Meu pai e minhas irmas viram tudo aquilo e fui proi- bida de voltar para casa. Apenas minha mde me enviou dinheiro escondido, através de uma menina. Entao, sem saber o que fazer, sai caminhando pela rua. Caminhei tanto que nem sabia mais onde estava. Um homem que passava me viu e me trouxe para essa cidade, deixando- me em um prostibulo. Nao ousei entrar, pois nado era o que queria para mim. Ao menos era 0 que eu pensava. Vi meninas, mulheres jovens e velhas trabalhando ali e sendo maltratadas e fiquei penalizada com o que via. Tive a ideia de tird-las de 14. Obvio que vais dizer que fui tao fria como gelo. Mas, pelo menos, eu daria condicdées de viverem melhor do que naquele lixo. Fui recolhendo algumas delas, apds alugar uma casa pequena, e fomos transformando o conceito de mulheres pagas por aqui. Hoje vés, tenho a casa mais luxuosa e as meninas mais lindas que existem; vestem-se como damas e algumas vivem como verdadeiras damas, pois aqui sao sustenta- das pelos seus amantes em alto luxo. - Certo dia, me apaixonei também, Miguel. Justo eu que dizia que jamais me apaixonaria, e me fizeram esta mesma proposta que me fizeste agora. - Etu nao quiseste ir? - Errado, capitao, eu fui. Deixei nosso trabalho aos cuida- dos de uma das minhas meninas e fui viver essa tal pai- x4o. O homem me deixou trancada por trés meses e ape- nas trazia noticias minhas 4s meninas. Estava aprisio- nada em uma casa, nao saia, nao via ninguém, pois ele nado queria que me vissem com ele, mas também nado queria que eu vivesse aqui. Consegui fugir, certo dia, e ele nao me importunou, pois ameacei contar todos os seus podres aos politicos e aos seus familiares. - Madalena, sabes que eu nao te faria mal. Apenas quero me casar contigo! Escuta o que te digo, quero me casar. - Miguel, por que um homem rico, bem apessoado, im- portante em seu reino iria escolher uma mulher como eu? - Importas-te mais com a opiniao dos outros do que eu. Nunca deixei de amar por causa da profissao ou posi¢do social. Sei que ambos podemos ser felizes. - Felizes? - Se nao me desejas, eu compreenderei. - Nao é isso! Tu és maravilhoso e quando estou contigo parece que vivo em um mundo que no existe! Teu jeito de viver e sentir tudo é intenso e eu tenho medo! - Vamos esquecer tudo o que passou, vamos velejar, vou te mostrar o mundo, te dar tudo o que pedires. Anda, diga, sim ou nao? - Preciso pensar. - Levo-te para a casa da minha familia e continuards cui- dando de longe do teu negocio. Te trarei sempre que pedires. - Deixa-me pensar, me sinto como uma jovenzinha as- sim, homem! - Pensa, eu espero o tempo que quiseres. O maximo que pode acontecer é a escolta marinha vir me buscar aqui... Hahaha... Depois de trés meses indo e vindo, pois nao poderia ficar tanto tempo em terra, ela voltava comigo para a minha casa, casada, como minha esposa. Montei a casa ao gosto dela, arranjamos empregados e pedi a ela que encon- trasse uma distracdo enquanto eu viajasse. Ela optou por aprender a pintar quadros e os pintava muito bem. Mas eu nao podia parar de viajar, comandava muitas naus e Madalena nao era mulher de ficar esperando e olhando para o mar, nado mesmo! Com tristeza e lagrimas nos olhos, disse-me que, por mais prazerosas fossem as minhas chegadas, ela nao conseguiria ficar 14, pois havia se acostumado 4 vida an- tiga, as festas, As bebidas, ao dinheiro e a toda aquela agi- tacdo das meninas. Disse que, mesmo me amando muito, estava triste e assim me faria também. Digo a vocés que, durante todo o tempo em que estive com esta mulher, fui o homem mais fiel que se poderia ser, pois a amava de verdade. E ali, vendo-a querendo ba- ter asas, deixei-a ir. Dei uma boa fortuna a ela, que recu- sou, pois disse ter recursos suficientes, mas, mesmo as- sim, fiz com que levasse ao menos uma parte. Disse-me ela que jamais teria outro homem e que estaria sempre me esperandoem sua casa, e eu pedi-lhe que nao fizesse isso, pois outro poderia ser muito feliz com ela, as- sim como eu fui. Pedi-lhe que nao voltasse para o seu ofi- cio, mas que usufruisse da sociedade local e coordenasse a sua casa de mulheres as ocultas. Ela partiu e eu sofria. Intensifiquei 0 gosto pela bebida, pois minha alma se entristecia dia apds dia. Neste periodo, a Franca se cercava de intrigas com outros paises e uma crise histérica iria nascer. A Igreja cada vez mais tomava o poder, surgiam novas formas de controle e repressdo e este periodo ficou registrado na histéria como uma grande mancha negra. Seguiam-se os dias e eu nao reagia. Fiquei prostrado por muito tempo, apenas bebendo e fumando. Mal saia da minha cabine, apenas pensava. Fernando, que havia so- frido um motim, veio em busca de ajuda e, me vendo em tal estado, tentou ajudar-me. Acabou perdendouma nau por causa da minha negligéncia, pois deveria télo encon- trado em alto mar. - Ah, nao! De novo, homem! Anda, levanta-te, Miguel! O que foi, endoideceste de vez? Olha o teu irmao mais novo, ele esta em teu barco, sob as tuas ordens. E£ isso o que queres ensinar a ele? - Como fui me esquecer, Fernando? - disse eu atordoado. - Os homens andam em siléncio por aqui, teu primeiro imediato anda sem saber como te ajudar. Coitados dos teus homens, que belo exemplo das ao teu irmAo! - Sai tu, Fernando. Nao quero sair daqui, os homens estado bem. Se tivessem problemas, Rodrigo ja teria vindo aqui. - Que pensas, Miguel? - disse ele, sentando na beira da cama. Ja te olhaste? Anda, olha-te no espelho. — atirou- me um espelho, ao qual nao dei atencao. - Quem sabe, entao, vamos festejar? Hahaha! - Festejar o que? - Avida! A vida, homem! Estas te abatendo por causa de uma mulher que te deixou, mas conheco centenas que te querem. - falou, sorrindo e levantandome. Viu por que digo que nao quero me casar? - Sei... Centenas, é? Hum... Acho que vou levantar, em respeito ao Rodrigo. Isso sim. Como fui me esquecer do meu irmdo? Ele precisa de exemplo, sempre foi o mais complicado em casa e ficou feliz quando 0 trouxe para ca. Tomara que tome jeito. - Ah! Assim é que se fala! Vamos beber! E tu vais aparar esta barba e este cabelo e tomar um bom banho antes que comece a feder! Ainda bem que nenhuma mocoila te viu nesse estado, pois perderias a tua reputacao! Hahaha! Fernando era eé até hoje um grande amigo eirm4o; alias, nesta batalha, me disse ele, perdeu as naus por causa de um motim, porque eu nao estava 14, mas a verdade é bem outra. O acontecimento deveu-se as fanfarrices dele em alto mar, mas isso contarei em outro momento. O fato é que os dias foram passando e eu adormeci aquele amor em meu peito; algumas vezes depois, passei para vé-la e vi que estava muito bem, e aquilo muito me tranquilizou. Alguns meses depois, tive uma grata surpresa. Surgiam boatos de uma nau comandada e tripulada por uma ca- pita, uma mulher. Nao acreditava totalmente nisso, pois os homens do mar tém uma imaginacao muito fértil. Mas também nao duvidava! Chegavam noticias de bar- cos que haviam sido saqueados, homens mortos e tripu- lagdes amotinando-se em razao dessa tal comandante. Até na minha patria, Jean ja nos alertava de naus do reino saqueadas por ela. Eu apenas ria, mas jamais ima- ginei que me depararia com ela. Capitulo IV Estavamos nés trés bebendo e conversando sobre assun- tos variados em um de nossos barcos: - Miguel, estamos achando que tu deves ir ao encontro dessa mulher. A nau dela porta uma bandeira com uma meia lua vermelha, espadas e estrelas. Vé se isso é uma bandeira...- disse Fernando dando risadas. - Meia lua vermelha, é? - Dizem os homens que voltaram do mar hoje pela ma- nha que sim, que elas ndo mostram uma unica parte do corpo, eles nem perceberam que eram mulheres. Onde ja se viu, como nao vao perceber? - disse Jean, batendo na perna. - Meia lua vermelha... - O qué? O que tem isso, Miguel? Parece um passaro repe- tindo tudo. - Nao seibem ao certo, mas me lembrei de coisas que mi- nha mae contava. - Miguel, eu aqui falando sério e tu divagando! - Jean, elas nao devem ser da Europa. - Por que? Como sabes? Sentou-se préximo a mim e me alcancou um copo de rum. - Bem, deixa ao tempo, se ela me encontrar, podes acredi- tar que nao perderei essa batalha. - Ah, sim! Teu suserano assim espera! E nao podemos perder homens assim, sabemos que uma guerra se avizi- nha e vai sobrar para nds, os despatriados de alto mar. - Isto é sério? Sobre guerra? - perguntou Fernando. - Mais sério do que pensas, amigo. Jé foram dadas as or- dens para recrutarmos mais homens de todas as idades. Inclusive tu, Fernando, queremos que tuas naus se man- tenham por perto. - Eisso agora? Uma guerra! E tua mulher e filho, o que vais fazer, Jean ? - Vou manda-los para longe, nao os quero aqui. - Esses padres, essa Igreja! Reis e rainhas se desentendem e nds que ficamos assim, a deriva. Sequer olham para o povo... - Calma, Miguel, tem muita negociacdo ainda para acon- tecer. Por aqueles dias, recebi uma incumbéncia de viagem e, como ja havia riscos, Fernando iria se encontrar comigo depois. Ja em alto mar, fomos atacados quando levava- mos as mercadorias de volta, durante o amanhecer. Um grupo fortemente armado, pessoas com roupas que pa- reciam ser de mouros, cobrindo quase todo o rosto, silen- ciosamente invadiram o meu barco. Realizou-se uma luta homem a homem; ainda que real- mente houvesse homens, a sua maioria era de mulheres. Nos estavamos em vantagem, mas quando percebi de quem se tratava, dei ordens para parar. - Homens, parem! Sao mulheres! O capitao, ou melhor a capita, surpreendeu-se. - Sim, e dai capitéo? Estas com medo? - gritou ela, na beira do seu navio. Pude vé-la, apesar do seu rosto coberto. Vestia um tipo de calgas largas, amarradas com pequenos véus brilhantes; na cintura, espadas cimitarras, e uma blusa que se enro- lavaem seu corpo cheio de curvas. Apenas seus olhos se via, que pareciam duas améndoas negras. - Senhora, se és a capita deste navio, ouga-me. O que pre- tendes realmente? - Oras capitéo, que pergunta tola! O que piratas fazem em alto mar? - disse, dando risadas coma sua tripulagao. Ela falava muito bem o espanhol. - Capitao, desculpe-me, mas que tipo de pergunta é essa? - falou o meu imediato. Eu, muito confuso com o que ocorria, vi que meus ho- mens, em maioria, estavam rendendo o barco dela e an- tes que déssemos fim, propus uma conversa, a qual ela somente aceitou se fosse em seu barco. Era uma nau realmente linda e luxuosa. Madeiras entalhadas e pecas em prata e ouro decoravam, com cenas de guerra, toda a sua sala. Tudo estava perfei- tamente arrumado, desde a popa até o convés, tudo muito bem feito; notava-se marcas e quebras, devido as batalhas, mas tudo bem consertado. Sentei-me numa cadeira ricamente decorada com almofadas de seda. - Senhora, sabes que estamos em maior numero e, daqui a poucos minutos, meu companheiro de batalhas estara aqui. Se eu der uma ordem agora mesmo, seu navio su- cumbe. Mas sinto que nao querias abordar-me para sa- que. Quero realmente saber o seu motivo de me abordar em alto mar, tendo em vista eu mesmo negociar tréguas em meu beneficio nesses mares. Eu ainda observava seu rosto coberto com um tecido ne- gro muito fino, que cobria também a sua cabeca. - Comandante, vejo que és um homem realmente inteli- gente, como ja me disseram. Nao queria saquear, mas propor um acordo. - Acordo, senhora? De que tipo? Estou sempre aberto a negociacées. - O senhor é um homem bem conhecido em terra e no mar, sei que tensa sua frota legal, por assim dizer, e a sua outra frota, e tens um certo controle e muito respeito no mar. - Sim, e 0 que tem isso? Bem, pelo que vejo, sabes mais a meu respeito do que penso, e isso é desleal, pois nao sei nada sobre a senhora. Nem mesmo 0 seu nome. Como é, mesmo? - Ainda ndo lhe disse - disse ela, levantando para pegar uma bebida. Aceita uma bebida? - Sim, pode ser, senhora... - Maria, Miguel. Podes me chamar de Maria. - Ah, sim. Maria, o que tens a propor? - Sim, ouca... - Me sentiria melhor, talvez, j4 que estamos prestes a fa- zer um acordo, em olhar para o rosto de quem tem algo a propor. Seu olhar dirigiu-se a mim forte e frio, com os olhos amendoados mais encantadores daquele mar, e pensei que ela nao revelaria o seu rosto. Mas, de pronto, em um gesto rapido, tirou aquele véu, e os olhos combinavam perfeitamente com aquele rosto esculpido. Creio que devo ter feito uma expresso abismada, pois ela pds-se a rir. - Podemos continuar a nossa conversa, capitao? - Claro, senhora, digo, Maria. Mas prefiro que me chame de Miguel. - Prefiro sem muitas intimidades, capitao. Ja viesse olhar muitas vezes por ai. - disse, rindo, entre um gole e outro de gim. - Creio que sim, senhora, pois és realmente encantadora. Mas, como hoje sua posicao nao é de relacionamentos amorosos, quero ouvir o que tens a me dizer. - Quero lhe fazer a mesma proposta de acordo que tens com Dom Fernando. - Como é? Dom Fernando? - espantei-me muito com o que ouvia. Fernando agora é Dom? Hahaha! Ela ficou me olhando seriamente. - Como conheceste Fernando? Quando? Bem, parece que ele anda fazendo amizades por ai. - Acalme-se, capitao. Tem coisa de um ou dois dias que 0 conheci, e foi ele quem me disse como o encontraria e que ele viria ao seu encontro. - Ainda bem que confio nele. E o que me ofereces, se- nhora? Pois ja tenho inimeras parcerias e, se julgo certo pela sua necessidade, deve ser muito importante para a senhora. - Ofereco-lhe dinheiro, muito dinheiro. - Isso euja tenho, - Nao acredito que tenhas o suficiente. - Senhora, pelo que ja aprendi na vida, nunca sera di- nheiro suficiente enquanto o nosso coracdo assim o de- sejar. Diga~-me a verdade, o que um bando de mulheres, devo dizer que verdadeiramente armadas, e uma capita linda como és, fazem na pirataria? Por qué? - Hahaha! Esse assunto e os seus motivos cabem a mim, capitao, e nao entram na negociacao. - Sei disso, mas se queres um acordo é porque precisas muito, a julgar que ja foste atras de Fernando. Também procuraste outros participantes da minha frota ou ami- gos? - Nao, Miguel, fui diretamente falar com Fernando. - Estas correndo muitos perigos, senhora? - Vejo que, talvez,as mulheres com quem lidas nao sejam como nés. Hahaha! Devem ser mocas delicadas, que le- vam a vida dentro de um lar, sem muitas aventuras e ale- grias como as que o mar nos proporciona. O que é o mar e esta vida, para ti, D. Miguel? Ali, naquele momento, vi que ela era uma mulher inco- mum. Sabia exatamente como me sentia, uma mulher firme e decidida sobre o seu modo de viver. - Bem, o mar éa minha vida, a minha casa, a minha fa- milia. Do mar pego tudo e a ele tudo dou. Alias, essa frase é dita por mim até hoje. Hahaha! - Sim, exato!- disse, batendo na mesa. D. Miguel, nao sou uma menininha com bonecas, as bonecas deste navio sao de verdade. Sou filha de piratas e ciganos, isto tudo corre em meu sangue; vivo pelo mar, pela liberdade e pela intensidade da vida que aqui temos e que em lugar nenhum deste mundo teremos igual. Pena que, no teu caso, tens de estar preso as regras do teu reinante. — disse, desdenhando. - Sei... Senhora, apesar de ver e sentir 0 seu profundo amor pelo mar e pela vida que temos, sinto, ou melhor, pressinto que, por alguma razdo que ainda desconheco, estas necessitada de protecao, pois disseste lindas pala- vras, mas nada de concreto sobre o motivo da necessi- dade de eu aceitar um acordo coma senhora. Um longo siléncio se fez. Ela dirigiu-se 4 janela, tocou nos cabelos e, apds um suspiro, baixou a cabega. - Sim. Isto também é verdade. Alguns dias atras fizemos um saque a uma nau, houve perda de homens e mulhe- res e agora soube que esta nau esta nos procurando. Levantei-me, fui para mais perto dela, puxei outra ca- deira e pude sentir o seu perfume doce e suave. Alguma coisa acontecia comigo alie eu nao impunha resisténcia. - Como assim, vos procurando? Acaso nao deste fim ao navio e & tripulacdo? Que tipo de pirata és tu? - Nao, senhor. Nao consegui concluir o trabalho, pois quando atacamos nao reconhecio navio. Estavamos em noite fechada e eles sem bandeira. Como ela ainda nao havia movido um dedo da janela, ajeitei-me mais perto, ja interessado na histdria, pois isso nao era comum, um saque abandonado. - Ede quem era esse navio, senhora? Imediatamente colocou as m4o no rosto, suspirou nova- mente e virou-se. -E de um grande amor da minha vida, com quem eu to- lamente agi como uma crianga imatura, pois ele trocou- me por uma mulher de posses, uma dessas ricas quais- quer, sem amor a vida e iludida pela grandeza desta soci- edade imunda. Ainda sinto muito ddio por ele, mas ja- mais o machucaria, nao intencionalmente. - Senhora, sente-se, fique calma. Talvez ele queira con- versar. - Nao, nao quer. - disse ela, indo pegar mais uma dose de bebida para nés. - Ecomo sabes? -Na verdade, Miguel, eu o denunciei como pirata; claro que foi gente minha em terra que fez isso. Foiem um mo- mento de ddio e citimes. - Hahaha! E ainda dizes que nao queres o mal dele? Creio que seria mil vezes pior ter-te como inimiga! - Ah, por favor, capitao! Vais dizer que nunca cometeste uma imprudéncia por citimes? Isso foi ha trés anos e nada aconteceu a ele nem a ela, pois ela deu os seus jeitos e ainda continuam juntos. Mas jamais esperaria encon- tra-lo em alto-mar, pois ele nunca viajava por aqui, sendo de outra terra. E daqueles que nao podem ir longe, se é que me compreende. Bem, vamos mudar de assunto, o que te parece a minha proposta? - Nao sei. Nao vejo vantagens para mim e para os meus homens. - Como assim, nao vés vantagem? Estas doido? - Senhora, veja bem. Como vou explicar aos meus ho- mens que teremos de cuidar de vossa nau e teremos mais uma para dividir nossos espdlios? - Estas fazendo pouco caso da minha tripulacao, senhor. Nao preciso de vigilancia, apenas quero andar em grupo; tua frota é muito bem organizada, alias, nao sei como o teu rei fecha os olhos assim. E nado quero dividir o teu lu- cro, mas somente os espdlios de quando estivermos jun- tos. Tanto somaremos quanto dividiremos. E duvido que tenhas ouvido falar mal da minha tripulacao, pois nao perdemos em nada para os navios comandados por ho- mens. E ja deves saber, também, que néo somos as uni- cas neste mat... Nossa conversa se estendeu por mais de uma hora, cul- minando em um acordo. Ao subir para 0 convés, ela co- briu novamente o seu rosto e, ainda que o véu escon- desse toda aquela beleza exética, ainda assim era linda. Fui até o timaéo acompanhado por ela e pelos nossos imediatos. - Homens do Zaragoza, eu e a capita convidada entramos em um acordo. Comunico-lhes que faremos, a partir de agora, parte da mesma confraria. Soaram gritos e aplausos. Penso, até hoje, que os meus homens acharam que iriam ter diversao... - Esta nau e os subordinados da capita deverao ser trata- dos sem diferencas de sexo e respeitados como homens, pois assim elas sao quando estado no mar. Devem ser res- peitados em mare em terra como vossos companheiros. E aquele que ousar desrespeitar as suas companheiras e as minhas ordens, cem chibatadas recebera, além de ser deixado a deriva para morrer. Nossas regras incluiam quarenta chibatadas e a expul- sdo do barco em caso de desrespeito sério as regras, mas neste caso, eu precisava de muita ordem. Enquanto fa- lava, pois isso eu nao havia combinado com Maria, ela me olhava com uma expressdo de admiracdo. Era uma mulher forte e determinada, mas também envolvente e encantadora. Velejamos por trés meses juntos e, a cada vinte ou trinta dias, voltavamos em terra para que eu pudesse cumprir as minhas tarefas. Durante este periodo, nao tive ne- nhum tipo de problema entre os meus homens ou os de Fernando com a tripulacao dela, pois se houve algum en- volvimento, nao ficamos sabendo. Aprendi muitas coisas com Maria. Ela era eximia negoci- ante, tinha um otimo humor e participava ativamente nos ataques. Fernando conseguiu criar roupas mais masculinas para elas, o que obviamente nao gostaram, mas usavam a contragosto. Enquanto isso, Jean Ramiro ficava cada vez mais rico, mas como a governanca fechava os olhos, tudo ia bem. Jean, nesta época ja tinha o seu segundo filho. Fernando, que gostou muito da nossa parceria, continu- ava bem com o seu trabalho; vez ou outra aprontava e quase perdia tudo por causa de mulheres ou saques de- savisados. Recebi, em seguida, uma missao para ir ao Oriente bus- car regalias exdticas para uma festa e ali desenvolveria- mos, pela primeira vez, o que seria um habito dali em di- ante: viajariamos os trés juntos. Meu envolvimento com Maria foi crescendo a cada dia, com um pér-do-sol atras do outro, pois era nessa horas que podiamos sentar, beber e conversar, livres das nossas obrigacées. Estava eu na popa, olhando o céu estrelado, quando vi que Maria subira a bordo; vestia um longo vestido, atado por seus lencos, cruzando do ombro até a cintura. Seus cabelos estavam soltos e sem véu, com um perfume ine- briante. Chegou sorrindo e, logo atras, Fernando e Ro- drigo, meu irméo, que vinha de bracos dados com uma mulher que ele havia conhecido. -Que bela noite, nao, senhores? Senhora? - beijei leve- mente a sua mao. - Quanta cortesia, Miguel! - Estas encantadoramente bela hoje. - Repito a tiestas palavras. - Bem, se ja terminaram com essas palavras doces e gen- tis e, se ndo se importarem, gostaria muito de ir jantar. - Muito bem, Fernando. Vamos indo, ja que estas ai sozi- nho. Viste, homem, nao te avisei ha muito? - Ah, nao! La vens novamente com essa tua conversa, Miguel. - Que conversa? Posso saber, rapazes? - indagou Maria. Apos conduzir todos 4 cabine para jantarmos, relembrei da nossa conversa e, entre risos, Maria perguntou: - Mas, afinal, capitao, por que estas sozinho ainda? - Quem disse que estou sozinho? — e ofereci minha taca a ela. Nossa conversa se estendeu até tarde, quase até ao ama- nhecer. Fomos dia a dia nos conhecendo, ela era habili- dosa como capita eos homens ea sua tripulacdo a respei- tavam; além de ser boa comandante, era também gene- rosa no soldo de cada um. Mulher forte e de sentimentos nobres, as vezes nao en- tendia como ela podia estar alicomigo em alto mar, lugar cheio de perigos, mas ela vivia e respirava aquela agua, 0 vento e tudo o mais que envolvia o seu trabalho. Tinha fé, rezava a seu modo, acreditava em outras dimensées da vida e muitas vezes se tornava muito dual; nao hesitava em matar um homem, se necessario, mas, as vezes, se condoia dos mesmos ou dos animais, aos quais nunca a vimachucar. O amor que vivi com Maria foi intenso e puro ao mesmo tempo. Ardia como um fogo em meu peito e nossa liga- cdo se estreitava cada vez mais; misturamos nossas vi- das em uma s6, pois ela era tudo 0 que eu precisava e queria, e eu a ela. Nos tornamos realmente felizes. Viaja- vamos, ganhavamos muito, perdiamos, riamos e chora- vamos, mas tudo era bom a nossa maneira. Certa noite, estava atracado e me sentei 4 beiramar para refletir um pouco, pois sim, amigos, eu fazia isso de tem- pos em tempos. Ali, sentado na areia, comeceia ouvir vo- zes conhecidas e, depois do murmurio, comecaram os cantos. Sim, eu estava ali ouvindo as forcas da Agua no- vamente! Depois de tantos anos, quase nao acreditei. Varias vozes falavam comigo ao mesmo tempo fazendo perguntas diversas, mas desta vez eu nao as via. - Ei, acorda! O que fazes da tua vida? - Nao era assim que as coisas deveriam set... - Quando vais voltar? As perguntas se sucediam. Levantei, fui até a agua e la me ajoelhei: -Olhem, mogas, quer dizer, sereias, Senhora do mar, eu nao sei o que esta acontecendo, nem o que dizem, nao entendo. - Ah, Miguel! Entende, sim. - disse um homem as minhas costas. Girei o meu corpo e 1a estava ele, como ainda me lem- brava de quando era crianca. - Senhor... Pai Antonio? -Sim, meu filho. - disse ele, com uma voz consternada, e caminhou até mim. - Como vai, meu filho? - Achava eu que bem, mas com a sua visita, nao sei... - Quando lhe vi pela ultima vez, lhe disse para ter uma vida sossegada, mas parece que nao foi isso que esco- lheste. - Realmente, parece que nao. Mas faz tanto tempo que nao os ouvia, nem os via, apenas algumas vezes tive a impressdo de vé-las de relance. - N&o eram relances, nao. Suas irmas estavam sempre a te olhar, te assistir de longe. - Minhas irm4s nao! Eu estou falando das sereias, penso que as vi varias vezes. - Sim, suas irmas. - Irmas? Como assim? Nao posso compreender. - Filho, se nascemos a partir de um mesmo elemento, os que foram feitos neste mesmo elemento nao so nossos irmAos nesse elemento? - Sua conversa é confusa. - Pense comigo, Miguel. Os irm4os que tens na Terra, por que os chama de irmaos? - Porque somos filhos do mesmo paie da mesma mae. - Ese fossem filhos apenas da mesma mie, deixariam de ser irmaos? - Nao, seriam igualmente meus irmaos. - Tu, Miguel, és filho do mar e elas também 0 sao. - Entendo, mas nao sei onde queres chegar. - Ouca, dias dificeis viraéo. Decida, meu filho, que vida vais tomar daqui para a frente. Mude a sua vida, pegue a sua mulher e va viver em paz. Ainda da tempo de reparar um pouco essa sua vida errante. - Sim, senhor... Fiz muitas coisas erradas, nao foi? Come- cei a falar como um confessor, lembrar em minha mente

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