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Sécrates: Etica, Educagao, Virtude e Obediéncia 2.1 Filosofia socratica e testemunho ético A respeito de Sécrates (469-399 a.C.) e de sua contribuigao filoséfica muito 4 se discutiu.' Sua vivéncia foi sua obra, e seu testemunho, grande contribuicado ética e filos6fica.* Sécrates conviveu com o povo ateniense do século V a.C. (sé- culo de Péricles), em plena gloria da civilizagao grega na Antigiiidade, e nas pra- ¢as piiblicas (agora) e no solo da cidade (pélis) inscreveu seu método e suas preo- cupagées. E, sem dtivida alguma, divisor de 4guas para a filosofia antiga, sobre- tudo pelo fato de situar seu campo de especulagdes nao na cosmovisao das coisas e da natureza, mas na natureza humana e em suas implicages ético-sociais. E, de fato, interagindo e reagindo ao movimento dos sofistas que faz de seu pensa- mento um marco na histéria da ética. Erigiu uma linha de pensamento auténoma e origindria que se voltasse contra o despotismo das palavras que se havia instau- rado nesse periodo da histéria grega, sobretudo por forca da atuacao dos sofis- tas. Seu método maiéutico, baseado na ironia e no didlogo, possui como finali- dade a parturicao de idéias, e como inspiragao a parturicao da vida, uma vez que 1. Para uma acabada nogao da amplitude do problema socratico, consulte-se a obra de Vasco Magalhaes-Vilhena, O problema de Sécrates: o Sécrates histérico e 0 Sécrates de Platao. Lis- boa: Calouste Gulbeckian, 1984. 2, Para maiores detalhes a respeito da vida de Sécrates e de suas perambulacGes, deve-se consul- tar a obra de René Kraus, Sécrates. Rio de Janeiro: Vecchi, 1960. SOCRATES: ETICA, EDUCAGAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA 65 Fenareta, sua mae, era parteira. Isso porque todo erro é fruto da ignorncia, e toda virtude é conhecimento; efetuar a parturigio das idéias é tarefa primordial do fi- lésofo, a fim de despertar nas almas o conhecimento. Dai a importancia de reco- nhecer que a maior luta humana deve ser pela educaciio (paidéia), e que a maior das virtudes (areté) é a de saber que nada se sabe.’ A abnegacao pela causa da educaciio das almas, bem como pelo bem da ci- dade,? representou, como testemunho de vida, sendo o maior, ao menos um dos maiores exemplos hist6ricos de autoconfianca e de certeza do que dizia: conde- nado a beber cicuta pelo tribunal ateniense, nao se furtou a sentenga e curvou-se ante o desvario decisério dos homens de seu tempo. A acusacio que pendia sobre sua cabeca era a de que estaria corrompendo a juventude e cultuando outros deuses e, nao obstante ter-se dedicado a vida inteira a pregar o contrério disso, resignou-se A injustica de seus acusadores, em nome do respeito a lei que a todos regia em Atenas. Isso porque a obediéncia a lei era para esse pensador o limite entre a civi- lizag&o e a barbarie;* onde residem as idéias de ordem e coeséo, pode-se dizer garantida a existéncia e manutengo do corpo social. Isso haveria de influenciar profundamente o pensamento de seu discipulo, Platdo, em seu afastamento da politica e em sua decepgdo com a justica humana. Baseando-se nessas nogées primordiais, pode-se discutir qual o significado da justica e da ética para Sécrates. 2.2 Etica socratica O pensamento socratico é profundamente ético. Reveste-se, em todas as suas latitudes, de preocupagées ético-sociais, envolvendo-se em seu método maiéutico todo tipo de especulacao tematica impassivel de solucdo (0 que é a justica?; 0 que &0 bem?; o que é a coragem?...), 0 que aparece retratado nos didlogos platéni- cos, sobretudo na Apologia de Sécrates (Plato), uma das tinicas fontes de refe- 1. “De forma que eu, em nome do ordculo, indaguei a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de minha ignordncia, ou ser ambas as. coisas, como eles, e respondi a mim e ao ordculo que convinha continuar tal qual eu era” (Plato, Apologia de Sécrates, trad., 1999, p. 73). 2. “El cuidado de si mismo es, indisolublemente, cuidado de la ciudad y los demés, como lo ve- mos en el ejemplo del propio Sécrates, cuya razén de vivir es ocuparse de los demas” (Hadot, Que és la filosofia antigua?, 1998, p. 50). 3. No Criton, didlogo entre os primeiros de Plato, hd uma indicagao da importéncia que ele da as leis como limite a barbarie. Se os homens erram ao aplicé-las ~ como fizeram com Sécrates quando o condenaram -, nem por isso elas devem ser quebradas, dado o poder de obediéncia que tém e sua validez para todos. A lei estende seu manto igualando os homens como cida- dios, apesar de preservar a diferenca entre eles, de tal modo que, na igualdade e na diferenca, possa transparecer um todo harménico, logo justo, porque pleno de limites necessérios 4 con- vivéncia” (Andrade, Platdo: 0 cosmo, o homem e a cidade, 1993, p. 206-207). 86 PANORAMA HISTORICO réncia escrita a respeito da filosofia socratica, ao lado dos Ditos e feitos memord- veis de Sécrates (Xenofonte), da Apologia de Sécrates (Xenofonte) e da peca tea- tral As nuvens (Xendcrates). O que se conhece de Sécrates é, portanto, mais fruto de leitura dos didlogos platénicos que de uma obra por ele escrita. Desses didlo- gOS, por vezes, extraem-se muito menos respostas e muito mais perguntas, e, as- sim mesmo, seu valor é inestimavel para a histéria da filosofia, sobretudo tendo-se em vista que com Sécrates a filosofia converteu-se num éthos. Isso porque a filosofia socratica possui um método, e esse método faz o fild- sofo, como homem, radicar-se em meio aos homens, em meio a cidade (pélis). E do convivio, da moralidade, dos habitos e praticas coletivas, das atitudes do le- gislador, da linguagem pottica... que surgem os temas da filosofia socratica. Pode-se mesmo dizer que o modo de vida socratico e a filosofia socrética nao se separam. Pelo contrario, a filosofia socratica reafirma-se pelo exemplo de vida de Sécrates; na mesma medida, a doutrina ética e o ensino ético de Sécrates retiram-se de seu testemunho de vida, corporificado que esta em seus atos e palavras.' Sécrates, em verdade, pode ser dito o iniciador da filosofia moral e o inspi- rador de toda uma corrente de pensamento. Em verdade, sua contribuigéo surge como uma forma de antagonismo: (a) aos sofistas, pensadores da verve vocabular e da doutrina do relativismo das coisas, que gozavam de alta reputaco nos meios intelectuais atenienses, cobrando pagamento por seus ensinos daqueles que acorriam para suas palestras, e que, em fungiio disso, eram chamados de prosti- tuidos por Sécrates;? (b) A cosmologia filosdfica dos pré-socraticos, que especu- lavam a respeito da natureza, dos astros, das estrelas, da origem do universo, do quinto elemento, da constitui¢ao ultima das coisas.? Assim, ha que se dizer que Socrates é referéncia primordial na filosofia grega (filosofia pré-socrdtica/filoso- fia socratica/ filosofia pés-socratica), exatamente pela ruptura que provocou com a tradic&o precedente e com os ensinos predominantes de seu tempo. O conhecimento, para Sécrates, reside no préprio interior do homem. Conhe- cendo-se a si mesmo, pode-se conhecer melhor o mundo (gnotite autds, grego; nosce 1. “Quanto a justica, longe de ocultar sua opinido, manifestava-a por meio de atos: no particular de sua casa era todo retidao e afeto; como cidadao, todo obediéncia aos magistrados em tudo 0 que exige a lei, quer na cidade, quer nos exércitos, onde o guiava seu espirito de disciplina. Ao presidir, na qualidade de epistata, os congressos populares, impediu o povo de votar contra as leis e, nelas amparado, resistiu a firia do populacho que nenhum outro teria coragem de enfrentar, Quando os Trinta Ihe davam ordens contrérias as leis, ndo as acatava. Assim. ao Ihe proibirem de palestrar com os jovens e o encarregarem, juntamente com outros cidadaos, de conduzir um homem que pretendiam assassinar, s6 ele se recusou a obedecer, porque tais or- dens eram ilegais” (Xenofonte. Ditos e feitos memordveis de Sécrates. In: Sécrates, livro Il, cap. 4, p. 243 [Os pensadores]). 2. “O mesmo sucede em relagio & sabedoria: os que com ela traficam com quem lha queira pagar se chamam sofistas ou prostituidos” (Xenofonte. Op. cit. p. 113). 3. Por isso ndo se pode creditar fé na figura criada por Xenécrates em As nuvens para ilustrar Socrates ensinando a seus discipulos de cima de um cesto suspenso no ar, qual se se tratasse de ‘um pré-socratico, mais preocupado com as coisas do céu do que com as coisas da terra. SOCRATES: {TICA, EDUCAGAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA 2 te ipsum, latim). A isso se adiciona o fato de Sécrates ter vislumbrado na lingua- gem um grande manancial de dtividas que gerou o fulcro da necessidade de de- puracio Iégico-semAntica do que se diz, o que era exercitado em praca publica, com discipulos ou terceiros, por meio da parturigao discursiva das idéias.! Assim, é que, adotando essa metodologia de pensamento, granjeou intime- ros discipulos, assim como um sem-ntimero de inimigos, que mais tarde have- riam de reunir forcas para sustentar sua condenagao popular. De qualquer forma, porém, marcou sua presenca nas ruas de Atenas pelo contetido de suas ligdes, fla- grantemente opostas a ordem prevalecente de idéias nos meios intelectuais de seu tempo. Isso porque, para Sécrates, o respeito as normas vigentes, a vinculacao do fildsofo com a busca da verdade, o engajamento do cidadao nos interesses da soci dade, entre outros ensinamentos, aparecem como postulados perenes de seu pen- samento, que haveriam de golpear fatalmente o relativismo e lancar os gérmens de novos sistemas filoséficos, como 0 platénico, o aristotélico e 0 estdico.? Assim é que, em poucas palavras, o ensinamento ético de Sécrates reside no conhecimento e na felicidade. Em primeiro lugar, ética significa conhecimento, tendo-se em vista que, ao praticar o mal, cré-se praticar algo que leve & felicida- de, e, normalmente, esse jufzo é falseado por impressées e aparéncias puramente externas.® Para saber julgar acerca do bem e do mal, é necessario conhecimento, este sim verdadeira sabedoria e discernimento. O conhece-te a ti mesmo é esse mandamento que inscreve como necessaria a gnose interior para a construcdo de uma ética sdlida. Em segundo lugar, a felicidade, a busca de toda a ética, para Sécrates, pouco tem a ver com a posse de bens materiais ou com o conforto e a boa situagio entre os homens; tem ela a ver com a semelhanca com o que € valo- rizado pelos deuses, pois parecem estes ser os mais beatos dos seres.* O cultivo da verdadeira virtude, consistente no controle efetivo das paixdes e na conducao das forgas humanas para a realizagao do saber, é 0 que conduz o homem a felici- dade. Zeller, Edouard. La philosophie des grecs considérée dans son dévellopement, Paris, 1884. Tovar. Vida de Sécrates, 1953, p. 319. Hadot, Que és la filosofia antigua?, 1998, p. 46-47. Da discussao de Sécrates diante do sofista Antifao, relativa a suas posses e seu modo de trajar- se e conduzir, extrai-se que a felicidade nao esté nas posses materiais: “Pareces, Antif’o, colo- car a felicidade nas delicias e na magnificéncia, De mim, penso que de nada necessita a divin- dade. Que quanto menos necessidades se tenha, mais nos aproximamos dela. E como a divin- dade € a propria perfeigao, quem mais se aproximar da divindade mais perto estard da perfei- 40” (Xenofonte, Op. cit. p. 113). 5. “A verdadeira virtude é uma purificagdo de todas as paixées. O comedimento, a justica, a forca ea propria sabedoria sao purificagdes, e é muito claro que aqueles que estabeleceram as ini- ciagdes misticas nao eram personagens despreziveis, mas sim grandes génios que, desde os primérdios, desejaram nos fazer compreender sob esses enigmas que aquele que for ao Hades sem ser iniciado e purificado ser jogado na lama, e que aquele que chegar apés as expiacdes, purificado e iniciado, serd recebido entre os deuses” (Platdo, Fédon, trad., 1999, p. 131). ene = PANORAMA HISTORICO 2.3. Primado da ética do coletivo sobre a ética do individual A ética socrtica impde respeito, seja por sua logicidade, seja por seu cara- ter. E certo que, se Sécrates desejasse, poderia ter fugido a aplicagao da pena de morte que lhe havia sido imposta, e os discipulos a seu lado estavam para auxilid-lo e acoberté-lo. No entanto, a ética do respeito as leis, e, portanto, a coletividade, nao permitia que assim agisse. E também, se durante toda a sua vida distinguiu- se por seguir os conselhos dos deuses, nao seria no momento de sua morte que os desobedeceria, negando seu destino de uniao com a cidade (pélis) e com a cons- tituicdio (politefa). De fato, é o que afirma Xenécrates: “A ela renunciando demonstrou todo o vigor de sua alma, cobrindo-se de gloria tanto pela verdade, desprendimento e justica de sua defesa, quan- to pela serenidade e coragem com que recebeu a sentenga de morte” (Xendécrates, Ditos e feitos memordveis de Sécrates. [Os pensadores] In: Socrates, trad. Mirtes Coscodai, livro II, cap. 8, p. 265). Socrates, de fato, dedicou-se a um valor absoluto, e por ele lutou até o pon- to de renunciar a prépria vida.’ E isso porque a ética socratica nao se aferra so- mente & lei e ao respeito dos deveres humanos em si e por si. Transcende a isso tudo: inscreve-se como uma ética que se atrela ao porvir (post mortem). A filoso- fia socrdtica, no se omita essa importante contribuicao de seu pensamento, pre- para para o bem viver apés a morte. Isso significa dizer que nem toda virtude proclamada como tal perante os homens hd de ser considerada virtude perante os deuses. Isso ainda significa dizer que a verdade, a virtude e a justiga devem ser buscadas com vista em um fim maior, o bem viver post mortem. E nao ha outra raziio pela qual se deseje filosofar sendo a de preparar-se para a morte.” Para Sdcrates, a morte representa apenas uma passagem, uma emigracdo, e a continuidade hd de ensinar quais valores sao acertados, quais so erréneos.* Se 1. “En efecto, podemos decir que un valor es absoluto para un hombre cuando esta dispuesto a morir por él. Tal es precisamente la actitud de Socrates cunado se trata de ‘lo que es mejor’, es decir de la justicia, del deber, de la pureza moral” (Hadot, Que és la filosofia antigua?, 1998, p. 47). 2. “Esquece-o—respondeu Sécrates. — £ chegado o momento que eu exponha a vés, que sois meus juizes, as razdes que me convencem de que um homem, que haja se dedicado ao longo de toda sua existéncia a filosofia, deve morrer trangiiilo e com a esperanga de que usufruira, ao deixar esta vida, infinitos bens. Procurarei dar-vos provas disso, 6 Simias e Gebes. Os homens nao sabem. que os verdadeiros filésofos trabalham durante toda sua vida na preparacao de sua morte e para estar mortos; por ser assim, seria ridiculo que, depois de ter perseguido este tinico fim, sem descanso, recuassem e tremessem diante da morte” (Platéo, Fédon, trad., 1999, p. 124). 3. “Fagamos mais esta reflexao: ha grande esperanca de que isto seja um bem. Morrer é uma des- tas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e nao sente nenhuma sensagéo de coisa nenhuma; ou, ento, como se costuma dizer, trata-se duma mudanga, uma emigracdo da alma, do lugar SOCRATES: ETICA, EDUCAGAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA 69 a vida é uma passagem, é porque a morte nao interrompe o fluxo das almas, que preexistem e subsistem ao corpo.! Nao é a efémera vida o comeco e o fim de tudo, mas apenas parte de um trajeto.? Ao homem € licito especular a respeito, porém a certeza do que serd somente os deuses possuem.’ Veja-se como se expressa, a esse respeito, Fédot “—-Naquele dia, minhas impress6es foram de fato estranhas, pois, em vez de condoer-me da morte de um amigo a quem eu estimava tanto, tive a im- pressiio de que seu destino fosse ditoso, porque eu me encontrava junto a um homem feliz, amigo Equécrates, feliz por seu comportamento, pelas palavras que proferia e pela coragem e serenidade com que faleceu. Conseguiu até mesmo convencer-me de que nao iria para o Hades sem alguma ajuda divi- na, mas que, 14 embaixo, desfrutaria uma felicidade que nunca ninguém desfrutara. Por este motivo nao senti pesar algum, como seria normal num semelhante, mas também nio experimentei a satisfagdo que experimentava quando conversdvamos sobre filosofia, jA que o assunto daquela conversa- cdo tinha tal cardter. A consciéncia de que aquele homem estava para mor- rer causava em mim uma extraordindria mistura de pesar e satisfacdo, e 0 mesmo ocorria com todos que ali se encontravam. Todos nds riamos e cho- ravamos, em especial modo um de nés, Apolodoro, que, com certeza, tu co- nheces” (Platao, Fédon, trad., 1999, p. 118). Acerteza socratica quanto ao porvir é a mesma que 0 movimentava para agir de acordo com a lei (némos). Sécrates esta plenamente cénscio de que a ndmos é fruto do artificio humano, e nao da natureza.‘ E mesmo assim ensina a obedién- cia irrestrita. deste mundo para outro lugar. Se ndo ha nenhuma sensago, se é como um sono em que 0 adormecido nada vé nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!” (Plato, Apologia de Sécrates, trad., 1999, p. 95). “Renascer, se existe um regresso da morte a vida ~ disse Sécrates -, é realizar esse regresso. Por este motivo nos persuadiremos de que os vivos nascem dos mortos, como estes daqueles, pro- va incontestavel de que as almas dos mortos existem em algum lugar, de que retornam a vida” @Platdo, Fédon, trad., 1999, p. 134). “Entdo, preciso satisfazer-vos — respondeu Sécrates ~ e procurar fazer com que esta defesa seja mais eficiente entre nds do que 0 foi aquela na frente dos juizes. Em verdade, Simias, e tu, Cebes, se eu nao cresse encontrar na outra vida deuses bons e sabios e homens melhores que os da- ui, seria inconcebivel nao lamentar morrer. Sabei, no entanto, que espero juntar-me a homens jJustos e deuses muito bons. Bis por que no me aflijo com a minha morte; morrerei tendo a esperanca de que existe alguma coisa depois desta vida e de que, de acordo com a antiga tradi- cao, os bons sero mais bem tratados que os maus” (Platdo, Fédon, trad., 1999, p. 123). 3. “Bem, é chegada a hora de partimos, eu para a morte, vés para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vés, é segredo para todos, exceto para a divindade” (Plato, Apologia de Sécrates, trad., 1999, p. 97) Cf. Guthrie, Os sofistas, 1995, p. 74. zn PANORAMA HISTORICO Isso porque Sdcrates vislumbra nas leis um conjunto de preceitos de obe- diéncia incontornavel, nao obstante possam estas serem justas ou injustas. O di- reito, pois, aparece como um instrumento humano de coesao social, que visa 4 rea- lizacdo do Bem Comum, consistente no desenvolvimento integral de todas as potencialidades humanas, alcangavel por meio do cultivo das virtudes. Em seu conceito, que nos foi transmitido pelos didlogos plat6nicos de primeira geracao, as leis da cidade sao inderrogaveis pelo arbitrio da vontade humana. & perceptivel a transigéo do pensamento dos sofistas para o de Sécrates. Enquanto os primeiros relevaram a efemeridade e a contingéncia das leis varid- veis no tempo e no espaco, Sécrates empenhou-se em restabelecer para a cidade 0 império do ideal civico, liame indissocidvel entre individuo e sociedade. E, no entanto, foi justamente durante 0 governo de restauracao democratica que foi condenado a morte. E exatamente nesse momento, em que se comemora- va a vitéria contra a oligarquia dos Trinta Tiranos de Esparta, apés a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), que deveria primar pela liberdade e pela restauracao de concepgées mais democraticas de justiga, que Sdcrates foi acusado e condena- do. A acusacao de seus antagonistas ja era esperada; nao se esperava o julgamen- to favordvel & demanda, condenatério de Sécrates. Sécrates sabia que, durante seus anos de ligdo, havia despertado a animosi- dade em muitos daqueles que interpelara por meio da dialética e da maiéutica, de modo que estava plenamente consciente desse fato quando de sua defesa pe- rante o tribunal.’ Elaborou sua defesa, em que contraditou os argumentos de seus adversarios, mas ainda assim foi condenado a beber cicuta por negar as divinda- des da cidade criando outras, além de corromper a juventude com seus ensina- mentos.? 1. “Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosissimas inimizades, ¢ a partir destas ini- mizades surgiram muitas caltinias, e entre as caliinias, a fama de sdbio, porque, toda vez que participava de uma discussao, as pessoas julgavam que eu fosse sdbio naqueles assuntos em que somente punha a descoberto a ignorancia dos demais. A verdade, porém, é outra, 6 atenien- ‘ses: quem sabe é apenas 0 deus, e ele quer dizer, por intermédio de seu ordculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do homem, e, ao afirmar que Sécrates é sdbio, nao se refere propria mente a mim, Sécrates, mas s6 usa meu nome como exemplo, como se tivesse dito: ‘O homens, & muito sabio entre vés aquele que, igualmente a Sécrates, tenha admitido que sua sabedoria nao possui valor algum’. £ por esta razéio que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre os atenienses ou estrangeiros que possa ser considera- do sAbio e, como acho que ninguém o seja, venho em ajuda ao deus provando que nao ha sdbio algum. E tomado como estou por esta Ansia de pesquisa, no me restou mais tempo para reali- zar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, e levo uma existéncia miseravel por conta deste meu servico ao deus” (Plato, Apologia de Sdcrates, trad., 1999, p. 73). 2. Coloca-se a seu favor Xenofonte, no exame que faz da situago e da acusacao que pendia sobre Sécrates: “O que da mesma forma me assombra é 0 haver penetrado em certos espiritos a idéia de que Sécrates corrompia os jovens, Sdcrates que, & parte o que foi dito, era o mais moderado dos mortais a respeito dos prazeres dos sentidos como da mesa, o mais insensivel ao frio, ao calor, &s fadigas de todo tipo e to sdbrio que Ihe bastava seu minguado pecitlio. Com tais qua- SOCRATES: ETICA, EDUCACAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA _ 7 Que duvidosa e incerta democracia vivia a Atenas do século V-IV a.C., tendo-se em vista que foi a prépria cidade (pélis) que elegera como lugar de ensino que condenou Sécrates 4 morte?! As leis que havia ensinado a obedecer, contra ele se voltaram. Tal condenacao s6 veio a demonstrar a relatividade de todo julgamen- to humano nio lastreado no verdadeiro senso de justica, prova da prépria imper- feicdo das leis atenienses da época. Nao obstante a injustica do julgamento a que deram causa as acusacées de Meleto, Anito e Licon, Sécrates submeteu-se serenamente a sentenca condenatéria, deixando entrever a seus discipulos mais um importante e supremo ensinamento: o valor da lei como elemento de ordem do todo. Se em sua defesa poderia ter aduzido fatos, discursos, palavras que mitigassem a ira dos juizes contra si, em vez de tentar conquistar a piedade e o favoritismo humanos, impugnou pela ver- dade, e em momento algum renunciou a causa que ja havia abracgado como mis- sao atribuida pelos deuses.? No entanto, apesar de nao ter tentado seduzir o cor- po de juizes que o julgavam, provou a sociedade que seus ensinamentos nio cor- rompiam a juventude e nem contrariavam o culto tradicional dos deuses.* No lugar de proteger-se com palavras emotivas, replicou aos que lhe que- riam imputar crimes por ele nao cometidos, certo de que nao deveria proteger-se, pois sua vida havia sido o maior dos testemunhos de justiga, felicidade e retidao. Assim testemunha Xenofonte a seu respeito: lidades, como poderia ter desencaminhado os outros & crueldade, a libertinagem, ao écio? Ao contrario, nao afastou muitos homens desses vicios, tornando-os amantes da virtude infundindo-lhes a esperanca de, por meio da fiscalizagao de si mesmos, virem a ser um dia vir tuosos?” (Xenofonte, Op. cit. p. 85). 1. A respeito do julgamento de Sécrates, consulte-se Stone. O julgamento de Sdcrates, 1988. 2. “Ao ouvir tais palavras os juizes murmuraram, uns de incredulidade, outros de inveja da predi- lego que Ihe dedicavam os deuses. Prosseguiu Sécrates: ‘Ouvi mais isto, para que os que 0 desejam tenham mais um motivo para nao acreditar no favor com que me honraram as divin- dades. Um dia em que, em presenca de numerosa assisténcia, Querefonte interrogava a meu respeito 0 ordculo de Delfos, respondeu Apolo nao haver homem mais sensato, independente, justo e sdbio do que eu.’ Como era de esperar, a estas palavras os juizes fizeram ouvir murmi- rio maior ainda” (Xenofonte, Op. cit. p. 276). 3. “Diante disso, como é possivel que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vés ouvistes, 6 cidadaos, que eu disse toda a verdade: tém prazer de ouvir-me quando submeto a prova aque- les que pensam serem sdbios e nao o so. Com efeito, nao é desagraddvel. Ao fazer isso, repito- vos, cumpro as ordens do deus, dadas por intermédio de vaticinios e sonhos, e por outros mei- os de que se serve a providéncia divina para ordenar ao homem que faca alguma coisa. E estas coisas, 6 atenienses, sao verdadeiras e demonstraveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se ja corrompi algum, seria ainda necessdrio que estes, ao envelhecerem, tomassem consciéncia de que quando eram jovens eu os aconselhei a praticar o mal, € que viessem a tribuna para acusar-me e para exigir minha punicio, e, se no quisessem fazé-lo diretamente, que envias- sem hoje para c4 as pessoas de sua familia, pais, irmaos e outros, se os que Ihes sdo caros sofre- ram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por isso” (Platao, Apologia de Sécrates, trad., 1999, p. 86). RY 8 PANORAMA HISTORICO “Mas Hermégenes, filho de Hipénico e amigo de Sécrates, deu a esse respeito pormenores que mostram que o teor de sua linguagem coadunava perfeitamente com o de suas idéias. Relatava que, vendo-o discorrer a res- peito de assuntos completamente alheios ao seu proceso, dissera-lhe: ~ Nao deverias, Sdcrates, pensar em tua apologia? ‘Ao que the respondeu Sécrates: — Nao te parece que the consagrei toda a minha vida? Ao ser indagado por Hermégenes de que maneira: - Vivendo sem cometer injustiga alguma, o que é, a meu aviso, a me- Ihor maneira de preparar uma defesa. Tomara Hermégenes: ~ Nao vés que, melindrados com a defesa, fizeram os juizes de Atenas morrer muitos inocentes e absolveram muitos culpados cuja linguagem Ihes despertara a piedade ou lhes lisonjeara os ouvidos? ~Por duas vezes — dissera Sécrates — tentei preparar uma apologia; con- tudo, a isso se op6s meu deménio. Estranhando-lhe a linguagem, respondera Sécrates: — Por que te assombras, se julgam os deuses mais vantajoso para mim deixar a vida desde ja? Nao sabes que, até o presente, homem algum viveu melhor e mais feliz que eu? Agrada-me haver sempre vivido na devogao e na justia” (Xenofonte, Apologia de Sécrates. In: Sécrates, livro I, p. 271-272 [Os Pensadores]). E ainda, as vésperas da execugao da sentenca, negando ao apelo de Criton, discipulo que viera ao cércere propor-lhe a evasao da prisiio, Sdcrates péde con- solidar sua doutrina e demonstrar a solidez de seu sistema filosdfico. Antes ser condenado a morte por uma sentenca injusta do que ser condenado a morte por uma sentenga justa, afirma: “Acompanhava-o certo Apolodoro, alma simples e profundamente afei- coada a Sdcrates, que lhe disse: — Nao posso agiientar Sécrates ver-te morrer injustamente. Entiio, dizem que, passando-lhe de leve a mao pela cabeca, Sécrates res- pondeu: — Meu caro Apolodoro, entdo preferias ver-me morrer justamente?” (Xenofonte, Apologia de Sécrates. In: Sdcrates, livro III, p. 281 [Os Pensado- res]). Dessa forma, nao procurando revidar o injusto corporificado na sentenca condenatéria com outro ato de injustica para com a cidade, Sécrates consagrou valores que foram, posteriormente, absorvidos por Platéo e por Aristételes. O SOCRATES: ETICA, EDUCAGAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA ts homem enquanto integrado ao modo politico de vida deve zelar pelo respeito absoluto, mesmo em detrimento da prépria vida, as leis comuns a todos, as nor- mas politicas (némos pdleos). O homem, assim radicado naturalmente na forma de vida comunitaria, tem como dever o cumprimento de seu papel como cidadao participativo, e, assim, integrado nos negécios ptblicos, deve buscar a manuten- cdo da sacralidade e da validade das instituigdes convencionadas que consentem o desenvolvimento da harmonia comunitaria. O ato de descumprimento da sentenga imposta pela cidade representava para Sécrates a derrogaciio de um princfpio basico do governo das leis: a eficacia. A eficdcia das leis comprometida, a desordem social haveria de reinar como princi- pio, uma vez que cada qual cumpriria ou descumpriria as regras sociais de acor- do com suas conviccdes préprias; mas, para Sécrates, o débito social é incon- tornavel.! Sua atitude serviria de exemplo para que outros também se esquivas- sem do cumprimento de seus deveres legais perante a cidade, o que equivaleria a solapar as estruturas da cidade-estado, reerguida sob a égide do governo de Sélon que havia instituido a isonomia entre os cidadaos. A inderrogabilidade do valor das leis ganhou forca de princ{pio dogmatico, coercitivo e vinculativo para todo aquele que se pudesse considerar um bom ci- dadao, um cidadao virtuoso. A justiga politica, que se fazia viva por meio das leis positivas, representou entre os gregos, e mesmo entre outros povos da Antigiiida- de, a orientagao da vida do préprio individuo. Amplamente restritivas da liberdade individual, as leis de algumas cidades intercediam profundamente na vida privada dos individuos. Em Esparta, por exem- plo, o que ocorria é que, desde o nascimento até a morte do cidadao, o paternalismo das leis exprimia-se por um conjunto de disposicdes que norteavam a educaciio, a disciplina, a forma do convivio e outros valores sociais, no sentido de aperfei- coamento no sé da parte, mas do todo A qual esta indissociavelmente ligada.* Sdcrates serviu-se de sua propria experiéncia para fazer com que a verdade acerca do justo e do injusto viesse a tona. A lei interna que encontra guarida no “Vejamos se assim entendes melhor. Se no instante de nossa fuga, ou como queres denominar nossa saida, as leis da Republica nos dissessem: ‘Sécrates, o que vais fazer? Executar teu plano nao significa aniquilar-nos completamente, sendo que de ti dependem as leis da Reptiblica e as de todo o Estado? Acreditas que um Estado pode subsistir se as suas sentencas legais nao tém poder e, o que é mais grave, se os individuos as desprezam e aniquilam?’ Que responderiamos, Criton, a essas e a outras acusagées semelhantes? Quantas coisas nao poderiam ser ditas, até mesmo por um retérico, a respeito do aniquilamento dessa lei que exige 0 cumprimento das sentencas emitidas? Porventura responderiamos que a Repiiblica foi injusta e nos julgou mal? E isso que dirfamos?” (Plato, Criton, trad., 1999, p. 109). 2. Ver Tovar, Vida de Sécrates, p. 321 e 322. Também, nesse sentido “Traza limites y caminos (la eye), incluso en los assuntos mds intimos de la vida privada y de la conducta moral de sus ciudadanos” (Jaeger, Paidéia, v. 1, p. 127). 3. Eo que diz a respeito Aloysio Ferraz Pereira, Histéria da filosofia do direito, 1980, p. 37. ae PANORAMA HISTORICO interior de cada ser, lei moral por exceléncia, poderia julgar acerca da justica ou da injustica de uma lei positiva, e a respeito disso opinar, mas esse ju{zo nao po- deria ultrapassar os limites da critica, a ponto de lesar a legislagao politica pelo descumprimento.' Em outras palavras, para Sécrates, com base num juizo moral, no se podem derrogar leis positivas.? O foro interior e individual deveria sub- meter-se ao exterior e geral em beneficio da coletividade.* Assim, pode-se dizer que sua submissdo A sentenca condenatéria represen- tou nao sé a confirmacao de seus ensinamentos, mas, também, a revitalizagao dos valores sécio-religiosos acordantes com os que foram a base da construgao da propria cidade-estado grega, quando da transi¢ao de um estado gentilico ao poli- tico. Obedecer aos deuses era o mesmo que obedecer & cidade, e vice-versa.* Moralidade e legalidade caminham juntas para a realizagao do escopo social, dentro da ordem das leis divinas, as quais Sécrates insistia em sublinhar como pardmetro do correto julgamento do proprio ser.° Aatitude desprendida do filésofo relativamente a sua propria vida conferiu novo félego ao principio do respeito as leis da cidade. Se essa decisdo foi salutar, . temos em Sécrates 0 exemplo classico do conflito entre a ordem objetiva e legal por ele considerada como expresso da justica, e 0 seu sentimento subjetivo de que estava sendo injustigado ao ser condenado A morte” (Cldudio de Cicco, A justica € 0 direito moderno, Revis- ta Brasileira de Filosofia, 1991, p. 147). 2. “Possuimos’, diriam, ‘importantes provas de que nés e a Repiiblica sempre te agradamos, por- que permaneceste na cidade mais que qualquer outro ateniense e nao houve espetdculo que te fizesse sair dela, salvo quando te dirigiste ao istmo de Corinto para assistir aos jogos. Nunca sa(ste exceto para expedigées militares, e nunca fizeste viagem alguma como todos os cidadaos rém 0 habito de fazé-lo, nao tiveste a curiosidade de conhecer outras cidades e outras leis: nos amavas tanto e tao decidido estavas em viver a nossa maneira, que aqui tiveste teus filhos, tes- temunhos vivos de quanto isto te agradava, e até ao longo do teu proceso poderias haver-te condenado a0 exilio se o quisesses, e entdo fazer, com a anuéncia da tua cidade, o que pensas fazer apesar dela, Tu, que te declaravas indiferente ante a morte e que dizias que era preferivel ao exilio, sem envergonhar-te com essa linguagem, sem nos respeitar, a nds, leis, intentas aniquilar-nos, ages como agiria o mais reles escravo e procuras salvar-te transgredindo a con- vengo que te obriga a viver como bom cidadao. Responde-nos entdo: dizemos a verdade quando afirmamos que te submeteste a esta convencao, ndo por palavras, mas de fato e de forma irestrita?” O que responderfamos a isto e o que nos seria possivel fazer exceto admiti-1o?” (Platéo, Criton, trad., 1999, p. 111). CE. Zeller, La philosophie des grecs considérée dans son dévellopement, 1884, p. 38. “Algum de vés talvez pudesse contestar-me: ‘Em siléncio e quieto, 6 Sécrates, nao poderias vi- ver apés ter saido de Atenas?’ Isso seria simplesmente impossivel. Porque, se vos dissesse que significaria desobedecer ao deus e que, por conseguinte, nao seria possivel que eu vivesse em siléncio, nao acreditarieis e pensarieis que estivesse sendo sarcdstico. Se vos dissesse que esse 0 maior bem para o homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assun- tos que me ouvistes discutindo e analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida des- provida de tais andlises nao é digna de ser vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda” (Plato, Apologia de Sécrates, trad., 1999, p. 91). 5. Platao, Criton, 43 b. ay 75 SOCRATES: ETICA, EDUCAGAO, VIRTUDE E OBEDIENCIA do ponto de vista politico e ético, no foram poucos os motivos que inspiraram Sécrates em sua decisao, podendo-se enumerar, entre outros, os seguintes: a) o momento histérico decadencial vivido pela mais célebre cidade-estado grega apds haver sucumbido as forgas espartanas na Guerra do Pelopo- neso, carecendo-se, portanto, de atitudes e posturas favoraveis 4 demo- cracia e ao respeito as leis; b) aconcatenaciio da lei moral com a legislagdo civica; ©) orespeito as normas e A religiio que governavam a comunidade, no sen- tido do sacrificio da parte pela subsisténcia do todo; d) a importancia e imperatividade da lei em favor da coletividade e da or- dem do todo; e) a substituic&o do principio da reciprocidade, segundo o qual se respon- dia ao injusto com injustica, pelo principio da anulagdo de um mal com seu contrdrio, assim, da injustica com um ato de justica;! f) 0 reconhecimento da sobrevivéncia da alma, para um julgamento defi- nitivo pelos deuses, responsdvel pelo verdadeiro veredito dos atos huma- nos. Conclusées A filosofia socratica traduz uma ética teleolégica, e sua contribuigao consis- te em vislumbrar na felicidade o fim da aco. Essa ética tem por fito a preparacao do homem para conhecer-se, uma vez que 0 conhecimento é a base do agir ético; 86 erra quem desconhece, de modo que a ignorancia ¢ 0 maior dos males. Conhe- cer, porém, nao é fiar-se nas aparéncias e nos enganos e desenganos humanos, e sim fiar-se no que ha de verdadeiro e certo. Erradicar a ignorancia, portanto, por meio da educaciio (paidéia) é tarefa do fildsofo, que, na certeza desses princi- pios, abdica até mesmo de sua vida para re-afirmar sua ligdo e seu compromisso com a divindade. A ligdo de vida da ética socratica é ja uma ligdo de justiga. Portanto, um misterioso conjunto de elementos éticos, sociais e religiosos permearam os ensinamentos socraticos, que permaneceram como principios pe- renes e modelares, apesar de ndo terem sido reduzidos a escrito,” mas que se trans- 1. Aesse respeito, ibidem, 54 c. 2. Aesse respeito diz Hannah Arendt: “Depde muito a favor de Sécrates 0 fato de que s6 ele, en- tre todos os grandes pensadores - singular neste aspecto como em muitos outros -, jamais se tenha entregue ao trabalho de dar forma escrita a seus pensamentos: pois é dbvio que, por mais que um pensador se preocupe com 0 eterno, no instante em que se dispde a escrever os seus pensamentos deixa de estar fundamentalmente preocupado com a eternidade e volta a sua aten- Géo para a tarefa de legar aos pésteros algum vestigio deles” (A condi¢do humana, 1988, p. 28). use PANORAMA HISTORICO mitiram e se consubstanciaram principalmente no pensamento platénico, surtin- do seus reflexos nas demais escolas que se firmaram na doutrina socratica. ‘Ao contrario de fomentar a desordem, o caos, a insurrei¢ao, sua filosofia prima pela submissao, uma vez que a ética do coletivo esta acima da ética do individuo. Seu testemunho de vida bem provou essa convic¢ao no acerto da rentincia em prol da cidade-estado (pdlis). Onde esta a virtude esta a felicidade, e isso independen- temente dos julgamentos humanos a respeito. A condenacao de Sécrates, além de ter-Ihe propiciado a oportunidade de questionar com sua vida a justica citadina, também produziu sérios efeitos e dei- xou profundas marcas na histéria da filosofia. Platao, incorporando esse dilema, haverd de legd-lo com toda forca para a posteridade.

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