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O Estado Laico e a Democracia’ 1. “No tiltimo domingo, retornando do feriaddo de Corpus Christi, 4 pessoas ~ 3 jovens e 1 professor — foram vitimas de um acidente de trénsito. Os ‘passageiros Jodo Francisco, Maria Clara, Anténio Marcos e 0 motorista ‘prof Jodo Paulo capotaram 0 carro na BR 290, no trevo de acesso & cidade de §. Anténio da Patrulha. As vitimas foram trazidas com vida a Porto Alegre onde iniciou uma verdadeira via-sacra para conseguirem aatendimento, passando pelos Hospitais Cristo Redentor, Santa Casa de Misericdrdia, Mae de Deus, Divina Providéncia, Conceigdo e S. Lucas ‘Infelizmente 0 motorista ndo resistiu aos ferimentos e veio a falecer. Até 0 momento nio sabemos se 0 enterro serd no Cemitério S. Miguel e Almas, da Santa Casa ou no Jodo XXII. A missa de 7° dia jé foi marcada para 0 dia 05 de junho na Matriz de Sdo Leopoldo, terra natal do professor.” Que tragédia! Mas ndo foi o objetivo deste artigo descrever esta “hist6ria” — alids, muito parecida com as que lemos diariamente em nossos jornais. O objetivo foi analisarmos os nomes cristdos ai presentes: domingo, Corpus Christi, Joao Francisco, Maria Clara, Antonio Mateos e Jofo Paulo, S. Anténio, via-sacra, Cristo Redentor, Santa Casa de Misericérdia, Mae de Deus, Divina Providéncia, Conceigao e 8. Lucas, S. ‘Miguel e Almas, Joao XXIII, missa de 7° dia, matriz, S. Leopoldo... ‘Antes de falarmos do Estado, é bom que tenhamos presente de que ele é composto por pessoas que tem uma historia, uma cultura, um sentimento, um desejo, um sonho, uma fé 2. Retomando conceitos ¢ definigses: |A) O que é laico? Palavra de origem grega que significa leigo, povo e anténimo de clérigo (sacerdote catélico), pessoa que faz parte da estrutura propria da Tereja Portanto, “estado laico” quer dizer estado que € do povo e nfo de um grupo seleto de pessoas ou subordinado a uma determinada religiao. B) O que é ateu?” & quem nao cré em Deus ou em qualquer ser superior. A palavra tem origem no Grego “atheos” que significa “sem Deus, que nega ¢ abandona os deuses”. E formado pela particula de negagao “a” juntamente com o radical “theos” (deus). O termo nasceu na Grécia Antiga para descrever aquelas pessoas que rejeitavam as divindades adoradas por grande parte da sociedade. Fram considerados impios por nao acreditarem nos muitos deuses venerados. Um ateu pode ter uma atitude ativa (quando defende de forma veemente a auséncia de qualquer deus), ow uma atitude passiva (quando nega apenas por no haver provas que demonstrem a existéncia da divindade). A atitude passiva ¢ uma forma de agnosticismo, em que os ateus agnésticos nao acreditam em Deus, mas ao mesmo tempo nao descartam a possibilidade de sua existéncia, * ¢§, Victor Mauricio Fiorito Pereira e Dom Walmor de Souza > Cf. www.significados.com.br ©) A Constituigso brasileira de 1824 em seu artigo 5° diz: “A Religidéo Catholica Apostélica Romana continuard a ser a Religido do Império. Todas as outras Religides ‘sero permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”. 4) Na Constituigéo de 1890, Decreto 119-A, redigida por Rui Barbosa, aprovada pelo Marechal Deodor da Fonseca fica definida a separagio entre Igreja e Estado: Art. 1°: E proibido a autoridade federal, assim como a dos Estados Federados, expedir eis, regulamentos, ou atos _administrativos, estabelecendo alguma religio, ou vedando-a, e criar diferengas entre os habitantes do pais, ou nos servigos sustentados & custa do orgamento, por motivo de crengas, ou opinides filoséficas ou religiosas. Art. 2": A todas as confissdes religiosas pertence por igual a faculdade de ‘exercerem 0 seu culto, regerem-se segundo a sua fé e nao serem contrariadas nos atos particulares ou publicos, que interessem o exercicio deste decreto. Art. 3°: A liberdade aqui institufda abrange no s6 os individuos nos atos individuais, senio também as igrejas, associagdes ¢ institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituirem e viverem coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervengao do poder publico. Art. 4°: Fica extinto 0 padroado com todas as suas instituigdes, recursos € prerrogativas. ‘Art. 5% A todas as igrejas e confissGes religiosas se reconhece a personalidade juridica, para adquirirem bens e 0s administrarem, sob os limites postos pelas leis concementes 4 propriedade de mao-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres atuais, bem como dos seus edificios de culto. €) O que nos diz. a atual Constituigio de 1988? Art. 19: E vedado & Unido, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municipios: I - Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciond-los, embaragar-lhes ‘© funcionamento ou manter com eles ou suas representantes relagdes de dependéncia ou alianga, ressalvada, na forma da lei, a colaboraylo de interesse puiblico; ‘Art. 5: Todos so iguais perante a lei, sem distingao de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no pais a inviolabilidade do direito a vida, 4 liberdade, 4 igualdade, & seguranga e a propriedade, nos termos seguintes: inviolavel a liberdade de consciéncia e de crenga, sendo assegurado 0 livre exercicio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a protego aos locais de culto e a suas liturgias; VII é assegurada, nos termos da lei, a prestagdo de assisténcia religiosa nas entidades civis e militares de interagao coletiva; VIII - Ninguém seré privado de direitos por motivo de crenga religiosa ou de convicsdo filoséfica ou politica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigacao legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestago altemativa, fixada em lei; ‘Art. 150: Sem prejuizo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, & vedado a Unido, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municipios: VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto; ‘Art. 210 § 1°: O ensino religioso, de matricula facultativa, constituiré disciplina dos hordrios normais das escolas piblicas de ensino fundamental; “Art, 213: Os recursos piiblicos seriio destinados as escolas piiblicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitarias, confessionais ou filantrépicas; Art, 226 § 2°: O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. 3, Portanto, é importante ressaltar que o conceito de Estado laico nao deve se confundir com Estado ateu, tendo em vista que o atefsmo © seus assemelhados também se incluem no direito @ liberdade religiosa. E 0 direito de nao ter uma religiio conforme disse Pontes de Miranda: “iberdade de crenca compreende a liberdade de ter uma crenca e a de ndo ter uma crenga” (Comentarios & Constituigao de 1967). Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu ¢ privilegiar esta crenga (ou néo crenga) em detrimento das demais, o que afronta a Carta Magna. CO estado é laico, mas 0 povo ¢ religioso. E 0 povo constitui a nagio A qual o Estado esté a servico, com 0 compromisso de edificar e manter uma sociedade justa e solidéria. Povo é mais do que Estado, que ¢ uma configurago sociopolitica a servigo do bem comum de uma nagdo, em respeito e obediéncia a principios advindos da justiga, da Verdade, do amor e do bem de todos. Nessa diregio, portanto, nao é inteligente confrontar como opostas ¢ inconcilidveis as categorias Estado e religiosidade, No caso da sociedade brasileira, a religiosidade ¢ uma dimensfo constitutiva, independentemente das singuleridades confessionais. No se pode desconhecer desconsiderar as raizes cristis no nascedouro e nos desdobramentos de nossa sociedade. Tgnorar essa importancia é uma postura preconceituosa, que considera a religido como elemento descartével ou de pouca valia. Trata-se de uma avaliagdo que revela estreitamentos da racionalidade. |A distingdo 6 benéfica ¢ necessiria para nfo incorrer em misturas indevidas. Contudo, colocar essas dimensées como antagénicas é confrontar-se diretamente com 0 povo, @ partir de uma perspectiva preconceituosa, Trata-se de uma grande incoeréncia pensar 0 Estado como instincia prestadora de servico ao bem comum que, ao mesmo tempo, deve discriminar a religiosidade, uma dimensio importante na inteireza da vida cotidiana. Infelizmente, essa discriminagdo acontece de muitas maneiras, Um claro exemplo ocorre quando o Estado, por compreensdes equivocadas de gestores, prope restrigdes legais ao uso de espagos por instituigdes religiosas. E obvio que a normatizagao é necesséria para se evitar abusos ou mau uso de espagos puiblicos. Sem definigdes regulatérias, uma sociedade plural, marcada pelo sentido de liberdade e autonomia, no pode funcionar adequadamente. Contudo, no se pode chegar ao absurdo de considerar a laicidade do Estado como uma oposigio a tudo o que diz respeito A religiosidade, 4, Atualmente, 0 termo Estado laico vem sendo utilizado no Brasil como fundamento para a insurgéncia contra a instituigao de feriados nacionais para comemoragGes de datas religiosas, a instituig’o de monumentos com conotagao religiosa em logradouros piiblicos e contra 0 uso de simbolos religiosos em repartigdes publicas. Até mesmo a expressio “sob a proteso de Deus”, constante no preémbulo da Constituigéo da Republica vem sendo alvo de questionamentos. ‘Além das formas de colaboragéo estatal especificadas no texto constitucional, 0 proprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica, que no caso de interesse publico, havendo lei, os entes estatais podem colaborar com os cultos religiosos ou igrejas, bem como no pode embaracar-lhes 0 funcionamento, Por estas raz6es, muito mais adequado do que chamar a Repiiblica Federativa do Brasil de Estado laico, seria chamé-la de Estado plurirreligioso, que aceita todas as crengas religiosas, sem qualquer discriminagao, inclusive a néo crenga. No entanto, conforme jé aduzido, questo interessante surge na concepgao de Estado plurimreligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em certas ocasiées, de optar pelo culto de determinada crenca religiosa, quando isso implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa uma estétua do Cristo, ¢ nao a do Buda? Por inaugurar um logradouro publico com o nome de Praca da Biblia e nio Praca do Alcoréo? E porque nfo deixar de construir um monumento com conotaso religiosa, com o fim de nfo ofender a consciéncia dos nfo crentes e a dos crentes de outras seitas? Somos de opinidio que este impasse deve ser resolvido através da interpretagdo sistematica do texto constitucional. 5. Assim, dispde a ConstituigSo da Republica em seu artigo 1°: “A Repriblica Federativa do Brasil, formada pela uniéo indissolivel dos Estados e ‘Municipios ¢ do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democréttico de Direito (..) Pardgrafo iinico -Todo 0 poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigdo”. ‘Afirma a doutrina, que o principio da maioria, juntamente com os principios da igualdade e da liberdade, é principio fundamental da democracia. Aristételes jé dizia que a democracia é 0 governo onde domina o mimero. Destas consideragbes, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar tratamento igualitirio a todas as religies, bem como deixar que funcionem livremente, com base no principio da maioria pode optar, quando necessério for, por determinada crenga, como por exemplo na ocasido de instituir um feriado, de construir um monumento em logradouro publico, de utilizar a expresso “Deus seja lowvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislago tomando como base as orientagdes doutrindrias de um determinado credo, nisto incluindo questées polémicas como aborto, uso de células de embrides humanos e unio homo afetiva. 6. E importante frisar que tal posicionamento nao visa beneficiar a Igreja Catética, cuja predomindncia no Brasil se deve as razées culturais e histéricas decorrentes do processo de colonizagao que deu origem ao povo brasileiro macigamente composto por descendentes de europeus catélicos, além do fato de jé ter sido religido oficial do pais por mais de trezentos anos. Em vista disto, é perfeitamente natural que, sendo a maioria da populagdo brasileira catélica, como afirmam que 0 culto catélico tenha maior atengAo estatal que os demais. Vale ressaltar que o que determina a preferéncia estatal por determinado credo & a vontade majoritéria popular, que néo obstante as razies histéricas, pode se modificar, mormente como se Vé nos tempos atuais em que as seitas evangélicas vém ganhando forga politica, importando até mesmo na eleigao de representantes. Ressalte-se ainda que a preferéncia da agio estatal por determinada religiao néo se situa apenas em ambito nacional, mas também regional, sendo um exemplo a Constituigao do Estado da Bahia, nna qual 6 artigo 275 e incisos privilegiam a religigo afro-brasileira, presumindo ser esta a preferéncia do povo baiano. Embora o Estado deva respeitar e proteger os nfo crentes ¢ os crentes de outros cultos, nfo nos parece adequado que 0 Estado deva suprimir de seu oficio qualquer aluséo a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este por causa de uma ‘minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade, constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crenga ou ndo crenga, com o fim de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que defendam seus interesses perante o Estado. 7. Por fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso T da Constituigao, é vedado ao Estado embaragar 0 funcionamento dos cultos religiosos. Tal jnformagao tem grande relevancia, principalmente em face de situagGes concretas em que se pgstula ao Poder Judiciério, pretensdes no sentido fazer com que determinada feligio $aja em desconformidade com a sua doutrina, na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é pretender que a Igreja Catélica realize casamento de pessoas divorciadas, o que vai de encontro com a sua doutrina que nao reconhece o divércio e veda a duplicidade de casamentos. Da mesma forma, seria incabivel a imputagao do delito previsto no artigo 235 do Cédigo Penal, no caso de religides que permitam a pritica da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao émbito da religido, sendo que estes casamentos nfo deverdo produzir efeitos para o direito civil patrio, por aftontar os principios constitucionais que tratam da familia. Nos demais casos, a intervengio estatal nos cultos religiosos deve se reger, como ja foi aduzido, através de uma interpretagio sistemética e harménica do texto constitucional. 8, CONCLUSOES 2) O Estado brasileiro, de acordo com a sua Constituigéo, deve dispensar tratamento igualitério a todas as crengas religiosas, incluindo a no crenga, sem adotar nenhuma delas como sua religiao oficial; b) A inexisténcia de religifio oficial no Estado ndo significa que o Estado seja partidario da ndo crenca (ateismo e assemelhados), pois, com base no principio da liberdade religiosa, esta deve set posta 20 lado das demais religides, no podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial; ©) Em caso de situagées em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crenca religiosa ou a nao crenga, 0 critério de escolha deve ser 0 principio democritico da preferéncia da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus representantes, ao contrario do que ocorre nos Estados que adotam religio oficial, que prevaleceré ainda que a maioria da populagao prefira outra; d) Néo hé qualquer inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado, construir um monumento em logradouro puiblico, fazer referéncias a Deus, bem como elaborar sua legislago tomando como base as orientagdes doutrindrias de um determinado credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expresso da livre vontade popular, que pode se modificar em favor de outra crenga religiosa, sem que isto implique em modificagdo constitucional. ©) Com base no artigo 19, inciso I da Constitui¢aio da Republica, o Estado nfio pode intervir nas religides de forma a compelir que ajam em desconformidade com a sua doutrina, sendo que, qualquer cerceamento & liberdade de culto, deve ser feita com base na interpretagdo sistemitica da Constituigao da Reptblica, de forma a harmonizar as suas disposigdes. 1) E verdade que ha de se considerar a setiedade de cada confissio religiosa numa sociedade plural. A propria legislagao proporciona esse discernimento, com emissao de juizos de valor a respeito de igrejas e grupos religiosos. Inaceitavel é a compreensio da laicidade do Estado que exclui completamente a religiosidade e sua vivéncia. Quem perde, obviamente, é 0 povo € © préprio Estado, que nao se permite intercambiar com hima forga que muito o ajuda na promogao do bem comum. Imagine se a Igreja Catdlica, por exemplo, deixasse de prestar os servigas sociais que oferece. Incontaveis iniciativas, fnuitas ainda desconhecidas, realizadas nas periferias, em areas urbanas e rurais, com tgrande impacto, sobretudo, na vida dos pobres. Certamente os reflexos seriam muito negativos para um Estado que deve buscar o bem de todos. 2) A laicidade configura 0 Estado nao como oposicao a religiosidade. E um parametro que deve ajudar na distingao entre Estado © outras instituigdes, como os proprios partidos politicos, atualmente 10 questionados no niicleo central de sua significacao, representatividade, competéncia nas abordagens ideologicas e debates em vistas do bem comum, Nenhum partido pode se considerar “dono do Estado”, impondo sua propria ideologia. Além disso, a méquina de governo que um Estado precisa ndo pode ser “cabide de emprego”, “trampolim de promogio pessoal” e mecanismo de favorecimentos. A laicidade, quando bem entendida, nfo deixa que o Estado seja manipulado, permitindo, assim, um eficiente servigo ao seu povo. _- hitp//destrave. cancaonova.com/o-laicismo-e-a-perseguicao-a-religiosidade-do-brasil/ \\

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