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2 UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA COLONIAL Em América, todo blanco es caballero Alexander von Humboldt (1804) [.] onde uma pessoa de origem das mats modestas dd-se ares de grande fidatgo Um functonario régto (1718) Até agora, acompanhamos a formagio da sociedade colonial brasileira por meio do estudo da economia agucareira e do sistema de grande lavoura em que ela s¢ alicergou, Durante essa etapa de formacdo, as acées e decisdes dos europeus, indigenas ¢ africanos contribufram para o modo como se deu esse processo histérico € os resultados dele origi- nados. Ademais, a tecnologia ¢ as técnicas da manufatura do acdcar ¢ a posicao desse pro- duto no mercado internacional também estruturaram as rekigoes socials e criaram ou refor- caram posicdes mantidas por varios grupos: senhores de engenho, comerciantes ¢ escra- vos. Embora desde o inicio sempre existissem outros grupos € outras atividades no Brasil portugués, o agdcar, o engenho ¢ a escraviddo desempenharam papéis cruciais na defini- ¢io © conformagio da sociedade brasileira, Assim foi ndo s6 porque o agécar manteve-se como importante atividade econdmica, mas também porque os principios em que se as- sentou a sociedade acucareira foram amplamente compartilhados, adaptaveis a novas si- tuag6es ¢ sancionados pela Igreja ¢ pelo Estado. O Brasil-coldnia foi uma sociedade escra- vista no meramente devido ao Sbvio fato de sua forga de trabalho ser predominantemen- te cativa, mas principalmente devido as distingdes juridicas entre escravos ¢ livres, aos prin- cipios hierarquicos baseados na escravidio e na raga, as atitudes senhoriais dos proprieta- rios ¢ 4 deferéncia dos socialmente inferiores. Através da difusio desses ideais, o escravis- mo criou os fatos fundamentais da vida brasileira. A partir da minha andlise e descrigio da economia de grande Javoura, do cariter € das relagdes sociais da produgdo agucareira ¢ da economia da industria e propriedade dos engenhos, deve ficar patente que um tipo peculiar de sociedade desenvolveu-se. Essa so: ciedade herdou concepgdes cléssicas ¢€ medicvais de organizagio ¢ hierarquia, mas acrescentou-lhes sistemas de graduagao que se originaram da diferenciagao das ocupagées, raga, cor e condi¢ao social, diferenciagao esta resultante da realidade vivida na América. Foi uma sociedade de miltiplas hierarquias de honra e apreco, de varias categorias de mio- de-obra, de complexas divisdes de cor ¢ de diversas formas de mobilidade ¢ mudanca: con- tudo, foi também uma sociedade com forte tendéncia a reduzir complexidades a dualismos de contraste — scnhor/escravo, fidalgo/plebeu, catélico/pagio — ea conciliar as miltipkis 209 hierarquias entre si, de modo que a gradua¢io, a classe, a cor ¢ a condigio social de cada individuo tendessem a convergir. IDEOLOGIA SOCIAL E REALIDADE BRASILEIRA Uma visio de mundo sob 0s prismas politico ¢ social derivada essencialmente de ted- logos catélicos, em especial de santo Tomis de Aquino, serviu de alicerce a sociedade bra- sileira em formagao. Essa visio de mundo definiu o objetivo da vida politica como 2 busca do bem comum através da disposicdo da sociedace em uma organizacao hierérquica que incentivava a complementaridade ¢ 0 equilibrio enquanto controlava a competicao ¢ 0 con- lito." No século xvi, Estado e sociedade cram inseparaveis em termos teéricas; 0 primei- ro representava a ordenagio da segunda ¢ tinha um papel fundamental no controle ¢ regu- Jamentagio do relacionamento entre os grupos, Em teoria, pelo menos, a sociedade dividiase em tres ordens ou estados tradicionais, cujas posigdes foram originalmente definidas pelas fangdes mas posteriormente determinadas por privilégios, leis, costumes ¢ modo de vida. Enquanto o rei governava como cabega do organismo politico, a nobreza era os bragos que o defendiam, 0 clero, 0 coragio que guardava sua alma, ¢ 0 povo, o que Ihe fornecia energia ¢ sustento para a sobrevivéncia.* A divisao tripartida havia sido uma simplificacao Sbvia mesmo na época em que fora codificada no pensamento curopeu no século XI, ¢, na verdade, 2 sociedade era muito mais variada ¢ complexa. Existiam graduagdes ¢ sub- categorias entre a nobreza € na hierarquia do clero, ea presenga de profissionais liberais, comerciantes € artesdos entre o povo criava também importantes distingoes. A divisao da sociedade em trés estados era uma supersimplificacio Obvia, mas 20 mesmo tempo pecava pelo excesso de complexidade; de certa forma, a distincio mais importante cra entre os “pedes” eas “pessoas de mor qualidade”.* Essa distingio refletiu-se em algumas das pri- meiras leis formuladas para 0 Brasil-colonia. A sociedade por ordens ou estados era efetivamente um arcabouco estatutario ou ju- ridico que viabilizava legalmente na pratica as hierarquias de graduacio, privilégio ¢ hon- ra Sinais exteriores indicativos da griduagao, formas de tratamento, insignias, privilégios ¢ obrigagdes definiam a posigio dos individuos. O protocolo ¢ a precedéncia assumiam importante significado simbélico em eventos piiblicos € reforgavam a posicao e as prerro- gativas de cada grupo. Sem mencionar 0 clero (nos escaldes mais altos havia poucos mem- bros, ¢ de certa forma era um mero apéndice da alta nobreza), a nobreza cra a ordem mais privilegiada, reverenciads e respeitada, Em comipensagio pela sua obrigaglo teérica de pro- videnciar a defesa militar, os nobres tinham direito a isengoes fiscais, 20 favorecimento le- gal, a importantes cargos governamentais ¢ a deferéncia da sociedade, Anobreza dominava a sociedade ¢ estabelecia os padroes de desempenho e compor- tamento, Até mesmo os doutos magistrados © os abastados comerciantes, embora de ori- gem burguesa, geralmente aspiravam ao status, titulos e privilégios de aristocracia. As gra- duagdes da nobreza portuguesa, dos condes, duques ¢ marqueses aos fidalgos € os que ob- tinham foros de nobreza por servicos prestados (0s "fidalgos da casa del-rey”), nao preci- sam ser examinadas aqui, Em certo sentido, definia-se a nobreza por aquilo que a pessoa nao fazia. Dedicar-se a trabalho bragal, ser dono de loja, artesdo € outras ocupacées “infe- riores”’ era para os plebeus. Os nobres deviam viver sem recorrer a tais atividades; procu- ravam antes os rendimentos de aluguéis ¢ cargos ptiblicos, ¢ esforgavam-se por manter um padrao de vida aristocratico, o que em geral significava abrigar um grande numero de agre- gadis, parentes ¢ criados. Fortuna, dominio senhorial, autoridade sobre dependentes, ma- nutengio € promogio da linhagem ¢ dedicagio as armas ou 4 politica constituiam os ele- mentos do ideal de nobreza que impregnava a sociedade ¢ se apresentava como a meta a ser atingida. Segundo a concepgao original, o campesinato compreendia as pessoas de menor qua- 210 lidade: a vasta maioria da populacio instalada no campo, vivendo da agricultura, pecuaisa ou pesca. Era, porém, uma representacio totalmente irreal da sociedade no século xvt. Os artesios, embora indubitavelmente plebeus, possufam capital materializado em sua habili- dade ¢ lojas, ctiados ¢ empregados; tinbam sua propria estrutura interna de mestres ¢ apren- dizes ¢, através de representantes na cimara municipal, contavam com voz ativa no gover- no local. O mesmo se pode dizer de outras categorias funcionais, como a dos comerciantes €a dos profissionais da trea juridica, também por definigio estatutaria membros do tercei- to estado, mas que possuiam capacidades, pericia, conhecimentos ou riqueza que os dis- tinguiam do campesinato ¢ Ihes facultavam 0 acesso a nobreza. Essas categorias funcionais distinguiam-se dos estados mas fundiam-se com cles. Os artesiios ¢ comerciantes criavam guildas ¢ outras associagdes para defender seus interesses comuns, muitas vezes usando irmandades religiosas como base para associacOes voluntarias. Identificagaio com uma cor- Poragdo, qualificagao em um dos trés estados e associacao a uma guilda ou irmandade pro- Porcionavam a base tedrica da sociedade, que no governo era expressa pelas “cortes", em que a Coroa regia os trés estados.° Acompanhando a divisto da sociedade em ordens juridicas € categorias funcionais havia outros principios de organizagao. A distincio entre cristaos-velhos, cujas familias ja ram catolicas antes da conversio forcada de todos 03 judeus portugueses em 1497, ¢ cristios- novos, judeus convertidos ¢ seus descendentes, foi mantida até meados do século xvii. Os descendentes de cristdos-noves encontravam muitas desvantagens, fosse qual fosse a ortodoxia de sua crenga, Também a ilegitimidade acarretava problemas na heranga do no- me € de propriedades ¢ na capacidade de ascender socialmente por meio de ingresso na carreira das armas ou em cargos piblicos, A ilegitimidade ¢ a ortodoxia religiosa da fami relacionavam-se 20 conceito de pureza de sangue. Embora as origens ¢ 0 significado exato dess¢ conceito sejam muito debatidos, no século xvi ele era usado para distinguir os que, racial ¢ politicamente, enquadravam-se no ideal do portugues branco ¢ cristio-velho, nao contaminado, como se dizia, pelas ragas infectas dos “mouros, mulatos, negros ou judcus’’, Quando a purcza do sangue aliava-se’a fidalguia, todas as portas podiam ser abertas na sociedade.’ A fidalguia, ou, em termos mais genéricos, um status social mais elevado, nao era na verdade algo inatingtvel. Apesar de a sociedade por ordens tet sido concebida em ter- mos fixos ¢ rigidos, a mobilidade social era, sem ddvida, possivel. O desenvolvimento do comércio ¢ 2 emergéncia do Estado em Portugal ¢ em outras partes da Europa haviam cria- do oportunidades para que comerciantes, advogados, funcionirios régios e outros conse- guissem acesso 2 riquez, a0 status ou a ambos. Embora as concessoes de titulos nobiliar- quicos fossem relativamente poucas, 2s elevaces ao status de fidalgo ou equivalente nio eram raras nos séculos xvi, Em certa medida, 0 “modelo de San Gimignano", de Lawren- ce Stone, de uma grande base populacional da qual se erguem como torres uma série de hierarquias econdmicas ¢ sociais mais ou menos independentes, fundamentadas na terta, Igrcja, lei, comércio ¢ governo, descreve a sociedade portuguesa na época da forma do Brasil." Entretanto, essas multiplas hierarquias ainda eram jutidica ¢ teoricamente con- cebidas nos limites € graduagdes da sociedade por ordens, com sua divisio fundamental entre nobres ¢ plebeus. O individuo podia ascender em uma dessas torres, mas ao alcangar determinada altura haveria sempre uma forte tendéncia a conciliar sua posigio com a bie- rarquia social mais geral. Esses dois elementos da Sociedade portuguesa, 2 possibilidade de mobilidade ¢ 0 desejo de conciliar ¢ legitimar 0 status mais elevado com os outros atri- butos tradicionais €o estilo de vida da nobreza, so cruciais para a compreensio do carter do Brasil colonial, um lugar “onde uma pessoa de posses e origens das mais modestas di-se ares de grande fidalgo"’.? © ideal de nobreza assenhoreou-se da sociedade brasileira desde seus primérdios ¢ perdurou por todo 0 perfodo colonial. Ele encerrava atitudes, atributos € tradigdes que atestavam © mediam o status nobiliérquico. Fundamentava-se em um conceito de organi- 2u1 zacio social que, como a propria sociedade, era hierarquico, desigual por definigao ¢ pa- ternalista. Os nobres viviam sem dedicar-se a trabalho bracal e, portanto, o trabalho bracal cra degradante. Os nobres asseguravam a manutengio ¢ a continuidade de sua linhagem € familia. Isso era feito por meio da edificagio de capelas ¢ celebracao de missas em memé- ria de seus ancestrais, do sustento de sua "familia" presente — composta dos parentes prd- ximos, agregados, criados ¢ escravos — ¢ da garantia do futuro através do planejamento de casamentos convenientes ¢ de estratégias de transmissao de heranga. O objetivo prefe- rido era.a propriedade fundiiria, valorizada no s6 por conferir prestigio per se, mas tam- bém porque era 0 modo mais seguro de sustentar a vida nobre. O patriarca da familia aris tocrata exercia um controle paternalista sobre todos os seus membros. Devia-lhes prote- io, ¢ cles the deviam lealdade ¢ deferéncia. Essas familias podiam incluir parentes distan- tes de status social inferior, filhos adotados ¢ filhos ilegitimos reconhecidos, cuja posicao era secundaria em relagao A da prole legitima. A condigio de nobreza podia alicergar-se em morgados ou participagdes em ordens militares, mas era também uma questo de atitu- des ¢ valores. Os cavalos puro-sangue, a generosidade desmedida, o ser alfabetizado, a de- vogio religiosa, a bravura diante do perigo ¢ a capacidade no comando dos subordinados eram as marcas do nobre. Parte ndo menos importante desse ideal cra a organizagio fami- liar patriarcal assentada na grande propriedade fundiitia sobre a qual o nobre exercia um poder paternalista ¢ autoritirio. As realidades da América transformaram ou atcnuaram na colnia brasileira a organi- zagio €0s ideais da sociedade portuguesa. A cstrutura tradicional de estados ¢ corporagdes existiu, mas tornow-se menos importante no contexto ameticano. As distingdes essenciais entre fidalgos ¢ plebeus tenderam 2 nivelar-se, pois o mar de indigenas que cercava os co- lonizadores portugueses tornava todo curopeu, de fato, um gentil-homem em potencial. A disponibilidade de indios como escravos ou trabalhadores possibilitava aos imigrantes coneretizar seus sonhos de nobreza. Com um punhado de indigenas para cacar ou pescar, qualquer homem podia viver sem recorrer a0 trabalho bragal. Com muitos Indios, podia desfrutar de uma vida verdadciramente nobre. O gentio transformou-se em um substituto do campesinato, um novo estado, que permitiu uma reorganizagio das categorias tradicio- nais. Contudo, o fato de serem as aborigines ¢, mais tarde, os africanos diferentes étnica, religiosa e fenotipicamente dos europeus criou oportunidades para novas distingdes ¢ hie- rarquias baseadas na cultura e na cor. Na verdade, pode ser um exagero descrever essas oportunidades como “novas”. Houvera negros em Portugal desde 0 tempo dos mouros ¢, no século xvi, viviam na metrpole mais de 30 mil deles."” Todas as instituigdes origi- nadas da vida ¢ cultura negras e as reagdes a clas ja existiam em Portugal, sendo, pois, im- possivel atribuir o sistema brasileiro de discriminagao e classificagao racial inteiramente 20 regime colonial." Q que diferenciou o Brasil de Portugal, porém, foi a preponderincia que acabou por caracterizar a populacao de cor, em contraste com sua posi¢ao minoritaria na metrépote. Como pagios, indigenas ¢ africanos ficavam fora dos limites do organismo politico. Entretanto, uma vez cristdos, tinham de ser enquadrados de alguma forma. A ortodoxia religiosa ¢ a aceitagao da cultura européia tornaram-se as medidas segundo as quais eram julgados. As distingdes entre “gentios” ¢ “Indios aldeados" ou entre africanos “bogais”” (recém-chegados) ¢ “Jadinos"’ (aculturados) eram essencialmente graduagées culturais para dematcar os que se encontravam dentro ¢ fora, ou quase fora, da sociedade. Ao s¢ torna- rem parte da sociedade, indigenas ¢ africanos podiam simplesmente ser situados na hierar- quia existente, em novas categorias ¢ em posigdes definidas pela cor. Todavia, introduziran- se complexidades com os indios ¢ crioulos nascidos no scio da sociedade portuguesa e, assim, no tio facilmente discerniveis com base em diferengas culturais; esas complexida- des cram ainda maiores quando se tratava de individuos mestigos. O problema de situar esses individuos na ordem social tradicional levou crkigio da peculiar hierarquia social baseada na raga que passamos a associar a muitas colénias do Novo Mundo. 212 Os indios aculturados, os libertos € os mesti¢as livres eram definidos tanto pela cor quanto por categoria funcional ou estado tradicional. A cor conferia-Ihes identidade como um grupo, embora fossem reconhccidas distingdes. Desenvolveram-se no Brasil varias clas- sificagdes, mutaveis de acordo com o tempo € o lugar, Na Bahia eram comuns as designa- des mulato, cabra (mestigo de indio € negro), pardo (mulato mais claro) ¢ preto. As pes soas de cor geralmente arcayam com duas marcas de desvantagem. Primeiro, sua cor indi- cava claramente ascendéncia africana ¢, portanto, condigio social inferior, presumivelmente ade escravo, em alguma época do passado. Segundo, havia uma insinuagio de ilegitimida- de na existéncia de uma pessoa mestica, pois supunha-se que 0 homem branco normal: mente nao se casava com mulheres de condi¢a4o racial inferior. Aliavam-se a essas desvanta- gens Os preconceitos sobre as inclinagdes morais inatas dos mestigos, que amidide eram tachados de matreiros, ambiciosos ¢ indignos de confianga. Nao obstante, tais atitudes e a legislacdo disctiminatéria nao impediram a populagio parda de crescet ¢ tornar:se parce- la importante das categorias dos artesios, trabathadores assalariados e pequenos agricultores. As pessoas de cor livres formavam, na verdade, um grupo heterogénco, com elementos de varias origens, locais de nascimento, habilidades, graus de aculturagao e cores. Pouco havia de comum que os unisse, exceto a cor. A raga criara um sistema alternativo de esta- dos — branco, pardo, negro, indio — que se fundiu com a sociedade européia e a trans- cendeu, Se todos os negros tivessem sido escravos ¢ todos os cativos permanecido cativos, a situagao brasileira poderia ter-se ajustado com pouquissimas alteragGes aos principios tra- dicionais de organizacdo social. A complexidade originou-se da alforria de esctavos ¢ do nascimento de individuos mesticos, alguns nascidos livres € outros, escravos, estes tltimos sendo favorecidos no processo da manumissio. Esses individuos criaram novas categorias sociais que precisaram ser ajustadas a hierarquia social. ‘Um sistema que combinava definigdes ¢ graduagdes sociais bascadas em estado, fun- a0, identidade corporativa, religiio, cultura ¢ cor poderia ter-se revelado tdo confuso € sujcito a contradig6es inerentes a ponto de nem chegar a tornar-se um sistema. Porém ndo era esse 0 caso. A tendéncia era de sempre os viitios critérios de graduagio consubstanciarem- se correntemente em cada individuo. Assim, era mais provavel que um africano bogal fosse Pago, negro, nao aculturado, sem especializagao profissional, trabalhador na lavoura ¢, sem diivida, cscravo. Um homem branco era supostamente livre a aculturado, definido por estado ¢ fungio, ¢ tendia a situar-se no topo das varias classificagdes sotiais, Entre esses dois extremos, as pessoas de origens mistas ji ndo eram tao facilmente situadas. O regime de grande lavoura nao criow as graduacdes, mas sua éstrutura interna, com a propriedade como apanagio dos curopeus, o trabalho forcado proveniente de indigenas e posteriormente de cativos africanos ou crioulos, ¢ as fungdes artesanais ou administrativas exercidas por brancos mais pobres, negros libertos € pessoas de cor, reforcou a hierarquia social ¢ reafir- mou as graduagdes de uma forma pratica ¢ perceptivel, O engenho era um espelho ¢ uma metifora da sociedade brasileira. UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA Falar do Brasil colonial como uma sociedade escravista tornou-se lugar-comum, mas deyemos reconhecer que a base teérica original da colonia foi apenas parcialmente asso- ciada a escravido. Embora essa instituicao j4 existisse na peninsula ibérica antes da coloni- zagio do Brasil, ela era relativamente marginal aos princfpios essenciais da organizagao da sociedade por ordens como esta se desenvolveu na Europa. No Novo Mundo, a existéncia de escravos ¢ a formagao de uma populacio de origem mestica criaram novas realidades sociais que precisavam ser conciliadas aos principios portugueses de organizacio social pa- ra cf transferidos, Essa conciliagao foi facil. O Brasil, de certo modo, demonstrou a flexibi- lidade da sociedade por ordens sua adaptabilidade a navas categorias € situagdes sociais 213 A escravidiio da grande lavoura no Brasil ttansformou c ampliou as categorias tradicionais — transformou em pessoas de qualidade alguns individuos que nunca sonhariam em obter €ssa condicao em Portugal, e criou um novo estado de plebeus, formado pelos escravos. Entretanto, ao mesmo tempo, desenyolveu novos principios de hierarquia baseados na ra- ¢a, aculturacio e condicao social, A sociedade escravista brasileira nao foi uma criagio do escravismo, mas o resultado da integragio da escravidiio da grande lavoura com os princi pios sociais preexistentes na Europa. A distingao social maxima sobre a qual se assentava a sociedade brasileira era a divi sio entre escravos ¢ livres. Essa distingio juridica essencial, herdada da lei romana, dividia asociedade em indivfduos com direitos de pessoa c propriedade, que podiam teoricamen- te exercer direitos de “‘cidadios”, ¢ individuos que nio o podiam.'? Originalmente, tal di- visilo no se baseara na raga. Os cOdigos juridicos portugueses, como as Ordenagdes Ma- nuclinas (1514), ainda mencionavam escravos brancos ¢ mouros, mas em fins do século X¥I, @ escravidio no mundo portugués passou a ser cada vez mais associada aos africanos e scus descendentes.'’ Embora a distingio entre escravidio ¢ liberdade tivesse importan- tes implicagées juridicas, os antigos precedentes romanos ¢ ibéricos de servicio domésti- ca, 0 papel da Igreja Catdlica na insisténcia sobre a humanidade dos escravos, a elegibilida- de dos cativos como membros da Igreja ¢, conseqiientemente, seu direito a participagio nos ritos ¢ privilégios ¢, por fim, a existéncia de outras formas de subordinagio na socieda- de foram, todos, fatores delimitadores do relacionamento entre senhores ¢ escravos. Nem mesmo a condigao social de escravo estava isenta de variagoes, pois o costume portugues no Brasil reconhecia a condigio de “coartado”’, ou seja, o escravo que conseguira 0 direi- 10, expresso por scu proprietirio em testamento ou outro documento, de pagar pela prd- pria alforria; a esse cativo era permitida uma certa liberdade de movimentos ou a capacida- de de obter ¢ conservar a posse de bens que Ihe permitissem acumular a quantia necessa- ria. Em sintese, 0 coartado era um escrayo cm processo de transigao para a condigao social de livre. Contudo, apesar da existéncia dessas variagdes, da tradigio ou costume do pecu- lium escravo (posse de bens pelo cativo), € de a Igreja accitar escravos como membros, @ distingdo entre escravos € livres efetivamente dividia a sociedadé. Incapazes de firmar contratos, dispor de suas vidas € possuir bens, defender-se ¢ a sua familia dos maus tratos do proprictario, testemunhar contra homens livres, escolher seu trabalho ¢ empregador, ¢ limitados pela lei c pelos costumes de intimeros outros modos, os cativos permaneceram 0S elementos em situacio mais desvantajosa na sociedade. Em um mundo em que a linha- gem proporcionava uma base ao individuo, os escravos em geral nao possufam sobreno- mes ¢, efetivamente, nem familia reconhecida; em uma sociedade em que a honra refletia © status, pressupunha-se que a escravidio despojava o individuo de toda ¢ qualquer hon- ra. As pessoas de cor livres podiam sofrer com incapacidades legais ¢ ultrajes, estar sujeitas a-coercio legal e ilegal e ser tratadas com desprezo, mas seu sfatus cra infinitamente me- Ihor que o dos cativos. Ao menos, era o que estes achavam. S6 isso pode explicar por que tantos escravos brasileiros esforcavam-se com tanto sacrificio para conseguir juntar dinhei- ro para comptar sua liberdade ou a de seus filhos. Legalmente, a liberdade era importante.'* Enfatizo aqui o valor da distingio legal porque pretendo, ao mesmo tempo, negar énfase a distingao econdmica. Se havia no Brasil cscravos que cultivavam scu proprio ali- mento, comercializavam o excedente, exerciam fungSes especiatizadas, podiam acumular dinheiro para comprar a liberdade e, na cidade, como “negros de ganho'" (escravos de alu- guel), viviam ¢ trabalhavam por conta propria; e, simultaneamente, havia no Brasil indivi: duos livres que eram sujeitos a coergao, sofriam discriminagio, recebiam pouquissima re- munera¢io por seu trabalho ¢ cram tolhidos pelo costume e pela pratica, isso significa que, como earacterizagdes dle um sistema de trabalho, a esctavidio ¢ 0 trabalho livre no sio particularmente de grande auxilio para a compreensio do Brasil colonial.'’ Se escravos agiam como camponeses e camponeses eram tratados como escravos, as distin¢des per- dem a importancia e a capacidade de conduzir e fundamentar os estudos. Como 0 proleta- 214 riado, 0s escravos estavam separados dos meios de produgio, e a mais-valia de seu traba- Iho era apropriada pelos detentores desses meios de produgdo. Porém, nos engenhos da Bahia, como em outras partes, tanto os cativos quanto os assalariados viviam sob 0 contro Ie paternalista do proprietério, que encarava sua forga de trabalho live e escrava como algo mais do que mera mio-de-obra, Da perspectiva do senhor escravista, mao-de-obra es- crava ¢ livre nao erm mundos separados, mas dois pontos a0 longo de um continuum, cada qual com suas vantagens € problemas.'6 Uma ou outra podiam ser usadas conforme as condligdes politicas econdmicas vigentes. A mudanga do emprego da mio-de-obra es- crava paraa livre nos engenhos nordestinos, ocorrida na décadia de 1870, antes da aboligio da escravidio no Brasil, € um bom exemplo desse fato. A escravidio predominou na Bahia durante 0 perfodo colonial, mas em geral coexistiu também com varias formas de trabalho assalariado, Considero importante ressaltar aqui a relativa semelhanga ¢ compatibilidade de va- rias formas de trabalho no contexto do engenho e dos principios de um sociedade por es- tados com miltipios estratos, Ao mesmo tempo, nao pretendo diminuir a importancia da escraviddo como instituicdo que medrou nesse contexto € contribuiu para esses principios. Em certo sentido, Frank Tannenbaum percebera a disting2o fundamental, embora ele e seus seguidores nao apreendessem imediatamente seu significado. Seu livro Slave and citizen (1947) reconhecia no préprio titulo que a verdadeira diferenga em uma sociedade era a distingo legal entre essas duas condigdes sociais, que a facilidade com que um individuo podia mover-se de uma para outra era um indicador essencial do regime escravista."” A di- ferenca entre trabalho escravo ¢ livre era menos importante ¢, per se, nao nos informa so- bre as condigdes de vida dos individuos © fato de nao enfatizar as distingdes teéricas entre categorias de trabalhadores nio deve, porém, diminuir nossa percepcio do Brasil como uma sociedade profundamente in- flucnciada pela escravidio. Neste aspecto, a hist6ria teve seu papel, pois nao foi simple: mente 0 escravismo a molar ess sociedade, mas 0 escravismo da agricultura monoculto- ra.em grande escala, baseada inicialmente no braco indigena ¢ posteriormente no africano, criadora de hierarquias fundamentadas na raga € na cor, que refletiam a organizagio inte: na dos engenhos. A escraviciio e a raga criaram novos critérios de status que permearam a vida social ¢ ideol6gica da colOnia. A grande lavoura possibilitou a recriagiio do ideal de nobreza: uma vasta propricdade fundidria onde 0 dono pudesse exercer um controle pa- trlarcal sobre seus familiares e dependentes. A necessidade de uma numerosa forga de tra- balho criow um papel para esses dependentes, € 0 fato de estes serem escravos ¢ racialmen- te diferentes do proprietirio nao causou nenhum problema especial para aquele ideal. A sociedade senhorial revelou-se bastante adaptavel a esse respeito. Finalmente, a particular necessidade que tinha o engenho de trabalhadores especializados, artesdos ¢ feitores criou oportunidades de diferenciacao entre os cativos € fungoes que podiam ser exercidas por trabalhadores assalariados. Essas ocupacdes mais vantajosas ofereciam um lugar no regime dos engenhos para os individuos livres ¢ os mesti¢os, produtos da alforria ¢ da miscigena- Gao. A grande lavoura escravista nao criou 2 estrutura da sociedade brasileira, mas ligou-se a ela tio profundamente que as caracteristicas especificas que introduziu acomodaram:se facilmente naquela estrutura. As distingdes raciais € a escravidao penetraram em toda a sociedade, atingindo os aspectos mais corriqueiros da vida ¢ afetando as ages © percepgdes de cada um, escravo ou livre, branco, negro, indio ou mestigo. Os inimeros casos de libertos que possufam ¢s- cravos, de posse de cativos até mesmo por agricultores pobres, c até da existencia de escra- vos que adquiriam escravos indicam o poder ¢ a difusao dessa instituig’o."® Embora os afri- canos ou cativos pudessem conservar seus prdprios valores ¢ culturas, cram sempre restri- tos pela necessidade de agir dentro dos limites da sociedade colonial. No Brasil-colnia, ninguém estava livre da presenga da escravidio. 215 UMA SOCIEDADE FEUDAL? Faz-se necessdrio, agora, abordar uma questo que perturbou (c emprego essa pala- vta deliberadamente) a historiografia do Brasil ¢ da grande lavoura nas Américas, qual seja, a natureza feudal ou capitalista da sociedade brasileira, Como salientou Jacob Gorender em 1978, muito do que se escreveu sobre a sociedade brasileira tratou, conscienté ou in- conscientemente, desse assunto. Assim, a énfase no aspecto senhorial-patriarcal de autores da década de 1930, como Gilberto Freyre ou Oliveira Viana, foi basicamente uma interpre- taco do cardter feudal do Brasil, visao essa adotada posteriormente por historiadores mar- xistas como Nelson Werneck Sodré."? Contudo, esse feudalismo sem feudos, sem servos € sem 0s ritos de lealdade — um feudalismo caracterizado por grandes propriedades que empregaram mio-de-obra escrava e cultivaram um produto de exportacao para o mercado externo durante a transigio curopéia para o capitalismo — foi questionado por varios auto- res, que preferem usar termos como “'mercantilista’’, “capital comercial” ¢ “capitalist para descrever a sociedade do Brasil colonial? Em certa medida, existem realmente dois pontos nesse debate; por vezes, os expoentes das principais linhas de interpretagao referiram-se a coisas diferentes sob a designacao ni- ca de feudalismo. O debate na historiografia portuguesa ¢ brasileira cemonta a década de 1920, quando se ocupava basicamente da natureza juridica, concentrando-se nas origens da colénia ¢ especialmente no cariter das capitanias heredivirias. A preocupagio principal cra o relacionamento entra Coroa eo donatirio, os poderes que ela concedia ¢ as obriga- GSes que cabiam a estes Gltimos.*” Os capities-donatérios cram, pois, as figuras centrais do debate, ¢ suas cartas de doacdo ram os documentos cruciais a screm interpretados. Isso, porém, nao era tarefa simples, pois existira uma discussdo ainda mais antiga, em Por- tugal mesmo, acerca da existéncia ou nao do feudalismo naquele pais durante a era medie- val? Os que questionavam sua existéncia em Portugal também argumentavam, fundamen- tados no aspecto jurfdico, que a auséncia de servigo militar prestado em troca dos dircitos senhoriais significava que 0 feudalism como tal nio existira. Embora esse ponto de vista estivesse provavelmente correto em um sentido extremamente testrito, desconsiderava o fato de que o feudalismo variou ampkimente de um lugar para outro na Europa ¢ ainda a0 longo do tempo, Porém 0 mais importante € que a natureza da sociedade brasileira nao fol evidenciada por esse debate, pois 0 feudalismo estava ainda sendo usado como descri- cao de um sistema econdmico, o qual, nas palavras de Jacques Heers, “era quase sempre carregado com todas as possivcis implicagdes do mal”*> Esse autor, assim como outros medievalistas, alertou-nos para 0 fato de nao ter certeza quanto a0 significado exato de “feu- dalismo", ¢ nem de que este tenha realmente existido.** Para Marx ¢ os marxistas, 0 debate juridico dos medievalistas, concentrado nas rela- oes entre o soberano e os senhores, eta despropositado. Marx demonstrou que nao era necessiria a existencia do feudalismo como sistema politico para haver um modo de pro- dugio feudal no qual uma forca de trabalho dependente possui algum controle sobre os meios de producdo, pagando sua renda obrigatéria em dinheiro, espécic ou trabalho. Sua visio do feudalismo enfatizava as relagOes entre os senhores camponeses, € nao entre © rei c os vassalos. Essa interpretacio dd margem 4 possibilidade de existirem rekigdes so- ciais feudais em uma organizacao politica nao feudal. Era isso que Eugene Genovese ¢ Eli- zabeth Fox-Genovese tinham em mente 20 afirmar que "as economias coloniais ¢ de gran- de lavoura, baseadas essencialmente na monocultura, incorporam caracterfsticas de duas estruturas ¢condmicas diferentes, ¢ a macroestrutura do sector como um todo pode ter ape- has uma felagao indireta com a microestrutura das firmas individualmente’’ #5 Com efei- to, cles evitam o termo “feudalismo”’, preferindo ‘‘senhorialismo'', porque este no acar- rctaaconfusio que tanto sobrecarrega a palavra feudalismo e porque sua andlise preocupa- se com as relagdes sociais entre senhores € escravos. O senhortialismo €, de fato, um termo que merece aten¢o no contexto brasileiro, 216 porque as capitanias hereditdrias do Brasil sio, talvez, melhor definidas como exter do conceito portugues de “senhorio”.** Porém, como ressaltou Harold B. Johnson, 20 transferir-se esse conceito para as ilhas atlnticas e, posteriormente, para o Brasil, certas mudangas ocorreram. ‘Ao contrario de feudo tradicional, a concessdo nao dependia da prestacio de servigo, militar ou de outro tipo, e sim era dada em recompensa por servigos, Prestados no passado, presente ou futuro.””?” A época das doagdes das capitanias brasilei- ras, na década de 1530, as proprias concessdes eram diferentes de scus precedentes medie- vais. O foral tradicionalmente outorgado pelo senhor aos habitantes de suas terras era, no Brasil, concedido pela Cora, refletindo um processo que j4 vinha ocorrendo desde 0 sé- culo xiv em Portugal, em que a “nova monarquia”’ reduzita os poderes dos senhores so- bre suas terras ¢ dependentes. Embora as formas presentes em Portugal na cra medieval fossem transferidas para o Brasil, seu conteddo reflete novas realidades politicas, com 0 Estado desempenhando um papel central, Os poderes de exercer a justica e fazer nomea- Ges nas donatarias, reminiscéncias dos antigos senhorios, foram rapidamente revogados na col6nia, tendo sido bastante diminuidos apés a criacao do governo-geral do Brasil em 1549, Assim, a época em que comegou a florescer a economia acucarcira, na década de 1560, 0 Estado ja reduzira muitos dos poderes senhoriais dos capitaes-donatirios e assumi- fa um papel fundamental na formacio social e econdmica, 20 contririo de seus preceden- tes medievais. As capitanias hereditirias foram, pois, expressdes do senhorialismo portugues, mas de um senhorialismo que estaya, ele proprio, em transicao, ¢ que era cada vez mais contro- lado por um Estado centralizado e absolutista. Quando o Brasil tornou-se uma coldnia de grande lavoura, mesmo na defini¢io juridica tradicional pouco restava do passado feudal. (© Estado assumira um papel direto na alocagao de recursos ¢, conseqlentemente, na orde- nagao da sociedade, Os contemporincos perceberam que essas mudangas haviam ocorri- do, Nas décadas de 1620 ¢ 1630, a Coroa tentou obrigar os donatirios no Brasil a desenvol- ver ¢ defender pessoalmente suas terras.** Estes nso concordaram, ¢ uma comissio régia, pds examinar as cartas de doagio, declarou as terras como sendo de “juro ¢ herdade”’, sem existir a obrigacdo de serem defendidas pessoalmente, Nao existiam, pois, as obriga- c0es “feudais’. A Coroa acabou por encontrar um advogado para argumentar que as res- ponsabilidades dos donatirios como governantes implicavam prestagao de servigo mili- tar.® Assim, as fungdes militares ¢ burocriticas tiveram de ser usadas no lugar da senho- rial para mobilizar os donatarios. Como escreveu um jesuita por yolta de 1600, “os capi- tes destas capitanias do Brasil nao sio os senhores delas da mesma mancira que na Europa © €um homem de seu morgado ou casal'' 2° Em termos marxistas, tais debates cram estércis, se no indteis, pois “feudalismo” possui um significado especifico como um determinado modo de produgio, independen- temente da estrutura legal ¢ juridica em que esteja inserido. Assim, pode haver feudalismo. sema existéncia do feudo, contanto que estejam presentes os outros critérios, ou seja, uma classe camponesa ou servil sujcita a coergao extraccondmica que limite a liberdade pessoal € 08 direitos de propricdade, de modo que nem o trabalho nem o produto deste sejam totalmente comercializados. Nesse contexto, € 0 relacionamento entre o dono da proprie- dade (senhor) € os trabalhadores (servos) 0 objeto principal de consideracao, ¢ nao as rela- ges entre os senhores ¢ © soberano, como na tradigio hist6rico-juridica>! ‘Tendo em vista as estruturas de cada uma dessas interpretacdes, parece evidente que 05 clementos usuais do feudalismo nao caracterizaram o Brasil em geral ou a grande lavou- ra baiana em particular. Quaisquer aspectos senhoriais que possam ter existide nas capita- nias hereditirias foram sendo gradualmente extintos com a criagio do governo-geral em 1549, A economia baseada no brago escravo que se desenvolveu na industria acucareira enquadrou-se no critério de um sistema predominantemente agririo em que a unidade pro- dutiva basica era a grande propriedade fundisria, mas nao apresentou outras caracteristicas necessirias, tais como um baixo nivel de forcas produtivas ¢ de trocas comerciais.*? So- 217 bretudo, nao houve um campesinato, uma vez que a produgio foi predominantemente ba- seada no braco escravo. A agricultura de subsisténcia em pequena escala sempre existit: em algum grau na colonia, mas essa categoria nao cresceu em tamanho ou importancia até © século xvii, Ademais, os pequenos agricultores que mais se aproximaram do clissico cam= pones europeu foram, muitas vezes, cles prdprios, donos de escravos. Entretanto, a auséncia de feudalismo na esfera politica ¢ a inaplicabilidade desse ter- mo A designagdo da organizacio da produgio ndo nos deyem impedir de reconhecer a exis. téncia de uma ideologia mantida pelos senhores de engenho ¢ por outros individuos na- quela sociedade, a qual era essencialmente hierérquica, fundamentada na dominagio ¢ gra- duagao, movida ao menos teoricamente pela patranagem e lealdade, ¢ ligada 2 concep¢o catdlica das esferas civil e religiosa, Essas atitudes, quer as denominemos pré-modernas, senhoriais ou feudais, ndo tiveram origem na coldnia, mas em uma sélida base de tradigoes portuguesas €, verdadciramente, curopéias. Nio obstante, prestaram-se bem aos interesses €4 posicao dos grandes proprietirios que, como 4rbitros do gosto ¢ do estilo e detentores do poder, dominatam as instituigdes socials ¢ politicas da coldnia. Essas atitudes nio signi- ficam que os proprietérios de escravos no Brasil tratayam melhor seus cativos do que os senhores “capitalistas"” do Mississipi no século x1x. Como j4 vimos, 0 lucro foi a principal meta durante toda a historia da inddstria do agiicar, ¢ a natureza da produgio agucareira, aliada & principal tcoria sobre a administragdo da escravaria, produziu um regime que era as vezes tdo cruel ¢ opressor quanto qualquer outro. Ainda assim, a exploragio foi inserida ‘cm um contexto ideolégico em que predominaram as metiforas da familia, obrigagao, leal- dade € clientelismo. Quando, por ocasiao de uma alforria, 0 senhor afirmava, como muitos © fizeram, que “dou liberdade a minha escrava porque a criei como minha propria filha, em reconhecimento dos muitos anos de servidio leal € para os 200$000 que me pagou”, ssa unidade entre lucto € paternalismo tornava-se evidente.? Embora possamos achar que ja uma contradigio, os proprietarios de escrayos no Brasil ndo pensayam assim. ‘Assim como os escravos que cultivavam seu proprio alimento ndo cram exatamente camponeses, também os senhores de engenho que buscavam o lucro no eram necessaria- mente capitalistas, As grandes propriedades escravistas do Brasil estiveram incontestavel- mente ligadas a um sistema econdmico curopeu em fase de expansio comercial, aquela paca dominado pelo capital mercantil que estava, cle préprio, transformando a vida so- cial e politica na meir6pole, mas nada havia que impedisse o desenvolvimento de relagbes com base no trabalho escravo ou forgado de suprir esse sistema comercial. Quer se actedi- te ou niio na interpretacio de Wallerstein de que o desenvolvimento de formas arcaicas de trabalho na petiferia do sistema internacional europeu cra inevitivel (0 que nao acredi- to), no havia, com toda certeza, contradicao inerente na existéncia da grande lavoura es- cravista no seio do sistema comercial mercantilista. A grande preocupagio em caracterizar as colénias do Nove Mundo como feudais ou apitalistas provocou um debate amplo, ainda que muitas vezes pouco esclarecedor. Uma tendéncia recente e racional € evitar a descrigio classificat6ria € dedicar-se A andlise das racteristicas especificas dessas colOnias e especialmente de suas formas de trabalho pre- dominantes, No Brasil, essa abordagem conduziu 2 definigio do regime escravista brasilel- ro como um “modo de produgio escravista colonial” e varios estudiosos tem procurado identificar ¢ analisar suas peculiaridades ou suas caracteristicas gerais. Até aqui, procurei seguir essa linha, examinando a formagao do sistema de grande lavoura no Brasil, scu fun- cionamento e organizagio interna €, especialmente, a natureza € as relagdes sociais de mio- de-obra, Ao fazé-lo, aceitei a sugestdo de Octivio lanni, de que “é necessario estudar as relacdes, Os processos € as estruturas politico-econdmicas que Ihe conferem [a formagao social] realidade © movimento”. Como Ianni, acredito que nio devemos simplesmente li- mitar 0 estudo ao modo de produgio, mas temos também de dedicar-nos as questdes mais amplas das ées sociais, politicas € intelectuais da sociedade como um todo. Ac: nensé dito que isso sefa o que Marx tinha em mente a0 afirmar serem as relugdes socials de produ- isso s 218 a0 “os segredos mais intimos, a base oculta de toda a estrutura social’’35 A penetragio do escravismo em todos os aspectos da vida, sua capacidade de ordenar a sociedade e in- fluenciar © comportamento nao 56 de senlores ¢ escravos mas também de burocratas ¢ camponeses, libertos ¢ livres, brancos, pardos € negros — esse era o poder dessa institul- cdo. Nada se podia fazer ou decidir, nenhum pensamento era expresso sem 20 menos 0 reconhecimento ticito da forma dominante de trabalho ¢ da populacdo servil que ela criara. O ESTADO E A SOCIEDADE Nao basta caracterizar o Brasil colonial como uma sociedade escravista ¢ nesse ponto terminar 0 estudo, pois isso significa ignorar o papel fundamental desempenhado por uma forma politica especifiea na formagio daqucla socicdade. O desenvolvimento do Brasil co- lonial durante 0 perfodo em que a Europa moderna vivia suas primeiras experiéncias com aS monarquias centralizadas, os Estados absolutistas, foi marcado de diversas formas. O fa- to nao € simplesmente que as leis, as instituigdes administrativas ¢ os funcionarios régios demarcaram os perimetros da sociedade ¢ criatam o contexto da economia, mas que o pré- prio Estado era o nivel em que finalmente se resolviam as disputas entre grupos ¢ interes- ses. A idéia webcriana de Estado adotada pela maioria dos estudos sobre © governo colo- nial na América Latina enfatiza a burocratizagio do Estado e seu crescente poder politico como processo independente de uma base econdmica ou social especifica. Ao considerar- se esse Estado uma forca crescentemente poderosi ¢, portanto, independente, seu papel como regulador de interesses diversos na sociedade ¢, em dltima andlise, como expressio do poder de certas grupos ou classes eclipsado. Até aqui, este livro procurou demonstrar 4 maneira como os senhores de engenho procuraram controlar as politicas do Estado ¢ usar 0 poderes governamentais para atingir seus préprios objetivos. A seguir, dedicaremos es- pecial atengao a mudangas na politica colonial portuguesa em relagio aos interesses de gru- pos concorrentes na metrdpole € na colénia. Assim como qualquer caracterizaga0 da economia ou da estrutura social da colénia como feudal ou capitalista é muito problemtica por ser uma supersimplificacio, também € questionavel tentar tipificar o Estado moderno emergente com um tinico termo, Foi o Estado absolutista, como aventaram Marx ¢ Engels, um equilfbrio entre uma “nobreza feu- dal ¢ uma burguesia urbana’ €, portanto, de certo modo independente, ou teria Engels chegado mais préximo da verdade ao afirmar que ‘a ordem politica permaneceu feudal enquanto a sociedade tornou-se cada vez mais burguesa’’? >” Perry Anderson acredita que © Estado absolutista era um “aparato reorganizado ¢ reativado da dominagio feudal”, mas julgo que nesse aspecto cle confunde a continuagao da presenga dos nobres em posicdes de autoridade com a posigio hegemOnica da nobreza.}* No caso portugues, alguns consi- deram a criagdo de uma monarquia fortemente centralizada aps 1385 como uma manifes- tagao da ascensdo de elementos mercantis ou burgueses a predominancia politica. Acredi- to que também essa idéia seja ilégica, pois atribui a esses clementos um papel excessiva- mente precoce. Como sua prépria época, os Estados absolutistas eram elementos de transigio, e 30 apresentavam uma correspondéncia entre 2 superestrutura politica e a esfera econdmica, © papel do Estado era levar a cabo a transiglo até a obten¢ao daquela correspondéncia. A monarquia centralizada em Portugal sob as dlinastias de Aviz, Habsburgo ¢ Braganga, as- sim’como os Estados absolutistas em outras partes da Europa ocidental, destinavam-se no a climinacao da sociedade senhorial mas, em cert medida, a preservacio da mesma. Essa monarquia nao foi, de modo algum, revolucionaria em seus abjetivos ¢ foi, incontestavel- mente, conservadora no que tange as relagdes de produgao. Entretanto, em seu poder ine- rente € em sua estrutura burocratica havia elementos potencialmente perigosos que pode- riam originar noyas formas. Sob extrema pressao militar ou ccondémica, certas relagSes € 219 prtiticas econdmicas poderiam ser consideravelmente alteradas de maneiras potencialmen- te revoluciondrias ou subversoras dos principios sociais ¢ politicos estabelecidos. A cria- Jo de companhias comerciais monopolistas durante a Guerra da Restauragio (1640-68), a politica de Pombal (1757-76) ¢ as alteragdes politicas durante € apés as Guerras Napoled- nicas (1807-20) foram, todas, periods € casos em questiio. Como € quando tais elementos poderiam acarretar o enfraquecimento da sociedade senhorial ¢ incentivar diferentes rela- des sociais ¢ modos de pensamento € expresso em cada um dos Estados curopeus € as- sunto para andlise empfrica. Isso conduz a duas adverténcias que, espero, guiam minha andlise na parte restante deste estudo. Em primeiro lugar, ao examinar o regime dos engenhos na Bahia ao longo de todo 0 perfodo colonial, percebi que qualquer tentativa de caracterizar o periodo como um todo com apenas um termo politico ou social tende a encobrir ou ignorar a especifici dade histérica, a nuance € a dindmica da mudanga. O regime de grande lavoura com mio- de-obra indigena no século xv1 foi, sob alguns aspectos, diferente do regime que empre- gou escravos africanos no século xvill. Desconsiderar esse ponto € desconsiderar tudo o que € da algada da hist6ria. Deve-se ter em mente © aviso de Marx: nunca chegaremos 4 compreensio da historia “usando como chave-mestra uma teoria histérico-filoséfica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-hist6ria”»? As decisoes ¢ agdes humanas e os eventos especificos em lugarcs determinados foram importantes, como sempre sao, Em segundo lugar, também me dei conta de que o papel do Estado na politica colo- nial apresenta um conjunto especial de problemas, porque o aparato estatal nfo representa necessariamente os interesses do grupo dominante na col6nia, mas pode refletir as situa- ¢6es € conflitos na metropole. Ao mesmo tempo, também € posstvel que possa ser permiti- doa certos grupos na coldnia controlar recursos econdmicos ¢ sociais € ser, de fato, domi- nantes, desde que seu bem-estar beneficie os interesses da metrépole. Os senhores de en- genho baianos tinham pretensdes ao status de nobreza que nunca foram completamente satisfeitas pela Coroa portuguesa. Porém, durante longos perfodos em que os elementos mercantis na propria metropole foram importantes na formulacdo da politica do Estado, (os grandes proprietirios do Brasil foram mimados e protegidos. Neste caso, parece ter ha- vido uma unidade de interesses entre uma classe colonial ansiosa por transformar-se em um estaclo feudal ¢ uma classe mercantil na metropole que almejava eliminar o poder da nobreza em Portugal. Contanto que o valor da colonia brasileira fosse gerado primordial- mente pelo investimento privado no setor agricola, o Estado dispunha-se a permitir aos senbores de engenho um dominio irrestrito ma coldnia, Quando, em fins dos séculos xv © Xvi, a agricultura exportadora enfrentou dificuldades ¢ 0 ouro tornou-se importante para 4 economia brasileira (ap6s 1695), o Estado assumiu um papel muito maior na ordenagao, das forcas produtivas colonials. As aces de Pombal, que examinaremos no Capitulo 15, seriam impensaveis um século antes. As mudangas politicas, as novas formas econdmicas eas alteracdes nas aliangas sociais precisaram bater-se contra a inércia, a tradigio ¢ os inte- resses entrincheirados, de modo que a hist6ria dos trés séculos da era colonial foi essen- cialmente uma historia de persisténcia em vez de mudanga. Contudo, nao ha davida de que a equagio social ¢ econdémica da vida brasileira em 1620 diferiu consideravelmente da de 1820, Embora 0 fluxo € 0 refluxo dos alinhamentos sociais ¢ as mudangas nas politi- cas governamentais sejam relitivamente faceis de documentar, as alieragdes nas atitudes silo mais dificeis de ser percebidas. Com efeito, a mentalidade senhorial parece ter perma- necido fortemente entrincheirada ¢ amplamente difundida por toda a sociedade, mesmo depois de a base original de sua formagao ter sido significativamente modificada, ‘As socicdades de grande lavoura no podem ser reduzidas as relagdes entre senhores © escravos, devendo ser estudadas com alguma atengao 20s contextos politicos ¢ sociais nos quais existitam em um dado momento histérico, O relacionamento entre o governo metropolitano ¢ ais hierarquias sociais coloniais poderia, isoladamente, servir de base a um estudo detalhado. Este meu objetivo neste livro. Porém, antes de prosseguir a anali- 220 se, desejo abordar duas questOes que se relacionam mais diretamente ao Estado € As forgas produtivas coloniais: a criagdo ¢ execucao das leis ¢ o papel da burocracia na colénia. O crescente poder do Estado portugués esteve fortemente ligado ao triunfo da lei romana cao desenvolvimento de uma burocracia judicidria que administrava as leis ¢ atua- yaa servigo régio em diversas fung6es governamentais. © sistema legal que essa burocracia criou ¢ imps proporcionou uma estrutura necessiria a0 controle da propriedade € do co- mércio € a distribuicao, troca ¢ controle da mao-de-obra.*” Os cédigos legais portugueses englobaram ¢ ampliaram a tradicao legal romana ¢ representaram a vitéria de um conceito atraigado de propriedade incondicional ¢ absoluta sobre a idéia da propriedade condicio- nal, ou “posse feudal”,! Embora a burocracia judiciiria administrasse tanto a lei publica quanto a privada, foi no Ambito da lei piblica — lex —, que regulava as relagdes entre os stiditos ¢ 0 Estado, que o papel da burocracia como forga ordenadora da sociedade mais se evidenciou. A despeito do ideal nobre de controle senhorial sobre dependentes ¢ pro- priedade, o Estado portugues e sua burocracia régia penetraram cada vez mais em todos 0s aspectos da vida ou, pelo menos, possufram 4 capacidade de faze-lo, Entretanto, quando se trata da escravidao, 0 Estado ¢ seus funcionarios mostraram- se notavelmente omissos. Os cédigos legais portugueses, como as Ordenagées Filipinas (1603) contém poucas referéncias escravidio, ¢ as que existem referem-se claramente as rela- 0es sociais de um periodo anterior de servidao doméstica em que mouros € até brancos ainda cram escravizados. Nao tratam primordialmente da escravidio da grande lavoura ba- scada no braco africano. Com a exce¢ao de algumas admoestagdcs, cssas Icis destinavam- se essencialmente 2 limitar as agdes ¢ a mobilidade dos cativos ¢ a impor um severo contro- le sobre a forga de trabalho, Elas nfo interferiam no controle do senhor sobre seus escrayos. No Brasil prevaleceu essa mesma situacio, ¢ a Coroa raramente interveio na condu- do interna do regime escravista colonial. No lugar da lei, foram a organizacao interna a operacio do engenho, as técnicas de produgio, a teoria do controle da escravaria ¢ 0 relacionamento dinamico entre senhores e escravos que ordenaram as relagdes sociais bra- sileiras ¢ moldaram a natureza da escravidao. A Coroa, em raras ocasioes, interferia. De fins da década de 1680 até 1710 houve varios casos de julgamentos na Bahia em que os maus tratos de escravos pelos senhores foram levados aos tribunais civeis. Os juizes, porém, ten- diam a ser clementes; em um caso, quando a Coroa tentou forgar a venda de um cativo que comprovadamente sofria com as crueldades do proprietario, 0 governador da Bahia recusou-se a executar a sentenga porque isso subverteria toda a estrutura social da cold- nia.“ Em suma, 2 Coroa portuguesa € seus funciondrios geralmente revelaram-se inaptos ou nao dispostos a interferir no funcionamento do modo de produgio dominante ou em suas relagdes sociais basicas. Foi um caso de perversa negligéncia. © governo local —as cimaras —, controlado pelos senhores de engenho, empenhava- se muito mais do que © governo metropolitano em estabclecer os padrdes de comporta- mento ¢ de controle sobre as escravos € as pessoas de cor livres. No tocante a escravidio, a Coroa essencialmente nao interferia. Embora houvesse periodos de intervengao régia, como em 1683-1706, sob dom Pedro 1, ou a era pombalina, eles eram de alcance relativa- mente limitado e visayam ao préprio sistema produtivo apenas em raras ocasibes ou sem muita determinagio. Muito mais atengao ¢ legislacio do que a dedicada as relagdes entre proprietirios ¢ escravos ou empregados cram devotadas 4 tributacao, organizagio comer- cial ¢ relacionamento entre comerciantes € senhores de engenho ou entre credores € devedores. Durante o século xvi podem ser observadas tanto em Portugal quanto no Brasil uma tendéncia a intensificacio do controle do Estado sobre os senhores de engenho ¢ uma mu- danga em diregao a politicas em favor dos grupos mereantis. Tais politicas, porém, foram empre limitadas pelas atitudes e interesses comuns a senhores de engenho e comercian- . Ja vimos como, em termos da organizagao crediticia, o mercado limitava 0 raio de agi0 221 a legislacao vidvel ¢ criava a base para a alianga ¢ cooperagio entre as duas partes apesar dos inerentes antagonismos. Enquanto a agricultura de exportagdo permaneceu como ati- vidade principal no Brasil, existiu uma certa unidade de interesses entre senhores de enge- nho, comerciantes ¢ o Estado; este, independentemente de consideragdes de classe, mostrou- se disposto a conceder aos senhores de engenho uma relativa liberdade de controle sobre a coldnia. Isso nao foi feito porque o Estado era fraco. Muito pelo conirario, como na cold- nia o Estado absolutista era relativamente livre do entrave dos direitos feudais, dos organis- mos representativos ou de antigas liberdades costumeiras, podia exercer uma “‘autoridade exclusiva ¢ Gnica’’, restrita apenas pela geografia ¢ pelo mercado. Podia, portanto, favore- cer ou proteger quem bem entendesse.4 Isso nos leva 3 iiltima questo: o papel da burocracia na sociedade. Tornou-se popu- Jar na historiografia brasileira identificar um conflito inerente entre o Estado ¢ a sociedade, em vez de procurar examinar a maneira como 0 modo de producio escravista colonial re- sultou da alianca entre classes ou da cooperacio entre grupos. A interpretagio mais con- vincente do conflito é a de Raymundo Faoro, que vé o poder sempre crescente do gover- no opondo-se aos interesses coloniais ou nacionais.‘> Faoro tende a considerat a burocra- cia como um estrato independente ¢ autopromotor que usa os objetivos do Estado em be- neficio proprio. Ha razoes histOricas ¢ te6ricas para considerarmos insatisfat6ria essa visio do papel da burocracia. O poder do Estado nao ¢ equivalente ao aparato estatal.“ As ins- tituigdes per se niio detém o poder; so os grupos sociais que o exercem através das insti- tuigdes. A posigio de Faoro tende a separar o Estado ¢ a burocracia das relagdes economi- cas que definem a sociedade. Historicamente, os funcionarios governamentais ¢ os burocratas régios niio foram uma ctiagdo da sociedade dos cngenhos, mas seus modeladores ¢, como seres humanos, esta- vam potencialmente sujeitos a ser atrafdos para o scio daquela sociedade. Faoro subestima a capacidade dos grupos sociais locals de formar aliangas com a burocracia para promover Os interesses locais — neste caso, os do setor agucareiro.4? Os burocratas, especialmente ‘05 magistrados régios, apresentaram inegavelmente uma certa tendéncia ao carreirismo € 20 empenho em objetivos profissionais, ¢ desenvolveram uma identidade corporativa, Po- rém, como outros grupos sociais, também aspiravam ao status, as insignias € aos direitos da nobreza € a participagio no modo de vida aristocrético. Também eles compartilhavam a visdo senhorial, ¢ muitas vezes consideravam a alianga com a classe dos senhores de en- genho como uma forma de coneretizar seus desejos. Em vez de assumirem uma postura de oposicao as clites locais, os burocratas régios procuravam, através de casamentos, pa- rentesco, socicdade nos negdcios ¢ cooperagio, forgar aliangas com aquelas elites. No Bra- sil colonial, Estado ¢ sociedade nao foram fendmenos antagénicos. O Estado absolutista facilitou e manteve o sistema produtivo predominante e a sociedade nele alicercada, por- que permitiu a essa sociedade uma certa liberdade para desenvolver-se segundo linhas ine- rentes as relagdes econdmicas predominantes no contexto dos valores ¢ principios sociais tradicionais. O restante deste livro procura, portanto, descrever ¢ analisar 05 grupos socials cria- dos pelo regime dos engenhos ¢ examinar seu inter-relacionamento no contexto da socie- dade eseravista. Entretanto, cm vez de considcrar esses grupos imersos em algum tipo de inércia, espero demonstrar que havia dois processos paraleios em andamento: primeiro, © regime escravista esteve constantemente sujeito a pressOes inerentes a sua propria orga- nizagao ¢ natureza, de modo que a resistencia, a alforria, a demografia ¢ o mercado interna cional tenderam, todos, de varios modos, a romper a estrutiura social. Em segundo lugar, as mudangas na sociedade como um todo, o crescimento de uma populagio livre ¢ o de senyolvimento de novas politicas ccondmicas c novas id¢ias politicas em resposta a nova condigées histéricas proporcionaram oportunidades para alteragdes no sistema escravist A tensio entre a persistente forga do escravismo como um sistema social e produtivo ¢ as pressdes exercidas sobre ele por sua propria estrutura e caracteristicas internas € por eventos politicos ¢ comerciais extermos constitu a linha hist6rica dos demais capitulos deste livro.

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