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cao e conflito « Guia de educagao para a convivéncia Xesus R. Jares “THTULO: Bducagio e Conflito ~ Guia de Bducagio para a Convivencia ‘TITULO ORIGINAL: Baucacion y conflito ‘Guia de edacacién para fa convivencia © Editorial Popular, 2001 AUTOR: Xestis R Jarez "TRADUGAO: osé Carlos Bufrézio (COLBCGAO: PRATICAS PEDAGOGICAS DIRFCGAO: José Matias Alves CAPA: Xavier Neves, © 2002, Eigoes ASA (para a edigao portuguesa) DEPOSITO LEGAL N! 180 276/02 ‘Agosto de 2002 /1: Bdigéo Execugio Grifica (GRAFIASA ASA Editores II, S.A. SEDE Av. da Boavista, $265 ~ Sala £1 Telef.: 226166030 Fax: 226155346 Apartado 1035 / 4101-001 PORTO PORTUGAL E-mail: edicoes@asa.pt Internet: www.asa.pt DELEGAGAO EM LISBOA Horta dos Bacelos, Lote 1 Telef.: 219533800/09/90/99 Fax: 219568051 2695-390 SANTA IRIA DE AZOLA PORTUGAL | | bh Uma relacao silenciada Neste capitulo vamos realizar uma andlise centrada na dimen- so organizativa da educaco, por ser 0 espaco em que, com maior dareza, se reflecte esta relacdo Como vimos no capitulo anterior, o conflito teve e tem uma ine- quivoca percepcdo negativa. Este facto nao é devido as diversas acep- Ses negativas ligadas, na maior parte das vezes, a distintas formas de violéncia, mas sim A perspectiva hierérquica dominante da educacio, em que a relacdo de poder professores-alunos ou pais-filhos exclui qualquer possibilidade de conflito. Daf que o passar por conflituoso tenha sido outrora e, em grande parte, continue a ser sinénimo de pessoa rebelde, desobediente, que néo cumpre as normas, etc. Um bom exemplo desta visdo negativa do contflito esta no tratamento que Ihe € dado nos manuais de Organizacdo Escolar. Até hd pouco, na maior parte deles, a dinamica do conflito quase nao existia ou, se se lhe fazia qualquer referéncia, era em tom negativo e como algo a evitar. Educagao e conflito seriam, de acordo com esta perspectiva, termos que se excluem mutuamente, que ndo admitem conjugacao possivel: o aparecimento do conflito quebra o processo educativo, o conflito quebra e destréi o que a educagao une e cria. Desta forma, 0 conflito foi exilado do reino da educagao, a ponto de, quando ele surge, as respostas que se the dao j4 nao serem de tipo educativo. E, contudo, como observa M. W. Apple, “o sistema educativo e as suas politicas e praticas internas construfram-se, historicamente, a partir de conflitos” (1989: 189). Esta situag&o acarretou, como consequéncia, a falta de respos- tas e de formacdo sobre o conflito que vieram agravar, ainda mais, a nossa relagdio com este processo social. Dad a impressdo que, perante o conflito, s6 hd lugar para a fuga ou para a vitéria. Daf os estados animi- cos negativos associados ao conflito, como a ansiedade, o mal-estar, a tensdo, etc, reflectidos, em grande parte, no vocabulario dos professo- res, como tivemos ocasido de verificar no capitulo anterior, e que provo- cam uma atitude de reptidio, de fuga, etc., e mesmo de temor face & pos- sibilidade de se ficar envolvido em situagSes conflituosas. Em muitos 57 EDUUCACRO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCAGAO PARA ACONVIVENCIA casos, as estratégias desenvolvidas por alguns professores, individual. mente ou em grupo, direccionam-se no sentido de evitar o conflito. Assim, por exemplo, um dos argumentos apresentados, com mais frequéncia, em muitas escolas, para a recusa de cargos directi- vos €, precisamente, a inevitabilidade da ocorréncia de conflitos. Esta afirmagdo surgiu em algumas investigages. No item “motivos aduzi- dos pelos elementos da direccdo das escolas para explicarem a auséncia de candidatos a cargos directivos” da investigagao de Gimeno, Beltran, Salinas e San Martfn (1995) sobre os Orgdos de direccdo das escolas, a resposta “cria muitos conflitos a varios niveis atinge o segundo lugar (20,3% das respostas) na ordem dos motivos aduzidos pelos préprios elementos da direcgao, resposta a qual, em nossa opiniao, ha que juntar os 18,5% que respondem “cria confron- tos com colegas e um dia vais voltar a ser um deles” (18,5%). Deste modo, o facto conflitual ocupa o primeiro lugar, muito embora os citados autores 0 cologuem em segundo, atrds de “o tra- balho aumenta de forma considerdvel” (20,8% das respostas). A mesma pergunta feita aos professores coloca a resposta “cria muitos conflitos a varios niveis” ern primeiro lugar (20% das respostas), a que terd de se somar, como se fez no caso anterior, a resposta que surge em segundo lugar: “cria confrontos com colegas e um dia vais voltar a ser um deles” (18,4%). Como se vé, entre a comunidade docente o medo da conflitualidade é ligeiramente superior aquele que sentem os proprios elementos directivos em exercicio. Nos cursos de acredi- tacéio para o exercicio de fungGes directivas que temos dado nos dois tiltimos anos nas cidades da Corunha, Ferrol e Santiago aplicdamos, em parte, o mesmo questiondrio da investigacao citada anteriormente e obtivemos resultados semelhantes. E, contudo, todas as instituigdes (Alcaide, 1987; Mouzelis, 1991) — e a escola nao constitui, propriamente, uma excepgéio neste campo ~ se caracterizam por albergarem em si diversos tipos de contflito, de diversa indole e de diferente intensidade. Debaixo de uma aparen- te imagem de auséncia de conflitos, os conflitos didrios so um pro- cesso e uma das caracteristicas centrais e definidoras das escolas: Conflitos entre professores, conflitos entre professores e alunos, confli- tos entre professores e pais de alunos, conflitos entre os professores 58, dual- com ecti- Esta | duzi- ma > de sde veis” ivos /em ‘ron- tuito tra- stitos que urge tara te o item tedi- dois nos, ente elis, este flito, wen- pro- clas. | onfli- ores EDUCACAO E CONFLITO eos 6rgaos directivos das escolas, conflitos entre os alunos, conflitos entre pais/maes, conflitos entre a escola enquanto tal e os servicos de educacdo, etc. constituem uma pequena amostra das miltiplas situa- goes conflituosas que todos vivemos ja, de algum modo, nas nossas escolas € que, inevitavelmente, provam o caracter conflituoso dessas mesmas escolas. Como observa F. Beltrén, “a organizagao escolar nada mais € do que uma encruzilhada de conflitos’ (2000: 97) Face a esta situacdo objectiva, verificamos a escassa importan- cia que tradicionalmente foi e continua a ser dada ao conflito, como objecto de estudo da Pedagogia em geral e da Organizagao Escolar em particular. O conflito comeca agora a gozar de um interesse crescente nesta ultima disciplina, especialmente no 4mbito do comportamento organizacional (Gairin, 1992: 1), sendo mesmo considerado por alguns autores como o “tema-chave” da Organizacao Escolar (Ferrandez, 1990; Ball, 1990); mas a situag&o dominante continua a caracterizar-se pela indiferenga face a realidade do conflito. Como explicar este facto? O que é que deu origem e mantém camuflada a natureza confli- tuosa das escolas? Como é possivel que, na formagao inicial e contf- nua dos professores, esta situacdo ndo seja objecto de andlise nem eles sejam formados na perspectiva de um contexto de conflito, igno- yando a formagéio de uma competéncia em relagdo ao mesmo, as suas manifestacdes e as formas de o encarar? Pensamos, obviamente, que esta situacdo, longe de ser fruto do acaso, se liga directamente a expressdo dominante de um tipo de ideologia, a ideologia tecnocrati -positivista, que nega e estigmatiza a existéncia do conflito. “A escola julga-se alheia A realidade do conflito e da luta, resultantes da exis- téncia de diversos interesses defendidos por diferentes classes e gru- pos sociais” (Torres, 1991; 53) 59 ad Conflito e concep¢ao educativa Como afirmdmos ja (Jares, 1996), € dado pouco relevo ao con. flito nos estudos e manuais classicos de Organizacao Escolar (OE), ¢ quando se the faz referéncia, as avaliagdes ndo coincidem, sendo até las, em funcdo precisamente da concepgao educativa com base na qual os juizos sdéo emitidos. Daf que o objecto deste pardgra- fo seja a andlise do tratamento do conflito na educa¢ao, no ambito de trés grandes paradigmas. 2.1. A visao tecnocratico-positivista do conflito Como observamos, na actualidade, tanto na sociedade em geral como no sistema educativo em particular, predomina a concep- Ao tradicional-tecnocratico-conservadora do conflito. De acordo com esta perspectiva, a sociedade-modelo seria aquela em que nao existi- riam conflitos, de tal forma que, segundo este ponto de vista, a “assuncao ideolégica basica (talvez necessariamente inconsciente) do conflito, e especialmente do conflito social, nao constitui uma carac- teristica essencial da rede de relagdes sociais a que chamamos socie- dade” (Dahrendorf, 1968: 112). Como chama a atengao Robbins, refe- tindo-se a diversos grupos e instituicdes sociais, “a dissensdo é considerada negativa seja a que nfvel for” (1987: 301). As teorias classicas acerca da Organizacdo Escolar, como, por exemplo, as chamadas “teorias directivas’, "teorias funcionalistas”, “teoria do sistema”, etc, ou omitem qualquer referéncia ao conflito ou, entao, caracterizam-no como um desvio, algo disfuncional, pato- légico e aberrante. “Torna-se evidente que 0 conflito tem de ser objec- to de remediacao ou de orientagao e ser tratado como se fosse uma doenca que invade e corréi o corpo da organizacao. Para a teoria da direcgdo, nalgumas das suas verses em que as motivagées € psicolo- gias individuais comecam a ser referidas, qualquer manifestacao de conflito ou contestacgdo é tida como indicador de desajustes ou insa- tisfacdes pessoais” (Ball, 1990: 131). De acordo com esta visdo tradicio- nal, “a gestao da escola sé serd estdvel, facilitada e facilitadora quan- do for possivel prever e minimizar os conflitos" (Brito, 1991; 26). Esta 60 > con- DE), e lo até accom régra- ito de zo ieesicmteomrarecerms i i EDUCAGAO B CONFLITO. jdeologia explica, em grande parte, a enorme resisténcia de muitas escolas falarem de conflitos, quando nao os negam pura e simples- mente. Deste modo depardmos com professores e, sobretudo, com elementos da direccdo que afirmam que, nas suas escolas, nao ha conflitos. Posigao que, & partida, sé se compreende do ponto de vista desta visio ou, como também observamos, por se confundir conflito com violéncia Noutro plano explicativo, embora partindo de idéntica formula- do, “o conflito ou o desacordo é interpretado como um desvio da tare- fa, derivado mais da reaccéo emocional do que da oposiggio dos que definem a tarefa da comunidade de forma diferente” (Hannan, 1980: 90). Por conseguinte, o conflito 6 considerado como um “elemento que acaba por prejudicar gravemente o normal funcionamento da organiza- cdo. Daqui derivavam por isso estratégias que sugeriam ao dirigente uma intervencdo oportuna — através de uma cuidada programacdo das actividades e da utilizagao de processos de controlo — para prevenir ou limitar ao maximo as situagGes de conflito” (Ghilardi e Spallarossa, 1983: 125). A tarefa de quem dirige ser4, pois, analisar as causas dos conflitos para evitar que estes ocorram. Portanto, ao avaliar a direcgaéo de uma escola deve ter-se em conta, prioritariamente, a sua maior ou menor competéncia para evitar conflitos dentro da organizagao a que preside. Encontramos exemplos disso mesmo nas seguintes publicagdes: —"A actuacao rapida da direcc3o nestas questdes deve evitar situagdes em que exista uma auténtica luta de poderes que exija a intervengdo de terceiros. Se nao intervierem a tempo, o antagonismo pode recrudescer. Surgirao pressdes no senti- do de apoiar este ou aquele grupo. Acabarao por surgir lfde- res e j4 nado se tenta encontrar o meio-termo. Em resumo, convém evitar a todo o custo estas situagdes, pois embora se possa resolver o problema, restaréo recordagGes dificeis de apagar’ (Isaacs, 1991: 261-262) —No ponto 6, “A equipa directiva e as metas de qualidade", A. Serrat (1995) apresenta sete zeros a que deve aspirar qual- quer elemento de direccao. Um deles é “zero em conflitos” él EDUCACAO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCACAO PARA A CONVIVENCIA | (pg. 32), visio negativa igualmente reflectida na pagina 36 dg mesma publicacao. Uma caracteristica distintiva desta concepgao é 0 culto da efi. cécia na gestdo das escolas. A eficacia apresenta-se como algo objec. tivo, neutral, técnico e absoluto, onde nao ha lugar para perguntas como: eficdcia para qué ou para quem? Tudo o que nao tenha a ver ; com a eficdcia é considerado irrelevante. E por isso que a organizacao i" se articula com base neste objectivo, que se converte, deste modo, | em critério Gnico ou no principal referente para a tomada de decisGes. Nesta forma de considerar a eficdcia, 0 conflito intervém como varia- I vel fundamental, na medida em que a eficdcia esta relacionada com : um nivel de conflituosidade baixo ou mesmo nulo; os conflitos sao considerados elementos perturbadores na busca dessa eficdcia. Daf, de acordo com este paradigma, a negacio ldgica do conflito. Deste modo, € como exemplo ilustrativo do que afirmamos, os indicadores de qualidade organizativa aparecem relacionados em “boa parte pela forma de resolver, prever e atenuar © nivel e amplitude dos contflitos’ (Brito, 1991: 25) | As tinicas referéncias, quando existem, ao tratamento ou papel dos conflitos na organizacdo escolar dizem respeito a gestaéo dos mes- mos como um mecanismo da parte dominante para manter 0 statu quo; isto é, gerir 0 conflito para manter o controle. Podemos ver em Morgan (1990: t 173-182) um exemplo do que acabamos de afirmar, relacionado com o mundo empresarial, embora habitualmente referido em diversas publi- cag6es sobre organizacao escolar. Entendida deste modo a relagao con- | flito-organizagSo escolar, o papel “da administragao equivale a um con- | trolo efectivo, em sentido técnico e de gest&o” (England, 1989: 89), Controlar o aparecimento do conflito, e nalguns casos até eliminar a sua gestacéio, ndo é apenas sinénimo de submissao e controlo, mas também de eficdcia na condugSo da organizacao por parte da hierar- quia. Por conseguinte, como ja dissemos anteriormente, para os gesto- res escolares “uma das tarefas mais importantes é n4o sé eliminar ou, pelo menos, suavizar os conflitos dos colaboradores, mas também evi- tar esses conflitos logo & nascenga. S6 deste modo se pode garantir 62 | aria. . ' J | EDUCAGAO E CONFLITO uma produtividade 6ptima e a maxima satisfacao dos colaboradores na sua actividade” (Riedman, 1981: 34 — citado por Cfscar e Urfa, 1988: 259). Outra caracteristica desta concepcdo é o papel desempenhado pelo conflito na relag&o teoria-pratica. De acordo com a concep¢gao Peenocrtica, a visdo que se tem do conflito em relagao a este bind- mio é perfeitamente hierarquizadora e dependente. O conflito surge, na pratica, devido a uma ma planificacéo ou falta de previsao. A prati- eg considera-se sempre dependente da teoria; daf que, de acordo com esta perspectiva, para conseguirem uma maior eficdcia os gestores devam concentrar os seus esforcos na planificagao e no controlo. portanto, o conflito seré sempre considerado um problema tedrico, € éaeste nivel e no circulo reduzido de executivos que nele operam que deverio ser tomadas as medidas de correccao para resolver a "disfun- cdo” que os praticos depois ir&o executar. Nao podemos também esquecer a obsess&o ideolégica desta concepeSo pela neutralidade, a “ideologia da neutralidade ideolégica’, nas palavras de A. Sanchez V4zquez (1976). Esta obsessao reduz qual- quer tipo de problema ou tomada de decisdes a uma mera aposta técnica, de tal modo que, se ha algum conflito que nao é€ possivel integrar, de acordo com esta perspectiva de controlo, é estigmatizado como ideolégico-politico, separando rigidamente factos e valores. Para esta perspectiva, “a administracdo é algo essencialmente cientffi- co e desligado dos valores’ (Codd, 1989: 142), o que se traduz na ndo aceitaco do conflito, 4 que a sua origem serd sempre devida a uma questao técnica e a resposta ter4 de ser ao mesmo nivel; se tal nao for possivel, isso quer dizer que o conflito obedece a “interesses ideoldgi- cos, politicos”, etc., em qualquer dos casos “estranhos" a instituigao educativa e, por conseguinte, desprezfveis. Segundo esta concep¢ao, qualquer tipo de conflito axiolégico é rejeitado por ser considerado nao cientifico. Esta negagao do conflito supde que, na prética quotidiana, a tomada de decisdes esteja na mao de uma minoria e, consequentemente, haja uma despolitizagdo da instituigao e dos seus membros. Na perspectiva tecnocratica, a luta ideolégica faz com que a pessoa ou 0 grupo de pessoas que se carac- terizam por criar conflitos, sejam eles quais forem, ou por manifestar 63 EDUCACKO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCACAO PARA A CONVIVENCIA © seu desacordo aparegam como pessoas ou grupos “conflituosos" em sentido pejorativo e desqualificador (Jares, 1990). E embora, ng perspectiva critica, saibamos que “nem todas as decisdes tomadas pelas direccSes das escolas sao ideolégicas, 0 certo é que, na prética, as quest6es relacionadas com a organizacao e€ o ensino dos alunos, estrutura do curriculo, as relagdes entre professores e alunos e ag normas para a tomada de decisdes na escola tém todas fortes bases ideolégicas” (Ball, 1989: 32). No que respeita a resolucdo dos conflitos, este paradigma, coe. rente com a sua visdo negativa do conflito, propde que, de preferéncia, ele seja evitado “mediante uma adequada definicdo do trabalho, uma pormenorizada especificagdo das relagées entre postos de trabalho, uma cuidadosa seleccdo de pessoas para os ocupar e uma preparacao profunda dos individuos” (Litterer, 1977: 370) — fungdes de reposicao da situagao conflitual que, em qualquer dos casos, cabem sempre a quem dirige (cfr. Jares, 1992a). Outras propostas positivistas, enqua- dradas na sua maior parte na Teoria dos Recursos Humanos e na Teoria de Sistemas, consideram o conflito como fonte de tens&o necesséria para melhorar a produtividade, a criatividade e a eficdcia; a questao central consiste ndo em negar o conflito, mas em “saber em que grau € que o conflito resulta funcional e quais os limites para além dos quais ele se torna prejudicial” (Litterer, 1977: 371) Nesta linha, a resolugao de conflitos tem uma larga tradicao de estudo no campo empresarial industrial e comercial, especialmente nos Estados Unidos, onde se levaram a cabo miltiplas investigagGes, tanto em laboratério como nas cadeias de produgdo, com o fim, nada neutral por sinal, de aumentar a eficdcia e a produtividade das empre- sas. Para tal, concentraram-se as atencdes na andlise dos métodos mais eficazes para aumentar a coesdo interna, favorecer a interdepen- déncia e a fluidez comunicativa entre os diferentes niveis hierdrquicos da empresa, 0 grau de cooperacao interna, a eficdcia na tomada de decisdes, etc. Este tipo de pressupostos, transferidos e copiados mimeticamente com base numa concep¢4o empresarial da escola, constituem, na realidade, nas palavras de Berstein, uma visao ideolé- gica e mitolégica do conflito e da sua resolugdo, uma vez que oculta as desigualdades e os conflitos sociais, tanto no interior como no 64 : EDUCAGAO E CONFLITO exterior do sistema educativo, através da criacdo de um “discurso que ge em relevo O que Os grupos partilham entre si, 0 seu sentido comunitario, a sua aparente interdependéncia, isto é, criando uma jdentidade fundamental. Alimenta-se um discurso que cria o que poderfamos chamar solidariedades horizontais, cuja finalidade é reprimir e sanar as divis6es verticais (hierarquicas) entre os grupos sociais... Deste ponto de vista, o discurso que gera solidariedades horizontais ou que procura fazé-lo denomina-se discurso ideoldgico” (Bernstein, 1990: 128). Assim, a resolucdo, gestéo ou administragéo. do conflito surge como: ~uma questo estritamente técnica e, por conseguinte, aplicd- vel “a qualquer tipo de organizacao ou instituicéo humana” e a qualquer situacao conflituosa (encontramos um exemplo disto mesmo em Litterer, 1977; Likert e Likert, 1986). Acredi- ta-se que os conflitos ou problemas organizativos tém a sua origem numa disfuncao ou inadequagdo estrutural e que, portanto, poderao resolver-se através da sua reorganizacao ‘Assim, julga-se que com uma elevada formalizacdo, em que se explicitem as fungdes e os papéis dos membros da organi- zacao, se evitarao os problemas e conflitos organizativos; —uma questiio necessdria para se alcangarem os niveis dese} veis de produtividade e eficdcia. A negac4o ou a acgao repres- siva como tinicas formas de resolucao dos conflitos acarreta, a longo prazo, custosos retrocessos. De acordo com esta perspectiva de consenso de interesses, so questionadas igualmente as chamadas estratégias dominantes de “ganhar- -perder’, propondo antes as chamadas estratégias de “ganhar- -ganhar’. Daf que, na perspectiva dos dirigentes em que assen- ta a visdo/resoluco dos conflitos segundo esta concep¢ao, se considere, habitualmente, que “o éxito de uma organizagao ou de uma dependéncia governamental se devem, em grande parte, 4 sua capacidade em conseguir uma coordenagao basea- da na cooperacao, em vez de criar conflitos hostis entre os seus departamentos, e também & sua capacidade em estimular as diferencas e retirar proveito delas, ao utilizar os métodos 65 EDUCAGAO & CONFLITO GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA produtivos de resolugSo dos problemas que levem a solucGes criativas e aceitaveis” (Likert e Likert, 1986: 15); urn recurso incontornavel para manter o controlo na organi- zacdo, Podemos encontrar um exemplo disto mesmo em March e Simon (1987: 144). Uma das formas mais recentes e muito em voga de negar o conflito consiste em apresentar a organizacao escolar e as politicas educativas a ela afectas a partir de interesses e pressupostos comuns, consensuais e afastados de qualquer tipo de processos conflituosos. ‘Trata-se de uma roupagem ideolégica que, partindo de diferentes teo- rias neoconservadoras posstveis de integrar nesta concepcao, utilizam a ideia de consenso para ocultar as discrepancias e os conflitos Deste modo e paradoxalmente, o consenso perde as suas genuinas caracteristicas positivas como método de resolugdo de conflitos ¢ converte-se numa forma subtil de os ocultar, através de um pretenso discurso, panaceia que nos incita & unanimidade, a identidade de interesses, A ndo disputa, etc. "Aceita-se a existéncia de diferentes pontos de vista, desacordos, discussdes e oposigdes; mas pensa-se que ocorrem dentro de um campo mais alargado de acordo — “o con- senso” — aceite por todos e no Ambito do qual qualquer discussao, desacordo ou conflito de interesses se pode sanar através do didlogo, sem recurso ao confronto” (Hall e outros, 1987: 56). Em resumo, trata- -se de silenciar os conflitos e a diversidade de interesses e perspecti- vas, a fim de impor uma determinada concep¢ao de organizacao esco- lar em particular e de politica educativa em geral. Finalmente, devemos salientar a posigao daquelas pessoas que negam o conflito com base numa suposta defesa da democracia, 0 que mais néo é do que utilizar os aspectos formais da democracia para negar 0 conflito. Jd assistimos a reunides, a conselhos de caracter pedagégico ou administrativo na faculdade, em que escutdmos frases do tipo “aqui nao se discute, aqui vota-se e pronto”, posigéio que cos- tuma andar associada a légica da imposicéo de uma maioria face a uma minoria. Esta forma de actuar nega nao s6 0 conflito, mas tam- bém a propria democracia. Além disso, deixa poucas possibilidades a resolugao pacifica dos conflitos. A pratica de nao discutir, de nao 66 manana veg ni- 2m 2s io t ' f EDUCAGAO E CONFLITO encarar os conflitos e de se refugiar na ldgica da votacao, longe de solucionar os conflitos agrava-os ainda mais, ao incentivar um con- texto de polarizac&o no grupo ou na organizacdo. A ligagao entre con- flito e democracia € inerente & natureza de ambos os conceitos. A democracia é 0 sistema social da expresséo das diferencas em liber- dade, o que, fatalmente, nos conduz ao conflito. O conflito 86 se pode manifestar se houver democracia. Por conseguinte, implicam-se mutuamente um ao outro. Como observa Pietro Barcellona, “a demo- cracia € inseparavel do conflito... O tema do conflito evoca o tema da eleicdio entre diversas alternativas possiveis, entre opgdes diferentes coloca a questo democrética no seu grau mais elevado” (1992: 132) Do ponto de vista da forma como encarar e resolver os conflitos, ape- nas em democracia temos a possibilidade de escolher entre diversas alternativas a um conflito. Como escreveu de forma clara e impressio- nante Norberto Bobbio, “sem democracia nado existem as solugSes m{nimas para a solug&o pacifica dos conflitos” (1991: 14) Dados os pressupostos redutores, cientificamente simplifica- dores e politicamente interessados desta forma de pensar, torna-se necessdrio desenvolver uma visdo alternativa fundada em valores ptiblicos, democraticos e colectivos, que coloque a existéncia do con- flito como elemento consubstancial e incontornavel de todo e qual- quer proceso educativo, necessdrio 8 vida em geral e ao desenvolvi- mento das escolas em particular. 2.2. A visdo hermenéutico-interpretativa do conflito Ao contrério da concepeo tecnocratica, a perspectiva herme- néutico-interpretativa recusa a sua viséo mecanicista, bem como as nogées referentes 4 ideologia do controlo, substituindo as “nogdes cientificas de explicacSo, predicdo e controlo, pelas nogdes interpre- tativas de compreensao, significado e acco” (Carr e Kemmis, 1986 88). Assim tem-se a conviccdo de que cada situacao € prépria e irre- petivel e esta condicionada pelas interpretag6es particulares de cada membro da organizacao. Esta perspectiva eminentemente psicologista apresenta a motivagdéo humana apenas do ponto de vista individual 67 EDUCAGKO E CONFLITO- GUIA BE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA omitindo o “reconhecimento dos interesses no sentido socioldgico, Além disso, os membros da organizagao so considerados em termos de ‘necessidades’ individuais, mais do que em termos de adesdes grupais € preocupagdes ¢ ideologias comuns. Deste modo, as contro- vérsias avaliativas e a formagao de aliancas e coligagGes estao fora de questo" (Ball, 1989; 33) De acordo com esta concep¢aio, 0 conflito nao sé nao é negado como se considera indispensdvel e até positive para estimular a cria- tividade do grupo. “Um grupo harmonioso, tranquilo, pacifico € coo- perativo (sic) tende a tornar-se estatico, apatico e indiferente a neces- sidade de mudanga e de inovagao. Assim pois, a principal vantagem deste ponto de vista consiste em estimular os Ifderes do grupo a manterem um nivel minimo de conflito: o bastante para que continue a ser vidvel, autocritico e criativo” (Robbins, 1987: 300). O conflito € caracterizado e analisado como um problema de percepgao, indepen- dentemente de, em muitos casos, o ser de facto, ignorando as condi- Ges sociais que afectam os prdprios individuos e€ as suas percep¢oes, E 0 proprio Robbins que o diz claramente ao referir que a “existéncia ou inexisténcia do conflito é uma questao de percepcao... Para que um conflito exista é necessdrio que alguém se aperceba dele" (Robbins, 1987: 298). A aceitacao desta visao do conflito levaria a que ficassem por explicar muitas situagSes “objectivamente” conflituosas, mas de que os préprios protagonistas ndo sao conscientes. A tealidade do conflito nao se limita as percepgdes individuais da realidade, embora estas também fagam parte dele, "nem aos mal- -entendidos relacionados com a pratica prdpria ou alheia. E posstvel que as crengas “erréneas” que dao lugar a estes conflitos nao sejam, por seu lado, mais do que 0 reflexo de conflitos reais e de tenses endémicas a propria pratica: que nao seja tanto a concepgao que o individuo tem da realidade social, mas antes a propria realidade em si mesma. Quando surgem conflitos destes, 0 esquema interpretativo pretende que as pessoas mudem a sua forma de pensar sobre 0 que fazem, em vez de sugerir maneiras de alterar precisamente aquilo que fazem” (Carr e Kemmis, 1986: 112-113). Por outras palavras, muitas das propostas de resolucdo de conflitos tém mais a ver com a modificacao dos factores da realidade social, do que com as vises particulares dos 68 ENS EDUCAGAO E CONFLITO individuos, que sao geralmente o que surge como proposta, de acordo com este paradigma Por isso, embora sendo um avancgo em relacdo 4 concepcao. anterior, ao concentrar a sua aten¢&o exclusivamente nos pontos de yista pessoais, deixando de lado as condigées estruturais que, por gua vez, as influenciam (do mesmo modo que estas, ao contrario do que defendem algumas perspectivas sociocriticas, so influenciadas € transformadas pela subjectividade e opcdes pessoais), esta visto do conflito fica reduzida ao seu ambito interpessoal, caindo em situagdes claramente conservadoras, dado que “os conflitos sociais resultam sempre do facto de diferentes grupos sociais terem interpretagdes con- flituosas da realidade, mais do que contradigGes, realmente. Tais confli- tos so, segundo a perspectiva interpretativa, manifestagdes da falta de entendimento entre as pessoas no que se refere ao sentido dos préprios actos ou dos dos outros, equfvocos que podem ser superados fazendo com que os protagonistas se déem conta dos erros contidos nas suas ideias ou crengas. Ora, ao afirmar, assim, que os conflitos sociais resul- tam de confusdes de conceitos que, uma vez reveladas, provarao as pessoas a racionalidade dos seus actos, a perspectiva interpretativa mostra-se sempre favoravel a ideia de reconciliar as pessoas com a rea- lidade social existente” (Carr e Kemmis, 1986: 112). Segundo esta perspectiva, a necessidade de encarar ¢ resolver os conflitos baseia-se na necessidade de melhorar o funcionamento do grupo e/ou restabelecer, ou aperfeicoar, a comunicaco e relacdes humanas, mediante o entendimento das subjectividades pessoais. As causas dos conflitos, como ja dissemos, sao atribufdas a problemas de percepgao individual e/ou a deficiente comunicagao interpessoal motivos que, efectivamente, podem provocar conflitos mas que nado esgotam essas possiveis causas, nem os explicam em toda a sua com- plexidade. Assim, as solugdes apresentadas limitam-se a favorecer processos de comunicac¢do entre os individuos e estado totalmente descontextualizadas quer do contexto organizativo e social em que vive 0 grupo quer da sua micropolftica interna. Acredita-se que, estabelecendo canais de comunicacao entre os individuos, desaparecerao e se evitarao os conflitos. E, no entanto, 69 EDUCAGAO E CONFLITO — GUIA DE EDUCAGKO PARA A CONVIVENCIA como observa Tyler (1991), “este pressuposto estd, porém, sob amea, ca politica. E, mais importante ainda, revela uma aprecia¢do inade quada dos processos fundamentais de estratificagao de classes, ragag e sexos que esto subjacentes a muitas praticas escolares” (pag. 188) A comunicagao, embora seja absolutamente necessdria para resolve. os conflitos, muitas vezes nem os explica nem os resolve por gj mesma. Ao analisar e/ou enfrentar um conflito com o fim de 6 resol. ver, € imprescindivel. pelo menos, procurar saber qual 0 contexto oy cendrio em que ele ocorreu, quais os motivos ou interesses que 9 causaram, as posicdes ocupadas por cada uma das partes em litigioe as estratégias ou tacticas utilizadas, quest6es relacionadas com a necessaria compreensao global e contextualizada — sincrénica e dia. cronicamente — do conflito, e néo apenas com os aspectos relativos ao processo. Neste sentido, ndo podemos esquecer como muitas das propostas da psicologia industrial e da andlise organizacional empre. sarial term como base o estudo e aplicacgao de técnicas de comunica. cdo ¢ dindmicas de grupo, precisamente para se conseguir uma maior produtividade em beneffcio do empresario. A perspectiva da resolucao do conflito defendida por esta con- cepcao € positiva, enquanto o considera como uma forca impulsiona- dora, motivadora e renovadora. Porém, tanto a anélise do conflito como as suas propostas de resolugéio so apresentadas em termes interpessoais, totalmente descontextualizadas quer do contexto social € organizativo em que vive 0 grupo quer da sua micropolitica interna Assim, a melhoria de funcionamento do grupo alcangar-se-4 através do desenvolvimento da comunicaco humana e do entendimento das subjectividades pessoais. Acredita-se que, estabelecendo canais de comunicagao entre os individuos e insistindo na mudanga de atitu- des, competéncias e comportamentos, desaparecerao e se resolverao os conflitos. E neste sentido que afirmamos ser esta uma posigao ingénua e de certo modo conservadora, ao nao considerar as relacdes de poder e a desigual distribuigao de recursos, tanto a nfvel escolar como social. Podemos encontrar exemplos desta posigao em Borisolf e Victor (1991); Filley (1985); Hocker e Wilmot (1985); Touzard (1980); Wehr (1979), entre outros autores. 70 ins ex de pe su e to EDUCACAO B CONFLITO 2.3. O conflito na perspectiva critica De acordo com a perspectiva critica, como jd dissemos no capf- tulo anterior, 0 conflito ndo 6 6 olhado como algo natural, inerente a qualquer tipo de organizagao e mesmo a propria vida, mas surge tam- bém como um elemento necess4rio & mudanga social. Por conseguinte, o.conflito é considerado um elemento essencial para a transformagio das estruturas educativas, o que, afinal, é aquilo a que aspira a teoria critica da educa- ao. Este processo de transformacdo e mudanga surgira através da tomada de consciéncia colectiva dos membros da organizacao, me- diante “as contradigGes implicitas na vida organizativa e pela desco- berta das formas de falsa consciéncia que distorcem o significado das condigées organizativas e sociais existentes" (Gonzélez, 1989: 123). Por isso € que, segundo este paradigma, nao sé se admite como até se favorece o encarar de determinados conflitos numa perspectiva de- mocratica e nao violenta, o que se pode chamar a utilizagdo didéctica do conflito, que implica o questionar do préprio funcionamento da instituico escolar e, por este meio, a correlacéo de forcas que nela existem. Ao mesmo tempo, partindo da perspectiva critica, “tenta-se” demonstrar como a ideologia deforma a realidade social, moral e politica e oculta as causas do conflito, a repressao e a insatisfagdo, submetendo as pessoas a um conjunto bem determinado de normas ede relacdes de poder” (England, 1989: 106). Isto é, enfrentar o confli- to nao interessa s6 como forma de melhorar o funcionamento da organizacaio, criar um bom clima organizacional, ou para favorecer um maior impulso criativo, como também, além disso, encarar positivamente os conflitos pode favorecer os processos colaborativos da gestao escolar, no sentido de que “as escolas, enquanto organizagdes sociais, se convertam num. meio cultural em que se promovam valores de comunica¢ao e delibe- tagdo social, interdependéncia, solidariedade, colegialidade nos pro- cessos de tomada de decisdes educativas e desenvolvimento da auto- nomia e capacidade institucional das escolas” (Escudero, 1992: 15) 71 EDUCAGKO E CONFLITO- GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA, Podemos apresentar o que acaba de ser dito de uma forma esquemg. tica: Y GESTAO CRITICA E COLABORATIVA DA GESTAO ESCOLAR No que respeita ao problema da eficacia tecnocratica, de acor do com a perspectiva critica, tal como jé acontecia do ponto de vista interpretativo, rejeita-se a visSo instrumental do ensino que se fica, apenas, pelos resultados ou produtos obtidos pela escola em funcéo dos objectivos operatives previamente estabelecidos. “A busca da efi- cAcia acima de tudo distorce e enquista o conceito de cultura traba- Ihado na escola, ignorando que a prépria escola € em si mesma um cenario cultural de interac¢do, negociacdo e contraste social” (Green, 1976 — citado por Pérez Gémez, 1992: 104). A resisténcia, na perspective critica, em conferir 4 escola um estilo empresarial faz com que surjam “indubitavelmente os mesmos conflitos entre produgdo e eficacia, por 72 ric ut pc or EDUCAGAO E CONFLITO um lado, ¢ entre flexibilidade e iniciativa, por outro. Isto pode servir para que grupos de professores, pais, mes, assim como estudantes, comecem @ estabelecer formas de administragdo menos autoritdrias e purocraticas na escola, que prefigurem as alternativas democrdaticas que comesam agora, lentamente, a surgir em muitos centros de tra- palho...” (Apple. 1987: 78) De acordo com esta concep¢éo, como também em determina- das perspectivas interpretativas, faz-se questo em distinguir as duas dimensdes da organizagao, a nomotética e a ideoldgica (Hoyle, 1986), diffceis de separar por vezes e, as vezes também, percorrendo cami- nhos paralelos. A dimensao nomotética € “previsivel, governdvel e ofi- cial’ (Santos Guerra, 1990: 76); constitui a natureza formal, burocrati- ca da escola. A dimensdo ideografica diz respeito ao impredizivel, ao informal, a essa “esfera ndo racionalizada da accdo organizativa, essa complexa rede de relagdes que liga os individuos uns aos outros e a uma realidade social mais ampla, numa multiplicidade de vias nao reguladas” (Benson, 1983 ~ citado por Gonzalez, 1989: 125, 1990: 41). Através desta dialéctica entre o micro e o macro, o formal e o real, a reproduc&o e as resisténcias, etc., se molda a realidade organizativa das escolas, da qual sao conceitos basicos o poder, os interesses, as politicas de actuacao, as lutas ideoldgicas e cientificas, etc. Por isso, se fala da escola como “uma organizacao cujas metas € processos so mais instaveis e conflituosos do que racionais e estaveis” (Gonzalez, 1990: 40). Em suma, estamos a falar da natureza conflituosa das orga- nizagdes escolares que desenvolveremos com mais pormenor no pardgrafo seguinte. No que se refere & resolucao de conflitos, de acordo com este paradigma, sao tidas em conta néo sé as interacc6es particulares a nivel dos microgrupos de aula e de escola, mas ainda 0 contexto eco- némico, social e politico em que se insere a comunidade educativa Tal como nos recorda Apple (1986), “as praticas quotidianas da escola esto vinculadas a estruturas econémicas, sociais e ideoldgicas exte- tiores aos ediffcios escolares” (pdg. 89). Por outro lado, a finalidade da utilizagéo de estratégias nao violentas de resolugao de conflitos passa por procurar, deste modo, a plena democratizacdo das estruturas _ Organizativas das escolas e a emancipacdo dos que nelas actuam, em 73 EDUCAGAD E CONFLITO— GUIA DE EDUCACAO PARA A CONVIVENCIA, oposicdo quer aos que se obstinam em negar os conflitos, quer ao; que os utilizam para fins particulares e de controlo, quer ainda ao, que intervém com a tinica pretensdo de melhorar o funcionamento dy grupo € as subjectividades interpessoais. De acordo com esta concep. Go, 0 conflito e a forma de o encarar positivamente “nao levam sim. plesmente a uma ruptura da lei, mas séio ainda criadores degs, mesma lei; levam a cabo a notavel tarefa de indicar as dreas necesg) tadas de uma mudanga de orientac&o. Além disso, levam-nos a toma, consciéncia das regras mais bdsicas que regem a actividade particula, em que © conflito existe, embora ndo de uma forma explicita. Que dizer, levam a cabo a funcao singular de fazer com que os individuos vejam os imperativos ocultos e internos das situagSes em que actuam, a fim de poderem estruturar as suas acgées, libertando-os assim, em parte, de modo a poderem criar modelos relevantes de acces a um nivel que habitualmente nao seria possfvel” (Apple. 1986: 131). De acordo com esta perspectiva, como observamos no capitulo anterior, o poder é considerado um factor central do conflito em parti. cular, e da organizacéio em geral, dai que a formacdo de coligacdes eo uso de diversos tipos de poder exijam, contrariamente aos métodos tecnocraticos, o recurso A negociacdo directa das partes em confron to, como método preferencial de resolugao de conflitos (Bolman e Deal, 1984: 129). “Conflito, negociagao, redes de influéncia... nao sao, afinal, sendo um conjunto de esquemas conceptuais préximos de uma realidade organizativa escolar dominada sempre por relagGes de poder: poder entre iguais, subordinagdo entre sectores, presses nos processos de negociag&o e tomada de decisdes dos drgaos de gest de uma escola, influéncias mais ou menos encobertas... todo um pano- rama organizativo que se limita a reflectir as lutas desiguais pelo con- trolo ideoldgico, econémico e cultural de qualquer manifestagao social’ (Sabin, 1993: 275) 14 sit po tal ne pc a Como ja se referiu, a visdo das escolas como instituigGes unifor- mes, desprovidas de conflitos, separadas das lutas da vida quotidiana e simples maquinas reprodutoras da ordem social vigente € totalmente posta em causa, nao s6 pela andlise critica como também pela cons- iatacdo empirica que tivemos ocasido de levar a cabo ao trabalhar nelas. Portanto, s6 uma posigao ingénua e politicamente interessada podera defender estes pressupostos. A natureza conflituosa das escolas tem diversas explicagdes — em primeiro lugar, 0 facto de serem uma organiza¢So e, como afirma Morgan, "o conflito estaré sempre presente nas orga- nizagSes " (1990: 141); —em segundo lugar, pela especificidade da sua natureza orga- nizativa: ambiguidade, diversidade de metas, celularismo {corporativismo), ete.; —em terceiro lugar, pela relagéo que se estabelece entre as escolas ¢ as finalidades educativas da sociedade, através das politicas educativas e dos curriculos estabelecidos. “Podemos ver as contradicdes das instituigdes no facto da escola ter diferentes obrigacdes ideolégicas que podem entrar em con- flito” (Apple, 1987: 30); em quarto lugar, por serern caixa de ressondncia da conflituo- sidade social. Como se referiu, “a escola néo é um meio afasta- do dos conflitos sociais exteriores a ela, embora uma espécie de pudor leve muitos a recomendarem que a escola nao acolha no seu seio quest6es conflituosas da sociedade” (Gimeno, 1992: 153). Por isso, “as escolas sdo sedes de conflitos préprios e da sociedade em geral” (Fernandez Enguita, 1992: 54), sedes, nao apenas no que se refere a espacos fisicos, mas sobretudo no que tem a ver com a organizagao. Finalmente, devido “a situagdo das escolas, em consequéncia da sua condicao institucional, no seio da macropolitica escolar, deli- mitada pelas relagdes existentes entre o Estado, a Administragdo e a vel EDUCACAO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA sociedade civil; e, ao mesmo tempo, devido & sua dimensao micropy. litica determinada pelas relacGes, também elas peculiares, entre pro. fessores, curriculo e estruturas organizativas” (Beltrén, 1991: 225) Neste pardgrafo focaremos a nossa ateng4o na dimensag micropolitica, afirmando novamente que a vida-organizativa das esco. las é condicionada pelas politicas gerais e educativas dominantes em determinado momento histérico. Dito isto, podemos afirmar que uma das teorias que mais acertadamente aprofundou a natureza conflituos, das escolas 6 a chamada teoria micropolitica da organizac&o escolar definida, entre outros, por Hoyle (1982) como o conjunto de “estraté. gias através das quais 0 individuo e os grupos em contextos organize. tivos procuram usar os seus recursos de autoridade e influéncia, para aprofundar os seus interesses”. Nesta perspectiva, as escolas sao con. sideradas como “campos de luta”, “divididas por conflitos existentes ou potenciais entre os seus membros, pobremente coordenadas ¢ caracterizadas por grande diversidade ideolégica” (Ball, 1989: 35). Aescola como instituigdéo nem é desprovida de conflitos nem se limita a reproduzir a ideologia dominante, embora o faca (teorias da reprodug&o), mas simultaneamente também produz “conflitos culturais, politicos e econémicos muito reais no interior e no exterior do nosso sistema educativo” (Apple, 1987: 11). Por conseguinte, 0 conflito e 0 con- trolo sAo partes essenciais e definidoras da natureza organizativa e, por tanto, parafraseando S. Ball (1990), so o centro da investigagao e teori- za¢4o. Mais ainda, “conflito e controlo néo séo meras qualidades do funcionamento organizativo, mas efeitos € resultados de planificagé deliberadas e interacgGes face a face. A politica organizativa é, na prati- ca, um processo estratégico, material e interpessoal” (Ball, 1990: 135). Este processo micropolitico de estratégias, tacticas e técnicas varias pode ser usado, de acordo com Hoyle (1986), tanto numa pers- pectiva de dominio e controlo por parte de um grupo ou direcgao da escola, como do ponto de vista de uma politica de oposicao ou resistén- cia. “A perspectiva micropolitica € um meio de ligar a carreira profissio- nal, os interesses e accdes ideoldgicas com as estruturas organizativas, e as formas de controlo com as formas de resisténcia e oposigao” (Ball 1990: 143), Os conflitos resultantes deste processo organizam-se em torno dos quatro elementos constitutivos e interactivos do conflito - 76 EDUCAGAO E CONFLITO as causas OU motivos da disputa; os protagonistas; 0 processo segui- do ¢ 0 contexto —, que se inter-relacionam com cada uma das compo- nentes da micropolitica ja indicadas. Outros autores como Bolman e Deal (1984), ao estudarem o facto organizativo, referem uma série de caracteristicas que dizem res- peito ao que denominamos natureza conflituosa da escola: a maior parte das decisdes, nas organizages, supde ou im- plica a distribuic&o de recursos escassos; —as organizacdes sdo, basicamente, coligagées compostas por uma diversidade de individuos e grupos de interesse como niveis hier&rquicos, departamentos, grupos profissionais, gru- pos étnicos; os individuos e os grupos de interesses diferem nos seus interesses, preferéncias, crencas, informagao e percep¢ao da realidade; —as metas a alcangar e as decisdes organizativas emergem de variados processos de negociacdo, pactos e lutas entre os implicados, e sdo reflexo do poder relativo que cada parte implicada é capaz de mobilizar; —devido & escassez de recursos € ao progressivo aprofunda- mento das diferencas, o poder e 0 conflito sao caracterfsticas centrais da vida organizacional (pag. 109). Do mesmo modo, dos cinco modelos ou perspectivas tedricas explicativas da natureza organizativa das escolas apresentados por Bush (1986) — formal, democratico, polftico, subjectivo e ambiguo -, as caracterfsticas enumeradas para o modelo politico explicam em boa parte a natureza conflituosa das escolas que vimos defendendo As caracteristicas enumeradas sao, concretamente, as seguintes 1. Incidem mais na actividade dos diferentes grupos do que na da instituic&o como um todo indiferenciado 2. Implicam com os interesses (pessoais, profissionais e politi- cos) e grupos de interesses, e ndo com os individuos. 3. Aténica é posta na andlise dos conflitos — considerados como uma caracteristica normal da organizac&o — e nao na aparente harmonia. 17 EDUCAGAO E CONFLITO - GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA 4. Assume-se a instabilidade, ambiguidade e discussao dag metas a alcangar pela organizagao constituindo, deste modg o elemento motor dos processos organizativos. 5. As decis6es so tomadas apés um complexo processo de nego, clagéio e ndo como consequéncia de um processo racional 6.0 poder é considerado um conceito fundamental. Deriva dy posicdo oficial manifestada, das caracterfsticas pessoais de quem o manifesta, da sua consideragéo como perito pelos restantes elementos, do controlo exercido sobre o sistema de recompensas e de repressao. 7. Da-se relevo as influéncias externas na tomada de decisdes internas. 8. Revelam a sua qualidade enquanto meios especialmente aptos a compreender os modos como os recursos sdo distribufdos no seio da organizagao (incluindo, entre outros, 0 recurso aos professores e a outros membros da organizacao) Para corroborar a natureza conflituosa das escolas, nada melhor do que apresentar e explorar a diversidade de conflitos que, habitualmente, ocorrem nas escolas, as suas causas e manifestagdes, Em seguida, ha que analisar se essa variedade de conflitos obedece questdes conjunturais ¢ mais ou menos pontuais de funcionamento organizativo, ou se se trata de conflitos inerentes 4 prépria natureza da instituicao escolar, como de facto defendemos. Vejamos, pois, alguns exemplos, seguindo as quatro categorias de causas de confli- tos nas escolas que apresentémos no capitulo anterior Em primeiro lugar, como vimos, a escola como otganizacao é susceptivel de ser explicada e organizada a partir de diferentes opgdes ideoldgicas e cientificas, que podem entrar em choque e, deste modo, dar origem a uma ampla e variada gama de conflitos ideolégico-cien- t{ficos. Por exemplo: —a prépria racionalizacao do funcionamento organizativo, ou seja, “a adequacdo de fins e processos de consecucdo institu cional... pode provocar contflitos radicais na dinémica da escola” (Santos Guerra, 1989: 103). Tenha-se em conta, para citar apenas dois casos muito frequentes e préximos, os conflitos suscitados 78 EDUCAGAO E CONFLITO nas escolas pela implantacdo da denominada jormada conti- nua, Ou as repercussGes organizativas da decisdo de realizar, ou nao, visitas de estudo ao meio envolvente; —uma visdo tecnocratica, burocratizada, que se manifesta na rigidez regulamentarista-prescricionista da escola, entra em choque frontal com outra visdo mais dindmica, criativa e favordvel 4 mudanga; as praticas educativas orientadas a partir de e para a emanci- pagio, a justica, a liberdade, etc. entram em conflito com as praticas educativas autoritérias, violentas, burocratizadas, ete. Como observam Carr e Kemmis (1986), “o conflito entre os valores educativos e outros valores sociais e culturais pode ser, de facto, muito real" (pag. 217). Encontraémos um exemplo. desta casuistica, entre outros, ao introduzir determinados temas transversais no Projecto Educativo de Escola (PEE) e ao verificar a sua repercussao na dinamica educativo-organizativa; ~os diferentes niveis de profissionalizago do conjunto de pro- fessores, relacionados com as imagens e expectativas que os proprios professores tém acerca do modelo do “bom profes- sor’, € outra fonte habitual de conflitos ligados a este bloco ideolégico-cientifico. Em segundo lugar, as prdticas escolares quotidianas estao em permanente contacto com possiveis conflitos que tém a ver com o poder, quer de uma forma explicita quer de uma forma oculta. Por exemplo: —as aliangas, estratégias e tacticas postas em jogo para se ter acesso ao controlo da escola; —o mesmo se pode dizer do acesso aos recursos materiais, progress6es na carreira, condic6es vantajosas de determinados postos de trabalho, distribuigéo dos professores por anos, turmas ou areas, apoios para ter acesso a bolsas de estudo 0, Ue ou cursos de formagao, etc.; stitu: a forma de regular a participacSo dos professores, pais de scola’ alunos, alunos e pessoal nao docente, nos érgdos colegiais Jenas, das escolas, constitui outra fonte de conflitos relacionados, na tados = sua maior parte, com questdes de poder e controlo. 719 Wr EDUCAGAO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA, Em terceiro lugar, podemos citar alguns exemplos referenteg 4 4 propria estrutura da institui¢do escolar: —a escassa autonomia das escolas e dos professores no sey conjunto acarreta um escasso controlo do contexto organiza. tivo em que se desenvolve a actividade docente, o que cons. titui, em si, uma fonte latente de conflitos; ~a burocratizagao e a tendéncia gerencialista das direccSes das escolas implica uma possfvel fonte de contflitos entre essa dimens&o burocratica, vertical, e a educativa ou horizontal “Curwin (1970; 1975) descobriu que diversas varidveis buro- craticas (normalizacdo, centralizagdo na escola e nas organi- ‘Ses de pais) estavam relacionadas com 0 conflito na orga. nizagao, de modo que as escolas mais propensas ao conflito eram aquelas em que as regras proliferavam como paliativo para as tenses endémicas entre funciondrios administrati- vos e profissionais da educagdo” (Tyler, 1991: 55); ~a estrutura fragmentaria das escolas, 0 denominado celularis- mo (Joyce e outros, 1983; Gimeno Sacristén, 1988; Gonzélez, 1990; Tyler, 1991), faz com que os professores actuem como células isoladas, com maior ou menor autonomia, 0 que implica um considerdvel potencial de conflituosidade de cada vez que a aula-célula interage com a escola-sistema. Em quarto lugar, os conflitos derivados de causas relacionadas com a auto-estima, seguranca-inseguranga pessoal, deficiente comu- nicagdo, etc., costumam ser muito comuns nas escolas, estimulados, sem ddvida, pela sua prépria natureza e pela especificidade da funcio educativa. Em muitos casos, os conflitos apresentam-se sob a desculpa de incompatibilidade pedagégica ou organizativa quando, na realidade, encobrem problemas que tém a ver com uma baixa auto-estima e/ou deficiente comunicacdo. Tivemos ocasido de observar isto mesmo, tanto entre os alunos, como em conflitos entre os professores. Em conclusao, deixando de lado os conflitos de tipo pessoal e de relacdo interpessoal, consideramos, pelo que acabamos de expor neste pardgrafo, e tendo em conta os exemplos de causas de conflitos apresentados no capftulo anterior, possuir evidéncias mais do que 80 EDUCAGAO E CONFLITO suficientes dos diversos tipos de contradigdes inerentes a prépria dinamica organizativa escolar, que provam a inegavel natureza confli- juosa da escola. Nao de trata, pois, de meras falhas técnicas ou dis- fungdes mais ou menos pontuais do sistema, mas de uma realidade que existe per se, uma vez que hé conflito desde 0 momento em que nés existimos € 0 outro existe (conflitos intra e interpessoais); a partir do momento em que se constitui um organizac4o, imediatamente se produz no seu seio um determinado tipo de hegemonia, de poder e, como afirmava Gramsci e mais tarde Foucault, toda a hegemonia gera resisténcia e, com ela, uma certa conflituosidade Por outras palavras, “onde quer que haja poder hd resisténcia” {shapiro, 1991: 33), e indissoluvelmente ligada a ambas surge a dind- mica do conflito. As formas de conduzir uma organizacéo, 0 como € 0 qué das tomadas de decis&o, as formas e o tipo de relagdes entre a escola e a administracao, ou a comunidade social em que ela se insere, etc, assentam em determinadas concepgées, valores, na primazia de uns valores sobre outros, etc., que afinal se relacionam com a inevita- bilidade do conflito. Marta Oyhanarte vai neste mesmo sentido, ao afirmat o caracter sistémico dos conflitos na escola (1996: 25) Processos aparentemente consensuais, como o desenvolvimento em colaboracdo das escolas, constituem conflitos em si mesmos, muito embora se destinem a negociacao e ao consenso. De qualquer modo, é oportuno esclarecer, coincidindo com S. Ball (1989), que o facto de se demonstrar a natureza conflituosa da escola ndo quer dizer que haja conflitos todos os dias e em qualquer situacdo. “Muito do que ocorre no dia-a-dia das escolas nao se caracte- riza pela disputa ou dissensao entre professores, A conversac¢éo e inte- racgda do dia-a-dia esta voltada para a orientacao rotineira, terra a terra, e a maior parte das vezes sem controvérsia, da instituicao" (Ball, 1989: 36). Do mesmo modo, embora o conflito, tal como o defendemos, possa ser um elemento positivo dentro da organizag&o, se passar a ser cfonico e nao se resolver, deixa de possuir propriedades vitalizantes e democraticas para o grupo, podendo até tornar-se um elemento desestabilizador do mesmo. 81 ¥\ A O conflito: uma oportunidade de aprende; e de favorecer o desenvolvimento educativo das escolas Uma vez entendido 0 conflito deste modo, a nossa hipétese de trabalho consiste em, por um lado, o apresentar como varidvel fundamental do contetido do desenvolvimento educativo das escolas e, por outro, em situar 0 conflity ea forma de o encarar positivamente como estratégia preferencial para facilitar 0 eh desenvolvimento organizativo, com base e tendo em vista os pressupostos de autons. mid, participacao e democracia. Portanto, de acordo com esta perspectiva, 9 conflito ndo s6 € encarado como algo natural, inerente a qualquer tipo de organizagao e a prdépria vida, com até constitui um elemento necessdrio § mudanca organizativa e, consequentemente, um instrumento essencial para a trans. formagao das estruturas educativas. Por isso, partindo desta concep¢aio do desenvolvimento organizativo, nado sé se admite como se favorece o encarar positivamente determinados conflitos, isto 6, a sua abordagem de acordo com pressupostos democraticos e no violentos. Esta abertura ao conflito por parte de todos os membros da comunidade educativa pode, em determinado momento, levar-nos a questionar o funcionamento da instituigéo escolar e, desse modo, a questionar a sua estrutura hierérquica. Daf que uma perspectiva exces- sivamente zelosa do poder, que procure controlar e dominar, sinta necessidade de ocultar e silenciar os posstveis conflitos como mecanis- mo, entre outros, de perpetuar o statu quo estabelecido, E por isso que atribuimos a tarefa de encarar positivamente os conflitos um cardcter democratizador em relacao a vida da escola, dado que facilita a partici- pac&o de todos os protagonistas do processo educativo, permite a diversidade de pontos de vista e de propostas, ¢ integra a dissidéncia como manifestacao legitima do funcionamento organizativo, Mais con- cretamente, encarar positivamente os conflitos pode, em relacdo a vida organizativa da escola, favorecer e estimular (Jares, 1993): — 08 processos de andlise e reflexao sobre a nossa propria pratica educativa Qualquer andlise e/ou forma de encarar um conflito da orga- nizacéo terd de servir para aprofundar os processos de auto- -reflexdo; 82 EDUCACAO E CONFLITO — os processos de didlogo e comunicagdo necessérios a uma boa nego- ciacdo sobre os diversos elementos organizativo-educativos da escola; —a responsabilidade organizativa. Face as posicdes de fuga, “marcar passo”, etc., © encarar os contflitos é sinal inequivoco de com- promisso com a organizagao. Perante a violéncia da indiferen- ¢a, enfrentar os conflitos implica esse mesmo compromisso; ~a participagao dos membros da organizag&o. Encarar positiva- ede ental anflte 9 seu mente os conflitos implica uma atitude de abertura e participa- tomo. cdo, ndo sé das partes afectadas pelo conflito, mas ainda dos va, restantes membros da organiza¢ao e/ou dos érgaos colegiais da tipo escola. Supe decisdes mais conscientes e mais democraticas; fio a ~a qualidade dos processos de decisdo. “A evidéncia sugere Tans: que 0 conflito pode melhorar a qualidade das decisdes ao odo permitir que, por ocasido de decisdes importantes, se ponde- eg rem todos os pontos, em especial os pouco comuns, ou os de ‘gem uma minoria...” (Robbins, 1987: 309); —as abordagens colaborativas da organizagao e da lideranga educativa, com sda © fim de constituir comunidades educativas criticas e demo- os a craticas. Para além de melhorar o funcionamento da organiza- loa cdo, criar um bom clima organizacional ou propiciar maior (cesy impulso criativo, encarar positivamente os conflitos pode favorecer os sinta processos colaboralivos da gestdo escolar, anis} ~ 0s processos de andlise e tomada de consciéncia em situagées de desequilt- as brio de poder, induzindo a comunidade educativa a actuar "em ‘ete apoio dos valores educativos”. Este reequilfbrio constante ee serviré para impedir o enquistamento de poderes facticos, de oy opinides e propostas indiscutiveis, etc.; nae ~a inovagio ea mudanga, Toda a mudanga gera uma certa resis- téncia e, com isso, a possibilidade de determinado tipo de conflito. E, em sentido inverso, a mudanga é também uma consequéncia inevitavel do conflito, “O conflito coloca em dtivida © status quo (a situag&o actual) e € propfcio a criagao rga- de novas ideias: além disso favorece a reavaliacéo das metas e actividades do grupo, aumentando a probabilidade deste res- ponder aos desafios que Ihe sao postos” (Robbins, ibidem); 83 * EDUCAGAO E CONFLITO ~ GUIA DE EDUCAGAO PARA A CONVIVENCIA 84 —a auto-avaliagao continua da escola, dado que sempre que ge desencadeia um processo com vista a enfrentar um Conflitg organizativo, tem de se ter em conta pelo menos os “qués’ os “porqués” e os “como” desse mesmo conflito; 0 contexts em que ocorre e a sua relacéo com o conflito; as posicées que os protagonistas ocupam na organizagao; a identificagag das posstveis estratégias usadas no processo conflituoso; as expectativas das partes em oposicdo e a identificag&o da estratégia a seguir. © que, com toda a probabilidade, levard g pér em questao algum dos diversos subsistemas organizati- vos, ou o funcionamento da organizacaéo no seu conjunto, “Os conflitos promovem a auto-avaliagado e constituem desa- fios @ sabedoria convencional e as teorias em voga. A ausén- cia de conflito provoca, frequentemente, passividade e con- formismo” (Santos Guerra, 1992: 181); — o encurtar de distancias entre o curriculo organizativo oculto eo explicito, £ isto, quer pela sua influéncia na tomada de consciéncia do papel de cada um dos membros na organizacao quer pelo papel desempenhado por esta no conjunto da sociedade. De acordo com esta perspectiva, enfrentar os conflitos pode e deve levar-nos a interrogar sobre quest6es como: —Em que contexto surgem os conflitos? — Quem so os protagonistas? — Que tipo de problemas os causam? —Existem estruturas ou grupos dentro ou fora da organizacao que estejam em conflito? — Que canais de comunicagao e participacdo se desencadeiam quando surge o conflito? —Que tipo de poder é posto em jogo em processos como os que consideramos aqui? — Qual o grau de responsabilidade e de oportunidade de alunos e professores em participar na tomada de decisées? — Como se resolvem os conflitos? A que é dada énfase? —Verificam-se incoeréncias nas praticas e atitudes quando surge © conflito? — Finalmente: qual 0 grau de discussao acerca das dimensdes EDUCAGAO E CONFLITO organizativas e da sua incidéncia no aparecimento, tratamen- € se flit to e resolugao dos conflitos? ués", exto Em conclusao, o papel € a avaliagao do conflito na organizacao Ges escolar estao subordinados 4 concepcdo a partir da qual se emite o aga juizo. Face A visdo tecnocréatica dominante que considera 0 conflito 9; as como negativo e, portanto, como algo a evitar, defendemos, ao longo Oda = deste capitulo, que o conflito nao sé faz parte da natureza organizati- ard a va da escola como, além disso, constitui uma das suas dimensGes Zati- mais relevantes. Por outro lado, encarar positivamente os conflitos into. pode estimular e favorecer o desenvolvimento organizativo das esco- las, no sentido de possibilitar uma maior autonomia, um aprofundamento da democracia, um melhor desenvolvimento profissional e uma maior sensibilidade a problemdtica social da escola e do seu meio envolvente. Trata-se, afinal, de com- pater a “engenharia do consentimento” ¢ a “criacéio de servos amantes” (Bates, 1989: 142) E por estes motivos que achamos que o conflito deve ser objec- lesa- sén- con- ito. ado pelo to de andlise e investigacgao prioritaria, tanto na construgéo do corpo 2 De tedrico da organizacao escolar como para facilitar 0 desenvolvimento dee § organizacional das escolas. Para levar a cabo esta tarefa, e sem renun- ciar a posigées e estratégias préprias do paradigma interpretativo, pen- samos ser a concep¢4o sociocrftica aquela que nos proporciona um melhor entendimento, no sentido de desvendar a complexidade das organizacdes educativas em geral ¢ da sua natureza conflituosa em par- ticular, além de nos facultar uma vis&o positiva do conflito e das suas possibilidades de intervencdo educativa. A disfuncao ou patologia de uma organizacao nao sé nao deriva da inevitabilidade do conflito como até, no caso de ser encarado de uma forma positiva e nao violenta, o conflito pode ser um factor fundamental para a mudanga e desenvolvi- mento organizativo das escolas com caracter democratico, participativo e colaborativo. agao siam 00s Anos: ndo 3des 85

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