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DECIMO)SEGUNDO CAPITULO. COMUNHAO DE VIDA COM DEUS NO ESPIRITO SANTO (DOUTRINA DA GRACA) I. TEMAS E PERSPECTIVAS 1 Tarefas da doutrina da graga ¢ seu lugar na dogmética Tema dadoutrina da graca éa comunhdo de vida do ser humano libertado do pecado e da morte, ¢ chamado a vida eterna como Deus unitrino, Adoutrina da graga 6, por assim dizer, 4pice e ponto culminante de toda a teologia crista. Na medida em que Deus Pal enviou ao nosso coragdo o Espirito de seu Filho, temos, na graca, participacao na relacao filial de Jesus Gristo com o Pal (cf, Gl 4,6). A mais fntima natureza da graga é o amor que Deus é, na plenitude de sua vida trini- Urla,e que Ele concede aos seres humanos: _*Nsto se manifestou 0 amor de Deus por nds: Deus enviou o seu Filho Gnico ao mundo para que vivamos por Ele [...]. Nisto ‘mconhocemos que permanecemos nele e Ele em nés: Ele nos deu seu Espirito” (1Jo 49.13; cf. Rm 5,5). Adoutrina da graga pode, portanto, colocar-se como conclusao e cume no sistema da dogmitica, a partir do quia totalidade da f& e da teologia pode ser apreciada sob o aspecto da autodoacao do Deus unitrino como vida doser humano, Na estruturagio deste manual de estudos, o tratado da graca segue-se & eclesiologia, na qual a vocacdo da Igreja a ser povo de Deus Pai foi tematizada, bem como & doutrina da liturgia e dos sacramentos, nos quais se discutiu a agio salvifica de Cristo, Cabeca da Igreja e Senhor glorioso, Na sequéncia dos tratados que explicitam a resposta de fé do ser humano, no decorrer da histdria, & autocomunicacao histérico-salvifica de Deus, o tratado da fara corresponde a pneumatologia, na qual o vértice da autocomunicagao do Deus triuno é tematizado, Como tratado independente, a doutrina da graca é resultado de um desenvolvimento especial da teologia Litino-ocidental, Na teologia oriental, o tema da graga aparece, sobretudo, na soteriologia (oikonomia). Uma dou- trina espectfica da graga desenvolveu-se na significativa rejei¢ao histérico-intelectual do pelagianismo, Santo ‘Agostinho (354-430), o “doutor da graca” (doctor gratiae) era normativo. O pelagianismo - assim denominado por usa do monge britdnico Pelégio - sustentava que o ser humano poderia, a partir de iniciativa pessoal, operar a asa, A pessoa ndo precisaria de uma elevagao interior prépria (gratia interna Spiritus Sancti) a fim de poder as- ‘unica prépria realizagdo pessoal a redencio realizada historicamente na obra salvifica de Jesus Cristo (gratia (ema). Em contrapartida, Agostinho enfatizava a completa impoténcia do ser humano para realizar os bens so- naturals e para a elevacio da prépria vontade (autotranscendéncia) para Deus. A razdo para isso seria 0 dano ‘sad 4 natureza humana pelo pecado original de Adio, Sem o auxilio da graga (auxilium gratize) o ser humano Noconsegue alcancar sua meta, a saber, a vivificadora comunhio com Deus. Aqui, pela primeira vez, formula-se com toda clareza o relacionamento com Deus tipicamente ocidental, isto “Pessoal-psicoldgico, Pée-se a questdo de como o relacionamento pessoal-interior de cada um com Deus deve -541- Digitalizado com CamScanner ligar-se d agdo salvifica exterior, histérica de Cristo, bem como a comunicagio eclesial-sacramental (necesséria 4 salvagio) do Espirito e da graca. A controvérsia agostiniano-pelagiana apresentou, em seguida, a Idade Média os grandes temas. Ela conduziy também A decisiva discuss’ em torno do tema da justificagdo na Reforma. Nao por ultimo, a filosofia contem. porinea confrontou-se com a heranga crista: no centro, encontra-se a (presumida) contradicao entre a graca de Deus ea liberdade humana. Dentre os problemas classicos do tratado da graga contam-se o relacionamento da participagdo divina e da participacdo humana no processo de salvagio, a relado entre a graca divina e o mérito humano, as questées de se o designio salvifico de Deus seria particular ou universal, se haveria uma dupla predestinacdo, um para a vida, outro para a condenagio eterna (praedestinatio gemina) e se a Deus ou ao ser humano caberia a iniciativa na justi- ficagdo (initium fidei). Aescolistica ocupou-se especialmente com a questo de se a graca é simplesmente a pessoa do Espirito Santo que inabita no justificado, ou se hd em nossa alma uma qualidade diferente de Deus, mas criada em nés (habitus, accidens), mediante a qual Deus nos capacita a corresponder a graga da autocomunicagao. Uma vez que a graca é o proprio Deus que se comunica na criacao (gratia creatoris), na redengio (gratia Christi) e na santificagdo e na reconciliagao (gratia Spiritus Sancti), ela ndo pode ser uma realidade criada, A graca & 0 préprio Deus no evento de sua autocomunicacao (gratia increata). Dado que Deus, devido a infinita distancia, no pode encontrar o ser humano no mesmo nivel, Ele cria no ser humano, na comunicagao pessoal com Ele, as condigdes mediante as quais 0 ser humano pode acolher a autocomunicagao divina (gratia creata), Esta apropriada disposicio (gratia habitualis)criada por Deus no ser humano chama-se graca santificante (gratia sanct- ficans, iustificans). Através dela o ser humano consegue, em seus atos pessoais, participar de maneira agradecida, confiante e amorosa, do amor trinitédrio, que ¢ 0 proprio Deus, e certamente nas atitudes (virtudes) sobrenaturais (divinas) e nos atos da fé, da esperanca e do amor. No decurso das discussdes histérico-teoldgicas estabeleceu-se uma terminologia diferenciada. Contudo, po- de-se apreendé-la facilmente sob dois aspectos diferentes: 1) Em relagao & autocomunicacao de Deus como 0 amor autocomunicativo (gratia increata), 2) Em relacao a autocomunica¢ao de Deus na medida em que ela, no perdao dos pecados, na justificagdo ena nova cria¢do, produz no ser humano a disposicao através da qual ele pode entrar na comunicacao da auto- doagao de Deus (gratia creata). A graca “criada” aparece, pois, ora como graca santificante (gratia santificans) e como uma disposi¢ao basica doada (gratia habitualis), ora como graa adjuvante (gratia adiuvans actuals) Por meio dela, o ser humano é elevado ao nivel da filiagdo divina (gratia elevans)e & feito templo do Espirito Santo, Ela é necesséria a fim de que o ser humano através de seu auxilio preveniente (gratia praeveniens), concomitante (concomitans) e pleno mude a graca habitual nos atos de fé, esperanga e caridade, nos quais ele realiza a comunhao com Deus. A propor¢ao que Deus envia a capacidade para o ato salvifico sobrenatural, ela é suficiente (suficiens), na medida em que Ele envia a forca para a realizacao, ela é gratia efficax. Pode-se também diferencar a graca enquanto serve a justificacao e a santificagdo de cada ser humano (gratia gratum faciens) e na medida em que é dada a fim de poder exercer um ministério no poder divino, por exemplo, como o cardter indelével, mediante o qual o batizado, confirmado e ordenado ao sacerdécio possa exercer a mis- sio que lhe corresponde (gratia gratis data), 2 Importantes documentos doutrinais (1.) 0 XV (ou XVI) Sinodo de Cartago, de 418 (DH 222-230) aprovou oito cdnones para o pecado original, para pecado hereditério e para a graca, contra os pelagianos. (2.) 0 Indiculus (DH 238-249): em oito capitulos, Préspero de Aquitania (390-455) reuniu os decretos dos papas romanos sobre a tematica da graca e do livre-arbitrio, que foram publicados sob o nome do Papa Celestino! (capitulos pseudocelestinos). -542- Digitalizado com CamScanner (3.) 0 Concflio de Efeso, de 431 (DH 267s.): condenacdo geral do pelagianismo. (4,) 0 Sinodo de Orange (Arausicano II), de 529 (DH 370-400): 22 cnones contra o pelagianismo e o semipela- gianismo sobre os temas do pecado original, da graca, do comeco da fé, da cooperacao humana e da predes- tinacao. (5, 0 Sinodo de Quiercy, de 853 (DH 621-624) contradiz a doutrina do Monge Gottschalk de Orbais da dupla predestinacio, e esclarece a determinago da relagao entre o livre-arbitrio humano e a predestinacao divina. (6,)0 Sinodo de Valenca, de 855 (DH 625-633) corrobora a doutrina da dupla predestinacdo por meio de uma orientacao estritamente agostiniana e uma critica ao Sinodo de Quiercy e a Hincmar de Reims; no Sinodo de Langres, de 859, e no de Toul, de 860, reconciliaram-se ambas as orientacdes e superaram a oposi¢ao inicial dos Sinodos de Quiercy e de Valenga. (7.) 0 Concilio de Trento, no Decreto sobre a justificaco de 13/01/1547 (DH 1520-1583), em 16 capitulos dou- trinais e em 22 canones, rejeita os ataques dos reformadores e apresenta positivamente a compreensao ca- tdlica da doutrina da justificagao, que foi o ponto de partida da reforma e da divisao da Igreja; aqui se deve também dar atencao ao decreto sobre o pecado original, de 1546 (DH 1510-1516). (8.) 0 Papa Pio V, na Bula Ex Omnibus Afflictionibus, de 1567 (DH 1901-1980), condena o erro de Miguel Baio sobre a natureza do ser humano e da graca. (9,) Na Constitui¢o Cum Occasione, de 1653, do Papa Inocéncio X (DH 2001-2007), cinco sentengas de Cornélio Jansen sobre a graca (cf, tb. DH 2010-2012; 2301-2390; 2390) sao caracterizadas e reprovadas como erro. (10,) 0 Papa Clemente XI, na Constituigao Unigenitus Dei Filius, de 1713 (DH 2400-2502), rejeita 101 erros janse- nistas de Pascdsio Quesnel (1634-1719). (11, Os papas Paulo V, em 1607 (DH 1997s,), Inocéncio X, em 1654 (DH 2008) e Bento XIV, em 1748 (DH 2564s.) declaram a liberdade de ensino na questo dos auxilios da graca (tomistas, agostinianos, molinistas) e da de- terminagao mais exata da graca auxiliadora e da liberdade humana na preparacdo para a justificaco. (12.) 0 Papa Pio VI, na Constitui¢ao Auctorem Fidei, de 1794 (DH 2616-2626), assume posicao contra algumas declaraces impregnadas de jansenismo do Sinodo Diocesano de Pistoia sobre a condicao original, a graca inspiradora e a fé. (13,) 0 Papa Pio XII, na Enciclica Mystici Corporis, de 1943 (DH 3814s.), trata, entre outras coisas, do tema “graga criada e incriada”, e fala da graca como autocomunicacao de Deus e unidade comunicativa com Ele: “Naquela visio poderemos, com os olhos da mente iluminados pela luz superna, contemplar de modo totalmente inefa- vel o Pai, o Filho e o Divino Espirito, assistir de perto por toda a eternidade as processées das divinas pessoas egozar de uma bem-aventuran¢a muito semelhante aquela que faz bem-aventurada a santissima e indivisivel Trindade” (DH 3815). (14,) Na Enciclica Humani Generis (DH 3875-3899), Pio XII ensina, contra posi¢des equivocadas da Nouvelle Théo- logie, a gratuidade da graca e a possibilidade fundamental de uma “natura pura”: “Outros desvirtuam a ver- dadeira ‘gratuidade’ da ordem sobrenatural, sustentando que Deus nao pode criar seres inteligentes sem ordené-los e chamé-los a visao beatffica (visio beatifica)” (DH 3891). (15.) A Constituigdo Pastoral do Concilio Vaticano Il sobre a Igrejano mundo de hoje Gaudium et Spes (07/12/1965) oferece um amplo desenvolvimento cristolégico e pneumatolégico da antropologia teoldgica (GS 11-23). 3 Declaragées doutrinais essenciais sobre a graca a) Agraca (= benevoléncia, afeigdo) é 0 cuidado de Deus para com o ser humano, sua criatura, que se tornou peca~ dor. Na autocomunicacao de Deus em Jesus Cristo e no Espfrito Santo, tal culdado se revela, perdoa, justifica € plenifica, b) A graciosa dedicagao acontece de maneira completamente livre, Ainda que o ser humano ndo possa coagir, merecer ou extorquir a graca, ele, no entanto, mediante sua natureza espiritual e livre (autotranscendéncia, potentia oboedientialis) est4 ordenado a acolhida da graca e predisposto, pelo préprio Deus, 4 comunicagao no - 543 - Digitalizado com CamScanner amor. Epitome do encontro humano-divino é “a graca do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus € a comunhig do Espirito Santo” (2Cor 13,13). Aqui resulta uma tensdo interior fecunda e uma associagao entre natureza¢ raga. a ‘Todos ‘0s seres humanos esto sob a graca do designio salvifico geral de Deus (1Tm 2,5) e jé foram escolhi- dos “antes” da criagio, no Filho do Pai eterno, para a comunhao com o Deus unitrino e predestinados A salva- ao (Ef1,4). Nenhuma pessoa humana pode adquirir ou merecer a graca da predestinacdo. Mas certamente o ser humano é livre para recusar a acolhida da graca. a) A graca é perdoadora e justificadora e realiza-se historicamente no evento Cristo. Somente mediante a ‘graca preveniente, atual,o ser humano pode preparar-se para a recepcao da justificagao, dela apropriar-see realizé-la (= mérito) na histéria de sua propria vida como conformacao a Cristo (seguimento do Cristo cruci- ficado e ressuscitado), ¢) Mediante a graca justificadora, o pecador torna-se nova criatura em Cristo e em um “templo” habitado pelo Espirito Santo, Por esta razao, a graca inere nele (DH 1530s.; 1561). 0 ser humano é verdadeiramente justi- ficado (DH 1528; 1561), e nao apenas exteriormente (“de modo forense”, “como se”). Contudo, ele nao dispoe da graca santificante como de um bem. Ela o predispde sempre de novo para a acolhida atual da autocomuni- cacao de Deus e para a realizagao da comunicago divino-humana no amor por meio dos atos fundamentais da fé, da esperanga e da caridade, f) A graca do Deus unitrino assumiu uma forma encarnatéria no evento Cristo. 0 Senhor glorioso comunica sua presenca encarnatéria mediante o Espirito Santo e, via de regra, na figura eclesial-sacramental da misséo salvifica da Igreja e em suas realizagdes fundamentais (Batismo, Eucaristia, entre outras). g) Toda a graca de Cristo, por meio da inabitagao do Espirito Santo nos coragdes das pessoas (Rm 5,5), visa 4 divinizagdo (theiosis) da criatura, ou seja, & participacao pessoal-dialégica na koinonia do amor trinitério de Deus. A participagdo na vida divina por forca da graca acontece na coexecugio das relagées do Filho e do Espirito com o Pai, que se realizam eternamente no ser-agradecido e no ser-doagao. h) A graca é 0 pindculo da revelacao e da fé crista. A nova teologia busca superar a estreiteza idealista e indivi- dualista, e articular a graca em um contexto cristolégico-histérico-salvifico, pneumatol6gico e eclesial do ser e da vida crista. Neste caso, significativas sao as intuigdes da antropologia, que levam em conta o ser-pessoa do ser humano, sua composicio dialégica e sua autorrealiza¢o comunicativa, a historicidade, a dimensio social, politica e societaria da existéncia humana. II. 0 TESTEMUNHO B{BLICO DA GRACA 1 Referéncias do Antigo Testamento a) Ao campo conceitual O termo teoldgico técnico graca (xaQic, gratia) néo tem nenhum correspondente imediato no Antigo Testa mento, mas precisa, do ponto de vista do contetido, ser esclarecido dentro de um campo seméntico mais amplo: hen (graca, boa vontade, simpatia); hesed (LXX: xg) significa a comunhio salvifica com lahweh, constantemen- te renovada mediante a alianga divina; sedeg (justiga, justificagao); rahamum (misericérdia); ehmet (fidelidade). O sujeito da graca e sua dedicacdo ao ser humano é sempre Deus. Por meio de sua Palavra e de sua acio, Ele realiza salvagdo, bén¢ao, eleicéo, perdao, promessa e uma alianga eterna, Nos atos salvificos de Deus revela-se sua fidelidade, amor e cuidado por seu povo eleito e por toda a criacdo. b) Eleigao e alianga Em liberdade soberana, Deus instituiu um relacionamento de eleigao e de alianga com seu povo, que resulta de seu livre amor comunicativo e eficaz (Ex 3,14). A este corresponde o amor responsorial de Israel (Dt 6,4-6). 0 - 544 — Digitalizado com CamScanner yo s6 faz “jus” & alianga divina quando, no cumprimento dos mandamentos, submete-se a vontade de Deus na obediéncia e santifica-se tanto quanto o préprio Iahweh ¢ santo (cf. Ex 19; 24), Neste caso, deve-se observar 0 significado exato de justica e santidade, justificagao e perdao dos pecados, Todos esses conceitos devem ser inter- pretados no horizonte da teologia da alianca. Nao se trata de justica por obras, mas da atitude correspondente, resultante do dom da graca, em relagao a lahweh e as irmas e aos irmaos no povo de Deus da alianga, ©) A criagdo do ser humano a imagem de Deus Oser humano criado a imagem de Deus (Gn 1,26ss.; SI 8; Sb 2,23; ef. Eclo 17,3) experimenta a comunhdo com le abéngdo, que contém vida e que possibilita os relacionamentos sociais (entre homem e mulher, irmao ¢ irma, bem como dos povos entre si), A ruptura da amizade origindria do ser humano com Deus, lahweh reage por meio da promesa de uma nova iniciativa salvifica, que se revela progressivamente em seu horizonte universal (cf. Gn 3,15; 12,3). d) A mensagem profética: Deus é amor O Antigo Testamento testemunha também a luta de Deus pelo coracao de seu povo. Ele quer superar a recusa iva e 0s pecados pessoais que se opdem a acolhida de sua oferta de alianca, Deus reage ao pecado com a pro- a de um perdao ainda maior, oriundo do amor, que é a fonte de sua graca e da dedicago da alianca: ddesposarel a mim para sempre, eu te desposarel a mim na justica e no direito, no amor e na ternura” (Os 2,21; cf I 42-53). e) A promessa de uma nova alianga universal No horizonte de um senhorio escatolégico e universal de Deus, a graca aparece como redengao e perdio de todas as culpas e como instituigo de uma nova (renovada e consumada) criagdo (Is 65,17). A alianga da graca consiste em uma comunicagao do amor e em uma revelacao do coracao divino, bem como na renovagio e na de- dicacio do coragao humano, portanto, do centro da pessoa, a Deus: “Bis que dias virdo - oréculo de lahweh — ern que concluirei com a casa de Israel (e com a casa de Juda) uma alianga nova. N3o- ‘om a alianga que conclu com seus pais, no dia em que os tomei pela mo para fazé-los sair da terra do Egito = minha alianga) | ue eles préprios romperam, embora eu fosse 0 seu Senhor, oréculo de lahweh! Porque esta é a aianga que concluitel Com a a de Israel depois desses dias - ordculo de lahwch. Porei minha lei no {undo de seu sex € a escreveres em seu coragio. Ento seu Deus e cles serio meu povo. Eles ndo terdo mais que instuir seu proximo ou scu ito, dizendo: ‘Conhecet labweht" ue todos me conhecerdo, dos menores aos maiores — orculo de lahwch -, porque perdoarei sua culpa e no me lembrarel | de seu pecado” (Jr 31,31-34). lahweh permanece como o bom pastor junto a seu povo (Ez 34,11). Ele apascenta seu povo por meio de seu “servo Davi" (Mesias), aquele que Ele dard a seu povo como um tinico pastor (Ez 34,33s.; cf. Jo 10,11; 1Pd 2,25). He concede ao ser humano um novo coragao (Ez 36,26) e, no final dos tempos, derramard seu Espirito sobre toda Carne ()] 3,1-5). Isto acontecer4 quando o Espirito Santo de Deus chamar o Salvador escatoldgico, o Mesias, € re- Vesti-lo para sua obra salvvifica (cf. Mc 1,10) e quando o novo povo de Deus for o sinal e o instrumento do senhorio *scatolégico de Deus e da efusdo universal do Espirito (At 2,17). 2 Agraca no Novo Testamento a) O Reino de Deus como graga e Jesus como seu mediador Jesus anunciou o Evangelho da graciosa proximidade de Deus. Em suas ages salvificas simbélicas junto aos doentes e mediante a superaco dos poderes hostis a Deus, Ele realiza “no Espirito e na poténcia de Deus” a che- 545 - Digitalizado com CamScanner gada do Reino de Deus (Lc 10,20). 0 novo relacionamento de Deus para com seu povo mostra-se no mandamenty do amor a Deus e ao préximo. 0 amor é a medida e a plenitude de todos os mandamentos e a verdadeira forma de realizacao do encontro entre Deus e o ser humano (Mt 22,37-39; Rm 11,9s.; Gl 5,6). Por conseguinte, o amor é essencialmente mais do que um mandamento moral. 0 reinado de Deus acontece no amor. Na medida em que a vontade de Deus é cumprida, seu Reino vem e a Nova Alianca se consuma como comunhio entre Deus e 0 ser humano e das pessoas entre si. Jesus anuncia a incondicional prontidao de Deus para o perdao e para a reconciliacdo para com os pecadores (cf. Le 15: a parabola do filho perdido e do Pai misericordioso), 0 discurso da recompensa pelas boas aces (obras do amor) nada tem a ver com uma autojustificagao pelas boas obras ou com a autojustificagao legalista da piedade farisaica. Recompensa e mérito nao provém de fora para o amor, mas so consequéncia deste (cf. as bem-aventurangas do Sermo da Montanha: Mt 5,3-12; cf. tb. Rm 2,68. “Ele retribuird a cada um segundo suas obras: a vida eterna para aqueles que pela constancia no bem visam A gloria, ahonra e a incorruptibilidade”), As raizes da doutrina crist da graca repousam no agir do Jesus pré-pascal. Diversos aspectos, que jé foram tratados na cristologia (cf. o capitulo 5), devem ser lembrados aqui: a praxis do Reino de Deus de Jesus; sua mensa- gem da incondicional prontidao de Deus para o perdao, sua misericérdia e o amor do Pai celestial; o chamado dos pecadores;o apelo & conversao, a fé, ao seguimento e ao relacionamento pessoal com Deus Pai; 0 convite & oracéo ¢ énfase na responsabilidade do ser humano por seu destino eterno. ‘A chegada da graca de Deus realiza-se no destino de seu mediador, isto é, na doacao da vida de Jesus na cruz, onde Ele, por meio de seu sangue derramado, institui a Nova Alianca (Mc 14,24), A autodoacao do homem Jesus na cruz pelas pessoas é a revelacao escatolégica do estar-af de lahweh para seu povo (Ex 3,14). Por conseguinte, a cruz de Cristo é a fonte da graca, porque nela o amor de Deus é encontrado em seu esvaziamento definitivo (cf. F12,¢ 11). Por esta razdo, Jesus nasceu como pessoa humana, “pois Ele salvar4 0 seu povo dos seus pecados” (Mt 1,21). Ele é 0 Emanuel, o Deus-conosco (Mt 1,23). Por forca do Espirito Santo recebido, que serd derramado sobre todos no final dos tempos, os apéstolos po- dem anunciar que somente no nome de Jesus é oferecida a salva¢ao para todas as pessoas (At 4,12) e que nele se pode esperar a restauragao de toda a criago (At 3,21). b) Graca é vida e comunhdo com Deus (Joao) Cristo é 0 “Salvador do mundo” (Jo 4,42; Yo 4,14) através da doagao de sua vida, mediante o que Ele, como “Cordeiro de Deus’, tira os pecados do mundo (Jo 1,28). Ele doa sua vida pela vida do mundo (Jo 6,51). Ele morre como o Bom Pastor por seu rebanho (Jo 10,11). Nao é possfvel um amor maior do que o da doagio da vida por seus discfpulos, a quem Ele adquiriu como seus amigos e amigos de Deus (Jo 15,13). Assim, o dominador deste mundoé julgado eo poder do mal no mundo é superado (Jo 12,31). A natureza da graca pode ser resumida com as seguintes palavras do evangelista: *Ora,a vida externa 6 esta: ue eles te conhecam a t,o Unico Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo" Jo 173.) Graga é comunhao com Deus, que vive, Ele mesmo, como koinonia do Pai, do Filho e do Espirito (cf. Jo 17,20- 26; Io 1,1-3; 4,8-16). Em Jesus Cristo, os discipulos reconheceram a Palavra do Pai encarnada e contemplaram a gléria do Filho tinico do Pai, cheio de graca e de verdade (cf. Jo 1,14). Como luz, vida e verdade, Jesus Cristo ¢a graca de Deus em pessoa e em sua histria humana. Da autodoagdo de Deus no Filho encarnado provém o dom que consiste no poder de “tornar-se filhos de Deus” (Jo 1,12). Todos os que nele creem, “nasceram de Deus” Jo 1,13) e de sua plenitude receberam “graca sobre graca” (Jo 1,16). Os discfpulos tém parte na graga através da fé, que “da vida em seu nome” (cf. Jo 20,31). “Aquele que cré tem a vida eterna” (Jo 6,47), j4 “passou da morte para a - 546 - Digitalizado com CamScanner yida eterna” (Jo 5,24), mediante a comunhdo de vida pneumitica com Cristo (cf. Jo 15), e tem confianga no dia do juizo Jo 5.295 1Jo 4,17), ‘Agraca é comunicada através da Palavra de Cristo e de seu Espirito, que dé vida (Jo 6,63) e por meio do ba- tismo, através do qual o ser humano renasce na dgua e no Espirito e se prepara para o Reino de Deus (Jo 3,5; cf. 7135). Deus comunica sua presenca encarnatéria mediante a Eucaristia, pois o proprio Jesus é 0 “pao da vida, descido do céu, que da vida ao mundo” (Jo 6,41.48.51). “Quem vé o Filho e nele cré tem a vida eterna, e eu o res- suscitarei no iltimo dia” (Jo 6,40). c) Graga como nova justia e santidade (Paulo) Na Carta aos Romanos e na Carta aos Galatas, Paulo desenvolve largamente o mistério da redengao sob o pon- tode vista da “justificacao do pecador” (iustificatio impi), O horizonte hermenéutico da terminologia af utilizada (santidade, “ira” de Deus, jurisprudéncia, justificacao, lei e Evangelho, entre outros) é a teologia veterotestamen- turia da alianga, Contudo, Paulo péde interpretar a obra salvifica de Deus em Jesus Cristo também em outras cate- gorias: paz, reconciliagao, nova alianga, nova criag%o, comunho com Cristo e com o Espirito Santo, conformagao Cristo, filiago divina, o individuo ou a Igreja como templo do Espirito Santo. Através do pecado, o ser humano perdeu a justica e a santidade originais. De amigo, tornou-se inimigo de Deus. Do ambito do senhorio de Deus, que dé alegria e vida, o ser humano caiu sob o dom{nio do pecado, que raz consigo sofrimento e morte (= distanciamento de Deus, des-amor). 0 ser humano jé nao vive no Espirito de us, mas na autorreferéncia e na petulancia de oposicao a Deus (inimizade com Deus). Ele é tentado a louvar a mesmo e compartimentar-se em sua existéncia carnal (= modo de ser des-espiritualizado). Por conseguinte, 0 set humano nao pode apropriar-se da nova oferta do encontro com o designio salvifico de Deus na lei, porque interiormente ele ndo esté disponivel para o encontro com o designio salvifico de Deus, e a lei transforma-se em instrumento de autojustificag’o. Somente mediante o Evangelho da graca o ser humano é de tal modo interpela- do por Deus e preenchido de tal sorte pelo Espirito de Deus, que ele pode, na fé, em conexao com a obediéncia de Cristo, acolher a justica doada por Deus e realizar plenamente a esperanca e 0 amor (cf. G1 5,6). Ajustica mediante a qual Deus nos justifica em sua livre graca chega ao ser humano em Jesus Cristo. Por nés, Deus 0 fez pecado (2Cor 5,21). Em seu sangue, ou seja, na obediéncia até A morte na cruz (Fl 2,8), Cristo realizou aquela expiacio que o cuidado gracioso de Deus para com o ser humano e a acolhida de Deus na obediéncia da alianga possibilitam. Por meio de sua obediéncia substitutiva, Cristo tornou-se a origem da aptidao de todos para aacolhida, no cora¢ao, da graca salvifica no Espirito, Por conseguinte, a {é significa entrar na forma de obediéncia de Jesus: “Todos pecaram e todos estio privados da gléria de Deus ~ slo justficados gratuitamente, por sua graga, em virtude da redengo_ tealizada em Cristo Jesus: Deus 0 exp6s como instrumento de propiciacio, por seu pr6prio sangue, mediante afé. Ele queria assim | ‘manifestar sua justiga, pelo fato de ter deixado sem puni¢do os pecados de outrora, no tempo da paciéncia de Deus: Ele queria | manifestar sua justiga no tempo presente para mostrar-se justo e para jusificar aquele que apela pata a fé em Jesus” (Rm 3,23-26), Somos justificados nao mediante um cumprimento legalista da lei, voltada para a autojustificagdo, mas por meio da fé como um puro dom da graca. Vivemos da fé em razao da livre autoentrega de Deus e da comunicac3o da justica de Deus em Cristo e no Espirito (Rm 1,17). Visto que todos estavam encerrados “na ira de Deus” e ha- Viam perdido a gloria de Deus, Cristo é 0 tinico mediador da justiga de Deus para todos os seres humanos, Ele & otinico caminho através do qual os seres humanos, em conexdo com sua obediéncia e com a conformacdo a Ele, Conseguem chegar a Deus e, no Espirito, tornar-se filhos de Deus, nisso que eles podem participar da filiagdo de Cristo no relacionamento com o Pai (Gl 4,4-6; Rm 8,15.29). Para os judeus, jf ndo existe nenhum caminho para a Justica de Deus passando pela lei, e para os pagdos nenhum caminho para Deus passando por um conheci- mento de Deus apenas natural e por uma obediéncia meramente ética em relagao a um imperativo da consciéncia =547- Digitalizado com CamScanner (Rm 1,20; 2,24). “Se pela Lei que vem a justica, entao Cristo morreu em vao" (Gl 2,21). Por meio de Cristo todos ‘os seres humanos que se acham sob a lei do pecado transformam-se em justificados, redimidos, vocacionados da nova alianga, santificados (1Cor 1,30). Quem esta justificado em Cristo tornou-se nova criatura diante de Deus (2Cor 5,17; Gl 6,15; Rm 6,4), chamada a“participar da natureza e da imagem de seu Filho” (Rm 8,29). “Nele habita o Espirito de Deus” (Rm 8,9). lei do pecado e da morte” jé ndo tem poder sobre aquele que vive em Cristo e no Espirito Santo. Ele vive sob a “lei do Es- pirito eda vida", que o libertou em Cristo (Rm 8,2), Libertados pelo Cristo para a liberdade, os que creem em Cristo podem “aguardar a esperada justica em virtude do Espirito e em razio da fé” (G1 5,1.5). Viver na graca do Espirito Santo (Gl 5,25) significa "ter a fé, que age pela caridade” (G1 5,6). 0 fruto do Espirito é: “amor, alegria, paz, longa- nimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidao, autodominio. Contra estas coisas nao existe lei” (G1 5,22). 4d) Graga como comunhao com Deus e participagao em sua vida ‘Jodo parafraseia a graga como comunhio com Deus e participagao na amorosa unidade do Pai, do Filho e do Espirito Santo. Paulo compreende a nova existéncia do cristo como “ser em Cristo” (1Cor 1,30). Nés somos “san- tificados, justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espirito de nosso Deus” (1Cor 6,11). Mediante a fé e o batismo, os justificados tém o dom da filiacdo divina (Rm 8,17; 9,26; Gl 3,26; 4,5; Fl 2,15; Ef 5,1;Jo 1,12; 1Jo 3,1; Mt 5,9). Como irmaos e co-herdeiros, os batizados séo membros do Corpo de Cristo, a Igreja (Rm 12,4; 1Cor 12,27; Ef 1,23; Cl 1,18). Mediante a graca de Cristo, eles se tornaram templo santo de Deus, no qual o Espirito Santo de Deus habita (1Cor 3,17; 6,19; 2Cor 6,16). No horizonte do eterno plano salvifico césmico de Deus, universal, que abrange céue terra, mostra-se que Deus, em Cristo e no Espirito Santo, levou os tempos & plenitude, a fim de tudo unificar, co que existe no céu e sobre a terra, Através do Evangelho os fiéis tém o selo do Espirito Santo prometido, recebido na acolhida da fé (Cl 1,12-20; Ef 1,3-23; Tt 3,4-7). ‘A graca de Deus s6 pode ser compreendida sob aspectos escatolégi ‘om efeito, a graca de Deus se manifestou para a salvagao de todos os homens” (Tt 2,11; 1Tm 2,5). A comunhdo com Deus e a incluséo no relacionamento filial de Cristo com o Pai, no Espirito Santo, so expressas também como “participacdo na natureza divina” (2Pd 1,4), “A justiga de nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”, “graga e paz em abundancia” sio concedidas a todos os que, “mediante a fé, chegam ao conhecimento de Deus e de Jesus, Nosso Senhor” (2Pd 1,1s.), eno Espirito, confessam-no como filho de Deus Pai (2Pd 1,17.20; 1Cor 12,3). TIL, DESENVOLVIMENTO HISTORICO DA DOUTRINA DA GRACA 1 A visdo patristica da redengao antes de Agostinho O princtpio orientador é: Deus fez-se pessoa humana, a fim de que o ser humano se torne Deus (Irineu de Lido, haer. Ill, 18, 19,1; 1V, 33,4; Atandsio, incarn, 54), Esta & a ideia da Theiosis ou da Theopoiesis, No Ocidente, até 4 Idade Média afora, ela desempenha um papel principal. Para os tedlogos orientais, 0 processo da graca é idéntico ao agir salvifico universal de Deus, sua assim de- nominada oikonomia, O agir de Deus em nosso favor tem seu come¢o na criagio e tem seu ponto culminante em Cristo, A atividade salvifica de Deus em Cristo permanece presente no Espirito Santo mediante a liturgia di 0 ser humano, sendo criado & imagem de Deus, Deus deveria ser a plenitude definitiva do ser humano. Esta imagem nao foi desfeita no pecado, posto que tenha sido danificada, Somente Deus pode reconstitu-la. E assim compreendem os Padres da Igreja toda a histéria da salvacdo e da Igreja como um tinico grande processo de edu- cago, no qual Deus renova e plenifica o ser humano como sua imagem. O primeiro grande cristo platénico, Cle- mente de Alexandria, descreveu a redengdo como educagio mediante a qual somos ajustados a Deus. No ambito da educagao helenista, esta ideia era muito popular. Platdo (Theat, 176) j4 falara da assemelhaco a Deus na justica. 0 ser humano seria orientado por sua imagem ideal. Segundo a concepcio cristd, o Logos de Deus é, pois, esta ima- ‘gem ideal. Este tornou-se pessoa humana a fim de apresentar em si mesmo a semelhanca divina do ser humano. - 548 - Digitalizado com CamScanner ser cristo significa imprimir em si a imagem de Cristo; quer dizer, reconhecer a salvacao da encarnagao, a fim de, no seguimento de Jesus, deixar-se transformar nessa imagem, Nisto o ser humano adquire em Cristo a nova forma da semelhanga com Deus. ‘Aqui todo o peso da nogao de redengao recai sobre a encarnacdo, e cruz e ressurreicdo sao interpretadas a pattir da encarnacao, Do seguimento depende se ao ser humano é concedido participar da salvacéo, se a imagem de Cristo é impressa plenamente nele. Destarte, na doutrina oriental da graca, da-se grande énfase & livre colaboracao do ser humano. Posterior- mente, compreendeu-se erroneamente esta visdo como sinergismo, ou seja, como um tipo de segmentagao do efeito da salvacdo entre Deus e o ser humano, Uma concepgo conceitual desta visdo oriental encontra-se em Gregdrio Palamas (1296/1297-1359), bispo de Tessalénica, Ele tornou-se porta-vor do hesicasmo, um movimento da mistica monéstica. A Igreja bizantina de- clarou-o doutor da igreja, O palamismo parte da experiéncia de Deus na alma. Esta experiéncia seria comunicada unicamente mediante a humanidade de Cristo, que esté ligado hipostaticamente com 0 Logos divino. Aqui, a ima- néncia de Deus sobe ao extremo. Deus, porém, deve permanecer a transcendéncia radical, Portanto, dever-se-ia distinguir: a natureza (ousia) absolutamente incognosctvel de Deus e sua atividade salvifica para conosco (suas energiai). Nés sé podemos reconhecer as acdes de Deus, mas nelas o proprio Deus se revela, e poderiamos entrar ‘em contato com Ele. Nisso, porém, mais uma vez, mostrar-se-ia, ao mesmo tempo, a diferenga do ser humano em relagio a tudo o que foi criado por Deus. Tudo o que pode encontrar Deus apenas mediante as aces divinas € criatura. Contudo, nestas acées divinas (humanidade de Cristo, Batismo, Eucaristia), 0 ser humano seria de novo inteiramente refeito (corpo e alma, ser e agir), Também em seu agir, ele estaria, assim, escatologicamente ligado a “imortalidade”. Na aco divina, Cristo estaria, no Espirito Santo, ativamente agindo na construcao da Igreja, Corpo de Cristo, e igualmente como for¢a educadora, recriadora, iluminadora no ser humano (a assim chamada “uz do Tabor”). Todo o agir da graca visaria a restauracao da imagem de Deus no ser humano. E dado que, a este respeito, o agir também faz parte, com isto também o novo agir do ser humano esté completamente condicionado pela acdo divina. A meta total de Deus iria na direcdo da apokatastasis (cf. At 3,21), ou seja, a restauracao de tudo (0 quenio exclui a eternidade do castigo do inferno). A redencGo consistiria na plenitude da criagdo. Nesta concep @ounitéria ndo ha nenhuma disting4o aguda entre criagao e redencio, entre natureza e graca. 2 Fase inicial da doutrina ocidental da graga: a luta contra o dualismo gnéstico-maniqueu Nos primeiros quatro séculos, o dualismo gnéstico era, em suas variadas manifestacdes, o grande desafio. Ele mpreende o mundo material como a fonte de todo mal. Quando o ser humano, mediante o revelador, chega ao conhecimento (gnosis), ele compreende a redengdo como retorno da parte espiritual ao mundo divino da luz. A redencao é compreendida como libertacao da matéria, da fonte do mal. Todavia, isto est4 em profunda contradi¢ao com a fé crista na criacdo, Na criagdo, por meio do bom Deus, nada existe que seja ontologicamente mau. A matéria, como princfpio de construcdo do cosmo, é tio boa quanto outro princfpio de construcao, o espiritual, 0 sistema gnéstico contém, ademais, a negacao do livre-arbitrio e, portanto, no final das contas, leva a su- Pressio da ética. £ indiferente como o ser humano se comporta em relacdo ao mundo concreto. A matéria como esséncia da existéncia mundana do ser humano é eticamente indiferente. : Na controvérsia com os gnésticos, os cristaos deviam ressaltar, portanto, quer a bondade da criaglo, quer também a constante importancia do livre-arbitrio para a prética do bem. A convicgio da vocagdo ao seguimento de Jesus, também e justamente de fato, bem como 0 esforco ascético para o dominio das forcas motrizes espiri- tuais e corporais tornaram-se caracteristicas da mundivisio primitivo-cristd. O cristianismo primitivo realga 0 lado ético e ascético da nova criatura, que est fundado na graca. Para os Padres da Igreja, portanto, a origem do mal ndo devia ser buscada na matéria como tal, mas na von- tade do ser humano, que se afasta de Deus. No plano da espiritualidade, 0 Cristo experimenta certamente sua -549- Digitalizado com CamScanner fraqueza perante as motivacdes dos sentidos, na medida em que elas, por meio da dinamica prépria, opSem-se ap propésito da vontade para o bem. ‘Aqui jaz, pois, uma grade distingao. Em primeiro lugar, deparamo-nos com ela na Africa do Norte. Tertulia. no, primeiramente, afastou a natureza e a graca uma da outra (test. an. 17), Esta terminologia de natureza e graca deveria tornar-se um tema continuo. Para Tertuliano, tratava-se do asseguramento do ser-bom do ser humano, ‘ou seja, de sua natureza, Assim, no Apologeticum 17,6, diz-se: anima naturaliter christiana. O ser humano recebey livre-arbitrio da parte de Deus como configuragao bdsica. Por certo, através do pecado de Adio, o mal estabe- leceu-se no ser humano (an, 41: vitium originis). Contudo, ele nao é sua natureza. Ele se sobrepée ao ser humano apenas como, por assim dizer, uma segunda inauténtica natureza. Como, porém, relacionam-se naturezae culpa original? De acordo com Tertuliano, a natureza perturbada, nao destrufda, encontra-se diante da nova iniciativa da graca de Deus. Através do batismo, o ser humano toma parte no designio salvifico de Deus. Este dom, da parte de Deus, & diferenga da natureza, agora chama-se graca, Ela nao é simplesmente contetido da natureza criada. Ela Ihe vem de fora, é sobrenatural e abrange os atos salvificos histdricos de Deus (encarnacao, reden¢ao, concepcig de Jesus, realizada espiritualmente em Maria etc.), bem como seus efeitos no ser humano (perdao dos pecados, nova criaturalidade). Esta diferenciacio, que era sugerida na discussio com o maniquefsmo, vinha ao encontro da exegese de Gn 1,26. J4 a encontramos em Irineu de Lido (haer. V.2.1; V.6.1; V.16.3): o ser humano é criado a imagem de Deus; ele tem uma semelhanga natural. E ele é criado 4 semelhanga de Deus, isto é, ele tem uma se- melhanca sobrenatural com Deus. 0 ser humano no perdeu a semelhanca natural, ela foi apenas danificada. A semelhanga sobrenatural é restabelecida mediante a graca de Jesus Cristo, Arememoracio da doutrina paulina da graga por Agostinho encontrou-se com uma mentalidade crista for- temente enraizada no Oriente e no Ocidente, a qual estava bem situada na liberdade, na ética e na ascética. Sobre isto os pelagianos podiam apoiar-se parcialmente, Eles pressupunham (erroneamente) na doutrina de Agostinho sobre o pecado original uma reanimagao da doutrina maniqueia da caducidade radical e da escravido do ser humano. Clemente de Alexandria, por exemplo, achava que s6 podia contrapor-se a uma materializago do pe- cado de Adio desde que formulasse a situacao assim (strom, 2,62/64; 4,93): Addo tornou-se pecador porque ele furtou-se 4 influéncia educadora de Deus. Os descendentes de Addo receberam o pecado através da imitagio de seu exemplo. 3-As controvérsias agostiniano-pelagianas em torno da graga e o surgimento de um tratado préprio da graca (separagao entre soteriologia e doutrina da graca) A disputa pelagiana na primeira metade do século V encontra-se, segundo a categoria, em pé de igualdade ‘com as discuss6es teolégico-trinitédrias e cristolégicas na Igreja primitiva. Autor da interpretacao herética da graca é o monge britanico Peldgio, que trabalhou durante varios anos em Roma (por volta de 410) como professor de ascese e orientador espiritual. Foram sobretudo alunos de Peligio que, no decurso das discusses com Agostinho, levaram as abordagens de Peligio ao extremo (Celéstio, Julian de Eclano).. No fundo, o préprio Pelégio era mais um fandtico religioso do que um profundo pensador tedlogo. Diferet™ temente da opinido que Ihe atribufa Agostinho, ele nao nega, de forma alguma, a graca. Tampouco ele atribui simplesmente ao agir humano a forca para a autorredengao. Também Peligio sabe que sio redimidos pela grag No entanto, ele a compreende principalmente como aptidao natural da vontade para fazer o bem, como gra¢a exterior (gratia externa), A graca, para ele, é todo o passo da histéria da salvacdo, através da qual Deus, na leie nd doutrina dos profetas e, por fim, em Jesus Cristo, influencia-nos, conduz-nos, transforma-nos e educa-nos. Cristo torna-se modelo para o pecador que, desta maneira, pode ajustar a semelhanca com Deus, nele disturbada, s¢- ‘gundo o arquétipo, Se aqui Cristo é chamado de modelo, isto nao deve ser simplesmente compreendido, de forms abreviada, no sentido moralista de hoje - é Deus, porém, que em Cristo nos deu o exemplo. No entanto, ele s¢ teria mostrado gracioso a nds somente a moda de exemplo, e nos justificado, Nés, porém, estarfamos chamados, = 550 — Digitalizado com CamScanner ‘enrossa iberdade natural, a acolher esta oferta, Mediante nosso préprio esforgo moral, poderfamos esculpir em asa forma de Cristo, que seria o verdadeiro dom da graca (cf. a autonegacao de Peldgio no Sinodo de Jerusalém etita/Didspole 415), Contuuto, a divergénela em relagao a Agostinho consiste, pois, em que, segundo ele, o ato de nossa liberdade, nyyqqual respondemos d graga de Deus, esta igualmente condicionado pela graga. Lin seu impeto aseética-ético, os pelagianos negavam também a doutrina da completa perdido da natureza Juunana ¢ da supressiio de nossa liberdade mediante o pecado. A imagem de Deus em nés ndo estaria comple- tantente destruida, © livre-arbitrio decidiria a respeito de se nés percorremos 0 caminho de Cristo e evitamos 0 man exemplo dle Addo, O problema do pecado de Adio reduz-se, para os pelagianos, a contaminacao mediante o man exemplo, Perante tal posigdo, abre-se um abismo em relagio a Agostinho. Ele orienta-se pela doutrina paulina do peca- doe da justiticagdo, ¢ ensina que o ser humano, na situacao de Adao, seria completamente incapaz para o amor. Ue teria padecido a morte espiritual, 0 que se manifestaria na morte corporal. Faltar-lhe-ia toda liberdade para obem. 0 ser humano seria até mesmo inapto de, na fé, dar o primeiro passo para Deus, caso ndo nos preceda sua sstaga (gratia praeveniens) e a £8 em Deus primeiramente o possibilite (gratia actualis). Segundo Agostinho, o ser humano ndo pode responder ao dom exterior da graga na histéria da salvacao se ele nao for tomado pela graa interior, pelo rspitito Santo, em sua intima subjetividade, e se ndo for conduzido para o bem sobrenatural (gratia interna Spiritus Sancti), Somente através desta graca interior é que a graca, como o tinico auxilio eficaz para a sal- vaglo, pode ser assegurada (a “gratuidade da graca”, em estrita oposigao ao ato de liberdade humano aut6nomo). Isto se mostra especialmente na necessidade salvifica do batismo para as criancinhas. Elas estariam sem atos de pecado, mas em razio do pecado natural de Addo que lhes é inerente, caem soba ira de Deus e ficam sem direito } vida eterna, Por este motivo, no batismo elas recebem o perdio do pecado original e a graga sobrenatural de Cristoe do Espirito Santo, Certamente Peligio também conhece um suporte da vontade por meio da graca e uma iluminacdo de nossa compreensio mediante 0 Espirito Santo. Contudo, este limita-se a que reconhecamos mais facilmente o manda- mento moral e também o cumpramos mais facilmente. Com isso ele ndo quer dizer que nés, em todo caso, somen- te mediante a graga reconhecemos e podemos fazer a vontade de Deus. Para o pelagianismo, a graca ndo significa um manuseamento total de nossa pessoa, mediante o que e em que nés unicamente podemos verdadeiramente gir. 8 dfeltncla teoldgica do pelagianismo consiste nisto que ele ndo captou a mudanga epocal na histéria inte~ lectual tardo-antiga. A moldura de compreensio tradicional estava rompida. 0 ser humano j4 nao se compreende em um enquadramento césmico abrangente de uma graca de Deus comunicada histérico-eclesial-pedagogica- mente ¢ eclesial-sacramentalmente comunicada, a fim de, a partir dai, em sua liberdade, voltar-se para Deus. Ele experimentava Deus muito mais psicol6gico-interiormente como aquele que o interpela e santifica pessoalmente ©, portanto, o introduz no ambito da vida eclesial. 4. Agostinho, mestre da graca (354-430) sstinho é 0 mais importante Padre da lgreja do Ocidente. Ele conferiu ao cristianismo ocidental uma marca até hoje determinante. Certamente ele se envolveu com temas que reiteradamente levaram a grandes $e €, por fim, no perfodo da reforma protestante, até mesmo a uma divisdo da Igreja, Basta pensar na dou- trina da predestinacio e a teoria especifica da transmissao do pecado original mediante a concupiscéncia (ct, @ propésito, o tema em KUNZELMANN, A. & ZUMKELLER, A, (orgs.), Sankt Agustinus ~ Lehrer der Gnade, Lat-al. Gesamtausgabe seiner antipelagianischen Schiften, Wii, 19553, « Prolegomenia I-11, 1989s, « Schriften cum Se- mipelagianismus, 2. ed. Wil, 1987). Resumidamente, a doutrina da graca de Agostinho, teocéntrica, cristoldgica ¢ pneumatologicamente comu nicada, apresenta-se assim: através do pecado original ¢ hereditario, o ser humano tornow-se ensejo da “ira” = 551 - Digitalizado com CamScanner divina. A humanidade tornou-se uma massa damnata (serm. 26,12; civ. 21,12). A natureza humana, marcada pelo pecado original, est enfraquecida e se encontra, acima de tudo, sob a pressio da concupiscéncla, Por certo 0 ser humano nao deve pecar, pois |he restou a liberdade de escolha (liberum arbitrium), mas ele peca efetivamente sob as condigdes factuais. Embora ele - nao obstante o pecado - continue a estar determinado ao fim sobrenatural, em razio da caréncia de fé e da graca condicionada pela fé, ndo reconhece este bem sobrenatural ¢ ndo pode também aspirar a ele. A concupiscéncia, que em determinado sentido é pecado, visto que resulta do pecado original, age como punigdo tio poderosa, que s6 pode ser plenamente superada na graca do batismo (c, Julian. op, Imperf. I, 9, 45; nupt. et. conc. I, 25,28). Esta impoténcia s6 é superada mediante a graca justificante, adquirida em forga da morte de Cristo, a qual restaura no ser humano a semelhanga de Deus, opera uma conversio e uma renovagdo interiores, bem como, a0 mesmo tempo também, a verdadeira liberdade (libertas; A diferenga de simples liberdade de escolha), ou seja, concede a necesséria forga do livre-arbitrio para a realizado do bem sobrenatural, ‘A graca justificadora, em relacdo a sua obtengao, posse duradoura e também seu uso, depende da ago da graca atual, Sem esta, o ser humano no consegue sequer querer um pouco do bem sobrenatural, para nao falar, pois, de realizd-lo, e muito menos ele consegue perseverar até o fim (donum perseverantiae). Evidentemente, antes das querelas pelagianas, Agostinho nem sempre havia atribu(do a mesma importéncia graca atual, principalmente nao em relacao ao comeco da fé, Contudo, sob a influéncia das discussées, ele levou consequentemente adiante a doutrina de que, nos eleitos, a vontade de acolher a irresistivel graca seria prepara- da por Deus, Por este motivo, graca e livre-arbitrio deveriam ser vistos em conjunto (praed. sanct. 5,10). No confronto com o pelagianismo, ele também nao se cansa de enfatizar a gratuidade da graca, Por mais que alguém pratique o bem, ele nao pode merecer a graga, nao tem nenhum direito sobre ela. Efetivamente, ela “no & graca, se nao for dada de graca (grétis)" (cf. 1Cor 4,7; EF 2,8; Fl 1,29). Visto que, de um lado, toda a raga humana, mediante o pecado de Addo, est sujeita A decadéncia, e do outro, ninguém tem direito sobre a graca e sem a graca preveniente também ndo consegue realizar nenhum bem sobre- natural, a salvagdo do individuo depende da misericérdia de Deus. Por conseguinte, o problema é: Deus concede a todas as pessoas a graca necesséria, ou Ele faz uma escolha? Ora, em todo caso, segundo Agostinho, uma parte da humanidade esta condenada. Ele escreve: “Sabemos: Deus nao concede sua graca a todas as pessoas”. Com isto, 0 desfgnio salvifico de Deus parece efetivamente ser apenas parcial ou uma “escolha’ feita. A situacdo, porém, nio &conclusiva, Possivelmente, os réprobos, como se diz, vao ao encontro de sua triste sina porque nao fizeram uso algum da graga suficiente que lhes foi concedida, e nao porque nao tenham absolutamente recebido graca nenhu- ma, Enquanto esta questo nao for esclarecida, a “escolha” parcial também nao pode ser afirmada com exatidio. Uma dificuldade adicional consiste nisto: Por que Deus concede aos réprobos a graca atuante, como aos san- tos, mas no, em todo caso, a graca suficiente? Por que Ele permite que uma parte das criangas no chegue a0 batismo? Para a resposta, Agostinho aponta para a inescrutabilidade das decisdes de Deus ed sentenca: “O vaso pode discutir com o oleiro?” (gratia et lib. arb, 22,44). Com outras palavras: ele admite uma perplexidade e confia na justiga de Deus. A concessao da graga, vista em conexio com o plano universal divino, condiciona, pois, finalmente, © pro- blema da predestinacdo. Por que Deus, em sua decisio eterna, admitiu santos ¢ condenados? Ninguém reprova ‘Agostinho por ele nao conhecer nenhuma solugao, mas porque ele, em sua doutrina da predestinagao, representa uma compreensao da graca que suprime o livre-arbitrio e proclama a coagdo da vontade: isto Ihe & censurado. Esta repreensio, porém, é injustificada, Com efeito, Agostinho, de um lado, jamais abandonou a liberdade e, de outro, apenas constatou a disponibilidade de uma graga que seguramente alcanga sua meta. Ele no fala de coa- 40. Certamente, ele também ndo indica como liberdade e graca operante segura devem ser unidas. Para a compreensio hodierna, deve-se atentar para o seguinte: (1) Agostinho é um tedlogo tipicamente existencial que nao pensa segundo os conceitos abstrato-especulati- vos de uma teologia posterior, mas consoante a ordem histdrico-concreta da tradigdo biblico-crista, Portanto, ele desconhece a nogdo abstrata da natureza humana (natura pura), que jamais foi realizada, mas observa o ser hu mano nas formas existenciais concretas, tals como a raga humana, segundo a Biblia, experimentou e experiment ~552~ Digitalizado com CamScanner como situacdes efetivas de salvagdo ou de perdigdo. Consequentemente, sio-lhe desconhecidas também algumas expresses técnicas de uma teologia posterior, por exemplo, a palavra supernaturalis eos terms gratia stfictens & gratia efficax, bem como gratia irresistibilis, (2) Igualmente as nogdes de Agostinho sobre pecado, pecado original e graga nao so as da teologia de hoje. por pecado, como pensador antigo-cristao, ele compreende a revolta contra a ordem das coisas querida por Deus, que necessariamente influencia o ser humano por inteiro, [la conduz d desarmonia, corporal e mentalmente compreendida ~ uma desarmonia que também domina o convivio com os outros, Semelhantemente, 0 pecado original abrange todo o ser humano concreto e se mostra na revolta culposa contra 0 Espirito, mediante o que esta concupiscéncia é interpretada por Agostinho em sentido amplo como a cobiga desviada de Deus, voltada paraas criaturas por causa delas mesmas. Em contraposico 4 compreensio naturalista da graca de Peligio e seus alunos, que subestimavam a ordem da salvagio e da redengio, para Agostinho trata-se da gratia Christi - aquela graca gratuita que age com poder interior ¢ indiz{vel no coragio do ser humano, desperta boas determinacdes da vontade ¢ a justica, na medida em que lhe infunde o amor mediante o Espirito Santo. (3) Para a doutrina agostiniana do livre-arb{trio, é importante sua distingdo entre o liberum arbitrium e a vera libertas. Com o primeiro, ele simplesmente indica a possibilidade de escolha do ser humano, sua autodetermina- ao, que Ihe restou também depois da queda do pecado. Em contrapartida, segundo Agostinho, a liberdade de ‘escolher e realizar o bem foi perdida pelo ser humano decafdo e - segundo Jo 8,36 e Rm 6,20-22 - s6 é readquirida mediante a graca. (4) A avaliacio demasiado otimista da natureza humana e de sua forca de vontade da parte de Peligio, bem como sua reduzida compreensdo da graca nao foram vistas tao ofensivamente na Igreja de entio como na teolo- gia do perfodo posterior. De fato, ainda nao se haviam tomado decisdes eclesidsticas sobre pecado e graca. Além do mais, Peldgio podia apelar, com certa raziio, a autores mais antigos, por exemplo, Lactancio e o Ambrosias- ter. Também os “massilienses”, em sua negagio da doutrina agostiniana da graca indispensdvel, julgavam poder apoiar-se na tradi¢éo (ZUMKELLER, A. “Prefacio”, In: KUNZELMANN, A. et al. (orgs.). Aurelius Agostinus, Schriften gegen die Semipelagianer VII. 2. ed. Wii, 1987). 5 Discussio com o semipelagianismo Semipelagianismo é 0 conceito usual desde o século XVI para designar a reagdo que surgiu na Africa ¢ no sul da Gila & doutrina agostiniana da necessidade absoluta da graca para toda acio meritéria, Se todo mérito (meritum) é dom da graca, nenhuma boa obra e nenhum oragio parecem j ndo ter nenhum valor préprio. Contra isto, o semipelagianismo afirma que, perante o designio salvifico geral de Deus, a eleigdo ou arejcigio do ser humano nao dependeriam da decisio salvifica de Deus, mas da vontade aquiescente ou recusante do ser humano, As criangas falecidas teriam ou recebido ou nao recebido o batismo como renascimento para a Vida eterna com vistas a0 mérito ou ao demérito previstos por Deus, que elas teriam produzido se tivessem conti- nuadoa viver. Igualmente a persisténcia na graga seria um mérito, endo um dom. Destarte, o inicio da justificagdo (initium fidei; pius credulitatis affectus) dependeria da iniciativa do ser humano, A gratuidade da graga fica, assim, extremamente ameagada, Contudo, deve-se sustentar, com Agostinho, que o comeco, o conteiido e a consumagio da justificagdo repousam unicamente na graca de Deus, de modo que também o ato da preparagio paraa justificagio, a perseveranga e asboas obras sio fruto da graca. Os semipelagianos, chamados na ocasido de massilienses ou “resto dos pelagiano definitivamente condenados no II Concilio de Orange (529). Estas decisdes, em seguida, cairam no esquecimer somente se tornaram novamente conhecidas no século XIII. No entanto, com elas exclui-se todo sinergismo, que atribui uma parte da justificagdo a Deus e outra parte ao ser humano, Os atos preparatdrias so produto da graga sobrenatural preveniente. Contudo, uma vez que a graca ndo exclui a liberdade de sta acolhida (voluntaria susceptio), mas a suscita, resulta o sutil problema do relacionamento entre graca ¢ livre-arbitrio, Isto deveria tornar-se um. tema independente na controvérsia da graca dos séculos XVI e XVI entre tomiismo e molinismo, ~553- Digitalizado com CamScanner 6 Disposigdes magisteriais Os trés documentos magisteriais mais importantes sao os 8 canones do Concilio de Cartago (418), 0 assim chamado Indiculus Coelestini e os 25 cdnones do Arausicano II (529). No geral, eles repousam sobre a linha de Agostinho e na de seus maiores discfpulos Préspero de Aquitania e Cesario de Arles. Nao foi assumida a doutrina de Agostinho sobre o designio salvifico particular, suas exageradas teses sobre a predestinacao e nem tampouco as teorias especificas da transmissdo do pecado original mediante a infectio caris. No caso dos presentes documentos, ndo se trata de concilios ecuménicos ou de decisdes papais catedriticas no sentido hodierno da palavra, Todavia, eles foram recebidos por toda a Igreja. Por conseguinte, valem como expressdo auténtica da fé da Igreja, a) A doutrina do pecado original 0s dois primeiros canones do Concilio de Cartago referem-se ao pecado original (um terceiro cdnone vale como tertium extravagans). Em primeiro lugar, rejeita-se a doutrina de que a morte corporal seria uma necessidade da natureza e noo prego do pecado, Can. 1 do Indiculus e os Arausicano II, no Can. 1 e 2 vao mais adiante. O ser humano deve ser compreendido a partir de seu estado origindrio (status integritatis), O ser humano era, por natureza, uma criatura destinada a Deus, a quem Deus, na graca como a vida, comunicou-se. Através do ato livre da rejeicao, ele tornou-se pecador. A consequéncia é a morte de todo o ser humano, segundo a alma e o corpo. Também a alma que pecou esté sujeita Avioléncia da morte (cf. Ez 18,20). Em segundo lugar, refuta-se também a opinido segundo a qual nés terfamos apenas herdado o castigo de Adao. Na realidade, através dele nds nos tornamos pecadores. “Pecador” designa o ser humano néo por causa de uma transgressao pessoal do mandamento, mas devido a perda da presenga vivificante de Deus, na condi¢ao de pecador e de devedor da justica e santidade que Ihe foram doadas original e sobrenaturalmente. Dai se segue a préxis eclesial de batizar, “para o perdao dos pecados”, também as criancas, que nao tém atos de pecado pessoais. No geral, esté esclarecido: somente a graga de Cristo pode fazer de um pecador um santo, um justificado, cu seja, do que est morto diante de Deus um vivente (em Deus, através dele e para Ele). Por isso & que a graca é necessdria, que também possibilita a fé como fé salvifica (e ndo apenas como conviccao subjetiva de um fato).No batismo, esta graca é concretamente comunicada como renascimento, nova criagdo e justificagao. b) A doutrina do efeito da graga de Cristo No Can, 22, 0 Arausicano II diz que o ser humano in statu Adae no passa de mentira e de pecado, Ele é incapaz de amar a Deus sobre tudo. Ele é incapaz de realizar o bem por causa de Deus. Ele também nao estd em condicdes de dar o primeiro passo rumo a Deus, Porque jd somos agraciados, é também o proprio Deus quem estimula nossa vontade de pedir 0 batismo. Nao nos é permitido dizer, portanto, que o ser humano, quando faz o que pode a par- tir de si mesmo, sem diivida a graca é recebida de Deus, Isto se expressa também em um axioma que na teologia medieval desempenhou um papel e que foi a ocasio para a reforma abrigar as tendéncias pelagianas da teologia. convencional: “Facienti quod est in e, Deus non denegat gratiam ~ a quem faz. o que lhe cabe, Deus nao nega sua gra- a”. Portanto, devemos confessar que o comeco, o aprofundamento eo aumento e que, finalmente, a consumagao da fé, do amor e de nossa moralidade, isto é, o cumprimento dos mandamentos sé é possivel mediante a graca. 0 ato mediante o qual nds cremos em Deus, no qual nés 0 amamos, nao é simplesmente o que nés temos a partir de nés mesmos, £ um ato condicionado pela graca, o qual vai além das possibilidades de nossa natureza. De “vasos da ira”, tornamo-nos vasos da “misericérdia” de Deus, como se diz na frequentemente citada passagem de Rm 9,22. ‘Somente nas virtudes sobrenaturais infusas (fé, esperanga e caridade) pode a criatura ativar sua liberdade para -554— Digitalizado com CamScanner peus de modo significativo para a salvagdo. Deste modo, também o ato moral do ser humano recebeu um valor de eternidade. A graca nao anula o livre-arbitrio; ela liberta o livre-arbitrio para sua substancialidade, vale dizer, paraa liberdade. No Can. 9 do Indiculus, diz-se, portanto: “Pois tdo grande é a graca de Deus para com todos os homens que Ele quer que sejam nossos os méritos (merita) que so seus prdprios dons (dona). Ele age verdadeiramente em nés de tal maneira que queiramos o que Ele quer. Ele age em nds de modo que fe concede 0 prémio (praemium) eterno por aquilo que Ele nos deu. Assim, somos também cooperadores da graca de Deus (ut cet nos cooperatores simus gratiae Dei" (OH 248). Trata-se, portanto, do efeito da graga em nés e conosco (in nobis cum nobis). Esta colaboragao nao ¢ agir do ser humano de si préprio sobre a graca, mas um agir do agraciado em prol da meta da graca jé existente na propria agraciagao: a vida eterna, Neste sentido, a colaboragio consecutiva do livre-arbitrio redimido rumo a meta é ne- cesséria a salvagao (DH 397), Portanto, se confessarmos que sem Jesus nada podemos fazer (Jo 15,5), devemos também confessar que Cristo nos perdoa todos os pecados, Por esta razio, ndo somente a partir de um sentimento de humildade o justificado, ouseja,o santo, reza também a peticao do Pai-nosso: “Perdoai nossas ofensas”. Os santos - referimo-nos aqui nao 20s santos perfeitos (in patria), mas aos santos da terra (- os batizados) - rezam, portanto, porque eles, de fato, carecem de constante perdao. Também os santos nao conseguem evitar todos os pecados (veniais). Por fim, 0 ‘aumento da graca ea perseveranca no bem até o fim so obra da graca. A vida do justificado permanece marcada pelocombate contra a tentagao. E preciso uma contfnua crucifixdo do amor-préprio egofsta, c) A questo do comeco da fé (sto responde o Can. 5 do Arausicano I diz que, como 0 crescimento, assim também 0 inicio da fé (nitium fide) e a pr6pria inclinacao para crer (pius credu- afectud), pela qual cremos naquele que justifica o Impio (impium iustificad e chegamos & regeneracio do sagrado batismo, és, n3o pelo dom da graca (per gratiae donum) - isto 6, pela inspiracio do Espirito Santo que corrige a nossa vontade da idade 3 , da impiedade 8 piedade-, mas pela natureza, se mostra adversério aos ensinamentos dos apéstolos” (DH 375). 7 O desenvolvimento do problema na teologia medieval A teologia ocidental permanece ao longo de um milénio sob a influéncia de temas agostinianos. Evidente- na escolistica, a reflexdo sobre a graca - originalmente a quintesséncia de toda a salvagio em Cristo - de- Wolveu-se em um tratado auténomo da graca com uma tematica completamente especifica e delimitada (cf. IDGRAF, A.M. Dogmengeschichte der Friihscholastik J. Die Gnadenlehre. Rb, 1952), a) Controvérsia em torno da predestinacio Arecuperacao da teologia no renascimento carolingio, depois de longo siléncio que se seguira 4 desinte- ta¢do da cultura romana, comegou com acaloradas discussdes em torno da doutrina da dupla predestinagio, defendida por Gottschalk, um monge de Orbais. Gottschalk foi condenado pelos sinodos de Mogtincia (848) e de Quiercy /oise (853), sob a direcao de Hinkmars, arcebispo de Reims, Aqui, defenderam-se o designio salvifico uni- Yersal de Deus ¢ o livre-arb{trio do ser humano, bem como ensinou-se uma e tinica predestinagdo para a salvacdo (E.R 8,33; Ef. 1,1). Diz-se, aqui, que Deus conheceria antecipadamente os perdidos, que permaneceriam na massa Perditionis. Contudo, ele ndo os destinaria ao mal e condenago. Contrariamente a isto, reuniram-se os agostinianos estritos no Sinodo de Valenca (855). Eles advogavam uma Praedestinatio gemina, obviamente em forma moderada e sem expressé-la claramente. - 555 - Digitalizado com CamScanner No Sinodo de Tou! (860) houve unificagao nisso que se deixou que as declaragdes de ambos 0s sinodos subsis- tissem umas ao lado das outras, sem niveld-las em sentido positivo (cf. DH 621-633). b) A preparagio para a graca Mais importante era a determinagao exata da relagao do livre-arbitrio com o comego da salvacao na gracae a partir dela. Curiosamente, deste o século VIII, ndo eram conhecidos os decretos do Arausicano Il. Consequentemente, também jé ndo se tinha consciéncia adequada da problemética do initium fidei. Certamente, o puro caréter gra- cioso da salvagao (0 gratuitas gratiae) estava fora de questionamento, 0 problema, porém, é como o livre-arbitrio se orienta para a recep¢%o da graca, visto que a graca no cai simplesmente de cima sobre o ser humano. O ser humano, portanto, nao é passivo diante da graga, mas receptivo, ou seja, inteiramente ativo, de certa forma. Ele acolhe-a como o destinatério da graca e recebe-a segundo a estrutura de sua criaturalidade. Se, por conseguinte, ‘0 ser humano é 0 ser do livre-arbitrio, entdo a graca deve ser assumida pela vontade segundo sua composi¢ao liberal. Aqui se diz, pois: a graca nao é apenas uma relago que Deus institui para nés, mas também o principio com o qual nossa livre vontade responde perante a oferta de Deus. A graca é, portanto, o principio de nosso agir ‘0u, dito de outra maneira, o principio da virtude. 0 livre-arbitrio deve, portanto, a seu modo, preparar-se paraa recepsio da graca. Isto se torna mais compreensivel quando se considera a forma de pensar aristotélica existente af por trés. Somente uma matéria dispontvel pode assumir uma forma, Deste modo, por exemplo, somente uma matéria hu- ‘manamente formada pode assumir de tal maneira uma alma humana que a alma, como o princfpio que dé forma, agora faz desta determinada matéria o corpo concreto do ser humano, Por conseguinte, somente também uma vontade dispontvel para Deus pode acolher a graca como forma, isto &, como principio da resposta mediante a qual ela, como vontade agraciada, entra na comunhdo de amor com Deus. ‘Mas o que, pois, move a vontade a dispor-se para Deus? £ apenas um auxilio de Deus, portanto um dom uni- versal, mediante o qual o criador encontra-se sempre na criatura, ou aqui jé se trata, em sentido especifico, da graca de Cristo ou do Espitito Santo, que move a vontade? Caso alguém diga que a vontade é movida por Deus, mas ndo pela graca de Deus, entZo resvala facilmente para o canal do semipelagianismo. No final das contas, de alguma maneira, a vontade, por iniciativa propria, terd dado o primeiro passo rumo a Deus. O ser humano, por conseguinte, pode, em tudo, a partir de seu livre-arbitrio, preparar-se para a graca, se nesta ocasigo Deus tam- bém certamente o apoia com seu auxilio, mas nao é o princfpio de seu agir. Com efeito, o auxilio de Deus nio é precisamente a prépria graga. Assim, coloca-se a questdo do que o ser humano poderia fazer em relagio a Deus, sem a graca, puramente a partir de suas forcas naturais (ex puris naturalibus). No caso, precisamos considerar que hninguém questionou que o ser humano natural, também como pecador, poderia fazer o bem ao préximo. Aqui se trata da questo de se ele, em relagao a Deus, pode agir de modo salvificamente relevante, ou seja, amar a Deus sobre todas as coisas (Deum amare super omnia) e cumprir, na forca do Espirito Santo, os mandamentos de Deus. Ora, poder-se-ia fazer uma referéncia a Zc 1,3. Ali se fala de um voltar-se recfproco do ser humano para Deus e de Deus para o ser humano. Diz Deus: “Retornai a mim e eu retornarei a vés", Evidentemente o ser humano deve voltar-se para Deus em virtude da vontade humana a fim de alcancar a graca. Assim isto se esclarece a partir do deduzido axioma: Facienti quod est in se, Deus non denegat gratiam (cf. Landgraf 1/2, 249-264). Contra esta concepgao, os franciscanos, sobretudo, atribuem este primeiro voltar-se da vontade, de alguma forma, graca que jd nos advém, Eles chamam a isso de gratia gratis data. Posteriormente, esta nogdo adquire outro significado, a saber, como caracterizagao dos carismas, a diferenca da graca justificadora (gratia gratum fa- ciens). Os tedlogos aqui em questo diferenciam esta disponibilidade da alma da prépria raga derramada em nés (qinfusio gratiae spiritus sancti; cf. Rm 5,5). Esta disposicéo da vontade é, por assim dizer, uma instncia intermedidria entre a plena indisposiao (6dio a Deus e descrenca) e a informacao da alma mediante a graca santificante. Nesta instancia j4 existem o temor de -556- Digitalizado com CamScanner Deus, a fé e a esperanga. Mas elas ainda ndo esto formadas (timor servilis ou spes et fides informis). Portanto, trata-se de uma fé nos fatos salvificos, sem confianga em Deus, ou seja, sem o ato pessoal da fé, A estas virtudes falta ainda a graga como amor, 0 qual forma a fé e a esperanca e sé ento a torna em fé operante de salvagaio (fides caritate informata; cf. G15,6). Neste contexto, os tedlogos falavam de um mérito de adequagao (meritum de congruo). Se o ser humano s6 fizer o que est em suas forgas, a fim de seguir o apelo de conversio de Deus, entdo isto seria um mérito a que Deus responderia adequadamente com a infusao da graga justificante. Obviamente nao entra em questéo nenhum rmeritum de condigno (um mérito de dignidade), que obrigue Deus justamente & infusio gratiae, Em todas estas reflexdes, deve-se observar que aqui se trata somente da remota preparagdo do pecador para arecepcio da graga. Permanece decisivo que a preparagao imediata (ultima dispositio) coincide com a infusdo da graca. A forma, ou seja, a prépria graca dispde da matéria no momento (in nstanti) em que ela se une & alma, AS~ sim, imediatamente o ser humano, em contrapartida, é tornado capaz de acolher a graca. O ser humano, portan- to, nio produz, como posteriormente temia a critica reformadora, uma “contribuigao” precedente a agraciagao como condigdo desta. Em sentido inverso, 0 ser humano, no momento da infusdo da graga, torna-se to perfeita- mente disponivel para a comunhiio com Deus, que a graca pode tornar-se o princ{pio da dinamica de seu espirito edesua vontade para Deus, Portanto, a graca mesma € o princfpio de sua recepcao livre (ativa) pelo ser humano. c) 0 problema da graca criada e incriada Aescoléstica, havia-se compreendido a graca precipuamente como inclinagdo de Deus, mediante a qual nos admite em sua comunhio. Destarte, a graca é propriamente uma relacao do ser humano para com Deus razio de uma benevoléncia de Deus (favor Dei). A graca é, portanto, o préprio Deus, na medida em que nos ama ‘esenos doa como a vida eterna (= autocomunicacao de Deus ou inabitacao de Deus em nés; cf. Tomas de Aquino, Sth.L.g. 43 a5.6.; 4.44 a.4), Acscoldstica chamava a isto de graca incriada (gratia increata). O que deve ser, entao, inversamente, a graca ctiada? Se ela for algo (aliquid) junto ao ser humano ou nele, entdo hi o risco de pensar numa graca pessoal. A partir disso, justificadamente, a teologia reformadora viu, do lado catélico, o insinuar-se de uma reificagio e de uma disponibilizacao da graca. A graca passa a posse do ser humano. Ela tornar-se-ia uma obra meritdria des- valorizada, Tais condenacées, sob as condigées histérico-intelectuais completamente diferentes, 400 anos mais tarde, ndo levaram em consideragao, porém, a ideia original que tornou necesséria a mencionada diferenga. A fim de compreender o que aqui se quer dizer, é preciso remontar a famosa Distinctio 17 do I Livro de Sentengas de Lombardo, Segundo este, o amor derramado em nossos coracdes, pelo qual amamos a Deus, é 0 prdprio Espirito Santo (Rm 5,5). A objecao contra o Lombardo reza: entao, Deus ama a si mesmo em nés ou através de nds. Njo somos nds ‘mesmos que amamos a Deus pela forca do Espirito Santo, £ essencial que a criatura seja o sujeito do amor de Deus. Olivre-arbitrio, no entanto, jé completa e inteiramente enfraquecido pelo pecado, nio consegue, por si s6 (in suis, naturalibus) amar a Deus sobre todas as coisas, ou unificar-se com Ele na unidade do amor. Por conseguinte, 0 Es- pirito Santo deve santificar 0 livre-arbftrio em suas raizes. Somente mediante esta aptidao da vontade ¢ que o ser humano consegue, em sua liberdade, transcender para Deus ¢ cumprir de tal modo a lei moral, que ela se torna um passo rumo a Deus. A vontade move-se em uma conformagio afetada pela graca (= predisposigdo da ativida- de), Pode-se falar aqui também de uma consisténcia (qualitas) da alma operada pelo Espirito Santo. Com ela, as funcées naturais da alma (do crer, do esperar, do confiar, do amar) sio formadas pela graca. Elas sio relacionadas Para além de si (sobrenaturalmente), isto é, inclinadas para o Deus da revelagio (S.th, 1/11 q. 110 a. 1). A isto se chama graga inerente ou criada, a conformagao de nossa alma operada por Deus, a graca santificante, respecti- Vamente, justificante. Agora se chega a justa determinacio do relacionamento entre graca criada e incriada, Os Brandes tedlogos medievais pensavam a partir da soberana autocomunicagdo de Deus, Na medida em que Deus, Pois, em seu amor, vem até nés, sua graca abarca como seu momento prdprio também o aspecto de que ela cria - 557 - Digitalizado com CamScanner ‘em nés os pressupostos para que nds, como criaturas, possamos acolher a graca em nossa realidade e responder amorosamente ao amor de Deus em agraciada vontade. A graca, portanto, opera uma transformacao no ser hy. mano (um effectus). Ela o torna nova criatura. Ela possibilita o cumprimento dos mandamentos como expresso do amor a Deus. Pensando-se a graca como amor, ento a ideia de uma graca criada resulta inevitavel. Ela é 0 agir de Deus na cria¢o, mediante o que Ele nos torna aptos a que, para além da infinita distancia, sejamos, em todo caso, aproximadamente elevados a seu nivel, a fim de poder encontré-lo, o Criador. A graca santificante dispde (disponit| a alma a receber uma Pessoa divina (enquanto 0 Espirito Santo mora no justificado como ‘em um templo), € 0 que se entende, quando se diz que o Espirito Santo é enviado segundo o dom da graca. E, no entanto, 9 [Proprio dom da graca provém do Espirito Santo (como dom e doador, ao mesmo tempo). Por isso se diz: 0 amor de Deus foi der- ramado em nossos coragoes mediante 0 Esptito Santo” (Toms de Aquino, S.th. Iq. 43 a. 3 ad 2). A seguir, porém, a reforma protestante compreendeu a graca principalmente como perdao dos pecados. Por isso, a fé no mérito justificador de Cristo, que sempre permanece extra me, entrou em primeiro plano. Neste con- texto, o discurso da graca inerente pode ser, pois, malcompreendido. 4) Graga como o tema central da antropologia (Tomés de Aquino) A ideia bdsica é radicalmente teocéntrica. Deus é, em si, vida e movimento. A criacao significa comunicaco da vida divina ou orientacao a sua recepcao. Deste modo, parte do Deus unitrino 0 movimento para o mundo (mo- tio Dei ad creaturam), que leva até o ser humano. Todavia, no ser humano acontece a mudanga, de modo que nele toda a criagdo move-se novamente para Deus, certamente como sua plenitude no amor eterno (motio creaturae ad Deum). Mas a comunicacao destes dois movimentos acontece mediante o Verbo de Deus. Por causa do pecado, Deus modifica seu movimento para o mundo através da encarna¢do do Logos e de seu sofrimento vicério por ns ‘como revelacao do amor de Deus também para com o pecador. Deste modo, o movimento de retorno da criatura passa unicamente por Jesus Cristo, ou seja, 0 Filho de Deus crucificado e ressuscitado, que verdadeiramente assumiu a natureza humana. Por esta razo, a suma da teologia. articula-se nas seguintes trés partes: 1) Deus e sua obra. 2) 0 ser humano e seu caminho (= sua autotranscendén- cia) para Deus. 3) Jesus Cristo, o caminho e o mediador de Deus para o ser humano e o caminho do ser humano para Deus. Nesta concepsio, pois, nao se deve falar da graca somente depois da cristologia, mas ela ja deve transfor- mar-se em tema-dpice da antropologia. Neste lugar é preciso mostrar que a graca de Deus, que nos & dada em Jesus Cristo, é aquela realidade mediante a qual o ser humano completa seu movimento para Deus. Agora se coloca a questo de como o humano pode ser mais exatamente descrito. A questo sobre o que algoé, 2 filosofia responde com o conceito de “natureza”, Entdo, agora deve-se observar que, afinal de contas, significa criaturalidade. A criaturalidade nao pertence somente a ideia da derivacdo de Deus e da constante dependénciae ligagdo em relacdo a Ele. A criaturalidade é mais profundamente compreendida quando concebe a si mesma como a comunicagao do criado dada por Deus (ser-por-si, livre autodisposicdo). Assim, nos limites da criaturalidade de ser uma natureza concreta, esto princ{pio de seu prdprio reconhecer e seu atuar, Por conseguinte, pertence 2 uma natureza criada também a noo da realidade prdpria, da atividade prépria e da dignidade prépria. A autor realizado real de uma natureza criada nao depende respectivamente de acdes adicionais de Deus a excederem 0 ato da criacdo ou de uma intervengao fisica de Deus (como a teoria da iluminagao ou da cogni¢io da a entender), a fim de pér a criatura em movimento, ou seja, substituir as causas caracteristicas dos seres por causas transcen- dentes, A onicausalidade divina nao deve, de forma alguma, limitar ou passar por cima da causalidade criacional. Deus e criatura nao se encontram como concorrentes no mesmo nivel, Deus move, em soberana plenitude de sua onicausalidade, os seres criados de modo tal que eles ndo podem conter o princ{pio de sua natureza. Assim, 3 partir de dados teolégicos, Tomas desenvolve uma metafisica da liberdade infinita. Faz parte da natureza humana - 558 — Digitalizado com CamScanner nio somente o fato de que ela também tem uma porgao de liberdade, ao lado de diversos determinismos biolégi- cos € sociais. Deve-se dizer, ao contrério: o ser humano, como criatura espiritual,éliberdade. Isto inclui a realizado da liberdade no Ambito de suas condicdes materiais. Onde a onicausalidade de Deus e a atividade prépria do ser hu- ‘mano se encontram, estamos diante, portanto, de uma relagio pessoal de profundidade ontolégica. 0 ser humano jamais pode encontrar Deus ao lado ou até mesmo contra sua natureza, isto é, sua liberdade, mas justamente somente na ativacao da vontade e do conhecimento em relacdo a Ele, isto é, justamente em sua natureza (S. th. I/ 1l,q- 113. 3). Torna-se evidente como Tomés transformou totalmente a nocdo aristotélica de natureza no sentido de uma teologia crista da criagao, “Natureza” jé ndo é 0 que determina, de anteméo, a vontade a um modelo rigido Anatureza significa muito mais a liberdade que se consuma em sua meta, Esta determinacao teolégica radical do ser humano é alcangada mediante uma finalizagao, uma dinamizacao ¢ transcendentalizagao da natureza hu- mana, Criatura espiritual, portanto, outra coisa nao é senao autotranscendéncia da liberdade rumo a sua meta: a participagao na comunhao do amor trinitdrio de Deus. O ser humano sé chega, portanto, a consumacao de sua liberdade e & sua meta quando ele se conscientiza de sua derivacao transcendental de Deus e sua orientacdo para ele, Neste sentido, Tomés descreve o ser humano como “desiderium naturale ad videndum Deum" (S. th. 1, q. 12 a.5). $6 hé uma tinica meta da natureza humana, a saber, sua consuma¢ao mediante a autocomunicagao de Deus, € certamente na unificacio do amor. Este éxtase natural condiciona, pois, a sentenca da doutrina tomista da graga: “Gratia non tollit, sed perficit naturam ~ a graca nao suprime a natureza, mas aperfeicoa-a" (S.th.Iq. 1 a.8). Contudo, disso se segue que a liberdade como concentragao da concepcao teolégica da criacdo ndo se encon- tra contra a graca, mas é condicionada e consumada pela graca em sua realizacdo. Sem a graca, a natureza nio poderia alcancar sua meta, porque a meta encontra-se fora dela, e nao pode ser atingida mediante suas possibi- lidades, A este éxtase e autotranscendéncia chama-se, pois, neste sentido, sobrenatural. Ele é unicamente este splemento para a realizacao da substancia do ser humano (substantia hominis), mediante 0 qual ele relaciona 'transcendentalidade interior a Deus e alcanga-a em Deus. Por isso diz Tomas que 0 ser humano ¢ redimido e lufdo na vida de Deus somente pela graca (sola gratia) (cf. S. th. I/II, q. 109.7). ~ Contudo, o dom da graca de Deus, que jé é sua autocomunicagao em nés, no final das contas visa 4 unio do amor: esta relacao ou unificagdo singular pressupée certamente a subsisténcia (realidade propria e atividade propria da criatura pessoal) e aciona-a, Se o ser humano nao fosse pessoa, nao se poderia falar de amor, pois no amor trata-se da unificagao e da comunhio de diversidades pessoais. 0 ser humano, porém, nio pode ser amado por Deus, no verdadeiro sentido da palavra, sem que este amor nfo capacite a prépria pessoa criada para amar enisso alcancar a comunhao com Deus: “Por meio da graca justificante, o ser humano é constituido em um. amante-de-Deus, porque ele, por meio da graca, é orientado para a meta de que Deus lhe permite participar irfssimo efeito da graca santificante é que o ser humano ama a Deus” (S.c.g. Ill, 151). ‘Assim, fica claro: o ser humano sé chega a Deus mediante a graca. Contudo, a chegada da graga de Deus em 16s faz. com que também nossas atividades do conhecer e do querer acontegam por si sés. E, portanto, a doutrina da graca faz parte da antropologia porque a graca é a consumagio da liberdade. Ela é a perfectio do perfectibile do liberum arbitrium. A liberdade, por conseguinte, nao estd, ao lado da graca, agindo junto a Deus, mas em razio da graca, ela busca a meta que lhe foi proposta e j4 doada em Cristo, mediante a qual a graga nao é um dom que influencia de fora a vontade, mas é o préprio Deus, como Espirito Santo, que nos encontra na ¢ como graga, Em Tesumor a graca é 0 amor eterno de Deus, com o qual Ele predestina a filiacdo divina e conduz d comunhdo eterna da Igreja com Ele (S. th. I/II q. 110. 1), 8 Desenvolvimentos tardo-medievais como pano de fundo do protesto reformador Uma primeira mudanga importante é que o tema da graca jd nao é tratado no Ambito da antropologia, Na dade Média tardia cessa a literatura de sumas. Escrevem-se principalmente comentarios em sentencas e se fazem Pesquisas sobre questdes individuais. A problemética da justificagdo encontra-nos na doutrina sobre Deus, por- que, ao tratar deste tema, a referéncia era Pedro Lombardo (in | Sent. dist. 17). Ali se pergunta se o amor em nds é -559- Digitalizado com CamScanner © proprio Espirito Santo. Contra isso vem a objecao de que nés, em virtude de uma disposicao criada em nés pelo Espirito Santo, podemos presentemente amar a Deus, portanto, por meio de uma graca criada. Na escoléstica tar. dia inverte-se todo o relacionamento de graca causadora incriada e criada, Em primeiro lugar, o ser humano deve esforgar-se pela qualidade da graca como por uma caracteristica, a fim de que lhe seja comunicada, em seguida,a graca da autocomunicagao, da justificacao e da vida eterna. Contudo, visto que a doutrina da justificagao agora é tratada na doutrina sobre Deus, coloca-se a dificil questo a respeito do relacionamento entre graca e liberdade, 0 problema jé nao é como o ser humano poderia permanecer livre ou tornar-se livre perante o agir de Deus, mas como Deus, em relaco & graca por Ele enviada, conservaria sua liberdade. Joao Duns Escoto dé muita importancia a liberdade de Deus. Uma sentenca-chave dele diz: “Nihil creatum for. maliter est a Deo acceptandum”, Portanto, nada hé de criado, seja uma obra meritéria, seja também uma qualidade da graga criada, a que Deus devesse responder com o dom da vida eterna. Deus é, do ponto de vista moral, plena- mente livre em relagio a toda coergao por parte da criacdo. O ser humano ¢ justificado unicamente mediante 9 ato divino da aceitago (acceptatio divin). Deus poderia, portanto, caso quisesse, aceitar também o pecador mortal, Todavia, em uma liberdade divina excogitada, o antincio do Evangelho e da conversio parece ser supérfluo, porque Deus, sem levar em consi- deracdo nossa situacdo como agraciados ou pecadores, acolhe-nos ou rejeita-nos. Para progredir aqui, Duns Escoto diferencia duas liberdades de Deus. De um lado, existe a poténcia de Deus, mediante a qual Ele sempre faz o que Ele quer (potentia Dei absoluta). De outro, haa liberdade a qual Ele se ateve na erecdo da ordem salvifica factual (potentia Dei ordinata), De potentia Dei absoluta Deus é sempre livre para aceitar quem Ele quiser. Em contrapartida, Ele compro- meteu-se de potentia Dei ordinata com a conservacao da ordem salvifica factual. Ele est comprometido a acolher para a vida eterna aquele que, mediante o préprio Deus, tem graca e amor, e rejeitar aquele que, por sua propria culpa, nao os possui. No entanto, problematica é o intimo afrouxamento do laco entre Deus e a histéria da salvacao. A isto, em alguns autores, ligam-se especulacées sobre se Deus poderia também ter feito tudo diferente. A liberdade de Deus tornou-se uma soberania absoluta (arbitrdria) da vontade (cf. ISERLOH, E. Gnade und Eucharistie in der philosophi- schen Theologie des Wilhelm von Ockham. Wiesbaden, 1956, 67-77). E este querer-poder arbitrério de um niimero ilimitado de possibilidades é limitado apenas mediante a autofixaco de Deus em uma dentre as varias possibili- dades. Por que, pois, nosso caminho para Deus esta justamente ligado aos sacraments, A Igreja, A pessoa histérica de Jesus? - assim indagavam muitos que ai por trés ou paralelamente ainda buscam outro Deus. A resposta da teologia da Idade Média tardia era positivista: Deus dispés precisamente as coisas de tal sorte, que Ele s6 concede a vida eterna aquele que preenche as condicGes estabelecidas pelo préprio Deus, que se dispde para a graca da vida eterna mediante a recepcao da graga nos sacramentos e por meio de uma vida segundo os mandamentos de Deus, aquele, portanto, que dé uma contribuicao através de um mérito de adequagdo (meritum de congruo). ‘A ansiosa pergunta do ser humano: “Como chego a um Deus gracioso, ou seja, como alcango a vida eterna”, recebe, portanto, a partir daf uma resposta: “Quando fazes o que est em ti, ou seja, quando recebes a graga dos sacramentos, especialmente da peniténcia, e quando tu, a partir de tuas forcas naturais, amas de tal maneira Deus, como Deus 0 ordenou, entdo Deus, de potentia Dei ordinata, j4 te concede a graga da vida eterna”. O ser humano, portanto, parece poder contribuir com algo, porque ele deve, Ele deve colocar-se na situagio da graga (habitus unt qualitas), a fim de ser salvo. Portanto, hé um mandamento de Deus de ter a graga. Contudo, o ser humano, totalmente estragado no pecado, este escravo da concupiscéncia, esta em condigdes m{nimas de oferecer uma contribuicao prévia, a partir de suas préprias forgas, quando ja nao dispée de forca al- guma para este direcionamento para Deus, devido a perdi¢do do pecado original? Esta é a pergunta de Martinho Lutero, Sua prépria experiéncia com a escravidio de nossa vontade sob 0 pecado e seu profundo pessimismo no que diz respeito a bondade natural da vontade humana levaram-no a considerar a doutrina da graga tardo-me- dieval como pelagiana. Segundo esta, o ser humano, mediante a aquisicao da qualidade da graca (gratia creata), contribuiria, ele préprio, com algo para a justificagdo. Todavia, uma vez que ele, a partir de sua vontade pecadora, as -560- Digitalizado com CamScanner que odeia a Deus, jd nada mais poderia, a salvacdo j4 nao dependeria de forcas humanas e, portanto, o ser humano jamais poderia estar seguro de sua salvacdo. O ser humano nao poderia amar a Deus a partir de forgas naturais. Por esta razdo, Lutero polemizava contra a formula fides caritate formata. Ele dava a entender que nela a fé seria portada pela obra humana do amor, e isto confundiria, pois, a f€, como o verdadeiro ato salvifico, com uma obra humana. Com isto, Lutero cré poder assentar a doutrina catélica sobre um sinergismo no sentido de que o ser humano seria justificado e alcangaria a vida eterna em parte por meio da fé dada por Deus, e em parte mediante as proprias obras (a partir de suas forcas naturais). 9 Tragos fundamentais da concepgao luterana da justificagao do pecador A justificagao do pecador, unicamente mediante o encorajamento da justica de Cristo, o qual s6 pode ser acolhido na fé, éo centro da teologia reformadora. Trata-se da iustificatio impii per verbum Evangelii. Ela é realizada, de modo objetivo, somente por meio de Cristo (solus Christus). Ela é pura graca (sola gratia). la éconcedida mediante a palavra do Evangelho (solo verbo) e acolhida unicamente pela fé (sola fide). Para Lutero, no caso da justificacao, trata-se do artigo com o qual a Igreja se erige e cai (articulus stantis et cadentes ecclesiae, cf. WA 40 Ill, 352,3). Assim, “o artigo da justificagao é mestre e principe, soberano, governador ejuiz sobre todos os tipos de doutrina, Ele contém e rege toda a doutrina eclesistica e ergue nossa consciéncia diante de Deus, Sem esse artigo, o mundo esté inteiramente morto e em trevas” (WA 39 I, 205, 2). Passagens cen- trais, as quais Lutero sempre de novo apela, devem ser encontradas sobretudo na Carta aos Romanos (Rm 1,17; 3,21-26; 4,25; 5,18; cf. 2Cor 5,21). Lutero reconhece na doutrina paulina, redescoberta por ele, uma contradico com a justificagao pelas obras, na qual teriam cafdo a escoldstica medieval e todo 0 “sistema eclesidstico papal”. Portanto, nao se trata apenas de isolados pontos doutrinais controversos, mas de outra concepcao geral da exis- téncia crist que se estava impondo. Condutora era a questo salvifica existencial: “Como obtenho um Deus gra- cioso?” A questao salvifica liga-se a concepgao escatol6gica do Juizo Final. Como pode o ser humano, que mereceu amorte por causa de seus pecados, ser justificado perante Deus? Quem o defenderd, a fim de que a sentenca de morte (em sentido figurado: separaco eterna de Deus) seja mudada em uma declaracao de inocéncia (isto é, a consola¢ao de uma nova vida)? Para compreender corretamente a nogao de justica (justitia Dei) de Lutero, nao se deve dar a entender que com isto, teria querido somente contrapor-se & mania humana de autojustificacao, isto é, atacar uma ética \desempenho (cf. a descrigo que Lutero faz de sua descoberta da justica graciosa de Deus, ou seja, a “irrup- reformadora”: WA 54, 186). Para ele, trata-se mais radicalmente da execu¢do da bem merecida condenagdo motte eterna e a danacdo. Esta sentenca, porém, serd evitada nao porque o delinquente teria a apresentar algo em sua defesa, mas porque, em Cristo, alguém intervém, o qual, como justo, merece incondicionalmente avida, A maldi¢do que merecemos, recaiu sobre Ele (Is 53,6.11; 2Cor 5,21; Gl 3,13), Ele morre como inocente em nosso lugar, Contudo, visto que Ele é justo, porque nele nao havia pecado algum, Deus o faz viver ¢ o justifica mediante a ressurreigdo dentre os mortos. E uma vez que Ele se coloca diante de nds, também nds, por causa de Cristo, por meio da fé nele, diante do fSrum do divino juiz, seremos absolvidos (propter Christum per fidem). Realiza-se aqui, portanto, um “santo intercdmbio”. Cristo era rico, tornou-se pobre por nossa causa; ¢ nds, que éramos pobres e culpados de morte, tornamo-nos, pois, por meio dele, ricos e participamos de sua vida (¢f.2cor 8.9; 5,21: “Aquele que nao conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nds, a fim de que, por Ele, nos tornemos justica de Deus”). E, assim, a justificagdo objetiva em Cristo, agora, se torna também nossa Justificacao subjetiva, A nova vida de Cristo comega a ocupar lugar em nds incoativamente. Esta justica, porém, nao propriedade minha (cf, o discurso escolastico da gratia inhaerens), Nao é nenhuma qualidade em mim, mas surge sempre de novo na relacdo atual com Cristo, na qual eu a Ele me doo na confianga ¢ na fé, e doravante tudo, fora de mim mesmo (extra me), coloco no Cristo. Com efeito, esta justica é propriedade de Cristo, ndo pro- Priedade minha (iustitia aliena). Com isto, cabe a Deus somente, em Cristo, a honra da redencio e da justificagao. Se, porém, olho para Cristo, na fé posso estar seguro da justificaclo, da absolvigio da morte e da consolacdo - 561 - Digitalizado com CamScanner da vida. A justificagao, portanto, nao é minha propriedade, mas me é adjudicada e fora (justi¢a da imputagao), Assim, porque construo completamente sobre Cristo, posso sentir-me consolado em minha consciéncia, Fujo continuamente de mim mesmo e busco meu refiigio em Cristo. Todo 0 acontecimento é um acontecimento de julgamento. Trata-se, portanto, de uma justificagao forense. Este discurso ndo deve, pois, como amitide acon- teceu,, ser compreendido de modo tal que se trataria apenas de um “como se”. A consolacao da graca é muito mais eficaz em mim pelo fato de eu ser, de certa forma, uma nova criatura (justificagdo efetiva). Cristo suprime de mim os pecados. Contudo, na medida em que eu sei que eu, por mim mesmo, diante de Deus nada sou, e que s6 vivo sempre a partir da rela¢o a Cristo, comega, pois, aqui, também incoativamente, uma salvagao, e uma salvagao do ser humano. Durante o tempo de sua vida terrena, o ser humano permanece, no entanto, justo e pecador ao mesmo tempo (simul iustus et peccator). Isto nao é expresso simplesmente de maneira ontoldgica, mas existencial, 0 ser humano, de fato, seria um justificado diante de Deus, mas ao longo da vida permaneceria nele este intimo conflito entre graca e concupiscente inclinacao ao pecado, Este seria precisamente o sentido da vida crista: tudo construir sobre a graca; na confianga em Cristo, superar o apelo e o desespero que provém do pecado, Assim, a vida crista € um comorrer e um corressuscitar cotidianos com Cristo (mortificatio et vivificatio ‘cum Christo). 10 A doutrina da justificacdo do Concilio de Trento Juntamente com o decreto sobre o pecado original, o decreto sobre a justificacao é o mais importante pro- nunciamento doutrinal do Concflio de Trento (1545-1563): Decretum de iustificatione, sess. VI, de 13/01/1547 (DH 1520-1583; NR 790-851). Para a interpretacao, trés pontos devem ser conservados diante dos olhos: (1) 0 concilio quer apresentar a equilibrada doutrina catélica; (2) por conseguinte, nenhuma corrente teolégica deveria ser favorecida, a saber, nem a tomista, nem a escotista; tampouco a agostiniana estrita ou a nominalista; (3) o concilio renuncia a uma condenacao das pessoas dos reformadores. Somente a doutrina deles deve ser combatida. O decreto tem 16 capitulos doutrinais e 33 cénones doutrinais, os quais so extraidos dos capitulos doutrinais. Em razao da imensa importancia destes 16 cap{tulos nao somente para a doutrina da fé catélica, mas também para 0 didlogo ecuménico, cada capitulo seré apresentado e interpretado a seguir. 1° capitulo, A impoténcia da natureza humana e da Lei de Moisés para a justificagao do ser humano Todos os seres humanos perderam a inocéncia pela culpa de Ado, isto é, eles devem a Deus a justica perdida. Eles estao cheios de pecados, entregues ao poder da morte e do diabo. Eles nao podem libertar-se ou elevar-se a Deus nem através de suas forcas naturais, nem por meio da Lei de Moisés. Contudo, restou-lhes o livre-arbitrio (como situacao natural). Portanto, o pecador tem o liberum arbitrium, mas nao a libertas, ou seja, 0 livre-arbitrio plenificado pela graca, Portanto, sem a graca ninguém pode ser salvo. 2 capitulo, 0 mistério salvifico da vinda de Cristo Na plenitude dos tempos, veio 0 Filho de Deus como reconciliador dos seres humanos, tanto dos judeus quan- to dos gentios, 3 capitulo. Os justificados por Cristo Certamente Cristo morreu por todos, Contudo, sé é justificado aquele que recebe o mérito do sofrimento de Cristo, Quem renasceu em Cristo, recebe a graca mediante a qual ¢ justificado. 4* capttulo, O que é propriamente justificagao Aqui est4 a verdadeira definicao: “translatio abe eo statu, in quo homo nascitur filius primi Adae, in statum gratiae et ‘adoptionis filiorum’ (Rm 8,15) Dei, per secundum Adam esum Christum Salvatorem nostrum” (DH 1524). 0 inevitavel meio para isto é 0 batismo, respectivamente, o desejo do batismo (votum sacrament - 562 - Digitalizado com CamScanner

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