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Eros Roberto Grau A ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 (interpretagao e critica) 17 edigao atualizada === MALHEIROS SEDITORES A ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 Cnterpretagito e Critica) © Exos Rosato Grau 18 edigtio, 1990; 28 edigio, 1991; 3 edigao, 04.1997; 4% edigio, 10.1998; ‘58 edigito, 01.2000; 64 edigda, 01.2001; 7 edigao, 01.2002; 8 edigio, 01.2003; 9 edigiio, 07.2004; 10* edigéo, 06.2005; 118 edigiio, 03.2006; 12a edigao, 09.2007; 13# edigfio, 08.2008; 148 edigdo, 04.2010; 154 edit, 02.2012; 16* edigio, 04.2014. ISBN 978-85-392-0282-9 Direitas reservados desta edigéo por MALHEIROS EDITORES LTDA. Rua Paes de Arasijo, 29, comjunto 171 CEP 04531-940 — Sao Paulo - SP Tel: (11) 3078-7205 Fax: (11) 3168-5495 URL: wwwamalheiroseditores.com.br e-mail: malheiroseditores@terra.com.br Composieao PC Editorial Ltda. Capa Criagfo: Vania Liicia Amato Arte: PC Editorial Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil 03.2015 SUMARIO NOTA INTRODUTORIA A 158 EDICAO, 11 NOTA INTRODUTORIA A 8 EDICAO, 13 Capitulo 1 - ESTADO E ECONOMIA 1. 0 Direito: andlise funcional ¢ perspectiva critica, 1S 2. O Estado maderno, 16 3. O Estado, até a passagem do século XIX para o séeulo XX, 18 4, Imperfeigdes do liberalismno, 21 4.1 A liberdade, 22 4.2. A igualdade, 22 43. A fraternidade, 25 5. Estado agente regulador da economia, 25 6. (segue), 27 7. O mercado, 29 8. Calculabilidade e previsibilidade, 31 9. Ainda o mercado, 34 10, (segue), 36 11. Fungies de legitimagao e repressio, 38 22. Constituigéo formal, 40 13, Legitimagio da hegemonia do capital; “estatizagio” da economia; novo papel do Estado; preservacio do sistema capitalista; Constituigao “progressista”, 43 13a, A desregulagdo ¢ o neoliberalismo, 45 14, A sociedade brasileira, Constituigio e programa de governo, 45 15. O neoliberalismo e a globalizagao, 46 ‘15a. O declinio do neoliberalisno, 50 15b. Globalizacio e neoliberalismo, 53 6 (©. ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 Capitulo 2- ORDEM ECONOMICA 16. Ambiguidade da expressio “ordem econdmica”, 59 17. Os sentidos da expresso, 64 18. Ordem econdmicalmundo do ser e ordem econémicalmundo do dever- ser, 65 19. O mistério da ordem econdmica, 67 20. Ordem econdmica, parcela da ordem juridica, 68 21. Ordem econdmica e ordem social, 69 22. Ordem econdmica liberal, 70 23. Ordem econdmica intervencionista, 71 24, (segue), 72 25, Contraponto, 74 26. Tipos de Constituigao, 74 27. Constituicao estatutaria e Constituigao dirigente, 75 28. A Constituigao Econémica, 77 29, A Lei Fundamental da Reptiblica Federal da Alemanha, 79 30. A morte da Constituigio Econémica, 83 31. Inutilidade relativa do conceito de ordem econdmica, 85 32, (segue), 88 Capitulo 3 ~ AS FORMAS DE ATUACAO DO ESTADO EM RELAGAO AO PROCESSO ECONOMICO; A NOCAO DE ATIVIDADE ECONOMICA; O DIREITO ECONOMICO. 33. Introducao, 89 34, Intervengao e atuagao estatal, 90 35. Intervengio e regime juridico dos contratos, 91 36. A expressiio “atividade econémica”, 98 37, (segue), 99 38. Atividade econdmica: género e espécie, 99 39. A expressio “atividade econdmica” no texto da Constituigao de 1988, 101 - 40, Atividade econ6mica em sentido estrito e servico priblico, 106 41, A multiplicidade dos regimes juridicos, 114 42, Servicos piiblicos por definicao constitucional, 119 43, (segue), 122 SUMARIO 7 44, (segue), 122 45. Servico piiblico e Constituigo, 124 46, (segue), 126 47. (segue), 128 48. Conceito e nogito, 129 49. Nociio de servico piiblico, 131 50. Atividade ecortémica em sentido estrito e regime de servigo piblico, 132 50a. O principio da continuidade do servico priblico, 133 50b. Radiodifuso sonora e de sons e imagens, 134 51. Privilégio de servico piiblico e monopélio de atividade econdmica, 135 52. Empresa estatal e concesséo de servico piiblico, 138 53. Ainda 0s vocibulos “interveneao” e “atwagao”, 141 54. A classificagio das formas de intervencia no e sobre o dominio eco- ndmico, 143 55. (segue), 144 56. Plangjamento, 146 57, A “existéncia” constitucional do Direito Econdmico, 146 58. Concepcito do Direito Econémico como método, 147 59. Direito Econdmico, ramo do Direito, 149 Capitulo 4 OS PRINCIPIOS E A INTERPRETAGAO DA ‘CONSTITUICAO 60. Observagao inicial sobre os principios, 151 61. Os principios, 152 62. Obseroncaes de Dworkin, 152 . Obseroacdes de Canotitho e José Afonso da Sitoa, 154 Classificagio dos principios na Constituigio de 1988, 156 5. A interpretacdo/aplicagio do Direito, 157 66, Interpretacio da Constituicao, 158 67. (segue), 159 68. Ciinones e pautas para a interpretagio da Constituig 69. Nao se interpreta a Constituigao em tiras, 161 70. As normas-objetivo, 161 71. A importéncia dos principios, 162 72. A Constituigdo é um dinamismo, 162 age , 160 8 O.ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 ‘72a. Constituigdo materiale interpretacdolaplicacdo da Constituigio, 163 73. Ideologia constitucionalmente adotada, 166 Capitulo 5 - INTERPRETACAO E CRITICA DA ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 74, Introdugdo, 170 75. A ordem econdmica na Constituicao de 1988, 171 76. (segue), 172 77. reforma constitucional, 173 78. (segue), 174 79. Diividas como ponto de partida da interpretagio da ordem econdmica na Constituigio de 1988, 176 80. (segue), 186 81. (segue), 187 82, As questies propostas, 189 83. Duas premissas, 190 84, Os principios da ordem econémica na Constituigio de 1988, 190 84a. O cariter prescritivo do Direito ¢ a inconstitucionalidade institu- ional, 192 85. A dignidade da pessoa humana, 193 86. O nalor social do trabalho, 195 87. O valor social da livre iniciativa, a livre iniciation e a livre concor- réncia, 197 88. A liore iniciativa, 199 89. (segue), 200 90. (segue), 203, 91. A livre concorréncia, 205 92. A Lein. 8.884/94: repress ds infiagées contra a ordem ecomémica, 208 98. Ainda 0 valor social da liore iniciativa, a livre iniciativa e a livre ‘concorréncia, 210 94, A construgio de una sociedade livre, justa e solidéria, 212 95. A garantia do desenvolvimento nacional, 213, 96. A erradicagio da pobreza e da marginalizagao e a reducio das desi- ‘gualdades sociais e regionais; a reducao das desigualdades regionais ‘e sociais, 215 97. A liberdade de associagto profissional ou sindical, 217 98. A garantia do direito de greve, 218 SUMARIO 9 99. Os ditames da justiga social, 224 100. A soberania nacional, 225 101. A propriedade e a fungio social da propriedade, 231 102, Fungao social e fungéo individual da propriedade, 235 108. As propriedades, 236 104, Fungao social atioa e poder de policia, 238 105. Ainda a propriedade e a fungao social da propriedade, 246 106. A defesa do consumidor, 247 107. A defesa do meio ambiente, 250 108, A busca do pleno emprego, 251 109. O tratamento facorecido para as enapresas de pequeno porte, 253 110. A integragio do mercado interno ao patrins6nio nacional, 253 111. Principios gerais, 254 112, A ordenagio normation através do Direito Econdmico, 255 113. Contraponto, 257 114, Atividades estratégicas para a defesa nacional ow imprescindiveis 0 desenvolvimento do Pais, 258 115. (segue), 263 116, Preferéncia na aquisigao de bens e servigos pelo Poder Piblico, 265 117, A constitucionalidade da concessio de protecio e beneficios as “empresas brasileiras de capital nacional”, 267 118. Investimentos de capital estrangeiro, 275 119. A exploragio direta da atividade econdmica pelo Estado, 275 120. O art. 37, XIX e XX, 277 121. Imperativos de seguranca nacional erelevante interesse coletivo, 279 122, Regime de monopilio e regime de participagio, 281 123, O sentido do art. 173, 283 124, A privatizagto das empresas estatais, 285 125, A Emenda Constitucional n. 5195, 287 126, A Emenda Constitucional n. 8, 288 127. A Emenda Constitucional n. 9, 289 128, A Emenda Constitucional n. 13, 299 129. Atuagto do Estado como agente normativo e regulador da atividade econémica, 300 130. O planejamento, 302 131. Sistema econdmico na ordem econdmica da Constituito de 1988, 304 132, Modelo econémico na ordem econdimica da Constituigao de 1988, 305 10 133. 134. 136. 137. 138. 139. 140. 141. 142. 143. 144, 145. 146, 147. 4s. 149. 150. 151. 152. 153. 154. 155. 156. 157. OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 (segue), 307 Contraponto, 309 A aplicagito do Direito, 310 (segue), 313 Eficacia juridica e eficécia social, 315 Efetividade juridica, efetividade material e efieécia, 316 Efetividade juridica e eficicia juriilica dos direitos e garantias fun- damentais, 317 Bfetividade material e eficicia dos direitos e garantias fundanten- fais, 318 Novo contraponto, 319 O impacto social produzido pela Constituicao de 1988, 320 Doutrina e aplicagio imediata dos direitos e garantias fundamen- ‘ais, 320 Inconstitucionalidade por omissao, 322 Mandado de injumgito, 322 Perspections de aplicagéo do texto constitucional, 324 A origem da Constituinte, 326 A Constituinte, 330 (segue), 332 As contradigdes, 334 As palavras “intervengio” e “controle”, 334 O controle do poder de controle dos bens de producio, 336 Ainda a funcio social da propriedade, 337 Ainda o planejantento, 339 O Direito Brasileiro, 341 A ordem econdmica e wma nova reatidade social, 341 (segue), 343 CONCLUSAO, 345 ADENDO, 347 APENDICE (Constituigio Dirigente e Vinculagito do Legislador),351 BIBLIOGRAFIA, 367 NOTA A 15" EDICAO Além de brevissima alteragao no item 69 — para bem fixar que a interpretacao é do texto normativo, nao da norma [a norma é 0 resultado, o produto da interpretago, como explicitado no item 65] atualizei esta nova edigao a ela incorporando também bre- ves referencias normativas. Sao Paulo, dezembro de 2011 NOTA INTRODUTORIA A 8* EDICAO Caminhando para sua 8 edigdo, este livro foi algumas vezes reescrito ao correr do tempo. Sua 12 edigao, publicada em 1990, correspondeu a versio exa- ta da tese que ofereci & Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo, visando & obtencdo do cargo de Professor Titular das ‘Arca- das. Trata-se, como observei entao, de exposigio desenvol- vida desde a perspectiva critica, contida nos lindes nao de uma dogmatica que, mercé de uma falsa rigidez metodolégica, feche 08 olhos as verdades “metajuridicas” de seus impulsos e fins so- ciais e éticos, porém de dogmiatica que — como observa Joseph Esser (Principio y Norma en la Elaboracién Jurisprudencial del Dere- cho Privado, p. 399) - nao hé de chamar-se “normativista”, porém “doutrinalista”. Nao é 0 mesmo livro, mas sim um outro, na medida em que tenho tido a oportunidade de compatibilizé-lo as transformagoes da realidade. Alteraram-se tanto 0 texto da Constituigao, quan- to as circunstancias histéricas. A versatil ideologia hegeménica, sempre renovada, passou de um momento dito “social” para o neoliberal, nutrido em leitura distorcida do fenémeno da globali- zacio, e, neste instante, aparenta estar em busca de algumas cor- reges de rumo. ‘A tudo resistiu a esséncia do texto da Constituicdo de 1988, embora miltiplas vezes emendado. F isso se deu de modo tal que ela permanece contemporanea a realidade; deixa de ser a Cons- tituigdio de 1988, para ser a Constituicio do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, est4 sendo interpretada/aplicada. A explicacao dis- 80, 0 leitor a encontrar nas paginas que dedico a sua interpreta- ‘cdo e no adendo & conclusao, ao final desta 8* edigo. uu” O.ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 Ademais, da sua primeira versio destaquei dois capitulos, que deram origem a um outro livro, © Ensaio e Discurso sobre a Interpretacio/Aplicagao do Direito menos com a intengao de pregar uma peca ao leitor, induzindo-o a sua leitura, do que pelo fascinio de desenvolver as ideias nesses dois capitulos alinhadas. Os as- pectos fundamentais neles feridos foram, contudo, reexplorados no atual capitulo quarto desta edicio, como ali explicitado. Livros que tratam da realidade social ~e Direito é uma por- do da realidade social — devem estar sendo permanentemente Teescritos. De sorte que, em suas futuras edigées, este meu livro de agora ha de multiplicar-se em outros mais. Tiradentes, dezembro de 2002 1, Em sua 6% edigdo (So Paulo, Malheiros Editores, 2013) publicado com novo titulo, Por que tenho medo dos juizes. Capitulo 1 ESTADO E ECONOMIA. 4. O Direito: andlise funcional e perspectiva critica, 2. O Estado modern 3. 0 Estado, até a passagem do século XIX para o século XX. 4. Imperfei- (bes do liberalismo: 4.1 A liberdade; 42 A igualdade; 4.3 A fraternidade. 5. Estado agente regulador da economia. 6. (segue). 7. O mercado. 8. Caleu- labilidade e prevsibilidade. 9. Ainda 0 mercado. 10. (segue). 11. Fungbes de legitimagio erepressio. 12. Constituigio formal. 13. Legitimagao da hegemo- na do capital; “estatizagio” da economia; novo papel do Estado; presereagio do sistema capitalsta; Constituigo “progressista”. 13a. A desregulagio e 0 neoliberalismo, 14. A sociedade brasileira, Consttuigao e programa de gover- 110, 15, O neoliberaismo e a globalizagio, 15a, O declinio do neatiberalismo. 15b. Globalizagio e neoiberalismo. 1. O tratamento do tema da ordem econdmica reclama, doestu- dioso do Direito, o desenvolvimento de andlise nao exclusivamen- te dogmatica, porém funcional. Mais ainda, é adequado, também, que tal anélise seja empreendida desde uma perspectiva critica. A contemplagio, nas nossas Constituigées, de um conjun- to de normas compreensivo de uma “ordem econdmica”, ainda que como tal nao formalmente referido, é expressiva de marcante transformagao que afeta o Direito, operada no momento em que deixa de meramente prestar-se a harmonizagao de conflitos e a le~ gitimagao do poder, pasando a funcionar como instrumento de implementago de politicas publicas (no que, de resto, opera-se reforco da funcao de legitimagao do poder). Tratei detidamente dessas questdes na primeira e na segun- da edigdes deste livro, em seu primeiro capitulo, denominado “O Direito e 0s Direitos”. O passar do tempo e, nele, a reflexao a propésito daquelas questdes levaram-me a reescrever © capitulo, uma primeira vez, a ele incorporando distintas andlises, de modo 16 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 que ele se transformou em livro. Esse livro — O Direito Posto ¢ 0 Direito Pressuposto (Malheiros Editores, 14 ed., 1996; 8* ed., 2011) ~ tomo-o, portanto, como texto introdutério a andllise que segue, a respeito da ordem econdmica na Constituigéo de 1988. Uma segunda vez. o reescrevo, agora — em janeiro de 2005 — procurando aprimorar a perspectiva desde a qual analiso o tema do capitulo, a relacdo entre Estado e economia 2. Em sintese, seguindo a exposigao de Norbert Flias,? pode- mos afirmar que 0 Estado moderno surge, como Estado burgués, quando o poder real, monopolizadamente consolidado, nele se transforma. Uso esta expressio, “Estado burgués”, no seu sentido histérico, sem necessdria carga ideolégica. Em um primeiro momento, na expresso de Elias: “O mono- Olio das armas e do poder militar passou de todo o estado nobre para as maos de um tinico membro, o principe ou rei que, apoia- do na renda tributaria de toda a regio, podia manter 0 maior exército. Por isso mesmo, a maior parte da nobreza mudou, de guerreiros ou cavaleiros realmente livres, para guerreiros ou ofi- Giais assalariados a servigo do suserano" * (© que caracteriza a sociedade moderna, permitindo o apare- cimento do Estado modemo ¢ por um lado a divisao do trabalho? por outro a monopolizagéo da tributagéo e da violéncia fisica. Inicialmente o rei detinha esses dois monopdlios; de monopélios pessoais, monopolies privados, portanto, se tratava. A Revolugaio Francesa permitiu a sua abertura, de modo que, perecendo a monarquia, os monopélios da forsa fisica e da tribu- tagdo foram transferidos ao controle institucionalmente garanti- dot de amplas classes sociais. Na monarquia absoluta 0 governo (~ monopélios da violén- cia e da tributacao) consistia em um monopélio pessoal de um. inico individud, Com a emergéncia do Terceiro Estado, a bur- /1. 0 Processo Civilizador, vol. Il, 1993 2. Ob. cit, pp. 21-22. 3. V. Pierre Rosanvallon, Le Libéralisme Economique — Histoire de VTdée de ‘Marché, p. 165. 4.0b. cit, p. 171 ESTADO E ECONOMIA, ” guesia, ter-se-ia operado a transformaco dos monopélios pes- soais em monopélios piblicos, no sentido institucional. Trans- crevo trecho de Elias: “A capacidade do funcionétio central de governar toda rede humana, sobretudo em seu interesse pessoal, 86 foi seriamente restringida quando a balanca sobre a qual se colocava se inclinou radicalmente em favor da burguesia e um novo equilibrio social, com novos eixos de tensao, se estabeleceu, S6 nessa ocasido, os monopélios pessoais passaram a tornar- monopélios piiblicos no sentido institucional. Numa longa série de provas eliminatérias, na gradual centralizaco dos meios de violéncia fisica e tributagio, em combinagao com a divisao de tra- balho em aumento crescente e a ascensao das classes burguesas profissionais, a sociedade francesa foi organizada, passo a passo, sob a forma de Estado”.$ Essa transformagaio, dos monopélios pessoais em monopé- lios publicos, apenas se opera, no entanto, em termos instituc nais, vale dizer, formais. Pois & certo que, nao obstante tenha perecido 0 monopélio do monarea ou rei, transferido ao Estado, quem o detém efetiva- mente ~ isto é quem detém aquele monopélio efetivamente — 6 a burguesia, que assume o controle do Estado. Note-se bem que estou, neste passo, a referir ainda o Estado de classes, arrebatado pela burguesia e, assim, posto ao servico do sistema capitalista da produgao. Posterior a ele, porque © suprassume, é o Estado hegeliano, Estado da racionalidade como razao efetiva. Neste, deverio de- saparecer os antagonismos, dado que, dialeticamente, o que dé sentido as partes é a totalidade. Estado moderno, Estado burgués, é ainda determinado por cer- tos particularismos, antagOnicos a outros. Ele ainda se confunde, por uma larga parte, com Estado do exterior, o Estado da necessidade ¢ do entendimento, isto é, carrega ainda caracteristicas da socieda- de civil (Biirgerliche Gesellschaft), que, logicamente suprassumida no sistema hegeliano, ainda nao encontrou a sua plena realizagao nas estruturas engendradas pela modernidade. Nele se constréi a 5. A expresso é de Norbert Elias (ob. cit, p. 141) 18 (© ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 paz burguesa, dotada de caréter temporario na medida em que 0 dissenso entre os particularismos antagénicos é apenas mediado, superado pela conveniéncia ~ 0 que, no Direito, no consubstan- cia, a rigor, nenhuma mediacao efetiva, nem suprassunc&o, mas justaposicao conflitante. Por certo superpéem-se, no mundo da vida, manifestagbes préprias a ambos, ao Estado burgués e ao Estado na concepeio hege- liana. Mas 0 que prevalece, na forma institucional do Estado mo- derno, é a apropriacao, pela burguesia, dos monopélios da vio- Iéncia e da tributagao, caracterizando uma eticidade (Sittlichkeit) ainda nao de todo permeada pela racionalidade como razao efeti- va. Dai, na medida em que a servico do modo de produgao social capitalista, o Estado moderno caracteriza, sem diivida, um Estado de classes. Dizendo-o de outro modo: nao é ainda o Estado hegeliano em plenitude, mesmo porque nele nao ha classes, que consubs- tanciam uma manifestacao prépria da sociedade civil. Como anota Joaquim Carlos Salgado (A Ideia de Justica em Hegel, Sao Paulo, Edigdes Loyola, 1996, p. 366): "O bourgeois € 0 que serve a si mesmo, servindo indiretamente ao Estado (a comunidade); o cida- dio grego, o que serve ao Estado, servindo indiretamente a si mesmo. Ocidadao de Hegel é 0 que no plano ético serve ao Estado servindo a si mesmo e, ao servir a si mesmo, tem como finalidade servir ao Estado”, Entdo 0 Direito posto por esse Estado moderno, Estado bur- gués, encontra seu fundamento de legitimidade exclusivamente na violéncia, sem compromisso ético. Por isso mesmo sustenta-se que a Justiga nao é um assunto a ser tratado no quadro do Direito Moderno. 3. Tem-se afirmado que ao Estado, até o momento neocon- correncial ou intervencionista — qualquer que seja 0 vocébulo ou expresso que se adote para designar a mudanga de regime que marca, no sistema capitalista, a passagem do século XIX para 0 século XX ~ estava atribuida, fundamentalmente, a fungao de producdo do Direito e seguranga. Para referir, em largos tracos, © regime anterior, poderfamos afirmar, singelamente, que ndo se admitia interferisse 0 Estado na “ordem natural” da economia, ESTADO E ECONOMIA, w ainda que Ihe incumbisse a defesa da propriedade. Essa concep- do porta em si a pressuposiciio de que ambos, Estado e socieda- de, existissem separadamente um do outro, que nao é correto. Nosso primeiro constitucionalista, Pimenta Bueno, assevera que: “Inibir ou empecer direta ou indiretamente esta faculdade, 0 livre di- reito de contratar, 6 nao s6 menosprezar essa liberdade, mas atacar simultaneamente 6 direito que o homem tem de dispor de seus meios ¢ recursos como de sua propriedade... Os contratos devem ser entregues Avontade das partes, essa é a sua verdadeira lei, a razilo de sua existénciaeo principio e regra de sua interpretagio” (grifei). "A plenitude da garantia da Propriedade nZo 6 s6 justa, como reclamada pelas nogies econémicas, e pela razio politica dos povas livres; na colisio, antes o mal de alguma imprudéncia do proprietario, do que a violagio do seu livre dominio” (grifei).7 A Constituiga0 do Império, no seu art. 179, dispunha: "XXIV = ‘Nenhum género de trabalho, de cultura, indtistria, on commercio pade ser prohibido, uma vez que nao se oponha aos costumes piblicos, & seguranga, e satide dos cidadaos"; "XXV ~ Ficam abolidas as Corpora- gies de Officios, seus Juizes, Escrivaes e Mestres”’; “XXII E garantido o Direito de Propriedade em toda sua plenitude (..)". Nao deixou a nossa primeira Constituicio de mencionar a interwenga, porém nos seguintes srmos: “Art. 71. A. Constituigao reconhece, e garante o direito de intervir do o cidadao nos negécios da sua Provincia, e que sao imediatamente relativos a seus interesses particulares” A afirmacao de que até o momento neoconcorrencial ou “in- tervencionista” estava atribuida ao Estado a funcao de produgio do Direito e seguranca ~ bem assim a de que o Direito deixa de meramente prestar-se & harmonizacao de conflitos e a legitima- a0 do poder, passando a funcionar como instrumento de imple- mentacao de politicas ptiblicas — ndo deve ser tomada em termos absolutos. O Estado moderno nasce sob a vocacio de atuar no campo econémico. Passa por alteragdes, no tempo, apenas o seu modo de atuar, inicialmente voltado & constituicio e & preseroagao do modo de produgio social capitalista, posteriormente & substi- Inicio e compensagao do mercado. Habermas, em especial no Legitimationsprobleme im Spatka- pitalismus,* observa que, diante das crises ~ transtornos que se 6, Frankfurt am Main, Subrkamp, 1973. Ha tradugio publicada pela Edigdes Tempo Brasileiro: A Crise de Legitimuagiio no Cupitalisino Tardio, trad. de Vamireh Chacon, Rio de Janeiro, 1980. 20 (© ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 produzem na integragao do sistema, colocando em tisco a sua continua existéncia, isto é, a integracdo social - 0 Estado passa a perseguir o fim declarado de conduzi-lo (isto é, ao sistema), para evité-las. Assim, Estado tem de cumprir fungdes que nao se pode explicar mediante a invocago das premissas da existéncia continua do modo de produgdo, nem deduzir-se do movimen- to imanente do capital.” Dai a identificagao de quatro catego- rias de atividade estatal. A fim de constituir e preservar 0 modo de produsao, certas premissas de existéncia continua hao de ser realizadas (o Estado garante o sistema de Direito Civil, com as instituigdes basicas da propriedade e da liberdade de contratar; protege o sistema de mercado contra efeitos secundarios auto- destrutiveis — jornada especial de trabalho, legislagao antitruste, estabilizacao do sistema monetario etc.; assegura as premissas da produgao dentro da economia global — tais como educagio, transportes e comunicagdes; promove a capacidade da economia nacional para competir internacionalmente — politica comercial e aduaneira, 0.g. — e se reproduz mediante a conservagao da inte- gridade nacional, no exterior com meios militares e, no interior, mediante a eliminacao paramilitar dos inimigos do sistema). Para complementar © mercado, o sistema juridico é adequado a novas formas de organizagao empresarial, de concorréncia e de finan- ciamento (por exemplo, através da criagio de novas instituigdes no Direito Bancério e Empresarial e da manipulagio do sistema fiscal), sem, porém, conturbar a dinamica do processo de acumu- lagao. Tendo em vista a substituigto do mercado, em reacao frente a debilidade das forgas motrizes econémicas, reativa a fluéncia do processo de acumulacao, que jé ndo resta, entao, abandona- do a sua propria dindmica, criando novas situagSes econdmicas (seja proporcionando ou melhorando possibilidades de invers = demanda estatal de bens de uso improdutivo -, seja através da ctiagéo de novas formas de produzir mais-valia organizacao es- tatal do progresso técnico-cientifico, qualificagio profissional dos trabalhadores etc.); ai a afetagao do principio de organizacao da sociedade, como 0 demonstra o surgimento de um setor puiblico estranho ao sistema. Finalmente, compensa disfungdes do proces- so de acumulagio, que se manifestam no seio de certas parcelas 7.0b. cit, p.77. ESTADO B ECONOMIA En do capital, da classe operaria ou de outros grupos organizados, produtoras de reagdes que se procuram impor pelas vias politicas (ai o Estado, por um lado, assume efeitos externos da economia privada - v.g., danos ecolégicos; assegura, através de politicas estruturais, a capacidade de sobrevivéncia de setores ameacados = vg, mineracao e economia agricola; de outro lado, implemen- ta regulagGes ¢ intervengSes reclamadas pelos sindicatos e pelos partidos reformistas, tendo em vista a melhoria da situagao social dos trabalhadores — os “gastos sociais” eo “consumo social”). Es- tas duas tiltimas modalidades de atuagao — substitutica e compen- satéria ~ sao tipicas do capitalismo organizado® Nessa evolucao, movimenta-se de forma miiltipla e variada, mais recentemente sob e a partir de renovadas motivacdes e me- diante a dinamizacao de instrumentos mais efetivos, 0 que confe- re substancia a suas politicas. Mas ainda ao tempo do liberalismo © Estado era, seguidas vezes, sempre no interesse do capital, cha- mado a “intervir’ na economia, © Decret d’Allard, de 2-17 de margo de 1791, no seu art. 7, deter minou que, a partir de 1° de abril daquele ano, seria livre a qualquer pessoa a realizagao de qualquer negocio ou 0 exercicio de qualquer pro- fissdo, arte ou oficio que Ihe aprouvesse, sendo, contudo, ela obrigada ‘a munir-se previamente de uma “patente” (imposto direto), a pagar as taxas exigiveis, ea sujeitar-se aos regulamentos de policia aplieaves. Insisto, neste ponto, em que a ideia de “intervencao” tem como pressuposta a concepgao da existéncia de uma cisdo entre Estado e sociedade civil. Entao, ao “intervir’, o Estado entraria em campo que nao o seu, campo estranho a ele, o da sociedade civil ~ isto é, 0 mercado. Essa concepgio é, porém, equivocada. Familia, sociedade civil e Estado so manifestagSes, que nao se anulam entre si, manifestagSes de uma mesma realidade, a reali- dade do homem associando-se a outros homens. 4, Inicialmente as imperfeigdes do liberalismo,? bem eviden- ciadas na passagem do século XIX para 0 século XX e nas primei- 8. Ob. cit, pp. 77-79. ___ 9. Podemos resumi-las no surgimento das monopélios, no advento de ciclicas crises econdmicas e no exacerbamento do conflito capital x trabalho (ci. Geraldo de Camargo Vidigal, Teoria Geral do Direito Econamico, p. 14) 2 OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 ras décadas deste tiltimo, associadas & incapacidade de autorre- gulagao dos mercados, conduziram & atribuicao de novas fungées a0 Estado. » A idealizac&o de liberdade, igualdade e fraternidade se contra- pés a realidade do poder econdmico. 4.1 A pretexto de defesa da concorréncia haviam sido supri midas as corporagées de oficio, mas isso ensejou, em substituicao do dominio pela tradicao, a hegemonia do capital. A liberdade econdmica, porque abria campo as manifestages do poder eco- némico, levou 4 supressio da concorréncia. O proprietério de uma coisa, res como observou Karl Renner" -, impe sua vonta- de; 0 poder sobre as coisas engendra um poder pessoal; a proprie- dade, assim, de mero titulo para dispor de objetos materiais, se converte em um fitulo de poder sobre pessoas e, enquanto possibi- lita 0 exercicio do poder no interesse privado, converte-se em um titulo de dominio. modelo classico de mercado ignorava e recusava a ideia de poder econémico. Na praxis, todavia, os defensores do poder econdmico, porque plenamente conscientes de sua capacidade de dominagao, atuando a largas bracadas sob a égide de um princi- pio sem principios" - 0 principio do livre mercado ~, passaram ¢ desde entdo permanecem a controlar os mercados. Dai 0 arran- jo inteligente das leis antitruste, que preservam as estruturas dos mercados, sem, contudo, extirpar a hegemonia dos monopélios ¢ oligopélios 4.2 A igualdade, de outra parte, alcangava concregio exclusiva- mente no nivel formal. Cuidava-se de uma igualdade a moda do porco de Orwell, no bojo da qual havia ~ como hé ~ 0s “iguais” € os “mais iguais”.!2 O proprio enunciado do principio — “todos so iguais perante a Ici” —nos da conta de sua inconsisténcia, visto que a lei 6 uma abstragio, ao passo que as relacdes sociais sao reais. 10. Gli letirut det Ditto Privuto ta Loro Fezione Giuridet, pp. 85 € ss. 11, A expressio 6 de Marshall Berman, Tuco que E Sélido Desmancha no Ar, p.109. 12. “AML animals are equal/But some animals are more/Equal than others” (Animal Farmi;p. 114). V. fens 12 ¢ He nota (07.4). ESTADO E ECONOMIA a Daf a to brusca quanto verdadeira assertiva de Adam Smith: do ‘governo”, o verdadeiro fim é defender os ricos contra os pobres."* ‘A respeito da igualdade no antigo processo civil romano, ouge-se von theting Guiisprutenca en Broma y en Serio, ead. de Roman Risza, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1933, pp. 190-192) "En lugar de hablar yo, dejo que tome la palabra un antigno romano, del Siglo 1V de la ektdad, un hombre pobre y de la plebe: Sélo me cucsta tines cuantas chupadas a mi Cigarror ya eaté, La eovena se desarolla fl For nt el Plo, Ant lcmparymueso hombre como lemandante, y le acompafa un rico patio, a quien ha eitad i us Mientras el démandante se encontratia en operaciones, como soldado, muris su padre, ¥ el veeino, actual demandado, aproveché la ocasion para posesionarse de todo lo que encontré. Como se nega ala devo [icin vienen al pleito. El demandante ha presentado au caso al Pretor Yy entre ellos se desarrola el siguiente didlogo, del que acotaremos en tre comillas la parte del Pretor, concediendo este honor a su categoria sa cuanto se'cleva el valor de tus predioe, a mill aes © 0 mence? — Lo menos, mil quinientos. — Pues necesitay antes de que podamos foualizar el pleli, depositar en mance de los Pondiices quinientos ates, Vete, puts, entrega esa cantidad, recoge el recibo y cuando me lo presentes, admitiré Ia demanda’ ~ Me es imposible proporcionarme fsa canted. De dénde he de eacar yo quiriertes ase, cusndlo ooy wn Pobre hombre, a quien el demandatio despoje de toda su hacienda? 220 ¢8 aaunto de ta incumbencia;sin previa prestacion del sactarnen tum, yo no puedo admit I Gemanda. ~ Pero ei mi asunto es lo mis cit del mind Ls estigos que he aldo conmigo, estn dispestow 8 confirmar, con juramento, cada palabra que yo proruincie: no soy yo Sino el demandao quien poner el plitoy este en definitiva, sere Gque haya de pagar el ancrumentum. "Eso dice todo ol mundo, Por nl parte no puedo ayudarte. tengo atadas las manos, diriget alos Paces Y acas0 te dispensen ol depdalto Con esto concuye ia primera escena Lasogunda lene lugar ene! Pons sublcins, ante el tiembro del Colegio Pontliial, que en ajuel ano est encergado de los asuntoe juridicossau astinto es ia prestacion del sacramentun El demandante auplica ue se ie dispense del depésito, porque no estd en situacion de peocurarse ese dlinerb al contado.— "El Gue ta Sens pobre rica, no constituye motive para esablecer diferencias, ante nosatros no hay acepegn de personas: Ialey os igualaa todos’ ~jHermose igualdad! Lo que para un aco cons ttuye uns pequefez, para un pobre forma tin obsticalo insuperable; es la igualdad que equipa a un niRo débil y a un hombre robusto para los efectos de traneportar igual pes. E20 dc scramentuom de los quinientes five lo han iwventado los ices para que a nosotros, pobresdlablos, nos resulte inaccesble un plelto,“Cudrdate de consurar Ia leyes de Roma, 13. An Inquiry into the Nature of Causes of the Wealth of Nations, Chicago, Encyclopaedia Britannica, 1952, p. 311 ” ss a (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 porque te podria ir peor. Yo s6lo estoy autorizado para aplicar la leyes, ho para hacerlas,’ - Coneédeme ese crédito de quinientos ases; tit lo puedes hacer sin peligro, porque mi pleito no puede perderse. ~ ‘Los ioses no abren exéditos: solo tratan con pagos al contado, y yo no pue- do estropear sus derechos, porque los libros sagrados me Io prohiben. Pero solicita el préstamo de otro’ — ZY quién me prestara? Si yo tuviese ‘mi herencia, la cosa resultaria facil, pero precisamente eso es lo que me han quitado. ~ ‘Es cierto, pero como no puedo ayudarte, vete’ Con tales palabras, nuestro hombre se marcha; el humanitario Pontifice, se dirige, sin embargo, por la tarde a casa del demandado, que es su primo y le cuenta lo ocurrido. - “Tu adversario no ha conseguido reunir el sa- Cramentuny; te felicito, porque su finca es tan buena como la tuya. Ahora que esto lo debes exclusivamente a nosotros y a nuestra sabia institu- ccién del sacramentum. Ya puedes dedicar, por tanto, ala Iglesia uno de tus bueyes mis lucidos,’ ~ Y no me detendré en es0, sino que probaré mi agradecimiento mas ampliamente; cuenta entre otras cosas con el ‘buey. Con esto termina la pieza. El pobre no consigue reunir el dinero yaalrrico se queda el campo. Esa fabula de Natan, del hombre rico y de Ja ovejilla del pobre y habra sucedido no una, sino mil veces en Roma’ E adiante (ob. cit, pp. 200-201): “Como el vindex, caso de venci- miento en juicio, se comprometia personalmente, se hacia garantizar, como es natural, por sus clientes. Tratandose de un rico, bastaba la sim- ple promesa; entre los patricios pobres, proporcionaban el vindex los pparientes o en iltimo caso la gens. ;Pero qué hacia el pobre plebeyo? Llamaba a ésta y a la otra puerta, 6° encomendaba a gentes peritas en derecho, pero eit todas partes ofa la misma respuesta: ‘Sin un deposito previo, no puedo encargarme de tu pleito, pues si salgo derrotado seré yo mismo el que haya de pagar el importe de la deuda, puesto que he impugnado la demanda del acreedor: proporcidnate ese dinero’ ~ Pero miasunto es claro y sin ninguna sombra de duda, tt no corres el més pequefio riesgo, — “Eso lo dice cualquiera. Es posible que en efecto tu asunto, sea un buen asunto, gpero quién puede predecir el resultado final? Ante los jueces nada hay imposible: tenemos ejemplos,’ ~Te daré fiadores. ~ ‘Con eso nada més, no puedo entrar en el asunto. 2Es que, ademas del servicio que te presto voy a tener que preocuparme Iue- go en reclamar el dinero mio que pago por ti? Comprenderas que esto fo es para animarse. Pero si tu tienes amigos que son capaces de salir fladores por ti, {por qué no aprontan descle luego el dinero” ~ Es que ellos mismos no lo tienen. — ‘Precisamente por eso es por lo que no los puedo recibir como fiadores’ El resultado es asi exactamente el mismo ue antes indicabamos en el proceso sacramental, cuanto los pobres no podian llegar a reunir los 500 ases: sin dinero contante no habia pleito. E] fundamento capital del proceso en las acciones de la ley: nulla actio sine lege, encuentra su anejo en este otro adagio: nulla acto sine aere” Por fim (ob. cit, p. 233): “Si he logrado lo que deseaba, deberé acompafiar a ustedes en el camino hacia su casa €l cuadro del hombre pobre, que tiene que luchar por su derecho contra el rico, con armas desiguales’. ESTADO E ECONOMIA, 2 4.3 Quanto & fraternidade, a toda evidéncia nao poderia ser lo- grada no seio de uma sociedade na qual compareciam o egoismo a competicao como motores da atividade econémica. © proprio Adam Smith sustentava que a melhor contribuigao que cada um poderia dar a ordem social seria a contribuicao do seu egoismo pes- soal. Como poderia uma ordem tal e qual realizar a fraternidade? ‘A propésito, a observacdo de Tobias Barreto: “Liberdade, igualdade e fraternidade, trés palavras que se espantam de se acharem unidas, porque significam trés coisas reciprocamente es- tranhas e contraditérias, principalmente as duas primeiras”."* A sociedade capitalista, a toda evidéncia, no as podia - como nao pode - realizar. Nao estou a atribuir, com isso e em razo de tudo quanto anterior- mente observado a propésito do principio da igualdade, desvalia ou inocuidade a sua consagrasio. Evidente que a igualdade expressa uma nova potencialidade na historia da humanidade -e tanto mais nova se afigura quanto se considere que o idedrio do século XVIII ainda é, em especial nas sociedades latino-americanas, plenamente revolucionério. 5, Evidente a inviabilidade do capitalismo liberal, 0 Estado, cuja penetragao na esfera econémica jé se manifestava na insti- tuicdo do monopélio estatal da emissio de moeda ~ poder emissor =, na consagracao do poder de policia e, apés, nas codificacdes, bem assim na ampliacao do escopo dos servigos puiblicos, assume niti- damente o papel de agente regulador da economia. Entre nés, ainda no século XIX, quanto a ordenagao da atividade financeira, a Lei n. 1.083, de 22.8.1860, que poderia ser referida como a nossa primeira “lei bancéria’, regulamentada pelo Decreto n. 2.711, de 19.12.1860 (depois, pelo Decreto n. 370, de 25.1890), Isso, sem que se considere a Resolugdo n. 172, de 3.1.1848, do Conselho de Estado do Império, e o Decreto n. 575, de 16.1.1849 (art. 9) A prépria constituigéo do modo de produgao capitalista de- pendeu da acao estatal. Em outros termos, nao existiria o capita lismo sem que o Estado cumprisse a sua parte, desenvolvendo vigorosa atividade econdmica, no campo dos servigos piiblicos. O Estado desempentha, marcadamente, fungao de integragao capita- 14. “Um discurso em mangas de camisa”, in A Questio do Poder Modera- dor e Outros Ensaios Brasileiros, Petropolis, Vozes, 1977, p. 176. % ‘OORDEM ECONOMICA NA CONSTTTUIGAO DE 1988 lista como prestador do servico de transporte piiblico de carga ~ af a constituigao do sistema de transporte ferrovidrio e, apés, ma- ritimo. De outra parte, relembre-se o seu papel na rea da satide, instalando, na primeira metade do século, verdadeiras oficinas de controle de qualidade da mereadoria trabalho. (© Estado deixa de ser, &s escdncaras — como observa Miguel Rea- le (“Fstruturas juridico-politicas contemporaneas”, RDP 13/149) -, um. simples Arbitro das competigées econémicas, destinado a garantir 20s, vencedores os frutos de uma luta socialmente desigual. Ainda no séeu- lo XIX inicialmente sob motivagio de ordem ética, surgem, na Fran- ‘2, em 1810, a lei sobre estabelecimentos incdmodes, insalubres e pe- igosos; na Inglaterra, em 1819, a regulamentagio sobre emprego de criancas na incuistria algodoeira; ainda na Franca, em 1814, a lei sobre trabalho infantil. Posteriormente, j4 entao tendo em vista a preserva- gio do abastecimento de géneros alimenticios, nos Estados Unidos, as, ranger laces; ai a origem do caso Munn x Illinois, que a Corte Supre- ma americana julgou em 1876. B, a seguir, em 1890, a Lei Sherman: 0 despotismo econdmico, expresso no aparecimento de unidades econd- micas que assumiam destacada posigdo nos mereados, suficiente para hes permitir a sua “regulamentacao”, em beneficio préprio, conduziuu 0 Estado a tornar evidente a sua “intervenga0” no process econdmi- co, tendo em vista, através da organizagao dos mercados, preservar 0 ideal da livre concorréncia. Entre nés, anteriormente aos decretos fe- derais ns. 13.069/18, 13.167/18 e 13.533/18, 0 Convénio de Taubaté, co- Icbrado, por iniciativa do Governo de Sa0 Patilo ~ Lei estadual n. 959, de 3.1.1905 ~ com os Estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro (v. Alberto Venancio Filho, A Intervencio do Estado no Dowsinio Econémico, Rio de Janeiro, FGV, 1968, pp. 82 e ss). O Estado de So Paulo, aliés, jd no art. 154 do sew Cédigo Sanitério (decreto n, 233, de 2.3.1894) dis- puna sobre relocalizacao industrial ("As auctoridades locaes deveréo determinar onde devem ser construidas as fabricas e officinas, e para onde deverdo ser removidas as que sao prejudiciaes’); 6 interessante observarmos, ainda em relagio ao Cédigo Sanitario, que enfrentou de ‘modo direto ¢ objetivo a distingao entre classes sociais: no seu Capitulo I trata das “habitagées das classes pobres”, ai dispondo, no art. 141, que “as villas operérias deverdo ser estabelecidas fora da agglomera~ ‘¢80 urbana”. No nivel federal, a Lei n. 2.049, de 31.12.1908, autoriza © Poder Executivo a concedler subvengSes a sindieatos e cooperativas agricolas que cultivassem 0 trigo, beneficio que a lei orgamentéria para o exercicio de 1910 (Lei n. 2.210, de 28.12.1908), na sua extensa “cauda ‘orgamentdria”, estendeu 20s imigrantes localizados em niicleos colo- niais, bem assim a qualquer agricultor que satisfizesse as condigées da primeira; esta ~ a Lei n, 2.049/1908 ~ isentava ainda dos impostos aduaneiros maquinas, instramentos, adubos, inseticidas ¢ insumos uti- lizados na cultura e beneficiamento do trigo, quando importados para ESTADO E ECONOMIA, 7 uso exclusivo das sindicatos ¢ cooperativas (v. oregulamento aprovado pelo Decreto n, 7.909, de 173.1910). Por outro lado, o Decreto n. 2.5434, de 5.1,1912 (resolugio decretada pelo Congreso Nacional e sancionada pelo Presidente da Repiiblica), “estabelece medidas destinadas a facili- fare desenvolver a cultura da seringueira, do caucho, da manicoba eda mangabeira e a colheita e beneficiamento da borracha extraida dessas arvores e autoriza o Poder Executivo ndo s6 a abrir os eréditos precisos A execucio de faes medidas, mas ainda a fazer as operac6es de crédito ‘que para isso forem necessirias”; nisso a instituigio de verdadeiro pro- grama de desenvolvimento da cultura da borracha ~ ou de “defesa da borracha” (Alberto Venancio Filho, ob. cit, pp. 145 € 464 ess.) que pre ye: Isencto de impostos de importacio; a nstituigto de prémios em beneficio dos que fizerem plantagdes regulares ¢ inteiramente novas dos produtos; a criagio de estagies experimentais, refinarias, hospe- darias de imigrantes ¢ hospitais; a instituicao de prémios de animagio As primeiras refinarias de borracha seringa que reduzam as diversas {qualidades a um tipo uniforme e superior de exportacio, estabelecidas ‘em determinados Estados; a construgao de estradas de ferro e obras ne- ‘cessérias 2 navegabilidade em determinados rios (prevendo inclusive a dispensa de concorréncia publica para a contratagao dessas obras); indmeras outras isengGes tributarias e prémios; a promogao e auxilio & ctiagio de centros produtores de géneros alimenticios; o entendimento, entre a Uniao e 0s Estados, tendo em vista a reducio das aliquotas dos impostos de exportacio que incidissem sobre a borracha. Tem-se, ai, talvez a experiéncia pioneira, entre nds, de instituicgo de um programa de medidas caracterizantes de infervencio por inducfo (v. item 64) na No correr do século XX a extensdo de suas fungdes manifesta- -se como exigéncia do processo de acumulagio de capital, redobrada quando a realizagio do desenvolvimento ¢ erigida condigao de ideal Social. Em um quadro no qual por um lado a forea de trabalho/merca- doria € 0 tinico bem que constitui propriedade de largas parcelas da populacio e, por outro, era imperiosa a necessidade de formagio de Potpangas para a reproducao do capital, por forga se havia de convocar 0 Estado para suprir as insuficiéncias do sistema, Hi evidente conexio entre a tendéncia 4 acumulagao de capital ea extensio das fungoes do Estado; a ago pitblica, desta sorte, ¢ condigio necessiria do desenvolvimento econdmico (v. Francesco Galgano, Sto- ri del Diritto Commerciale, 28 ed., Bologna, Il Mulino, 1980, pp. 142-143). 6. A ampliagao do Estado-aparato e do Estado-ordenamento germina nesse clima, no qual se teafirma a vocacao do Direito para a defesa da propriedade: 0 espfrito das leis, como observa Linguet, é a propriedade.'® 15, Citado por Marx, El Capital, vol. I, p.520, nota 4. 28 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 A busca do desenvolvimento, ademais, impunha a formali- zagao de uma alianca entre 0 setor privado — isto é, a burguesia—e © setor publico, este a servigo daquele. A parceria (Gemeinschaft) € entdo selada, tal qual entrevista por Goethe, em sintese entre poder puiblico e poder privado, “simbolizada — a expresso é de ‘Marshall Berman’ ~na unio de Mefist6feles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Fausto, 0 administrador publico, que concebe e dirige o trabalho como um todo”. De outra parte, 0 capitalismo, inicialmente “ordenado” no interesse de cada Estado, vai a busca de uma “ordenacio inter- nacional” ~ a ordem econdmica internacional ~ que enseja aos Esta- dos desenvolvidos recolher nos subdesenvolvidos as parcelas de mais-valia jé nao coletéveis internamente de modo intenso. Manifesta-se entéo um certo capitalismo assistencial, que so- brevive gracas a crescente transferéncia dos custos das empresas a0 conjunto da coletividade ~ isto é, & classe trabalhadora~e atra- vés da inversao financeira massiva em titulos publicos de crédito. Os custos empresariais, assim, so “bancados” pelo Estado e, nos mais desenvolvidos, o imperialismo os exporta aos de capitalis- mo mais frdgil.!” Esse movimento cede nos uiltimos anos do sécu- lo XX, em decorréncia da crise fiscal dos Estados, mas tudo indica que, em movimento pendular, tende a recrudescer ‘Cumpre enfatizar, de toda sorte, a circunstancia de que, em- bora o capitalismo reclame a estatizagaio da economia, o faz tendo em vista a sua propria integracdo e renovagio (modernizacéo). Essa estatizacao jamais configurou qualquer passo no sentido de socializagao/coletivizagao; pelo contrario, o Estado, no exercicio de fungao de acumulacao, sempre se voltou A promocao da reno- vacio do capitalismo. Quanto as nacionalizagies — salvo, e parcialmente, as nacionaliza $0es-sangées, ao final da Segunda Guerra ~ no expressavam sendo win movimento, na evolugao do setor piblico, tendente A superagio de um ponto de estrangulamento no sistema capitalista. Por i860 que, como observa Arturo Frondizi (Petréleo y Politica, Buenos Aires, 1965, p. 60), 16. Ob. cit, p.73. 47. Francesco Galgano, ‘Las instituciones de la economia eapitalista”, in Critica Juridica ~ Revista Latinoamsericana de Politica, Filosofia y Derecho 1/76. ESTADO E ECONOMIA, » por si mesma a nacionalizagéo também nao pode definir a orientagio ‘econémica bésica seguida por um Pat Permanece valida a assertiva de Galbraith: “Apenas os defen- sores profissionais do sistema da livre iniciativa, membros de um oficio humilde e malpago, ainda defendem o dominio da com- petigao, sendo este o teste pelo qual melhor se pode calcular que seus clientes fracassarao"."* 7.0 mercado é uma instituigdo juridica. Dizendo-o de modo mais preciso: os mercados sao instituigdes juridicas. Antes, porém, 0 mercado deve ser compreendido, qual ob- serva Avelis Nunes, como “uma instituiefo social, um produto da histéria, uma criagdo histérica da humanidade (correspondente a determinadas circunstancias econémicas, sociais, politicas ¢ ideolégicas), que veio servir (¢ serve) os interesses de uns (mas nao os interesses de todos), uma instituieto politica destinada a regular e a manter determinadas estruturas de poder que assegu- ram a prevaléncia dos interesses de certos grupos sobre os inte- resses de outros grupos sociais”.!” Neste sentido, tanto o Estado como o mercado sao espacos ocupados pelo poder social, enten- dido o poder politico nada mais do que como uma certa forma daquele>2t ‘A exposigio de Natalino It? é incisiva: 0 mercado nao é uma instituigdo espontanea, natural ~ ndo é um locus naturalis ~ mas uma instituicdo que nasce gracas a determinadas reformas institucionais, operando com fundamento em normas juridicas que o regulam, o limitam, 0 conformam; é um locus artificialis. © fato é que, a deixarmos a economia de mercado desenvol- ver-se de acordo com as suas propria leis, ela criaria grandes e permanentes males. “Por mais paradoxal que pareca ~ dizia Karl 18, O Novo Estado Industrial, p. 57. 19, Nogio e Objecto da Economia Politica, cit, p. 63, 20. Cf. Norbert Elias, ob. cit, p. 63. 21, Sendo instituigdes socials ~ observa ainda Avelas Nunes (ob. e loc. cits,), mereado e Estado nao apenas coexistem, como sd0 interdependentes, construindo-se e reformando-se no processo de sua interagao. 22. L’Ordine Giuridico del Mercato, 3 ed., 1998. 20 OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 Polanyi? —nao eram apenas os seres humanos ¢ os recursos natu- rais que tinham que ser protegidos contra 0s efeitos devastadores de um mercado autorregulavel, mas também a propria organiza- 40 da produgio capitalista”. © mercado, anota ainda Irti* 6 uma ordem, no sentido de regularidade e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamen- to pressupée a obediéncia, pelos agentes que nele atuam, de de- terminadas condutas. Essa uniformidade de condutas permite a cada um desses agentes desenvolver célculos que irao informar as decisdes a serem assumidas, de parte deles, no dinamismo do mercado. Ora, como o mercado é movido por interesses egois- ticos ~ a busca do maior lucro possivel ~ e a sua relacio tipica € a relagio de intercimbio, a expectativa daquela regularidade de comportamentos é que 0 constitui como uma ordem. E essa regularidade, que se pode assegurar somente na medida em que critérios subjetivos sejam substituidos por padrées objetivos de conduta, implica sempre a superacao do individualismo préprio a0 atuar dos agentes do mercado. Insisto, neste passo, em que © célculo econémico e a “racio- nalidade” reclamados para as economias de mercado, exigéncias vitais da maximizagao do lucro, so o produto de um processo his- t6rico concreto, “um método préprio e caracteristico do modo de produgao capitalista”, como ensina 0 velho Marx.25 Nao é por aca~ 50 que o Estado Moderno tenha surgido na Europa quase conco- mitantemente com 0 mercado capitalista e 0 calculo econ6mico.* Dai, na dicgao de Antonio Baldassarre,” por que a exigéncia de um sistema de normas juridicas uniformes e de um sistema de 23. A Grande Transformecio — As Origens da Nossa Epoca, pp. 161 € 163, 24. Ob. eit, p.5. 25. V. Avelas Nunes, ob. cit, pp. 48-49, 26. Pressuposto necessario do modo de produgio capitalista, a unifor- midade (universalidade abstrata) das pessoas ~ sujeitos de direito ~ enseja a consagragao do contratualismo como principio regulador da vida pessoal, social e econémica. Contratualismo muito especial, de qual participam sujei- tos de direito integrados em uma sociedade atomisticamente constituida pot individuos livres ¢ iguais em direitos, sob a suposigio de que as trocas livres entre eles resolveriam todos os problemas da sociedade, sempre, parém, em fungao de interesses especificos da burguesia, 27. Globalizzazione Contro Demoerazia, p. 58. ESTADO E ECONOMIA at decisbes politicas integrado em relagio a determinado territérioé essencial para o funcionamento e 0 desenvolvimento dos merca- dos, ou, de modo mais geral, da sociedade civil, isto é, da coletivi- dade que participa da distribuigo dos bens e das oportunidades que nascem dos mercados. O fato & que o Terceiro Estado, a burguesia, apropriou-se do Estado e é a seu servico que este pée o Direito, instrumentando a dominacao da sociedade civil pelo mercado. O Estado, que inicialmente regulava a vida econémica da nagao para atender a necessidades ditadas pela suas financas, desenvolvendo politicas mercantilistas? passou a fazé-lo para assegurar o laissez faire e, concomitantemente, prover a protecao social, visando & defesa e preservaco do sistema.” Na sexta década do Século XIX, 0 eapi- talismo constitui as forcas produtivas adequadas ao seu conceito e, dai, engendra sua dinamica especifica, a busca incessante da acumulagao da riqueza abstrata. Em suma: (@ a sociedade capitalista é essencialmente juridica e nela o Direito atua como mediacao especifica e necessdria das relagdes de producao que lhe sao préprias; (ii) essas relagdes de produgao nao poderiam estabelecer-se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma do Direito Positivo, Di- reito posto pelo Estado; (iii) este Direito posto pelo Estado surge para disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que ele se presta a permitir a fluéncia da circulagao mereantil, para domesticar os determinis- mos econémicos. V,, da jurisprudéncia do STR, as ADIs 1.950 e 3.512. 8, Sem a calculabilidade e a previsibilidade instaladas pelo Direito Moderno 0 mercado nao poderia existir. Sio clssicas as consideragées de Weber: as exigéncias de calculabilidade e confianca no funcionamento da ordem juridica e 28, V. Karl Polanyi, ob. cit, pp-92-94 29, V. Tullio Ascarelli, Corso di Diritto Commerciale — Introduzione e Teoria dell Impresa, 38 ed., p. 24 30, Ao “duplo movimento” a que refere Polanyi, ob. cit, pp. 163-164. 2 OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 na administracao constituem uma exigéncia vital do capitalismo racional;” o capitalismo industrial depende da possibilidade de previsdes seguras — deve poder contar com estabilidade, segu- ranga e objetividade no funcionamento da ordem juridica ¢ no carater racional e, em prinefpio, previsivel das leis e da adminis- tragéo.? Ferdinand Lassalle observa que, ao final do absolutismo, a pequena burguesia passa a almojar, “em beneticio do seu comér- cio e de suas incipientes indistrias, a ordem e a tranquilidade plblica e ao mesmo tempo a organizagao de uma justica correta dentro do Pais, auxiliando o principe, para consegui-lo, com ho- mens e com dinheiro’.° Lembre-se, a propésito, o que anotei no item 2, acima, ao expor o surgimento do Estado modemo: a mo- nopolizagao, pelo rei, do poder militar e do poder de tributar. A ordem piblica é constituida pelas normas jurfdicas que constituem 0 nitcleo mais expressivo daquilo de Nicos Poulant- zas* chama de le besoin de calcul de prévision: os agentes econémi- cos, no interior de um mercado extremamente complexo, no qual © ganho voltado a acumulagao de capital joga um papel prepon- derante, necessitam de uma justica e de uma administragao cujo funcionamento possa ser, em principio, calculado racionalmente. A totalidade estrutural que constitui a ordem publica ~ va- Iho-me ainda da concepcao de Poulantzas® — apresenta como ca- racteres particulares a constancia ¢ a estabilidade, sem as quais seria impossivel esse cdlculo. Essa possibilidade corresponde a uma exigéncia inafastavel do mercado. Nesse quadro, a ordem publica, para além da racionalidade da generalidade da lei, ga- rante a execugio dos contratos, pois saber com certo grau de cer- teza que 0s contratos sero respeitados, isso ¢ indispensavel ao sucesso empresarial.®* 31. Economia y Sociedad, vol. I, p. 238, 32, Ob. cit, vol. I, p. 834. 38. A Esséncia da Constituiedo, pp. 34-35. A conferéncia Uber die Verfas- sung foi também editada, em tradugao de Walter Stinner, pela Kairés Livra~ ria Editora, 24 ed., 1985, sob o titulo Que é wma Constituigao? A tradusao, na edigao de que me utilizo, é mais aprimorada. 34, Nature des Choses et Droit, p. 326. 35. Ob. cit, pp. 323 ess, 36. V. Franz Neumann, Estado Democratica e Estado Autoritério, pp. 49 ess. ESTADO E ECONOMIA a Dissera-o jé, em outras palavras, Hermann Heller: “Com o desenvolvimento da divisio do trabalho e das trocas, impée-se a seguranga das trocas que no seu todo se identifica com aquilo que 0 jurista costuma chamar certeza do direito. A seguranga das trocas ou certeza do direito tornaram-se possiveis em decorrén- cia de uma notavel calculabilidade e previsibilidade das relacoes sociais, que se tornam realizaveis somente se as relagdes sociais, © sobretudo as econdmicas, forem reguladas de modo crescente por um tinico ordenamento, ou seja, emanado de um tinico ponto equidistante. O resultado final, ainda que nao definitivo, desse processo de racionalizagao social é o moderno Estado de Direito, nascido substancialmente de uma legislacao sempre mais ampla, com a consequente consciente imposigao de regras de compor- tamento social que excluem a autotutela em um Ambito sempre mais vasto de pessoas e coisas, em op¢ao por uma normatividade e execugao centralizadas’.” Lembro, neste ponto, a observagao de Norbert Elias: “A cris- talizagao de normas legais gerais por escrito, que é parte integral das relagdes de propriedade na sociedade industrial, pressupde um gra muito alto de integracao social e a formacao de institui- oes centrais capazes de dar a mesma lei validade universal em toda a drea que controlam, e suficientemente fortes para exigir 0 cumprimento de acordos escritos. O poder que confere fora aos titulos legais e direitos de propriedade nao é mais diretamente visivel nos tempos modernos. Em proporgao ao individuo, ele € tdo grande, sua existéncia e a ameaca que dele emana so tao axiomiticas que raramente é submetido a teste. E esse 0 motivo por que hé uma tendéncia tao forte a considerar a lei como algo que dispensa explicagao, como se tivesse sido baixada pelos céus, um ‘Direito’ absoluto que existiria mesmo sem o apoio dessa es- trutura de poder ou se a estrutura de poder fosse diferente”. O cumprimento dos contratos nao podia ser assegurado sob a equidade, que, como anotou Franz Neumann® ao tratar da teoria juridica liberal (liberal legal theory), era sempre denunciada como incompativel com a calculabilidade, o primeiro requisito do 37. "Stato di Diritto 0 dittatura?”, L’Europe e il Fascismo, p. 208, 38. Ob. cit, p. 62. 39. Estado Democrético e Estado Autoritirio, cit, p. 190. ot (© ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988, Direito Liberal (= Direito Moderno). Era necessério transformar-se a equidade em um sistema rigido de normas, a fim de que fosse assegurada a calculabilidade exigida pelas transagées econémi- cas, Como o mercado reclamava a producao de normas juridicas, pelo Estado, que garantissem a calculabilidade e confianga nas relagBes econémicas, essa necessidade justificou, ainda segundo Neumann,” a limitagio de poder da monarquia patrimonial ¢ do feudalismo. Essa limitacao culininou na instituicao do poder legislative dos parlamentos; a tarefa primordial do Estado é a criacao de uma ordem juridica que tore possivel o cumprimento das obrigagées contratuais ¢ calculdvel a expectativa de que es- sas obrigacées serio cumpridas. A equidade comprometia essa calculabilidade e a seguranga juridica. Dai 0 Direito posto pelo Estado, que a rejeita e substitui (O préprio Neumann* observa, contudo, que essa rejeigao somen- te poderia ser absoluta no quacro de um sistema econdmico compe- titivo. Por isso 0 ponto de vista da equidade ¢ retomado na medida fem que cresce a concentracao do poder econdmico e o Estado passa a desenvolver atividades “intervencionistas” ©? Dai, inicialmente, a regra da razoabilidade, que surge no bojo da legislagio antitruste, © fato é que, como anota Avelas Nunes, a intervencao do Estado na vida econdmica é um redutor de riscos tanto para os individuos quanto para as empresas, identificando-se, em termos econémicos, com um principio de seguranca: “a intervengio do Es- tado nfo poderd entender-se, com efeito, como uma limitaciio ou uum desvio imposto aos préprios objectivos das empresas (particu- larmente das grandes empresas), mas antes como uma diminui- ‘0 de riscos e uma garantia de seguranca maior na prossecucao dos fins tiltimos da acumulacao capitalista”. 9. O mercado ~ insisto neste ponto ~ é uma instituig&o juri- dica constituida pelo Direito Positive, © Direito posto pelo Estado ‘Moderno. 40. Ob. cit, p. 186. 41, Ob. cit, p. 191 42. Atividades “intervencionistas” porque o liberalismo supée uma. nitida separacio entre Estado e sociedade civil, vale dizer, entre Estado e mercado. 43, Do Capitalismo e do Socialismo, p. 125. ESTADO E ECONOMIA 35 Ao final do século XVII, toma forma como projeto politico ¢ social e serve ao tipo de sociedade que os liberais desejavam ins- taurar. O mercado se desdobra: sem deixar de referir os lugares que designamos como mercado e feira, assume o carter de ideia, logica que teagrupa uma série de atos, de fatos e de objetos."* ‘Mercado deixa entéo de significar exclusivamente 0 lugar no qual sdo praticadas relagdes de troca, passando a expressar um projeto politico, como principio de organizacao social. Neste sentido, hd autores, como Rosanvallon,5 que o tomam como representaciio da sociedade civil. A nogiio de mercado como atividade ~ conjunto de operagdes econémicas e modelo de trocas; conjunto de contratos, conven- Ges e transagées relativas a bens ou operagbes realizadas no lu- gar/ mercado" — supée a livre competiciio, Como 0 mercado ¢ instituigao juridica, constituida pelo Di- reito posto pelo Estado, deste se reclama, a um tempo s6, que garanta a liberdade econdmica e, concomitantemente, opere a sua regulamentacdo (~ regulagao)."” Sendo atividade, as regras do mer- cado consubstanciam 0 seu substrato.’® “A livre concorréncia ~ dizia Franz Neumann — precisa da generalidade da lei e do Direito por ser ela a mais alta forma de racionalidade. Necessita também da absoluta subordinagao do juiz ao Direito, e dai a separagio de Poderes. (...) A tarefa primor- dial do Estado ¢ criar um Estado legal que garanta a execugio dos contratos, pois uma parte indispensdvel para o sucesso em- presarial é saber com certo grau de certeza que os contratos serao tespeitados. (...)”.” O modo de produgao social capitalista, que elege como ratio fundamentalis do ordenamento politico 0 Iucro, coloca © Direito 44. Marthe Torre-Schaub, Essai sur la Construction Juridigue de la Catégo- rie de Marché, pp. 3-4 45, Pierre Rosanvallon, Le Libéralisme Economique ~ Histoire de VIdée de ‘Marché, p. 1. 46. Isto 6, atos de comércio caracterizados definido pelo ciclo D-M-D (dinheiro-mercadoria-dinheiro). 47, Marthe Torre-Schaub, ob. cit, p. 4. 48. Idem, p. 11. 49. Estado Democritico ¢ Estado Autoritirio, pp. 49-50. 36 OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 Positivo a seu servico; é isso que explica a estruturacao do Direito posto pelo Estado Moderno.*? Ele existe fundamentalmente ~ de- sejo deixar este ponto bem vincado ~ para permitir a fluéncia da circulacao mercantil, para tentar “domesticar” os determinismos econémicos. Porta em si a pretensdio de dominar a realidade expée marcante contradicao, que pode ser enunciada nos seguin- tes termos: o capitalismo (leia-se: o Terceiro Estado, a burguesia) necessita da ordem, mas a detesta, procurando a qualquer custo exorcizé-la. Dizendo-o de outro modo: o mercado exige, para satisfacao do seu interesse, 0 afastamento ou a redugdo de qualquer entrave social, politico ou moral! ao processo de acumulagio de capital. Reclama atuagao estatal para garantir a fluéncia de suas relacoes, porém, ao mesmo tempo, exige que essa atuagao seja minima. Uma tiltima nota ainda, a respeito da racionalidade do Direito Moderno: ele é racional porque permite a instalagéo de um hori- zonte de previsibilidade e calculabilidade em relagao aos comporta- mentos humanos, sobretudo aqueles que se dao nos mercados. Nada disso era possivel enquanto as decisdes do principe ou mo- narca fossem subjetivamente tomadas, ainda que com fundamen- tona equidade; no Direito Moderno o seu fundamento € objetivo, éalei. 10. Repito: o mercado ~além de lugar e principio de organizagiio social - & instituigao juridica (~ institucionalizado e conformado pelo Direito posto pelo Estado). Sua consisténcia ¢ fungio da segu- ranga e certeza juridicas que essa institucionalizacao instala, permi- tindo a previsibilidade de comportamentos e 0 célculo econdmico. Para Colbert, o mercado significava a constituigaio de um es- pago unificado organizado pela centralidade real, ao passo que 50, Que poderfamos descrever, engtanto modelo, como Ditto post, Direo Paves, Dire Moderna, Dre fama, Det rg SL tienne Balibr, Europe, ’Anrique la Guerre, p11 £20 forma strc francés Le Canard Enchain (x 4341, 71.2008, p. 1) dnote de questo mesmo momentsea que o Pamcize inietoslitnave ue exces de legato nul ln scurié juries, o Pesitente da Republica ropurhe ura uta contra odasemprego com “une gre lo O coment BoE ancenade com uma indagacts iaica, sors posefel consttase uma grande le sobre a raraton reglomentar? ESTADO E ECONOMIA 7 ‘Turgot e os liberais o tomavam como um espaco unificado e ho- mogéneo, mas a-centré.® Mas essas unificagao e homogeneizacao eram indispensdveis ao surgimento dos mercados. A garantia da fluéncia de suas relagdes 6 uma dupla garantia, contra o Estado e contra os outros agentes econémicos que atuam no mercado. Quando a burguesia manifesta plenamente sua forca politica, assumindo o projeto de autonomia e autorregulagao da vida eco- némica (= mercado), passa a sujeitar a controle o Estado, que deve ser racionalizado integralmente segundo os interesses da socieda- de5* Observa Jorge Reis Novais que essa racionalizagio, “reque- rida essencialmente pelas necessidades de cdlculo e seguranga inerentes a produgao capitalista, projecta-se na exigéncia de ra- cionalizacao das fungdes do Estado e, em primeiro lugar, no con- trolo da Administragao; um Estado racionalizado sera um Estado cuja actuacdo € previsivel, em que a Administragao esta limitada Por regras gerais e abstractas, em que as esferas de autonomia dos cidadiios e a vida econémica nao esto 4 merce de ingeréncias arbitrérias do Monarca, mas antes protegidas e salvaguardadas pelas decisées racionais da sociedade esclarecida, representada no 6rgao da vontade geral”.®° A generalidade e a abstracdo da lei garantent 0 individuo con- tra a arbitrariedade estatal, porque isso é indispensdvel ao “calculo e seguranga inerentes 4 producao capitalista”; mas 0 “célculo e seguranga inerentes & producao capitalista” reclamam também previsibilidade no comportamento dos agentes econdmicos. Isto é: cada agente econédmico necessita de garantias (f) contra 0 Estado e (ii) contra os outros agentes econdmicos que atuam no mer- cado. Vale dizer, célculo e seguranga inerentes & producao capita- lista exigem uma dupla garantia: (a) contra o Estado (= liberalismo politico) e (b) em favor do mercado (= liberalismo econdtnico). A lei assegura a primeira garantia (correspondente ao libera- lismo politico) e, concomitantemente, é posta a servico da preser- 53. Cf. Rosanvallon, ob. city, p. 102. ‘¥. Jorge Reis Novais, Contributo para wma Teoria do Estado de Direito, pp. 32-33, 55. Idem, p. 33. 38 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 vagio do mercado (= liberalismo econdmico; a liberdade econdmica em suas duas faces, liberdade miiblica e liberdade prioada™), Em sintese: 0 que se protege sio as autonomias individwais dos agentes econdmicas (em termos diretos ¢ incisivos: as aufonomias in- dividuais dos produtores burgueses™). Dai a fundamental importancia, para a circulagio mercantil, do conceito de sujeito de direitos, que supde a capacidade de contratar de individuos livres e iguais.* ‘A racionalidade juridica do Direito Moderno coincide com a afirmagao juridica da primazia das autonomias individuais, 0 que envolve as declaracées de direitos, o movimento do constitucio- nalismo liberal e suas técnicas, especialmente a da separagao dos poderes e a da legalidade (= princfpio da legalidade da Adminis- tragio). Objetivamente: liberalismo politico e liberalismo econdmico se entrelacam de modo tal que, sob pena de comprometimento da esséncia de um e outro, nao se os pode cindir. E que fique bem nitido que os adeptos do primeiro esto, ingenuamente ou nao, a servigo do segundo, Dai ser necessario desnudarmos 0 comprometimento dos “direitos fundamentais” e dos “direitos do homem” com a afir- macio da primazia das autonomias individuais, quer dizer, au- tonomias individuais dos que podem té-las, ou seja, dos proprie- tarios burgueses. O fato 6 que as teorizacdes do Estado de Direito nascem da luta da burguesia contra o poder absoluto do monar- a, isto é, da luta pelo Estado juridicamente controlado/limita- do, cuja legitimidade nao carece mais de fundamento teolégico, transcendente, metafisico. 11, Paralelamente ao desempenho da funcdo de integracdo e modernizagio capitalista, originariamente referida como de acu- mulagao, 0 Estado implementa duas outras, a de legitimagao ea de repressio."? No exercicio da fungao de legitimac3o o Estado pretende atribuir a0 sistema capitalista e sua ordem politica o reconfiecimento de que 56. Neste livro, item 89, pp. 204-205. 57. V. Jorge Reis Novais, ob. cit, p. 33, nota 64. 58, V. meu O Diteito Posto ¢ 0 Direito Pressuposto, cit, pp. 116 e ss. ¢ 167. 59. V. Edward 8, Greenberg, “A regra de classe sob a Constituigio”, in A Constituigio Norte-Americana, pp. 51 € 5. ESTADO E ECONOMIA, 9 Sejam corzeos e uston. Nese sentido, observa Habermas (Zur Rekons- trukton des Hitorishen Materialism ely pp. 271-272: pp. 243-244 na trad. expanhiola) que alegitimidade constitu ama preteato de validez discutivel, de evo reconhecimento (ao menos) fatieo depende (ttn: ind a esiablidade de uma orem de dominagdo. Enfatien, pore, © fo de que os problemas de lepitimidade 0 afetam as ordene politcas apenas clas podem fer e perder legitimidade e somente elas requesern Iegitimidade. No exercicio da fungao de legitimacao 0 Estado, promovendo a mediagao de conflitos de classe, da sustentacao 2 hegemonia do capital. Atuando como agente unificador de uma sociedade economicamente dividida e, ademais, fragmentada em grupos de interesses adversos, promove — ¢ 0 Direito Positivo é o instru- mento primordial dessa promogio — 0 que tenho referido como a transformagio da luta social em jogo. Papel dos mais relevantes é desempenhado, nesse contexto, pela Constituigao formal, que, enquanto sistema semantico ideo- logizado, constitui o modo de institucionalizacao— porque lhe dé forma — do mundo capitalista.*' Constitui, porém, uma interpre- taco parcial desse mundo, ou seja, da ordem capitalista, que & de ser completada pela Constituigéo material. Essa interpretagao parcial introduz uma falsa consciéncia desse mundo, & qual nao se pode escapar mercé da repressao. A Constituigo, como ensinou Ferdinand Lassalle, é a expressao escrita da soma dos fatores reais do poder que regem uma nagao; incor porados a um papel, jé nao sao simples favores reais do poder, mas fato- res juridicos, s80 instituigao juridica, Dai a concepeao da oposicao entre constituigao real e eftioa e Constituigao escrita. A Constituicao escrita & ‘boa e duradoura enquanto corresponder a constituigao real e encontrar suas raizes nos fatores renis do poder hegem@nicos no Pais; onde a Cons tituigdo escrita jé nao corresponder & constituigao real instalar-se- um conflito no qual a primeira sucumbiré.** 60,¥. ms Dit Pt Dia Mesa pp, 1015, Lente 10 Estadio moderna ndo é um todo homogéneo, no se interior desenso- iindo-se também a uta decassea, a G1. V. Umberto Eco, Tatada Geral de Semitic, . 245.0 Estado, or o- tx0 ado, pode e deve ser visualizado como a forma da sociedade capitalist, Como a forma atual do politico (Michel Misi 1 Estado del Derecho, p. 28, (2. A Bssencia dn Consituig, ob cit, p19. 63. Lassa ob. pA. 40 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 Observe-se neste passo que a repressiio capitalista néio se ma- nifesta necessariamente ex post, como instancia subsequente a da legitimagio. A repressao esta imiscuida na concepgao de hegemonia, de modo que cla se manifesta em um primeiro momento como autorrepressio, suficiente para colocar em situagao de lealdade e adesio ao capitalismo a massa quantitativamente mais significa- tiva da sociedade civil. E, naturalmente, tanto maior seré o grau de eficacia da legi- timagao e da autorrepressdo capitalista quanto mais convincente forem os mitos na Constituigéo formal. 12, A Constituigao formal, em especial enquanto concebida como meramente programatica — continente de normas que ndo sao normas juridicas, na medida em que define direitos que nao garante, na medida em que esses direitos s6 assumem eficdcia plena quando implementados pelo legislador ordinario ou por ato do Executive -, consubstancia um instrumento retérico de dominagao. Porque esse o seu perfil, cla se transforma em mito. O mito é forma especifica de manifestagao do ideolégico no plano do discurso (cf. Warat, Mitos e Teorias na Interpretagio da Lei, Porto Ale- gre, Sintese, 1979, p. 127). A respeito do tema, desenvolvi as seguintes DObservagoes em meu A Constituinte ea Constituigdo que Teremos, Sa0 Pau- lo, Ed. RT, 1985, pp. 20-22: “A ideologia, mediatizada pela linguagem, é fonte de produgio de sentido. Nao, porém, na acepggo comum de sentido, mas come valor de referencia, A ideologia nao produz signifieados gue valham por si mesmos, mas valores-verdades que se autorreferen- ‘Gam, ou seja, ealares referenciais que so verdadeiros ou falsos conforme suas telagdes com as pautas ideoldgicas que compoem sua instancia de ‘enunciaco, seja como conformidade, seja como contraste. O valor do verdadeiro ou falso, assim, no ambito da ideologia, ¢ arbitrario, formal ao ontologico, conteudistico. Por isso mesmo a ideologia é referencial (ou monossignificatios, desconhecendo no real, por nao reconhecer, tudo {quanto seja com ela incompativel. Nisso é que o discurso ideolégico eo discurso mitico se aproximam: ambos instauram um horizonte objetivo para os comportamentos e atitudes do homem, embora o primeiro se Insira e viva da Histéria e o segundo se desenvolva em uma realidade nao histérica, atemporal e sem espago. Note-se que 0 mito aparenta ser uma revelagao do que foi e permanece sendo. Nao obstante, o mito funciona como recurso linguistico no discurso ideoldgico de quem tem condigoes de, através dele, exercer dominagao social. Os mitos $30 descritos como formas de fé popular que nao nasceram da reflexdo ra- Gional do povo, mas de sentimentos pré-racionais, emotivos. Desven- dados, porém, desnuda-se a racionalidade deles em quem os inventa, ESTADO B ECONOMIA a1 © que evidencia nfo serem sendo uma manifestagSo cultural. O mito, em verdade, nao passa de uma invengio, consciente ou inconsciente, do hhomem ou de um grupo de homens, cujafinalidade ¢ a instauragdo de uuma (nova?) ordem. Penso possamos sustentar, assim, que o momento da ‘desmitizagéo da cultura’, no iluminismo racionalista, estrutarado sobre a afirmagio da obscuridade dos mitos, caracteristica - conforme se alegou ~ das Idades Antiga e Média, nao consubstanciou senao um momento de suéstituigao de mitas. Mitos irracionais ou inconscientes S80, entdo, substituides por outros, mitos também, porém defini: ‘mente conscientes e racionais nos que os inventam ~ como racionais, e consciertes, embora hermeticamente, foram aqueles nos que 03 in vventaram. Invengio ritida do homem (ou de um grupo de homens), 05 smitos modemos ~ nao o mito para o hamem, como 0 mito drumondiano de ‘fulana’, mas o mito para povo ~ sao como expresses esotéricas, a serem ‘consumidas’ pela sociedade. Sio, assim, impostos a sociedade, funcionando como instrumentos linguisticos de dominacao que tanto ais prosperam quanto mais sejam acreditados. As Constituigées for- mais inmeras vezes consubstanciam modalidade exemplar de mito modemo, Por umn lado, instalam no seio da coletividade a conviesao de {que se vive sob a égice do Estado de Direito: se a Constituigio, docu- mento formal, existe, temes instituido o regime do Estado de Direito Por outro ~ sobretudo a partir do instante em que, tocadas por um ges- to de brilhantismo invulgar, a burguesia faz incluir nela um capitulo atinente aos direitos econémicos e sociais ~ funcionam como antepa- ro as expansées da sociedad, amortecida naquilo que seria expressao Ge sua ansia de buscar a realizacio de aspiragbes econémicas e sociais ‘A ConstituicSo, entao, instaura 0 Estado Sociale passa a ser exaustiva- ‘mente consumida’ pela sociedade. Pouco importa que suas disposiqSes tenham carater programatico, contemplem direitos nao juridicamente exequiveis, isto ¢ nao garantidos. Outzo lance de brilhantismo invulgar encontra-se na teorizagio da disting5o entre direitos e garantias. Pacti- ‘eam-se as consciéncias das ordens privilegiadas e 0s néscios ‘0 conforto proprio aos que vivem Sob a égide da Constituicao, devida- mente conformados —seja porque se tomam pacificos,seja porque seus, comportamentos assumem padides predeterminados, na dupla deno- tacio do vocdbulo, A Constituicio, assim ~ isto é o documento formal ddenominado ‘Constituicao’ ~, desnuda-se como instrumento de domi nagao ideologica, E mito que acalentamos, dotado de valor refere exemplar, na medida em que contribui eficazmente para a preservagio dda orem que nao se pretendia instaurar, mas, simplesmente, manier. “rNdo importa ~ repita-se ~ que os direitos econémicos e sociais nela instituidos nao se tealizem em relagSo a cada qual (‘ulana sequer me x6’) se cada qual pode se refestelar no géudio de viver sob a égide da Constituigio”. V. também Alicia E. C. Ruiz, “La ilusién de lo juridieo”, in Critica Juridica, Revisia Latinoamericana de Poitce, Filosofia y Derecho 4/161 e ss,, Universidad Auténoma de Puebla, 1986, Por isso mesmo & que se pretende, sempre, conferirracionalidade & Constituigio. O episédio da instituigdo de uma “comissao de noté- 2 (QORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 vels”, Incumbida da elaboragdo de um anteprojeto que se prestaria a servir de modelo para os canstituintes da “Nova Reptblica’, em 1987, ébem expressivo dessa circunstancia, Essa “comissio de notaveis”, de toda sorte, ndo deixaria Aristételes de qualificé-la como oligirguica, Re- corto a trecho de A Politica: “Cependant il peut exister aussi certaines magistratures particuliéres & des formes spéciales de gouvernement, par exemple Ioffice des conseillers préparateurs. Cet office n'a rien de démocratique, bien qu’un Conseil soit de nature populaire, car il faut bien qu’ily ait quelque corps du genre de ce dernier qui aura le soin de préparer les deliberations du peuple, pour lui éviter d’étre distrait de ses occupations; mais si les membres qui composent cette commission préparatoire sont en petit nombre, on est en pleine oligarchie, et com- me cest une nécessité que les conseillers préparateurs soient peu nom- Dreux, il en résulte quils constituent bien un élément oligarchique” (gre) (I, 15, 42 tir, trad. de J. Tricot, Paris, Librairie Philosophique J. Vein, 1982, p. 327). Mitica foi a Constituigo Mexicana, de 1917, dedicando um longo capitulo a definicao de principios aplicaveis ao trabalho e a previdéncia social, sem porém institucionalizar os direitos que enunciou ~ atribuiu ao Congresso da Unidio a emissao de leis que © fariam. A Constituigaio de Weimar, de 1919, é também programatica. Nela e na do México, ademais, a evidéncia do projeto ideolégico que contemplam, de amortecimento do conflito de classes, é fla- grante, Veja-se 0 art. 165: “Os operdrios e empregados sio cha- mados a colaborar, em comum, com os patrdes em igualdade de direitos, na regulamentacao das condigées de salarios e de tra- balho, assim como no conjunto do desenvolvimento econémico das forcas de produc&o”. A mexicana remete a composicaio dos conflitos entre capital e trabalho a Juntas de Conciliagao e Arbi- tragem (art. 123, A, XX) e admite como licitas as greves “quando tiverem por fim conseguir o equilibrio entre os diversos fatores de producao, harmonizando os direitos do trabalho com os do capi- tal” (art. 123, A, XVII). A de Weimar, além de tudo, menos do que encaminhar uma organizagao coletivista — Conselhos Operdrios ¢ Conselhos Econémicos ~ introduz um modelo de organizagao econdmica corporativista (v. 0 art. 156, parte final). Na mesma linha prosperam as Constituig6es formais capita- listas que se seguem a elas, seja na provisao da institucionalizacao de um “Estado Social”, seja na implantagio do “capitalismo cial”, nogéo que nao resiste nem mesmo & contradi¢ao dos vocd- ESTADO E ECONOMIA 2 bulos que integram a expressdo que a designa — s6 0 proceso de producao € social; o proceso de acumulacao capitalista € essen- cialmente individualista, 13. A legitimacdo da hegemonia do capital, nutrida pela mi- tificago da Constituigao formal, é de outra parte reforcada me- diante o desenvolvimento, pela burguesia, de uma retorica que distorce a realidade. Assim, ela investe, frequentemente, contra a “estatizagao da economia”. Apenas, no entanto, essas investidas sio consumadas & margem do Poder Judicidrio. Tais discussdes so produzidas fora de ambitos nos quais poderiam prosperar, no sentido de coartar o desenvolvimento, pelo Estado, de sua fungio de inte- gracdo e modemizacao capitalista. E isso porque — repita-se — 0 capitalismo assistencial reclama a estatizacdo parcial da econo- mia. Observe-se enfaticamente que, embora a estatizacio e 0 in- tervencionismo estatal no dominio econémico possam aqui ou ali contrariar os interesses de wm ou outro capitalista, sero sempre adequados e coerentes com os intteresses do capitalismo. Pesquisa desenvolvida pela Fundagi0 Casa de Rui Barbosa sobre a jurisprudéncia atinente a intervencao do Estado no dominio econémico (urisprudéncia de Direito Administrative — Dominio Publica ¢ Intervengio do Estado, Rio de Janeiro, Fundagdo Casa de Rui Barbosa, 1981) detectou, no periodo de dez anos ~ 1967 a 1977 ~ entre 1.764 acérdaos examina dos, menos de quarenta diretamente relacionados ao tema. E, diga-se mais, destes, a quase totalidade respeita o controle do abastecimento, precos, monopélio e repressio ao abuso do poder econémico. Quanto & oposicio entre interesse de capitalistas e interesses do capitalismo, 0 mesmo ocorria, tal qual observa Galgano (ob. cit, pp. 42, © 49), com 0 ius mercatorum, que protegia o interesse geral da burguesia no os interesses de cada burgués em particular, pouco importando se,em nome daqnele, cumprisse eventualmente sacrificar estes ultimos. No desempenho do seu riovo papel, o Estado, ao atuar como agente de implementagao de politicas publicas, enriquece suas fungdes de integracdo, de modernizagao e de legitimacao capi- talista. Essa sua atuagao, contudo, nao conduz a substituigao do sis- tema capitalista por outro. Pois é justamente a fim de impedir tal substituigaio — seja pela via da transigao para o socialismo, seja 4 (O.ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUICAO DE 1988 mediante a superagao do capitalismo e do socialismo ~ que 0 Es- tado é chamado a atuar sobre e no dominio econémico. O sistema capitalista & assim preservado, renovado sob diverso regime, O modo de producao, os esquemas de reparticao do pro- duto e os mercados capitalistas, no ambito interno e no quadro internacional, so mantidos em sua integridade. Dai por que inte- essa ao capitalismo uma Constituicao “progressista’. Justamen- te no ser “progressista” ¢ que a Constituicio formal nao apenas ensejaré a manutencao da “ordem capitalista”, mas conferira ope- racionalidade plena ao poder detido pelas classes dominantes. Us0 0 vocabulo “progressist”, aqui, para qualficar movimentos ~ © a Consttuigao deve sof vista como um dinamismo ~ que, embora neguem ¢ se oponham a uma perspeciva revoluciondria, de ruptura Poltico-soclal supdem algum avango e evolugio, no sentido de prover Allerag6es na organizagdo de um sistema dado, sem conto fest a es- Observa Michel Foucault (Histoire de la Sexual, vol. 1, "La Vo- lonté de Savoir, Editions Gallimard, 1976, p. 190) "Les Constitutions éerites dans le monde entier depuis de la Revolution francaise, les Co- des rédigés ot remaniés, toute une activité Iopislative permanente bruyante ne doivent pas faire Mlusion: ce sont Isles formes qui rendent acceptable un pouvoir essentiellement normalisateur” Paralelamente a isso, ademais, o capitalismo modernizado ~ “progressista” ~ promove a fragmentacao social, o que também é induzido pela Constituigo formal: os cidadaos se refletem nela como parte nao da sociedade de classes, mas da sociedade de massa. O crescimento populacional implica a ocupagao dos espagos do mundo. Mas essa ocupacao ¢ fragmentada, na medida em que a intercomunicagao entre os individuos é comprometida. Embora ‘0s homens estejam mais préximos uns dos outros, nao se comu- nicam entre si: a competigao em que estao envolvidos os aparta. E a morte da Gemeinschaft, pelo predominio da Gesellschaft. A ener- gia que vem da densidade populacional, estranhamente, afasta os homens uns dos outros, nao os fraterniza. E assim — 0 que é mais importante para a integridade do ca- pitalismo — essa fragmentacao, além de comprometer a autentici 64. Cl. Edward 8. Greenberg, ob. cit, p. 55. ESTADO F ECONOMIA 45 dade da representagao politica, impede a superagao da “ordem capitalista”, que apenas se autotransforma ~ isto é, se aperfeigoa. Nao se torna possivel, destarte, a mudanga dessa ordem sendo desde perspectivas coartaveis pela repressio. 13a. Sucede que o novo papel do Estado passou a ser vigoro- samente questionado desde os anos oitenta do século passado, na afirmagao dos discursos da desregulagio e do neoliberalismo. Tra- tei desses dois temas também em meu O Direito Posto e 0 Direito Pressuposto,® que j4 me permiti tomar como texto introdutério a esta minha andlise da ordem econémica na Constituigao de 1988. 14, Em relagdo a sociedade brasileira, algumas breves indica- des devem ser anotadas. Em primeiro lugar, tem-se como evidente que, no nosso caso, qualquer reformulacao da participagaio do Estado na eco- nomia pressupée, necessariamente, a sua desprivatizagiio (despri- vatizagéo dele, Estado). Quanto a essa participagao, alids, quan- do quantificada em termos de PIB, nao resulta mais elevada do que a que se manifesta, v.g., no Japio, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Franca, na Inglaterra, No que tange as arrecada- Ses tributarias, decorrem, basicamente, da imposicao de tribu- tos indiretos regressivos. A carga tributdria nao ¢ relativamente tao elevada, como se tem afirmado (geralmente por ignorancia, mas também por mé-fé, em alguns casos), mas acentuadamente regressiva. O trabalho é muito mais vigorosamente tributado do que o capital. No que respeita a redefinicao do papel do Estado, reclama a identificacao de setores indevida e injustificadamente, do pon- to de vista social, atribuidos ao setor privado ~ aqui as dreas da educagao e da satide — bem assim de outros nos quais vem ele atuando, como agente econémico, também do ponto de vista so- cial, injustificada e indevidamente.* E desde essas verificagdes 65. Ob. cit, pp. 93-104. 66. Note-se bem, de toda sorte, que, no Brasil, os empresdrios nacio- nais ¢ estrangeiros nao assumiram 6 papel de inovadores, arcando com as responsabilidades disso decorrentes. Paradoxalmente, foi sempre o Estado que, entre nés, promoveu, suportando o seu custo, inovagies empresariais. Neste sentido, 0 Estado brasileiro caracterizou-se como “schumpeteriano” 6 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 que se haveria de orientar a politica de privatizagéo das empresas estatais. A politica neoliberal também nessa matéria implementa- da 6 incompativel com os fundamentos do Brasil, afirmados no art. 3° da Constituicdo de 1988, e com a norma veiculada pelo seu art. 170. . A Constituigao do Brasil, de 1988, define, como resultara de- monstrado ao final desta minha exposicao, um modelo econ6mi- co de bem-estar. Esse modelo, desenhado desde o disposto nos seus arts. 1° ¢ 38, até o quanto enunciado no seu art. 170, no pode ser ignorado pelo Poder Executivo, cuja vinculacao pelas defini- Bes constitucionais de carter conformador e impositivo é ébvia. Assim, os programas de governo deste e daquele Presidentes da Republica é que devem ser adaptados 4 Constituicao, e no © inverso. A incompatibilidade entre qualquer deles e o modelo ‘econémico por ela definido consubstancia situagao de inconstitu- cionalidade, institucional e/ou normativa. Sob nenhum pretexto, enquanto no alteradas aquelas defi- nig6es constitucionais de caréter conformador e impositivo pode- ro vir a ser elas afrontadas por qualquer programa de governo. E assim ha de ser, ainda que 0 discurso que agrada & unanimidade nacional seja dedicado & critica da Constituigao. A substituigao do modelo de economia de bem-estar, consa- grado na Constituicéo de 1988, por outro, neoliberal, néo poders ser efetivada sem a prévia alteracdo dos preceitos contidos nos seus arts. 18, 3° e 170. A luz dessa verificagao cabe cogitarmos da relago de compatibilidade ou incompatibilidade entre a Cons- tituigao de 1988 e o programa de governo neoliberal introduzido por Collor e retomado por Fernando Henrique; a semelhanga en- tre as propostas de reforma constitucional de ambos ainda nao foi suficientemente analisada. 15, A unanimidade nacional a propésito da exceléncia do neo- liberalismo e da globalizacio da economia basta, no minimo, para que Basta lembrarmos, aqui, os movimentos de criagéo de empresas estatais no governo Getilio (década de 40 do século passado) e durante a ditadura mi- litar (segunda metade da década de 60), além do desenvolvimentismo do governo Juscelino Kubitschek e do papel do BNDES e de outras agéncias € sociecladles governamentals, como a EMBRAPA. ESTADO E ECONOMIA, a ambos sejam colocados sob suspeicio, j4 que - como, em algum momento, disse Nelson Rodrigues — toda unanimidade é burra. sempre dificil escrevermos sobre o presente, especialmente se a prosa que produzimos é de cardter cientifico. Forca é nao nos perdermos no circunstancial, que intimeras vezes ilude e nos desvia dos pontos centrais a serem apreciados na realidade. E sob essa reserva, necessdria, que mantenho a exposicao que segue, bem assim a que prossegue no item 152, consciente de sua pro- visoriedade. ‘As conclusdes de Perry Anderson, em texto no qual faz um balanco do nooliberalismo,’” sao expressivas: ”Economicamente, © neoliberalismo fracassou, nao conseguindo nenhuma revitali- zacao basica do capitalismo avancado. Socialmente, ao contrério, © neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora nao tao de- sestatizadas como queria. Politica e ideologicamente, todavia, 0 neoliberalismo alcancou éxito num grau com o qual seus fun- dadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a sim- ples ideia de que nao ha alternativas para os seus principios, que todos, seja confessando ou negando, tém de adaptar-se a suas normas”. O fato é que a apologia ideolégica do mercado é produzida em fungio exclusivamente do interesse do investidor, que é 0 de baixar os custos que oneram a empresa (0s salérios, os tributos ¢ as cargas sociais)."* Isso compreendemos plenamente na medida em que seja bem ponderada a estreita vinculagdo que anela o individualismo, 0 liberalismo © 0 utilitarismo, produtos histéricos surgidos em um mesmo perfodo (0 Século XVII), em um mesmo lugar (a Inglaterra e a Franga), conduzidos pela burguesia ascendente (Matthieu Douérin, ob. cit, p. 160). © comprometimento, a partir dos anos setenta do século XX, dos niveis necessdrios de lucros das empresas e o desencadea- mento de processos inflacionarios que inevitavelmente conduzi- riam a uma crise generalizada das economias de mercado impu- 67. "Balango do neoliberalismo”, in Pés-Neoliberalismo, p. 23, 68, Cf. Matthieu Douérin, “Idéal-type libéral et légitimation in liste”, in Prétentaine 5/174, maio/1996. 48 (OORDEM ECONOMICA NA CONSIITUICAO DE 1988, nham, na concepgao neoliberal — observa ainda Perry Anderson® ~amanutencdo de um Estado forte em sua capacidade de romper 0 poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervengSes econémicas. “A estabi- lidade monetaria — prossegue 0 autor” — deveria ser a meta su- prema de qualquer governo. Para isso seria necessiria uma disci- plina orcamentaria, com a contencao dos gastos com bem-estar, e a restauragio da taxa ‘natural’ de desemprego, ou seja, a criacdo de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. ‘Ademais, reformas fiscais eram imprescindiveis, para incentivar 08 agentes econémicos, entao as voltas com uma estagflacio, re- sultado direto dos legados combinados de Keynes e de Beverid- ge, ou seja, a intervengao anticiclica e a redistribuicdo social, as quais haviam tao desastrosamente deformado 0 curso normal da acumulacio e do livre mercado”. O desenho do programa se completa com a politica de privatizacSes. O capitalismo é essencialmente conformado pela microrracio- nalidade da empresa, nao pela macrorracionalidade reclamada pela socicdade.”! Mais do que apenas isso, no entanto, 0 neoliberalis- mo é fundamente antissocial, gerando consequéncias que unica- mente as unanimidades cogas nao reconhecem. © desemprego estrutural na Comunidade Europeia alcanga cifras elevadissima Os Paises avangados suportam a estagnacao econémica, com 0 empobrecimento dos assalariados. A América Latina passa por um processo de marcante desindustrializacao. Os Estados nacio- nais, cujas dividas explodem, “uma vez que seus titulos piiblicos alimentam o capital a juros globalizado”,” entram em situacao de faléncia fiscal. Voltando os olhos para a nossa realidade verificamos que, ainda que a economia se recupere — 0 que é duvidoso, dado que a estabilidade monetéria nao é, por si, expressiva de recuperacéo econémica ~, 0 social piora.”? O fato é que, nas palavras de Pier- 69..0b, ct, pp. 10-11. 70.08 e loc. cits. 71. Ralph Miliband, Socislismo para una Eyoca de Escepticismo, p- 29, 72 José Carlos de Souza Braga, Economia e Fetiche da Globaizagio Capi talista, 1996 73. Neste sentido, Francisco de Oliveira, “Neoliberalismo a brasileira”, in Pés-Neoliberalima,p. 26. ESTADO E ECONOMIA 9 re Salama,” é eticamente “inaceitével viver em uma sociedade que se fratura cada vez mais; ¢ inaceitavel viver nessas condigdes de desigualdade na distribuigéio de renda (desigualdade que se amplia cada vez mais); é extremamente inaceitavel viver em um Pais onde sao tio profundas as diferengas sociais entre pobres e ricos e, sobretudo, também onde essas desigualdades sao tao acentuadas entre os préprios pobres”. De outra parte, a globalizacao é, essencialmente, globalizacio financeira; é isso que a distingue da caracteristica internacionali- zante do capitalismo. A desregulamentacio financeira, que o programa neoliberal pos- tula, eriou condigdes muito mals propicias para ainversio especulativa do que produtiva, ensejando a prética de im volume astrondmico de tvansagdes puramente monetérins(v. Perry Andersory ob. ct, p. 16) Sobre a globalizagio, v. meu O Direilo Past eo Direto Pressupost, cit, pp. 265 e88 Ademais ~ anotei em outra ocasitio” — 0 modo de produ- 40 social globalizado dominante, além de conduzir néo apenas & perda de importancia dos conceitos de “Pais” e “Nagao”, mas também ao comprometimento da nog&io de Estado, nos coloca diante do desafio, enunciado por Dahrendorf,?* da quadratura do circulo entre crescimento econémico (criagio de riqueza), socie- dade civil (coesao social) ¢ liberdade politica: como harmonizar esses valores no clima do mercado global? E mais: a globalizacdo ameaga a sociedade civil, na medida em que:” (i) esté associada a novos tipos de exclusdo social, gerando um subproletariado (underclass), em parte constituido por mar- ginalizados em funcao da raga, nacionalidade, religido ou outro sinal distintivo; (ii) instala uma continua e crescente competicao entre os individuos; (iii) conduz & destruigao do servico piblico (- destruicdo do espaco publico e declinio dos valores do servigo por ele veiculados). Enfim, a globalizacio, na fuso de competi¢ao global e de desintegracao social, compromete a liberdade.’® 74, "Para uma nova compreensio da crise”, in Pés-Neoliberalismo, p. 53. 75. O Direito Posto e 0 Direito Pressuposto, cit. p. 81, 76. Quadrare il Cerchio, 44 ed., pp. 20-21 77..CE. Ralf Dahrendorf, ob. cit, pp. 31 ss. 78. Idem, p. 45. 50 (O.ORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 Por fim, a alusio As esperancas de um globalismo no sentido de uso eficiente dos recursos mundiais é de uma hipocrisia mo- numental. O nosso futuro mais imediato lastimavelmente pode ter sido antevisto por Pierre Salama,” na afirmactio de que, nos Pafses como a Argentina, o México e 0 Brasil, as modalidades de integraco ao comércio mundial supdem uma volta aos antigos modelos baseados na exportacdo de recursos naturais, ainda que esses Paises, em maior ou menor tamanho, sejam economias in- dustriais j4 quase totalmente urbanizadas; isso conduzira & que- bra do aparato industrial e & geracdo de alto grau de desemprego. 15a. Os fatos se sucedem, em nosso tempo, com enorme ve- locidade, reclamando a continua atualizacao de quaisquer textos que tratem da relaco entre Estado e Economia. Ainda me pare- cem oportunas, ndo obstante, as notas que reproduzo, da edigio anterior, sobre a crise que desde os tiltimos anos afeta os merca- dos, estendendo seus efeitos pelo mundo todo e assinalando 0 declinio do neoliberalismo. Altas taxas de desemprego, a crescente inseguranca ¢ preca- riedade das novas formas de ocupacio, a exclusao social, deixam suas marcas em todos 0s cantos, inclusive na Europa. A econo- mia capitalista apresenta (i) taxas de crescimento desanimadoras ¢ (ii) taxas de investimento empresarial extremamente reduzidas. ‘Apenas os mercados financeiros prosperam, aproveitando-se ainda dos efeitos da desregulamentacao, que, como observa Luiz Gonzaga de Mello Belluzz0, permitiram, mercé da fantéstica mobilidade de capitais entre diferentes pracas, uma crescente ve- locidade de inovacao financeira, (i) sustentando elevadas taxas de valorizacao dos ativos e (ii) facilitando as fusdes e aquisicSes de empresas em todos os setores. © movimento de centralizagao do capital produtive em es- cala mundial d4 lugar a duas consequéncias relevantes: (i) surtos intensos de reorganizagio e reducao de custos, com efeitos nega- tivos sobre o emprego, ¢ (ii) a redugao do volume de agées nos mercados, ensejando novas ondas de “inflacao de ativos”. 79. Ob. cit, p.52. BO. “Prefacio” da obra Crise e Trabalho no Brasil. Para a exposiglo que segue valho-me reiteradamente do texto desse preficio de Belluzzo. ESTADO E ECONOMIA a Com esse panorama contrasta a “era dourada” dos trinta anos posteriores 4 II Guerra, quando vivemos um tempo mais feliz, caracterizado por altas taxas de crescimento do produto e incrementos da produtividade, elevagao dos salarios reais, redu- zidas taxas de desemprego, ampliagao do consumo de massa e criagao de abrangentes sistemas de protecao ao bem-estar dos tra- balhadores e dos cidadaos. As criticas dos “reformistas-conservadores” a essa etapa do capitalismo so bem conhecidas, conduzindo, todas elas, A per- versidade social. © Estado é transformado no grande vilao e a receita passada € a seguinte: (i) desregulamentagao dos mercados domésticos ¢ eliminagao das barreiras a entrada e saida de capital-dinheiro, de modo que a taxa de juros possa exprimir, sem distorgoes, a ofer- ta e demanda de “poupanga” nos espacos integrados da financa mundial; (ii) para 0s mercados de bens, submissao das empresas & concorréncia global, eliminando-se os resquicios do protecio- nismo e de quaisquer politicas deliberadas de fomento; (iii) para ‘08 mercados de trabalho, flexibilizacao ¢ remocao das cléusulas sociais. A receita efetivamente conduziu A superacao dos regimes in- flacionarios e ao desmantelamento progressivo das instituicdes e formas de coordenacao da “era keynesiana”, em especial de modo a enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores. Quanto ao crescimento, ao emprego e & equidade o resultado ¢ francamente negativo. As taxas de crescimento sio inferiores as do periodo “inter- vencionista”. Além disso, o capitalismo falha escandalosamente em sua capacidade de gerar empregos, de oferecer seguranca aos que consegue empregar e de alentar os empregados com as pers- pectivas de melhores salarios. Aumentam significativamente as desigualdades, tanto nas sociedades desenvolvidas quanto nas regides periféricas. As taxas de desemprego alcangam 0 percentual de 10% da populagio economicamente ativa na Comunidade Europeia. Estudo mostra que nos diltimos anos, na Franga, a soma dos que se encontram em situacao precéria (3 milhOes) e dos que so obrigacos 2 (OORDEM ECONOMICA NA CONSTITUIGAO DE 1988 a aceitar tempo parcial (3,2 milhGes) chega ao dobro da cifra estima- da para os oficialmente desempregadas (3 milhdes). Desempregados, “precarizados” e trabalhadores em tempo parcial representam cerca de 37,5% da populagéo economicamente ativa na Franga, A observagao de Ignacio Ramonet é veraz: “Cada epidemia, todos os historiadores o confirmam, é ndo apenas causa, mas tam- bém consequéncia de um momento hist6rico preciso”. Nao € por acaso que a epidemia de febre aftosa que arrasa os rebanhos ingleses se manifestou em um Pais que ha vinte anos serve de laboratério do ultraliberalismo. A Inglaterra esté hoje imergida em uma crise sem tamanho: “vaca-louca”, inundagies, regides bloqueadas sob a neve, sem eletricidade, catdstrofes fer- rovidrias ete. As decisdes que permitiram esses dramas foram tomadas, muito conscientemente, inspiradas pelo neoliberalismo. A epidemia de febre aftosa é devida a busca de rentabilida- de, que levou os operadores a economizar custos, sacrificando a seguranga em favor de suas margens de lucro. Em nome da desregulamentagio, os governos de Margaret ‘Thatcher mandaram as favas o principio da precaugio e chegaram a0 ponto de destruir inteiramente o servigo nacional de Veterinaria. Além disso, outra decisao nefasta foi adotada em 1991: para economizar 1 bilhdo de euros e favorecer as exportagées, proibiu- -se a vacinagao de animais. Essas medidas, proprias de uma agricultura produtivista, é que criaram as condigdes da peste, contra a qual somente se pode lutar conforme os métodos arcaicos aplicados desde a Antiguida- de —ou seja, mediante a instauracio de rigoroso protecionismo. ‘Também o desespero da competicio, a corrida desenfreada ao maior beneffcio e ao mais barato, encontram-se na origem da doenga da “vaca-louca”. Diz o Le Monde de 13.3.2001 que todas as pesquisas revelam um liame entre certas modificagdes do processo de fabricagio de farinhas animais inglesas e o surgimento do prion, particula infec- ciosa proteica, de natureza e método de agao malconhecidos, que seria 0 agente de encefalopatias espongiformes. 81. Le Monde Diplomatique, abril/2001, ESTADO E ECONOMIA 5 Em 1981 os fabricantes briténicos suprimiram uma etapa do processo de fabricacao dessas farinhas: eles reduziram a tempera- tura (economia de energia) e suprimiram os solventes (economia de matérias-primas). Essas duas modificagdes impedem a erradi- cagao do prion e induzem a sua expansao. Uma légica idéntica a essa conduziu os governos britanicos, desde 1979, a multiplicar as privatizacdes, com 0 qué as estradas de ferro foram vendidas ao setor privado a partir de 1996. Desde entdo os acidentes se sucederam, com a morte de 56 pessoas ¢ mais de 730 feridos... A midia acusa os novos operadores das fer- rovias de sacrificar a seguranca a fim de engordar seus hucros, em beneficio de seus acionistas. total fracasso dessas privatizagdes torna-se evidente no co- lapso da Railtrack, apelidada de Failtrack, que, privatizada, faliu, sendo agora, no segundo semestre de 2001, “renacionalizada”” Por isso mesmo o governo britdnico teria ja afastado definitiva- mente de seus planos a privatizagio do ““Metr6” de Londres. A Inglaterra apresenta 0s mais violentos contrastes sociais da Europa. No que tange & assisténcia médica, uma pesquisa da Orga- nizagao Mundial da Satide coloca o Reino Unido na derradeira posicdo na Unido Europeia. As desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres au- mentaram. Mais de 5 milhdes de briténicos se encontram em es: tado de pobreza absoluta. Quase a metade das mulheres sio as- salariadas a tempo parcial. A Inglaterra segundo o Le Monde de 28.9.2000 e o L’Expansion Paris de 5.3.2001 — tem maior nimero de criangas pobres de todos os Pafses industrializados... (leia-se “"Paises industrializados do hemisfério Norte”). 15b. Examinei, em meu O Direito Posto eo Direito Pressuposto™ 20 qual remeto 0 leitor — 0 fendmeno da globalizagio. Além das observacées ali produzidas, algumas das quais — especialmente no que concerne ao mercado ~ reiteradas neste livro, permito-me anotar 0 quanto segue. A globalizacao é um fato histérico; o neoliberalismo, uma ideologia. 82. Bted,, 2011, pp. 265 e ss.

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