You are on page 1of 15
DA FESTA MEDIEVAL A FESTA CARNAVALESCA: um olhar comparativo Fabio Henrique Monteiro Silva (UEMA)' 1 INTRODUGAO Que estranha influéncia exerce 0 carnaval no espirito humano? O que faz com que homens e mulheres de pouca condi¢ao social e muitos problemas econémicos saiam as ruas para cantar e dancar? A sociologia, tampouco a historia, consegue explicar tais mudangas de comportamen- to. Nem a psicologia explica por que no periodo momesco os austeros se tornam pessoas brincalhonas, nem o racionalismo consegue explicar a esséncia de uma festa que encontrou na terra Brasil o grande palco para sua exposi¢ao. Assim, Baco e Momo parecem se encontrar em Sao Luis, mantendo-se na multidao anénima ao som dos blocos que desfilam pelas pracas, onde o samba - ora devagar, ora mais acelerado - levava ao meu coragao pedacos da minha infancia contagiados por uma imensa alegria espontanea. A festa carnavalesca, ao adquirir subsidios de sociabilidade e de tro- cas cullurais entre seus participantes, pode proporcionar um entendimen- to da rede de ligacées e revelar os comportamentos da sociedade daquele momento. Na esséncia do festejo, o individuo torna-se foliao e apresenta a possibilidade de entendimento dos seus sentimentos, frustragGes, negacdes e impedimentos que envolvem o mundo em que vive. Meu mundo faz parte dessa multiplicidade de emogées Em 1979, a escola de samba Flor do Samba, ao apresentar seu en- redo, “Haja Deus’, de Chico da Ladeira, afirmara que 0 carnaval “é a festa maior, tem colombina 6, tem dominé, e, no jogo do baralho, quem se es- ‘ Doutorando em Historia Comparada na UFRJ. Docente do Departamento de Histéria e Geografia da Universidade Estadual do Maranhio. —239— Fasro Henrique MonTerro Silva panta ¢ 0 fofao, ol la, chegou cruz diabo com sua lanca na mao’. De fato. como diz a letra do samba, a festa carnavalesca no Brasil é considerada a festa de maior expressao popular apesar das controvérsias acerca da origem desse folguedo. 2 AS FESTAS NA MEDIEVALIDADE Assim como na Antiguidade, na Idade Média as festas comegavam pelo simples divertimento, muitas vezes reflexos do ajuntamento de pes- soas que se reuniam nos finais do dia e, de forma espontanea, davam uma nova dimensao de sociabilidade ao ritmo da vida cotidiana. Isso torna cvi- dente que o processo de passagem do mundo antigo para o medieval nao estava atravessado por fronteiras a0 modus renascentista, que teimou em ver a medievalidade como um hiato entre o mundo antigo e moderno Na verdade a festa na medievalidade foi uma das formas de continui- dade e até mesmo recuperacao de algumas antiguissimas formas pagas que, ao serem apropriada pela cristandade passa a apresentar uma nova tecitura, agora pautada no culto aos santos e aos herdis da fé. Desse modo nao ha nada de surpreendente no fato de “nas grandes datas do ano, determinadas festas cristas se inscreverem diretamente numa tradicao muito anterior a evangelizacao do ocidente” (HEERS, 1983, p. 24) Com um forte apelo cristao, as festas ao interromper a lide diaria presenteavam os seus participes com jogos, competicées cortejos e procis- sdes, bem como algumas lendas que se faziam presentes na mentalidade do homem medieval. No entanto, nenhuma instituicdo conseguiu perceber 0 quanto as festas eram importantes, e, apesar de, quase todas terem certa associagao com 0 mundo pagio, o proceso de cristianizacao e organizagao da mesma ficava a carga do clero catélico. Alem da igreja a nobreza utilizava a festa como elemento de demons- tracdo de poder, uma vez que, o prestigio do nobre era contabilizado pelo numero de convidados que o mesmo tinha em sua festa. Assim até mesmo. a entrada do rei servia de pretexto para comemoragio. Pois nao havia “en- trada real ou principesca que nao provoque uma sucessao de festas e inspire poetas, pintores e bordados” (HEERS, 1883, p. 13) - 240 - Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA Nao foi por acaso que Maquiavel. um dos grandes expoentes do mundo moderno, afirmara que cabia ao principe oferecer ao povo festas jogos em determinados momentos do ano. Assim como a festa servia como uma espécie de termémetro para medir a importancia do rei ou principe que a promovia, era também utilizada para demonstrar a importancia das cidades pois; ‘As multidées acorrem por vezes de longe, 0 que explica a ascen- déncia da cidade sobre as povoacies dos arredores. Em Inglaterra, no Cambridgeshire, ay despesas referentes av jogo de Sao Jorge € do Dragao foram paartilhadas pela vila Bassingbourn e por vinte e sete aldeiasdas redondezas que se viram mais ou menos obrigadas a contribuir com uma espécie de imposto. As taxas para as festas substituiam ou juntavam-se as que ja tinham sido recebidas para fortificac6es coletivas, e assim 0 camponés pagava a sua parte tanto para garantir a sua protesao como para assistir ao espetaculo. (HE- ERS, 1983, p. 20) Certamente que havia 0 cuidado de nao deixar que esses divertimen- tos populares se tornassem uma ameaca para a ordem estabelecida, uma vez que na feitura dos festejos o estrangeiro se fazia presente, as aproxima- Ges entre homens e mulheres eram mais facilitadas, sem falar nas bebidas que muitas vezes eram distribuidas para homens e mulheres, bem como as fogueiras que serviam para iluminar a felicidade dos brincantes, que por qualquer descuido poderia causar um incéndio. No entanto, assim como as festas mobilizava grande parcela da populagdo a mesma era utilizada para garantir prestigio e manter a ordem estabelecida E nesse contexto de necessidade de manutengao da ordem, que uma série de festas foram praticadas no ocidente medieval, e que, com o passar dos anos a Igreja percebeu que muitas delas estavam perdendo, ou mesmo nunca tiveram, o status de evangelizacao. Nesse caso era preciso organizar, alem dos calendarios festivos, 0 que deveria ser festa crista e 0 que deveria ser festa laica, pois muitas vezes, assim como a igreja se apropriou de cultos pagaos, como a festa de maio, transformando-a em festa do més mariano, os padres participavam de festas laicas. Por isso que = 241- Fasro Henrique MonTerro Silva Por toda a Idade Media, pelo menos desde o século XIII, as autorida- des e os sinodos proibiram os eclesidsticos de participarem e mesmo assistirem as dangas dos leigos: Sinodo de Paris sob a instigacao do bispo Eudes Sully; de Worcester em 1240; de Rudo em 1245 ( como 0s eclesisticos, os abades ¢ os parocos devem servir de exemplos aos leigos, proibindo-lhes as lutas e as dangas, sob pena de severos castigos) de Orledes de 1314; de Langres em 1404 (nem saltar nem dangar. (HEERS, 1983, p. 71) Mesmo sabendo que a ceriménia era um momento de encontro com o Senhor, e que muitas vezes era natural o clero se exaltar, a Igreja proibe a danga, uma vez que por varias vezes 0 que deveria ser um culto cris- tao transformava-se em ceriménia carnavalizada. Desse modo, as festas no mundo medieval eram, assim como hoje, um dos principais, se nao 0 maior, canal de expressao das camadas menos abastecidas. O que nao posso deixar de salientar é que a Idade Media foi um peri- odo de extrema importancia econémica, politica social e também cultural. E nesse caso, as festas foram o substrato para a percep¢io das transfor- maces que ocorreram no mundo ocidental medieval. Em outras palavras, a festa ao sociabilizar os homens e mulheres da Idade Media, eram um dos elementos de extrema importancia para a sua humanizagao. Assim 0 festejo, as mascaradas, os jogos e as lendas deram uma nova dimensao de sociabilidade ao homem medieval, mesmo que essa dimensao possa ser encarada como uma continuidade do mundo classico. Nessa perspectiva, varias festas se fizeram presentes no mundo me- dieval, e que, apesar do carnaval ser a festa mais tradicional, aquela que sobrevive até hoje © tem a sua normatizagao na feitura do medievo, esse processo de organizacdo, ou melhor, datacao da festa da carne, deve-se ao fato de que ela pode ser caracterizada como uma jungao de varias outras festas que se praticavam na medievalidade. O que dizer das festas dos loucos, da festa das criangas, dos herdis das confrarias, das sociedades secretas, das companhias loucas, a festa do burro, e as festas religiosas? Todas essas festas foram preservadas no mun- do medieval. Eis ai mais uma elaboragio da cultura popular que o homem auedieval nus dé © que ainda precisa ser aprofundada. ~ 242 - Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA Se conhecermos com bastante clareza a festa carnavalesca, 0 mundo medieval tem extrema importancia nisso. No entanto, nesses mil anos de elaboracao poética, de trovadores poetas e compositores, ainda existe uma expressao de dizibilidade poética musicada que deve ser explorada. A festa na atualidade, seja laica ou litargica, tem um forte apelo me- dieval, pois foi o homem da Idade Média que a conservou, foi este que a normatizou e nos possibilitou sermos conhecidos como o pais do carnaval. Se o carnaval europeu passa por um processo de aburguesamento com seus bailes de mascaras. foi na Idade Média que essas mascaradas ganharam ex- pressdo, afinal, a mascara no mundo antigo tinha uma maior ligagio com a religiosidade. E no ocidente medieval que o travestimento, a carnavalizacao, 0 mascaramento € a inversio vao ganhar proporgo, é na medievalidade que o homem se torna rei, e que, na perspectiva de inversao dos papeis, con- segue driblar as dores do seu cotidiano de servidao. Até mesmo 0 clero se mascarava, afinal proibiram “aos eclesidsticos as mascaradas e outros diver- timentos do mesmo género que desonram a Igreja” (HEERS, 1983, p. 22) Bakhtin (1996) mostra como a mascara consolida uma ordem de inversao, serve para inspirar 0 exotismo, 0 riso o bufao. E esta ainda con- tinua em nossa sociedade encontrando no carnaval 0 seu espaco de maior expresso. E nesse periodo de folia momesca, que homens e mulheres mas- carados saem das suas casas, assim como 0 camponés 0 fazia no periodo medieval, para brincar 0 carnaval. No entanto é no mundo medieval que, pela primeira vez, “por volta do século XII, ouviremos falar de uma curiosa batalha que colocaria em campos opostos dois lutadores incansaveis” (FERREIRA, 2004, p. 46). Um seria representado por um gordo bonachao, chamado Senhor Carnaval e 0 outro a magra e triste Quaresma. Esses dois personagens que muitas vezes eram representados no teatro medieval se enfrentaram durante anos no perfodo conhecido como adeus a carne. Segundo Ferreira (2004), foi Guido Faba no século XII que pela pri- meira vez escreveu um texto sobre a luta entre Carnaval e Quaresma, que com 0 passar dos séculos tornou-se uma das atragées teatrais no periodo carnavalesco medieval. Assim como se tornou uma das atragdes do pe- riodo momesco medieval, a representacio do Carnaval passou por uma = 243 - Fasro Henrique MonTerro Silva serie de mutaces, em outras palavras, assim como a Quaresma deixa de ser representada como um chefe feudal até se transformar em uma mulher magra, o senhor carnaval passa a ser visto como simbolo de excessos, € 0 mais interessante, nas batalhas entre o senhor carnaval e a dona Quaresma, restava ao primeiro apenas 0 consolo da certeza do retorno no ano seguin- te, pois sempre saia derrotado na batalha. Alem das representagées entre Quaresma e Carnaval, o mundo me- dieval nos deixa como heranga as chamadas Sociedades Alegres compostas por jovens que nesse periodo organizavam as disputas de galos “na qual. depois de uma série de jogos, o menino vencedor era consagrado como 0 rei dos galos” (FERREIRA, 2004, p. 36). Se fizerem presentes também na festa momesca um tipo de socieda- de carnavalesca chamada de charivaris que, utilizava o carnaval para de- nunciar determinadas situagdes que nio eram consideradas normais pela sociedade da época. De acordo com Ferreira “um de seus alvos preferidos eram as vitivas e os casamentos realizados entre pares considerados despro- porcionais entre si” (FERREIRA, 2004, p. 37) Essas apresentag6es, geralmente feita na casa dos “escolhidos” cau- savam certo descontentamento em parte da sociedade e principalmente da Igreja Catélica, 0 que fez com que muitas vezes os governos da cidade, percebendo a importancia da necessidade do divertimento, mesmo sem 0 apoio da Igreja, apoiassem determinadas sociedades. Desse modo, nao me furto em afirma que, 0 apoio da prefeitura de So Luis no que diz respeito & organizagio da festa, bem como do governo do Estado, pode, nesse caso, ser considerado como mais uma das continui- dades do mundo medieval. Em outras palavras, assim como os governos das cidades apoiavam as sociedades carnavalescas, atualmente, 0 executivo ludovicense e maranhense tem plena consciéncia da necessidade de apoio ao festejo da carne. Assim No século XIV, na Suica, jd se tem noticia de cortejos carnavalescos das corporagoes de oficios, como a dos acougueiros ou a os tonelei- ros que desfilavam com grandes mascaras representando seu grupo profissional, Na Alemanha, em 1475, é incluido pela primeira vez, no desfile realizado nos dias anteriores & Quaresma, um carro puxa- do sobre rodas. Conhecido pelo nome genérico de O Inferno, essa ~244- Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA alegoria geralmente representava um castelo, um jardim do amor, ou seres mitolégicos como um basilico, um dragio ou um gigante fingindo devorar criangas. Em 1497, j se tem noticias de uma festa na cidade francesa de Mertz onde acontece, entre outras coisas, um casamento de gigantes, representados por bonecos colossais feitos especialmente para a ocasiao, que desfilam por todo o centro urbano (FERREIRA, 2004, p. 38) O relato acima serve apenas para comprovar 0 quao a medievali- dade se faz presente na maior festa popular brasileira. Certamente tenho consciéncia de que, até chegar ao Brasil, essas manifestacdes passaram por uma serie de transformagées. No entanto, mesmo com a singularidade do nosso modo de brincar o carnaval, muito do que foi aperfeigoado na festa carnavalesca brasileira, tem como raiz 0 mundo medieval, pois foi nele que a Igreja normatizou a festa, por isso hoje ela acontece antes da Quaresma, foi na medievalidade que a cidade percebeu a dimensao da importancia da necessidade de organizar o festejo. Foi nesse periodo que comecou a apare- cer os primeiros carros aleg6ricos carnavalescos, os bonecos gigantes e uma serie de outras manifestacdes que se fazem presentes na nossa terra Brasil. E para findar, foi no Mundo Medieval que o nome da rua Via Lata em Roma, foi mudada para Via Del Corso, que significa rua da corrida. O que isso representa para o carnaval atual? Faco das minhas as palavras de Ferreira: “tal denominacio persiste ate hoje em Roma e acabou por qualifi- car uma famosa brincadeira do século XX no Brasil, 0 corso” (FERREIRA, 2004, p. 39). Assim, uma festa que acontecia ao pé do monte Testacio desde © século XIII, serviu de inspiracao para os passeios nas ruas e avenidas do Brasil a fora, ou seja, os famosos desfiles dos corsos. 3 AS FESTAS NO PA{S DO CARNAVAL, A partir de uma concep¢ao durkheimiana, a festa pode apresentar como caracteristicas comuns a superagao da distancia entre os individuos, bem como a producao de um estado de efervescéncia e a transgressio de normas coletivas. Ao passo que nessa configura¢4o 0 homem encontra na festa a cnergia social para dela absorver 0 necessario, para que possa atuar na vida séria, sem revolta e contrariedade até a proxima festa. Esse foi o = 245 - Fasro Henrique MonTerro Silva pressuposto que subsidiou meu olhar sobre o carnaval: vejo-me na festa carnavalesca quando ainda menino, dali advém as memérias que perfazem minhas concep¢ées atuais - sou do carnaval, vivo o carnaval, resgato nos recénditos da minha meméria uma historiografia de vida, de lembrangas subjacentes ¢ inesqueciveis. Amaral (1998) aponta dois elementos negativos acerca dos enfoques em relagao a festa. No primeiro momento, embora apresente um amplo cabedal de conhecimento de obras que retratam a festividade, nao da muita énfase 4 maioria dos atores que a produzem. nao levando em consideracio 0 processo de construcao do evento festivo e as razGes para que este acon- teca. Outro aspecto nado menos significativo é a pouca presenca de reflexes tedricas sobre as festas, preocupando-se apenas com algumas descrigées. Se Durkheim (1989) compreende a festa como um evento exclusi- vamente religioso e sacramental, Duvignaud (1983) considera festa como um ato subversivo que desconfigura a sociedade, transformando-a em um caos. Jd para Bakhtin (1986) a festa pode ser caracterizada como um evento descontraido, divertido, hilariante e até mesmo grotesco. E para Canclini (1983) a festa esta presente na ordem estabelecida, é um ritual que trans- cende a coercao. Portanto, compartilho com esses olhares e defino que a festa carnavalesca ludovicense deve ser compreendida como um rito no qual deve ser analisado muito além do congracamento, da alegria e do pra- zer. Caillois apud Amaral afirma que: [...] Em sua forma plena [..], a festa deve ser definida como um pa- roxismo da sociedade ideal, que ela purifica e que ela renova por sua vez. Ela nao é seu ponto culminante apenas do ponto de vista econd- mico. E 0 instante da circulacdo de riquezas, o das trocas mais consi deraveis, o da distribuicao prestigiosa das riquezas acumuladas. Ela aparece como o fenémeno total que manifesta a gléria da coletivi- dade e a revigoragéo do ser: 0 grupo se rejubila pelos nascimentos ocorridos, que provam sua prosperidade e asseguram seu porvir. Ele recebe no seio, novos membros pela iniciacao que funda seu vigor. Ele toma consciéncia de seus mortos e lhes afirma solenemente sua fidelidade. E a0 mesmo tempo a ocasido em que, nas sociedades hierarquizadas se aproximam e confraternizam as diferentes classes sociais, e onde, nas sociedades de fratrias, os grupos complementa- res e antagonistas se confundem, atestam sua solidariedade e fazem_ ~ 246 - Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA colaborar com a obra da criagdo os principios misticos que eles en- carnam e que, acredita-se, ordinariamente, nao devem se juntar [ (AMARAL, 1998, p. 54) Nessa perspectiva, a festa ultrapassa 0 cotidiano, acontece mesmo de modo extra cotidiano e é ritualizada nos imperativos que permitem iden- tificd-la. Assim, vejo a festa carnavalesca nos meus fazeres cotidianos, nas brincadeiras de outrora, nos passeios de maos dadas com minha mie; vejo meu passado e me encontro no meu presente. A ruptura do vazio d’alma se da no toque entre o passado e 0 presente, no resgate daquilo que se foi, do que se é e do legado que deixarei como ator de uma histéria na qual a festa sempre esteve constante - nao apenas a festa no seu estado latente, mas a festa do proprio sentido de viver. Em relagao ao Brasil, as festas, desde o periodo colonizador, servi- ram como substrato de estabelecimento de um contrato social, 4 medida que “o exemplo das festas brasileiras parece nos levar de certa maneira por estes caminhos, pois ela se consolida, no periodo colonial, quando foi ne- cessdrio estabelecer 0 contrato social brasileiro”. (AMARAL, 1998, p. 46) No entanto, a festa a brasileira - mesmo nessa perspectiva de con- trato social — porta-se como um elemento externo, pois ela é transplantada de Portugal para 0 Novo Mundo’, ocasiao em que essas festividades eram marcadas por um profundo sentimento de medievalidade. Tal fato permi- tiu a operacionalizagao de um didlogo mediador entre a natureza local do indigena e o portugués, tendo a festa o poder de estabelecer uma linguagem possivel de entendimento. Por isso, talvez a principal tarefa da festa no Bra- sil colonial tenha sido a de estahelecer uma comunicacao entre as culturas ea consolidagao do chamado contrato social que estava sendo estabelecido, caracterizado por uma igualdade mitica que contradiz.a realidade presente no cotidiano. Nesse sentido, Del Priore (1994) ao estudar as festas como elemento de sociabilidade no Brasil Colonial e ao buscar compreender o sentido des- sas festividades, além de mostrar a importancia das muitas festas que vio sendo realizadas na América Portuguesa, afirma que as festas podem ser ? Novo Mundo é uma expresso que serve para conceituar os territérios conquistados pelos paises europeus nos séculos XV e XVI. 247 - Fasro Henrique MonTerro Silva agrupadas em pelo menos duas categorias: a festa promovida pelo Estado e Igreja de um lado, ea festa do povo de outro. Para demonstrar a constancia dos festejos no Brasil Colonial, festejos esses de cardter religioso, Del Priore (1994) lanca mao de um didlogo com a literatura dos viajantes, na qual muitos ficaram impressionados com a organizagao das festividades. Tais festividades, mesmo sendo de carater re- ligioso, nao deixavam de apresentar caracteristicas pagas, visto que estavam_ presentes pessoas de toda raga, fantasiadas dos mais diversos personagens, ricamente vestidos e adornados. Camara Cascudo (1984) afirma que as marcas das transformacdes impostas pela Igreja foram de facil diagndstico por muito tempo e cita como exemplo a Festa do Divino, as Janeiras e 0 més de Maria - que se transformou em um elemento de substituigéo das festas de Afrodite, nas quais os portugueses penduravam giestas* a porta para simbolizar a fartura e realizar 0 culto de reflorescimento da terra. A parceria entre Igreja e Estado no processo de colonizagio do Bra- sil contribuiu para que as festas se tornassem, simultaneamente, sagrada e profana. Assim: “o rei e a religido, numa alianga colonizadora, estendiam seu manto protetor e repressor sobre as comunidades, manto este que ape- nas por ocasiao das festividades coloria-se com exuberancia’. (DEL PRIO- RE, 1994, p.15) Tendo uma configuragao que ¢ sentida a partir de uma necessidade de sociabilidade dentro da colénia, a festa também se caracteriza por sa- tisfazer essa necessidade metropolitana. A festa trazia, assim, como subs- trato a amenizagao das tens6es sociais que eram vividas no Brasil colonial, formando-se e consolidando-se justamente em um novo mundo no qual o que vai caracterizar esse aspecto de sociabilidade é justamente a diferenga. Esse intercambio na festa é perceptivel na medida em que: [...] Havia varios sentidos nas fungées aparentemente irrelevantes da festa, dando persisténcia a varias formas de pensar, de ver e de sentir. > Planta arbustiva da familia das leguminosas com flores amarelas de que se extrai tintura, origindria do hemistério norte cultivada como ornamental. DICIONARIO Enciclopédico Ilustrado Veja Larouse. Sao Paulo: Editora Abril, 2006, p. 1195. 248 - Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA ‘A mistura entre o sacro ¢ o profano valia para diminuir e caricactu- rizar 0 pagio, o inculto, o diferente do europeu branco e civilizado. Os mitos pagios eram assim esvaziados e recuperados para serem vivenciados exclusivamente como parte da festa [...]. (DEL PRIORE, 1994, p. 49) Certamente o sagrado e o profano estao presentes nas festas coloniais brasileiras, o que até mesmo dificulta uma classificagao do que deveria, ou seria, festa sagrada ou profana. Como exemplificacao, basta observar as fes- tas natalinas, ou até mesmo do calendario cristo que vai se estabelecendo, para se perceber que mesmo as festas que deveriam ter uma caracteristica religiosa acabavam por desencadear no riso e nas dangas. Isso contribuiu para que a propria manifestagao dos pretos e indios fosse tolerada na coloniza¢éo uma vez que, apesar de naquele determinado periodo serem consideradas inferiores, as festas eram aceitas mesmo nos festejos religiosos Assim, a festa acaba tomando uma configuracao de quebra de regras instituidas pela sociedade, j4 que no momento das festividades todos es- tavam presentes. As Entradas, ou seja, as festas patrocinadas pelo Estado, as festas religiosas e até mesmo os enterros, portam-se como elementos exemplificadores dessa quebra de enrijecimento social, mesmo ou tao so- mente de forma proviséria, dentro dessa configuracao do Brasil Colonial. Com isso, L...] O calendario das festas coloniais procurava moldar a vida e os interesses das populagées a alianga entre Igreja e Estado, interferindo nas formas de sociabilidade e de economia dos colonos. Contudo, ao mesmo tempo em que era imposta, a festa criava, ou nao conseguia evitar, brechas que ensejavam a transformagao, a resisténcia, drama- tizagées piiblicas de idéias e utopias dos grupos mais diversas. As festas, no Brasil, desde o periodo colonial, constituiram importantes mediagées entre homens e natureza, entre eles e seus deuses, entre povo e Estado com seus representantes [...] (AMARAL, 1998, p. 80) Apesar de a festa no Brasil colonial ser patrocinada pelo Estado, esta também se configurava como espago de transgressao observada no préprio comportamento daqueles que eram “convidados” para participar da festi- vidade. Com suas mascaras, seus risos e suas roupas preciosas, os pressu- = 249 - Fasro Henrique MonTerro Silva postos “convidados” davam um componente a mais na festividade. mesmo que, no periodo pré-festa, fosse feito um grande esforco para que a popu- lagdo participasse do evento. A festa, assim, também se constituiu como um espa¢o de luta pelo poder, uma vez que tanto a Igreja quanto o Estado atestavam sua importancia conforme o numero de participantes da festa, bem como a prépria forma de organizacao do arauto. O processo de sociabilidade vai se tornando mais complexo conco- mitantemente com o crescimento populacional. Assim, a populagao, que antes era “convocada” pelas instituicdes Igreja e Estado a participar da festa, comega a construir seus espacos de festividades, muitas vezes configuran- do-se como festa dentro da festa. Em outras palavras, a populacao apro- veitava-se das festividades oficiais para, a partir de tais folguedos, comecar a festejar & sua maneira, reflexo do processo de apropriacao de festas que antes eram patrocinadas pelas instituigdes oficiais. Assim, so percebidas nas festas das quais participei, que havia uma heterogeneidade, mesmo que © momento fosse tinico ~ 0 periodo carnavalesco. Amaral (1998) afirma que as festas iriam “acontecendo nas ruas no contexto de exaltagao e alegria de gente de todo tipo reunida, as festas, co- mecam a ganhar, aos poucos, alguma independéncia da festa oficial”, Pro- cesso esse que, segundo a referida autora, desemboca no século XX, quando as festas ja estariam em novas mios dela se apoderando e transformando em objeto de aco. Esse processo refletiu em alguns olhares que temem em significar a festividade brasileira como um dos suportes do atraso no qual o Brasil est4 fadado a permanecer. Certamente esse é um olhar que despreza a festa como elemento de sociabilidade e, até mesmo, como espaco de trocas culturais, permanéncias e transgressao e, o mais importante, a festa, ou melhor, as festas no Brasil, desde o periodo colonial, devem ser vistas também como um lugar onde se podem buscar as primeiras manifestagdes do ser, do fazer e do sentir-se brasileiro. £ na festa, no riso, junto com o bilontra, que a sociabilidade vai sendo construida - nado como um espago de igualdade, mas um espaco de respeito, até mesmo um espaco de aceitagao por parte das instituigdes oficiais representadas pelo Estado e Igreja, visto que essas instituigdes per- cebem que a festa é sim um elemento de representagao da brasilidade pe- culiar da populacao. - 250 - Da Festa Meptevat A Festa CARNAVALESCA No caso especifico de Sao Luis, resgato a assertiva de que o carnaval & uma festividade em particular em que também foi elaborado um cons- tructo mitico, ou seja, o de que no passado teve o terceiro melhor carnaval do Brasil. Em relagao as festas religiosas, essas eram promovidas e controladas pela Camara de Sao Luis, sendo que destas festas consideradas oficiais ¢ realizadas pela Camara, destacava-se, além da procissao de Corpus Christi, as festas de Sao Sebastido (LISBOA, s/d, p. 35) a do Anjo Custédio, a da Nossa Senhora da Vitoria e a da Restauracdo de Portugal em homenagem a D. Joao VI. Festividades puiblicas ordinarias e regulares eram compostas principalmente por missas cantadas e sermGes, sendo a procisséo uma pe- culiaridade da festa corpo-cristiana. Essas festividades serviam para legitimar a hierarquia social e a cul- tura branco-européia aos nativos e, posteriormente aos negros, a agao re- pressora era intensificada, restringindo ou proibindo suas praticas festivo- -culturais. Assim, “Em vereacio e 03 de novembro de 1686, deliberou-se que ninguém consentisse em seus quintais pareces do gentio da terra, e bai- les de tapanhunos, salvo em tempo de festa e de dia’, (LISBOA, s/d, p. 203) Nesse sentido, percebe-se o interesse por tras da festa jé que a ma- triz portuguesa, legitimada por meio da imposicao, utiliza a festa como um produto de facil manuseio para fazer valer seus desejos. Apesar de ser um exemplo que enfoca um perfodo e um elemento diferenciado dentro da festa, no caso os festejos religiosos, esse viés serve para salientar a atuacao do Estado em relagio aos festejos, sejam estes de caracteristica religiosa ou nao. 4 CONSIDERACOES FINAIS O carnaval, por ser um dos elementos definidores da nossa esséncia de brasilidade é um dos temas de grande relevancia para a hist6ria. Por isso, © referido trabalho teve como preacupagao tentar desmistificar o pré-con- ceito ainda existente sobre a medievalidade. Para expurgarmos tal premissa preconceituosa, utilizamos as festas, em especial a carnavalesca, no sentido de mostrar como uma manifestagao tao presente na vida do brasileiro pode ele Fasro Henrique MonTerro Silva servir de substrato para a discussao acerca da construcio renascentista a respeito da Idade Média. A cidade de Sao Luis é palco de uma tradi¢ao festeira notéria durante todo o decorrer do ano. (ARAUJO, 2001, p. 38) O ludovicense tem nessas festas um local de sociabilidade, de encontro, de paqueras, no qual pode- mos perceber os desdobramentos sociais. A diversidade de eventos e mani- festacdes representa as idiossincrasias de um povo que busca nos folguedos suas raizes e perpetuacao das suas memorias. Aqui eu me encontro: sujeito de um espaco privilegiado, mitico e encantador. Sinto-me a propria historia viva das festas, marcadas em um tempo, vividas em um espaco, sentidas na grandeza de um povo hibrido pelo seu encanto de ser e de existir, um povo que constrdi sua histéria, que imerge na sua meméria. Ainda bem que nem todas as festas na capital maranhense tem como caracteristica a carnavalizacao, pois Momo e Baco nao teriam direito ao descanso, uma vez que a partir desse ciclo festivo ja ¢ chegado o Carnaval. No decurso do ano, viajo pelas ondas da meméria e, a cada festividade, fico inebriado com as singularidades que tornam Sao Luis tao plural na sua historicidade e da qual sou um dos personagens mais apaixonados, em especial, do periodo carnavalesco. O folguedo é tao somente um dos muitos elementos da medievalida- de européia que nos serve de exemplo para demonstrar que grande parte do que esta presente em nossa sociedade sao de fato elementos que tiveram ou ao menos foram conservados na medievalidade. Assim, o carnaval que, além de ser normatizado por uma instituig3o européia na Idade Média, se presentificou em Sao Luis em muitos dos grupos que continuam a contem- plar temas vistos e apreciados também na medievalidade. REFERENCIAS ARAUJO, Eugénio. Nao deixe o samba morrer: um estudo histérico e etnografico sobre o carnaval de Sao Luis e a escola Favela do Samba. Sao Luis: UFMA, 2001.. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura popular na Idade Moderna e no Renascimento. O Contexto de Frangois Rabelais. Brasilia: Hucitec, 1996. - 252-

You might also like