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Seversassieatioe 2@ ‘©Minstéio da Saide | Departamento de Recursos Humanos da Saide (Centro de Formagio ¢Apertigoamento Pros to)Blogrfico ea Formagio em lingua portuguesa no Bes “Tielo orginal 0 Mitoda '59.076:970 Lagoa Neva -Natal-RN. (Grafs etualzada segundo o Acordo Ortogrfico da Lingus Portuguesa de 1990, “ue enous em vgoe no Bas rs 2008, Capa: Wilson Fernandes de Arajo Filho Bltorago letrnice: Paola Cristina Fernandes de Araijo ‘Reviso: jason Rafael Pereira de Lima Reviedo clentlica: Mara da Coacelcs Passeggh mpreiioe acabamento: PAULUS | EDUFRN CCatalogacdo da Publicago na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede fico © frmagio | organizagbo Anténio Novos; = Natal, RN: EDUFRN; Sto Pablo: Pauls, Biogas ISBN 978-89549°9119-9 1. Método (auto )biogrco. 2 smanents 3. Psguse 1. Névoa, Ant. cpp oo12 RNVURIBCAM aoia01 emu oo Nena prt det oa pode pedo enue ease a gr S200 | APRESENTAGAO DA COLEGAO caracterizados pela pluralidade das experiéncias educativas, sociais e profissionai nas histérias individuais? A pesquisa (auto) as modalidades segundo as quais os individuos ¢, por extensio, ‘os grupos sociais trabalham e incorporam biograficamente os acontecimentos € as experiéncias de aprendizagem ao longo da vida, As fontes (auto)biogrificas, constituidas por histérias de vida, relatos orais, fotos, didrios, autoblografias, biografias, cartas, memoriais, entrevistas, escritas escolares e videogréficas, configuram-se como objeto de investigacao transversal nas Ciéncias Sociais e Humanas. Em Educa¢ao, a pesquisa (auto) biografica amplia e produz conhecimentos sobre « pessoa em formagdo, as suas relagdes com territérios € tempos de aprendizagem ¢ seus modos de set, de fazer e de biografar resistencias e pertencimentos. © simbolo do infinito presente no titulo da colegio “Pesquisa (auto)biogrifica co Bducagio’ sugestivament, tem a intengao de marcar a abertura entre esses dois espagos e na liberdade de percorrer diferentes dominios da atividade humana mediante essa dupla entrada, a do (auto)biografico e ado educativo, Concebida numa perspectiva intercultural, a colecéo acolhera textos sob a forma de relatos, ensaios, trabalhos de pesquisa que confirmem as diversidades ~ geografica e tedrica ~ de situagdes, de abordagens e de pontos de vista. D e que modo os percursos de vida contemporineos, do desenvolvimento econdmico e da modernizagao omo estava interessado nas consequéncias humanas técnica, dei da Itélia, nos anos 50, A minha inten- tes, a minha esperanca, era encontrar, por meio des- uisas, uma solucio positiva para as insuficiéncias das investigagdes sociolégicas feitas com a ajuda de questionérios estruturados rigidamente, Ha muito tempo tinha a impressio de que essas investigagbes, se bem que rigorosas do ponto de vista metodolégico-formal, consideravam geralmente resolvi- dos problemas que nem sequer tinham sido abordados. » ot seja, de ver na biografia espe destino absoluto ¢ irredutivel, e, por isso, procurei relacionar cuidadosamente a biografia indivi slobais da situagao histérica “datada e vivida', Nesse contexto, as biografias individuais tinham como objetivo a ilustragao do corte entre o mundo camponés e a sociedade técnica. Esse corte ndo era s6 um conceito, estava personificado em tipos especificos que os materiais biogrificos pormen: (ver, por exemplo, p. 388-391 do meu Trattato di sociologia, ‘Trim: Utet, 1968). Foi durante a pesquisa no terreno que a ‘deia de uma “sociologia como participagao” comegou pouco @ pouco a elaborar-se enquanto abordagem metodolégica metamecanicamente e alternativa (ver FE, La sociologia come partecipazione. Tarim: Taylor, 1961). Mas foi apenas em Vite dibaraccati (Liguori, Napoles, 1976) que desenvolvi a minha critica de Oscar Lewis ¢ que finalmente propus o estudo da “biografia do grupo primério como resumo e “contracdo aoristica” de uma determinada situacdo entio evidentes, para mim, certos prinefpios tedricos gerais. I- AS RAZOES DE UM “REVIVAL” Hi alguns anos que o debate tedrico sobre o métado biogré- fico conhece uma divulgacao surpreendente. Em nossa opiniao, 24 | Sabre a autonomia do método biagrético 6 interesse crescente pelo uso sociol6gico da biografia responde a.uma dupla exigencia: a) Anecessidade de uma renovagao metodolégica, provaca- da pela crise generalizada dos instrumentos heuristicos da so- iologia: a metodologia cléssica das ciéncias sociais - 0 “Santo como diz ironicamente Gouldner ~ jé nao tem boa reputagio. Cada ver. mais numerosas, as ‘listas de reclamacées” erguem-se contra os seus dois axiomas fundamentais: a objeti- vidade e a intencionalidade nomotética. “Em gera ‘vamos bem quando nos colocamos de fora’ escreveu A. Comte. Mas o esforco feito para integrar a sociologia no campo das ci- éncias da natureza conduziu apenas a um método escoléstico. ‘A técnicas cada vez mais sofisticadas nao corresponde nenhum crescimento real do conhecimento socioldgico. Lamentamos demasiadas vezes as metodologias ingénuas dos classicos, que nao dissolviam o social em fragmentos heterogéneos ¢ conser vavam a plenitude concreta ¢ a unidade sintética do seu objeto. Por tras da énfase metodolégica, vemos esbocar-se, ou triunfat, ‘uma nova identidade e uma certa fungi ideol6gica do sociélo- 420 e da sociologia: 0 socidlogo torna-se o técnico de um social, Ccujos fundamentos e estruturas nao devem pdr em questéos a sociologia apresenta-se como um sistema de técnicas neutras de intervengio ~ 0 social engineering. Entdo, nos setores mais criticos da sociologia, pde-se em causa 0 axioma da objetividade, que funda o método. Essa nova interroga¢ao sobre 2 separacio sujeito-objeto torna-se uma investigacdo sistemética para outras abordagens. Desen- volvem-se esforgos para reintegrar o observador no framework -pistemol6gico da sociologia. Nega-se a passividade coisificada que o Método atribui & “coisa” social Essa duivida hiperbdlica vai mais longe. Declara-se contra 2 hegemonia da intencionalidade nomotética. A pesquisa das ” sociais tropecou com dificuldades crescentes, por vezes com verdadeiras aporias. Nem por isso ela deixa de constituir a ¢ 0 formalismo dessas leis. Reivindicam o direito a0 concreto. Afirmam a historicidade imanente a todo Franco Ferraroti| 35. © fato social e a sua especificidade irredut intencionalidade ideogréfica pode dar conta, A critica & objetividade e & nomotetia, que caracterizam a epistemologia sociolégica, teve como consequéncia a valoriza- ‘do crescente de uma metodologia mais ou menos alternativa: ‘ométodo biogrifico. b) A exigéncia de uma nova antropologia, que aparece no “capitalismo avangado” Trata-se, mais uma vez, da necessidade do concreto; as grandes explicagdes estruturais, construidas a partir de categorias muito gerais, ndo satisfazem os seus desti- natarios. As pessoas querem compreender a sua vida cotidiana, as suas dificuldades e contradicdes, e as tensdes e problemas que Ihes impée, Desse modo, exigem uma ciéncia das media- ges que traduza as estruturas sociais em comportamentos in- dividuais ou microssociais. Como € que as estruturas ¢ as namicas sociais forjam um sonho, um ato falho, uma psicose, um comportamento individual, a relacio concreta entre dois individuos? A sociologia cléssica ¢ impotente para compreen- der e satisfazer essa necessidade de uma hermenéutica social do campo psicol6gico individual. Propée correlagdes constantes ¢ |, da qual s6 uma gerais, em que seriam necessirias pontes que ligassem a histo- ricidade absoluta de um ato & generalidade de uma estrutura, Estabelece variagSes concomitantes entre uma taxonomia dos comportamentos individuais e taxonomias sociais, em que se- ria preciso uma imbricacdo ininterrupta de hipoteses genético- condicionais, que fossem de um ato ou de um acontecimento uma estrutura, por meio de uma rede de medi Ora, a biografia que se torna instrumento soci poder vir a assegurar essa mediago do ato estrutura, de ume histéria individual a histéria social. A biografia parece impli- cara construcio de um sistema de relasdes e a possibilidade de ‘uma teoria nao formal, histérica e concreta, de aco social. Uma teoria que preencheria o “corte epistemoldgico’, que, segundo Althusser, divide inelutavelmente 0 dominio do psicolégico ¢ © dominio do social. Uma teoria que, portanto, corresponde as necessidades mais urgentes de outras ciéncias humanas que procuram pOr-se criticamente em questao: a psicologia, a psi- quiatria, a psicandl 35 Sobre a autonomia do métede biogrtico Crise do método, exigéncia de uma hermenéutica social dos alos individuais concretos: 0 método biografico situa-se numa encruzilhada da investigaco tebrica e metodolégica das cién- cias do homem. Il - AS METAMORFOSES DO METODO BIOGRAFICO Antes de esbogarmos as linhas gerais de um método biogré- fico critico, devemos interrogar-nos sobre o uso que os sociélo- gos fizeram das biografias. a) O método biogrifico apresenta-se, logo & partida, como uma aposta cientifica. Essa aposta tem dois aspectos “escandalosos": * 0 método biogréfico pretende atribuir & subjetividade um valor de conhecimento. Uma biografia é subjetiva a varios niveis. Lé a realidade social do ponto de vista de um individuo historicamente determinado. Baseia-se ‘em elementos e materiais na maioria dos casos autobio- gréficos e, portanto, exposto as imtimeras deformacdes de um sujeito-objeto que se observa e se reencontra, Situa-se frequentemente no quadro de uma interagio, pessoal (entrevista); no caso de uma qualquer narrativa, biogréfica, essa interacio é bastante mais densa ¢ com- plexa que as relagdes observador-observado admitidas pelo Método: cooptagio do observador, na verdade do observado, mecanismos de manipulagio reciprocos di- ficilmente controlveis, auséncia de pontos de referén- 0 situa-se para além de toda a me- ia quantitativa ¢ experimental. Os elementos quantificiveis de uma biografia séo geralmente bastante potco numerosos e marginais: a biografia provém qua- se inteiramente do dominio do qualitativo. De resto, no vemos como é que a légica do método experimental, poderia aplicar-se a biografia. Como é que a histéria de uma vida, 0 Erlebrtis de um comportamento, pode con- Franco Ferrarotti| 37 firmar ou negar uma dada hipétese geral? Tentou-se nos Estados Unidos, mas com resultados bem pobres... Subjetivo, qualitativo, alheio a todo o esquema hipétese- verificagao, 0 método biografico projeta-se & partida fora do quadro epistemoldgico estabelecido das cigncias sociais. A so- ciologia nao aceitou o desafio que Ihe era lancado por essa di- versidade epistemol6gica e fez tudo para reconduzir 0 método biogréfico para o interior do quadro tradicional, E a que prego! Por meio de um duplo desvio epistemoldgico e metodolégico, procurou-se utilizar o método biogréfico, anulando completa- mente a sua especificidade heuristica ) Esse empobrecimento epistemologico da biografiatradu- se frequentemente na sua reducao a um conjunto de mate- riais biogréficos justapostos. Uma vez. quebrada a sua unici- dade sintética, a biografia torna-se um simples “protocolo em bruto” do conhecimento sociolégico. Protocolo que a elabora- so sucessiva do socidlogo traduziré numa série de informa- es, frequentemente fragmentirias, sempre parciais. Essa redugdo no reconhece a biografia qualquer autonomia heuristica real. A biografia nao passa do veiculo e suporte con- centrado de informacdes de base que nio teriam qualquer valor rem qualquer significado em si ficha sociolégica personalizada, que oferece uma série de dados iteis se a andlise volta a colocé- Jos no quadro de uma interpretagio muito mais geral. Segundoa expressio corrente, de uma série de biografias “extraem-se” ele- mentos, problemas, formagoes. Uma segunda fase ultrapassaré ¢ reintegraré tudo isso num qua- tivo mais vasto, que uma metodologia realmente cientifica se encarregaré de verificar. Utilizam-se as biografias, “para saber’, insiste-se em ndo as considerar como um saber ot- ganizado, mas critico, que é preciso aprender a decifrar. Esse uso da biografia como fonte de informagées é eviden- temente legitimo e, por vezes, necessario (pensamos, por exern- plo, na re ndo pode confundir-se com a especificidade heuristica do método biogréfico; pertence, antes, & atitude factual dos historiadores sociais que recorrem a fontes orais. [36 | Sobre a autonomis de métods biegréfics ©) © empobrecimento epistemolégico do método bi assumiu ainda uma segunda forma, bastante mais sofisticada: a reducio da biografia a uma simples “fatia de vida” social vel como exemplo, caso ou ilustragao, num quadco interpreta- tivo situado a um nivel mais elevado de abstracao. (Ora, a fungao de “casos” ou de “exemplos” esconde toda epistemologia. A utilizagao do concreto como exemy um framework interpretativo formalista, A ruptura légica que opée a forma (abstrata) ao contetido (concreto) do fato social transforma todo o acontecimento ou todo o ato social especifi- co numa verificagao a posteriori da validade ou da operaciona- lidade de um modelo formal ou de uma taxonomia social. Pelo » conhecemos 0 concreto quando 0 reconhecemos rermédio de uma tipologia formal, isto é, quando 0 situa- ipo de acontecimentos de que constitui um caso ou um exemplo. Nessa perspectiva epistemolégica, uma biografia nao teressa ao socidlogo enquanto seco ou corte vertical ou hori- ‘ema social que sintetizaria sob a forma de atos ‘mas sim enquanto exemplo significativo de certos aspectos do social que uma andlise estrutural ja terd estudado de maneira exaustiva. A biografia de um jovem delinquente vird talvez confirmar uma teoria do de ‘mas nunca seré o seu ponto de partida légico (sera por vezes © seu ponto de partida tempo: Em seguida, a redugao do concreto a exemplos remete-nos @ uma epistemologia légico-formal que concede valor de co- nhecimento apenas aos aspectos generalizaveis de um aconte- cimento ou de um ato especificos. O axioma aristotélico ~ *s6 existe ciéncia do geral” ~ orienta um modelo de abstragdo que impele para 0 dominio do itracional, do acaso e do inconhe- civel, tudo 0 que constitui a especificidade irrepetivel de um qualquer acontecimento, Apenas o que é comum a outros acon- tecimentos ou atos do mesmo ou de outro agente social € di de ser conhecido cientificamente. Uma biografia diz respe a socidlogo pelo que tem em comum com outras biografias sociologicamente andlogas. A especificidade de uma histéria individual, que a ope a todas as outras ¢ a torna tinica, pas- Franco Ferareti| 39 sa entdo a ser um obstéculo epistemolégico, um “tesiduo” que nao pode interessar a ciéncia ¢ que tem a ver com a ldgica do “acaso”, O recurso a uma leitura ideogréfica que emerge de toda € qualquer biografa foi sempre posto entre parénteses pelo mé- todo biogréfico, ou foi relegado para 0 dominio da psicologia, Nem sequer se tentou a extensio dos métodos hi psiquitricos, isto é, a construcio de biografia tipicas que per- issem definir homologias entre as biografias mas também situar as suas esp. ides irredutiveis relativamente a um modelo, d) Essa redugio da biografia uma justaposigio de informa- ‘goes € a uma exemplificagao faz-nos voltar ao que chamamos ‘uma aposta epistemolégica. Os dois elementos que fazem a es- pecificidade da biografia constituem obstaculos que temos que contornar ou ultrapassar. A subjetividade ¢ a exigéncia antino- motética da biografia definem os limites da sua cientificidade; ‘0 as suas caracteristicas imanentes, a despeito das quais o mé- todo biogréfico conserva apesar de tudo algum valor heuristico. ‘Mesmo entre os adeptos do método biografico, foi iludida 'osta epistemolégica que Ihe & inerente, Houve esforgos no sentido de se fazer voltar a biografia a0 caminho epistemol6gi- co das ciéncias da natureza: objetividade, pesquisa indutiva de correlagdes constantes (atitude nomotética), tradugao quantita- tiva das informagées adquiridas, etc. A subjetividade pripria de toda a narrativa ou documento autobiografico - pois, néo nos esquecamos, on utilizados pelo método biogréfico sio, ‘na maioria, autobiogréficos - & iludida por uma hermenéutica da biografia, que s6 utiliza os seus aspectos objetivos. A leitu- +a dos materiais biogrificos torna-se a pesquisa sistemética das informagées mais gerais, dos dados, das descrigées, das “fatias de vida" sociais ~ numa palavra, dos “fatos” ~ que penetram por ‘meio do “carnaval da subjetividade” (Luikacs). O qualitativo apa- ga-se pe ificavel. A subjetividade ativa da autobi e na vida objetiva da biografia dos acontecimentos. A historia de uma vida, um dado material biogréfico pre- tendem ser tinicos? A historicidade absoluta que reivindicam & negada por uma hermeneutica atenta aos seus caracteres exem- plares ~ isto é, comuns a outras histérias, a outros materiais e as 40 | Sobre a autonomia do métado biogréfico que vyém da cor local, da laivos de concreto 20 esforgo de abstracio e nao tem nada a ver com 0 conhecimento cientifico. Essa dupla ilusio da especificidade epistemoldgica da bio- grafia projeta-se numa metodologia cujas premissas e resul dos nunca foram seriamente postos em causa. A nogacao epi idade corresponde 0 problema metodolégico central do grau de representatividade de uma biografia, que procura avaliar @ sua utilidade por meio de generalizagbes indutivas. Quais sfo 0s cr H (goes desta representatividade? Quando e de que modo pode ‘uma biografia estar na base de conhecimentos sociolégicos? (© método biogréfico tradicional deu duas respostas a essas perguntas, que correspondem as duas utilizagbes diferentes da biografia. Bor um lado, a biografia servird para a verificagio de um modelo interpretativo. A escolha das biografias mais represen- tativas exige que os seus critérios gerais de identificacaio jé te~ ham sido estabelecidos. Ora, esses critérios sio simplesmente as varidveis principais do modelo hermenéutico ou descritivo que as biografias devem verificar. Uma biografia seré represen- tativa se se estruturar volta de elementos que correspondam a projegio das varidveis do modelo no plano de uma vida indi- ‘vidual. Reduzida a um instrumento de controle, a biografia no nos ensina nada que nao esteja jé no modelo formal. Confirma ¢ verifica conhecimentos adquiridos e nao é fonte de novos co- mhecimentos (reduces escolésticas do concelto, ou suporte de ‘um modelo abstrato). Pelo menos, pretende confirmar e veri- ficar: quando nio esta ligdo ao modelo geral por uma ponte de mediagdes hipotéticas, o exemplo concreto nao verifica; no ‘melhor dos casos, ilustra. Mais ainda: 0 exemplo, 0 caso 86 ve rificam © modelo interpretativo ou taxondmico se se remeter para o campo residual do “acaso” tudo 0 que, nas biografias em questio, néo é generalizavel e permanece proprio e inico de cada uma, ou seja, tudo o que extravasa do modelo. Fis uma Franco Ferrarcti circunstincia que se assemelha bastante a um postulado de principio logico, & medida que ela legitima a escamoteagio do concreto, quando esse contradiz o modelo! Por outro lado, as dificuldades aumentam quando néo se pretende apenas verificar 0 modelo ou 0 tipo, mas elaboré~ Jo a partir das biografias. Restituir-lhes um papel heuristico ativo é uma tentativa nobre, mas como é que ela pode susten- tar o valor geral dos modelos hipotéticos que engendra? Pois é evidente que a escolha das biografias mais representativas do ferso social dependera entio inteiramente da intui¢éo so- ciolégica do observador e, portanto, do seu sistema de valores. ‘Nao se escapa facilmente 20 labirinto da logica formal eao seu modelo de abstraga Verificagio que um ocasionalismo subjacente pré-orienta para a concluséo pretendida: papel heuristico ativo da bio- grafia, conduzindo a hipdteses cuja represent ide geral nao é, no entanto, baseada em nada. Num caso, a biografia é relegada para a funcdo de suporte concreto marginal do qua- dro analitico. No outro, permanece um instrumento bastante impreciso, que s6 pode ser utilizado com conhecimento de causa nas fases preliminares da pesquisa sociolégica, Nada ‘num caso ou noutro parece justificar a célebre afirmagio de ‘Thomas e Znaniecki de que os documentos biogréficos seriam “o material sociol6gico perfeito” e) As dificuldades postas pela “representatividade’ das biografias empurraram os adeptos do método biografico para ‘uma abordagem ainda mais redutora. A representatividade de algumas biografias cuidadosamente selecionadas foi sendo substituida por uma representatividade constituida pelo niime- 10: 0 niimero das biografias substitui 0 seu caréter exemplar. ‘A metodologia biogeafica estrutura-se no modelo estatistico da amostragem. A qualidade do material biogréfico ~ a sua ri- queza ~ perde importincia relativamente & sua simy sentatividade estatistica. A biografia é comparada & entrevista nao estruturada: diferencia-se dela apenas devido a uma maior vivacidade e a um acento mais diacrénico. E a hermentutica da biografia imita as formas da interpretacao analitica das en- 42] Sobre a autonomia do métado biogréfco te identificacao ¢ traducao quantificada dos elementos objetivos, recurso aos elementos qualitatives como apoio ilus- tativo, etc, Com o risco de dissolver a sua especificidade e interesse, a metodologia biogréfica estabelecida esforga-se por biogralia 20 quadro epistemolégico e metodol nal da sociologia, E naturalmente essa metodologia utiliza cada vez, mais técnicas objetivas, visando a garantir a extraneacio do ob- servador na neutralizacio dos materiais. A entrevista biogratica 6, sem diivida, a mais comprometedora das situagdes 50 gicas, Verdadeira interacdo, por vezes bastante intensa, é pre la da subjetividade do socidlogo, assim como da subjetividade da narrativa autobiogrifica. Dai todas as técnicas ‘que servem para afastar a prdpria suspeita de um papel ativo do observador. Esse nao deve participar diretamente, mas limitar- se a “estimular” o objeto. A American Sociological Associa- tion chega mesmo a aconselhar uma “presenca ausente” fun- damentalmente passiva, com estimulos verbais fatuais (0 Who, Whom, When, Where) e muit Fecurso ao gravador e idade cientifica, etc. Aplica-se ta istica é tornada insfpida por uma transcrigdo numa basic language neutra e banal. Anula-se a maioria das notacdes e dos detalhes qualitativos. A biografia transforme-se frequentemente num relatério de acont = sine ira nee studio, dizia M. Weber -, nao a historia de uma existéncia e de uma experiéncia humana, mas o seu esqueleto objetivado. A ue triste resultado conduziram os paradoxos epistemolégicos inerentes ao método biogréfico! Ill - A ESPECIFICIDADE DO METODO BIOGRAFICO. idade da biografia, gracasa uma meto- s coisificadoras, trai o seu cardter i lade profunda, a sua unicidade. Pelo contrério, trata-se de explicitar até ao fim as implicagées Franco Ferrarotti| 43 dessa especificidade e de fundar, assim, a especificidade episte- molégica, metodoldgica e técnica do métado biografico. a) Os materiais utilizados pelo método biogréfico podem ser divididos em dois grandes grupos. De um lado, temos os materiais biograficos primérios, isto 6, as narrativas autobio- grificas recolhidas diretamente por um investigador no qua- dro de uma interagao priméria (face to face). Do outro, temos os materiais biogréficos secundarios, ou se biogrificos de toda a espécie que nio foram utilizados por um investigador no quadro de uma rela¢o primaria com as suas “personagens”: correspondéncia, fotografias, narrativas e teste- munhos escritos, documentos oficieis, processos verbais, recor- tes de jornal, etc. O método biografico tra dérios (mais objetivos) aos mat I prefere os materiais secun- iais primérios e reconduz sis- ica, conserva um valor de ruptura relativamente ‘4s metodologias tradicionais: uma palavra nova, fragmentos de sociedade por muito tempo recalcados numa espécie de ceguei- ra sociolégica quebram a barreira e impdem-se ao conhecimen- to. Mas o método biogréfico no trai menos a maioria das suas ialidades heuristicas quando aceita ser uma metodologia ist ede uma sociologia em busca de um A condigéo fundamental para uma renovagio do método biografico passa pela inversao dessa tendéncia! Devemos aban- donar o privilégio concedido aos materiais biogréficos secun- dérios! Devemos voltar a trazer para 0 coracao do método bio- gtifico os materiais primarios ea sua subjetividade explosiva. ‘Nao € 36 a riqueza objetiva do material biogréfico primario que nos interessa mas também, sobretudo, a sua pregnancia subje- tiva no quadro de uma comunicacéo interpessoal complexa e reciproca entre 0 narrador e o observador. ») Aprosimamo-nos do problema central. Como é que a sub- jetividade inerente & autobiografia pode tornar-se conhecimen- to cientifico? Se o método biogréfico optar por nao iludir nem renegar mais a subjetividade e a historicidade absoluta dos seus ‘materiais, de que modo fundamentaré o seu valor heuristico? {44 Sobre a autonomnis de métode biegréfico Contentemo-nos em esbocar as linhas gerais ~ e hipotéticas = de uma resposta. ‘Todas as narracdes autobiogréficas relatam, segundo um corte horizontal ou vertical, uma préxis humana, Ora, se “a esséncia do homem [...] 6,na sua realidade, o conjunto das rela- ‘bes sociais” (Marx, VI* Tese de Feuerbach), toda a praxis hu- mana individual ¢atividade sintética, totalizagio ativa de todo um contexto social. Uma vida é uma préxis que se apropria das relagdes sociais (as estruturas sociais) interiorizando-as e yoltando a traduzi-las em estruturas psicoldgicas, por meio da sua atividade desestruturante-reestruturante. Toda a vida humana se revela, até nos seus aspectos menos generalizveis, como a sintese vertical de uma histéria social. ‘Todo 0 com- portamento ou ato individual nos parece, até nas formas mais linicas, a sintese horizontal de uma estrutura social. Quantas biografias séo precisas para uma “verdade” sociolégica? Que material biogréfico ser mais representativo e nos proporciona- r4 mais verdades gerais? Muitas perguntas que nao tém talvez nenhum sentido, Pois ~ ¢ frisamos lucidamente a afirmacio - © nosso sistema social encontra-se integralmente em ceda um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delirios, obras, comportamentos. E a historia desse sistema esté contida por inteiro na histéria da nossa vida individual No sentido estrito da palavra, “implicamos” 0 social por meio de uma introjecao sintética que o desestrutura eo reestru- ‘ura, conferindo-lhe formas psicolégicas. Mas, sendo produzi- da por uma praxis sintética, a relagdo que liga um ato a uma estrutura social nao ¢ linear, ¢ a relacao estreita entre a his social e uma vida nao é um determinismo mecanico. Temos de abandonar 0 modelo mecanicista que caracterizou as tentativas de interpretagio do individuo por meio de frameworks socio- légicos. © individuo nao é epifendmeno do social. Em relagio as estruturas e histéria de uma sociedade, coloca-se como um e-se como uma préxis sintética. Mais do que apropria-se dele, mediatiza-o, filtra-o e volta a projetando-se numa outra dimensio, que éa dimen- sio psicolégica da sua subjetividade, Franco Fecraroti| 45 A formulasio de Sartre parece-nos aqui a tinica possivel. O homem - acrescentaremos: 0 homem inventado pela revolugio burguesa - ¢ 0 universal singular. Pela sua praxis sintética, sin- gulariza nos seus atos a universalidade de uma estrutura social Pela sua atividade destotalizadora/retotalizadora, individualiza a generalidade de uma hist6ria social coletiva. Eis-nos no éma- g0 do paradoxo epistemolégico que nos propde o método bio- grifico, Ja néo podemos confrontar o que um ato ou a hist6ria deuma vida tém em comum com os atos eas histérias de outros individuos ~ 0 geral que, s6 ele, seria conhecimento cientifico ~ a tudo 0 que esse ato ou histéria conserva de absolutamente especifico — a unicidade que nunca seria ciéncia, e sim residuo pré-cientifico inexplicado, acaso. Uma antropologia social que considera todo o homem como a sintese individualizada ativa de uma sociedade, elimina a distingao do geral e do particular num individuo. Se nés somos, se todo o individuo é a reapro- priagdo singular do universal social e histérico que o rod podemos conhecer o social a partir da especificidade irtedt yel de uma praxis individual. Da subjetividade reivindicada & cincia: 0 que o torna 0 um ato ou uma histéria individual propée-se como uma a de acesso ~ por vezes a tinica possivel - ao conhecimento ico de um sistema social. Via nio linear, frequentemen- te critica, que exige a invengao de chaves e de métodos novos ara ser percorrida. ©) A antropologia que acabamos de esbocar legitima a nos- sa tentativa de ler uma sociedade por meio de uma biografia, Consequentemente, egitima o valor heuristico de uma biografia da qual se conserva toda a especificidade epistemolégica. Mas a biografia sociolégica nao é s6 uma nacrativa de experiés vividas; é também uma microrrelagao social. O mais solitirio dos monélogos autobiogréficos nao deixa de ser uma tentativa cago e implica 0 fantasma de um interlocutor. Ora, © socidlogo que estimula e recolhe uma narrativa oral é um interlocutor real que finge ser um fantasma neutro e ausente. Desconfiemos dessa escotomizacao e restituamos entrevista biogréfica toda a sua densidade de interacdo social. As narra- tivas biograficas de que nos servimos nao sio monélogos ditos 45 | Sobre a sutonomia do métoda biogréfico Perante um observador reduzido 4 tarefa de suporte humano de um gravador. Toda entrevista biogeéfica é uma interagio social completa, um sistema de papéis, de expectativa, de in- 108, por vezes, até de de poder; apela para o carisma e para o poder social das instituigdes cientificas relativamente as classes subalternas, tamos a nossa vida e 05 nossos “Erlebnisse” a um gravador, mas a um outro individuo. As formas e os contetidos de uma nar- rativa biografica variam com 0 interlocutor. Dependem da inte- ragao que serve de campo social & comunicacio. Situam-se no ‘quadro de uma reciprocidade relacional, O entrevistador nunca esti ausente, mesmo o que se finge ausente. £ sempre reciproco, ‘mesmo se aparentemente se recusa a toda a reciprocidade. A ilusio da objetividade nega a qualidade interacional da narrativa biogréfica. Se por vezes a reconhece, é para exorcizar © seu papel constitutivo e relegé-la para segundo plano, para o meio dos residuos subjetivos que conspurcam sempre a obj . Trata-se de restituir a narrati- reza relacional e da sua intencionalidade comunicati iremos entdo uma outra das suas caracterfsticas essenciais, talvez a menos conhecida: todo ato individual é uma totalizacio sintética de um siste- ma social. Toda a narrativa de um acontecimento ou de uma vida 6, por sua vez, um ato, a totalizacao sintética de experién- cias vividas e de uma intera¢ao social. Uma narrativa biogrifica nio € um relatério de “acontecimentos’, mas uma acio social pela qual um individuo retotaliza sinteticamente a sua vida (a biografia) e a interacéo social em curso (a entrevista), por meio de uma narrativa-interacao. A narrativa biogréfica conta uma vida? Dirfamos antes que narra uma interagéo presente por intermédio de uma vida, Nao hi mais verdade biogréfi- ca numa narrativa oral espontinea do que num didtio, numa autobiografia ou num livro de memérias, E s6 alcangaremos ‘essa verdade biografica se sublinharmos a verdade interacional que a narrativa encerra. A leitura sociolégica de uma biografia caminha por intermédio da hermenéutica da ago social que va biogréfica & pler Franco Ferrarot | 47 reinventa a biografia, narrando-a no quadro de uma interacio; ‘eracio que o observador nao deve iludir e deve viver até20 A anilise sociolégica de uma narrativa biogréfica conduz~ nos a hermenéutica de uma interacao, Eis-nos, portanto, no polo clinico que nos parece caracterizar 0 conhecimento do idual nas ciéncias humanas. “E a transposigdo da situagdo ca para as diversas disciplinas que se ocupam do homem que faz. reaparecer explicitamente o problema de um conheci- mento dos contetidos individuais”. [A situagio clinica pe em relasio imediata 0 pa- ciente eo terapeuta,0 observa eo observador, E preciso relagdo no vendo primeiro, de tum e do outa, de ‘como encontro totalmente dessimétrico entre lum sujet ativo eum objeto ‘como encontro de um par na qual os dois venientes desempenham papé ‘mado mdgicoe mito da eomunicagia. O pro- blema epistemol6gico principal &expiear como que esta stuagio pode desenvolverseaum re- astro de auténtico conheciment, sem degene éenica bruta de objecivacao mecinica ‘ow nume prticaencanttérat, Imbricagio do observador e do observado numa interagao eciproca. Conhecimento cientifico exigindo uma hermenéu- tica dessa interacio, Narrativa biografica entendida come uma agdo social. A entrevista biografica parece-nos um exemplo perfeito do polo clinico das ciéncias humanas. 4) Toda a narrativa biogréfica reconduz 4 desestruturacio ~ reestruturagao sintética de um ato ou de uma histéria indivi- dual, considerados como o corte horizontal ou vertical de um sistema social. Por consequéncia, fornece-nos: * GRANGER; G. G, Pensée et sciences deT’ homme, Paris, 1967. p. 189. > Ibid. p. 188, 48 | Sobre a autonomia de métode biogrifica ‘ume imagem totalizada de um sistema social, a partis do es- pago social no qual se esboca a sociabilidade e se elabora a agdo social (a histéria de uma vida, a descri em curso (@ narr. iogréfica) coma sintese ativa da imagem totalizada e da interacio presente em que se situa. Na biografia, a sociedade, perpetuamente em estado de nas- cimento, coexiste com a sociedade estruturada. A aco social guidade soci iva biografica deve sua importancia te6rica imensa e inexplorada, a sua fecun- didade heuristica largamente ignorada ou traida. O ato como sintese ativa de um sistema social, « historia in- dividual como historia social totalizada por uma praxis: essas duas proposicées implicam um percurso heuristico visando a0 universal por meio do singular, procurando o objetivo a partir do subjetivo, descobrindo o geral pelo particular, Na nossa opi- nido, método biogréfico anula a validade universal da propo- do de Aristételes: “S6 hd ciéncia do geral”, Nao. Pode haver ciéncia do particular e do subjetivo. E, por outras vias ~ vias ‘muitas vezes aparentemente paradoxais ~, essa ciéncia resulta ‘num conhecimento geral les vai mais longe, por meio da contes- sursiva que modela o pensamento cien- tifico ocidental. A critica a hegemonia do geral na axiomitica das cigncias esconde uma critica & hegemonia do “conc cesso de abstracéo que 0 ci As trajetorias dedutivas que o cexplicitam e &s trajet6rias indutivas que o fundam/verificam. ‘Vamos ainda mais longe. A nocao de préxis humana totali- zante (que tiramos de Sartre, mas que reencontramos em Tarde e Simmel, para nos limitarmos a socidlogos) recusa-se a conside- rar 0s comportamentos humanos (atos, biografias) como refle- x08 passivos de um condicionamento que provém do geral, ou seja, da sociedade. Pelo contrario, esses comportamentos expri= ‘mem uma pr ica que desestrutura-reestrutura os deter- minismos sociais. Nao sio 05 resultados mecanicos de influén- cias exteriores, mas apropriam-se dessas influéncias por meio de Franco Ferearott| 49 ica que volta a traduzi-los em atos individu- ais nao redutiveis aos seus fatores determinantes. Nao podemos demorar-nos nessas anélises (o melhor é consultar- digdo filoséfica na qual se baseiam). No entanto, sul sua caracteristica principal. O homem nao 60 objeto passive que © determinismo mecanicista defende. O campo de todo ato ou comportamento humano vé a copresenga ativa dos coi mentos exteriores e da praxis humana que os filtra e os lizando-os, Nesse campo, nada é passi ista nio pode compreender o papel duplamente dialético (negagio e negacio da negacio), que é intrinseco a praxis humana. A recusa da dicotomia sujeito ativo/objeto passivo, no domi- nio do comportamento humano, estende-se a essa modalidade do comportamento que é a intencionalidade cientifica e do seu objeto, 0 comportamento humano individualizado, Mais uma vvez, no temos um sujei nhecido. O observador encontra-se ridiculamente implicado no campo do seu objeto. Este iltimo, longe de ser passivo, modi- fica continuamente 0 seu comportamento em fungao do com- portamento do observador. Este processo de feedback circular ridiculariza qualquer conjuntura de conhecimento objetivo. 0 conhecimento nao tem 0 outro por objeto, mas sim a intera- gio inextricével e reciproce entre 0 observador € o observado. Torna-se conhecimento a dois por meio da intersubjetividade de uma interagdo; conhecimento tanto mais profundo e objetivo quanto mais for integral e intimamente mais subjetivo, Para co- nhecer a fundo - e, sublinhemo-lo, cientificamente ~ 0 seu “ob- jeto’ 0 observador ter de pagar o preco de ser conhecido com ‘a mesma profundidade. O conhecimento torna-se, entao, aquilo que a metodologia sociolégica sempre quis evitar: um ri A especificidade do método biogrifico implica a ultrapassa- gem do quadro légico-formal e do modelo mecanicista que ca- racterizam a epistemologia cientifica dominante. Se queremos izar sociologicamente 0 potencial heu sem trair as suas caracteristicas essenciais (subjetividade, his- toricidade), devemos projetar-nos para fora do quadro episte- moligico cléssico. Deveremos procurar os fundamentos epis- 50] Sobre a eutonomia da métode biagrafica temolégicos do método biogréfico noutro lado, numa razio dialética capaz de compreender a “praxis ca reciproca, que rege a interaco entre um individuo e um sistema social. Deveremos procuira-los na construgao de modelos heuristicos no mecanicistas € ndo deterministas; modelos caracterizados por um feedback permanente de todos os elementos entre eles; ‘modelos “antropomérficos" que s6 ume razo nao analitica e nao formal pode conhecer. Razéo dialética ¢, portanto, razio hist6rica alheia a todos os “ocasionalismos’, capaz de uma abor- dagem da especificidade “I6gica especifica do objeto especifico” (Marx) ~ capaz de nfo reduzir 0 conereto a uma construsao conceitual, capaz de “subir do abstrato ao concreto (Marx) Essa razdo dialética nao tem pretensées & hegemonia. Nao tem nadaa ver como “Diamat” ou com o Engels da Dialética da ‘Natureza, Reconhece de boa vontade & légica formal e aos mo- delos deterministas um papel axiomético nas ciéncias da natu- reza. Reconhece-Ihes um papel nas ciéncias do homem, na sua qualidade de ciéncias do geral. Mas quando se trata de impedir que o individual seja empurrado para o inconhecivel e para 0 acaso, quando se trata de ter em conta a préxis humana, s6 a razio dialética nos permite compreender cientificamente um. permite alcangar 0 universal e 0 geral (a sociedade) a partir do individual e do singular (o homem). ‘A especificidade das biografias conduz a contestagio da assimilagao de todas as ciéncias pelas ciéncias da natureza. Se epistemologicamente a biografia, somos um corte radical entre @ intencionalidade rencionalidade ideografica — uma cisio que implica 0 recurso a duas razoes diferentes, A biografia volta a langar 0 Methodenstreit e torna-se, assim, uma oportunidade tinica para a reabertura de um debate profundo sobre os fun- * SECORD, R. Harré-RE The explanation of social behaviour, Oxford, 1972, cap. V. Franco Feraroti 51 damentos légic gia. Ea opoi mentos do soci , epistemoldgicos e metodologicos da sociolo- idade para uma nova reflexo sobre os funda- IV - CAMPO DAS MEDIACOES E BIOGRAFIA DO GRUPO “Um homem nunca é um individuo; seria melhor chamar- Ihe um universal singular”: “totalizado” e, por isso mesmo, uni- versalizado pela sua época, “retotaliza-a” reproduzindo-se nela ‘enquanto singularidade. Universal pela universalidade singular da historia humana, singular pela singularidade universalizante dos seus projetos, exige ser estudado simultaneamente nos dois sentidos. ‘Temos de encontrar um método apropriado. As linhas ge- ais do método progressivo-regressivo de Sartre para uma cién- cia social da biografia sio bem conhecidas: jento significa a recons- truco exaustiva das “totalizacdes” reciprocas que exprimem a relagio dialética entre uma sociedade e um individuo especifi- co. O conhecimento integral de um torna-se, assim, 0 conhe- cimento integral do outro. Coletivo social e universal singular reciprocamente. A tentativa de compreensio de uma biografia em toda a sua unicidade, na base da VI" Tese de Feuerbach, toma-se o esforco de interpretagao de um sistema social. Sintese dificil de uma abordagem estrutural e de uma abor- dagem histérica, essa metodologia nao recusa a contribu! do conhecimento nomotético, Exige-o, mas para integré-lo num movimento heuristico em modelos hermenéuticos nio lineares, que apelam para a razio dialética e nao para a razio formal. No método biogréfico voltamos a encontrar as meto- dologias classicas da sociologia. No entanto, sio usados como de pano de fundo, inst portanto marginais, relativamente a uma sintese central que se esforga por nos restituir a unidade sintética de um sistema so- cial, a partir da imbricagdo reciproca e ativa de uma sociedade ¢ de uma prixis individu. 52| Sobre a autonomia do méteda biogréfco De resto, essa metodologia nao analitica pée problemas gra- ves. Primeiro, como se estrutura esse duplo movimento entre 0 polo individual e o polo coletivo de todo o campo social? Quais so as fases e as etapas que servem de mediacio entre os polos? Por que mediagSes é que um individuo especifico tot zauma sociedade e um sistema sociale se projeta para um outro individuo? Segundo problema: coma sua zeferéncia constantea uma praxis individual, a perspectiva epistemol6gica do método biografico néo implica uma concep¢ao nominalista e atomiza- da do social, visto estabelecer séries de interagées (0 “social” de immel, Von Viese, Moreno, e até de Sartre..)? Terceiro problema: a nossa abordagem do método biogréfico nao anula toda e qualquer possibilidade prética de utilizagio? Se 0 mo- delo do bom uso soci da biografia sio as cerca de 2500 paginas de Lidiot de la famille, n80 nos arriscamos a provocer logos, ou antes 0 seu regresso ansioso as metodologias clissicas? Problemas logicamente heterogéneos, mas que tém origem lo a que Sartre chamou o “problema das mediagbes”. “Va- léry € um intelectual pequeno-burgués, aqui nao ha dividas. Mas nem todos os intelectuais pequeno-burgueses so Valéry. A insuficiéncia heuristica do marxismo (e, acrescentamos nés, do método biogrifico tradicional) esta contida nessas duas frases. Para a compreensio do processo que produz a pessoa € 0 seu produto no interior de uma dada classe ou sociedade ‘num determinado momento histérico, falta a0 marxismo (e & sociologia!) uma hierarquia das mediacdes”. E preciso “en- contrar as mediagdes que permitem engendrar 0 concreto singular, a vida, a luta real e datada a partir das contradigées sgerais das forcas produtivas e das relagdes de produgio”.. Cada individuo nao totaliza diretamente uma sociedade global, mas totaliza-a pela mediacao do seu contexto social imediato, pe- los grupos restritos de que faz p is esses grupos so por ‘sua Vez agentes sociais ativos que totalizam o seu contexto, etc “SARTRE, LP. Critique de a raison dialectique: questions de méthode. Paris, 1360, p. 4. * Tid, p. 45, France Ferarott| 53 De igual modo, a sociedade totaliza todo o individuo especifi- co por intermédio de instituicdes mediadoras que a focalizam cada vez mais pontualmente para o individuo em questo. Por consequéncia, o percurso heuristico simultineo de uma biografia a uma sociedade e de uma sociedade a uma biogra- fia implica uma teoria e uma tipologia das mediagdes sociais, ue so 0s campos ativos das totalizagdes reciprocas. Como diz Sartre, temos de estabelecer uma hierarquia desses espacos de mediagdo. Temos de definir as suas fungoes e as suas modali- dades de intervengao nos individuos que deles fizerem parte. 0 lado’, ou seja, a partir {duo que, por sua vez, os sintetiza ho- rizontalmente (0 seu contexto social imediato, 0 contexto do seu contexto, etc) e verticalmente (a sucesso cronoldgica d seu impacto com os diferentes espacos de mediagao: a fa 0s peer groups infantis ¢ escolares, etc.). E, sobretudo, neces- sirio identificarmos os espacos mais importantes, os espacos que servem de charneira entre as estruturas ¢ 0s individuos, os campos sociais em que se enfrentam mais diretamente a praxis singularizante do homem e o esforco universalizante de um sis- tema social Qa 0 esses espacos? ‘Ao nivel das relages de produgio e das esruta- ses de producac, Mas nada disto& vvido com Tanta simplicidade.[.] A pestoa vive e conhece mais ou menes claramente a sua condo, tre vés dos grupos aque pertence. A maloria destes srupos€ local, definida, dada imediatamente Portanto, podemos responder: si0 os grupos restritos ou. primédrios. Familias, peer groups de trabalho, de vizinhanga, de

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