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MATHESIS 1 1992 69-87 A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA José RIBEIRO FERREIRA A guerra e a paz constituiram dois vectores com papel de relevo na sociedade e na cultura gregas, se bem que a importancia de uma ¢ de outra nao apresente perfeita cocxisténcia temporal nem se possa afirmar que uma precedeu a outra. Logo nos primérdios da cultura grega nos aparece a afirmacio da guerra como um ideal nobre, mas nela se imiscui também a nostalgia da paz. Estou a referir-me aos Poemas Homéricos—a Iliada ¢ a Odisseia que, como é sabido, so fruto de uma improvisac&o oral ¢, por conseguinte, transmitem possivelmente concepgdes e dados ante- tiores A data da sua composi¢&o, o século vitta.c. !. A Iliada é wm poema de guerra ¢ o ideal ai proposto, simbolizado no seu heréi principal, Aquiles. reside na coragem e superioridade em combate. E o que vem explicito num passo do canto VI, em que se encontram frente a frente um troiano e um aqueu, Glauco e Diomedes respectivamente, e, como ¢ de bom tom entre os herdis homéricos, 1 No recuo além dos Poemas Homéricos, até aos Micénios que, como se sabe desde a decifracio do Linear B, jé eram gregos e falavam grego, por que os dados que possuimos so escassos € 0s textos omissos, por serem constitufdos na sua quase totalidade, de listas e enumeragdes. Apesar disso, cs testemunhos arqueolégicos € a lenda permitem afirmar que a guerra nao era um fenémeno desconhecido entre as cidadelas micénicas. Sobre o assunto vide J. Ribeiro Ferreira Hélade e Helenos — Génese e Evolugio de um Conceito, Coimbra, 1983, pp. 23-25. Poderiamos langar maos dos Poemas Homéricos que se referem a aconteci- mentos dos tempos micénicos € nos fornecem dados sobre essa época. No entanto no sabemos em que medida a sociedade neles descrita é histérica e as suas carac- teristicas correspondem as micénicas. Encontramo-nos perante a chamada Questio homérica e a debatida historicidade dos Poemas Homéricos. Sobre o assunto vide M. H. Rocha Pereira, Estudos de Histérla da Cultura Classica. 1— Cultura Grega, Lisboa, 61988, pp. 49-66 (a partir de agora: M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega); J. Ribeiro Ferreira, Op. cit., pp. 29-49. Todas as datas deste trabalho so anteriores & nossa era, a nfo ser que se especifique 0 contrdrio. 70 JOSE RIBEIRO FERREIRA perguntam-se pela linhagem um do outro, Ao falar dos antepassados refeie Glauco a respeito do pai Mandou-me para Trdia, recomendando-me com insisténcia que fosse sempre valente © superior aos outros, a fim de nao envergonhar a linhagem paterna, a mais conceituada em Efira e na vasta Licia. (wv. 207-210) Ser sempre valente no combate ¢ superior aos outros, para néo envergonhar a linhagem paterna é afinal a exceléncia ou superioridade —a areté, como diziam os Gregos — que visa este heréi para a sua vida !, Este ideal é ligeiramente completado por outros dois passos que se referem a Aquiles ou com ele estiio relacionados. Um situa-se no canto primeiro, quando o poeta informa que o heréi, apés a ofensa recebida de Agamémnon, irado se retirou do combate: ‘Nem frequentava a assembleia, que da gloria aos homens, nem © combate, mas ali permanecia consumindo © seu precioso tempo, com saudades do alarido e da uta. (wv. 490-492) © outro passo vem integrado no célebre episédio da Embaixada a Aquiles, no canto IX. Ao dirigir-se ao seu antigo pupilo, Fénix diz-Ihe que Peleu lhe dera por missio ensinar o filho a saber fazer discursos ¢ a praticar nobres feitos. 2 (wv. 443) Aquiles, 0 heréi maximo do poema, fora portanto preparado para praticar nobres feitos em combate, mas também para conseguir impor-se na assembleia, através da acte de persuadir. O ideal da 1 A areté, como é conhecido, indica de inicio apenas a exceléncia ou mérito, que pode abranger varios sentidos: a coragem em combate na Iiada, em Calino e Tirteu; a justica ¢ o trabalho em Hesiodo; a justica em Sélon e Tedgnis de Mégara, ara referir apenas alguns. S6 a partir de Sécrates passa a ter o significado prepon- derante de virtude. Sobre a areté ¢ sua importancia na Hélade vide W. Jaeger, Paideio (trad. port.), Lisboa, Editorial Aster, s.d., pp. 21-33; A. W. H. Adkins, Merit and responsibility. A study in Greek values, The Univ. of Chicago Press, 1960, repr. 1975, caps. 3 € 4 Moral values and political behaviour in ancient Greece, London, Chatto and Windus, 1972, passim. 2 A tradugdo dos passos da iliada é de M. H. Rocha Pereira, Hélade, Coimbra, 51990, pp. 24, 16 e 28, respectivamente. A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 1 Miada nfo € pois apenas a coragem no combate, mas inclui j4 uma componente intelectual. Na Odisseia a areté continua a incluir a forga, a coragem e a elo- quéncia, mas o ideal amplia-se: passa a associar, como esté bem patente no heréi do poema, Ulisses, a astucia e a habilidade em desenven- cilhar-se, em todos os momentos, das situagdes mais dificeis. A Odisseia constitui um poema de regresso — de nostos. & afinal, como anuncia logo o seu primeiro verso, 0 poema do «homem dos mil expedientes que muito sofreu», nos longos anos que, apés a Guerra de Trdia, andou errante pelo Mediterrfineo, sempre a ansiar pelo regresso a casa. Nele predomina o desejo de retorno ao lar, de repouso e de paz. Ainda aponta, como ténica principal do homem, a coragem e a exceléncia em combate, mas sente-se nele como que uma nostalgia da paz: a his- téria do homem que sente curiosidade de tudo e tudo quer experi- mentar, do homem de espirito aberto que, através de variadas aven- turas e dificuldades que ultrapassa gragas ao seu engenho e astiicia, recupera a paz e a harmonia do lar e da familia! Estes dois vectores continuaram presentes, naturalmente, ao longo da historia da Grécia, embora com predominancia significativa para © tema da guerra, sobretudo até ao dealbar do século Iv. Um relance pela histéria da Hélade deixa aos homens de hoje, sensibilizados para o espirito e os problemas da paz, a confrangedora impressdo de que as cidades gregas apenas pensavam na gucrra ¢ para ela viviam. A educagio nos primeiros tempos tinha por finalidade a preparagio do cidadao para a defesa do seu pais. Era por isso, de inicio, um ensino apenas militar, que incluia evidentemente os exercicios fisicos. Pre- tendia adestrar no manejo das armas os futuros defensores da pol $6 aos poucos o treino militar exclusivo foi sendo substituido por um sistema educativo que visava o desenvolvimento harménico das faculdades. O lugar onde isso se verifica primeiro é em Atenas, no século vi2. 1 Para uma anilise da Odisseia vide, entre outros, W. Jaeger, Paideia (trad. port,), pp. 34-55; M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega, pp. 84-96; J. Griffin, Homer. the Odyssey, Cambridge Univ. Press, 1987; J. Latacz, Omero, il primo poeta dell” occidente (trad. it.), Roma, Laterza, 1990, cap. 4. 2 Para a educagdo na época arcaica e sua evolugao vide H.-I Marrou, Histoire de Péducation dans U' Antiquité, Paris, Editions du Seuil, 1965, pp. 74-86; M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega, pp. 351-364. 2 JOSE RIBEIRO FERREIRA O Grego tinha um espfrito particularista e apenas se sentia realizado € livre em pequenas células independentes e auténomas—o sistema de pdlis em que gostava de viver e amava profundamente. Consi- derava a pdlis a tnica base possivel de uma existéncia civi lizada e livre, como foi acentuado com vigor por Platio e Aristételes. O pri- meiro toma a pélis como modelo do seu Estado ideal, 0 segundo ocupa-se do assunto no livro I da Polftica |, E estranho que a Grécia, em mais de quatro centirias — dos inicios do século vm a conquista da Macedénia em 338 —, apesar de varias tentativas nesse sentido, nunca tenha conseguido atingir a unidade. Mesmo quando faziam aliangas, como € 0 caso das simaquias, 8 seus membros eram considerados Estados soberanos, Em vez de darem passos no caminho da unido, as cidades-estado gregas pareciam remar em sentido oposto: passaram o tempo da sua histéria, quase na totalidade, desavindas; combatiam-se amitide com empenho feroz. Uma vez declarada a guerra, tudo 0 que podia aproximar os Gregos era esquecido, os ditames da justiga sto abolidos ¢ contra o inimigo todos os meios se utilizam 2, Suspensos com a guerra leis e costumes, cometem-se violéncias de toda a espécie e as mais barbaras atrocidades. Por ser uma das caracteristicas mais evidentes e conhecidas da histéria grega, nfo interessa aqui repisar o assunto. Basta acentuar, sem ' Por dois elucidativos passos de Platao (Criton 50a sqq. e Leis I, 625e) vemos quanto a polis era apaixonadamente sentida. No primeiro passo citado, ocorre a célebre prosopopeia das Leis; segundo estas, o cidadao recebe tudo da pélis, pelo que esta, que é ainda mais santa do que a familia, tem também o direito de exigir tudo dele. A dada altura as Leis referem que (Criton 51b) «aio deve esquivar-se, nem recuar, nem abandonar o seu posto, mas, no combate, no tribunal ou em qualquer lugar, tem obrigagio de fazer o que The ordenar a pélis ou a patrian. Nas Leis, a propésito das instituigées de Creta e da Lacedeménia, Clinias Justifica a imposicao das refeig6es em comunidade, sustentando que, desse modo, © Iegislador condena a insensatez da maioria por ignorar (Leis 1, 625e) «que a todos, enquanto durar a existéncia, toca uma guerra continua contra todas as outras cidades», Sobre o particularismo grego ¢ o seu amor a autonomia vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos 1, pp. 86-95. 2 Cf. Plutarco, Moralia 233b. Tal facto encontra-se bem patente na afirmago de Agesilau de que, se uma acco ¢ util ao pais, é belo realizé-la (Plutarco, Moralia 2102) ¢ nas palavras dos Atenienses aos Mélios, nas quais postulam que a justica reside na forga (Tucidides 5. 84-116, sobretudo 89, 91, 105). A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 73 medo de fugir muito 4 verdade, que sempre na Grécia, aqui ou mais além, se encontrariam focos de lutas entre as cidades, apesar de certas normas humanitérias Ihes minorarem a crueza!. Em vez de a gueira ser uma interrupgfo da paz, é esta que o é daquela. Com raziio observa J. de Romilly que, entre os Gregos, a guerra é «um estado normal» © que a paz é «um intervalo, um paréntesis... uma trégua». Pelos tratados de paz se vé que nunca concluiam uma paz definitiva, mas limitada (cf. Tucfdides 1. 112. 1; 3. 114. 3; 5. 18. 3e9)2. Temporarios, esses tratados nfo eram designados pelo termo eirene, que se aplicava apenas ao estado de paz, ou seja o oposto de polemos. guerra. De modo geral bilaterais, esses tratados recebiam o nome de tréguas e pactos (spondai e synthékai) ou interrupgSes da guerra. Assim se designavam o tratado de 446/445 (cf. Tucidides 1. 35. 1) e 0 de 421 (cf. Tucidides 5. 18. 1 e 3 e 19. 1), conclufdos entre Atenienses ¢ Espar- tanos. Puetendeu o primeiro apenas suspender a guerra entre as duas cidades e fixou como prazo de interrupeéio das hostilidades os trinta anos, pelo que também ficou conhecido por «Paz dos Trinta Anos». As tréguas de 421, designadas por Paz de Nicias, estipulavam um periodo de cessacao das hostilidades de cinquenta anos. As dissensées comegaram cedo, pois desde os primérdios da época arcaica nos chegam noticias da chamada Guerra de Lelanto, que pode ter envolvido a maior parte das cidades gregas dessa altura. Nascida da disputa entre Cilcis e Erétria pela posse da planicie de Lelanto em breve viu a maior parte das demais cidades colocarem-se ao lado de uma ou de outra (cf. Tucidides 1. 15. 3). Embora para a sua datacaio se hesite entre os fins do século vim e a primeira metade do século vi, é provavel que haja ocorrido pouco antes de 7003. Esparta é um caso paradigmético deste empenho dos Gregos pela guerra. Essa pdlis era uma maquina de combate: vivia para ele e em fung&o dele. Verdadeira cidade-quartel, as suas instituigdes haviam sido pensadas ¢ dispostas para que os cidadios estivessem sempre preparados e prontos a entrarem em combate. 1 Vide J. Ribeiro Ferreira, Helade e Helenos I, pp. 169 sqq- 2 Para 0 facto de os Gregos viverem em estado de guerra permanente ¢ de @ paz ser apenas uma interrupgiio daquela vide F. Adcock, «The development of ancient Greke diplomacy», AC 17 (1948) 1-12. 3. Vide J. P. Barron and P. E. Easterling, «Hesiod», in P. E. Easterling and B.M.W. Knox (edd.), The Cambridge History of Classical Literature 1 — Greek Literature, Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p.93. Vide ainda M. Sordi, La lega tessala fino ad Alessandro Magno, Roma, pp. 42-51. 74 JOSE RIBEIRO FERREIRA Como é sobejamente conhecido, na Lacedeménia as criangas pertencem ao Estado desde que nascem ¢ a partir dos sete anos sio edu- cadas pela pélis que Ihes dava uma preparagdo fundamentalmente de indole fisica, ao ar livre, e toda ela virada para a intervengdio na guerra. Proibidos de se dedicarem a trabalhos manuais, os jovens espartanos, sujeitos a uma vida parca e austera, viviam em comum, divididos em grupos, dirigidos pelo mais avisado de cada um desses corpos, e apren- diam a obedecer e a suportar a fadiga e a dor, a falar de forma concisa ¢ sentenciosa, ou seja a serem lacénicos !. Também as jovens tinham uma educag&o ao ar livre, em que 0 exercicio fisico predominava. Esparta queria fazer delas mes robustas que pudessem dar a pélis futuros cidadios robustos 2. Atingida a idade adulta, com uma vida familiar muito limitada, continuavam a viver em grupos, tal como combatiam, obtigados a tomarem uma refeigiio didria em comum nos chamados syssitia, ¢ eram sujeitos a preparagio fisica e a treino militar constantes, de modo a encontrarem-se sempre prontos a entrarem em combate. Esparta considerava todas as outras actividades — agricolas, comerciais, industriais ou artesanais —indignas de homens livres; para essa pélis, apenas a guerra, e a sua consequente preparaco, pres- tigiava e dignificava os cidadios. Por isso proibia estes, os «Iguais» (Homoioi), de se dedicarem a qualquer outra ocupacio 3. A literatura da época arcaica, em especial a poesia que vive em ligagdo estreita com a pélis, veicula a cada passo a ideia — na sequéncia aliés do que j& encontrémos em Homero — de que a guerra é a activi- dade nobre, de que é nos campos de batalha que o cidadio alcanca a gloria e de que a sua areté reside na coragem em combate. Vou apontar dois ou trés exemplos. Calino, um poeta de Efeso, do século vit, no fr. 1 West dirige-se aos seus concidadaos, em guerra com os Cimérios, ¢ exorta-os a pega- 1 Xenofonte, Reptiblica dos Lacedeménios 2. 1-11 ¢ 6. 1-2; Plutarco, Licurgo 16-20. O laconismo era uma caracteristica to cultivada pelos Espartanos — os habi- tantes da Laconia — que passou a posteridade como um substantive comum para designar a qualidade ou defeito do que é parco em palavras. Plutarco, Licurgo 19-20 d& numerosos exemplos dessas sentencas concisas dos Lacedeménios. 2 Cf. Xenofonte, Repiiblica dos Lacedeménios 1. 3 sqq.; Platdo, Leis 7, 804d e 813e; Plutarco, Licurgo 14-15. 3 Para a proibiglio de os cidaddos espartanos se dedicarem a actividades econémicas cf. Xenofonte, Reptiblica dos Lacedeménios 7; Plutarco, Licurgo 23.2-3. A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 15 Tem em armas e a manterem-se firmes na frente de batalha, jé que a cobardia traz desonra e + € honra e gloria para um homem combater pela patria, pelos filhos e pela legitima esposa. 1 (wv. 6-7) Tirteu, poeta espartano do mesmo século, afina por igual diapasio. Na altura Esparta estava envolvida numa guerra contra a Messénia © 0 poeta compunha poemas de incitamento dos concidadios ao combate, que os soldados, segundo informagao de Ateneu 14. 630e, entoavam quando se dirigiam para a batalha. Neles proclamava: E belo para um homem valente morrer, caindo nas primeiras filas, a combater pela patria (fr. 10 West, vv. 1-2) © jovens, permanecei no combate ao lado uns dos outros, ndio comeceis com a fuga vergonhosa ou com o medo, ‘mas criai no vosso espirito um Animo excelso e valente, deixai o amor 4 vida ao combater com os homens. (fr. 10 West, wv. 15-18) Considera que aos jovens compete defender a cidade, jé que sera grande a sua gloria, quer morra, quer conserve a vida: Quando vivo, admiram-no os homens, amam-no as mulheres; ¢ é belo, se cai nas primeiras filas. Figue cada um em seu posto, de pernas bem abertas, ‘0s pés ambos fincados no solo, mordendo 0 lébio com os dentes. 2 (fr. 10 West, vv. 29-32) Tirteu volta a pér em relevo o heroismo e a valentia guerreira no fr. 9 Diehl, onde exorta de novo os cidaddos a manterem-se firmes nas primeiras filas, pois essa é a verdadeira superioridade. Para ele, nfo tem valor a exceléncia nos jogos, na estatura, na forca, na beleza, na tiqueza, no poder, na eloquéncia ou na gléria, se the faltar a coragem valorosa em combate (wv. 1-9). 1 A tradugao de M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 92. 2 A tradugao dos passos de Tirteu é de M. H. Rocha Pereira, Hélade, pp. 93 © 94, respectivamente, 16 JOSE RIBEIRO FERREIRA Alceu, poeta de Lesbos, toma parte activa na vida politica da sua ilha e sente prazer em descrever 0 equipamento usado pelo cidadio na guerra: ‘A enorme casa resplandece de bronze. tecto est4 todo adornado com elmos brilhantes, ondeiam os brancos penachos de crinas de cavalo, adorno das cabecas dos guerreiros. As cnémides resplandecentes, defesa contra o dardo potente, ocultam os cabides donde pendem, As couragas de linho novo e os escudos cOncavos amontoam-se no cho, Ao lado jazem espadas da Calcidia, cinturdes eniimeros e ttinicas. Disto tudo nfo nos esquecamos, desde que empreendemos esta tarefa. 1 (fr. 357 Lobel-Page) E certo que outros autores nfo colocavam o seu ideal de superiori- dade na coragem em combate 2. No entanto, mesmo um poeta como Arquiloco, natural de Paros, que renega o ideal herdico Algum Saio se ufana agora com o meu escudo, arma excelente, que deixei ficar, bem contra a vontade, num matagal. Mas salvei a vida. Que me importa aquele escudo? Deixé-lo! Hei-de comprar outro que no seja pior. (fr. 5 West) mesmo ele reconhece a importancia e 0 cardcter obsorvente da guerra. Afirma com efeito no fr. 1 West: Eu sou o servidor do Senhor dos combates ¢ conhecedor dos amdveis dons das Musas. E no fi. 2 West: ‘Na minha langa esté 0 meu pio amassado, na langa © vinho ismérico; bebo apoiado na lanca. A guerra nfo envolvia apenas Gregos contra Gregos. A cada passo era feita entre estes e os que eles chamavam os Barbaros 3, Neste dominio destacam-se as Guetras Pérsicas, com duas invasdes da Grécia, uma em 490 e outra em 480-479. A primeira tetminou com a vitéria 1 A tradugdo de M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 103. 2 Por exemplo, Hesfodo coloca-o no trabalho ¢ na justica, Sélon ¢ Teégnis de Mégara na justica. 3 Para o conceito de Barbaros entre os Helenos vide J. Ribeiro Ferreira, Heélade e Helenos Y, pp. 185 sqq. ‘A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA a grega em Maratona, na segunda os Helenos sairam vencedores em Salamina, Plateias e Micale. Estas Guerras, ¢ as vitdrias nelas alcan- cadas, foram capitais para a Grécia, e até para o mundo ocidental 1. Dando aos Giegos confianga no futuro e na missio que Ihes estava reseivada, 0 acontecimento provocou uma onda de euforia. A liber- dade havia sido ameagada, mas & custa de coragem e valor fora con- servada; e esse foi um feito que ficou na meméria dos Helenos como um dos maiores marcos de giéria ¢ como um ponto de referéncia no futuro. Se muitos homens morreram por essa liberdade, a sua coragem nao mais deixou de ser lembrada e a sua gloria de ser cantada. Em seu louvor compés Siménides, o poeta da gesta herdica das Guertas Pérsicas, varios poemas, sobretudo epigramas. Cito apenas quatro exemplos. Aos valentes espartanos das Termépilas dedicou um canto coral (fr. 5 Diehl = 26 Page) que, na opiniao de Lesky, constitui um precioso testemunho da participago poética de Siménides na luta pela liber- dade2. Af, considera ele que, para os mortos das Termépilas, o destino € glorioso e bela a morte, o pranto anda unido ao elogio e é seu timulo um altar a que nem o bolor nem o tempo destruiré. Esta sepultura de homens corajosos escolheu para a guardar a fama excelsa da Hélade. (wv. 6-7) A morte fisica transformou-se em vida moral: os que agora jazem no so mortos, mas «a gléria da Hélade», Um epitafio dos Megarenses (96 Diehl = Page, EG. XVI) refere-se aos que nas Guerras Pérsicas receberam o destino da morte para que prosperasse, na Hélade e entre os Megarenses, o dia da liberdade: Que prosperasse na Hélade ¢ entre os Megarenses o dia da liberdade Procuramos com afa. Por isso escolhemos 0 destino da morte, Aos Espartanos caidos em Plateias dedicou um epitafio (121 Diehl = Page, EG. IX), no qual se refere que eles, ao morrerem, coroaram a patria amada de gloria inextinguivel Mortos, no desapareceram: a areté que aqui os exornava os far regressar da mansio do Hades. 1 Tenha-se em conta apenas que as mais significativas realizagdes culturais helénicas ainda se ndo tinham verificado ¢ ndo esquegamos a influéncia profunda que tais realizagSes exerceram na posteridade. 2 Geschichte der griechischen Literatur, Bern, 1971, p. 215. 78 JOSE RIBEIRO FERREIRA Também para os Atenienses mortos na mesma batalha compés Siménides um epitéfio (118 Diehl = Page, EG. VIII) em que se exalta a coragem dos que ali jazem e o contributo que deram a liberdade da Hélade: Se uma bela morte ¢ da areté o melhor galardéo, essa sorte a nds coube entre todos. Lutémos por coroar a Grécia com a liberdade; agora jazemos aqui, com louvor imarcescivel 1, heroismo dos Gregos nas Guerras Pérsicas, também Esquilo o exalta, ele que tomou parte activa no conflito como combatente. Nos Persas, 0 poeta expressa a alegria que o afastamento do perigo provocara. A tragédia foi representada em 472, numa altura em que se vivia um momento de euforia ¢ em que a confianga e subsequente dinamismo comegara a dar os seus frutos. A Tracia fora libertada e com ela se fechava o ciclo de recuperagao das cidades do mundo helénico que um dia se encontraram sob o dominio da Pérsia. Essa ideia de liber- tag&o est patente num canto do Coro (wv. 585-594). Este, constituido por ancidios persas que pertencem ao conselho do rei, lamenta o desastre que deixou vitivas muitas persas e muitas outras sem filhos. Este canto, um lamento para os Persas, repercutia de modo acariciador aos ouvidos dos Gregos. Para estes — dizem os ancifios, se bem que os néo nomeiem — nao havera mais sujeig&o aos Persas: Nao mais obedecerdio & lei dos Persas, no mais pagardo tributo por imposi¢o do soberano nem, de joelhos postados em terra, mostrardo reveréncia. O grande Rei perdeu a sua forga, Nao mais tém os homens a lingua sujeita a freios. Fica liberto um povo e fala livremente. logo que é afastado 0 jugo da forga. Fundamentalmente uma exaltagéo da vitéria de Salamina, os Persas n&o sio uma pega tendenciosa nem louvam estritamente Atenas 1 A tradugdo do fr. 26 Page ¢ dos epitéfios 121 ¢ 118 Diehl é de M. H. Rocha Pereira, Hélade, pp. 145 © 148, respectivamente. A GUERRA F A PAZ NA POLIS GREGA 79 como ja se pretendeu!. Decorrendo a acgdo em Susa e sendo 0 Coro constituido por anciéos persas, os acontecimentos sdo vistos, evidente- mente, pela perspectiva dos Persas. Ao longo da peca, Esquilo inclui, no entanto, muitos elementos que visam no fundo estimular os senti- mentos patridticos da audiéncia e recordar os feitos e vitérias dos Gregos. Repercute-se também uma visio dos acontecimentos pela perspectiva destes. Essa dupla visio dos factos manifesta-se com evidéncia em alguns passos. Cito apenas a enumeragio — dolorosa para os ancifios persas, mas gloriosa para os Gregos, e em especial para os espectadores atenienses — dos lugares da Tracia, as cidades da Idnia e as ilhas do Egeu, em tempos conquistadas por Dario e agora perdidas por Xerxes (vv. 852-907) 2. Para obviar a uma futura invasio persa, as cidades gregas do Egeu resolvem unir-se em redor de Atenas e formam a Simaquia de Delos que estara na base da hegemonia e do imperialismo atenienses 3. Essa Alianga formava no século V um bloco, a que se opunha um outro liderado por Esparta, a Simaquia do Peloponeso, existente alias desde © século vi. O primeiro compunha-se de cidades que, & imagem de Atenas, optaram de modo geral por um regime democratico, quer o fizessem de livre vontade, quer por coacc&o. Nos Estados da Simaquia do Peloponeso, por oposi¢&o ao bloco anterior, dominava a oligarquia. O confronto entre os dois blocos e o receio que um sentia do outro foram-se acentuando ao longo dos tempos até deflagrar na dolorosa Guerra do Peloponeso, de graves consequéncias para os Helenos, que, durante cerca de trinta anos — de 431 a 404 a.C. —, assolou a Grécia ea foi depauperando, Guerra longa, assentava, como era tActica da época, na invasdo e destruic&o das culturas do lado inimigo e era feita, além disso, pelos cidaddos, numa boa parte camponeses, que tinham de deixar as terras ao abandono, anos a fio sem cultivo4. Tudo isto afectou profundamente a economia, sobretudo comecou a minar a confianga e a alterar o posicionamento do Grego quanto a guerra. 1G, Murray, Aeschylus the creator of tragedy, Oxford, 1940, p. 121; M. Gaga- rin, Aeschylean drama, Berkeley, 1976, pp. 33-36. Sobre estas posigbes vide H. D. Broadhead, The Persae of Aeschylus, Cambridge, 1960, pp. XV-XVI. 2 Sobre a anilise dos Persas como peca de exaltagéo pan-helénica vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos 1, pp. 324-336. 3. Jé me referi ao assunto no trabalho «Hegemonia Ateniense» Conimbriga 28 (1989) 33-51, 4 Esparta, como vimos (pp. 5-6), esté numa situagio diferente de quase todas as outras cidades. Ai aos cidadios eram proibidas todas as actividades que ndo a guerra ¢ a preparacdo para ela. 80 JOSE RIBEIRO FERREIRA © conflito da Guerra do Peloponeso assolava as cidades gregas, marcado por actos de oportunismo, de injustica, de ambicdo e de vin- ganga — as vezes momentos até de atrocidade e de selvajaria, de que destaco a chacina e esctavizagao dos habitantes de Cione em 421 (Tuci- dides 5. 32. 2) e de Melos em 416/415. A guerra ia deixando atras de si um cortejo de sofrimento e de dor, um descontentamento crescente. Como consequéncia, comega a gerar-se uma nova concepgao de guerra ede paz. A primeira deixa de ser, como até ai, 0 estado normal das relag6es entre os Estados, perdendo essa condigiio em favor da paz |. E natural que os autores gregos veiculem esse descontentamento e se fagam eco das novas concepgdes que comegam a apatecer. Sao disso exemplo Euripides, Tucidides, Aristéfanes, entre outros. Vou aqui fazer uma alusio breve ao ultimo e uma referéncia mais desen- yolvida a Euripides. Em Aristofanes a guerra origina a destruicéo da Hélade. Esta 86 se salvar pela concérdia e pela unio. Dai que defenda em algumas das suas pecas a paz entre os Gregos que, em sua opinido, trar pros- peridade, alegria, abundancia e felicidade. Em contraste, a guerra provoca a pentiria, a fome, a dor. O comedidgrafo concebia a Hélade como um todo em que habitavam povos ligados por lacos de sangue, religido e cultura e por isso considera as lutas entre eles como guerra fratricida e intestina. Via que essas lutas conduziam a ruina dos Helenos e eram aproveitadas pelos Persas. Comprende-se, por isso, que defenda a conciliagéio e pregue a paz com tanto empenho. Fa-lo nos Acarnenses, nos Cavaleiros, na Paz e na Lisistrata. O poeta nfo apresenta, no entanto, uma evolugao no conceito e proposigéo da paz: & nos Acarnenses (vv. 175-202, 988-992) ainda tréguas e reconciliagiio (dialagé), tréguas de novo nos Cavaleiros (vv. 1388-1391); aparece na Paz elevada a imagem de culto — Eirene?; a Lisistrata apresenta a revelagdo final da divina Reconciliagio (Dialagé), como presenca activa e benéfica, Estas diferentes manifestagdes explicam-se por diversos circunstancialismos, entre os quais avultam os politicos. Euripides é um autor que, a cada passo, nos desconcerta pelas posigées diametralmente opostas, ou pelo menos muito dispares que 1 Cf. S, Payrau, «Guerre et paix dans la Gréce ancienne», BAGB (1985) 132; J. de Romilly, «Guerre et paix entre cités», in J.-P. Vernant (ed.), Problémes de la guerre en Grece ancienne, Paris, 1968, pp. 207-211. 2 Em Atenas a Eirene, como veremos mais adiante, passa a ser objecto de culto pablico desde a «Paz de Célias» em 371. Para uma anélise mais pormenorizada destas comédias, como pegas empenhadas na promogio da paz vide José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 413-440, ‘A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 81 por yezes encontramos nas suas pesas. Embora a critica & guerra constitua um veio significativo nas suas tragédias e a defesa da paz parega ter sido uma preocupagio do poeta, desde os primeiros tempos da Guerra do Peloponeso, também nele encontramos pegas que defendem © que poderiamos chamar a «guerra santa» dos Gregos contra os Bar- baros. Esta posigio aparece, por exemplo, na Ifigénia em Aulide, significativamente, a ultima pega que dele nos chegou e que a sua morte em 406 parece ter deixado por concluir. Trata-se de um apelo & unidio dos Helenos contra os Barbaros—apelo que seri frequentes vezes repetido ao longo do século 1v—, para que os primeiros fossem livres e n&o viessem a ser dominados pelos segundos. Ifigénia, a prota- gonista da tragédia, oferece-se por esse ideal !, Mas um grupo significativo de pegas do autor aborda de forma critica o tema da guerra, Estiio neste caso 0 Cresfonte, a Andrémaca, a Hécuba, as Suplicantas, as Troianas e a Helena. No Cresfonte, peca perdida que nfo pode ser posterior a 425 ¢ de que apenas restam escassos fragmentos (frs. 449-459 N2), havia uma apaixonada invocagio da paz dispenseira de riquezas ¢ a mais bela dentre os imortais 2. (fr. 453 N2) A Andrémaca, peca que se situa na mesma época, tem como pano de fundo, se bem que no passado longinquo, 0 conflito de Tréia que atingiu tanto vencidos como vencedores: todos sofrem os seus efeitos. Nas cidades gregas — refere o Co.o nos versos 1037-1044 — as esposas perderam os maridos e muitas mes entoam lamentos pelos filhos 3. A Hécuba, datavel de 424/423; € percorrida por um profundo horror & guerra. A acglio incide sobre o sofrimento que o conflito trouxe & rainha e as cativas de Trdia, mas nfo esquece que os seus efeitos atingem também os vencedores: os versos 650 sqq., proferidos pelo Coto, lem- bram as miles da Lacénia que, junto do Eurotas, choram os filhos mortos. 1 Para o pan-helenismo na Ifigénia em Aulide vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 403-412. 2 Este fr. de Euripides, de imediato, traz 4 meméria os elogios dos beneficios da paz nas comédias de Aristofanes Acarnenses, Paz e Lisistrata. Sobre o assunto vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 413-440. 3 Vide J, Ribeiro Ferreira, Euripides: Andrémaca. Introdugio, tradugao e notas, Coimbra, 1971, pp. 79-85. 6 82. JOSE RIBEIRO FERREIRA Nas Suplicantes estabelece-se na parte inicial da pega uma distingio entre a guerra justa e a guerra injusta ¢ a primeira ¢ admitida no campo dos principios; postula-se mesmo a sua necessidade em determinadas circunstncias, Composta a pega provavelmente em finais de 424, a acco decorre em Eléusis, diante do templo de Deméter !. £ bem conhecida a Ienda dos Sete contra Tebas, os sete herdis que se aliam para exigir de Etéocles, um dos filhos de Edipo, a entrega do governo da cidade ao irmao Polinices, como ficara combinado. O exército de Argos, comandado pelo seu rei Adrasto, marchara contra Tebas, mas a expe- dig&o salda-se num fracasso, ¢ os Sete guerreiros perecem em combate. Insensivel aos rogos dos familiares dos atacantes e contra os ditames do uso ¢ da religidio, a cidade, por decreto ptiblico, deixa os corpos dos vencidos insepultos, 4 mercé das feras e das aves de rapina. As mies € os drfaos dos mortos recorrem entdo a Atenas e, em atitude de stiplica, imploram de Teseu ajuda na recuperagdo dos filhos e pais mortos. E nesta atitude que os encontramos, quando a tragédia comega. Depois de algumas hesitagdes iniciais e apesar das ameagas de Tebas, o rei concede a ajuda solicitada e, numa expedig&o vitoriosa, alcanga o objective que visava, A peca termina com o ritual fanebre da cremag&o dos corpos dos Sete guerreiros ¢ com a entrega das suas cinzas aos filhos, que juram nfo mais pegar em armas contra a cidade de Palas. Apesar de se admitir a guerra justa no campo dos principios, a impressio derradeira remanescente parece ser a evidéncia amarga das tragicas consequéncias de tal flagelo. A acco da tragédia ordena-se pelo menos no sentido de sublinhar, na parte final, a dor e a ruina sem remédio que dai resultam. A pega termina com a visio dolorosa da morte e do sofrimento que enchem toda a segunda parte. Lutou-se para manter a justiga humana e divina—a razio mais ponderosa e gloriosa possivel —, mas nio é de gléria a imagem que se patenteia a nossos olhos, quando a pega acaba. Como viséo final, as Supli- cantes deixam-nos a desgraca ¢ o sofrimento do povo que foi vitima da guerra. 4 Nao ha unanimidade quanto ao momento em que teria sido composta a tragédia. Os especialistas tém optado por datas que oscilam desde 424 (Zuntz, The political plays of Euripides, Manchester, 1955, repr. 1963, pp. 53-94; Webster, The tragedies of Euripides, London, 1967, pp. 116-117) até 417-416 (Schmid-Stahlin, Geschichte der griechische Literatur 1. 3, pp. 454-455). A tendéncia actual é para admitir a data mais remota. Vide C. Collard, Euripides: Supplices, Croningen, 1975 pp. 814. A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 83 A solidiio e 0 desespero tornam-se poi vezes insustentaveis. Evadne, vitiva de Capaneu, um dos guerreiros mortos, evoca as mipcias — dia longinquo de felicidade que contrapde a c1uel realidade presente — ¢ prefere 0 suicidio na pira do marido a suportar a existéncia sem a presenga deste (vv. 990-1071). ffis, seu pai, vé-se confrontado com uma vida impossivel de solidao (vv. 1095-1096). No palacio, diz ele, “ encontrarei a solidac dos enormes aposentos ¢ uma vida impossivel para mim. A guerra levara-Ihe o filho, Etéocles, 0 genro, Capaneu, e a filha, Evadne. S6 Ihe resta chorar, recordar a ternura da filha perdida e mergulhar na renuncia absoluta que conduziré 4 morte (vv. 1080-1113). A cena de Evadne e de ffis visa assim condenar as expediges militares, quantas vezes evitéveis, mostrando o mal que elas provocam 1, Deixando atrds de si um rasto de destruig&io e de dor, a guerra é um flagelo que nfo poupa ninguém, tanto a nivel colectivo como a nivel individual. A empresa insensata de Adrasto tanto trouxe dor e des- graca a Argos, enquanto grupo social, como devastou a existéncia individual de Evadne e, por meio dela, a de ffis. Sem escolher as vitimas, as trdgicas consequéncias desse flagelo atingem sobretudo os inocentes e os indefesos que em nada contribuiram para o seu desen- cadear, Com a guerra — mostra-o Mcdonald 2 —, a felicidade pode sorrir por um momento com a vitéria, mas quase sempre acaba por ser des- trufda pela guerra, tudo parecendo depender do facto de esta ser evitada ou nao. Se alguém a inicia é inevitavel o consequente ciclo de dor e sofrimento. As Troianas pdem mais uma vez em cena as vitimas inocentes apanhadas pelas malhas da violéncia cega da guerra. A pega foi apresentada nas Dionisias de 415, pouco tempo passado do cerco conquista de Melos em que Atenas chacina os homens vilidos e reduz Aescravatura as mulheres e criangas (Tucidides 5, 85-116) e no momento em que acabava de ser votada a expedig&io longinqua ¢ onerosa Sicilia. que se vai saldar por um revés. 1 Sobre as interpretagdes da cena de Evadne e de ffis vide H.D-F. Kitto, Greek tragedy, London, Methuen, 31961, pp. 224-225; Strohm, Euripides, pp. 59-60; C. Collard, Euripides: Supplices, Groningen, 1975, pp. 353-356 ad 980-1113; J. de Romilly, L’évolution du pathétique d'Eschyle a Euripide, Paris, 1980, pp. 37-39. 2° Terms for happiness in Euripides, Gottingen, 1978, pp. 99-111. 84 JOSE RIBEIRO FERREIRA Novamente decorre a acgfo nos dias imediatos A tomada de Troia € no centro da pega coloca o poeta, como fizera na Hécuba, as mulheres ¢ criangas da cidade conquistada, prisioneiras dos Gregos. A cena Passa-se frente as tendas das cativas, tendo por fundo a cidade, silen- ciosa e sem vida, que em breve se desmoronaré destruida pelas chamas. Taltibio, arauto dos Aqueus, em cumprimento das decisdes do exército, transmite aos cativos o seu cruel destino: Polixena, sacrificada no tamulo de Aquiles; Cassandra e Andrémaca, concubinas de Agamémnon € de Neoptdlemo, respectivamente; Astianax, uma crianca inocente, precipitado das muralhas da cidade, apenas, por ser filho de Heitor; Helena, a principal culpada, parte para Esparta sem qualquer punigdo. Perante este doloroso desfile, Hécuba, sem esperanga, tenta lancar se nas chamas que consomem Tréia e ficar sepultada sob os escombros, mas sem éxito; é obrigada a viver para ser escrava de Ulisses. Trés anos mais tarde, ao que parece em 412, Euripides apresenta a Helena, composta sob o efeito do desastre da Sicilia em 413 que trouxe o desespero ¢ foi de graves consequéncias para Atenas (Tuci- dides 8. 1). E bem conhecida a versio do mito relativa ao rapto de Helena por Paris, com a consequente Guerra de Tidia e destruiggo da cidade pelos Gregos—um feito que ficaré ao longo dos tempos como uma das mais ilustres glérias da Hélade. Ora Euripides nao segue nesta pega tal versio da lenda, mas uma outra —j4 conhecida de Herddoto 2. 112-120 e provavelmnte de Estesicoro 1 — em que a verdadeira Helena, em vez de partir para Tréia, é levada por Hermes para o Egipto, por ordem da deusa Hera, para defraudar os intentos de Paris e de Afrodite. Em substituigéo vai para flion um eidolon seu—um fantasma sem consisténcia nem realidade. E por esse eidolon que Aqueus ¢ Troianos combatem e se envolvem em dez longos anos de lutas e de sofrimentos. Desse modo a expedigfio contra Tria, de empresa nobie ¢ louvada pelos Gregos, transforma-se numa guerra louca que tem um motivo futil e ridiculo—a posse de um fantasma. Ganham assim sentido as palavras indignadas do mensageiro, quando vem noticiar o desaparecimento do eidolon, no momento em que, chegados ao Egipto, se d o reencontro com a verdadeira Helena: os Gregos pereceram por uma nuvem e Tréia foi destruida por nada (vv. 749-751). Mais tarde, depois do reconhecimento de Helena por Menelau e de haverem os dois plancado a fuga, é 0 Coro que, em ter- 1 Fr, 192 Page. Sobre o assunto vide M. O. Pulquério, «O problema das duas palinédias de Estesicoro», Humanitas 25-26 (1973-1974) 265-273. A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 85 mos bem explfcitos, condena a insensatez dos que procuram a gléria nos combates e buscam nas armas o remédio para os males da huma- nidade: Insensatos de v6s quantos na guerra buscais gloria, ¢ nas lancas robustas, nelas julgando encontrar, em vossa ignorancia, © remédio para os males dos mortais. Se & 0 combate sangrento a decidir, nunca a discérdia se ausentard das cidades dos homens. (wy, 1151-1157) Estas afirmagdes pacifistas e de condenac&o da guerra, centradas em volta dos acontecimentos de 425, da conquista de Melos e da expe- digio & Sicilia, sio significativas e no deixam de constituir um indicio da posigio de Euripides perante o conflito entre Atenas e Esparta. No entanto, nao se confina a isso a sua atitude perante a guerra: é mais ampla. No tratamento do tema, o poeta foca os acontecimentos de modo geral pela perspectiva dos vencidos. Atraem-no sobretudo as vitimas sem culpa ou que a tém em minimo grau: as mulheres ¢ as criancas, seres inocentes e indefesos sobre os quais recaem as conse- quéncias mais gravosas. Sao sempre elas as principais vitimas de todas as guerras. Ultrapassada a Guerra do Peloponeso, o tema da guerra e da paz continua presente no pensamento grego e move-se dentro de detei- minados vectores, j4 indiciados no tltimo quartel do século v, que, quais esteredtipos, aparecem repetidos ao longo do século tv. Acen- tua-se a nogdo de que os Helenos estavam unidos por lagos de sangue e, consequentemente, condena-se a luta entre si. Preconiza-se por isso a reconciliago de uns e de outros, para que todos unidos enfren- tem em comum os Barbaros, como j4 encontrémos defendido alias no século anterior por Euripides e por Aristéfanes. Daf que se veja crescer 0 desejo de uma paz geral que englobasse todos os Gregos, ou mesmo que fosse mais além 1, A Guerra do Peloponeso, continuada por uma série de lutas —caso da Guerra de Corinto (395-386), guerra de Atenas e de Tebas contra Esparta (378-371), invasio do Peloponeso por Tebas (371-361), guerra entre Filipe e Atenas (357/356), Guerra Social entre Atenas € 1 Sobre estas questdes vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos 1, pp. 459-479. 86 JOSE RIBEIRO FERREIRA os Aliados (357-355), Terceira Guerra Sagrada (355-346) — que culminia na conquista macedénica em 338, fora deixando marcas profundas na mentalidade do Grego ¢ no seu modo de vida, a ponto de o século 1v apresentar caracteristicas bem diferentes do antecedente. Esse estado de guerra que se prolongou, quase sem interrupgfio, por cerca de um século, traz graves consequéncias para a vida dos Gregos. Dado que as guerras na Antiguidade eram por sistema operagdes de razia, os mais afectados eram sempre os camponeses que viam as suas culturas ¢ haveres destruidos. Dai o abandono dos campos, o refiigio na cidade € a consequente pauperizagao que, por sua vez, dé origem a dissensdes internas (a stasis) nas cidades 2. O desencanto surge pouco a pouco € apossa-se dos Helenos o desejo de uma paz permanente que os envolva € os abranja a todos — a chamada koiné eirene 3, As ocorréncias de tal expresso na literatura grega e nas inscrigdes subsistentes nao so numetosas, umas nove no maximo. Na literatura, a expressaio aparece no discurso do Andécides Sobre a Paz, proferido em Atenas em 391 durante a Guerra de Corinto (III. 11, 17 ¢ 34), e em discursos de Esqui- nes (III. 254) e do Pseudo-Deméstenes (XVII. 2, 4 e 17), aplicada a paz de 338/337, que se seguiu a batalha de Queroneia e confirmou o dominio da Macedénia sobre a Grécia. No tocante as inscrigdes, a expresso parece jé aparecer aplicada a «Paz do Rei» de 387/386, num decreto ateniense de 377. Em 362/361 ja o sintagma koiné eirene surge utilizado nos documentos oficiais, pelo que talvez seja razodvel supor-se que a generalizag&o do seu uso se tivesse verificado pouco tempo antes 4, Até ao século iv a guerta aparecia como ja foi referido, como a situag&io normal e a paz constituia apenas uma interrupgao desse estado. Os tratados de paz, tempordrios, de modo geral recebiam o nome de tréguas e pactos. O primeiro tratado a receber o nome de eirene, de paz propriamente dita, na liguagem oficial, como vimos, foi a chamada «Paz do Rei» (387/386) que estipulava a autonomia de todas as cidades gregas ¢ nio fixava qualquer limite de tempo (cf. Xenofonte, Helé- 2. Sobre as principais caracteristicas do século IV vide W. Jaeger, Paideia Il, pp. 1 sqq.; M. Austin et P. Vidal-Naquet, Economies et sociétés en Gréce ancienne, Paris, 1972, pp. 150-177; F. Vanier, Le 1V* siécle grec, Paris, 1967. 3 Vide T. T. B. Ryder, Koine Eirene. General peace and local independence in Ancient Greece, Oxford, 1965. 4 Dittenberger, Syiloge 182; 1G. 1V, 556. Sobre estes dois tratados de paz vide Ryder, Koine Eirene, pp. XV, 34-36, 79-86 © 140-144. A GUERRA E A PAZ NA POLIS GREGA 87 nicas 5. 1, 29-31). No entanto, Aristéfanes, em 421, jé da o nome de irene a uma sua comédia, enquanto Tucidides utiliza o termo algumas vezes (e.g. 5. 17. 1), o mesmo acontecendo com Lisias (XIII. 5). O vocd- bulo surge num decreto de 405 da Assembleia ateniense. Cefisédoto, escultor da primeira metade do século tv, esculpiu uma Eirene que detém numa das mos Plutos ainda criangca!. A deusa foi mesmo objecto de culto piiblico, pelo menos a partir da Paz de Calias, em 471 (cf. Pau- sfinias 1. 8. 2). Estes dados s&o significativos ¢ talvez constituissem 0 afloramento de um pensar comum que se afirmava cada vez com mais insisténcia e de forma mais vasta: a ideia de que a paz era a raziio do Estado e de que os acordos que a estabeleciam e asseguravam a sua manutengio deviam possuir um cardcter de permanéncia, Parece-me por isso ter razio Ryder, ao considerar a hipétese de a terminologia e a linguagem oficial andarem um pouco atrasadas em relagdo ao pensamento geral e ao falar do dia a dia 2. 1 Vide M. Robertson A Shorter history of Greek art, Cambridge, 1981, pp. 138- -139. Para o decreto da Assembleia, de 405, G I1?.1.21 (= Meiggs-Lewis, SGHI, pp. 283-287, n.° 94). 2 Koine Eirene, p. 6.

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