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ROLAND BARTHES o rumor da lingua Esta obra foi publicada originalmente em frances com o titulo LE BRUISSEMENT DE LA LANGUE por Editions du Seuil. Paris. Copyright © Editions du Seuil, 1984 Copyright © 2004, Livraria Martins Fontes Editora Lida Sia Paula, para a presente edigaa. F edigao 1988 (Editora Brasiliense) 7 edicao tho de 2004 ‘Tradugio WARIO LARANJEIRA Revisio da tradugio Andréa Stahel M. da Silva ‘Acompanhamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisbes grificas Leticia Braun Maura de Barros Dinarte Zorzaneli da Silva Produsio grifica Geraldo Alves Paginagao‘Fotoitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacéo (CIP) (Cfimara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barthes, Roland, 1915-1980. © rumor da lingua / Roland Barthes ; preficio Leyla Perrone Moisés ; tradugdo Mario Laranjeira ; revisio de tradugio Andréa ‘Stahel M. da Silva, ~ 2! ed. - $40 Paulo : Martins Fontes, 2004. ~ (Colegio Roland Barthes) ‘Titulo original: Le bruissement de la langue. Bibliograti ISBN 85-336-1986-3 |. Andlise do discurso ~ Discursos, ensaios, conferéncias 2. Filo- logia ~ Discursos, ensaios, conferéncias 3. Semidtica ~ Discursos, censsios I. Perrone-Moisés, Leyla. If. Titulo. IN. Série. 04-3942 cpp.401.41 Indices para catalogosistemti 1. Filologia: Linguistica 401.41 Todos os direitos desta edicdo para o Brasil reservados Livraria Martins Fontes Editora Lida. Rua Consetheiro Ramalho, 330 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 32413677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: info@martinsfontes.com.br. http:itwww.martinsfontes.com.br A MORTE DO AUTOR Na novela Sarrasine, falando de um castrado disfargado em mulher, Balzac escreve esta frase: “Era a mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos sem raz4o, suas perturbag6es instinti- vas, suas auddcias sem causa, suas bravatas e sua deliciosa finura de sentimentos”. Quem fala assim? E 0 heréi da novela, interes- sado em ignorar o castrado que se esconde sob a mulher? E 0 in- dividuo Balzac, dotado, por sua experiéncia pessoal, de uma filo- sofia da mulher? E 0 autor Balzac, professando idéias “literdrias” sobre a feminilidade? E a sabedoria universal? A psicologia roman- tica? Jamais seré possivel saber, pela simples razio quet@leseritura | O rumor da lingua | Sem dtivida sempre foi assim: @ESAERGUCHnALONeNOnIAAD, “0 autor entra na sua prépria morte, a escritura comega. Entretanto, © sentimento desse fenédmeno tem sido varidvel; avasysociedades, @orummmediador xama ou recitante, de quem, a rigor, se pode ad- mirar a penformancey isto ¢, o dominioworeédigomvarrativo), mas nunca o “génio”. @l@#onehimalpersonagemmmoderna, produzi- da sem duvida por nossa sociedade na medida em que,@oqsainida (epessoaldalReforma, cla descobriu o PrestigiOMolndividGo ou, como se diz mais nobremente, Galpessoalhiimana Entio é |6- gico que, em matéria de literatura, seja ogpositivismap resumo e ponto de chegada daddeologiatcapitalista, queitenharconcedidor G@iaionimportanciaanpessoaMdowautonO autor ainda reina nos ma- nuais de histéria literdria, nas biografias de escritores, nas entre- vistas dos periddicos e na prépria consciéncia dos literatos, ciosos por juntar, gracas ao seu diario intimo, a pessoa e a obra;qaqimas Giranicamentetcentralizadamorautor sua pessoa, sua histéria, seus gostos, suas paixGes; @ICHECAICOSistelaindayoNmaisidaSIVEZESNEMD _ go da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da fico, fosse sempre afinal @ivezidelimialsoreimesmialpessoa , Glantorralrevelar -asua “confidéncia’. 58 | Da obra ao texto | Apesar de @liftipeHOMO"AUOP ser ainda muito poderoso (a nova erftica muitas veres no fer mais do que consolidé-lo), é sa- bido que hé muito certos escritores vém tentando abald-lo. Na Franga,@Mallarii@ sem diivida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitudeqqnecessidademerolocaraypropriallinguagennno ele, como para nés, é a linguagem que fala, no 0 autor; escrever €, através de uma impessoalidade prévia — que nao se deve em mo- mento algum confundir com a objetividade castradora do roman- cista realista -, atingir esse ponto em que s6 a linguagem age, “per- (C6FAAMEMAGHEM: toda a poética de Mallarmé consiste em @UpEB (ikoyaUtOreEMmproveitoydayescrittifa (0 que vem a ser, como se verd, GEVOINERAOIEIEOMO SEUlugar). VAlERR todo embaracado numa psicologia do Eu, muito edulcorou a teoria mallarmeana, mas, re- portando-se, por gosto do classicismo, a retérica, GAONCESSOUNAED ColocaremMAividaneeMMAersAONONAUTOMPacentuou a natureza lingiifstica e como que “arriscada” da sua atividade, e reivindicou ao longo de todos os seus livros em prosa a favor da condicao essencial- mente verbal da literatura, em face da qual todo recurso a inte- rioridade do escritor Ihe parecia pura superstigo. O préprio PFOUS, a despeito do cardter aparentemente psicolégico do que chama- mos suas andlises, GEU=SEWisivelmenteldoltraballioldelemaranhar incxoravelmente, por uma’subutilizagaovextremayairelacaoidores=) (GitoRCOMUASUASIPeONAGEME: ao fazer do narrador nao aquele que viu ou que sentiu, nem mesmo aquele que escreve, mas aquele que vai escrever (0 jovem do romance — mas, a propésito, que idade tem e quem é ele? — quer escrever, mas nao pode, ¢ 0 romance aca- ba quando finalmente a escritura se torna possivel). Proust deu & escritura moderna a sua epopéia: GEUNTe MMA MAVEISAO MAIC em lugar de colocar a sua vida no seu romance, como tao fre- 59 | O rumor da lingua | -qiientemente se diz, ele fez da sua propria vida uma obra de que’ @livtorfoileomioroimodelo, de maneira que nos ficasse bem eviden- te que ndo é Charlus quem imita Montesquiou, mas que Montes- quiou, na sua realidade anedotica, histérica, nao é mais que um fragmento secundario, derivado, de Charlus. O Surrealismo, final- mente, para nos atermos a essa pré-hist6ria da modernidade, nao po- dia, sem divida, atribuir & linguagem um lugar soberano, na me- dida em que a linguagem é sistema, e aquilo que se tinha em mira nesse movimento era, romanticamente, uma subversao direta dos cédigos — alids iluséria, pois um cédigo nao pode se destruir, pode- se apenas “jogar” com ele; mas, recomendando sempre frustrar bruscamente os sentidos esperados (era a famosa “sacudida” surrea- lista), confiando & mao o cuidado de escrever tao depressa quanto possivel aquilo que a cabega mesma ignora (era a escritura auto- miatica), aceitando o principio e a experiéncia de uma escritura coletiva, o Surrealismo contribuiu para dessacralizar a figura do AUS Finalmente FSrAAaproprialiteraeuED (a bem dizer tais dis- ting6es se tornam superadas) @linigiiisticaacabaMdelformecenpara GPC STAEA SENSED |in giiisticamente, GutoRMUNEAN (GUOMMANPESOA) ¢ esse sujeito, vazio fora da enunciagéo que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la. O GfaStaEHEOIASIAMEOP (com Brecht, poder-se-ia falar aqui de um verdadeiro “distanciamento”, o Autor diminuindo como 60 | Da obra ao texto | uma figurinha bem no fundo do palco literdtio) nao é apenas um le transforma radicalmente fato histérico ou um ato de escrivure © texto moderno (ou — 0 que dé na mesma — 0 texto é, doravante, feito e lido de tal forma que nele, em todos os niveis, ausenta-se o autor). O tempo, primeiro, j4 nao é 0 mesmo! < 5 8 8 5 a | orque (ou segue-se que) ji i Porqi 8 q (GHASPERAGASSEBISH, de verificacdo, de representagao, de “pin- tura” (como diziam os Clissicos), 836i aquilo que os lingiiistas, em seguida a filosofia oxfordiana, chamam deqperformativoyforma (Getbalifa (usada exclusivamente na primeira pessoa e no presen- te), Galqualaleninciagaolnaoltenmoutrolconteudd (outro enun- ciado)quemaorsejaroratoypelorqualrelasserprofere: algo como o Ex declaro dos reis ou o Eu canto dos poetas muito antigos@yeseripton segundo a visio patética dos seus predecessores, quememmammaomdemiasiado € que, conseqiien- temente, fazendo da necessidade lei, deve acentuar esse atraso e “tra- balhar” indefinidamente a sua formax(paraleleyaorcontraniowalmiao, EATEN NTS (e nao de expresso), traga um campo sem origem — ou que, pelo 61 | O rumor da lingua | menos, Outralorigent indo tem 'sendova'prépriallinguagem, isto <, aquilo mesmo que continuamente questiona toda origem. * * Sabemos agora que: (que seria a “mensagem” do Autor-Deus), GHilMGESMAMEULD A semelhanca de Bouvard e Pécuchet, esses eternos copistas, a uma s6 vez sublimes e cémicos, e cujo profun- do ridiculo designa precisamente a verdade da escritura,@RSEUOD (GHIESNPOAE TESA meSelaMAasIeseritlinas, em fazé-las contrariar-se umas pelas outras, de modo que nunca se apoie em apenas uma delas; quisera ele exprimir-se, pelo meno e isto indefinidamente: aventura que adveio exem- plarmente ao jovem Thomas de Quincey, tao versado em grego que, para traduzir nesta lingua morta idéias ¢ imagens absolutamente modernas, diz-nos Baudelaire, “havia criado para si um diciond- rio sempre pronto, muito mais complexo ¢ extenso do que o que resulta da vulgar paciéncia das vers6es puramente literdrias” (Os pa- raisos artificiais); 62 | Da obra ao texto (GED EssaConcepHASICONVEMMMUIFOMETTICA, que quer dar-se entéo como tarefa importante descobrir o Autor (ou as suas hipdstases: a sociedade, a histéria, a psiqué, a liberdade) sob a obra@@Heon> (GdotaMbemdo|SHaes, nem tampouco que a critica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor. (NAIESCEP -tura multipla, com efeito, tudo estd para ser deslindado, mas nada (@araserecifiado; a estrutura pode ser seguida, “desfiada” (como se diz uma malha de meia que escapa) em todas as suas retoma- das ¢ em todos os seus estdgios, mas nao hé fundo;@RSPaGoME> (Gdeisemiliparanimasiéisemprelparalevaporaelo: cla proccde a uma isengo sistematica do sentido. Por isso mesmo, a@gliteratura (seria melhor passar a dizer @U@sefitiia) MEECUSARAOTACSIGRARAOTEERTD (¢ a0 mundo como texto) @iitSgredo% isto ¢,amsentidomiltimomlibes @qumafatividade a que se poderia chamar@SHtrateolOgicaN propia (GRERTETEVOITGIONAHA, pois a FRCUSAMETAGEROENEIAD ¢ finalmente recusar Deus e suas hipéstases, a raz4o, a ciéncia, a lei. Voltemos a frase de Balzac. Ninguém (isto ¢, nenhuma “pessoa”) a diz: sua fonte, sua voz nao € 0 verdadeiro lugar da escritura; é a (GRAF Outro exemplo bem preciso pode fazer-nos entender isso: 63 | Orumor da lingua | pesquisas recentes (J.-P. Vernant) tornaram patente a natureza cons- titutivamente ambigua da tragédia grega; o texto é tecido de pala- vras de duplo sentido que cada personagem compreende unilateral- mente (esse perpétuo mal-entendido é precisamente o “tragico”); ha, entretanto, alguém que ouve cada palavra na sua duplicidade, € ouve mais, pode-se dizer, a prépria surdez das personagens que falam diante dele: esse alguém ¢ precisamente 0 leitor (ou, no caso, o ouvinte). Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto & @leSeFD F por isso que ¢ derrisério ouvir condenar a nova escti- tura em nome de um humanismo que hipocritamente se arvora em campeio dos direitos do leitor. O leitor, (GSRIQUEESEFEVEDEstamos comegando a nao mais nos deixar en- godar por essas espécies de antifrases com as quais a boa sociedade retruca soberbamente a favor daquilo que ela precisamente afasta, ignora, sufoca ou destréi; sabemos que, ParadevOlVeERRNeSCrituraD 1968, Manteia.

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