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Figurabilidade e regrediéncia* César Botella e Séra Botella’, Paris TTrabaiho apreseniado no 61° Congrés des Psychanalystes de Langue Frangaise, em janeiro de 2001 primeiramente publicado no Bulletin de la Société Psychanalytic de Paris, jan. 2001 e posteriormente reproduzido no nimero especial referente a0 mesmo Congresso, da Revue Francaise de Psychanalyse (2001, tome 65, n° 4, pp. 1149-1239). A Revista Francesa 6 editada pela Presses Universitaires de FFrance (PUR). que, jurtamente com os autores, gentimente autorizou eva tredugao © publeagaa. * Membros Efetivos da Sociedade Psicanalitica de Paris. Revista de Psicanalise, Vol. X, N°2, agosto 2003 a 249 César Botella e Séra Botella Preambulo % A psicandlise tornou-se uma disciplina carente de uma boa definigtio. Nao ha mais unanimidade entre os psicanalistas sobre o que Freud denominou “os pilares da teoria analitica”: “A aceitagdo dos processos psiquicos inconscientes, 0 reconheci- mento da doutrina da resisiéncia ¢ da represséio*. a tomada em consideragéio da sexuialidade e do complexo de Edipo stio os contetidos principais da psicanilise e os funcamentos de sua teoria, € quem nao estiver em condigdes de os aceitar em sua integralidade nao deveria ser incluido entre os psicanatistas” (Freud, 1923a, p.196). No entanto, esta mobilizagao atual de interesse-desinteresse no que tange ds referéncias freudianas parece inevitavelmente pertencer A propria evolugdo da di plina, Mas o que est realmente em causa nio é tanto a supressiio, mais ou menos not6ria, da referéncia freudiana. O que & determinante, em nosso ponto de vista, € 0 que certos siléncios representam quando objetivam, como pano de fundo, apagar contetidos € nogdes, niio s6 aqueles qute se referem aos processos inconscientes e de resisténcia, mas sobretudo ao sexual, & nogdo de uma sexualidade infantil, tomada como um fator organizador da psique € néio como uma simples etapa do desenvolvi- mento. Bion manifestava sua preocupagaio jaiem 1975: “Freud disse que as criangas tinham wma vida psiquica em relagao com a sexualidade: isto foi negado ou reenterra- do” (Bion, 1975, p.11) Nao foi isto que ocorreu nas publicagdes francesas: duas obras coletivas impulsionadas por J, Chasseguet-Smirgel (1964, 1972), J. Laplanche (1970, Vie et mort de la psychanalyse), 0 Relat6rio ao CPLR de Christian David (1975, La bisse- aualité psychique), Joyce McDougall (1978, Plaidoyer pour une certaine anormali- 16; 1996, Eros aux mille et un visages), J. Chasseguet-Smirgel (1984, Ethique et es- thétique de la perversion), A. Green, (1997, Les chatnes d'Eros, actualité du sexuel), J. Schaeffer (2000, Le refirs du féminin). Jean e Monique Cournut, em seu Relat6rio para a CPLF, de 1993, intitulado A castragéio e 0 feminino nos dois sexos, mostraram como o sexual impée sua coerén- cia, como o Edipo, a castragdo, ndo so to somente acontecimentos psfquicos cuja manifestacao faz surgir 0 sentido, mas so também o principio organizador do con- junto de processos de elaboracio da atividade pulsional. André Green, em 1997, no Congreso da IPA em Barcelona, coloca a situagao nos seguintes termos “Os analis- tas, numa proporgdo maior ou menor, trabatham mais ou menos inconscientemente * Nota dos revisores:"retoulement” ="verdrngung’ no texto original de Freud. Optamos por traduzir como pressao", seguindo 0 uso mais cotrente em lingua portuguesa, 250 9 Revista de Psicanalise, Vol. X, N’ 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéncia para o esmorecimento de seu papel. Isto é, mesmo quando a sexualidade esta presen- te no material, nas fantasias, nos sonhos ou na transferéncia, o analista minim ignora mesmo estas manifestacdes, considerando-as como contingentes ou defensi- vas”. E uma grave conseqiiéncia para a psicanilise o fato de que ela deixe de ser a, andlise dos processos inconscientes ¢ da sexualidade infantil, para tornar-se uma pratica limitada aos processos pré-conscientes, uma psicoterapia de apoio do ego, “uma psicossintese” (Emde, 1999). Esta importdncia da aposta do sexual na psicandlise atual nos consolidou em nosso posicionamento de fazer dele um dos pontos principais do nosso relatorio, Chegamos & conclusio de que, a menos que se estabelega claramente o papel do sexual na figurabilidade, nosso relatério néio poderia ser analitico. Esclaregamos desde agora que este relatério ndo € um estudo da noo de figurabifidade. Sua proposta esté focada na necessidade de se atribuir a ela um cam- po metapsicolégico & altura de sua importancia na pritica analitica. A partir da expe rigncia da figurabilidade no analista, a mesma suscitou nosso interesse, muito cedo, uma vez que ficamos impressionados com a sua capacidade de resolver situagdes que, de outra maneira, permaneciam indecifraveis. Esta perspectiva nos foi aberta no inicio ce nossa prética analista, quando tivemos nosso primeiro contato com crian- cas, algumas das quais acometidas de problemas graves. A partir dai nossa atengdo, Voltada para a figurabilidade, modificou nossa escuta do diva ¢ esta se tornou mais rica. As concepgdes tesricas que daf deduzimos constituem o objeto de nosso relato- rio. 1-0 sexual primordial “A diferenga mais caracteristica entre nossa vida erdtica e aquela da Anti- piidade consiste no fato de que, na Antigitidade, a tOnica era posta na pulséio engquanto nds a colacamos no objeto. Durante a Antigitidade glorificava-se a pulsdo, e esta pulsdo enobrecia o objeto, ndo obstante sua pequenez; enquan- 10 que, nos tempos modernos, nds desprezamos a atividade sexual enquanto tal e se [he concedemos algum tipo de desculpa, isto deve-se as qualidades que encontramos em seu objeto.” S. Freud (1905, p.171") Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 5 254 0) César Boeke Sara Botella 1. Da crianca “perversa-polimorfa” as “caréncias do objeto primario’ Um retorno disfarcado a yelha teoria da seducao da crianea pelo adulto? Ha cem anos atras, aos olhos da sociedade, a revolugdo que a psicandlise repre- sentaya localizava-se, é sabido, no papel que esta atribufa ao sexual. No entanto, nao era verdadeiramente devido a teoria da sedugio da crianga pelo adulto, a qual, a rigor, poderia ser classificada na categoria das patologias ¢ nfo suscitava reais problemas de transtorno social. O que era inadmissfvel ndo era o fato de considerar-se a crianga como portadora de uma sexualidade, os pediatras e as babiis 0 sabiam. O inaceitavel, © verdadeiro escdndalo, foi aquele de definir a crianga nao somente como neurética, mas todas as criangas, sob 0 termo de “perversa-polimorfa” (ibid), de atribuir a0 sexual da crianga, ao seu reprimido inconsciente no adulto, um papel determinante no funcionamento psiquico de todo e qualquer individuo, governando-o contra sua prépria vontade. E hoje? Nao se minimiza, mesmo no meio analitico, o papel da pulsio sexual, to uma exigéncia de trabalho imposta ao psiquismo? Fairbairn desde 1941, com a nogao de object-seeking, com suas afirmagdes de que “o objetivo final da libido & 0 objeto”, ¢ de que a razio de ser das zonas erégenas € a de formar “o caminho de menor resistencia em directo ao objeto”, nao afasta as nogdes de desejo inconsciente, de sentido latente, para preconizar uma tratamento analitico que tenha por principal objetivo nao o desvelamento do sexual infantil reprimido, mas 0 de Conjurar a angdistia do ego, de assegurar sua “quietude”, “o sentimento de seguranca”? Realmente ele opée 0 puritanismo ao sexual freudiano, simplificando a evolugao pautada por Freud, a qual, é verdade, atribui cada vez mais lugar ao ego, a partir da segunda t6pica ¢ isto, mais particularmente, no final de sua obra. Neste sentido, o Esbogo pode ser considerado como uma sinopse de uma teoria analitica centrada no ego. Mas nio é por isso que Freud deixa cair 0 sexual. Por exemplo, quando ele declara no Esbogo: “Assim como o id obedece tao somente ao apelo do prazer, 0 ego é dominadlo pela preocupagdo com a seguranga”, por que privilegiar-se a preocupa- ¢do com a seguranca em detrimento do apelo do prazer? Tudo que podemos fazer & referir o prefécio de Henri Vermorel e a critica de André Green em sua obra recente, Le temps éclaté (Green, 2000, p.119) enqua 2. R. Fairbairn (1941), “Une psychopathologie revisée des psychoses et des psychonévroses'’. In: Etudes psychanalytiques de Ja personnalité, p. 32 e 33. Prefacio de Henri Vermorel, posfécio de James Innes- ‘Smith, trad. de Pierre Lacointe, Ed, du Monde interne. Mais tarde, em 1957, em reago as eriticas, ele vai dar uma nuanga as suas propostas: "E 0 individuo na sua capacidlade libidinal e nao a libido que esta em busca do objeto." Mas, no fundo, sua concepgao permanece idéntica. 252.4 Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 winavi ce atu aoe Figurabilidade e regrediéncia Puritanismo, adaptagdo, teorias cognitivistas ou fundamentadas na informa- ¢4o ... quantas tendéncias psicanatiticas contemporineas retiram de suas concepgdes 6 sexual infantil que Freud teve tanto trabalho para introduzir! No maximo elas acei- tam 0 ato, o sexual genital e 0 auto-erotismo da crianga como elementos, adaptados ou. no, as necessidades da vida. Foi publicada uma abundante literatura psicanaliti- ca, centrada principalmente no estudo do ambiente deficitério, a mé mae, causa de caréncias afetivas insuperdveis. O que esta em pauta nio é tanto a questo da sexua- Jidade infantil do analisando, mas a pessoa da crianga outrora considerada, sobretu- do, como tendo estado em perigo, como uma vitima confrontada & dificuldade real de sobreviver psiquicamente. O exemplo mais esclarecedor é 0 de Margaret Little des- crevendo sua andlise com Winnicott. O carter excepcional do testemunho, o fato de que sua descrigdo levante pontos fundamentais no que concerne & pratica j uma longa citagao, a tinica maneira de se apreenderzm os comprometimentos. Apés haver feito uma primeira andlise com Ella Sharpe de 1940 a 1947, ela se torna membro da Sociedade Britinica. Posteriormente, jé analista didata e reconheci da gragas as suas publicacdes sobre pacientes borderline, iniciou um novo tratamen- to com Winnicott, entre 1949 € 1956, ao qual dara continuidade por um period de dezoito meses, a partir de 1957: “Algumas semanas apés (subentendido, apés 0 int ificam cio da andilise) ... varias vézes senti a tenséio subir em todo meu corpo, atingir seu pice e cain, para retornar, novamente, alguns segundos mais tarde. Eu segurava suas méios e me apegava a elas até o fim dos espasmos. Ao final, ele disse pensar que eu havia re-vivido 0 meu nascimento; durante alguns segundos ele me segurou a cabega, dizendo que, logo apés seu nascimento, una crianga podia ter dor de cabe- ¢a, senti-la pesada por um momento.” E, algumas linhas mais abaixo, M. Little des- creve uma atitude freqiiente adotada por Winnicott: “Literalmente, ele segurava mi- nhas duas méos apertadas entre as suas durante longas horas, quase como um cor- dao umbilical, enquanto eu estava deitada, freqiientemente escondida debaixo das cobertas ... Acontecia-the, por vezes, de ficar sonoiento, de dormir e de acordar-se sobressaltado ...”. E, ainda algumas linhas mais adiante, M. Little explica, numa tentativa de descrever da melhor maneira possivel 0 experienciado na sessiio, sobre aquilo que Winnicott entende por “regressio A dependéncia”: “Houve wma época na qual eu era capaz de me atirar para fora da sala, num furor, e de partir, dirigindo 0 carro perigosamente. Ele guardava as chaves do meu carro até o final da sesso depois me deixava repousar sozinha e trangililamente até que eu me sentisse em seguranea. Ele atribuia muita importancia a necessidade de ‘voltar’ de uma regres- sdo profunda a vida comum, porque ‘regressito & dependéncia’ significa regressao @ es Rovista de Psicandlise, Vol. X, N? 2, agosto 2008 0 253 César Botella e Sara Botella dependéncia como fator vital, regressdo até o estado infantil, mesmo algumas vezes até a vida pré-natal” (Little, 1985, p.514)° Um procedimento desta natureza € unicamente o reflexo de um aprofunda- mento nos conhecimentos analiticos? Bem que gostarfamos de poder nos contentar com esta explicagio ¢ dizer simplesmente que estes escritos psicanaliticos refletem todo um campo novo da psicandlise nfo explorado por Freud, No entanto, nao se pode evitar de pensar que, ao recusar-se um lugar central ao polimorfismo sexual da crianga, uma parte do movimento analitico atual seria conduzida pela motivagao in- consciente de inocentar a crianga; que esta tendéncia da psicandlise contempordinea ria inconscientemente motivada pela recusa de pensar a crianca como estando sem- pre a busca de prazer; ela recusa o fato que a crianga seja levada a investir 0 objeto como fonte de prazer. Voltaremos a esta questo. Por enquanto gostarfamos que fi- se claro que nos deparamos, como salienta Jacques André, com uma mudanga radical de paradigma psicanalitico: “A sexualidade, diz M. Little (referindo-se af as interpretagées do conflito psiquico que dizem respeito @ sexualidade infantil), pode ser tdo simplesmente fora de propésito e sem qualquer justificagao quando ndo se tem certeza de sua propria existéncia, de sua sobrevivéncia, de sua identidade” (An- dré, 1999, p.2). Serd esta uma concepgao pertencente unicamente a M. Little? Ou, quem sabe, ela explicita sem reticéncias aquilo que subjaz, sem ser abertamente des- cortinado, a um bom némero de teorias contempordneas? Nao haveria um desejo inconsciente de retornar A velha teoria da “neurética” de antes de 18974? =duciio da crianga pelo adulto, a crenga da 2. A Metapsicologia do sexual infantil Nés nos deteremos em mostrar que uma tal separagio entre a sexualidade e a sobrevivéncia é um problema mal colocado e que a “sobrevivéncia psfquica pardvel do “sexual infantil”, que a escolha entre objet-seeking e pleasure-seeking € um falso dilema. Assim também, as nogées de “caréneia maternal” ou de “caréncias precoces”, que caracterizam particularmente a clinica dos pacientes borderline, nao é inse- 3. No relatério j4 publicado (janeiro 2001) na publicagao interna no CPLF, tomamos conhecimento do artigo de Wynne Godeley, "Saving Masud Khan’ (London Review of Books, 22 fevereiro, 2001), testemu- rnhando os desvios/derivas que a “regressao & dependéncia” pode faciltar. 4, 8. Freud, “Correspondance avec Fliess”, carta do 21 de Setembro de 1897, em que ele diz a célebre frase: ‘Nao acredito mais na minha ‘neurética”, em La naissance de la psychanalyse, PUR 5. Nés afastamos aqui os casos descritos por Spitz de deprivaao maciga, de hospitalismo, em que a pulso de morte desorganizadora tem a prevaléncia sobre as forcas de ligagao do Eros, que exigem métodos terapéuticos especificos. 2, agosto 2008 2540 Revista de Psicandlise, Vol. X, NE Figurabilidade e regrediéncia podem ser compreendidas isoladamente. Nas teorias que sublinham estas formula- ges, 6 sempre o prazer da crianga como fungio primordial que € mal avaliada. Sua “fungao natural” ~ de acordo com Fairbairn ~ é a de constinuir-se num meio para chegar ao objeto € nao a de sera finalidade da pulsio. A distingao freudiana entre pulsio e libido mostra-se aqui decisiva, Nao ha problema algum em afirmar que a libido procura 0 objeto, para tanto é suficiente seguir Freud, j4 em 1914 em Introdugdo ao narcisismo, depois em 1923: “A libido significa em psicandlise em primeiro lugar a forea...das pulsdes sexuais... dirigidas para o objeto” (Freud, 1923b, p.110). A nogdo de libido € insepardvel da de objeto; ela é a expresstio quantitativa da forma que toma a pulsiio quando sua forga se engaja na diregio do objeto, mesmo quando este € o seu préprio corpo. Por outro lado, Freud define a pulsdio como estando em busca de sua satisfagiio e nao diretamente em busca do objeto (Freud, 1915a, p.169). Para a articulagdo pulséo-objeto, ele descreve uma evolugao, particularmente em seu texto sobre o presidente Schreber (1911): existiria um tempo no qual cada pulsao opera livremente, cada uma por si, antes de sua unifi cagiio no, e gragas ao investimento de objeto. Trata-se do que Freud chamou de “nova ago psiquica” (Freud, 1914, p.84) unificando o sexual disperso no investimento objetal. fi nesta nova agio, na verdade dupla, que o “objeto revelador da pulsdo” (A Green, 1986) se objetalisa; é na emergéncia progressiva de um sujeito ego-corpo erdtico que a pulsdo mostra claramente sua “fungdo objetalisante”. Neste sentido A Green apresentard, a seguir, a nog&io de “relagdo-acoplada pulsio-objeto” (Green, 2000, p.120) e postulard a necessidade de se pensar o par pul: “polaridades heterogéneas”. A pulsio sai, assim, de sua solidao metapsicolégica, e 0 objeto, por sua vez, sai de scu enclausuramento nas acepgdes que o reduzem injesta- mente, nas teorias contemporaneas, a este ou aquele de seus aspectos ou fungdes Indiscutivelmente, a nogao de pulsdo revela, methor do que a de libido, os muiltiplos niveis da relagio com 0 objeto, porquanto ela impde a complexidade da articulacio objeto em suas entre 0 intrapsiquico e o intersubjetivo. Diante do problema, Paul Denis (1997) descreve a articulagio pulsdo-objeto através daquilo que denominou de “os dois formadores da pulsao”, ou seja, a posse € a satisfac, definindo os dois estatutos fundamentais do objeto exterior: “objeto de posse” ¢ “objeto de satisfagio”. O sujeito se utiliza do primeiro para cle uma satisfagdo pulsional”. Para 0 segundo, “os efeitos da relagdo com ele coadu- zem a experiéncias internas que compdem uma experiéncia de satisfaciio” De qualquer forma, tudo que a pulsfio quer € a satisfagao, sua realizagdo sem demora, para o melhor ou pior, ndo faz diferenga qual o meio utilizado, e, “justamen- te dpvido @ sua aptidéo particular de tornar a satisfagdo posstvel que ele (0 objeto) construir com Revista de Psicandlise, Vol. X, N®2, agosto 2003 0 255 César Botella Sara Botella éagregado”®, Bprecisamente nesse ponto, na propria jungdo entre a pulsdo ¢ 0 obje-.¢ to, no modo como a satistago 6 tornada possivel, que se revelam uma grande com- plexidade e 0 potencial polissémico de cada um dos dois conceitos: 0 objeto ¢ a sto porque o fendmeno da satisfagao esta longe de ser simples devido a sua dualidade material e alucinatéria. Isso leva J. Laplanche a se questionar sobre o sen- tido a ser dado a esta tiltima: “Nés gio da satisfagio, isto é, a reprodugao da pura experiéncia da descarga, mesmo na auséncia desta, ou a satistagao pela alucinagio, isto é, pelo préprio fato do fendmeno alucinatério... A satisfagdo pela alucinagéo pode ser perfeitamente concebida atra vés do modelo do sonho; este, de fato, niio traz uma satisfagéio do desejo, ele é reali- zagéo de desejo, por meio de sua prépria existéncia” (Laplanche, 1970, p.122-124), E neste tiltimo sentido que concebemos toda satisfagao Numa primeira abordagem, pode-se, talvez, pensar haver divergéncia com Freud (1900), que descreve a forma inicial a seguir: face & necessidade, uma impulsio pst- quica (Regung) se investe ¢ tenta reatualizar, sob a forma alucinatéria, a experigncia de satisfagio. “E a este movimento que chamamos de desejo” (Freud, 1900, p.481, vemos nela, ao menos dois [sentidos|: a alucina- grifo nosso). Freud jamais retomard a nogiio de desejo tal como € descrita em 1900; por outro lado, as idéias de forga, impulstio, de objetivo, de trabalho, resultar’io na descrigao da pulsdo em 1915 (Pulsion et destin de pulsion), um modelo inteiramente mecanicii a inserido numa concepedo temporo-espacial do psiquismo, uma visio, diga-se abertamente, adaptada aos conhecimentos de sua época. E € aqui que se colo- ca 0 problema do emprego que faz Freud do termo “movimento de deseo”, porque ndio se pode entender como uma sucessio temporal poderia ter lugar nos fundamen- tos psiquicos. Seria bem mais em termos de qualidade ou forma que poderiamos definir o sexual em sua constituigao primordial (Botella;Botella, 1990) De fato, do modo como compreendemos 0 espirito da Metapsicologia 1900, 08 dois sentidos, 0 de “alucinagéo da satisfagao”, implicando um percurso e uma memoria, ¢ 0 de “a satisfacdo pela alucinagdo”, supondo que o fato mesmo de aluci- nar “é” satisfagtio, sto inseparaveis e, no fundo, nao passam de uma mesma coisa’ No entanto, vistos a partir de dois vértices (Bion) diferentes, pode-se diferenciéi-los: 6. S. Freud (1915), *Pulsions et leurs destins”, dans Metapsychologie, Gallimard, p. 18-19, também em OC, t.XIll, p.169-170. Esta concepedo da relacao pulsdo-objeto, Freud nao se cansa de repeti-la desde os Trois Essais :*E necessério conaluir que néo é 0 objeto que constitui o elemento essencial e constante da pulsdo sexual” (S. Freud,1905, ibid., p. 33). 7. A. Gibeault (1994), “..a experiéncia da satistagao alucinatéria do desejo, correlativa de um investimen- 10 de objeto antes de sua percepeao, repde em questao a distineao entre o sensivel e o inteligivel, entre 0 ‘eu penso'e a ‘coisa em si’ préprios ao pensamento kantiano”. " Contre-transfert et réceptivits', Revue trangaise de psychanalyse, 5-1994, numero especial, Congreso, 1650-1658, 256 0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N® 2, agosto 2003 Figutabilidade e regrediéncia © desejo enquanto alucinatorio em si, porque ele “é”, seria o sexual primordial; 0 desejo enquanto movimento, nao reprodutor da recordee io da experiéncia de satisfa- do, mas tendendo em diregto ao reencontro do estado de qualidadesalucinatéria, seria o que Freud descreve como pulsao sexual, vetorizada gracas ao investimento de objeto, dito em outras palavras 0 sexual infantil, forma organizada do sexual primor- dial De fato, niio ha indicagio em Freud de que 0 abandono da satisfacdo alucina- t6ria face & persisténcia da necessidade ~“o aparetho psiquico teve que se decidir a representar o estado real dos fatos do mundo exterior...” (Freud, 1911, p.14) —acar- retaria uma mudanga transformacional da propria natureza da satisfagdo. Uma de nossas hipdteses de base € a de que, neste caso, se trata de desvio pelo mundo, sem que a qualidade alucinatéria da satisfagdo se apague por isso. A exemplo do desvio através das representagées do “estado real” do mundo e do objeto para melhor asse- gurar a satisfagio — “o pensamento nao é sendo um substituto do desejo alucinaté- rio” (Freud, 1900, p.482), afirma Freud em 1900 — o contato nao passaria, também ele, de um desvio, 0 corpo erégeno, também ele, nfo passaria de um substituto de um desejo alucinatério A mudanga consiste num distanciamento, num afastamento, no espago-tempo, da realizagao da satisfagio alucinatéria: diferir, “alongando” a via em diregio a satis fagao, frear a “velocidade”, a “rapidez ultraligeira” (Neyraut, 1997) da via pulsional direta que, de outro modo, entregue a ela prépria, € Identidade de Percepgiio. Ainda hoje, em psicanalise, a adaptacio a realidade nao poderia ter um outro sentido sendo © deste recuo, desta diminuicao de velocidade e desta complexificagao da organ do psiquica. De alguma forma, um nomadismo alucinatério que se sedentarisaria ao investir territérios; delimitar, multiplicar, reagrupar, em detrimento do desenvolvi- mento livre do poderio alucinatério. A via prolongada, a “marcha lenta” (M. Neyraut. 1997), a extensiio dos investimentos das redes de representagdes garantem o percur- so das atividades pulsionais em diregio a satisfagio alucinatéria, & permanéncia no tempo da vida psiquica. Em resumo, nao seria justo dizer que 0 prinefpio do prazer se dobra diante do principio da tealidade; seria mais exato dizer que o principio da realidade nada mais € que a forma que assumem os subterfiigios do principio do prazer. 2a. Contato ¢ alucinatério Deacordo com a concepgao te6rica que se adote, a relagdo pulsdo-objeto se muito diferente, No entanto, nao necessariamente incompativel. E suficiente que se vejé'a obra de Winnicott para que nos demos conta disso. Ele traz como solugao a Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 257 i i : César Botella e Séra Botella incans4vel repeticio das feridas precoces, uma técnica que poderfamos resumir em trés pontos: a) devg-se levar o paciente a uma “regresséo a dependéncia”; b) nesse clima, o analista é a mie (Winnicott, 1954; Little, 1987); Winnicott pensa que nada pode ser resolvido enquanto o analista nao confessar a si mesmo ess fato — e nao dis a) foi to inepto quanto a mae (do paciente); da mesma forma, é justamente por estas caréncias que o paciente “utili 1a”, algumas vezes, 0 analista, repetindo assim o fracasso do ambiente vivido ante- riormente; er ao paciente que ete (analis c) € atribufdo ao setting analitico uma grande “elasticidade”, lembrando a téc- nica ferencziana. Os niveis de regressio da s 9 siio definidos pelo que, global- mente, pode-se chamar de “contato”. E isso tanto no sentido fisico, a exemplo de M. Little, quanto no sentido psiquico de “ser tocado”, atento para com os afetas do pa ciente. O “contato”, considerado e teorizado pelos adeptos dessa técnica como fen meno indispensdvel de uma técnica analftica que deseja ter acesso e remedi rum passado carente precoce, suspende a compulsiio de repetigao que uma pratica classi no poderia superar. A. Green, num dos seus tiltimos livros (Green, 2000), renovou a compreensio da compulsio a repeticdo. Seu estudo possui duas grandes virtudes: a primeira é que a compulsdo a repeti¢ao nao € necessariamente remetida, neste atalho vertigin que se encontra freqiientemente nos textos analiticos, & pulsdio de morte. A repeti no , portanto, da maneira como Winnicott o fez, fundamentalmente explicada pela fraqueza primaria da mie e do ambiente. A segunda é que A. Green introduz, no Amago da compulsio A repetigZo, a complexidade da dindmica pulsio-objeto e pro- voea, desse modo, uma reviravolta na concepgiio das “caréncias precoces”. O pacien- te encontrava-se reduzido, até o presente, & condigdo de um “antigo bebé carente”, apresentando-se como uma “vitima definitiva” a qual nenhuma consolagao de agora poderia trazer alivio, porquanto ele havia sido por demais marcado pelo sofrimento do seu inicio de vida. O analista — independentemente de quao “bom” ele seja — nio lograré fazer passar suas interpretagdes, e mesmo as melhores ficardo sem efeito, ou de efeito meramente momentaneo, sem que alguma modificagdo seja produzida. A partir desta descrigao da estrutura borderline, ele conferiu a nogio de “c coce” sua complexidade: 0 “paciente-vitima” é tanto a) “o procurador” que acusa 0 analista de maleficios atuais tio nocivos quanto foram outrora os de sua mae, quanto b) seu préprio “torturador”, ontem como hoje, em relagdo a si e, igualmente, em relagio & mae e ao analista. Este posicionamento pode hoje parecer uma subversio, devido ao fato de que somos enormernente impregnados pelas concepgdes con- tempordneas “que inocentam” a crianga, mas que nao passa de um retorno is origens, réncia pre: 258 a Revista de Psicanalise, Vol. X, N? 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéncia a sexualidade infantil, & crianga “perversa-polimorfa”, Uma vez que o intersubjetivo encontra seus fundamentos intrapsiquicos, 0 anali sando volta a ser o “art sta recupera seu lugar. E 0 anali- i0” de sta neurose, mesmo que esta esteja impregnada de um sofrimento insuportavel devido a falta de distingdo entre sujeito-objeto, presente- passado, prépria ao funcionamento do ego regredido dos borderlines Desde agora, podemos emitir a hipstese de que “a mae insuficiente”, encon- trada nas andlises dos pacientes borderline, € uma formagao psiquica, e se evitara reduzi-la a uma simples realidade triste do passado. A formagio psiquica, dita “obje- to primédrio insuficiente”, seria o resultado de um trabalho de elaboragao do ego do paciente; uma elaboragao constituida principalmente, ao longo da infancia, mas mo- dificada pelos movimentos psfquicos do “a posteriori”. © psiquismo da crianga cria- ria um “objeto rigido”, investido macigamente, que o fixaria para sempre no soft mento e que seria 0 oposto daquele descrito por Bollas, 0 “objeto transformacional” (Bollas, 1986): um objeto supostamente capaz de tudo resolver, capaz de transformar toda desventura em bem-aventuranga. Sezue-se entio uma pergunta: é necessario que se contraponha uma anélise de inspiragdo winnicottiana, baseada na “regressiio A dependéncia” que dé prioridade ao contato (fisico e/ou psfquico), “uma andlise regressiva”, & andlise do infantil em toda sua dimensio intrapsiquica? Nao € nisso que acreditamos. Toda anilise deve ser organizada por estas duas modalidades. Foi para tornar claro nosso propésito que. deliberadamente, fizemos a exposigio de um modo radicalizado, mas estes dois tipos de andilise so, de fato, inextrineavelmente entrelagados ¢ uma ¢ outra devem ser compreendidas de modo nuangado. Sobretudo porque seu fundamento comum, alu- cinat6rio, torna supérflua esta separagdo. Queremos com isto dizer que, de acordo com nossa leitura da Metapsicologia 1900, 0 objeto do contato, por mais indispensdvel que ele seja em si mesmo, no é menos 0 suporte perceptivo da realizagao da satisfacao pela alucinacdo do que o sonho € 0 suporte de sua realizagiio sob a forma endoperceptiva de uma figurabilida- de®, Nés defendemos a tese de que a vida psiquica 6 atravessada, de ponta a ponta, pela pulsio, com a tendéncia a se realizar sob sua forma inicial, alucinatéria. Isto é 8. Existem igualmente os tragos perceptivos dos “restos” sensoriais auto-eréticos dos duplos auditives & especulares no seio do investimento de cada representacao de palavra. Quanto as imagens visuais, B, ewin (1968), em “Le passé en images” (Revue frangaise de psychanalyse, 4-1990, p. 1044), descreve um periodo da infancia em que pensamento e imaginacao tém essencialmente um carater visual, perio- do do “pensamento em imagens". Para Lewin (ibid.,p.1052): “Sao as imagens que predominam no modo de pensamento @ nos sentimentos da crianga, As imagens precedem a aeao, mesmo se esta ultima segue de perto...: a energia esta aqui livre.” ‘Pensamento em imagens’, que nao se limita a um antes da linguagem, mas, de uma mansira mais ou menos intensa de acordo com as individuos, mantém-se ao fongp da via. Se bem quo, ‘quanto mais os homens envelhecem, mais seu pensamento é soberano @ mais eles perdem seus poder de visualizacaio”. Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 a 259 evidente, durante a noite, na autopercepgao de um sonho; oculto, durante 0 dia, palo investimento dos drgios dos sentidos. 2b. “O objeto-perdido-da-satisfacio-alucinatéri Nao obstante uma aparente simplicidade, o estatuto do objeto, em Freud, nao pode ser reduzido a um objeto diretamente apreendido, exceto no que concerne suas concepgies dos anos 1910, as quais m adiante chamamos de guinada genética dos anos 1910, que simplifica particularmente a concepeao analitica do objeto. O artigo de 1925, “A negativa”, na nossa enésima leitura, continua suscitando reflexdes: “Agora néio se trata de saber se alguma coisa percebida [ein Ding] deve ou ndio ser acothida no ego, mas se alguma coisa presente no ego como representagdo pode também ser reencontrada na percepedo (realidade)... A experiéncia ensinou que ndo & somente importante saber se uma coisa® (objeto de satisfagio) [ein Ding: Befriedigungsob: jekt] possui a ‘boa propriedade’, ¢ portanto merece ser acothida no ego, mas ainda saber se ela esté ld no mundo exterior de modo que dela se possa lancar méo, se for necessdrio ...A finalidade primeira ¢ imediata do exame da realidade ndo é, portan- to, ade encontrar na percepedo um objeto que corresponda ao representado, mas 0 de encontré-lo ...""°. A dificuldade terminolégica que nés acreditamos descobrir em 1925 na aproximacao entre os termos de “objeto percebido” e de “objeto de satisfa- Go” eo de “ein Ding” nos faz retornar 8 Métapsychologie 1900 na esperanca de encontrar af algum esclarecimento. A obra Projeto (1895) parece trazé-lo: “Nés jd podemos ver que, no momento em qué se estabelece a funcao do julgamento, as percepgdes despertam o interesse em decorréncia de sua posstvel conexéio com o objeto desejado (Wiinschobjekt). ‘ e assim divididos em uma fragdo no assimilavel (0 objeto) [in einem unassimilierbaren — das Ding] ¢ uma ‘x complexos encontram- outra fracdo revelada ao ego através de sua propria experiéncia (as “proprieda- des”, ou atividades do objeto).”". E justamente esta fragdo ndo assimildvel [das Ding], relacionando-se portanto ao “ohjeto percebido” e ao “objeto de satisfagdo”, que chamou nossa atengio, naquilo em que ela no seria susceptivel de poder ser 9. Uma coisa: Das Ding. 10. S. Freud (1925), “La Négation” [A Negatival, OC, .XVII,p.169, Trata-se de uma idéla sugerida mais de uma vez, especialmente em Tiois essais sur la théorie de la sexvallté (1905); “Encontrar 0 objeto sexual nada mais é, na verdade, que reencontré-lo." 11, S, Freud (1895), Esquisse d'une psychologie scientifique; G.W. Nachtragsband, 1885-1998, p. 457. ‘Anne Berman, numa passagem destacada por nds, uma fragdio nao assimilavel in einem unassimilierba- ‘en — das Ding), traduziu das Ding por objeto, perdendo-se entdo a diferenca com a “tragéo assimilavel, aquela de propriedades do objeto. La Naissance de fa psychanalyse: PUF, 1969, 0.376 Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabilidade ¢ regrediéncia revelada ao ego. Isto fez com que Lacan dissesse: “...estd claro que aquilo que se trata de encontrar ndo pode ser encontrado. E de sua natureza que o objeto é perdi- do enquanto tal” (Lacan, 1959). Levando-se em conta, acrescentard ele que: “... este objeto néo esteve, afinal, jamais perdido, embora se trate essencialmente de reen- contré-lo” (ibid, p.72). A fragéo (das Ding], embora sejando assimildvel, nao apresentivel ao ego~e por definigao nao representavel — nao deixard de ser um dos constituintes dos proce: sos perceptivo-alucinatérios, mesmo que o fosse somente por sua negatividade. Nos procuramos descrever esta fragao através do termo de objeto-perdido-da-satisfagdo- alucinatéria: aquilo em diregio a que tende a pulsio e que 0 ego no pode reconhe- cer, portanto néio pode reencontrar, aprender. N6s tomamos a liberdade de nos inspi- so artigo de 1992 (Botella; Botella, 1992), porque nao saberfamos falar melhor, ainda hoje, sobre a complexidade deste objeto primordial e da concepgdio do perceptivo que dele decorre. O hiato entre o objeto percebido e aquele que o percebe nao poderd ser preen- chido. O sujeito que percebe estard sempre afetado pelo fracasso da solugdo alucina- toria, pela marca de sua prépria exist@ncia no objeto da satisfagéio, para sempre per- dido. Ao abrir os olhos para 0 mundo, ele procura desesperadamente seu objero- satisfagdo. Mas ele encontrard tio somente a marca de sua perda, iludindo-se no jGbilo diante de sua prépria imagem no espelho ou na perseguigio pelo duplo, Se pensarmos no sujeito que percebe, Lacan tem razio: “A substancia do sujeito nada mais é que 0 gozo do qual ele esta separado”. Esta marcagio pelo “objeto-perdido-da-satisfagdo-alucinatoria” representa permanentemente um verdadeiro apelo pulsional ao qual aquele que percebe esti continuamente submetido ~ salvo quando ele tem éxito no desempenho regrediente do acesso a via real da satisfagao alucinatéria do sonho. O apelo pulsional, mantido desperto noite e dia, teria por destino a satisfagdo pelo alucinatério. Mesmo a reali- zagGo de um desejo em ato nao teria o verdadeiro valor de realizagao sendio com a condigao de se fazer acompanhar, duplicado alucinatoriamente, isto é, com a condi- gio de que aquele que percebe possa encontrar af o vestfgio de sua propria existéncia perdida no fracasso do ohjeto-satisfagdo-alucinatéria, A relagdo entre aquele que percebe ¢ 0 “objeto-perdido-da-satisfagdo- alucinatéria” nao é, evidentemente, da mesma ordem daquela da relagdo da ordem representacional sujeito-objeto, que esta na base de toda explicagdo da dinamica da neurose. Indiferente 4 temporalidade, a localizagio, aos conflitos, ela no produz trabalho psiquico, nem é um produto deste dltimo, assim como também no se encon tra na origem de um desenvolvimento no espago-tempo. Seus efeitos podem ser mais bem cofhparados a uma expansio do que a um progresso. Essa relagiio representa a rar em nos Revista de Psicandlise, Vol. X, NP 2, agosto 2003 261 César Botella e Sara Botella possibilidade de suspensiio e de extenso dos limites entre interior e exterior, entre eg0 € 0 mundo, entre 0 “ja-visto” [déja-vir] e 0 desconhecido, o familiar ¢ 0 estranho. A relagdo entre aquele que percebe e 0 “objeto-perdido-da-satisfagdo-alucinatéria” abre o caminho para a percepgdo da falta, fundamento da qualidade consciente de toda percepgao, seja o objeto uma representagiio, um objeto concreto, uma fantasia ou um sonho. Aquele que percebe nio seria verdadeiramente nem 0 Sujeito nem o Eu [le Je], ele esta préximo do ego-corpo, de um investimento de alguma coisa da corporei- dade em ligagio com 0 “objeto-perdido-da-satisfacdo-alucinatéria”. Ele representa © potencial auto-erético da via regrediente a qual toda a representagdo “retorna @ imagem sensorial de onde ela um dia saiu” (Freud, 1900, p.461). E esta qualidade sensorial, alucinatoria, daquele que percebe, que provoca a evidéncia de existéncia, de realidade do pecebido"®, 0 “objeto-perdido-da-satisfagdo-alucinatéria”, “fracdo ndo assimilével”, nio apresentavel do ego 2 consciéncia, esta mais préximo do trago deixado como tal, a propria carne daquele que percebe, do que de algo de separado, de auténomo. Nao passivel de conhecimento em si, ele nao pertence, evidentemente, & ordem de um objeto no sentido analitico habitual; ele é mais compat vel a um, entalhe, a uma marca em baixo relevo, revelando “sua conexio” com 0 objeto pri- mordial da sexualidade infantil Quando Freud retorna ao estudo do sonho, em 1915, em Suplemento matap coldgico & teoria do sonho, ele é impulsionado por duas razSes: a primeira é a de aproximar a teoria do sonho de sua recente descoberta do narcisis (Freud, 1914); e a segunda é a de retomar a nogio de regressiio sob 0 Angulo da regressiio formal, conseqiiéncia da regressio narefsica. Nés voltaremos a esta que: to para estudarmos mais detalhadamente o que aqui esté em jogo para a teoria ana- Iitica. Por enquanto, desejamos salientar 0 fato de que este texto, embora tio auda- cioso e fundamental, provoca um sentimento de recto, quando estudamos detalhada- mente uma de suas passagens, impressiio de que, diante da amplidio teérica do as- sunto, compardvel 4 dos sonhos dos anos 1900, Freud foi tomado por uma espécie de timidez, como se pensasse jé ter ido longe demais. Por que em 1915, no exato mo- mento em que ele compreende claramente que o desejo ea sua realizagao na alucina- ao do autor do sonho (“sdo as partes mais essenciais do trabalho sobre o sonho” se apressa ele a declarar que o sonho é uma “psicose alucinatéria do desejo”? Uma “psicose inofensiva”, repetird ele novamente em 1932"*, Mas tarde ele insistird, em mo um ano atras 12. Seguindo a Metapsicologia 1900, nés defendemos, desde 1992, a origem pulsional da percepgao. 43, S. Freud (1932), Nouvelle suite des legons, Gallimard, e tambéin OC, t.XIX, cuja equipe de tradutores preferiu utilizar 0 adjetive “anédino" 262.9 Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéncia 1936, ao tratar o sonho de “construgéio anormal... de modelo de desordem antinica” (Freud, 1936, p.227). Ora, dizer que o sonho é uma psicose supée o fato de quea dita psicose alucinatoria nao passe da prépria natureza do desejo. Esta idéia ja esté impli- cita em sua conclusio de 1900: “O desejo, portanto, termina em alucinatério” (Freud, 1900, p.481), o que, indiretamente, ele confirma num outro artigo de La Métapsycho- logie naquele mesmo ano de 1915: “A atividade psiquica inconsciente nos aparece como uma forma derivada do animismo primitivo.”"* Essas consideragées, que enriqueceram a obra, nos levam a formular a hipste- se de que 0 desejo, em sua forma primordial, representa uma ameaga de. psicose alucinatéria a qual o ego diurno, pré-consciente, se deve confrontar incessantemente para tornd-la compativel com o Principio de Realidade. Seu melhor meio de comba- té-la seria o de transformar a dita psicose em concretude, em investimento da mate- rialidade do objeto. De dia, a busca alucinatéria transforma-se em busca de contato, através dos drgios dos sentidos e/ou das representacGes das palavras, da voz"®, Entre. a alucinago ¢ 0 contato, 0 ego diurno trabalha no Amago de um psiquismo que no saberia renunciar Aquilo que o funda: a qualidade alucinatéria. A prética analitica tem todo o interesse em observar esta tensa relagao entre contato e alucinatério ¢ em niio querer reduzi-la ao privilegiar um ou outro. 2c. O sexual primordial Do ponto de vista metapsicolégico, seria heurfstico conceber uma qualidade sexual primordial, fundamento da sexualidade infantil. O sexual primordial corres ponderia & ligagdo da pulsio ao “objeto-perdido-da-satisfagéo-alucinatria”. Um sexual alucinatério estendendo-se sobre a via regrediente, pano de fundo da sexuali- dade infantil que, ao contrério, poderia empreender sua busca de objeto na via pro- grediente “pavimentada” pelas representagdes das zonas erdgenas, sabendo reconhe- cer e dando lugar ao objeto e, mesmo em seus extravazamentos de amor ou ddio, conservando as marcas de seus territ6rios'®. 44, Freud (1915), Linconscient, em Métapsychologie, Gallimard, 1968, p. 74, trad. dirigida por J. Laplan- che & J.B. Pontalis, e também nas OC, tXlll, p.212. Aqui os tradutores preferiram a expresso "protonga- ¢4 Ionginqua do animismo primitivo”. 18. Christopher Bollas (1997) descrevera a voz como tomando lugar do contato fisico por ocesiéio da regressao da sesso, "Des mots pour le dire », Révue frangaise de psychanalyse, 1-1977, p. 203-208. 16. Talvez so possa fazer aqui uma aproximacao com o que Anna Pota Mianou, inspirando-se em René Thom, qualifica de pregnancia e de saliéncia da vida psiquica. A. Pota Mianou (1995), Processus de gépsition ot offrandes du moi, call. “Champ psychanalytique’, dirigida por Elsa Schmid-Kitisks, Dela- ‘chaux & Niestié Revista de Psicanalise, Vol. X, N°2, agosto 2008 263 César Botella e Sara Botella Winnicott no final de sua obra chega a uma concepeao semelhante. Ele estgbe- lece uma diferenga entre aquilo que denomina os “elementos masculinos ¢ os mentos femininos em estado puro” no amago da vida psiquica: “O elemento que chamo de ‘masculino’, quero ressaltar, circula nos dois sentidos: ligar-se ativamen- te a, ou ser passivamente ligado a ambas as atitudes, apoiando-se, uma e outra, sobre o instinto. E neste sentido que falamos de mogdo pulsional ‘instinct drive’ na relagdo do bebé ao seio ¢ a alimentagéo, depois na relacéio com todas as experién- cias que interessam as principais zonas erdgenas ¢ ainda na relacdo as pulsde: Satisfagdes subsididrias. Minha hipétese é a de que o elemento feminino puro, este, estd ligado ao seio (ou & mae) num sentido bem diverso: 0 bebé torna-se 0 seio (ou a mie), 0 objeto €, entao, o sujeito. Nao vejo af nenhuma mogdo pulsional” (Winnicott, 1971, 0 grifo é de Winnicott) “Eu nao vejo af nenhuma mogio pulsional.” Uma afirmagao desta natureza tem um peso consideravel. Nao obstante, Winnicott mostra-se, aqui, surpreendente- mente pouco preocupado em explicitar suas fontes: a de Freud para a indistingao bebé-mée'; a de Fairbairn, possivelmente, para 0 ndo-sexual do feminino puro. Ele poderia também ter mencionado a nogio freudiana de pulsdo de autoconservagiio, a qual Freud hesitou, por algum tempo, em alinhar ao lado do Eros. A conseqiiéncia de uma tal assergao a respeito da sexualidade infantil poderia chegar a transformar a pritica analitica; ela poderia servir para a justificagao de praticas que, sem isso, colo: cam problemas considerdveis. Pergunto entio: neste contexto, 0 testemunho de M Little que da um lugar preponderante ao contato, ao tocar, deve ser visto como um exemplo de uma andlise dominada pelo “elemento feminino puro” e, consegiiente- mente, se deverfamos considerar esse tratamento, em seus momentos regressivos, como isento de toda pulsionalidade, de todo desejo e satisfagio eréticos, mesmo estas sendo ternas? Winnicott tem, sem dtivida, razdo quando estabelece uma diferenca no amago da vida psiqui as zonas erégenas, lugar de contato com 0 “objeto objetivo”, e um elemento que nao circula, que “é", Mas por que 0 segundo nio seria sexual? Por que nao haveria af um sexual que se liga ativamente ao objeto, ou que € passivamente ligado ao objeto, ¢ um sexual que se manifesta na indistingao sujeito-objeto? Como nfo seguir Freud e colo- car sua afirmagdo de 1926, contida numa carta a Marie Bonaparte, “O erotismo oral ele- e a entre um elemento pulsional que “circula nos dois sentidos”, investe 17. Em varias passagens de sua obra, Linguiétante étrangeté (1913-1919), La négation (1925), inhibit ‘on, symptéme, angoisse (1926), Malaise dans fa civilisation (1936), mesmo no final, em 'Abrégé e nas notas de verdo de 1938 (Résultats, idées, problémes, tll), Froud descreve a indistingdo entre o bebé e a mae que caracteriza, nos primeiros tempos, o psiquismo do bebé. 2640 Revista de Psicanalise, Vol, X, N® 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéneia é a primeira manifestagdo erdtica, assim como 0 mamilo é 0 primeiro objeto se xual, no contexto da indistingao originéria bebé-mie 4 qual recém fizemos men- go, ¢ que foi formulada enfaticamente na nota de 12 de julho de 1938: “Eu sow seio. Somente mais tarde: eu 0 tenho, isto é, néio o sow ...” (Freud, 1938a, p.287) O que consideramos ser 0 sexual primordial é essa manifestagdo pulsional na indistingio sujeito-objeto, fundamento de toda a sexualidade de onde emergem, bre 0 adubo auto-erético, as formas ao contato com o mundo, o que Freud denomina de sexualidade infantil perversa polimorfa. Caracterizada pela indistingao regredien- te-representagdo-alucinagiio, o sexual primordial, inserido no coragao do desejo se- xual infantil, permanece sempre uma potencialidade que pode ser ativada e, de acor- do com as circunstincias, a satisfagdo alucinatéria surgird, gragas a regressao da noite sob a forma endoperceptiva de um sonho, ¢ de dia, gragas ao contato do objeto, sob suas miltiplas formas da vida acordada: erética, afetiva, intelectual, narcisica cujo valor dependerd do suporte alucinatério que a ela subjaz. Nao fazendo a diferenca do que vem do objeto daquilo que Ihe € proprio, 0 sexual primordial é solidario da nogio de narcisismo primario qualificado por Freud, em 1938, de absoluto (Freud, 1938c): 0 seio pertence & crianga da mesma forma que a sua boca, Tendendo & sua realizagao alucinatoria, 0 sexual primordial perpetua 0 “Ego-prazer purificado que coloca o cardter de prazer acima de qualquer outro”. Desta forma, 0 sexual primordial tem, ao mesmo tempo, o valor de percepgao e de ato, de alucinagtio e de contato®. Seu objeto tinico sendo 0 objeto-perdido-da-satis- ‘facdo-alucinatéria, caso ele obtenha satisfagao através do objeto real, do objeto in- terno, da fantasia erética ou sublimada, ele nio reconhecera coisa alguma da di- ferenga. Visto deste Angulo, Jean-Claude Rolland (1997) tem razo ao afirmar que “a experiéncia infantil é uma experiéncia auténtica, mas sem sujeito e, portanto, sem vivido” (Rolland, 1997). Com o desenvolvimento do psiquismo, o sexual primordial, repetindo, ndo se transforma, em todo caso, nao na sua constituig&o de fundo, ao contrario, ele multiplica, enriquece com sua tendéncia alucinatéria, sem anist6rica, os elementos proprios a sexualidade infantil. Da mesma forma, o carater animico do inconsciente e a espontaneidade alucinatéria dos desejos reprimidos tes — ‘ronteiras, 18, S. Freud (1926), "Lettre du 16 avril 1926 a Marie Bonaparte". in: E.Jones, La vie et foeuvre de S.Freud, 4. ll, PUF, 1969, p. 502. 19. S. Freud, primeiramente em 1915, *Pulsions et destin des pulsions’, p. 28, em Métapsychologie, e também OC. t Xill, p. 182, PUF, e depois em 1925, La Négation’, em Résultats, idées, problemes, tI, p. 197. 20. André Green (1994) coloca “a unidade superior do contato” nestes termos: “A feoria do contato no & 2 teoria da satisfagao pulsional realizada unindo efetivamente a pulsdo © seu objeto, mas...inciuindo a0 ‘mesmo tempo sua efelividade e sua potencialidade... (ela) no pode ser realizada a ndo ser no trabalho de repkosentacdo" ("Le moi et la théorie du contact’, em Les voies de fa psyché. Homenagem a Didier Anzieu, Dunod, p. 220 Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 0 265 César Botella © Sara Botella temunham a sua presenga?" € O sexual primordial impoe o pleasure seeking sem nuangas, sem temporiz: do, sem discernimento, até A loucura, no amor como no édio, na dor, na possessiio como na rejeigio e na destruigao. No seu desenvolvimento, ele conhece o assassinato do objeto%. Bis porque Winnicott tem razio ao estabelecer uma sucesso de fatos “O sujeito se liga ao objeto. O sujeito destr6i o objeto. O objeto sobrevive. O sujeito pode utilizar 0 objeto” (Winnicott, 1966), um processo que a crianga para se consti- tuir deve experimentar repetidas vezes Nesse sentido, no que nos concerne, desde o inicio de nossos trabalhos, temos insistido sobre as incontorndveis imbricagGes existentes entre o investimento do ob- jeto € 0s movimentos regressivos, emitindo a hipétese de que, cada noite, na regres- sio narcisica do sono, a corrente de desinvestimento dos objetos reais iniciada com 0 fechar dos olhos continua em directo a um desinvestimento da representagiio do . Hoje, nés pensamos que este desinvestimento da representagio do objeto € to da liberagiio do sexual primordial, devido & regressio narcfsica do sono. Este desinvestimento tem tendéncia a generalizar-se a todas as representagdes, € 0 temor da perda de toda representagao, de uma “ndo-representagdo” que, pela afligio que ela engendra, daria uma impulsdo ao ego noturno para figurar e reinvestir aluci- natoriamente o mundo de representagdes de objetos, para sonhar. Nos processos regressivos facilitados pela situago analitica, o sexual primor- dial esta presente e efetivo apoiando todo 0 movimento, assim como todo contetido transferencial latente ou manifesto. Portador e portado pelas expressdes regressivas transferenciais, 0 sexual primordial s6 pode ser estudado simultaneamente Aquilo que o faz emergir: a regresstio.Eis uma nogao atualmente negligenciada, desde sem- pre simplificada, embora seja um vetor indispensdvel do fancionamento psiquico. Robert Barande fez, em 1965, um longo ¢ interessante estudo* no qual ele aborda os pontos litigiosos da nogdo de regresstio. No que diz respeito aos outros 21. S. Freud (1911), Formulations sur les deux principes de l'advenir psychique: ‘Le caractére": "O mais dosconcertante des processes inconscientes...resulta no fato de que...a realidade de pensamento 6 assimilada & realidade efetiva externa, 0 desejo & realizagéo, ao acontecimento...” Posteriormente, um ano depois, em 1912: "Sur la dynamique du transfer: 'as modes inconscfentes...aspitam ase reproduzir em conformidade com a atemporalidade e a capacidade alucinatéria do inconsciente” (OC, t XI, p.20 @ p.116). 22, N6s aludimos aqui a transcrieso e tradugdo realizada por Martine Lussier de um esbogo inédito de Freud e de sua conferéncia inttulada "Wir un der Tod”. Martine Lussier faz no artigo que o acompanha, “Nous et la mort et son esquisse*, um estudo circunstanciado da conferéncia e de seu rascunho onde ela analisa as ligagées possiveis entre inconsclente, morte @ ato assassino. Revue franaise de psychanaly- 000, 927-942, 23, Especialmente nas “Notes cfiniques sur la figurabilté et linterprétation”. Revue frangaise de psycha- nnalyse, 31983, 758-776. 24. “Rapport du Colloque de Deauville" (1965). Revue franpaisa de psychanalyse, 4-196, retomado em Parcours d'um psychanalyste, son esthétique et son éthique, Pro-Eci, 1988. 266.0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N* 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediancia trabalhos que consultamos, os autores encaram a regressiio de acordo com seus pri prios pontos de vista: de Paula Heimann e Susan Isaacs (1952), passando por Balint (1959), Winnicott e Masud Khan (1974)®. No entanto, o mais desagradavel € que a definigdo de regressao varia segundo os autores, inclusive Freud, de acordo com os perfodos de sua obra. Ele Ihe atribui uma multiplicidade de sentidos que nao deixa de apresentar algumas ambigiiidades, como salientou Lacan (1955). E isto teve reper- cussio na compreensao dos processos regressivos que siio prdprios & sesso analitica. Esta dificuldade encontra-se novamente nas teorias pés-freudianas que levam a priticas diversas mais ou menos distantes do paradigma freudiano. Uma distingio entre Regresséo no sentido de regressdo a dependéncia de Winnicott, Regressdo libidinal no sentido freudiano, e 0 que nés propomos através do termo Regrediéncia, faz-se necesséria, a fim de melhor cernir nfo somente a dindmica transferenciz contratranferencial, mas também outras questes que tentaremos abordar nos capitu- los seguintes Il- A regressao “Tudo aquilo que uma crianga de dois anos jé pode ver sem compreender, pode bem jamais voltar & sua meméria exceto em seus sonhos. Somente 0 tratamento analitico seré capaz de fazé-la conhecer estes acontecimentos.” S. Freud, 193875 1. As questies ‘A hipétese na qual nos baseamos para a exploragao da ligacdo entre o sexual e a figurabilidade é a seguinte: no coragdo do sexual infantil, este“... ver sem compre- ender...” ~Freud dird em outro lugar que isto é préprio da crianga antes da aquisigao da linguagem — tem ele uma parte ligada & endopercepgaio de um sonho adulto? So- nho este que 0 adulto “vé sem compreender”, sonho que esté, como diz Freud, em 1917 “destinado a permanecer incompreendido”??. Contrariamente ao que ocorre 25. Em especial cap. XI 26. S. Freud (1938), Moise et le monothéisme, p. 184. Grilo nosso. Utlizamos a tradugao de Anne Ber- man, ed, Gallimard, 1984. Els aqui o texto em alemao (Gesammette werke, tomo XVI, p. 234, Fischer Verlag, 1999}:"Was die Kinder im Alter von zwel Jahren erlebt und nicht verstanden haben, brauchen sie ausser in Tidumen nicht zu erinnern.” 27. S. Freud (1917), Introduction a la psychanalyse: "O sonho néo se prope a dizer coisa alguma a quem ‘quer que seja, e, longe de ser um meio de comunicagao, ele esté destinado a permanecer incompreen- ido” (trad. S.Jankélevitch, Payot, 1949, p.253. Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 a 267 César Botella e Sara Botella durante a vida diuma do adulto no decorrer da qual, em principio, ver identificado a compreender, encontramos durante a regressiio do sono a dissociagdo origindria® entre ver € compreender, Uma dicotomia que nao se deixa ser pensada através de conceitos, uma experiéncia infantil ndo acessfvel ao pensamento do adulto, Exceto “no tratamento analitico”, no encontro daquele que sonha com a escuta do analista, na concordancia de dois inconscientes (Viderman, 1970; M. de M’Uzam, 1976, 1977, 1994) marcados pela regressio transferencial. A regrediéncia do sonho a regressio rencial juntam-se num trabalho psiquico que representa o tinico procedimento capaz de criar este minimo de inteligibilidade que dé acesso & formagio de um con- tetido representacional portador de alguma coisa deste “ver sem compreender” do passado do analisando. Uma primeira discussio se impde devido ao fato de haver uma controvérsia entre os tradutores desta passagem de “Moisés eo monotefsmo”: “Was die Kinder im Alter von zwei Jahren erlebt und nicht verstanden haben...". A escolha de Anne Berman ao traduzir a palavra erlebt por ver nfo esta isenta de conseqiiéncias, Numa tradugdo mais recente, Comélius Heim* preferiu a formulagdo vivido sem compre- ender. Da mesma forma na edigio Standard® Strachey preferiu traduzi-lo por expe- rienced; na tradugio espanhola Lopez Ballesteros utiliza 0 termo vivenciar". Os ger- manistas que consultamos nos confirmaram a tradugio de erleben por “viver, fazer a experiéncia de”; acrescentando também o possivel significado de “assistir a, ser tes- temunha de”. No entanto, erleben niio poderia ter jamais o significado de “ver”, pré- prio a visdo. A escolha feita por A. Berman poderia ser justificada pelo fato de que a expressdo francesa: “il a beaucoup vu" poderia ser traduzida por Er hat viel erlebt De qualquer forma, do ponto de vista do psicanalista, as duas interpretagdes so validas. E isso a tal ponto, que gostarfamos de poder utilizar as duas palavras simultaneamente, uma espécie de “vivido-visto”. Neste contexto, a escolha do termo “ver” parece-nos evidente, porquanto este sugere uma relagao possivel com a endo- percepedo do sonho ¢ nos abre caminho em dirego ao nosso tema central, a figurabi- lidade, na condigdo de Gnico meio de acesso possivel as zonas psiquicas do paciente 26. Esta ¢ uma idéia proxima aquela de J-Frangois Lyotard que advogava a favor do respeito de uma dissociagao primitive © constitutiva do sentido entre 0 visivel e 0 dizivel (Discours, Figure, 1985. Kiincksieck). 29, “Aquilo que as criangas de dois anos viveram sem 0 compreender nao poderdo jamais lambrar-se fora dos sonhos” (homme Moise et la religion menothéiste, trad. Corélius Heim, Gallimard, Folio-Es. sais, 1986, 1995, p. 228) 30. Volume XIll, p.126. 31. Obras Completas, t 9, Bibiliot 1a Nueva, p.3317, 268 0 Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabilidadé e regrediéncia que nao podem ser representiveis. Para o sexual primordial, “fora da linguagem”, viver e ver sio uma mesma coisa, Nossa experiéncia nos ensina a cada dia que os acontecimentos ocorridos “an- tes da linguagem” ¢ seus efeitos traumaticos, em particular certas emogdes ¢ afetos, ndo podem ser “ouvidos” pelo analista, sendo gragas a uma figurabilidade, a um percurso anterior de seu pensamento na via regrediente implicando seu psiquismo bem mais amplamente que as cadeias de representagdes de palavras e de coisas, pré- conscientes ou inconscientes. Revivido ou reapercebido? A questao é fundamental. Ela abatca a nogao de regressiio, sua definicao, seu destino e suas conseqiiéncias no tratamento. Winnicctt compreendeu-a bem, ele diz: “Isso que eu quero aqui mostrar é que no comego — {felizmente para nds — Freud se interessou ndo pela necessidade do paciente de regre- dir na andlise, mas naquilo que acontece na regressdo analitica, quando « regressiio nao é necessdiria; quando é possivel aceitar como um fato 0 trabalho realizado pela mde e pela adaptagdo ambiental inicial na anamnese do doente” (Winnicott, 1954). Esta citacdo de Winnicott ressalta conseqliéncias tesrico-praticas importantes para 0 analista, de acordo com a compreensio que ele tem da nogao de regressio. No que nos diz respeito, distinguiremos a concepcio freudiana, a de “regressdo libidi- nal”, na qual a regressio é concebida como limitada ao dominio intrapsiquico e aos pontos de fixagio préprios & psiconeurose; a “regressdo & dependéncia", ao objeto analista que Winnicott definiu e considerou mais profunda e indispensavel para tratar dos pacientes borderline e certas estruturas psicéticas; e, no pélo oposto, “a regredi- éncia ¢ a regressdo formal do pensamento do analista em sessdo” que n6s desenvol- veremos amplamente neste trabalho. A critica que Winnicott faz da nogiio de regressio em Freud, no fundo, nio esti errada. No espirito pragmatico bem anglo-saxio, ele chegara A concretude de uma dependéncia do paciente, considerada como a repetigio idéntica da sua vivéncia na condigio de bebé em relagdo & mae na qual o analista “é” a mae (Winnicott, 1954, p-134). Nés sabemos que a teoria winnicottiana, ao generalizar o sentido de “vivide”, chegou a modalidades técnicas nas quais nds j4 destacamos a importancia do contato Viver na “regressio & dependéncia” e ver no sonho assim como no pensamen- to regredido do analista propiciando a figurabilidade seriam os dois extremos — cuja oposi¢do e complementaridade possfvel devem ser estudadas — de uma pesqu bre a técnica analitica que diz respeito a este “antes da linguagem”. A primeira modalidade restringe 0 analista por um prazo mais ou menos longo, de modo mais ou so- 32. “Exjpbnis que precede 0 conhecimento... e mistura inimamente aquilo que jé se passou aquilo cue entéo aparece” (Augustin Jeanneau , 1990), Les délires non psychotiques , PUF, p. 154, Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 20030 269 (César Botslla e Sara Botella menos importante, a uma acao de sua parte, devido ao fato de que ele esté tao impreg- nado por sua “convicgdo” da realidade de um retorno ao passado, fazendo dele “a mde num certo periodo do passado” (Winnicott, 1954). A outra modalidade, a regressdio formal do pensamento do analista, cria nes te, igualmente, a firme “convicgiio” de que seu trabalho de figurabilidade Ihe dé também condig&o de ver e compreender 0 “vivido” anterior, fora da linguagem, de seu paciente. Nisto, os dois se aproximam de “Construgées” (Freud, 1937) em que a convicgio se toma o equivalente de um retorno da recordagao, assume o papel da rememoraciio. 2. A regressiio regrediente No inicio, regressivo e regrediente, regressio e regrediéncia eram sinénimos. Breuer foi o primeiro a ressaltar a idéia de uma andlise retrospectiva da excitagao; por este meio ele tentava explicar, nos Etudes sur l’hystérie (em abril de 1895), 0 cardter alucinatério dos sonhos enquanto finalizagdo de uma corrente “retrogradan- te” (rétrogradant) da excitagao: “Creio mesmo que num estado alucinatério normal digo no sono...uma excitagéo “retrogradante” do aparetho perceptor...é, portan- to, de norma” (grifo de Breuer) (ibid p.150). Um pouco mais tarde (outubro de 1895), Freud retoma, no Projeto, a nogiio de movimento retrogrado: “Uma particularidade do sono e de sua capacidade de reverter toda a situagéo: ele para a descarga mo- triz... ¢ tora possivel uma descarga retrégrada... podertamos examinar a natureza do proceso primario salientando... que somente uma inibigdo provinda do ego nos ensina a jamais investir W de modo a permitir-the transmitir retrogressivamente... é a quantidade (Q) que condiciona a alucinagao.... os sonhos sao realizagées de dese- jos ... os investimentos através de desejos primérios possuem, também eles, um cat ter alucinatério.” Tudo, ou quase tudo, é desta forma, por assim dizer, de uma s6 vez. O esquema entio utilizado no Projeto é bem distinto daquele que seré usado cinco anos mais tarde no capitulo VII da Interpretagdo dos Sonhos. Em 1895, ele imagina uma circulagdo entre diferentes elementos (neurdnios, mas pode-se também pensar, elementos metapsicolégicos: representagées, percepgdes...) através de uma zona (“barreira de contato”) exigindo uma desobstrucao. Tal facilitacdo se faz dife- rentemente de acordo com o estado em que o sistema se encontra: desperto ou dor- mindo. A alucinagao é af tratada na condigao de produto de uma certa modalidade da facilitagéo denominada “retrdgrada”, resultando de uma inibigdo de uma outra mo- dalidade de facilitagdo. Isto, sem que esta seja, tanto quanto sabemos, denominada progradiente e sobretudo sem que as duas modalidades de facilitagiio sejam postas 270 0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N? 2, agosto 2003, Figurabilidade e regrediénoia em oposigao dialética de forga: nem em Breuer tampouco em Freud De fato, no “Projeto”, nos encontramo numa outra t6pica distinta daquela dos conflitos de instncias, A temporalidade, quando se apresenta, é aquela bem particu- lar, do & posteriori em que o passado, até en inativo, se nao inexistente do ponto de vista psiquico, se apresenta transformado numa atualidade. Eo presente que o toma ativo a posteriori. Trata-se de uma t6pica dos estados de qualidade psiquica que, diferentemente daquela encontrada no esquema do Cap. VII, nao tem necessidade alguma de localizagao espacial ou temporal para explicar a alucinagiio € 0 sonho, 0 cardter essencialmente alucinatério dos processos primérios e do desejo. Isto quer jidade de estar associado A idéia de volta para tras, de regressio a um ponto do espago ou a um movimento anterior, ao primitivo, ao arcaico. Nao ha necessidade alguma de uma oposicao dialética regrediente-progrediente para a representagdo de uma mudanga. O grande interesse que isto representa para nés € o seu poder explicativo, € que ele nos leva a uma melhor compreensio do que € 0 “ver sem compreender”, do que sao os “estados” psiquicos, quando a quantidade de investimento representa o tamanho abso- luto, total, do investimento, quando a corrente regrediente se desenvolve sem restri- fio espacial ou temporal ¢ cria o campo alucinatério. Ele nos permite conceber um processo de condensagdo a partir da simultaneidade heterogénea que caracteriza 0 psiquismo em estado regrediente, como veremos mais adiante. dizer que, em seu sistema explicativo, 0 “retrogradante” nao tem neces 3. A guinada genética dos anos 1910 A Metapsicologia 1895-1900 sera progressivamente relegada nos anos 1910 1913 por uma concepgio histérico-desenvolvimentista do psiquismo. Nés nos en- contramos em um momento do pensamento freudiano no qual, apés o estudo do pe- queno Hans (janeito-maio 1908) e paralelamente & andlise do Homem dos ratos (ow tubro 1907 até aproximadamente outubro 1908), se elabora a nogiio de estados libidi nai Sabe-se que Freud atribui, desde o inicio, um lugar determinado ao papel do passado, do trauma ocorrido no passado, este “corpo estrangeiro” dos Estudos Sobre 33, Duas nogdes percorrem 0 Projefo, que 0 proprio Freud deciara, desde o inicio, fundamentais: uma é a de quantidade, definindo “os processos psiquicos como estados quantitativamente determinados de particulas materiais distinguiveis", definicao que orientara a compreenséo do mecanismo da alucinagao fenquanto sobrecarga: a outra nogao é a de investimento, deste quantitative concebido como uma “cor- 3¥ente", uma circulagao entre diferentes elementos. De acorde com a circulacda livre ou inibigéo ao nivel da "barreira de contato”, a expresséo psiquica sera diferente, Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 271 César Botella e Sara Botella Histeria (1893-1895). Sabe-se também que a idéia de fixagiio e de regressdo da libido, enquanto explicagao da neurose, aparece pela primeira vez na carta a Pliess de 14 de novembro de 1897 — menos de dois meses apés a carta de 21 de setembro de 1897 — na qual renunciava a teoria da sedugdo da crianga pelo adulto: “Eu ado acre- dito mais na minha neurética.” Nao nos esquegamos que as primeiras publicags: psicolégicas do perfodo preanalitico de Freud diziam respeito & psicopatologia das neuroses, em particular as nogdes de “psiconeurose de defesa” e “neurose obsessiz val Estes textos publicados entre 1894 e 1898 siio dominados pela descoberta da sexualidade da crianga nos processos neuréticos. Eles levaram Freud a encarar a evolugao psiquica sob o Angulo temporal: a partir de entdo, a genética se impoe por si propria: “A escolha da neurose ... (histeria, neurose obsessiva, parandia) depende do estado de evolugdo no qual a repressdo é possivel ... Segue-se que uma certa quantidade de libido néo vai mais conseguir, como ela deveria, transmutar-se em ato nem traducir-se psiquicamente. Ela se encontraré obrigada a engajar-se numa via regressiva” (Freud, 1894). No entanto nao haverd neste perfodo uma verdadeira teoria desenvolvimentis- ta, Esta permanecerd em estado de germe até os anos 1910-1912. Da mesma forma que a utilizagiio, em 1905, nos Trés Ensaios Sobre a Sexualidade, da nogao de zonas erégenas inscritas ema temporalidade, néo implica ainda numa concepgiio verda- deiramente genético-evolutiva. E portanto relativamente tarde que, sob 0s efeitos do que poderiamos qualifi car de guinada genética dos anos 1910, se instaura como carro-chefe da teoria freu- diana uma concepgio de ordem genética. Progressivamente, durante os anos 1910, as explicagdes da psique comecario a se apoiar na idéia de uma vetorizacio: todo o movimento psiquico se refere ao espago-tempo do desenvolvimento. Essa concepgiio normativa, baseada sobre um desenvolvimento psicossexual que se sucede numa ordem determinada atribuird, as- sim, uma prioridade absoluta & nogdo de regressdio temporal. Com esta guinada os sintomas sero descritos e qualificados na qualidade de movimento regressivo no sentido de um retorno a um estégio anterior no qual, havendo sido outrora particular mente investido, funciona como um ponto de chamada, uma fixagio, um tempo libi- dinal que deveria ter sido normaimente superado. O que se torna determinante para 0 psiquismo € seu percurso temporal, indo do arcaico ao normal, passando por uma 34, Nesse sentido, assinalaremos que a Unica vez em que Freud toma seu tempo para expor uma teoria da memoria é neste mesmo texto. Ver mais especificamnente p. 283, 234, 235 da edigéio de 1967, PUF, trad. de Anne Berman. Podemos também nos referir a uma carta a Fliess um ano apés (6 de dezembro 1896). 272.0 Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabllidade e regrediancia sucessio de estdgios: oral, anal, falico, genital. Com esta guinada genética, a teoria da neurose ganha autonomia, separa-se da teoria do sonho, para entiio conquistar sua propria especificidade gragas & regressdo temporal. Desde entiio Freud coloca nova- mente a t6nica sobre a psicopatologia ¢ constréi sua Metapsicologia com base em uma linha de pensamento mais preocupada em esclarecer a patologia do que os pon- tos obscuros do sonho. Bis aqui, em resto, o caminho percorrido por Freud: em 1908, em Cardter ¢ erotismo anal, em que se trata especificamente da questio das “zonas erdgenas” a seguinte ordem: “6rgdos genitais, boca, Anus, meato urinario”. Em 1908 igualmen te, a paranéia, até entdo considerada, antes de mais nada, como uma desregulagem do fancionamento psiquico, uma transformagdo de pensamentos em alucinacdes visu- ais, é ligada & sexualidade regredida (Correspondéncia com Jung). Seguem-se, em 1909, as Cinco Ligdes de Psicandlise em que um dos capitulos trata da libido e de sua evolugdo determinada pela sucessdo das zonas erégenas; depois, em 1912, Tipos de Desencadeamento da Neurose e, finalmente, em 1913, A Disposigdo a Neurose Ob- sessiva em que, pela primeira vez, Freud emprega os termos de “pulsdo parcial”, “ordem sexual pré-genital”. Este texto deve-se, sem diivida, a influéneia de Ferenczi que escreveu no mesmo ano, 1913, O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e seus Estagios, artigo que Lacan® acha “pobre”, acusando Ferenczi de ser o primeiro a colocar na cabeca de todo o mundo os famosos estégios”. Recentemente Janine Chasseguet-Smirgel® tratou desse problema numa conferéncia na Sociedade Psica nalitica de Paris. Durante esse periodo, desde 1911, com Os Dois Principios, Freud procura articular 0 psiquismo e o real, de “constituir o real” diré Lacan. A partir desse mo- mento, ele vai servir-se daquilo que Ferenczi Ihe oferece®”. Depois virdo a riqueza & as nuangas bem conhecidas da Metapsicologia em 1915. Tendo como complemento aconcepeiio desenvolvimentista da sexualidade ea nogio de regressio libidinal, Freud acredita ter entrado na era cientifica da psicandlise®, Em contrapartida ele parcialmente sua Metapsicologia de 1900 sacrifica 35: Lacan, Le Séminaire j,Les deux narcissismes", Le Seull, p.146. 36, Janine Chassequet Smirgel, “Les stados, pour quoi faire”, conferéncia ministrada em 18 de janeito 2000 na Sociedade Peicanalitica de Pars. 37. No entanto, Feraned! fala, nesse arrigo citado, de estagio alucinatério que, nem ele préprio, nem Freud, deservoiverdo. 38, Conhece ce a contestagio da motapsicologia nascida nos Estados Unidos a partir das anos 1970, Vr, sobre isto, 0 artigo de Agnes Oppenheimer de 1985, “Quest-ce que ia métapsychologie? » em Revue trangaise de psychanalyse, 51985, 1197-1216, Da mesma forma, os artigos de Chantal Léchartler-Allan @ de Gpristine Anzieu-Premmereur em Sur las controverses amércaines dans la psychanalyse, ‘Mono- graphids de Psychanaiyse", PUF, 2000. Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 4 273 : gsar Botella e Sara Botella Ele nao se engana a respeito dessa situagiio. Nas primeiras paginas de A, Pul- séio e suas Vicissitudes, ele desconfia do risco de “fechamento” e da “rigidez dos conceitos”, Dessa forma ele encontrard rapidamente um compromisso. Em um dos artigos que seguir, “Complementos metapsicolégicos para a teoria do sonho" — redi- gido entre 23 de abril e 4 de maio ~ ele faz a distingao entre duas modalidades de regressdio. Aquela que diz respeito ao desenvolvimento da libido e aquela que fala do desenvolvimento do ego. A primeira, a da libido, pade ir “até 0 restabelecimento do narcisismo primitive”; a segunda, a do ego, “até 0 estdgio da satisfagéo alucinatéria do desejo”. O enriquecimento trazido € seguramente consideravel, mas com uma condi- cdo: que a regressio do ego seja perfilada ao sonho e & patologia. Como ja diziamos, © sonho sera, de agora em diante considerado como uma “psicose momenténea”. Na verdade, a regressdo do ego nao ser4 considerada como produto de uma via regredi- ente normal do psiquismo™. Da mesma forma quando, alguns meses depois, em fim de julho, no manuscrito que ele jamais publicaré (descoberto em 1983 por brich-Simitis) e que ele enviard 4 Ferenczi sob 0 titulo de “Visio de conjunto das neuroses de transferéncia”, Freud considera a regresso como um quinto destino pulsional “o mais interessante fator ¢ destino da pulsdo”*. A nogio de regressio atinge, entdo, a complexidade que é a sua, mas permanece, no entanto, sinal de uma patologia: “Na histeria de conversdo, hd uma forte regressao do ego, é uma volta d fase de indiferenciagao do pré-consciente ¢ do inconsciente, logo, sem linguagem nem censura. Trata-se de outra coisa na neurose obsessional. A regressdo é uma regresséio da libido ...”. A importancia tedrica da regressdo genética permite a Freud aprofundar a no gio de zona erdgena. Cada um dos estégios (genital, anal...) possui uma fonte erége- na, um lago forte com o corpo ¢ um modo particular de ligagdo com o objeto. Bernard Brusset fez, sobre isso, um estudo extraordindrio (Brusset, 1988) stimento sexual que as zonas erégenas rece- bem € a de estabelecer uma distincfio, uma separagao, entre 0 corpo do sujeito e aquele do objeto. Sao justamente essas mesmas Zonas erégenas que representam um centro de interesse para a mie, quer se trate de cuidados corporais enquanto tais ou de uma pura atividade fantasmatica, por exemplo, mais diretamente sexual, do sexo Ise Gru- A funcdo principal do sobreinv 38. Salvo em algumas passagens menores. 40. Em Pulsions et leurs destins (redigido entre 15 de margo @ 4 de abril), Freud descreve na totalidade, quatro destinos da pulsao: a virada no contrario, a volta sobre a propria pessoa, a repressao e a sublima- (G0. Os dois primeiros so tratados longamente neste artigo. Sabe-se que a repressdo, se bem que escrito na mesma época, tera direito a um artigo separado. Quanto & sublimaco, que deverd fazer parte da Metapsicologia, ela permaneceu, ao lado de um verdadeiro estudo da prova da realidade, uma das. lacunas mais importantes do pensamento freudiano. 274.0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéncia de seu filho. Gragas a isso, as zonas erégenas, “momento fecundo” do encontro mae- crianga, podem ser investidas pela crianga como um meio poderoso para agir sobre a mie, A crianca se apropriaré dessas partes tio preciosas de seu corpo e, progressiv mente, a continuidade sujeito-objeto, até entdo reinante, recua diante do investimen- to das zonas fronteirigas de um corpo tornado erdgeno. Esta apropriagao das fronteirigas € um movimento narcisico, auto-erético, 0 reagrupamento do s corpo sobre si proprio. Nés 0 consideramos como um movimento auto-erdtico secun- dério (Botella; Botella,1982), na medida em que traz nele o trago do objeto que marcou a zona erégena. Pensar-se-4 aqui no narcisismo primitivamente secundario, de acordo com a formulagio de M. Fain ¢ D. Braunschsweig. Separagdo e lugar de troca, as zonas erdgenas tém por atribuigao primeira a de garantir a distingao sujeito- objeto, a separagio fora-dentro, a diferenciagio das qualidades representago-per- cepgiio. A zona erdgena, é 0 ancoradouro corporal que se opée a Identidade de zonas jeito- Percepedo. Ill - A regrediéncia “Nés somos feitos do mesmo tecido dos sonhos” W. Shakespeare, A rempestade, ato TV. 1. As vicissitudes da regrediéncia Um verdadeiro golpe é dado na nogao de regrediéncia pela nota acrescentada em 1914 em A Interpretagao dos Sonhos (Freud, 1900, p.466)) devido a sua dtica desenvolvimentista. A comunidade analitica tendo-a adotado sem reticéncia, a veto- rizagdio tempo-espacial encontrou-se af definitivamente confirmada, Este acréscimo definiu a regressio de acordo com trés caracteristicas: “a) uma regressiio t6pica no sentido do sistema @ aqui exposto; b) uma regressao temporal quando se trata de uma retomada de formagées psiquicas anteriores; c) uma regressdo formal quando modos primitivos de expresso e de figuragdo substituem os modos habituais. Estas 1rés espécies de regressdes so, no entanto, tdo somente uma na base ¢ se reencon- tram na maior parte dos casos.” Uma tal definigao da regressio corresponde a uma realidade psicopatoldgica indiscutivel, mas 6 pouco conveniente, como n6s mostra~ remos, a dinamica propria da sessio de anilise em que os processos regredientes do pensamento tém um papel decisivo. Este acréscimo, na verdade, no tesponde ao edbirito do texto de 1900; sao provavelmente os critérios genéticos dos anos 1910 Revista de Psicanalise, Vol. X, N°2, agosto 2003 9 275 César Botella © Sara Botella que os impuseram. a A perspectiva da empreitada freudiana da Merapsicologia 1900 encontra-se entio af virada ao avesso. Em 1900, Freud serviu-se do sonho para esclarecer a vida psiquica. © sonho the permitia conceber esta iltima como um funcionamento que tinha a capacidade de tratar a excitagio de acorde com dois caminhos: o progredien- te, tendendo ao representacional e a agio exterior como meio de realizar um desejo; oregrediente, que, sem agao exterior, tende a realizar igualmente um desejo, mas sob © modo alucinatério. E este segundo caminho que serd sacrificado na medida em que, depois da nota de 1914, sera concebido como fendmeno patolégico. O caminho pro- grediente encontrar-se- entio reduzido aos tnicos aspectos normativos, hierarqui- zados, da vida psiquica ¢ o sonho nao seré nada mais que um modo de aceder a contetidos escondidos. A regressiio t6pica e a regressio temporal sero, a partir de entdo, o mais seguidamente citadas sob o termo de regressio libidinal, e esta consti- tuird o fundamento da concepgao genética dos anos 1910. Quanto a regressao for- mal, cla reaparecerd somente de maneira excepcional nos escritos freudianos. No entanto, Freud ndo poderia ser mais claro quando ele escrevia, € verdade, s6 algumas paginas, em 1900, antes do acréscimo da nota de 1914, que a regrediéncia poderia ser também ativa sobre os processos de pensamento, embora até entdo ela tenha sido circunscrita ao sonho: “Se nds chamamos de ‘progrediente’ a diregdo nd qual se propaga o processo psicolégico ao sair do inconsciente no estado de vigilia, nds temos o direito de dizer do sonho que ele tem um cardter ‘regrediente’... Esta regres- so é seguramente uma das particularidades psicoldgicas do processo do sonho; mas néo podemos esquecer que ela ndo é 0 apandgio do sonho. A recordagéo inten- cional, a reflextio e outros processos particulares de nosso pensamento normal cor- respondem também & marcha para tras, no nosso aparetho psiquico...” (Freud, 1900, p.461). Isto é confirmado um pouco mais adiante: “... [durante a vida diurna] é sdrio parar a regresstto na sua marcha, de tal maneira que ela ndo ultrapasse a imagem-recordaca, e possa, a partir dat, procurar outras vias que permitam esta- belecer, do exterior, a identidade desejada"(Freud, 1900, p.482). Eis entdo como a meméria, as recordagées representadas tém a dificil tarefa de inibir 0 curso da regre- diéncia. O passado rememorado reafirma a distingio sujeito-objeto, a fronteira in- terditando 0 acesso a este para-além da hist6ria que é o anistérico do sexual primor- dial. nece: Um dos raros lugares onde Freud retoma a nogio de regressao formal interes- sa-nos particularmente. Trata-se da X/II Conferéncia de Introducao a Psicandlise (1917): “Ao término desta pesquisa, nds nos encontramos em presenga de dois da- dos que constituem, no entanto, 0 ponto de partida de novos enigmas, de novas diivi- das. Primeiramente, a regressdo que caracteriza 0 trabalho de elaboragdo (su- 276 0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabilidade e regrediéncia bentendido, do sonho) 6 n 10 somente formal, mas também material. Ela ndo se con- tenta em dar as nossas idéias 0 modo de expressdo primitivo: ela revela ainda a propriedades da nossa vida psiquica primitiva...”. Em algumas linhas abaixo: “para que Ihe serve fazer reviver as tendéncias psiquicas, os desejos ¢ os tragos de cardter hd muito superados, dito de outra maneira, de actescentar a regressio material & regressdo formal? A tinica resposta suscetivel de nos satisfazer seria... que do ponto de vista dindimico é impossivel conceber de outra forma a supressiéo da excitagdo que perturba o sono. No entanto, no nosso estado atual de conhecimento, nds ainda ndo temos 0 direito de dar esta resposta"(Freud, 1917, p.231), Esta nova formulagao, “regressdo material” que, tanto quanto sabemos, tam- bém jamais foi retomada, permaneceré portanto obscura. Os indicios “fazer reviver” ou “vida psiquica primitiva” permitem eles conceber a nuanga de “material” como caracterizadora de uma regres 26 do ego indo “até uma indistingdo entre uma repre sentagéio que se torna alucinatéria ¢ a percepgdo? E até 0 apagamento da prova de realidad?" Neste sentido, a regressio do sonho como quinto destino da pulsio sera compreendida como sua realizacdo, tanto material quanto alucinatéria. No entanto, nos seus escritos, Freud nio nos parece ter conseguido chegar a uma decisio sobre os termos a serem empregues para descrever a realizagao alucinatoria. Varias formula- Ges sao empregues para este fim: regressfio temporal, regressio formal, regressiio material, regressiio do Ego. Dentre estas, trés so particularmente significativas para nossos fins: a) Aquela que Freud utiliza em 1915 no Complemento, a “regressdo do ego”, em oposigdo a regressiio da libido. Ambas pertencem & categoria de regressio tempo- ral e histérica, isto supde uma volta atras a um estdgio do ego precoce que resolvia suas necessidades através de sua satisfagdo alucinat6ria isto de uma forma imedia- ta. Trata-se de uma concepgio genética. b) Aquela de “regressdo formal”, no capitulo VII de Interpretagdo dos So- nhos, para descrever, igualmente, 0 percurso até a satisfagdo alucinatéria, mas, dife- rentemente da regressio do Ego, esse percurso, embora a satisfagdo alucinatéria seja considerada como “modo primitivo de expressdo”, nao teria o carater de retorno a uma etapa anterior do desenvolvimento. A regressdo formal seria entdo uma capaci- dade psiquica néo regressiva, mas regrediente, que faria parte da plasticidade nor- mal do funcionamento pséquico. ¢) aquela da “regressdo material” (1916), a ser considerada como uma acen- tuagiio da regressao formal & qual se acrescentaria a “convicedo” narealidade “mate~ 41. Tratar-se-ia de uma ruptura de equilibrio da dindmica representacao-percepgao, que nés compreen- denis através da formulacdo contraditéria: "Seulement dedans-Aussi dehors’, (Botella; Botella, 1985) “Pensée animique, conviction et mémoire", Revue frangaise de psychanalyse, 4, 1985, p. 991-1007. Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 3 277 César Botella © Sara Botella rial” disto que, no entanto, nao passa de uma representagdo. A “regressdo magerial” caracterizar-se-ia pela perceptibilidade que engendra a convicedo de uma representa~ go alucinatéria. Voltaremos a esta questio. Utilizaremos 0 termo de “regrediéncia” para descrever a capacidade psiquica em funcionamento nessas regressées. 2. Para uma definigao da regrediéncia Adotando o termo “regrediéncia®, desejamos isentar a regresso formal de toda a conotagio de arcafsmo, de forma primitiva de expresso, ou de simples com- plementaridade com uma ordem principal que seria o progresso. E, em suma, de todo ‘© movimento que poderia significar uma volta atrds, Nosso desejo € 0 de encontrar um termo que nio esteja impregnado pelas conotagdes genéticas da nogao de regres siio. A atividade onirica, exemplo primeiro da regrediéncia, nao é de fato nem regres- siva nem arcaica e iaio tem menos valor do que o pensamento diurno; ela se constitui noutro modo de pensar, um “pensamento visual”, dizia Freud. O emprego do termo regrediéncia nos proporciona a vantagem de poder incluir em um tinico termo aut6- nomo as nogées de via regrediente, de identidade de percepgio, de alucinatério e qualidade animica, nogées a serem aproximadas ao modo de funcionamento do in consciente. Nés compreendemos a regredigncia nestes termos: ela seria tanto um estado psfquico quanto um movimento em devir; um potencial de transformagio, uma capa cidade psiquica permanente para resolver alucinatoriamente a quantidade de excita- quando se produz o fechamento da via motriz. A manifestagéo mais evidente 42. Assinalamos, no entanto, que no formas nés que introduzimos um neologismo. “Regrediéncia” se inspira num termo muito préximo de ‘regrediente” empreque na traducéo francesa de I'interprétation des Féves feita por |. Meyerson e por D. Berger (PUF, 1967). O tradutor francés limitou-se a reproduzir em francés 0 termo utilizado pelo préprio Freud em alemao: regredienten (Die Traumdeutung tiber den Traum, Vil Zur Psychologie der TraumvorGénge-B..régréssion, p. 547 @ 553; Sigm. Freud, Gesammelte Werke Chronologisch geordinet,II-li Band. Imago Publishing Co. Ltd., London, 1942). O mesmo ocorre na tradu- a0 espanhola de Etcheverry (Ammorrortu). Por outro lado, James Strachey ndo retomou tal termo em. Sua verso inglesa; como tampouce o fez a outa tradugao espanhola (a de Lopez-Ballesteros, Biblioteca Nueva), Tendo consultado 0 Sachs-Villatte Alemao0-Francés do inicio do século, verificamos que esse termo ja existia, mas no sentido de uma sucessao feminina ¢ ndo no sentido que Ihe da Freud. Faria ele parte da linguager oral na época de Freud? Isto ndo se sabe, De qualquer maneira, para os analistas, mais importante que esses problemas linguisticos 6 o fato de que, a exempio dos outros termos desapa- recidos da obra freudiana (regressao formal, Identidade de Percepedo), o termo regrediante como o de progrediente jamais reaparecerao. No restante de sua obra, Freud limitar-se-a a usar o adjetivo alemao regressiv. Recentemente certos autores retomaram o termo regrediéncia. P. Fedida assinala as origens do termo na fisica dtica: “La régréssion, formes et déformations”. In: Les évolutions, PUF, 1994. 278.0 Revista de Psicandlise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 Figurabllidade e regrediancia manifestada pelo estado de regrediéncia € 0 sonho, ele & 0 seu: produto mais bem sucedido, 'A sua dinamica é original, ela faz, emergir 0 acontecimento que cor sexual primordial: a ligagio da pulsio ao “objeto-perdido-da-satisfagaio-alucinat6- ria”, Seu estado de movimento em devir pode incluir simultaneamente todos os ele mentos presentes num momento dado, independentemente de sua origem: represen- tacional, perceptiva ou motriz; independentemente da qualidade delas, consciente ou |: percepcao dos érgdos ituiu o inconsciente, e de sua heterogeneidade algumas vezes radi dos sentidos, percepgao intrapsiquica; igualmente de sua heterocronia: uma recorda- cio, um desejo reprimido da infincia, um projeto de futuro. Definindo-se pela coe~ s seus constituintes dotados de igual valor, de todos os xisténcia simultanea de todos elementos psiquicos presentes a um daclo momento, a regrediéncia pode, num mesmo s no existiam pre- movimento, provocar intimeras novas ligagbes, mesmo onde elas viamente, criando assim novas causalidades. F isso que Freud denominava, desde 1895 em Esiudos sobre a Histeria: “A compulsdo a unit o conjunto das coisas num lado momento...” (Freud; Breuer, 1895, nota de rodapé na p.53, grifo nosso) ‘A metéfora que mais se aproxima da regrediéncia é a de ser a “profissfo de teceliio” do aparelho psfquico, onde se tramam as ligagdes até o infinito. Os versos de Goethe (Faust, 1), lembrados por Freud, retratam-na maravilhosamente bem: cada empurrizo do pé colocaos fios aos milhares, as agulhas de tecer yao e vem, os fios escorregam invistveis, cada movimento os liga aos milhares (ibid, p.246) A regrediéncia tece a “tela”® sobre a qual 0 trabalho de figurabilidade borda as formas visiveis com os fios coloridos da sexualidade infantil. Um trabalho de figurabilidade que, dird Freud, “ndio recua diante do esforgo necessdrio para fazer passar primeiro os pensamentos ressequidos numa outra forma verbal ... eonquanto esta facilite a figurabilidade ... Mas esta forma de transformar 0 contetido de pensa- mento numa outra forma pode também prestar-se ao trabalho de condensagdo & criar lagos que de outra forma nao existiriam, com outras idéias” (Freud, ibid, p.396, grifo nosso). O trabalho de figurabilidade 6 um processo de dar sentido, de “causa- dio” (Freud, ibid, p.272), criador de novas causalidades. Ele diz respeito a esta fun- Gio da qual Freud escreveu: “... Uma das fingdes das mais precoces ¢ das mais 7a.“tea" no seu sentido original: tecido espesso que serve de fundo, cuja caracteristica é, uma vez execufada a tapecaria, a sua nao visibilidade, Revista de Psicanalise, Vol. X, N?2, agosto 2003 0 279 César Botella e Sara Botella importantes do aparetho pstquico, aquelade “ligar” as mogdes pulsionais ... um gro preparatorio que introduz assegura a dominagéo do principio de prazer” (Freud, 1920, p.336), Exigindo um estado psiquico de regrediéncia para que se possam esta- belecer novas ligagées, novas causalidades, o trabalho de figurabilidade amplia as possibilidades psfquicas, especialmente no decurso dos tratamentos analiticos, A regrediéncia seria entéio mais inteligente do que 0 progresso, do que os processos secundérios, do que 0 pensamento abstrato? Sem divida, porquanto ela possui uma liberdade completa, enquanto que o progresso, em sua especializagzio, comporta o sacrificio parcial da bela potencialidade psiquica do homem IV - A figurabilidade “A capacidade do analista de ver com imagens é raramente mencionada.” B. Lewin, 1968 1. As dificuldades para definir a figurabilidade “O sonho é um enigma, aqueles que nos antecederam cometeram o erro de querer interpretd-lo como se fosse um desenho. Eis porque a eles este pareceu absurdo ¢ sem valor” “A figuragdo no sonho, que seguramente no é feita para ser compreendida, nao é mais dificil de entender do que os hieréglifos” (grifo de Freud). S.Freud, 1900 Freud sentia uma certa desconfianga com relacao a este “sonho desenho” sem discurso; ele 0 havia definido como uma “linguagem primitiva sem gramdtica”, Uma mudanga de Stica se fez necessdria para que ele fosse visto como acessivel & lingua- gem na qualidade de um hieréglifo. Entio, assim como Champollion que consagrou sua vida a descobrir 0 segredo deste tiltimo, Freud determinou-se a fazer a descoberta dos segredos dos sonhos ¢ estava orguihoso de a ter alcangado. Para atingir seu obje- tivo, ele tratou 0 sonho como se fora um material semelhante a uma lingua cuja figuragdo permaneceria “absurda ¢ sem valor” se nao se procurasse encontrar para ela uma interpretagio, Foi quando se viu confrontado, em decorréncia dos efeitos psiquicos da guer- rade 1914-1918, & impossibilidade de interpretagdo do sonho das neuroses traumiti- cas, 4 sua auséncia de enigma, a falta de participagio do sexual e do desejo incons- 280 0 Revista de Psicanalise, Vol. X, N° 2, agosto 2003 | i i i | { Figurabilidade @ regrediéncia ciente nesse tipo de sonho, que Freud se viu obrigado a procurar af algo mais que um simples material a ser interpretado. Como nés sabemos, disso resultou uma série de artigos, publicados entre 1920 e 1925, sobre a atividade onirica e suas fungdes, dis- tintas das de realizacio de um desejo infantil interdito (Freud, 1921, 1922, 1925b). Foi em 1925 que Freud dirigiu aos analistas — na realidade a si proprio -, numa nota acrescida a Interpretagdo dos Sonhos (Freud, 1900, p.431), esta adverténcia solene & severa: “Antes, ... pareciamos ignorar a necessidade de uma interpretagdo. Hoje, os analistas caem em outro erro, ao qual eles se apegam de um modo igualmente obsti- nado. Eles procuram a esséncia do sonho em seu conteiido latente; assim proceden- do, a disting&o entre os pensamentos latentes ¢ o trabalho do sonho thes escapa. O sonho nao passa, na verdade, de uma forma particular de pensamento que as condi- ¢des proprias ao estado de sono permitem. E 0 trabalho do sonho que cria esta for- ma. E ele a esséncia do sonho...” (Freud, 1899). Entre 1920 e 1925, Freud explora a possibilidade da presenga de fendmenos telepaticos durante alguns sonhos. Ele se inclina em dire¢ao a uma resposta positiva, mas permanece temeroso do perigo que esses fendmenos poderiam apresentar, ou seja, uma abertura para 0 obscurantismo e para priticas esotéricas. Ele confessa, no entanto, t@-los experimentado no cfrculo de seus intimos (trata-se de sua filha Ana e de Ferenczi). Embora nao tenha jamais publicado 0 que quer que seja sobre este assunto, ele analisou, em 1899, oito dias apés a publicagiio de Interpretagdo dos Sonhos, um sonho supostamente antecipatério. O manuscrito foi descoberto apés sua morte. Depois, foi somente por meio de notas de rodapé acrescidas & Interpretagdo dos Sonhos que ele recusard a idéia de que o sonho possa ter tais capacidades interesse de Freud permanece centrado na interpretagdo dos sonhos, o que pode explicar, pelo menos parcialmente, 0 pouco lugar que ele dé na sua teoria 4 figurabilidade enquanto tal. E por essa mesma raziio que depois de 1900 ele mantém uma certa ambigiiidade entre os termos de figurabilidade ¢ de figuragao, quando sua distingdo nao deveria ser um problema, Cada um dos dois termos tem direito, conse- cutivamente, a um subcapitulo especffico no interior do Cap. VI: “Os procedimentos de figuragao do sonho” (“Die Darstellungs-mittel des Traumes”); “A tomada em con- siderago da figurabilidade” (“Die Riicksicht auf Darstellbarkeit”), A figurabilidade 6 af considerada como um procedimento especifico do trabalho do sonho, paralela~ mente aos mecanismos de deslocamento, condensagao ¢ claboragio secundaria. Es tes trés tiltimos mecanismos serdo desenvolvidos longamente e voltario cons- tantemente nos seus escritos, adquirindo a nobreza dos conceitos de base, enquanto a figurabilidade, quando de suas raras evocagées, dard somente lugar a alguns comen- tarigs No entanto, na perspectiva da Metapsicologia de 1900, a figurabilidade € oriun- Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 281 César Botella © Sara Botella da de uma exigéncia psiquica fundamental, pois que a finalizagdo em imagens visug ais € 0 objetivo primeiro do trabalho do sonho. Bla é exigéncia de transformagio de um material heterogéneo preexistente num outro material, 0 visual endoperceptivo. Ela representa, nela to somente, o proceso de transformagio que leva ao visual endoperceptivo e em que participam o deslocamento, a condensagao ¢ o simbolismo € sobre os quais a censura tem sua palavra a dizer. Mas, estranhamente, Freud nao se preocupa particularmente em definir a nogdo de figurabilidade, como se a formul io usada no titulo “A tomada em consideragiio da figurabilidade” (“Die Riicksicht auf Darstellbarkeit) fosse suficiente. Ele nao sera mais explicito no conjunto dese texto nem em outro lugar na totalidade de sua obra. Assim, em Complemento metap- sicolégico @ teoria do sonho(1915), a formulagao é retomada de forma idéntica ao titulo de 1900. E, em 1917, quando, embora a figurabilidade seja lembrada como sendo “sob 0 ponto de vista psicoldgico, o mais interessante ... 0 mais constante" dos quatro fatores que fazem parte do trabalho do sonho, seu estudo é bem sucinto Mesmo quando fala a esse respeito, em 1932 (ligdo n® 29), como de uma “lingua primitiva sem gramdtica”, ele continua igualmente evasivo. Excetuando, entretanto ~ 0 que abre novas perspectivas — quando Freud diz que a figurabilidade facilita a condensagdo e cria “novas unidades, uma idéia j4 presente em 1900 e depois, que a figurabilidade seja mencionada, em Totem e Tabu (1912) e no Esbogo. Esta auséncia de definigao e de estudo poderia explicar sua quase auséncia nas teorias pés-freudianas ... “Figurabilidade” seria um neologismo introduzido por De- nise Berger na edigdo de 1967. Anteriormente J. Meyerson usava a formulagao “a aptidao a figuragio”, Figurabilidade significaria “aquilo que é figuriivel sem ser figu- ragio”. O fato de que este termo esteja ausente dos diciondrios de lingua francesa aceita-se, mas 0 mais inerfvel é que nenhum dicionério de psicandlise, com excegio do Vocabuldrio, de Laplanche e Pontalis (Roudinesco-Plon; Chemama-Vandermers- ch), the d8 um lugar. O voeabulo “figurabilidade” esté mesmo ausente do exaustivo (853 conceitos e nogdes) Sigmund Freud, Index thématique de Alain Delrieu (1997), 0 Vocabulério de Laplanche e Pontalis situa o termo de “figurabilidade” no contexto das nogdes de Identidade de Percepgiio e de Identidade de Pensamento, mas os auto- res ficam, como Freud, na formulacdo “levado em consideragdo”. No nosso conhe- cimento, 0 tinico diciondrio que estuda esta nogao nao é psicanalitico. Trata-se de Notions Philosophiques* em que 0 termo se apresenta liberado da formulagao de “levaulo em consideragdo"na escrita de Monique David-Ménard, que, apoiando-se em Lacan e Lyotard — embora este iiltimo critique severamente Lacan com respeito em 44. Encyclopédie philosophique universelle, t. 1: Les notions philasgphiques, sob a diregao de André Jacob, 0 t. 1 sendo ditigido por Sylvain Auroux, PUF, 1990. 282.0 Revista de Psicandlse, Vol, X, N® 2, agosto 2003 i jurabilidade e regrediéncia intrinsecamente a0 figuravel — salienta a diferenga radical entre as artes plisticas visuals e as artes da palavra e reporta a figurabilidade ao desejo que alucina seu objeto Salvo erro de nossa parte, somente na Franca a figurabilidade suscitou algum interesse, € foi em Michel Fain que nés ouvimos falar dela pela primeira vez, Ele tem, se é que entendemos bem seus objetivos, uma concepgao de figurabilidade que se refere menos a transformagio do pensamento em imagens — para esta ele usa a ogo de regressao formal ~ e mais a um sentimento € mesmo uma atitude corporal influenciada pelo ego ideal. Entre sentimento de sie imagem, os exemplos que ele utiliza — e que se tornaram clissicos ~ estao “o trabalhador de mecdnicas” ou “o conferencista que enfatua a voz” [le conferencier qui enfle la voix]. Jean Guillaumin (1979) foi um dos primeiros a se interessar pela figurabilida- de, insistirdo também sobre a imprecisdo de sua definigdo em Freud. Ele sugere que isto se deve talvez a que “o problema da imagem nos confronta diretamente aquele da passividade ... e que Freud ficou um tanto retratdo sobre aquilo que podia levé-lo ‘a uma anélise radical do momento passivo”. Essa telagio da figurabilidade com a “em recuo” dos psicanalistas em relagiio & passividace poderia ser uma das atitude: auto-andlise “radical” que exige que sejam levados em consideragdo esses momentos inesperados e surpreendentes da figurabilidade, quando so eles proprios que a expe~ rimentam: € preferfvel “negd-los ou reenterrd-los”*; a tendéncia geral é a de esque- cé-los imediatamente, Mesmo se nao nos interessamos diretamente por ela, podemos ser levados a considera: a figurabilidade; foi este o caso de Piera Aulagnier quando ela descreve a nogiio de victograma e de linguagem pictural. Na sua concepgao, 0 * ‘pictograma” & “imagem de coisa”, “imagem sensorial", “modo de representagao propria ao pri- mdrio”, “entre pulsdo de ver e pulsito epistemoldgica”, a figuragao tornando-se meio de acesso A “nomeacdo”. Em resumo, para ela, a nocao de figurabilidade esta cir cunseritaa dois usos; um a torna idéntica a “imagem de coisa”, 0 outro a integra num desenvolvimento genético em que “‘o visual precede o aciistico, a vista precede o conhecimento e cuja possibilidade de nomeagao, a imagem sensorial, € 0 primeiro referente da representagio que ela torna possivel” (Aulagnier, 1975): “do interpre- 1dvel ao jigurdvel”, “é preciso encontrar palavras que tornem ‘figurdveis’ para os dois parceiros as representagdes de coisas"; € esta “a tarefa do intérprete naquilo que ele tem de mais drduo” (Aulagnier, 1986, p.338). Descrigao de uma empreitada posta, quer nos parecer, aquela do trabalho do sonho e que leva a marca de uma teori erigida a partir do estudo da psicose. _——_—_—__ Z Retomamos aqua formolagao de Bion, citada na Introdugo, cizendo respeito & sexualidade infant Revista de Psicanalise, Vol. X, N22, agosto 2003 0 283 César Botella e Sara Botella Naquilo que nos diz respeito ~e isto depois de nossas primeiras publigagées em 1983 —a figurabilidade ocupou um lugar central em nossas reflexdes. Bla se tornou, para nés, baixo a formulagdo da “regressdio formal do pensamento”, fonte de pesquisa, ¢ isto desde os nossos primeiros contatos com criangas, as vezes bastante doentes, escapando aos nossos esquemas explicativos habituais e nosso espanto diante de certos momentos da sessdo, igualmente inexplicaveis, no decorrer dos tratamentos com adultos. 2. Freud e Silberer , no minimo, surpreendente que Freud, que trata to pouco da figurabilidade, faga to seguidamente referéncias aos artigos de Silberer®. Ele faz questiio de mo: trar a comunhao de idéias de ambos (a transformagao do pensamento em imagens’ mas também insiste longamente nas suas diferengas de pontos de vista. Constata-se que a figurabilidade, descrita por Freud como a resultante de um trabalho complexo do sonho-realizagiio de desejo, nao é, para Silberer, o tinico procedimento de inteligi- bilidade da vida psfquica noturna, Para este dltimo, existe um procedimento mais simples (Silberer, 1909). Ble descreve uma “transformagdo automdtica de pensamentos em imagens” (Freud, 1900, p.296) cujo modelo é aquele da transformagiio do pensa- mento no momento do adormecimento. O exemplo principal de Silbereré: “Eu adorme- go coma idéia de que devo corrigir, num artigo, uma passagem de estilo éspero”; 6 sonho que resulta daf é: “Eu me vejo aplainando uma pega de madeira”. Silberer & provavelmente o autor que Freud cita o mais seguidamente na sua obra”. Ele chega até a prestar-Ihe uma homenagem de peso, “um dos raros acréscimos & doutrina dos sonhos cujo valor é incontestével” (Freud, 1914, p.101). No entanto, ao retomar em varias ocasiées 0 exemplo do Aspero, Freud insiste no fato de que: “Em geral, a imagem que aparece ndo representa o contetido do pensamento, mas o estado (boa disposi¢éo, cansago, etc.) no qual a pessoa se encontra.” Com efeito, quanto a Silbe- rer, ele diferencia esse fendmeno que chama de “material” do “‘fendmeno funcio- nal”, ou seja, da simples transformagao do pensamento em imagens, assim como 0 modelo “aplainar” 48, Sabemos que Freud manteve com Silberer uma relagao ambivalente que lembra aquela que ele havia. tido com Tausk, dois destinos téo semelhantes, a ponto de Paul Rozen querer torna-lo responsavel pelo suicidio dés dois (P. Rozen,1978, La saga freudienne, PUF, 1986). 47. Na Interpretagao dos Sonhos, encontramos paragratos sobre Silberer acrescidos & edigao de 1900 ‘sem que 0 ano do acréscimo seja salientado — nas p. 51, 296, 428-430, 445, Depois, em 1914, no artigo sobre o narcisismo @, em 1932, na 29! ligéo, 284.0 Revista de Psicandlise, Vol. x, N® 2, agosto 2003, i Figurabilidade e regrediéncia Frente aos fendmenos silberianos, que manifestamente escapam do sexual, compreende-se que Freud sinta desconfianga e interesse a0 mesmo tempo ~ proble- ma semelhante Aquele sentido por ele na descoberta das neuroses traumdticas que escapam igualmente ao dominio do sexual. Silberer representaria uma ameaga para a teoria sexual freudiana? Meltzer, no seu desejo de apresentar uma teoria original do sonho e de fornecer um lugar importante na anilise da imagética de tendéncia oniri- ca, acredita nisso. Ble fard, enti, uma severa critica, tratando como tautologias os argumentos de Freud. No seu livro Le monde vivant du réve, Meltzer (1984) nao Ievard em conta o fato de que Silberer, numa publicagao posterior (1914), pregonize, paralelamente a “interpretago” que ele chama “psicanalitica”, atribuindo ao sonbo um sentido sexual infantil, um outro tipo de interpretagdo que ele denomina “anagé- gica”. E esta que ele vai considerar a mais importante; serd ela que desvendard, de acordo com ele, os pensamentos os mais “profundos”, tendo servido como tecido ao trabalho do sonho. Freud vai insurgir-se, num parégrafo acrescentado em 1919 na Interpretagdo dos Sonhos (Freud, ibid, p.445), contra este desvio do sonho de suas raizes pulsionais e considera que a interpretagao dita “anagégica”’, que ele prefere rebatizar de “abstrata”®, 6 apenas superficial e pode ser encontrada facilmente pelo prdprio paciente*®. Ao contrario disto, ele reconhecerd, no Eshoro, com a honestide: de intelectual que nés conhecemos dele, que a relagiio das neuroses traumditicas (os sonhos sem relagdo com 0 sexual) “com o fator infantil escaparam até agora as nossas investigacdes” (Freud, 1938, p.55). Se insistimos tanto sobre 0 problema levantado por Silberer, é por duas ra- goes: uma é a tendéncia atual & minimizagdo do sexual infantil, que ja evocamos; & outra é a sedugio que a “réverie” exerce sobre os analistas desde Bion, uma pratica que se arrisca a reduzir o tratamento a uma andlise do pré-consciente, Voltaremos a isso. 3. As modalidades da figurabilidade Globalmente, nés j4 podemos estabelecer certas modalidades de figurabilida- de que correspondem a diferentes percursos regredientes dos sonhos: a figurabilida- de freudiana, oriunda de um trabalho complexo que extrai sua energia ¢ seu sentido 48. A traduco da Standard Edition parece-nos mais pertinente que a de Meyerson, em francés, usando 0 termo “alegorico” 49. A respeito da critica de Silberer feita por Jones, podemos nos referir ao comentario de J. Lacan (1866) dgpunciando os ras de ume psicologizagdo da psicandlise: “D'un sylabaire aprés-coup” (?) [Sobre uff silabario a posterior). In: Ecrits, Le Seuil, 1966. Revista de Psicandlise, Vol. X, N°2, agosto 2003 1 285

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