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Colecao Clinica Psicanalitica Dinicipa por FLAVIO CARVALHO FERRRAZ Depressao DanteL DELOUYA re ZO Casa do Psicélogo® , © 2000 Casa do Psicdlogo Livraria e Editora Ltda. E proibida a reprodugao total ou parcial desta publicagao, para qualquer finalidade, sem autorizagao por escrito dos editores. 1* edigio 2000 Editora Anna Elisa de Villemor Amaral Giintert Produgao Grafica Valqutria Farias dos Santos Revisio Grafica Lucila Vrublevicius Sergovia Editoragao Eletrénica Helen Winkler Capa Yvoty Macambira Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Delouya, Daniel Depressio / Daniel Delouya. — Sao Paulo: Casa do Psicdlogo, 2000. — (Colegio clinica psicanalitica) Bibliografia. ISBN 85-7396-107-4 1, Depressao mental 2. Psicandlise 3. Psicologia patolégica I. Titulo. II. Série. CDD-616.8527 00-3800 NLM-WM 207 Indices para catdlogo sistematico: 1. Depressao: Psicopatologia: Medicina 616.8527 Impresso no Brasil Printed in Brazil Reservados todos os direitos de publicagéo em lingua portuguesa & Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Rua Mourato Coelho, 1059 05417-011 Sao Paulo SP Brasil Tel.: (11) 852.4633 Fax: (11) 3064.5392 e-mail: casapsi@uol.com.br http://www.casapsicologo@uol.com.br AN 2. O eixo narcisico das depressoes Neste capitulo pretendo apontar, na obra de Freud, um viés a partir do qual 0 estado depressivo possa ser pensado e articulado. Se Freud abandona, por volta de 1893, 0 interesse pela patologia depressiva propriamente dita, o fendmeno depressivo (denominado, por vezes, de estado morbido) nao deixa de ser notado na descri¢ao clinica que ele faz dos dife- rentes quadros sobre os quais centra seu esforgo clinico e tedrico2?. No entanto, Freud nao fornece nenhuma hipstese sobre a origem deste estado ou afeto no contexto topico, dina- mico ou economico do aparelho psiquico. Nao surpreende que Karl Abraham, um discfpulo e amigo préximo de Freud e que preservou seus lagos com a clinica psiquidtrica, se queixe, nas linhas que abrem seu conhecido artigo de 1911, do lugar limi- tado que a depressdo ocupava na teoria psicanalitica: “Enquanto EE 23, As vinhetas clinicas do periodo inicial da psicandlise, como aquelas descritas nos ensaios sobre as psiconeuroses de defesa (1894 1896), assim como os _ casos citados nos Estudos sobre a histeria (1895), testemunham este fato. O _ mesmo diz respeito aos grandes e consagrados estudos clinicos, de Dora (1905), _ passando pelo Homem dos Ratos (1909), e até o Homem dos Lobos (1918), entre outros estudos indiretos, como os do caso Schreber (1911), do pintor Haizmann (1923) e do escritor Dostoievsky (1928). 28 ___COLEgAo “ ICA PSICANALETICA” os estudos dos estados mérbidos de angustia figuram amplamente na teoria psicanalitica, os estados depressivos nao obtiveram a mesma atengao. No entanto, 0 afeto depressivo esta presente, tanto quanto a angustia, em todas as formas da neurose e da psicose”™*. A angustia, porém, nado poderia ter outro destino uma vez reconhecendo os elos diretos e 0 papel central que ocupou na invengao e na formulagao das teorias da libido, da sexualidade, das pulsdes, do recalque e da repre- sentaco no primeiro e mais importante periodo da psicanilise. Parece, no entanto, que Freud teria, com a passagem para a segunda tdpica, subsidios suficientes para tecer consideragdes especificas, de cunho metapsicoldégico, sobre o humor depres- sivo, comparaveis aquelas que redigira antes sobre a angustia. Expectativa que foi, em grande parte, frustrada. Mas nao inteiramente. Uma pista abre-se, neste sentido, entre as t6picas. Luto e Melancolia: uma sinopse Pouco tempo apos a publicagao do ensaio de 1914 sobre 0 narcisismo, Freud dirige sua atengao, novamente, para a melancolia®. No ensaio Luto e melancolia (escrito em 1915, mas publicado apenas em 1917), a descrigdo e as hipdteses a respeito do quadro melancélico langam, de forma indireta, uma luz sobre a origem e 0 carater da depressao ali presente. Freud se utiliza da intuigdo inicial que obteve em 1895 sobre a me- lancolia (Manuscrito G): a articula¢éo com um estado “nor- 24. Cf. K. Abraham (1911) *Preliminaires 4 l’investigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco-depressive et des états voisins”. In: Oeuvres completes. Paris Payot, 1965, tomo I, p.99. Os trabalhos de Abraham aos quais faco referéncia encontram-se n: do francesa das obras completas do autor, mas podem ser encontrados na coleténea compilada em 1970 pela editora brasileira Imago, intitulada Teoria psicanalitica da libido: sobre o cardter e 0 desenvolvimento da libido. 25, Em dezembro de 1914, Freud apresenta aos colegas a primeira versio de Luto e melancolia. DEPRESSAO mal” de luto ou, em outras palavras, o elo da depressao melancélica com “a nostalgia de algo que foi perdido” (1895). Perda do objeto, separacao e luto parecem constituir um eixo possivel para o tema da depressao. Eixo que subtende a interpretacdo global, mas nem sempre explicita, da depressao em varios contextos tedricos da psicanalise. A maneira com que o desenho freudiano da melancolia arrastou consigo a depress4o, confundindo-se com o largo escopo de suas mani- festagdes, suscita varias indagagdes. Contudo, este desenho deve nos servir como ponto de saida para o processamento do tema que nos ocupa”®. Luto e melancolia elabora, no plano tdpico, 0 que Freud tenha esbogado, vinte anos antes (Manuscrito G, 1895), nas dimensdes econémica e dinamica”’. Se com A interpretagao dos sonhos ele consolida a concepgao da vida psiquica em um universo representativo — nos investimentos objetais que com- poem seus cenérios — Luto e melancolia aprofunda essa linha mestra da psicandlise, demonstrando, no entanto, que sdo as identificagdes primarias junto ao objeto que antecedem, ou condicionam e subtendem, tais investimentos objetais. A descoberta de 1895 sobre a existéncia de um buraco na malha representativa do eu (no “grupo psiquico”), e pelo qual se esvai aenergia libidinal, expressa a impossibilidade do melancolico de se assegurar da presenga do objeto, dos sedimentos das identificagdes primarias. Estes constituem e servem de susten- taculos das montagens dos cenarios fantasmaticos por meio dos 26. Uma versio elaborada desta forma de abordagem da depressao encontra-se no excelente trabalho de André Haynal “Le sense de désespoir”. Rev. Fr: Psychan., _y.1, p.1-175, 1977. 27. Para o desenvolvimento do tema da depressdo em torno da melancolia na obra le Freud, 0 leitor pode consultar, além da correspondéncia com Fliess, 0 Manuscrito [Melancolia (1895), incluido na correspondéncia com Fliess], A interpretagao dos sonhos (1900), Discussdes sobre o suicidio (1910), Consideragées atuais sobre j guerra e a morte (1915), Transitoriedade (1915), Luto e melancolia (1915), 0 e 0 isso (1923) e Inibigdo, sintoma e angiistia (1925). 30 0 “CLENICA PSICANALETICA” quais 0 sujeito investe os objetos do mundo* . No melancélico, conclui Freud, os investimentos de objeto nao resistem, 0 que acarreta uma fixac4o no regime narcisico, uma vez fracassada a passagem para o regime objetal. O luto e a separagao, necessaria a tal passagem, nao puderam ser plenamente alcan- cados. Fracassa, conseqiientemente, a conservago do objeto no seio do eu, assim como o processamento e a elaboragéo da ambivaléncia afetiva originaria, comprometendo, portanto, a formagiio de representacdes-coisas: 0 ddio acaba predominando e transposto para o seio do eu, para se tornar arma feroz no massacre deste pelo supereu. Na psicanalise moderna, Nicolas Abraham e Maria Torok desenvolveram, por intermédio de Ferenczi e sua concepgado acerca da introjegdo, um enfoque fascinante sobre a natureza e os destinos dessas espécies nao assimilaveis do objeto que eles denominaram de “criptas”” . Melancolia e depressao a partir de Karl Abraham Nesta condensada sinopse da concepgao freudiana acerca da melancolia, acentuei, tomando como eixo, os aspectos relativos aos investimentos primarios do objeto. No entanto, desde os primeiros ensaios psicanaliticos sobre 0 tema, 0 esforgo tedrico partiu de parametros relativos 4 conduta psicologica do melancélico: sua “negagao da vida” (Abraham) e de si — sua baixa estima e sua auto-recriminagao. Esta é a razao pela qual as conseqiiéncias relativas ao conflito entre as instanciais do eu 28. A afirmacdo de que o eu é constituido pelas precipitagdes dos investimentos objetais de origem é formulada de uma forma sistematica, a partir de 1921, em Psicologia das massas e andlise do eu. Esta concepgao sera amadurecida no livro de 1923, O eu e o isso, quando Freud define as instancias do eu ¢ as relagées entre elas. 29. Cf. (1987)) A casca e 0 niicleo, Sao Paulo, Escuta, 1995, sobretudo os capitulos da parte IV, além do primeiro livro dos autores, Le verbier de I'homme : aux loupes, Paris, Flammarion, 1976. DEpRESSAO_ 31 — entre 0 supereu e 0 eu — ocuparam o cerne das considera- g6es dos primeiros autores sobre 0 tema, como Karl Abraham, Weiss, Rado e Gero. O primeiro buscou tragar a origem dessas as ourelacSes nas modalidades do desenvolvimento da libido, 0 decurso pulsional. A depressao melancélica foi, de fato, o motivo de Abraham embarcar num trajeto — iniciado em 1911 que culmina no seu conhecido ensaio de 1924 — em que ineia 0 desenvolvimento da libido desde a fase oral pré- bivalente no estado fusional com a mie até a fase genital 6s-ambivalente, constituida em plena diferenciacao entre o eu 0 objeto”. A distingao de pares (opostos) em cada uma das fases de desenvolvimento — oral, anal e genital, conforme modalidade de expresso corporal que lhe é tipica, coloca a lostra uma ambivaléncia afetiva derivada das oposigdes ilsionais entre as mogdes retentivas/possessivas (oral, anal e lica) e as agressivas (oral canibal e anal expulsiva). A lominancia das ultimas é, segundo essa tendéncia conceitual unda de Abraham, a responsavel pela irresolugado da mbivaléncia e a permanéncia das relagdes destrutivas na essao e na melancolia. E importante notar o deslocamento ento que se criou, na psicanilise, a partir de tal ordenacgao lutiva da libido. Pois so as modalidades de expressao libidinal al, anal e falica) junto ao objeto, ou seja, os modos de abord4- as relacées de objeto — que acabam tomando, em certas rrentes, 0 primeiro plano. Abraham distinguiu entre as ilidades da pulsio — isto é, sua satisfagdo — e suas metas, “ja, as relagdes de objeto, abstraidas das modalidades de ressdo da libido nas zonas corporais onde brotaram cialmente (Abraham, 1924). Assim, as nogées de fixagio e sressao da libido (Freud, Trés ensaios sobre a teoria da Abraham (1911) "Preliminaires investigation et au traitement psychanalytique la folie maniaco-dépressive et des états voisins”, (1916) “Examem de l’étape n la plus précoce du développement de la libido”, e (1924) “Esquisse d’une e du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux”, vres Completes, Paris, Payot, 1977. 32 CoLecao “CLinica PsicANaLitica” sexualidade, 1905) tornaram-se, em muitos circulos e escritos: psicanaliticos, 0 centro de um arrazoado constitutivo da determinagao psiquica (em fungao, por exemplo, de uma fixagao oral ou anal)*', Veja-se que a vinculagao, em Freud, entre satisfagao, tragos mnémicos e desejo foi substituida, em grande parte, ou deslocada para as relagdes de objeto. Essa tendéncia veio ase radicalizar na obra de Fairbairn, que pregou o abandono completo de tudo que diz respeito 4 pulsao e ao principio de prazer que rege, segundo Freud, a vida psiquica® . Ja na corrente iniciada por Abraham e seguida por sua paciente Melanie Klein e seus discipulos, a centralizacao nas relagdes de objeto, embora diminuisse o valor e o lugar que a satisfagao pulsional tem na obra de Freud, esta ultima (a satisfacao) nao foi de todo abolida. Quanto a questio da melancolia e da depressio, Abraham mostra-se muito mais nuangado do que a corrente psicanalitica das relagdes de objeto a qual deu origem. Pois, segundo ele, nao éa predominancia em si das pulsées parciais agressivas, oriundas das respectivas subfases, oral e anal, que acaba desembocando numa ambivaléncia insoltivel. Mas a ultima deve-se, sobretudo, ao desapontamento sofrido junto ao objeto — com a mde — na fase oral pré-ambivalente, o que introduz uma sensibilidade no seio dos processos primarios de identificagao, uma vez que estes se constituem sob o molde oral de degustar e assimilar 0 outro. Eventualidade que acaba expondo o sujeito ao efeito destrutivo das fases subseqiientes, oral canibal e anal expulsiva (é verdade que Abraham postula aqui a contribuicao, em alguns pacientes, de uma pressuposta predisposigao para as feigdes destrutivas dessas fases). Dai a severidade superegéica, a culpa mordaz e a incansavel necessidade — e seu irreparavel fracasso 31. A fixacao em certa fase ou a regressao para ela, em conseqiiéncia da incapaci- dade de tolerar a frustragao na fase seguinte, sao, segundo essa tendéncia, as razdes da imaturidade do eu, da severidade do supereu, dos tragos de cardter, da permanén- cia de uma ambivaléncia, de certa patologia, etc. 32. “A libido é, essencialmente, uma busca de objeto e nao de prazer” reiterava 0 psicanalista escocés Ronald Fairbairn. Cf. a primeira parte de seu livro, de 1954, Estudos psicanaliticos da personalidade, Lisboa. Biblioteca de Psicandlise,1978. __ DEPRESSAO 33 _—em reintegrar 0 objeto (Abraham, 1924). Entretanto, veja-se que Abraham nao abandona, sendo situa novamente — na primeira fase oral — a inscrigdo das experiéncias de prazer (investimento e identificagao) primarias com 0 objeto. No entanto, ea diferenga de Freud, ele atrelou a ambivaléncia a intensidade conflitual entre os diferentes estagios libidinais, devido a dominancia dos estagios e modos agressivos presentes ao longo do desenvolvimento da libido. Freud nao veicula a ambivaléncia afetiva primordial — descoberta, inicialmente, na neurose bsessiva do Homem dos Ratos (1911) — a tal dimensao, do decurso libidinal, mas atribui sua origem a desfusao basal, entre ulsdes de vida e morte — desintricagao causada pelas tiltimas fal estar na cultura, 1930). A ambivaléncia incidira, portanto, obre os precipitados primarios das experiéncias de satisfagao om 0 objeto, tornando sensiveis suas inscrigdes primarias entificagdes/investimentos (Luto e melancolia)]|. Entende- © porque a ambivaléncia se expressa, como diz Freud, na batalha errenha sobre e em cada uma das representagdes-coisas. am-se, portanto, os diferentes contextos metapsicolégicos n questao. Mesmo que a problematica melancélica se coloque, nto para Freud como para Abraham, no cerne do eu—na sua nstituigao*? —, 0 aporte de Abraham permitiu um slocamento quase total para as relagdes de objeto, e para a anifesta e “sdlida base” psicolégica, do fendmeno melancélico. ‘€ mais facil esquematizar a problematica melancélica de Luto elancolia no massacre entre eu e supereu, Freud nao para mas prossegue tracando-o “na sombra do objeto”, que cai bre © eu € que remete, em ultima andlise, a fragilidade das cri¢des primarias junto ao objeto —nas Tepresentagdes-coisas. © passo que a corrente a partir de Abraham se contenta no bate entre instancias, e suas conseqiiéncias psicoldgicas, ao ar a descri¢do em torno das respectivas relacdes de objeto. -E, alids, como veremos a seguir, 0 que diferencia 0 alcance da ambivaléncia na se obsessiva do da melancolia: a primeira nao afeta e nao atinge a estrutura 34 _ _ CoLegio “CLENICA PsicanaLitica” —_ e A corrente abrahamiana, que é, em certo sentido, paralela a de Freud (senao sua precursora), esta na origem de uma tradigao que deixou uma marca indelével numa parte conside- ravel do pensamento sobre a depressio na psicanalise, sobre- tudo a americana, e na concepgao e na pesquisa psicoldgica dentro da psiquiatria. As tiltimas se apdiam nas feigdes psicolé- gicas da depressdo melancélica, ou melhor, foram absorvidas por elas. Estado que encontra sua razdo de ser na manifesta relacdo autodestrutiva, devido ao desequilibrio criado na incessante contenda “intersistémica”, entre 0 eu e o supereu. Uma série de autores, a comegar por Sandor Rado, analisando de Abraham, tomou como foco de investigacao a baixa estima do melancélico e do deprimido, remontando-a seja aos compo- nentes destrutivos presentes nos investimentos primarios do objeto, alimentando o fechamento narcisico na arena entre as instancias, seja as conseqiiéncias das frustragdes traumaticas, ou descuidos precoces, que fixaram e limitaram 0 sujeito ao estado de desamparo™. Nota-se que tais estados, de embate ou caréncia internos, acarretam uma fragilidade narcisica, demandando um reasseguramento constante, sempre fadado ao fracasso, Dindmica magistralmente descrita pelo Sandor Rado*’. Veja-se, porém, que o primeiro enfoque (Abraham, Rado, Fenichel, Jacobson), de um fechamento em torno de um embate interno, tende a desenhar e a verter para o carater psicotico da depressdo e da melancolia, ao passo que o segundo, em torno da frustragado traumatica e 0 decorrente apelo, centrado nas car€ncia do eu (Gero, Sharpe, Bibring, Bowlby), promove uma concepgao mais proxima a de Freud que apreende essas patologias em um contexto da neurose, a narcisica**. O quadro 34. Rado (1928), Gero(1936), Fenichel (1946), Jacobson (1953-1971), Sharpe. (1944), Bibring (1953) e Bowlby (1969), respectivamente. 35. Rado $.(1928) “The problem of melancholia”, Int. J. Psycho-Anal., 9:420-38. Trabalho traduzido para o portugués com o titulo “O problema da melancolia” (1994), Revista Pulsional de Psicandlise, 61:10-24. 36. Cf. Freud (1923), Neurose e psicose. DEPRESSAO 35 da sensibilidade narcisica na melancolia e na depressaéo nos coloca, novamente, sobre as trilhas tragadas pelo eixo narcisico do modelo freudiano. O eixo narcisico da depressao O resumo do desenho freudiano sobre a melancolia permite compreender por que a psicandlise moderna situa a sensibilidade depressiva no estagio ou momento constitutivo a configuracao do objeto, ocorrendo conjunta e concomitan- temente 4 do eu do sujeito. A depressio eclode, segundo essa concep¢ao, com a consciéncia de ser separado da m&e ou com perda progressiva dela, na esteira do nascimento do sujeito do eu —, e 0 conseqiiente re-investimento de si. Momento apital que figura na posicéo depressiva de Melanie Klein, 10 estddio de espelho de Lacan, no estado de preocupagao de Winnicott e na fase de separagdao/individuagdo de Mahler. itua-se, portanto, em torno da configurag4o do objeto total que vai de par com o nascimento do eue coma preocupagao ter destruido a mie que se teme progressivamente perdida. ) sentimento de ter perdido o objeto ou aspectos dele, e a signacao diante desta perda, 4 medida que a crianga nao é paz de restaurar o objeto dentro dela mesma, marca o nasci- ento do afeto depressivo, assim como o da instalagdo da nsibilidade depressiva. A superac4o ou a vulnerabilidade a ste estado dependerao, em primeiro lugar, do objeto — da ia disponibilidade para com a crianca desde os primeiros omentos da vida e, conseqiientemente, do trabalho de luto. afeto depressivo situa-se, entao, nesse ponto central de insi¢Ao, constitutive do psiquismo, onde a abdicacao narcisica, a onipoténcia e da fusdo, se faz necessaria. _ Nota-se nessa sinopse, psicolégica e geral, que autores s-freudianos tendem - alias, em consonancia com 0 ensaio de de 1914 sobre o narcisismo - a ver nos percalgos ancélicos algo que se origina, em grande parte, do proprio 36 ___CoLe@do “Crinica Psi objeto, da mae (Winnicott e Bion, entre outros). Minha atengao, neste momento, ¢ outra. A assimilagao, nem sempre professa- da, da depressao dentro do desenho freudiano da melancolia (diametralmente oposta 4 diregaéo tomada pela psiquiatria moderna) nao ocorre na obra de Freud e nem na de Abraham. Ao contrario! No quinto capitulo do livro O eu eo isso, Freud diferencia com preciso — alids como Abraham em 1911 (e 1924)— a melancolia da neurose obsessiva. O tormento culposo ea ambivaléncia afetiva dessa ultima manifestam-se, também, de maneira igualmente gritante. Mas, diz Freud, na neurose obsessiva a ambivaléncia nao diz respeito e nao ameaga a preservagao do objeto no seio do eu — 0 objeto é assegurado e conservado. A ambivaléncia da neurose obsessiva apenas denuncia a dificuldade em ascender para uma posigao identifi- catéria no Edipo (como assinalei no primeiro capitulo), ao passo que na melancolia tal embate desenrola-se no seio do eu, ao redor de cada representagao-coisa, oriunda das identificagdes primarias junto ao objeto. No entanto, estados depressivos sao, segundo Abraham e o préprio Freud, freqiientes, senao constantes, na neurose obsessiva”. Nao se pode, portanto, atrelar a depressio 4 melancolia — ao fracasso do momento constitutivo da configurac4o concomitante do eu e do objeto. A resposta 4 questao da depressao deve ser procurada, portanto, em outro contexto, talvez mais amplo do que aquele em que se configuram, conjuntamente, 0 eu e 0 objeto. A fenomenologia do estado depressivo é um guia importante para esta busca. Neste sentido, a dimensao econémica precisa ser levada em conta. O livro Inibigdo, sintoma e angtistia (1926 [1925]) é 0 marco de uma evolucio tedrica sumamente impor- tante para este tema e cujos inicios remontam a conferéncia 37. Abraham (1911) ”Preliminaires a l’investigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco-depressive et des états voisins”; (1924) “Esquisse d’une histoire du développement de la libido basée sur la psychanalyse des troubles mentaux”, In; Oeuvres Completes. Paris, Payot, 1977, e Freud (1926) Inibigdo, sintoma e angistia. _ DepREssiO 37 XXV, de 1916, sobre a angustia. Nele, a angustia passa a ser considerada em um contexto que Freud havia deixado de lado desde 0 Projeto de uma psicologia (1895). Trata-se da situagdo traumatica originaria, do nascimento, que deixa o recém-nascido em estado de desamparo (Hilflosigkeit). O termo origindrio significa uma situa¢io em constante perlaboragao. Ao reassumir 0 desamparo no centro de suas teflexdes, Freud completa uma guinada em sua obra, mas nem sempre devidamente notada, que tinha iniciado em 1915 e que culmina na introdugao da pulsao de morte, em 1919, em que o Psiquismo passa a ser articulado em uma matriz essencialmente defensiva. O desejo e 0 prazer tornam-se secundarios ou pelo menos submetidos ao resguardo de um terreno incipiente do eu e sua Conservacao. Pois desamparo sé existe para a/guém, um ser fragil, em apuros**. Depressao, dor e angustia passam a constituir os trés grandes sistemas dessa matriz defensiva. Freud explicita essa transformagao somente a partir da angistia em relagao 4 mesma. Vamos tragd-la em linhas gerais. __ Naprimeira teoria sobre a angistia (1895-1916) ele supu- nha que este estado decorria da transformacao da libido e de sua descarga em forma de anguistia quando 0 acesso ao objeto, u a representagao, se encontra barrado (recalque). Na egunda teoria, quando se questiona sobre a angustia do real, lescobre nela os indicios de um sinal e/ou de uma reativagado automatica de uma expectativa ansiosa — uma preparacdo ante o perigo. Se a primeira teoria associava o ransbordamento angustiante com a auséncia do objeto de atisfagao, ou sua perda na fantasia, na segunda, a anguistia nal, ao imitar e repetir 0 ataque ansioso, desperta a fuga erante a ameaga do perigo real que esta prestes a se efetivar, u 0 recalcamento da representacao do desejo. Como se sse aqui de um trago mnémico, cicatriz/lembranga de tuagao, traumatica — mecanismo que visa a evitar 0 senvolvimento da angustia. Freud examina, entao, situagdes Esta alusao a um ser ou ego dos inicios sera retificada no pentiltimo capitulo. 38 _ CoLEgAo “CLINICA PSICANAL{TICA” reais de desenvolvimento da angustia em face do perigo, da perda e da auséncia do objeto de amor. Encontra 0 traco comum que as une num estado de desamparo, associado com uma situacao paradigmatica: 0 nascimento! E adepressao? O livro de 1926 permite relacionar 0 estado depressivo com uma situacao traumatica, isto é, com um sinal ou uma marca de algo que ocorreu no passado, ao passo que a angustia seria um sinal de alerta para um perigo potencial, no futuro. Nao foi Freud, mas Abraham, o primeiro (1911) a fornecer os subsidios para a suspeita de que a angustia e a depressio abrigam dentro de si— sob diferentes aspectos — os vestigios do desamparo infantil, associado com o trauma de nascimento. Abraham estabeleceu uma analogia do medo com a angustia, de um lado, e do luto com a depressao, de outro: “teme-se, diz ele, a vinda de uma desgraca; faz-se Juto por uma desgraga jd ocorrida”*”. Um perigo por vir versus uma perda, um fato consumado. Entretanto, a angustia, assim como a depressio, tem origens diferentes dos respectivos estados de medo e luto, pois seus motivos sao inconscientes. A angustia e a depressio respondem a uma desgraga, porém em posigées diferentes no tempo — a angistia se enderega ao fituro, enquanto a depressao se refere ao passado”’. A reagao (de cunho econémico/afetivo) desdobra-se portanto em uma temporalidade invertida e numa disposi¢aéo topica, em relagdo ao objeto (embora este fosse apenas prefigurado). Chega-se a seguinte formula: a perda é para a depressGo o que o perigo é para a anguistia. A depressao é associada ao estado de prostragao, ao evento 39. Cf. K. Abraham (1911) "Preliminaires l’inyestigation et au traitement psychanalytique de la folie maniaco-depressive et des états voisins”, In Oeuvres Completes. Paris, Payot, 1977. 40. A dor pertence, certamente, ao puro presente e, conforme a primeira parte do Projeto de uma psicologia (1895), parece ser 0 precursor genealdgico da angistia, pois deixa, como precipitado da experiéncia originaria do desamparo, um sinal: a angustia-sinal, de acordo com a reformulagao de 1917 a 1925. Cf. meu trabalho de 1999 “A dor entre o corpo, seu anseio e a concepgio de seu objeto”, in; Berlinck, M.T. (org.) Dor Sao Paulo, Escuta, 1999; p.23-35. DepREssAo : 39 _traumatico, 4 calamidade do nascimento, enquanto a angustia vincula-se a reacdo (defensiva) a este evento. A separagao do corpo da mae expoe o fragil eu do recém- nascido a ataques de duas origens: um afluxo, uma toxicagao, diria Freud, vinda do exterior, eum influxo, interno, das exigéncias e necessidades pulsionais: “a situagao traumatica contra a qual somos impotentes faz convergir um perigo interior e exterior, ou o perigo real com as solicitagdes pulsionais” (Freud, 1926). A-angustia e a depressao abrigam dentro de si — sob aspectos diferentes — os rastros do desamparo infantil, associado com o traumatismo. Na figuracao mitica deste momento, a depressao nao seria a reacdo ativa (como na angustia), mas a conseqiiéncia, o depois — a prostracio decorrente do trauma. O desamparo €, portanto, o estado protdétipo da depressao; a angustia é 0 ido — proveniente da pulsio —e que, mais tarde, motivara recalcamento. A angustia surge aqui enquanto reag¢do ao samparo criado por este corte de origem. Jaa depressao se elaciona com o lado inverso, negativo: a passividade e o préprio desamparo — 0 fisgo no momento traumatico. __ A depressio refere-se, portanto, ndo a uma perda do bjeto, enquanto totalidade perceptivelmente configurada, mas i perda de um espaco de gozo. Tal “reivindicac4o”, pela stitui¢do de uma uniao mitica de origem com o corpo mater- 0, coloca as nogées de narcisismo e, em especial, de narcisis- primario em direta associagao com o estado depressivo. \ntes de nos determos sobre esse elo, notemos que esta in culagao difere daquela adotada pela corrente psicanalitica ignorou, em grande parte, a nogio do narcisismo*'. Toda- il. A idéia de um espago de gozo encontra-se no cerne da elaboragio tedrica e nica de Melanie Klein desde seu primeiro trabalho de 1921 [1919] até seu ultimo 0 Inveja e gratidao (1957). No entanto, o contexto kleiniano é diferente. Nao é a 0 mitica de um estado do narcisismo primirio, regido por principios que as tendéncias pulsionais, mas de uma fantasia concreta de conquistar, habitar uir % bens do ventre materno, vencendo os “personagens adversos aos préprios ’s”, Nao surpreende que nao seja a depressiio, mas a persecutoriedade, a lei imordial do mundo psiquico kleiniano. ° 40 _ COLEGAO “CLENICA PSICANALITICA” * via, os elementos qualitativos especificos, de “gozo” (sensério, motor e afetivo), devem levar também em conta, de um lado, as mog6es pulsionais e, de outro, o ambiente eo objeto ao qual se dirigem. Sao, portanto, duas dimensdes complementares da investigacao do estado depressivo que pretendo acompanhar de ilustragdes de momentos e vinhetas clinicas. O narcisismo primario foi alvo de muitas controvérsias entre psicanalistas pés-freudianos. A confusao deve-se, em grande parte, a sua associacao inicial com o eu e sua constitui- gao. No entanto, 0 narcisismo primario expressa as feigdes econémicas e dindmicas do investimento de uma “tegido” difusa que abriga entidades indiferenciadas ou parcialmente diferenciadas entre 0 isso e 0 eu”, Portanto, a polémica sobre 0 fato de tratar-se ou nao de um estado anobjetal no reflete a complexidade com que Freud tenha abarcado essa questao, Freud nos fornece, aparentemente, concep¢ées contraditérias sobre 0 tema: postula, desde 1911 e até 1925, uma tendéncia primaria negativa (de indiferenca e de édio), que expulsa e “excorpora”, delimitando, assim, um eu primordial do objeto, do outro. Mogao motivada e orientada pelos precursores primi- tivos do eu (eu-realidade e cu-prazer purificado, entre outros), ao mesmo tempo que os reforca, tornando-os polos de aglomeragao das instancias em torno de um eu em construgao, de um futuro eu (1911, 1915). Porém, em outros momentos (1895, 1939), Freud apreende tal diferenciagao dentro de um curso passivo, em que o eu emerge de um estado fusional com 0 objeto, em virtude das frustragdes e das desilusdes introduzidas pelo ultimo”. Nao sao, a meu ver, opgdes 42. O que mostra, novamente, que a depressao nao se vincula com uma nogdo, unitaria de si, do eu. 43. Para a primeira, veja (1911) “Formulagées sobre os dois principios do funciona- mento mental”, (1915) “Pulsdes e seus destinos” e (1925) “Negaciio”. Para a segunda, veja, entre outros, (1926), /nibigao, sintoma e angistia e, principalmente, © seu ultimo livro: (1939) Compéndio de psicandlise. Eu-realidade e eu-prazer purificado sio “entidades” Primitivas, precursores do eu, cuja existéncia Freud postula no artigo de 1915. A estes deve-se acrescentar 0 do pai filogenético, cuja __Depressio 41 excludentes, mas séries complementares“’, Entretanto, o trago _ mais marcante do narcisismo primario vincula-se mais direta- mente com as qualidades de “experiéncias” associadas aos _ aspectos dinamicos e econdmicos. Os modelos heuristicos da vesicula protoplasmatica, da ameba e do reservatorio, que animam os escritos freudianos, desde 1895, figuram o estado do narcisismo primario. Sao os estados e as tonalidades nirvani- cos da experiéncia, operando sob os auspicios da economia da pulsdo de morte, que melhor descrevem 0 g0z0 adquirido pela tendéncia de diminuir, ao maximo, as excitagdes prove- nientes da libido das pulsGes de vida. Trata-se de um equilibrio _ em que a direcao centripeta — de retraimento — da pulsao de morte domina, contém e barra a tendéncia centrifuga, expan- siva, das pulsdes de vida’, O comentario acima tenta rastrear, de forma concisa, a telagdo, em Freud, entre o narcisismo primario e a idéia de um espa¢o de gozo originario. O esclarecimento sobre a economia pulsional na base do narcisismo primario é de grande utilidade no entendimento do estado depressivo. Freud, porém, ficou descontente com a nogao de narcisismo; e tentou suplanta-la, -assimilando-a 4 economia e a dinamica da ultima teoria das pulsdes. Seus herdeiros nao o seguiram nessa escolha. A elaboragao da depresso em torno da nogao de desamparo é suscetivel de langar uma nova luz sobre o entrelagamento do cisismo primério na economia e nos principios energéticos igem pode ser remontada ao livro Totem e tabu (1913), mas que é postulado mo 0 substrato e a causa da identificacao primaria aos pais em 1921 (Psicologia massas e andlise do eu), elaborado no livro O eu eo isso e explorado, ‘austivamente, em Moisés e a religido monoteista (1935-39). 4. Cf. Compéndio da psicandlise (1940). Winnicott, em cuja obra a questao da diferenciagao é central, postulou, ao contrério do que se pensa, uma somplementaridade semelhante, Veja, a este respeito, meu trabalho (1997) “A ulsio ‘destrutividade’ e o ‘pai’ do self: 0 acesso ao real em Winnicott”. P ‘cunso, 17: 27-34, O que leva Freud a derivar, em 1924 (“O problema econémico do quismo”), 0 principio de prazer do principio de Nirvana. O principio de lidade 6, de fato, um principio de prazer modificado pela realidade. 42 - COoLEgAo “CLiNica PstCANaLitica” * que a subtende. Entretanto, o tema do desamparo nao alcangou, em Freud, o estatuto de um verdadeiro conceito**. A convicgao de ter sido deposto de um lugar de gozo e deserdado dos bens do mundo constitui 0 trago mais notavel da vivéncia depressiva. Mesmo que esse fendmeno nos trans- ponha, rapidamente, para a nostalgia, o luto e a melancolia, a feigdo depressiva em si, seja qual for o contexto em que se apresenta, vincula-se mais com a dimensao estética. A estética deve ser entendida mediante as conotagGes que teve na filosofia classica, enquanto espa¢o/tempo, e na teoria literaria, enquanto qualidades dos sentidos, provenientes do corpo e de sua super- ficie — da sensorialidade e dos afetos. Para o deprimido, os bens do objeto, do gozo e do viver sé existem alhures, la fora, fora de seu territério e de seu alcance; ele os enxerga, além de ser extremamente sensivel as variagdes sensoriais de suas intensidades e a transmissdo de suas mais refinadas tonalida- des. Capacidade despendida as criangas pequenas, e seus herdeiros, poetas e artistas, que ttm o dom de criar e encontrar formas para sua expressao. Seria um erro atrelar a depressaio ao plano ético, da culpa e do tormento melancdlico, mesmo no caso da propria depressao melancdlica. E preciso, portanto, ao menos no primeiro momento, destacar a depressdo das estruturas de sentido e do jogo de forgas que esses abrigam, para centrar-se no fendmeno depressivo que, em si, nada tem de ético ou da moral. A vivéncia, comum a todos os estados depressivos, em que 0 sujeito visa um espago de gozo do qual se sente cindido, coloca em vista sua semelhanga com o estado de desamparo do ser do inicio em que a ascendéncia das necessidades pulsionais, decorrente do nascimento, e a violéncia do mundo sensério — somada aquela oriunda do objeto, de sua paixao ou intrusdo pulsional — articulam-se a perda mitica de um 46. Para maiores detalhes sobre a nog&o de desamparo, ver o livro Panico, de Mario Eduardo Costa Pereira, nesta mesma colegio. DEPRESSAO 43 espac¢o de gozo, de quietude fusional com o corpo da mae. _ Essa associagao, a qual ja fiz mengdio, é de extrema importancia pelos motivos que exponho a seguir. _ A depressao adquire um estatuto similar ao da angustia. A gama de suas manifestagdes — a anguistia histérica é diferente daquela vivida pelo psicético em virtude do contexto estrutural do sujeito em que ela aparece — articula-se ao estado ori gindrio de desamparo, enquanto fungao de alerta ou sinal de perigo, que exige, ou que poe em movimento, um trabalho com —oua fuga de — uma situacao “hostil”, advinda das pulsdes ou do mundo, Tespectivamente. Ou seja, a despeito dos diferentes contextos de sentido nos quais a angustia se constitui enquanto sinal e, conseqiientemente, como uma exigéncia de trabalho, ela se ticula a um estado originario que Ihe deu origem enquanto funcao vital*”. Se a depressao se articula ao estado de desamparo, mpreende-se o largo escopo de suas manifestagdes (como a angistia) nos diferentes contextos de sentido que estrutura 0 onflito nos varios quadros psicopatolégicos (histeria, neurose obsessiva, melancolia, etc). A questio é quanto a fungao vital que a depressio desempenha assim como ao trabalho que desencadeia ou para o qual serve como fungao, ambos criados 10 € a partir do estado origindrio de desamparo. __ Se os estados depressivos visam um espago de gozo do ual o sujeito se sente apartado, a funciio depressiva seria, nto, de ordem narcisica, de preservacao e garantia deste espaco. A vida psiquica, diz Freud, “é uma fungao de um iparelho ao qual atribuimos as caracteristicas de ser extenso le um espaco...”8, 0 que significa que, ao se encarregar de 1 eserva-lo, a depressao se torna a funcdo mais fundamental a vida psiquica ou a propria condig&o desta. A vigilancia 7, Em termos mais esquematicos (entretanto bastante elucidativos) do rojeto.....a angustia instaurou-se enquanto fungdo - um tipo de “memoria” da eriéncia de dor” junto ao “objeto hostil”, ou melhor, com a “hostilidade” e lhe ¢ inerente. - Cf. (1939) Compéndio de psicandlise. 44 ____ Cotr¢Ao “Cxintca Pstcanatitica” * sobre 0 espago da psique torna-se premente quando da ameaga sobre a sua permanéncia, lancando mao da defesa depressiva. A depressao surge, portanto, a semelhanga da angustia, como “evocagao de lembranga” da ameaca inaugural sobre 0 espago de gozo mitico de origem. Se a condigdo origindria de desam- paro é “a fonte e o protétipo” (Freud, 1926) da depressio, trata-se de distinguir a forma com que essa condic¢ao imprime anatureza do psiquico, engendrando suas caracteristicas e suas qualidades. Pois é 0 bloqueio sobre a expressio dessas ou a insuficiéncia de seu desenvolvimento que tem, como conse- qiiéncia, a manifestacdo dos estados depressivos. Para tanto vou me limitar aos aspectos fenomenoldgicos e psicolégicos, recorrendo, portanto, ao entendimento dos fendmenos e esta- dos inerentes ao narcisismo, deixando os aspectos estruturais para o proximo capitulo, que versa sobre a dimensio econémica da depressao. Quando nos remetemos ao espago de gozo, referéncia paradisiaca e mitica, tal completude narcisica diz respeito a um estar, a um gozo de imersao ou presenga num ambiente, ou seja, nirvana. Estado de completude que difere do narcisismo tardio que se forma em torno de uma unidade circunscrita, 0 eu, em contraposigao a um objeto configurado, Na situa¢ao originaria trata-se de um estado difuso, de fusio e demanda fusional, sem nogao clara dos limites do territério psiquico. E por isso que, nas obras da Melanie Klein e de Winnicott, o “estar dentro do ventre da mae” ou “ser um com a mae” constitui, respectivamente, a fantasia de base ou o estado originario do ser de inicio (“objeto subjetivo”, segundo Winnicott). O desamparo e o apelo, que lhe é correlato, colo- cam em evidéncia, de um lado, a frustragao de alcangar uma plenitude e, de outro, a decorrente demanda de fusdo ou sua restitui¢ao mitica. O narcisismo primario nao é, portanto, um estado vivido e identificavel, sendo um derivado ou um pressu- posto em relagao ao qual o ideal de uma completude parece ter sido negado com o nascimento, resultando em desamparo. 4 _ . Derressio - 45 Entretanto, é justamente essa polarizacdo, entre uma plenitude _ €0 limite de existéncia (a ameaga sobre esta) — articulacéo que define o desamparo — que coloca em marcha um trabalho, uma dialética narcisica da construgao psiquica. Esta se inicia “no temer pelo proprio territério, por mais difusa que seja a -nogao sobre ele. E, de acordo com tal ameaga, clama-se, de um lado, por um continente (contornos) e, de outro, por um _conteudo. A) Depressao originaria, narcisismo primario e estrutura enquadrante O temer depressivo abriga o duplo sentido de ameaga e defesa, pela preservagao de um territério, quanto aos seus Contornos e contetidos, constituindo a forma mais basica e mais genérica de depressao associada ao estado ori ginario de desamparo. Um gradiente bastante largo de estados e vivéncias eflete — desde os modos mais sutis e até os mais explicitos — estado defensivo de alerta ante uma ruina iminente. Alerta continuamente acordado frente a ameaga de desmoronamento que foi magistralmente descrito por Winnicott (1963) em telagdo a algumas patologias gravemente depressivas”. Uma forma branda deste alerta, porém bastante difundida, encontra- Se na tensdo depressiva — acompanhada de inquietagao, esconforto fisico e insénia — ao qual sucumbem alguns sujei- tos, com tra¢os marcadamente obsessivos, em situagdes especi- ficas em que a aus€ncia fisica de acompanhantes permanentes Como a esposa ou a mac) durante um tempo relativamente curto (um periodo do dia, feriado ou final de semana) coloca em cheque sua autonomia em prosseguir com suas atividades rodutivas ou de gozar de seu tempo de lazer. Mencionado de gem e, muitas vezes, quase que despercebido pelo analista, Sse grupo sintomatico aponta para um fenémeno mais brangente da “incapacidade de estar s6” (Winnicott): no inicio a semana 0 paciente relata que a esposa viajou com as % . Cf. “Fear of breakdown” (1963) in Psycho-Analytic explorations, 1989, 460 CoLEgao “Crintca PstcanaLitica” criangas. “Pensei aproveitar sua auséncia para dedicar-me, finalmente, a minha dissertag4o, mas nao consegui ficar tran- qililo em casa; estava tenso, inquieto, deprimido, nao dormi direito...”. Uma percepcao acurada faria notar, neste estado, tenso e irrequieto, a defesa ante a ameaga da experiéncia do vazio da casa que emerge com a pré-consciéncia de estar sé. Na esteira deste encontro depressivo consigo, alguns sujeitos, intolerantes para tal eventualidade, tentam se aliviar recorrendo para uma das formas disponiveis de adicgao, como ingestao compulsiva de alimentos, compras ou a fixagdo prolongada nos jogos de computadores, televisao, masturbagdo, etc. Escolhi um fendmeno que, embora nao demonstre as feigdes tipicas dos quadros depressivos, denota um estado difuso, sujeito a presenga, sutil e “branda”, da ameaga de des- moronamento do terreno psiquico de base. Entretanto, esse sofrimento que se estende, via de regra, ao longo de anos, e ao qual tem se atribuido a categoria classica de uma inibigdo menor, é uma ilustragao do rastro depressivo ou da fungao depressiva enquanto sinal defensivo ante a uma recorréncia de um trauma, associado, a posteriori, ao estado de desamparo de origem. Esses sujeitos revelam, em sua histéria, periodos caracteristicos de depressao. A vivéncia acima acaba sendo notada, geralmente, anos depois de ter superado longos periodos de depressGes graves e tipicas. Evoquei-a a titulo de seu carater difuso e nao figuravel, que deflagra seu liame com a depressao origindria. (Um paciente evoca, em seguida a narracao do referido episddio, o sonho, um pesadelo de desa- bamento, recorrente em sua infancia e no inicio de sua adoles- céncia, em que as paredes avangavam sobre ele, estreitando seu espaco, ao mesmo tempo que iam se decompondo...). Entretanto, note-se como 0 citado estado de alerta aponta para o papel do objeto na proviséo de um subsidio fundamental para a perlaboracao da situacao originaria. Isto nos permite voltar ao entendimento dos estados depressivos, ordenando- os ao longo do eixo narcisico da genealogia psiquica. _ _— DEpRESSAO : 47 O estado depressivo representa, entdo, uma defesa do terreno psiquico, ao mesmo tempo que reflete uma caréncia e dupla demanda: pela garantia do espago, ou seja, de seus ntornos e limites, e uma exigéncia de ser provido de um ntetido — gozo, referéncias e indicios de existéncia. E, rtanto, necessario que se apreendam os estados depressivos entro da dialética oscilatoria do narcisismo, Um enfoque e foi trazido no aporte lacaniano, da constituigdo especular do sujeito. Entretanto, deve-se sublinhar que a base € 0 inicio deste percurso dialético néo se reduzem a especularidade com 0 objeto (a mae), pois, como vimos no exemplo acima, as referidas demandas encontram-se abrigadas nos confins fusionais, subjetivos, do narcisismo primario. O paciente, no exemplo acima, nao formula e nao define seu mal-estar e sua inibigaéo em fungdo da falta do outro, como se observa na ostalgia comum ou na saudade dos ausentes (esposa e filhos), Mas trata-se de uma ameaga sobre o territério proprio e as eferéncias de si, ou seja, sobre toda a dimensiio subjetiva em que 0 outro nao ¢ perceptivel enquanto tal (ente separado), mas se funde em um campo continuo de si de acordo com a logica que rege o narcisismo primario, formulada, inicialmente, por Freud e desenvolvida na linhagem ferencziana ao longo da qual situei as contribuicdes de Winnicott, Balint, Grunberger e Green, entre outros. Existem, no entanto, estados em que o recurso a defesa depressiva nao é apenas um sinal de alerta sobre a necessidade de prosseguir com os reparos das falhas do objeto de origem em responder as caréncias primdrias; mas onde esta defesa se ergue, no limite, como uma verdadeira salvaguarda da estrutura narcisica basica do terreno psiquico, colocando-o ao abrigo e uma franca destruigao. Refiro-me a sujeitos com patologia fronteiriga, ou mesmo psicética, em que 0 advento do estado depressivo coincide com a instauragao do “tempo de trégua”, um recuo das incursdes esparsas no terreno das vivéncias elirantes ou atuagées alucinatorias. Colocada, na sua maior 48 _ a CoLe¢ao SCLINICA PsicaNatitica” a ae parte, fora do circuito psiquico ou representacional, a violéncia pulsional e senséria acaba sendo domada, nesses sujeitos, no limite, mantendo o equilibrio da defesa depressiva origindria, inerente ao estado de desamparo™. Um temor de enlouquecimento, devido, também, a atra- a0 que esse universo exerce, surge no meio a um trabalho psiquico em que o sujeito, em intenso desespero, consegue barrar tal eventualidade. Processo doloroso cujo cardter depressivo denota, novamente, o triunfo limitrofe da defesa primaria do terreno psiquico de base: tenho em mente momentos significativos da psicoterapia de uma paciente que atendo ha alguns anos no ambulatério da instituigdo psiquidtrica. Helena, de quarenta e cinco anos, com uma longa historia de internagdes recorrentes nos Ultimos dezoito anos, geralmente em decorréncia de tentativas de suicidio, adquiriu o diagnostico psiquiatrico de transtorno de personalidade borderline, em virtude, justamente, da oscilagao entre uma atitude “normal”, que coopera com o psiquiatra, e outra, agressiva, suicida. Sua terapia comigo desenrola-se, entretanto, ao longo de um eixo ou quadro depressivo que se acentua, adquirindo tonalidades bem peculiares, nos momentos criticos em que se vé ameacada pela irrup¢ao ou invasao concretas de uma alucinagio em que sente estar prestes a se marginalizar, de fato, na prostituigao ou no homicidio de pessoas queridas. Como se a depressao fosse, nesta forma sofrida de vigilancia acordada, 0 escudo que afasta, temporariamente, a realizacao desses delirios. Helena nao dispde, como o obsessivo, de meios reativos para a criacao de uma “Area de seguranga” entre o eu do sujeito e seus delirios. A terapia tem alcancado, em parte, apds alguns anos, a fungao de continéncia, como se fornecendo-lhe uma cobertura ou suplemento ao seu escudo depressivo — freqiientemente, a beira de uma faléncia — que lhe permite, em certos momentos a —— 50. E justamente este valor da depressdo que Winnicott resgata no artigo “The value of depression” in: Home is where we start from, Norton Company, London, 1986, Depressio 49 ilegiados, assimilar elementos do conflito que foram, de ma forma, expelidos para fora do universo psiquico e que — veiculados pelas necessidades pulsionais>! — “exigido eu retorno”, de fora, a maneira delirante. Na seqiiéncia de ivéncias de apelo, de desespero e panico, que ela me dirige, companhadas de tremedeira e agito corporais, parecendo-me no que atravessando um verdadeiro terremoto, instala-se nela a ar depressivo peculiar, a partir do qual surgem associacdes mbrangas. Em vez da fuga e da Ppassagem ao ato, assiste-se integragdo, como se a costumeira estagnacao depressiva Se, por meio da vivéncia catastréfica, para a assimilacdo e xpansao do universo psiquico. A descrigao acima enfoca o fendmeno ea vivéncia depres- a, deixando de considerar o “material”, ou seja, 0 contetido e sentidos do seu discurso. O estado depressivo refere-se, em elena, a uma espécie de guarda, estrutura ou montagem de gilancia sobre o que parece ser um territério em constante nea¢a de invasao. O acolhimento e a continéncia na situacao pEutica propiciam, modo geral, esse lento e penoso processo €-apropria¢do psiquica dos contetidos delirantes invasores®. etanto, “o sentir acolhida” implica, nesses momentos |. Veja a proxima nota de rodapé. 2. O estado de intenso alarme em que Helena se encontraya repetidas vezes era ocado”, via de regra, pelas cenas de desgraca social que presenciava na rua ou ia na televisio (noticidrio ou novelas). Estas entravam em associa¢io com uma matica na qual as palavras anédinas de uma colega de trabalho adquiriam, a tir de entiio, ha quase vinte anos, 0 cardter persecutério de ofensa/profecia, encadeando 0 inicio de sua doenca e seu trajeto na instituicao psiquiatrica. A rede iva (0 marido, sua doenga, etc.) que deu inicio a uma culpa delirante pela /sentia que um dia pagaria com “vou virar prostituta” ou “vou acabar bulando pelas ruas” dizia Tespeito, justamente, ao ser punida pelo seu pois este implicava uma infidelidade a mulher, rompendo 0 pacto al inconsciente com a mie. Apesar de este trama ser cindido do plano juico, con/litivo, em que se desenrola — Por exemplo, no comum e conhecido ama da histérica —, em Helena este nao chega a se aglutinar numa franca © parandica como a que Freud deduz na anilise que empreende em relagio episédio parandico. Cf, Freud (1915) “Um caso de parandia que contraria ia psicanalitica da doenga”. 50 ___Cotngho “Crinran PstcaNaLinica” s & significativos, um afrouxamento da defesa, fundindo-se numa area subjetiva junto ao analista, o que realca, ou recoloca em movimento, as trocas primdrias com o ambiente materno de origem. Cenario que, conforme argumentei acima, é proprio ao regime do narcisismo primario ou ao que Michael Balint insistiu em distinguir como sendo da area da falha bdsica ou do amor primario, onde ele postulou haver “a mais primitiva mistura interpenetrante e harmoniosa” com 0 ambiente em relag&o ao qual 0 sujeito esta pouco ou quase nada diferenciado®. As notas sobre a paciente sugerem a seguinte e metaférica conjectura: se 0 estado de desamparo constitui, pela imagem defensiva que evoca, um esbogo de uma regido ou territério psiquico —circunscrito pela depressdo origindria —, este apela ou necessita de um suplemento ou cobertura pelo objeto. Ao contrario de Balint, a abstragdo de um estado primitivo da depressao, a partir de um caso clinico, associada 4 nogao figurativa de um espaco/territério inicial do psiquismo, leva-nos a postular a precipitagdo de uma estrutura que ¢ coextensiva ou gerada no seio daquilo que Freud designou narcisismo primario. Mas, com Balint, afirmo que essa constituicAo, atrelada a depressao originaria, nao é distinta, senéo concomitante e dependente de um processo que figura a formacao deste territério enquanto substrato vivo em que se estabelece uma area de fusao e trocas, permeada e fertilizada pelo e com o objeto. Minha énfase recairia, em primeiro lugar, sobre uma estrutura enquadrante, de cuja preservacao evidencia a depressdo. Termo que remete aquilo que tem ocupado o 53. A referéncia ao psicanalista inglés Michael Balint, de origem hingara, é proposital, j4 que, segundo ele, o narcisismo sé pode ser secundario, rejeitando a nogao freudiana de narcisismo primario (Freud, “Introdugao ao narcisismo”, 1914) como sendo contraditéria. Entretanto, nio nos parece que os fenédmenos, relacionados ao que ele descreve como area da falha bdsica, ou a da criagao, sejam desvinculados do universo em que Freud situa 0 conceito (portanto nao diretamente observavel, mas derivado) de narcisismo primdrio. Ver a critica sistematica de Balint na segunda parte de seu livro de 1968, The basic fault (Tavistock Publications, London) intitulada “Narcisismo primario e amor primario”. DEpRESSAO 51 centro do pensamento de André Green em torno do narcisismo imario: a tela vazia da alucinagdo negativa (Freud) como Molde e possibilidade, nao representaveis, de toda e qualquer representacao. Uma tela sobre a qual se inscreve 0 mundo psiquico. Sua afirmagao de que a “mde é tomada no quadro vazio da alucinagao negativa, e torna-se estrutura quandrante para o préprio sujeito”*, faz pensar que ela € convocada a sustentar e responder ao estado em que se ncontra o terreno psiquico inicial que descrevi como depressdo origindria. Ou seja, 0 préprio estado de desamparo. O sofrimento da Helena e o trabalho que este implica tangem esta estrutura. Ja 0 espago de fusdo e de rocas com 0 objeto, concomitante 4 instauragao desta estrutura, vincula-se ao plano fenomenoldgico dos estados e vivéncias, associados ou decorrentes da resposta ao apelo lirigido ao objeto em funcgao do estado do desamparo, da lepressao origindria. A descrigao acima é apenas fenomenologica e teria ainda de encontrar sua razao de ser em termos da teoria das pulsdes. Uma tarefa que deixo para o préximo capitulo. Entretanto, gostaria de salientar, a titulo de introdugdo, que 0 apelo, nerente ao estado de desamparo, expressa em seu movimento © sentido — “venha até mim” — os trés conhecidos destinos pulsdo aos quais Freud atribuiu a caracteristica de gerar igdes permanentes e perduraveis com 0 objeto a prego de bdicar-se de uma plena descarga pulsional. Refiro-me aos eguintes destinos: o retorno sobre si, a transformagao da tividade em passividade e a inibigdo dos fins da pulsao®. Os €s desempenham 0 papel central naquilo que podemos lamar, com Freud (1920) e sobretudo com Ferenczi, do Cr. (1966) “Narcisismo primario: estado ou estrutura”. In; Green (1983) isismo de vida, narcisismo de morte. Sao Paulo, Escuta, 1988. 5. Freud (1915) “As pulsdes e seus destinos”. 52 Co egAo “CLinica PsicaNaLitica” & trabalho da ternura®®. Um lento esforgo de contengao, pro- movido pela tendéncia centripeta das pulsdes de morte, contrapondo-se a tendéncia centrifuga, da expansao pulsional e sensoria. Estado de apelo, ou seja, convocagio do objeto; “convite” para forrar, preencher e administrar o terreno psiqui- co de base. Cria-se um espago que resulta do equilibrio mével entre duas tendéncias opostas, ou mais precisamente, da dominagio parcial do vetor centripeto — inerente ao carater conservador da pulsao de morte — sobre a centrifuga pulsional e sensoria, instaurando um terreno, porém sob ameaga. Estado dinamico que se traduz, na vivéncia, como desamparo — a condigao de origem. O conhecido e especial carater de ligagéo com a mae encontra sua razdo de ser nesse mundo inaugural do psiquismo. Conyocagao do objeto que acaba por criar 0 terreno e a atmosfera — a espessura apropriada as trocas e qualidades afetivas do mundo humano. Basta ver nesta descrigéo, um tanto esquematica, que, mesmo sem termos ainda clareza sobre a natureza da contribuigao efetiva do objeto, a depressdo é associada a um trabalho que podemos denominar de terrapla- nagem do territério psiquico dos inicios. Isto permite entender porque a depressdo desperta, 4 semelhanga de um sistema de alarme, o sensor das falhas afetivas, estabelecidas nas vias de troca primarias com 0 objeto. B) A depressao e o espelho: entre corpo e percep¢ao Para tragar o lugar da depressao na genealogia psiquica, efetuei uma abstracao, destilando uma dimensao primitiva da 56. O universo da ternura, Freud o associou, desde muito cedo, com os elementos da vida amorosa oriundos das relagdes mais primitivas com o seio (Cf. Freud, 1912, “Sobre a tendéncia universal da degradagao na vida amorosa”). No livro Além do principio do prazer, de 1920, assim como no Compéndio de psicandlise ¢ nas Ligdes de psicandlise, ambos obras postumas e inacabadas, Freud nos mostra como essas tendéncias que se manifestam nas incansdveis demandas que as criangas dirigem aos adultos (para que lhes narrem a mesma histéria, ou que lhes repitam a mesma brincadeira, geralmente derivada do jogo esconde/esconde) devem-se ao trabalho da pulsao de morte. DEpRESsAO 53 encia depressiva. Destaquei, desta forma, um campo psiqui- inicial, de natureza fisional ou parcialmente diferenciado. $ aspectos especulares devem ser agora considerados uma Z que determinam e subtendem grande parte das mani- agdes e vestes depressivas. O que é sentido como desamparo e as demandas que este do gera ocorrem em um corpo em relacdo a um outro — ymaterno. Apesar de o regime inicial ser fusional, é 0 estado esamparo — necessidades e anseios do corpo, de um lado, as experiéncias de dor e a ameaga sobre sua integridade indas da agressiva intrusio do mundo sensorio e da esfera morosa e pulsional do objeto), de outro — que destaca o plano |percep¢ao do inicialmente indiferenciado campo de sentido. Pois 0 desamparo é, pela sua definigao negativa, o indicio ou vislumbre inicial da realidade; ¢ a primeira diferenciagao’’, o implica o surgimento da percepedo. No entanto, essa ndo de inicio, especular, mas instaura-se enquanto tal, rogressivamente, e 4 maneira dialética, de acordo coma légica scilatéria do narcisismo, acima mencionada, processo que -explicitar a seguir. _ A estrutura enquadrante e 0 campo de trocas, acima encionados, articulam-se, portanto, somente no corpo e ao po e em relagao ao da mie. Se, conforme aleguei acima, es se instauram “na surdina”, apdiam-se, de outro lado, e 0, de fato, entrelagados numa dimensio reflexiva e especular mma mae e seu corpo. Refiro-me, em primeiro lugar, a seqiién- a de interagées, de natureza reflexiva e especular, que com- em _a via de satisfagao no famoso arco reflexo freudiano®’. cud concebe na relacao com o seio nao sé 0 prototipo da O que encontra um Ponto comum com a postulagao de Freud de haver uma o primaria com 0 objeto, que ele centrou na relacao negativa de édio, (Cf. citados trabalhos de Freud de 1911 e 1915, respectivamente: “Os dois cipios...” e “Pulsées...” f. a primeira parte do Projeto de uma psicologia (1895) e o capitulo VII A interpretagao dos sonhos (1900). 54 a COLEGAO “CLENICA PSICANAL{TICA” _ = cena psiquica, mas também a matriz da construcao do mundo psiquico enquanto representativo. As urgéncias e necessidades vitais e a dor da espera (o tempo sendo vivido no intervalo da frustragao) colocam esses movimentos — vivéncias do corpo — em associa¢ao com a série de disposicdes do seio e dos movimentos da mie (atenciosa) em via de atendimento ao bebé, para satisfazer suas necessidades. A possibilidade de haver, por parte do seio (mae), uma orientagdo, reflexiva e especular, cujo grau de aperfeigoamento cresce progressivamente com a experiéncia, pressupde, no entanto, a paulatina aquisigado da capacidade perceptiva, ou seja, da nogao de realidade. Poder distinguir o hiato entre o “meu movimento” (oriundo das neces- sidades, anseio ou mal-estar) e 0 do seio (e de mie), deve-se ao cardter negativo inerente ao estado de desamparo. E este estado a condicao da vivéncia de frustracao. Dor, frustragdo e anseio acabam sendo, em vista do registro da experiéncia de satisfagdo com o seio, o motor de apropriag4o subjetiva: as apreens6es cognitivas e de outros sentidos tornam-se parte de uma consciéncia subjetiva em que se diferenciam os movimentos proprios —as vivéncias - dos do outro em diregao ao qual, e pelo qual, o bebé se orienta. Nesta montagem da representagao psiquica, a dor e a frustragdo constituem, certamente, o divisor que delimita os contetdos do préprio territério dos do outro. Entretanto, estes se articulam as sensa- ges de prazer que precipitam e registram o trajeto dialético das interagGes reflexivas e especulares com 0 corpo e a voz da mae. O arco deste encadeamento, impresso em um tragado mnémico, constitui, entao, o projeto que, ao nado mais poder ser alucinado — ou seja, em estado de necessidade ou na dor do anseio — da inicio a uma busca: a memoria de satisfagao é 0 guia do uso dos signos disponiveis (por exemplo, 0 contato com uma determinada regiao do seio) para atingir os fins (efetuar, baseado no tragado mnémico da experiéncia de satis- facéo, o movimento ou a série de movimentos em diregao ao

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