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Estudos Psicanaliticos Colegao dirigida por Latife Yazigi TRANSMISSAO DA VIDA PsiQUICA ENTRE GERACOES René Kaés — Haydée Faimberg Micheline Enriquez — Jean José Baranes OA Casa do Psicdlogo® © 2001 Casa do Psiclogo Livraria e Editora Leda. : © 1993 Dunod, Paris. ! E proibida a reprodugao total ou parcial desta publicagio, para qualquer finalidade, sem autorizagio por escrito dos editores. 1? edigao 2001 Editor Anna Elisa de Villemor Amaral Giintert Produgio Grafica & Capa Valquiria Farias dos Santos Tradugio Claudia Berliner Reviséo Geuid Dib Jardim Editoracio Eletrénica Fabio Silva Carneizo Dados Internacionais de Catalogagao na Publicago (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SB, Brasil) eee Transmisséo da vida psiquica entre geragdes / René Kaés, Haydée Faimberg... [et al.]; traducio de Claudia Berliner. — Sao Paulo: Casa do Psicélogo, 2001 Outros autores: Micheline Enriquez, Jean-José Baranes Titulo original: Transmission de la vie psychique entre généracions, Bibliografia. ISBN 85-7396- 1. Delitio 2. Familia - Aspectos psicolégicos 3. Famflia - Aspectos psiquicos 4. Inconsciente I. Kats, Réne. II. Faimberg, Haydée. Ill. Enriquez, Micheline. IV, Baranes, Jean-José. V; Titulo. 01-1173 CDD-150.195 Indices para catdlogo sistematico: 1. Familia: Transmissio psiquica: Psicanilise: Teorias: Psicologia 150.195 Impresso no Brasil Printed in Brazil Reservados todos 0s direitos de publicagao em lingua portuguesa a Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Rua Alves Guimaraes, 436 Pinheiros — 05410-000 Sao Paulo SP Brasil Tel.: (11) 3062.4633 - Fax.: (11) 3064.5392 — e-mail: casapsi@uol.com.br EsCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERAGOES: PERTINENCIA PSICANALITICA DO CONCEITO! Haydée Faimberg Introdugao O bebé olha da maneira como é olhado pela mae. Esta bela expresso de Winnicott sugere 0 modo como 0 sujeito comega a se constituir, e permite conceber de maneira decisiva como com- preender, fugindo do empirismo, a metafora de Freud, “o analista como espelho”. Esta idéia, que coloca em destaque a intersubje- tividade, originou-se de um belo diélogo entre Winnicott e Lacan. No prinefpio de seu artigo (1967), Winnicott comunica ao leitor como leu o estudo de Lacan, “O estddio do espelho”. Uma vez reconhecida sua fonte, tem plena liberdade para repens4-la e concede ao leitor uma outra liberdade. Ao lhe dar de imediato condigées de reconhecer a alteridade dos dois autores, poupa- Ihe a necessidade de “desconfiar” do texto pensando, por exem- plo, que “era uma idéia de Lacan”. Essa matriz dialética proposta por Winnicott sob a forma de diélogo entre psicanalistas constitui para mim 0 ideal da criagao. Com efeito, ela evita, por um lado, 0 perigo do ecletismo, pois Winnicott respeita a esséncia da estrutura do pensamento de Lacan, Se 1.A Pécoute du télescopage des générations: pertinence psychanalytique du concept, teleitura de “Télescopage des générations”, foi publicado em homenagem a Micheline Enriquez na revista Topique, 1988, 42, p. 223-238. A presente versio foi levemente modificada. 130 ‘TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAGOES mas, por outro, Winnicott permanece fiel a sua propria concepgiio da formagao psfquica. Disso resulta que a teoria da relagao de objeto pode se articular com o conceito da relag4o intersubjetiva. Além disso, ao citar suas fontes, Winnicott nao teme expor-se & possibilidade de duvidarem da originalidade de suas idéias. Na verdade, a identidade de seu pensamento se vé reforgada. Acre- dito que a fungéo de reconhecimento esteja na origem da criagdo. Quando Winnicott nao era reconhecido por um autor, assinalava- © por carta e continuava: agora que lhe expus minha maneira de pensar, sinto-me livre para considerar suas idéias. Por meio desse gesto’, Winnicott também liberava 0 esquecido. Nao estou desconsiderando a complexidade dos fatores que intervém no destino do reconhecimento de uma idéia. Por exem- plo, o mesmo Winnicott, citando Marion Milner, diz que ela traba- Thou recentemente com a idéia que ele se propde a desenvolver. Tal reconhecimento em nada impediu o destino posterior das idéi- as de Marion Milner. Na verdade, nao existe analista que nao conhega os conceitos de espago transicional e de objeto transicional, mas raros sfio aqueles que se lembram do belissimo artigo de M. Milner, “O papel da ilusao na formagio do simbolo” (1952). Pensei (1981) 0 problema da “escuta da escuta” a partir de dois autores: minha nogdo de escuta da escuta articula-se com a nogao de intersubjetividade de Winnicott, mas também leva em conta a nogio de espiral dialética de Enrique Pichon-Riviére’. I. Pertinéncia psicanalitica do conceito de telescopagem das geracées Por telescopagem das geragdes entendo 0 aparecimento, no trans- curso de um tratamento psicanalitico e no enquadro rigoroso da ses- 2. A coleténea das cartas de Winnicott (Robert Rodman, Harvard, 1987) leva como titulo The spontaneous gesture. 3. Para essa nogio ver Haydée Faimberg, Antonio Corel e Leonardo Wender, 1982. ESCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERAQOES 131 so, de um tipo especial de identificago inconsciente alienantet que condensa trés geragdes e que se revela na transferéncia. Nas psicoterapias de famflia de orientagao psicanalftica, nas entrevistas com pais de pacientes’ (criangas, adolescentes e psic6ticos), nos depoimentos de sobreviventes de situagdes catastréficas® (a Shoah, por exemplo) ¢ em outros contextos surgem problematicas as vezes muito préximas do tema que nos ocupa. Tal fato, tao propicio ao didlogo, nao nos deve fazer perder de vista a perspectiva na qual desenvolvi 0 conceito de telescopagem das ge- tages. Nao confundir os campos dos discursos, respeitar a pertinéncia de cada conceito permitem, a meu ver, um discurso interdisciplinar igualmente pertinente e, portanto, estimulante. Por conseguinte, proponho-me a retomar o que ja disse sobre 0 conceito de telescopagem das geragdes, destacando as condigdes tigorosas dentro das quais delimitei 0 conceito em sua pertinéncia psicanalitica. Considero © conceito de telescopagem das geragdes um con- ceito especifico da clinica psicanalitica. * Um conceito clinico nao é nem um conceito descritivo nem um conceito empirico. * A telescopagem das geragdes concerne As identificagdes in- conscientes. * Mostrei que as identificagSes inconscientes t¢m uma causa e nao sao simplesmente um dado inicial que poderia prescindir de explicago. Isso porque me situo nao num plano descritivo ou empirico, mas num plano clinico psicanalitico. Tal critério também contribui para eximir a nogdo de identificagdo inconscien- te de qualquer peso pré-freudiano ndo-psicanalitico. 4. Qualifico essas identificagses inconscientes de alienantes porque fazem parte de uma hist6ria que pertence em parte a um outro. Em sua obra, Piera Aulagnier atribui grande importincia 4 nogio de alienagao. 5. Isso no si € 0s psicéticos. ifica que cu exclua do campo da psicanilise as criangas, os adolescentes 6. Efitendo que esses depoimentos podem ser objeto de um estudo psicanalftico. No que me diz respeito, interessei-me pela investigagao das conseqiiéncizs psiquicas do nazismo numa perspectiva psicanalitica 132 ‘TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAGOES * — Essas identificagdes inconscientes sao inicialmente inaudiveis, e durante muito tempo se mantém e devem se manter assim no tratamento psicanalftico. * O eixo contratransferéncia-transferéncia (enunciado nessa ordem) € fundamental na consideragéo do que se segue. O analista deve necessariamente poder conter, na contratrans- feréncia, a angtistia de nao saber e, como ja tive oportunidade de dizer, nao saber que nio sabe. E esta condigao que permite manter mudas essas identificagGes. Dessa maneira, 0 analista evita recorrer ao método de dedugdo de uma genealogia das iden- tificagdes a partir de sua teoria, sem levar em Consideragio 0 que o paciente diz. Caso contrario, o analista, com sua teoria, corre 0 perigo de cometer intruséo no psiquismo do paciente’. Estudei minuciosa- mente as condigées clinicas que permitem certificar-se de que as identificagdes inconscientes reveladas pela andlise pertencem efe- tivamente ao psiquismo do paciente’. * Como corolario do que precede, pode-se definir duas manei- ras diferentes de tratar 0 problema das identificagdes. A primeira, que adotei, consiste em inferir a existéncia das identificagdes inconscientes a partir do dizer do paciente. O paci- ente fala e escuta a partir de identificagées inconscientes. Quando 0 analista escuta a maneira como o paciente escutou suas interpre- tages, pode, partindo do que acredita ter dito e do que foi efeti- vamente escutado pelo paciente, inferir as identificagdes incons- cientes do analisando. Assim, 0 mal-entendido torna-se um dos motores essenciais da anélise. Essa fungaio “de escuta da escuta” foi tratada em outro lugar (1981). Desse ponto de vista, as identifi- Cagoes inconscientes se revelam ali onde nem o paciente nem o analista as esperam: daf o efeito de surpresa’. 7. Jean Cournnt (1983) e Arnold Modell (1984) também trabalharam, numa Perspectiva diferente, os efeitos da intrusio do analista. 8. Capitulo 2 desta obra; cf, em particular, p. 75-76 9. Ver H, Faimberg & A. Corel, 1989a EsCUTA DA TELESCOPAGI DAS GERAQO 133 Uma segunda perspectiva, de que discordo, consiste em levar em conta apenas as representages da identificag&o que paciente e analista fazem. Nesse caso, a excentragao devida ao recalcamento, que decorre da primeira perspectiva, nao se dé. Essa segunda pers- pectiva baseia-se apenas na introspeccao. Conseqiientemente, 0 respeito pelo método psicanalitico para que possam se revelar, na trans- feréncia, as identificagdes inconscientes ligadas 4 telescopagem das geragGes é um critério necessdrio na definigdo do conceito de telescopa- gem das geragdes enquanto conceito psicanalitico. A transferéncia- contratransferéncia'® constitui o aspecto privilegiado desse estudo. Na verdade, para que a telescopagem das geragGes seja um conceito psicanalitico, é preciso exigir 0 que exigimos de todo con- ceito psicanalitico: que ele dé conta de um fato clinico (nem des- critivo nem empfrico, como vimos); que se manifeste por meio do discurso do paciente (no enquadro rigoroso do tratamento) e somente por meio do discurso do paciente. O nao-dito se deduz do discurso do paciente. No caso que estamos discutindo, a situagao é enigmatica. Como podem duas pessoas falar de uma coisa, se uma, 0 paciente, nao diz essa coisa por nao associ4-la durante a sesso e nao acredi- tar que ela lhe diga respeito, e a outra, o analista, ignora a exis- téncia dessa coisa ou, se a conhece, nao conhece seu modo de articulagéo no psiquismo do paciente? Como fazer para nao curto-circuitar 0 processo psicanalitico e para se manter no campo pertinente A psicandlise? A meu ver, a natureza dessa dificuldade é a mesma de qualquer tratamento psi- canalftico. Em conseqtiéncia, a pertinéncia psicanalitica e as condi. goes clinicas da descoberta da telescopagem das geragées sao dois as- pectos indissocidveis de um mesmo problema. Ao ler 0 artigo de Michel Tort, “O argumento genealdgico” (1986), que se situa num plano epistemolégico, indaguei-me sobre por que nunca me ocorrera falar de “transgeracional” ou de “in- tergeracional”. Depois do que acabei de dizer, é facil responder: 10. “Sito a contratransferéncia no cruzamento de trés narcisismos: do analista, por um lado, do narcisismo do paciente por outro (que inclui [...] narcisismo dos “pais internos”).” Ver H. Faimberg, 1981, op. cit., p. 1.360. 134 “TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAQOES minha concepgao da telescopagem das geragdes inscreve-sé na pratica analitica habitual e no contexto de minha posigao teérica habitual. Mais: minha hipdtese central é de que a telescopagem das geragoes pode ser descoberta em qualquer andlise rigorosamente conduzida. Nesse contexto, nao precisei recorrer a um conceito que implica uma nogao de inconsciente diferente da nogao psica- nalitica de inconsciente que costuma ser a minha. Antecedentes O primeiro artigo que, até onde sei, tratou do tema que me interessa é o de Guy Rosolato: “Trés geragdes de homens no mito religioso e na genealogia” (1967). O segundo trabalho publicado sobre esse tema é um estudo da anélise dita aplicada, de Alain de Mijolla, Os visitantes do Ego (1981), em que o autor propde o conceito de fantasia de identificagaéo inconsciente. Nicolas Abraham e Maria Torok (1978) interessaram-se pelo problema do luto e propuseram os conceitos de fantasma e de cripta. Impli- citamente, eles se referem a um problema andlogo ao meu e que desenvolverei mais adiante. Na conferéncia que apresentou em janeiro de 1982 ante a Sociedade Psicanalftica de Paris!', Jean Guillaumin cita a fungao de apropriagio que proponho, e prefere nomear as identificagdes que dela resultam de “identifications en abime” . Em 1988, na apresentagao que fez no 48° Congresso dos psicanalistas de lingua francesa dos paises romAnicos, “O objeto da perda no pensamento de Freud”, liga as identificagdes “en abime” a um problema “de encaixamento de identificagdes”. Os trabalhos que Piera Aulagnier (1975) e Micheline Enriquez (os dois capftulos deste livro) dedicaram ao tema estéo centrados 1 12. Conceito retirado da expresso “mise en abfme”, muito utilizada em teoria da narrativa para traduzir um processo de reflexividade literdria, de duplicacao especular de uma narrativa em outra narrativa, numa remissao infinita da histéria dentro da hist6ria dentro da histéria..., ou do quadro dentro do quadro dentro do quadro... (N. da T] ‘appropriation identifiante des modéles pathologiques”. ESCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERAQOES 135 na psicose. A articulagao das idéias delas com as minhas devera ser objeto de outro estudo. Nio exporei aqui a abundante literatura existente atualmen- te?, Limitar-me-ei a centrar minhas contribuigGes nos pontos que, até onde sei, nao foram tratados por outros autores": * em primeiro lugar, as condigées clinicas necessarias para que se revelem as identificagdes inconscientes comuns a uma hist6- ria que condensa trés geracées. Essas condigées clinicas sao, por sua vez, 0 critério que permite considerar a pertinéncia psicanaliti- ca do conceito de telescopagem das geragées: minha reflexao centra-se na transferéncia-contratransferéncia; * proponho, como hipstese central, considerar a telescopagem das geragées um fendmeno universal presente em toda andlise sempre que se leve em consideragéo o problema e sejam res- peitadas as condigées clinicas de sua descoberta; * considero a fungao de apropriagao-intrusao como caracterfs- tica da regulagio narcisica de objeto. II. Telescopagem das geragées e transmissdo da historia Fung6es de apropriag4o-intrusao Vinculei 0 modo como os pais transmitem sua histéria ao seu modo de dizer e de nao dizer'’. “A causa alienante da telescopagem das geragdes nfo provém exclusivamente do contetido dos fatos rela- 13. Evoco, contudo, 05 estudoé publicados em 1986 por P Fédida e J. Guyotat. 14. Minha reflexao apsia-se em duas fontes. Por um lado, os semindrios de estudo dos textos freudianos, coordenados por Guillermo Maci, e, por outro, a transmissio oral € generosade Enrique Pichon-Riviére, José Bleger, Willy Baranger, David Liberman, Jorge Mom e André Green. 15. Capitulo 2 desta obra, p. 85. 136 ‘TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAGOES tados pelo paciente, mas também do modo segundo o qual esses fatos foram submetidos ao dizer ¢ ao ndo-dizer dos pais [...] 0s fatos mais dolorosos poderiam ser objeto de uma transmissdo ndo alienante... A dialética da investigagao das verdades psfquicas pelo sujeito osci- la entre o cognoscivel e 0 incognoscivel (dialética que concerne ao inconsciente). Na transmissao alienante, os pais perdem a fungdo de fiadores, para a crianga, do valor da investigagéio das verdades psfquicas e ocupam seu lugar. A crianga fica swjeita ao que os pais dizem ou calam. Passa entao a depender (de maneira paradoxal), para sua prdpria sobrevivencia pstquica, dessa verso narcisica fundado- ra que é mantida em siléncio pelos pais, perdendo assim o livre acesso & interpretagao de seu préprio psiquismo.”!® Mas de que pais falamos durante uma anélise? O analista nada sabe sobre os pais reais. O carater de realidade dos pais é colocado entre parénteses durante a sessio. Daquilo que insiste na transfe- réncia como resto podemos inferir uma realidade hipotética dos pais. Nesse sentido, no se trata da realidade material, mas de uma no- go de realidade que subsiste como resto". Este tema da realidade em psicanilise, tao complexo e importante, nao seré tratado aqui. Minha concepgao desses pais corresponde a escolhas teéricas que nao posso expor no Ambito deste capitulo. Farei apenas uma breve alusao a elas por meio da seguinte anedota: em 1977, Micheline Enriquez apresentou uma bela exposigao sobre a funcéo da escrita para alguns de seus pacientes. Seu trabalho me pareceu admirdvel e eu concordava com ela em todos os pontos. Mas quando tentamos nos entender sobre as raz6es dessa identidade de idéias... ndo con- seguimos chegar a um acordo. Muito depois compreendi que as idéias expostas naquela mesma época por Piera Aulagnier em A violéncia da interpretagao (1975) ocupavam no texto de Micheline Enriquez o lugar que, na minha escuta de seu texto, era preenchido por autores que desempenhavam fungdes equivalentes'®. Naquela mesma época, eu tinha comegado um trabalho de reavaliagao, a luz de certos escritos de Freud, dos conceitos de 16. Cf. H. Faimberg e A. Corel (1989b), p. 278. 17. Talvez o que “resta” coincida com a categoria do real descrita por J. Lacan. 18. Isso talvez explique por que as idéias de Piera Aulagnier foram tao rapidamente aceitas na Argentina. FSCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERACOES 137 Winnicott e de Bion. A propésito disto, gostaria de lembrar que a exclusividade inicial do papel materno foi questionada por volta dos anos de 1950 pelo psicanalista argentino Enrique Pichon- Riviére!’e que aprovo esse questionamento. Os pais de que falo sio os pais tal como estao inscritos na realidade psiquica do paciente. Reconheco esta inscri¢do no modo como 0 paciente fala e no modo como escuta as interpretagdes e os siléncios do analista, Dei a esses pais o nome de “pais internos”, embora me preocupasse a possivel reificagao do conceito que tal terminologia poderia provocar. Na verdade, designo dessa maneira um terceiro termo situado entre o que o paciente diz e 0 que o analista escuta. Esse mesmo terceiro termo reaparece entre o que o analista acredita dizer e 0 que o paciente efetivamente escuta. Esse terceiro termo nao coincide, nao pode coincidir com os pais da realidade material. Esses pais internos tampouco coincidem com a representag&o que os pacientes tém de seus pais. Os pais que me interessam aqui sao aqueles que ganham forma no dizer do paciente, para além do que o paciente acha que os pais sao. ‘Também diferem daqueles que 0 ana- lista concebe a partir de sua teoria ou da imagem proposta pelos pacientes. Os pais de que falo nao sao revelados pela introspecgao, eles se evidenciam no dizer do paciente, constituem o terceiro termo com que o paciente se identifica. Isso significa que é 0 pré- prio paciente que, em certos momentos, funciona psiquicamente na- quele registro que estd na origem de sua identificagao alienante. Considero que as identificagdes inconscientes alienadas sao submetidas ao regime da regulagio narcisica, regulagao que ga- rante seu proprio sistema de reprodugdo. Nesse sentido, pode-se fa- lar de condigées metapsicolégicas da transmissao”. Essas identifi- cages, evidentemente, existem de par com outras e s6 ocupam 0 primeiro plano nos momentos de reativagao transferencial de uma primeira experiéncia afetiva. 19. Lembremos que, para Enrique Pichon-Riviére, a situago triangular € 0 limite epistemiolégico intransponivel em psicandlise. Ele dizia que, numa sessao, cada um dos participantes oficiais traz consigo sua configuracao edipiana (semindrios 1956-1960). 20. Capitulo 2 desta obra, p. 80-82. 138 TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAGOES Gostaria de examinar agora as fungdes de apropfiagao e de intruséo no caso de Catherine”!, Para perceber que Catherine to- mava suas interpretagdes como uma intruséo, Micheline Enriquez teve de escutar 0 modo como a paciente as escutava. Retomando uma expresso que me é muito cara, sua fungiio de “escuta da escuta” possibilitou-lhe perceber a fungao de intrusio. A paciente talvez temesse que a analista cometesse uma intruséo, assim como o delirio da me fizera. Micheline Enriquez acrescenta sutilmente que Catherine, pela maneira como se colocava em posigéo de ana- lista de sua prépria mae, confirmava o delfrio materno: assim é que a paciente devia a essa mae sua vida e sua morte. Aprecio particu- larmente a utilizagao das idéias de Piera Aulagnier para explicar 0 poder desmesurado da mae. Do meu ponto de vista, gostaria de destacar que ao mesmo tempo em que a paciente confirma o poder abusivo da mae, ela garante para si mesma que, psiquicamente, tem mde. Para sua prépria sobrevivéncia psfquica, Catherine permane- ce submetida & versao narcfsica fundadora”. O drama desse tipo de identificagdo inconsciente alienante é que a solidariedade com a histéria da mae ndo permite que a paci- ente exista psiquicamente em nenhum outro registro. Isso porque a fungao materna de apropriacao privou Catherine de qualquer es- paco psfquico proprio. Foi o trabalho analitico de Micheline Enriquez que deu possibilidades A paciente de sonhar que ela es- tabelecia com a analista uma relagio de dependéncia diferente daquela que a unia 4 mée. Mais uma vez, a transferéncia é o lugar da repetigao e da cria 10. Do nao-dito ao segredo da transferéncia”’ Devemos admitir que no nosso trabalho analftico partimos de uma situagéo bem enigmatica. 21. CE. M. Enriquez, capitulo 3 desta obra 22. Ver capitulo 2 desta obra, p. 81 ¢ 82. 23. Agradeco aos participantes do seminério que dediquei a esta questao, em particular a Héléne Rosenberg, por me ajudarem a pensar a diferenga entre 0 nao-dito e o segredo. Para mim, o segredo é uma organizagio, uma interpretagio do nio-dito. ESCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERAGOES 139 Por um lado, digo que o analista deve, em sua contra trans- feréncia, conter a angiistia de nao saber e de nao saber que nao sabe. E assim ser4 até que possa compreender a posteriori que _ parte da transferéncia estava contida na contratransferéncia. E mesmo quando o analista “sabe” (na entrevista preliminar, ou pelo que foi dito numa sessao), a cada sessao ele se coloca ativa- mente em posicao de nao saber. Quando, na transferéncia, reve- lam-se as identificagdes inconscientes por telescopagem de ge- tagdes, essa revelacdo vai nascer da relagdo inesperada entre a informagio conhecida e a maneira como o sujeito a enuncia para resolver um conflito na transferén Por outro lado, afirmo que é 0 paciente, e necessariamente somente ele, que revela de surpresa (ali onde nem o paciente nem © analista suspeitavam) o relato que possibilitara comegar a com- preender a posteriori a identificagio inconsciente. A meu ver,_o nao-dito do paciente obedece a certas leis. Estas leis decorrem ‘das fungdes de apropriagdo e de intrusao, de que tratei em outro texto, em relagio com as préprias condigdes de transmissao da telescopagem das geragées. O que torna possfvel’4 que 0 nao-dito se torne dizivel? O Ginico que ir4 me interessar aqui é a sutil dialética que se estabelece entre 0 que o paciente nao sabe que sabe e o que o analista ignora totalmente. Vou retomar 0 exemplo clinico de Mario, que dis- cuti no capitulo 2 desta obra (ver em particular p. 71-74). “{M4rio] era um homem que dava a impressao de ter um psiquismo vazio, morto. Durante a sessdo que nos interessa, Mé- tio manifesta pela primeira vez sinais de angustia; diz que se as coisas continuarem assim, nao podera continuar a andlise, pois 24. No Capitulo 2 desta obra, p. 76-77, discorri sobre as condigdes clinicas que tornam possivel a revelacio da telescopagem das geragées. Ver também H. Faimberg, 1989, “Pour tine théorie (non narcissique) de l'écoute du narcissisme: comment V'indicible devient-il dicible?”. 140 TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERACOES nao tem mais dinheiro suficiente para viver até owfim do més. Explica que alguém tentou convencé-lo a comprar délares e lhe perguntou se ele sabia quanto valia um délar. Mario lhe respon- deu que um délar valia dois pesos. “Enquanto me conta isso, ele faz um gesto — quase impercep- tivel — com a mao, como se quisesse verificar se alguma coisa ainda esté no seu bolso. Relata ao mesmo tempo, num tom distra- ido e indiferente, que seu interlocutor Ihe disse que o dolar valia cinco mil pesos. “Digo-lhe entao: ‘Deve haver algo muito importante no seu bolso, algo secreto, e que chama sua atengdo no exato momento em que estamos falando de seu dinheiro para garantir a continuidade de sua anélise comigo. Vocé me diz de seu desejo de continuar, e de sua angtistia diante da idéia de ter de abandonar a anélise. O que chama sua atengio talvez tenha alguma relagéo com délares que valem dois pesos. Se for assim, eles devem pertencer a uma época longinqua, talvez aos anos quarenta. Nao tenho certeza, mas nesse caso, vocé teria alguma idéia sobre a quem eles se destinavam?” Lembremos também que a construgao interpretativa nao des- creve um comportamento. O gesto de Mario esta inclufdo numa cadeia significativa inconsciente que faltava, e é essa significagio inconsciente que permite falar de interpretagao. Mario diz: “Sim, sei para quem sao esses délares, séo para a familia de meu pai. A familia de meu pai ficou na Polénia quando meu pai saiu de seu pafs nos anos trinta. Minha mae me contou que a emigragao mudou completamente o cardter de papai, e que ele parou de falar. Na verdade, ele nunca conseguiu falar correta- mente o espanhol. Com a guerra, ele comegou a mandar dinheiro para sua familia, que ficou na Poldnia, seus irmdos e seus pais. Mandava délares; um dos envios nunca foi tocado. Toda a familia deve ter sido morta. Meu pai nunca falou a respeito e nunca fez qualquer alusdo ao que aconteceu. No fundo, acho que ele nunca soube 0 que aconteceu. Foi minha mae que me contou tudo”. Voltemos a questo da dialética que se estabelece entre 0 que © paciente nao sabe que sabe e o que o analista ignora totalmente: * a analista sabe que Mario, por um lado, est& presente no seu desejo de continuar a andlise e na angtistia de perdé-la. Por ESCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERACOES 141 outro lado, a analista também sabe que 0 paciente esta ausen- te de sua relagao com a analista, e ao mesmo tempo presente num espaco secreto (a relagdo terna e secreta com os délares de dois pesos). Em conseqiiéncia, a analista sabe que uma parte do relato de Mario nao lhe esta destinada; * 0 que a analista nao sabe é a quem se destina o relato dos délares de dois pesos; * a analista comunica ao paciente o que ela entende de seu discurso, com suas lacunas e seus anacronismos. Esse dizer da analista jd constitui uma interpretagdo; * aanalista diz ao paciente algo fundamental, ou seja, que ela, a analista, nao sabe o que significam esses fragmentos de dis- curso (esse nao-saber da analista viu-se confirmado logo em seguida: a analista realmente nao sabia); * aanalista convida Mario a interpretar as lacunas de seu proprio discurso. Propde-lhe um raciocinio no modo condicional: “Se vocé souber” [...] entao eu (que sei que esse discurso nao me esta destinado) Ihe pergunto: Vocé sabe a quem esse discurso se en- derega? Esse raciocfnio constitui a matriz da construgio interrogativa. Com efeito, como:em toda anilise, nado se pode perguntar diretamente ao paciente, j4 que ele nado sabe que sabe; como em toda anilise, nao se pode senao fazer uma inter- pretagao e/ou construg&o, nesse caso, sob forma interrogativa; * a interrogag4o implica um ponto virtual que designa, além da presenga dos protagonistas oficiais, a de um terceiro incluido que exclui momentaneamente a analista. E a defasagem entre a contratransferéncia da analista e 0 relato manifesto do paciente que torna possivel essa interpretagdo. A interpretagdo constréi as condigées por meio das quais esse terceiro, inconsciente para o paciente e desconhecido do analista, vai poder ser nomeado; * esse nao-dito pode entao ser interpretado pelo paciente na forma de um relato que a analista poderd, a posteriori, desig- nar, da maneira como o fiz, como o segredo na transferéncia”>. ® 25. Cf. capitulo 2 desta obra, p. 75. 142 ‘TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERACOES Acho que o desejo de prosseguir a andlise, tanto por parte da analista como do paciente, nesse momento particularmente enigmatico do tratamento, transforma em interlocugdo e cria- ¢do 0 que até entdo era apenas repeticao. A telescopagem das geragdes tem necessariamente como causa um problema de luto? Meu estudo foi freqiientemente considerado a seqiiéncia 16- gica dos trabalhos de Nicolas Abraham e de Maria Torok. A no- g4o de fantasma, por eles introduzida, e a nogdo de morto-vivo, que menciono, sem divida se sobrepdem. A nogao de morto- vivo provém dos trabalhos de Willy Baranger (1961), com quem trabalhei por muito tempo. E sabido que coincidéncias entre au- tores que desenvolvem suas reflexdes sem ter tomado conheci- mento dos trabalhos uns dos outros tém efeito de confirmagao. No meu caso, nossas coincidéncias, assim como nossas divergén- cias, levaram-me a indagar sobre a genealogia de nossas respec- tivas idéias. Isso merece um estudo particular. Falar de luto é algo complexo na medida em que importa sa- ber que lugar esse conceito ocupa na teoria de um autor. Se consi- derarmos © conceito de posigao depressiva de Melanie Klein, os autores que privilegiam essa posig&io em seu modo de conceber o funcionamento psiquico atribuem um lugar importante, no con- junto de sua reflexao, & nogio de luto. Existe outro problema que pode estar ligado ao ponto precedente: saber se a nogio de luto se refere 4 perda real pela morte de uma pessoa significativa, uma vez que € possivel falar de luto em outros contextos: pode-se imaginar uma crianga que tenha de fazer o luto de uma mie que se tornou Psiquicamente inacessfvel’*, Tais hipdteses, que so miiltiplas, nao so objeto da presente reflexao. Os trabalhos de Abraham e de Torok chamaram particularmente minha atengao pelo fato de estarem centrados no problema do luto. 26. Uma mae pode se tornar psiquicamente inacessfvel em conseqiiéncia do luto devido A morte de sua prépria mae. Ver A mde morta, de André Green (1980). ESCUTA DA TELESCOPAGEM DAS GERACOES, 143 Oriunda de uma cultura psicanalftica que atribui uma importancia central ao luto no funcionamento psfquico, entusiasmei-me com a possibilidade de pensar meu tema a partir de outras perspectivas. Como expliquei no capftulo 2, considerei a telescopagem das gera- des pondo entre parénteses conceitos psicanalfticos cruciais, como: * as vicissitudes do trabalho de luto; * os trabalhos de Freud que tratam explicitamente das identifi- cagées (entre outras razdes, porque o proprio Freud nao esta- va satisfeito com seu modo de tratar a questdo); * o conceito de identificagao projetiva; * a articulagdo entre os conceitos de clivagem, recusa e recalcamento. O eixo de minha reflexao so os textos de Freud “Os instintos e suas vicissitudes”, 1915 (também privilegiado no estudo de Torok), “A negag&o” (1925), “Sobre o narcisismo: uma introdu- ¢40” (1914) e Totem e tabu (1912). Considerando-se a maneira como meu artigo foi lido, nao pos- so deixar de me interrogar sobre o lugar efetivo que, a despeito de minhas intengdes metodoldgicas, 0 problema do luto ocupa na minha reflexéo. Essa interrogagéo acompanhou minha leitura do trabalho muito pertinente de Jean Cournut (1983). Ao escutar André Green expor um de seus mais belos estudos, “A mae morta” (op. cit.), perguntei-me também se a figura da mae morta estava necessariamente ligada a uma mde enlutada. Nem é pre- ciso dizer que, de forma absolutamente legitima, André Green es- colheu essa perspectiva sem prejulgar necessariamente outras hipd- teses’’. Poderfamos pensar uma figura de “mae morta” pelo fato de estar psiquicamente inacessivel? Essa inacessibilidade poderia ser a conseqiiéncia de um luto, como diz André Green, mas também de uma identificag’o inconsciente alienante em que ha telescopagem das geragdes. Na verdade, levanto a questo mais geral da possfvel inscrigao do problema do luto numa problematica mais ampla. 27. Também' possivel indagar como se articula a nogio de mie morta com a fungio de apropriagio-intrustio que descrevo como sendo caracteristica da regulagio narcfsica dos “pais internos”. 144 ‘TRANSMISSAO DA VIDA PSIQUICA ENTRE GERAGOES Se voltarmos para a argumentagdo que utilizo no caso Matio para definir a telescopagem das geragdes, veremos que © conceito-chave é 0 de identificagdo inconsciente alienante que serve para o paciente resistir, num plano narctsico, a ferida infligida pelo Edipo’® e, mais particularmente, belo reconhecimento da diferenca de geragdes. Mario se considera in- conscientemente a causa da histéria de seu pai. A cristalizag’o psi- quica num tempo congelado dé a Mario a convicgao megalomaniaca de que ele, Mario, pode salvar a familia de seu pai. Os ddlares de dois besos que ele conserva amorosa e secretamente sdo 0 vinculo narcisico com uma histéria anacrénica, anterior ao seu nascimento. O desejo inconsciente de Mario de nao reconhecer seu pai como pai, de resistir narcisicamente d situagao edipiana, é reforcado pela historia de seu pai. Mario fala com as palavras da mae, que se referem de forma similar ao pai e a Mario. “Quando seu pai veio da Poldnia, ele parou de falar, e nunca mais foi 0 mesmo”, “quando seu irmao nasceu, vocé parou de falar, de brincar, vocé nunca mais foi o mesmo”. As identificagSes inconscientes alienantes de Mario formam um obsté- culo a dialética entre o registro narcfsico € o registro edipiano. A telescopagem das geragdes é a causa da resisténcia narcfsica que se manifesta na transferéncia’. Mario resiste a reconhecer que sua maneira de se ligar secretamente aos délares de valor anacrénico coloca em perigo sua propria vida psfquica. Ele nao quer saber que esses délares nao conseguiram salvar a familia do pai. Do que digo conclui-se que alguém resiste e que suas resisténci- as narcisicas tem uma hist6ria. No caso que nos ocupa, esse “al- guém” é compésito pelo fato de haver telescopagem das geragdes®. Chamei de tempo narecisico do Edipo®! o trabalho psicanalftico 28. Cf. capitulo 2 desta obra, p. 91, ¢ capitulo 6, p. 188. 29. A colusio narcfsica de Mario com a histéria do pai e da mae foi comentada por um Psicanalista quando apresentei meu trabalho em Hamburgo: “Agora entendo por que nunca perguntei aos meus pais o que eles fizeram durante a guerra. Eu no perguntava nada porque inconscientemente sabia a resposta, eu tinha me identificado inconscientemente com cles. Isso também explica por que nunca abordei essa questo com meu analista”. 30. A nogio de resisténcia remete, por sua vez, A nogio de defesa: a defesa nao é conseqiiéncia de uma atividade auto-suficiente. Ela se refere a um outto, a um objeto psiquico. 31. Expresso tomada do filésofo argentino Guillermo Maci. ESCUTA DA TELESCCPAGEM DAS GERACOES 145 centrado no registro narcfsico, do qual a telescopagem das gera- Ges é um dos casos*. Algumas consideragées finais sobre a relagao entre o luto e a telescopagem das geragdes: chegamos a conclusdo de que “alguém” resiste cies ao reconhecimento da ferida infligida pelo Edipo. Também dissemos que esse “alguém” estd inscrito numa histéria. Qual a relagdo entre esse “alguém” e a nogao de luto? Evidentemente, a idéia de um luto impossivel salta aos olhos, e ela se evidencia para o leitor sobretudo porque a deixei metodologi- camente de lado. A colocagao entre parénteses da nogdo de luto me possibilitou nao interromper a andlise com a nogaio de morto- vivo. Quis inscrever a identificagdo inconsciente de Mério ao seu “pai — que — nado — reconhece — a — morte — da — famflia — na — Polénia” numa rede mais ampla, a da resisténcia ao reconhecimento da diferenga das geragdes. Sera que esse “alguém” que resiste esta sempre ligado a um morto-vivo? Sera que a nogao de morte psiqui- ca, de auséncia psfquica deve ser vinculada a questao do luto? Deixo estas questdes em suspenso. 32. Retrospectivamente, censuro-me por nao ter destacado de modo suficiente o desejo inconsciente do paciente, sua atividade psiquica na formagio das identificagdes inconscientes. © motivo disto é que fiquei tio impressionada pela descoberta do aspecto alienante, da sujeigo do paciente a geragdo precedente, que insisti na clivagem passiva. Lembremos 0 que escrevi em “A telescopagem...”, ou seja, que teorizar o narcisismo nao implica compartilhar das teorias narcisicas do paciente, O fato de o paciente se acreditar livre de suas pulses e isento de elaborar psiquicamente a situagio edipiana e seus avatares (rééonhecimento da diferenga dos sexos, da diferenca das geragées e da alteridade) nao implica que os psicanalistas desconhecam que o plano narefsico também se constitui num conflito pulsional ligado a origem da prépria constituigdo do narcisismo.

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