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OBRAS COMPLETAS PSICANALISE IV Sandor Ferenczi Martins Fontes SGo Pau! 1992 Titulo original: BKUSTEINE ZUR PSYCHOANALYSE © Copyright by Payot, através de acordo com Mark Patterson © Copyright by Livraria Martins Fontes Editora Ltda., para a presente edic&o 1! edigdo brasileira: dezembro de 1992 Tradugao: Alvaro Cabral Revisdo técnica e da tradugdo: Claudia Berliner Revisio tipogrdfica: Laila Dawa Flora Maria de Campos Fernandes L G. .3 Produgio grdfica: Geraldo Alves Composicao: Ademilde L. da Silva 159.964 Perm 1d Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes F349 p Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicaciio (CIP) 4 7 (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ferenczi, Sandér, 1873-1933. - Psicandlise IV / Sandor Ferenczi ; [traducdo Alvaro Cabral ; revisdo técnica ¢ da traduedo Claudia Berliner]. — Sao Paulo : Martins Fontes, 1992. — (Obras completas / Sandor Ferenczi ; 4) Bibliografia. ISBN 85-336.0046-1 1. Psicandlise I. Titulo. IL. Série. CDD-616.8917 92-0570 NLM-WM 460 indices para catdlogo sistematico: 1. Psicandlise : Medicina 616.8917 Todos os direitos para o Brasil reservados & 4 LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA, Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325-000 — Sao Paulo — SP — Brasil x Reflexées sobre o Trauma: Da Psicologia da Comogdao Psiquica O ‘‘choque”’ é equivalente 4 aniquilacdo do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas a defesa do Si mesmo [Soi]. Também pode acontecer que os drgdos que asseguram a preser- vacaio do Si mesmo abandonem ou, pelo menos, reduzam suas fun- des ao extremo. (A palavra Erschiitterung — comogao psiquica — de- riva de Schutt = restos, destrogos; engloba o desmoronamento, a per- da de sua forma propria e a aceitag&o facil e sem resisténcia de uma forma outorgada, ‘‘a maneira de um saco de farinha’’.) A comocao psiquica sobrevém sempre sem preparacdo. Teve que ser precedida pelo sentimento de estar seguro de si, no qual, em conse- qiiéncia dos eventos, a pessoa sentiu-se decepcionada; antes, tinha ex- cesso de confianga em si e no mundo circundante; depois, muito pou- 1. Trata-se de um artigo péstumo, publicado em Int. Zeitschrift fiir Psych., vol. XX, p. 10, 1934. Retine cinco notas redigidas em datas diferentes, tratando todas elas do traumatismo, publicadas em meio a outras notas tomadas entre 1920 ¢ 1932, sob o titulo global de “Notas e Fragmentos’’. Decidimos reagrupé-las, 4 maneira da Interna tionale Zeitschrift, pois desta forma nos parece mais estimulante para a reflexdo. As cinco notas intitulam-se: 1) Relaxamento ¢ educagdo, 22.3.1931. 2) Da revisdo de A Interpretagéo de Sonhos, 26.3.1931. 3) Trauma ¢ angiistia, 31.12.1931. 4) Da comogao psiquica, 19.9.1932. 5) O trauma psiquico, 26.12.1932. (NTF) 110 OBRAS COMPLETAS ca ou nenhuma. Subestimou a sua propria forca e viveu na louca ilu- so de que fal coisa ndo podia acontecer; ‘‘ndo a mim’’. Uma comocio pode ser puramente fisica, puramente moral ou en- tdo fisica e moral. A comogio fisica é sempre também psiquica; a co- mogdo psiquica pode, sem nenhuma interferéncia fisica, engendrar 0 choque. O problema é este: no caso da comogao psiquica, nado haverd uma auséncia de reacdo (defesa), ou serd que a tentativa de defesa, momen- tanea e transitéria, revela-se t4o débil que é logo abandonada? O nos- so proprio sentimento-de-si inclina-se a dar preferéncia a segunda pos- sibilidade: abandonar sem resisténcia ¢, mesmo no nivel da represen- tacdo, inaceitavel. Vemos também que, na natureza, mesmo 0 ser mais fraco opoe uma certa resisténcia. (Até a minhoca se empina.) No en- tanto, a flexibilidade cérea e a morte sio exemplos da néo-resisténcia edo fendmeno da desagregaco. Isso leva até a morte do atomo, apa- rada da existéncia material em geral, e talvez a um ““universalismo”’ tempordrio ou permanente — um distanciamento em relacdio ao qual a comocdo psiquica se apresenta como minima ou incontestavel. ‘A subitaneidade da comocao psiquica causa um grande desprazer que ndo pode ser superado. Mas o que significa, pois, superar? (1°) Uma defesa real contra a nocividade, ou seja, uma transformacao do mundo circundante no sentido de um afastamento da causa do distur- bio (reacdo aloplastica). (2°) A produgdo de representagGo a respeito da mudanea futura da realidade num sentido favoravel; o fato de nos apegarmos a essas imagens de representacdes que enfatizam, portan- to, o prazer in spe, nos torna capazes de “‘suportar”’ esse desprazer, ou seja, de nao senti-lo (ou senti-lo menos) como tal. Essas representa- gdes agem como antidoto contra 0 desprazer (como anestésico) € capacitam-nos para um comportamento apropriado enquanto durar o desprazer ou a aco que engendra a dor (extraco de um dente: isto nao vai durar muito e logo tudo estar bem). Também se produzem simultaneamente ‘“‘reacées substitutivas’’ (contragdes musculares), que j4 se poderia qualificar de ilusionais, ou seja: defesa e aces de afasta- mento em face de objetos ou de pessoas inocentes (mas andlogas), na grande maioria das vezes coisas jnanimadas no lugar de coisas vivas e, com muita freqiiéncia, em face de si mesmo (arrancar os cabelos). Esta segunda maneira de superar € aloplistica in spe, mas ja parcial- mente entrelacada de processos primarios, nos quais a semelhanca passa por identidade. A conseqiiéncia imediata de cada traumatismo ¢ a anguistia. Esta consiste num sentimento de incapacidade pata adaptar-se a situagdo de desprazer: (1°) subtraindo seu Si mesmo airritacao (fuga); (2°) eli- minando a irritacdo (aniquilamento da forca exterior). O salvamen- REFLEXGES SOBRE O TRAUMA il to ndo chega e até mesmo a esperanca de salvamento parece excluida. O desprazer cresce e exige uma valvula de escape. Tal possibilidade é oferécida’ pela autodestruigao, a qual, enquanto fator que liberta da angistia, sera preferida ao sofrimento mudo. O mais facil de destruir em nés a consciéncia, a coesaio das formacées psiquicas numa enti- dade: é assim que nasce a desorientacdo psiquica. (A unidade corporal nado obedece tao prontamente ao principio de autodestruicdo.) A desorientacdo ajuda: (12) imediatamente, como valvula de es- cape, como sucednea da autodestruicdo; (2°) pela suspensao da per- cep¢aio mais ampla do mal, em particular do sofrimento moral, mais elevado — eu nao sofro mais, quando muito uma parte do meu corpo; (3°) por uma formacao nova de realizacéo de desejo a partir dos frag- mentos, no nivel do principio de prazer. A angustia traumatica pode, justamente em conseqiiéncia disso, transformar-se com facilidade em medo da loucura. Naqueles que sao vitimas de mania de perseguicdo, a tendéncia para proteger-se, para defender-se de perigos, prepondera sobre a anguistia como aflicao. A mania de perseguicdo, a megalomania e o sentimento de onipoténcia, de poder tudo destruir, so inconscientes na maioria dos casos. A and- lise tem que abrir caminho através dessas camadas. O comportamento dos adultos em relacdo a crianga que sofreu 0 traumatismo faz parte do modo de ago psiquica do trauma. Eles dao, em geral, e num elevado grau, prova de incompreensdo aparente. A crianga é punida, o que, entre outras coisas, age também sobre a crianca pela enorme injustiga que representa. A expressdo huingara que serve para as criancas, ‘“‘katonadolog”’ (a sorte do soldado) exige da crianca um grau de heroismo de que ela ainda nao € capaz. Ou entao os adul- tos reagem com um siléncio de morte que torna a crianga tao ignoran- te quanto se Ihe pede que seja. I Da Revisao de “A Interpretagéo de Sonhos’”’ A Interpretagao de Sonhos, de Freud, apresenta como ‘inica fun- cdo do sonho a transformaco em realizacdo de desejo dos restos diur- nos desagradaveis que perturbam o sono. A importancia desses resf- duos do dia e da vida é esclarecida com uma precisao e uma acuidade quase inigualdveis; penso, entretanto, que o retorno dos restos diur- nos ja representa por si mesmo uma das funcdes do sonho. Pois se ob- servarmos com mintcia a relacdo entre a histria pessoal e os conteti- dos oniricos, torna-se cada vez mais evidente que aquilo a que chama- mos os restos diurnos (e podemos acrescentar: os restos da vida) sao, 112 OBRAS COMPLETAS de fato, sintomas de repeticdio de traumas; mas é muito conhecido que a tendéncia a repeticdo na neurose traumatica também tem uma fun- cdo intrinsecamente util: ela vai conduzir o trauma a uma resolugao, se possivel, definitiva; melhor do que isso nado fora possivel no decor- rer do acontecimento origindrio comovente. E de se supor que essa ten- déncia também exista mesmo onde ndo vinga, ou seja, onde a repeti- cdo nao leva a qualquer resultado melhor do que o traumatismo origi- nario. Assim, uma definig¢do mais completa da fungao do sonho seria (em vez de: “‘o sonho é uma realizado de desejo”’): todo e qualquer sonho, ainda o mais desagradavel, é uma tentativa de levar aconteci- mentos traumaticos a uma resolucdo e a um dominio psiquicos melho- res, no sentido, poderiamos dizer, do ‘“‘esprit d *escalier’’?, 0 que, na maioria dos sonhos, é facilitado por uma diminui¢ao da inteligéncia critica e pelo predominio do principio de prazer. Nao desejaria, por- tanto, que o retorno dos restos do dia e da vida no sonho fosse consi- derado 0 produto mecnico da pulsao de repeti¢do, mas suspeito de que, 14 bem atras, temos a acdo de uma tendéncia, que deve ser igual- mente qualificada de psicolégica, para uma nova € melhor resolucdo, em que a realizacdo de desejo é 0 meio pelo qual o sonho conseguira chegar a ela, mais ou menos bem. Os sonhos de angustia e os pesade- los s&o realizagdes de desejo imperfeitamente ou a custo conseguidas, mas ndo se pode desconhecer seu atrativo no trabalho de deslocamen- to parcialmente realizado. Por conseguinte, os restos do dia e da vida so impressdes psiquicas tendentes a repeticao, nao resolvidas nem do- minadas, inconscientes e que, talvez, jamais foram conscientes, as quais surgem mais nas condigdes do sono € do sonho do que em estado vigil, e exploram para seus fins a capacidade de realizagao de desejo do sonho. Num caso observado durante anos, houve todas as noites pelo me- nos dois e na maioria das vezes diversos sonhos. O primeiro, durante a hora do sono mais profundo, nao tinha contetdo psiquico: a pacien- te acordava com o sentimento de uma grande agitag4o, reminiscéncias abafadas de sensacdes dolorosas, de experiéncias de sofrimento de na- tureza corporal e psiquica, com esbocos de sensacdes em diferentes r- gaos do corpo. Apés uma vigilia bastante prolongada, novo mergulho no sono com a aparic¢ao de novas imagens oniricas muito vivas, que se revelavam como distorgdes e atenuacdes dos eventos vividos no pri- meiro sonho (¢ mesmo no sonho s6 inconscientemente). Foi ficando cada vez mais claro que a paciente s6 podia e devia repetir as experién- cias traumaticas de sua vida, de um modo puramente emocional e sem 2. Em francés no texto alemao. Literalmente, “‘o espirito da escada’’; aquilo que deveria ter sido dito numa oportunidade anterior acode ao espirito tarde demais, “quando ja se esta descendo a escada’’. (N.T.) REFLEXOES SOBRE O TRAUMA 113 contetdos representativos, durante um sono profundamente incons- ciente, quase comatoso; num segundo sono, menos profundo, ela ape- nas podia suportar atenuagdes em forma de realizaciio de desejo. O que é teoricamente importante nessa observa¢ao e em outras semelhan- tes, € a relacdo entre a profundidade da inconsciéncia e o traumatis- Mo, 0 que justifica em si a tentativa de investigar o evento comovente com a ajuda de um transe intencionalmente favorecido. Um choque inesperado, n&o preparado e esmagador, age por assim dizer como um anestésico. Mas como é que isso se produz? Segundo parece, pela sus- pensdo de toda espécie de atividade psiquica, somada a instauragao de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resisténcia. A paralisia total da motilidade inclui também a suspensao da percep- ¢4o, simultaneamente com a do pensamento. A conseqiiéncia dessa des- conexdo da percepcao é que a personalidade fica sem nenhuma prote- go. Contra uma impressdo que nao € percebida nao ha defesa possi- vel. Essa paralisia total tem por conseqiiéncia: 1°) que o curso da pa- talisia sensorial ser4, e ficard, duradouramente interrompido; 2°) que durante a mesma aceitar-se-a sem resisténcia toda impressao mecAnica € psiquica; 3°) que nenhum trago mnémico subsistira dessas impres- sdes, mesmo no inconsciente, de sorte que as origens da comog¢iio si0 inacess{veis pela memoria. Se, entretanto, se quiser esperd-las (o que, logicamente, parece quase impossfvel), nesse caso deve-se repetir 0 pro- prio traumatismo em condigdes mais favoraveis, leva-lo, pela primeira vez, 4 percepcdo e a descarga motora. Voltemos ao sonho: 0 estado de inconsciéncia, ou seja, 0 estado de sono, favorece nao sé a dominagao do principio de prazer (a fun- gao de realizac&io de desejo do sonho) mas também o retorno de im- press6es sensiveis traumdticas, n&o resolvidas, que aspiram A resolu- Ao (funcao traumatolitica do sonho). Em outras palavras: a tendén- cia a repeti¢éo do trauma € maior durante o sono que no estado vigil no decorrer do sono profundo, a perspectiva de um retorno das im- Press6es sensiveis nao resolvidas, profundamente enterradas, muito vee- mentes e, portanto, acompanhadas outrora de uma profunda incons- ciéncia, é bem mais provavel. Caso se consiga estabelecer o vinculo en- tre essa passividade total e o sentimento de ser capaz de viver o trau- matismo até o fim (ou seja, encorajar o paciente a repetir e a viver 0 evento até o fim, o que freqiientemente s6 se produz apds imimeros fracassos e, no comego, de um modo apenas parcial), entéo uma nova espécie de resolug4o do trauma, mais vantajosa, e até mais duradoura também pode produzir-se. O estado de sono nao pode realizar isso, mas no maximo uma nova repetic¢ao com o mesmo resultado, como uma paralisia. Ou entdo a pessoa adormecida acorda com o sentimen- to de toda uma variedade de sensag6es de desprazer psiquico distorci- 114 OBRAS COMPLETAS do. O primeiro sonho é uma repetig&o pura; o segundo é uma solitaria tentativa de resolugdo bem-sucedida, de uma forma ou de outra, e isso com a ajuda de atenuacées e distorcdes, quer dizer, sob uma forma falsificada. Portanto, na condicao de uma falsificagdo otimista, o trau- ma ser4 admitido na consciéncia. A condicao prévia de tal falsificagdo parece ser 0 que se chama a “‘clivagem narcisica’’, ou seja,.a criagdéo de um lugar de censura (Freud) com uma parte clivada do ego, que mede por assim dizer, en- quanto inteligéncia pura, ser onisciente com uma cabega de Janus, a extensdo do dano, assim como a parte dela mesma que a pessoa pode suportar, sO permitindo acesso a percepgao do que é suportavel na for- mae no contetido do sonho, embelezando-o até, se necessdrio, no sen- tido de uma realizacdo de desejo. Eis um exemplo desse tipo de sonho: Uma paciente, a quem o pai outrora, e mesmo na idade adulta, fizera de- claragées de amor, apresenta durante meses material indicativo da existéncia de um trauma sexual infantil, datando do seu quinto ano de vida, e que, apesar de intimeras repeticdes fantasisticas, inclusive num semitranse, nao pode ser rememorado nem elevado ao nivel da conviccéio. Ela desperta com freqiiéncia do seu primeiro e profundo sono “como que esmagada”’, com dores violentas no baixo yentre, o sangue sobe-lhe a cabeca e os miisculos retesados-“‘como depois de um violento combate”, esgotada, como que paralisada, etc. No se- gundo sonho, ela vé-se perseguida por animais selvagens, jogada por terra e atacada por ladrées, etc., e alguns pequenos tragos do perseguidor designam © pai e sua enorme estatura durante a infancia dela. * Considero o “‘sonho primério”’ como a repetic&o traumatica- neurética, e o ‘‘sonho secundario”’ como o dominio parcial daquela, sem ajuda exterior, mediante a clivagem narcisica. Um tal sonho se- cundario tinha mais ou menos o seguinte contetido: ‘Uma pequena carroca é puxada por uma longa fila de cavalos para trans- por 0 pico de uma montanha, sem o menor esforco, por assim dizer, A direita € a esquerda, o precipicio; os cavalos avangam a um certo ritmo. Nao existe qualquer relacdo entre o vigor dos cavalos e a facilidade infantil da tarefa. Sen- timento de prazer intenso. Brusca mudanga de cena: uma jovem (uma meni- na?) esté deitada no fundo de uma canoa, quase morta, muito pélida, um ho- mem gigantesco debrugado sobre ela, esmagando-Ihe 0 rosto, Na canoa, por tras deles, est4 um segundo homem de pé, um senhor que ela conhece pessoal- mente, e a menina tem vergonha de que esse homem seja testemunha do even: to. A canoa esta cercada de picos montanhosos extremamente altos e abruptos, de modo que ela nao pode ser vista de nenhuma parte, exceto-de um aeroplano que voa a uma distancia incomensuravel. REFLEXOES SOBRE O TRAUMA 115 O primeiro fragmento do sonho secundario corresponde a cena que conhecemos pelo material onirico precedente e que tinhamos elu- cidado, em que a paciente, crianca, cavalgando o corpo de seu pai, deixa-se deslizar para cima e para baixo, e langa-se em toda espécie de exploracao, em busca das partes escondidas do corpo do pai, en- quanto ambos se divertem muito. A cena do lago profundo reproduz 0 espetaculo do homem que nao pode dominar-se, a idéia do que o mundo ira dizer, o sentimento de estar morta e em aflicdo, e ao mes- mo tempo, no modo auto-simbdlico: a profundidade da inconsciéncia que torna os eventos inacessiveis de todos os lados (é, no maximo, Deus quem estd no céu ou um aviador voando a grande distancia, ou seja, alguém emocionalmente desligado dos acontecimentos, que poderia es- piar o que acontece). Do mesmo modo; o mecanismo de projegao, en- quanto que resultado da clivagem narcisica, estA representado no des- locamento dos acontecimentos de si mesma para ‘‘uma menina’’. O objetivo terapéutico da andlise dos sonhos é 0 estabelecimento de um acesso direto as impressées sensiveis, com a ajuda de um transe profundo, o qual regride por assim dizer para além do sonho secundé- tio, e faz reviver na andlise os acontecimentos traumaticos. A andlise do sonho habitual no estado vigil sucedia, portanto, uma segunda and- lise em estado de transe. No decorrer desse transe, esforcamo-nos por permanecer em contato com os pacientes, o que exige muito tato. Se, ao proceder assim, nao se corresponde perfeitamente ao que 0$ pacientes esperam, eles acordam encolerizados ou apontam-nos o que deveria- mos ter feito e dito. Nesse caso, o médico é obrigado a engolir muitas coisas e deve aprender a renunciar a autoridade de ‘‘aquele que sabe mais das coisas’’. Essa andlise suplementar utiliza com freqiiéncia ima- gens isoladas do sonho para penetrar através delas na dimensdo das profundidades de alguma forma, quer dizer, na realidade. Tl O Trauma na Técnica de Relaxamento Parece que os pacientes, apesar da maior indulgéncia e liberdade de relaxamento, atingem um ponto em que a liberdade deve ser, ape- sar de tudo, limitada por raz6es de ordem pratica. O desejo, por exem- plo, de ter o analista® constantemente junto deles e 0 desejo de trans- 3. Ferenczi utiliza aqui um termo insélito: analysierend, em vez de Analytiker, co- mo um pouco mais adiante. Nao confundir com analysand, termo de que ele se serve com freqiiéncia para designar o paciente e que foi retomado em nossos dias por Lacan © numerosos analistas. 116 OBRAS COMPLETAS formar a situacdo de transferéncia numa rela¢do real e dutadoura per- manecem insatisfeitos. A reago emocional extraordinariamente forte que se segue repete a comocio psiquica que, em seu tempo, levara 4 formacao de sintomas. A grande delicadeza e flexibilidade do analista trazem & consciéncia, ou a reconstrugio, de certa forma por efeito de contraste, inimeros eventos penosos da infancia, até entdo inconscien- tes. Finalmente, consegue-se reduzir, por assim dizer, todo o tecido mér- bido ao foco traumatico e quase todas as andlises de sonhos gravitam em torno de um pequeno numero de eventos comoventes da infancia. Durante essas andlises, os pacientes sao arrebatados, as vezes, pela emo- Ho; estados de dores violentas, de natureza psiquica ou corporal, até mesmo delirios e perdas de consciéncia mais ou menos profundas com coma, misturam-se ao trabalho de associacdo e de construgao pura- mente intelectual. Incita-se 0 paciente, quando ele se encontra nesse estado, a dar explicacbes sobre as causas das diferentes perturbacdes afetivas e sensoriais. A compreensio assim adquirida proporciona uma espécie de satisfac&o que é, ao mesmo tempo, afetiva ¢ intelectual, ¢ merece ser chamada de convicgao. Mas essa satisfacao nao dura mui- to, por vezes algumas horas apenas; a noite seguinte fornece de novo, sob a forma de pesadelo, uma espécie de repetigaio deformada do trau- ma, sem o menor sentimento de compreensdo, e, uma vez mais, toda a conviccdo se dissipou, desfaz-se continuamente e 0 paciente oscila, como antes, entre o sintoma em que sente todo o desprazer sem com- preender nada, e a reconstrugdo em estado vigil, durante o qual com- preende tudo mas nada sente, ou apenas muito poucas coisas, Uma mudan¢a mais profunda dessa alternancia, a qual também se torna fre- qiientemente enfadonha e automdtica, ¢ induzida pela necessidade, men- cionada acima, de impor um limite ao relaxamento. E também, preci- samente, 0 elevado grau de nossa delicadeza que acaba tornando dolo- rosa ao extremo qualquer recusa, por menor que seja; o paciente se considera tendo recebido um golpe na cabega, reproduz os mais altos niveis da comodo psiquica e da resisténcia, sente-se traido mas, no entanto, inibido em sua agressividade, e acaba num estado préximo da paralisia, que sente como se estivesse agonizante ou morto. Se con- seguimos ent&o relacionar novamente esse estado com os eventos trau- miaticos infantis, desviando-os de nds mesmos, pode acontecer que o paciente capte 0 momento em que, no tempo, saber e sentir tinham Jevado, por intermédio dos mesmos sintomas, da raiva impotente a uma autodestruigéo, a uma dilaceragdo (Zerreissung) dos contetidos psiqui- cos em sentir inconsciente e em saber sem nada sentir, portanto, ao mesmo processo que € postulado por Freud para o recalcamento. A nossa andlise quer (e, aparentemente, pode) remontar aos estagios an- teriores do processo de recalcamento. E verdade que isso implica 0 com- t REFLEXOES SOBRE O TRAUMA 117 pleto abandono de toda relagio com o presente, e uma imersdo com- pleta no passado traumatico. A unica ponte entre o mundo real e o paciente em transe é a pessoa do analista que, em vez de uma simples repeticdo gesticulatéria e emotiva, leva 0 paciente, mergulhado no afeto, a um trabalho intelectual na medida em que o estimula infatigavelmente com perguntas. Um fato surpreendente mas, ao que parece, de valor geral, quan- do do processo de autodilaceracio (Selbstzerreissung), é a brusca trans- formacao da relacio de objeto, que se tornou impossivel, numa rela- ¢&o narcisica. O homem abandonado pelos deuses escapa totalmente a realidade e cria para si um outro mundo no qual, liberto da gravida- de terrestre, pode alcangar tudo 0 que quiser. Se até aqui esteve priva- do de amor, inclusive martirizado, desprende agora um fragmento de si mesmo que, sob a forma de pessoa dispensadora de cuidados, pres- timosa, cheia de solicitude e amor, na maioria das vezes maternal, sen- te piedade da parte restante e atormentada da pessoa, cuida dela, deci- de por ela, ¢ tudo isso com extrema sabedoria e uma inteligéncia pene- trante. Ela é a propria bondade e inteligéncia, um anjo da guarda, por assim dizer. Esse anjo vé desde fora a crianga que sofre, ou que foi morta (portanto, ele se esgueirou para fora da pessoa durante o pro- cesso de “‘fragmenta¢do”’), percorre o mundo inteiro em busca de aju- da, imagina coisas para a crianca que nada pode salvar... Mas, no mo- mento de um novo traumatismo, muito mais forte, o santo protetor deve confessar sua propria impot€ncia e seus embustes bem intencio- nados a crianga martirizada, e nada mais resta, nessa altura, senZo o suicidio, a menos que, no derradeiro mothento, se produza algo de fa- vordvel na prépria realidade. Essa coisa favordvel a que nos referimos em face do impulso suicida, é 0 fato de que nesse novo combate trau- miatico o paciente nao esta inteiramente s6. Talvez nao lhe possamos oferecer tudo o que lhe caberia em sua infancia, mas s6 0 fato de que Possamos vir em sua ajuda j4 proporciona o impulso para uma nova vida, na qual se fecha o dossié de tudo o que se perdeu sem retorno e, além disso, efetuado o primeiro passo, é permitido contentar-se com 0 que a vida oferece, apesar de tudo, no rejeitar tudo em bloco, mes- mo © que ainda poderia ser utilizdvel.

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