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aigne Mont Os PensadoréS Carituto I Do utile do honesto Todos estio sujeitos a dizer tolices; o mal esti em as enunciar com pretensio: “Este homem vai provavelmente expor-nos, com én- fase, algumas cuurmidades*.” Este segundo Ponto nao me diz respeito, porque nao dou iaior atengao &s bobagens que me escapam. Felizmente para elas, pois as negaria imediata- mente se devessem prejudiear-me. ainds que mui ligeiramente, Nada compro ou vendo por prego mais alto do que vale. Escrevo como falo ao primeito individuo que eneontro, contentando-me com dizer a verdade. Quem nao ha de detestar a perfidia, se 0 proprio Tibério recusou recorrer a ela em um momento em que the podia ser utilissima? Mandaram comunicar-the, da Alemanha, que, se © quisesse, o desembaragariam de Arminio pelo veneno. Era o mais poderaso inimigo dos Tomanos, desbaratara as tropas comandadas por Varro ¢ se opunha sozinho a expansio do dominio de Roma naqueles terriiérios. Tibério Fespondeu que seu povo tinha por costume Vi Bar-se_abertamente de seus inimigos, de armas Ra mao ¢ nao a traicio e de tocaia; trecava assim o itil pelo que acreditava ser horesto. Ora, direis, Tibério foi um temerdrio. Bem © sreio, mas fatos vemelhantes ado 30 raroy mas pessoas de sua condigao, € © reconhecimento da virtude na boca de quem a odeia tem sua importancia, principalmente quando a verdade & que a impe. E xe quem a reconhece niio a Pratica cle proprio, com ela procura ao menos enfcitar-se. Como quer que encaremos este rosso mundo, vemio-lo cheio de imperfeigSes; nada & inGtil entretanto na natureza, nem mesmo 2s inutilidades. Nada existe que ndo tenha sua aplicagao. Nosso ser é um aglomerado de qua- lidades que sao 20 mesmo tempo defeitos, A ambigiio, © citime, a inveja, a superstigio, 0 desespero esto em nds ¢ tao naturalmente alo- Jados que até nos priprios animais se encon ‘iam, Mesmo a crueldade, esse viele antinatu fal, habita em nds, pois paralelamente a ‘compaixao experimentamos uma volipia agri- doce, € doentia, ao espetculo do sofrimento 1 Teréncio, alheio: Sentem-na as proprias criangas: doce, durante a tempestade, contemplar 05 na- ios que lutam contra 0 furor das ondas?.” Quem extispasse o germe dos maus_senti- mentos do cora¢o do homem destruiria nele as. condigdes cssenciais @ vida. Da mesma forma, em todas as administragies existem cargos necessirios que slo abjetos, detestiveis. Os vicios ai tém sua fungao, ¢ servem para sol dar os diversos elementos da sociedade, como © yeneno se.utiliza na conservacao de nossa saiide. Se so desculpaveis, porque o interesse comum os exige, deixemos que os pratiquem 05 cidadios mais enérgicos, cuja vontade de salvar o pais leva ao sacrificio da honra © da consciéncia, como levava outrora herdis 2 sacrificarem a vida. Nés, mais fracos, fique- mos com os papéis mais faceis ¢ menos arr cados. © interesse piiblico exige que se traiae juemos em beneficio de individuos mais obedientes ¢ acomodaticios. Vi por vezes, entristecido, juizes provaca- rem a confissao de criminosos mediante pro messas de perdio, empregando para conven cé-los toda espécie de malandragens. Ter preferido que a justiga usasse outros meios que néo esses igualmente propugnados por Platao. Uma tal justiga segue caminho errado e preju- dica-se mais com tais ardis do que com a eri tica de seus censores. Reypondi ha tempos, a alguém, que teria grandes cscnipulos cm wair os interesses do Principe para servis um cidadao, mas que niio 08 teria menores em trair os de um cidadao em beneficio do principe. NiO somente detesio enganar, repugna-me também que 0s outros se engancm a meu respeito. Nio quero, portanto, dar-Ihes oportunidade ou razao para que se iludam, Por isso, nas negociagées de que fui encarregado junto a certos principes, acerca das divisdes, de matizes to diversas, que hoje ‘nos atormentam, tive sempre 0 cuidado de evi- tar que se cnganassem a meu respeito © me tomassem pela que mio sou. As pessoas da profissio? descobrem se 0 menos que poder ? Lucrécio. 2 Os diplomatas, 362 apresentam-se fingindo-se neutros e com idéias 10 proximas quanto possivel das de seus inter- locutores. Fu nio escondo minhas opinides, por duras que sejam, ¢ mostro-me como sou: um intermediario ingénuo ¢ inexperiente, antes disposto a fracassar do que a enganar. No entanto fui até agora tio feliz nesse papel, dependente sem diivida e em grande parte d sorte, que poucos homens intermediarios \erio side tio bem acolhidos ¢ acatados. Tenho um modo franco de tratar com as pessoas, ¢ que faz que desde os primeiros momentos lhes con quiste a confianga. A franqueza ¢ a verdade so ainda, apesar dos tempos, muito reeomen daveis. Além disso, ninguém suspeita dos que negociam sem intcresse pessoal, nem se forma: liza com a liberdade de palavras de quem, pode responder, coms Hipérides, aos atcnignses que se queixavam de sua franqueza: “Nao deveis dar importancia a minha liberdade de lirgua gem; cabevos verificar apenas se a uso em Proveito préprio,” Meu falar franco poupou me a suspeita de dissimulagio; primeiramente porque me exprimo com energia, io hesi- tando nunca acerca do que me cumpre cizer, por severo © duro que sefa (longe de meus interlocutores niio. me houvera condvzido diferemtemente); een segundo lugar por causa da ingenuidade ¢ da indiferenga sparentes que revelo. No que fago, vejo apenas o que me cabe fazer, ¢ niio modito de antemao sobre as consegléncias © resultados que me possam atingir. Meus atos visam a determinado objeti- acerte ou nid, terei feito 0 possivel. Nao tenho sentimento de 6dio nem de pro: funda afeigiio pelos grandes; minha vontade nao € influenciada nem pelo mau tratamento que me reservem nem pelas. obrigagécs. pes- Soais porventurs contraidas. Dedico a nosses reis a fidelidade que thes devo como eidadios Gio os procuro nem deles fujo- por interesse pessoal. Quanto a eausa que a maioria apsiae me parece justa, aplaudo-a com moderagio *, Ela no me apaixona. Nao the hipoteco toda a minha razio e a minha alma. A cdlera eo sdio nada tém a ver com a justica: sio paixdes a que somente podem entregar-se aqueles que do sabem obedecer sercnamente a razio ¢ a0 dever. porque ''s5 quem nao domina sua razio se abandona aos impulsos. desordenados. da alma*”. Todas as intengdes legitimas ¢ justas silo por si mesmas aceitaveis e moderadas, sem 9 gue se tomariam subversivas ¢ ilegitimas. Por isso ando por toda parte de cabega ergui da, rosto ¢ coragiio abertos. E, em verdade — nao temo confessi-lo —, em caso de necessi + Qcatolicismo em luta contra o protestantismo. * Cicero, MONTAIGNE dade acenderei de bom grado. como a velhinha do ditado, uma vela a Sio Miguel ¢ outra ao drag °. E seguirei o partido do direito até a fogueira exclusive, Que Montaigne? se arruine com a ulna do pais, se necesséirioz mas, se no for preciso, muito agradecerei a0 destino por salvé-lo; ¢ enquanto meu dever mo permite. you procurando poupalo, Nao se salvou Atico, que se ligara a0 partido da justiga, © fora derrotado, gragas i sua moderago, nesse cataclismo que se abateu sobre 0 mundo e pro- Vooou tantas ruinas? Semethante atitude, po dem-na assumir mais fusilmente as que, como +e, no ocupam cargos piblicos, Sou alfas de opiniéo que em tempestades como essas con vém nao alimentar ambigies e nfio se compro meter pessoalmente, Nao acho certo nem honesto, entretanto, quando as agilagdes subvertem o pals ¢ o divi dem, permanecer-se hesitante entre os parti dos, sem manifestar preferéncia ou simpatin nem por um nem por outro: “Nao sig isso seguir um caminko intermediirio, signi: fica nao seguir nenhum; significa aguardar os acontecimentos para acerit a quém se benefi- cie com 4 vitria®.” Isso pode ser aceitivel quando se trata dos negécios atheios: Gélon, tirano de Siracusa, indeciso acerca do partido 9 tomar na guerra entre ox birbaros e 0s gre- gos mantinha em Delfos uma embaixada chia presentes, incumbida de observar de que lado penderia o prato da balanca para, no momento oportuno, conciliar as boas gragas do vencedor. Em relagiio as coisas do propr pais, fora ato de felonia agir dessa maneira. & indiscutivel tomar partido, detiberadamente; entretanto, ndo se declarar quando nao se tem cargo nem comando, pareceme entio mais deseulpavel (embora nao seja mew caso) do que nas guerras contra os estrangeiros, nus quais as nossas leis permitem que niio partici pemos, Contudo, mesmo os que se compro Meter ativamente nas lutas intestinas podem fazé-lo com moderagio, de modo que a bor. fas¢a niio 05 atinja. Nao foi o que ocorreu com © Bispo de Orléans, Sr. de Morvilliers? Emre 6s qué trabalham com ardor pelo triunfo de sua causa, conhego muitos, dé genio © costu mes to ponderados. que espero ver sobrevive fem, quaisquer que sejam os resultados. Sé aos. reis cabe lutar com os reis, © acho ridiculo ‘essex individuos que se mete no que nao ¢ de sua algada, Nao € querelar-se pessoalmente com um principe, marchar contra ele corajosa * Uma vela'a Deus ¢ outra a0 diabo. Montaigne siz Sio Minuel, nds nos referimos om geral « Sho Jonge. (N. do T.) ” O castelo de Montaigne, * Ti Livio. ENSATIOS— Iti 363 € abertamente, se assim 0 exizem # honra: 0 dever; em tal caso, mesmo que no nos apre- ie, ele nos estima; e quando o fazemos cm de- fesa das leis ¢ da ordem, mesmo os que a per- turbam por motivos particulares desculpam quem as defende; e respeitam-no. Mas no devemos denominar “dever”, como © fazemos diariamente, esse encarni¢amento essa rudez que engendram as paixdes € os inte- resses, nem devemos considerar corajosa uma condula prenhe de traigies € crueldades, Os que 0 fazem, chamam zelo a seus apetites de violéncia; nao é a causa que os guia, mas sim © interesse: atigam a guerra pela guerra ¢ no porque scja juste. Nada impede que inimigos leais se condu vam de maneira sensata.Tratemos todos com igual moderagio, senio com idéntica aleigao — pois esta pode realmente variar — e rao nos dediquemos a ninguém a ponto de the dar 9 direito de tudo exigir de nés. E contentemo- nos também com a boa vontade discreta de tuns © de outros; procuremos navegar nessas Aguas turvas sem, entretanto, nelas querer pescar. Quanto a se oferecer com paixio a uns ¢a outros, & coisa mais impudente ainda do que inconsciente. Pais no pode quem nos acolhe, ainda que nao o demonstre, confiar inteira m mente em nés. Sabe muito’ bem que as como traimos alpuém para aderir a ele, ta bém 6 trairemos oportunamente. Hi de consi- derar-nos detestaveis, embora utilize nossa deslealdade em beneficio proprio. As pessoas de duas caras so dteis pelo que wrazem, mas.é preciso estar de atalaia para que levem o menos possivel. Nada digo a unl o que nio possa dizer a outro, mudando tiio-somente de tom; 96 Ihe: comunico-as coisas indiferentes ou conhecida: ou que sido dteis a ambos. Nada me leva a Mientis, Se algo me & confiado em segredo, no calo-e religiosamente, max 35 accito que ne digam 0 minimo necessirio. Os segredos dos Principes so ineGmodos para quem no quer servir-s¢ deles, Por isso, em geral, oferego-lhes © seguinte: que me confiem pouca coisa mas que se fiem em tudo 6 que Ihes iraga, Sempre vim a saber mais do que desejara. Uma lingua- gem franca incita os outras a procederem de igual modo. £ como o vinho eo amor. ‘A meu ver, Filipides respondeu com sabedo- fit ao Rei Lisimaco que the perguntara 0 que queria saber da situagao: "0 que quiseres, con- quanto nao scjam segredos teus™. Ha quem se revolte quando Ihe escondem o fundo da ques- tao que the cumpre tratar, ou quando nic he revelam algum sentido especial; eu, ao contrd- tio, gosto de que me comuniquem exatamente © necessario ao desempenho da misséo, pois receio que, em sabendo mais, seja forgado a controlar-me. Se devo contribuir para enganar alguém, que minha consciéncia, ao menos, nao se perturbe. Nao quero que me considerem tio absolutamente leal que me obriguem a partici par de uma traigio. £ desculpivel que nao fagamos pelos outros aquilo que nao estamos dispostos a fazer por nés mesmas. Ha prinei- Pes que nao aceitam homens assim e despre zam os servidores que estabelecem limites & obediéncia. A esses, digo-Ihes desde logo até que poate Ihes posso servir, pois entenda niio ser escravo sendo da raza, ¢ ainda, assim mal © consigo. Quanto a cles, érram em exigir tal submissio de um homem independente, im- pondo the obrigagdes como fariam a um escra: vo, 00 a alguém cuja fortuna a deles se ligasse de maneira absoluta. Pouparam-me as leis graves dificuldades; indicaram-me o partido que me cumpria tomar, apontaram-me 0 meu chefe; quaisquer outras razées, por clevadas que sejam, cedem lugar Aquelas ¢ se tormam cadueas; cis por que, ainda que meus sentimentos me impelissem Para o partido contrdrio, a ele nao me filiaria imediatamente. Nossa vontade e€ noxsos dese- Jos sé a cles mesmos abedecem, mas nossos ‘Mos devem atentar para as leis que regulam ¢ resguardam a ordem pil Minha maneira de agir é algo diferente da habitual ¢ nao tcria posuibilidade de grandes (os nem de durar muito; a propria inocéncia ndo poderia, cm nossa ¢poca, dispensar a dissi- mulagao, nem negociar sem mentir. Dai nao serem 03 cargos pablicos do meu agrado; ¢ ao que a csse respeita exige de mim a minha profissio, atendo do modo menos oficial possi- vel. Quando Jovem, enfiaram-me na vida pi blica até as orelhas; meu destino era fazer car- reira, mas desde cedo me desvencilhe! dos encargos. Posteriormente evitei, mais de uma vex, meterme novamente nisso, «) de raro em raro_aceitei alguma missiio, sem de resto a desejar. Sempre fugi a ambi¢ao, mas, embora nio 0 fizesse como as remadores que avangam de costas para a meta, tive a meu aleance va rias oportunidades, c, se consegui evitar maio. fes compeamissos, devo-0 antes a sorte do que resolugdo, pois ha na vida piblica caminhos que me ugradariam bastante e diante de uma boa situagio na sociedade talvez nao desse mais ouvidos a voz da razao. Os que, contra 0 que afirmo, vio dizendo que essa franqueza, ‘essa simplicidade ¢ essa ingenuidade que apre- 60 no passam, no fundo, de artificio ¢ esper- leza; que se trata mais de prudéncia que de dondade, mais de habilidade que de tendénc natural, mais de bom senso que de sorte, muito 364 me honram, Emprestam-me mais asticia do que me caberia reivindicar: ¢ daria garho de causa a quem me seguisse ¢ vigiasse caso no verificasse que ndo ha regra capaz de regular gestos € atitudes tdo naturais, vem de manter uma independéncia ¢ inflexibilidade tao cons- antes por caminhos to diversos. E sc nao conviesse em que todo o seu engenho cuida- do no 0 constguiriam tampouco. © ¢aninho da verdade € um 36, € simples; 0 que nosso inceresse pessoal c 0s negocios alheics nos ‘obrigam a seguir € toruosa, de tado. Vi muitas vezes quem se utilizasse artifi cislmente dessas qualidades, nunca porém com grande éxito. E sempre me lembrej, em tais circunstancias, do aso de Esopo. que que- tendo rivalizar com © cio pés alegremente as Patas sobre os ombros do dong, Mas. ao passa que 0 cio era recompensado com carinhos, reeebeu 0 asno boas bastonadas: “O que me ihor vai a cada um é 0 que Ihe @ natural®.” Mas seria desconhecer a realidade nao dar a malandragem 0 mérito que the cabe; sei que nio rato presta sérvigos ¢ & necessiria em mais de yma ocasido. Ha defeitos licitos como ha boas agies ilicitas. ‘A justiga om si, em sen estado natural, ¢ uni ‘versal ¢ tem regras diferentes ¢ mais elevadas do que essa justiga especial, nacional © condi- sionada as necessidades dos governos: “Nao temos modelo slide ¢ positivo do verdadeiro direito ¢ da justi¢a perfeita; temos apenas uma imagem dela, uma sombra'®.” © sibio Dandamis, ouvindo © relat das vidas de Séerates, Pit&goras ¢ Diogenes julga- vavos grandes homens, mas demasiado escr4- vos das leis que a verdadeira justiga nie pode i jar. seni abdicando a rigicer de cipios cssenciais, pois nio somente as leis permitem atos condendveis eomo também ‘NOS incilam a cometé-los: “Ha crimes autori- zados pelos editos do senado e por plebisci- tos''." Quanto a mim, emprego a linguagem comum, distinguindo as coisas dtcis das hones- las, ¢ qualificando como desonestes ¢ indecen- les certos atos naturais, nao. apenas Gteis mas necessarios. Voltemos a traigio. Bois pretendentes disputavam © reino da ‘Tracia. Proibiu-os o imperador de 0 reivindi- earem pelas armas, Um deles entio, fingindo desejar um acord) amigavel, con adversario para uma festa, e.0 mandou prender © matar. Ordenava a justicn que os romanos punissem o malfcitor. Max era dificil reeorrer * Cicero 10 id 1 sBneei. MONTAIGNE ais vias legais e resolveram conseguir, pela teai- Gio, 0 que legitimamente nfo se fizera sem sorrer o risco de uma guerra. Eo que nao puderam realizar honestamente, obtiveram-no pela manha, através de um tal Pompinio Flaco, @ qual, com promessas ¢ lisonjas, atraiu © pretendente assassino, e, em lugar de hoaras ¢ favores, remetcu-o preso para Roma. Um traidor é por outro traido. o que nao é comum, entretanto, porque so os traidores em geral muito desconfiados © dificilmente se sur- precndem com subterfigios que estio habitu: dos a empregar. Comprova-o a fatal expe- rigncia que acabamos de ter’. Esse papel de Pompénio Flaco, desempe nhe-o quem quiser. e muitos o ho de querer. Minha palavra ¢ a confianga que possa inspi- Tar pertencem, como tudo o que ha em mim, @ minha comunidade: no admito que duvidem isso, mas axsim como responderia a quem me mandassse tomar 2 diree’o do paldcio da justi- a: “nao cntendo do riscado”; assim como ia a quem determinasse que assumisse a chefia dos sapadores: “fui feito para exercer argo mais elevado”; a quem quisesse, em vista de uma tarefa de certa importinein, ‘empregar-me em mentir e trair, ainda que sem assassinar ou cnyenenar, observaria imediata: mente: “prefiro as galeras™. Ha sempre possi bilidade, com efeits, para un homer de honta, de falar como ox laeedeménios a Antipater (que acabara de vencé-los): “Podercis impor- nos ax penas que quiserdes, tarcfas que nox esmaguem e prejudiquem, mas perdereis vosso tempo exigindo de nés coisas vergonhosas ¢ desonestas.” Devemos jurar a nds mesmos o que 08 reis do Egito exigiam de seus juizes: que nio se desviariam nuaca do que thes ordenasse 4 consciéncia, ainda que recebessem instrugdes: do proprio soberano. A tais tarefas prende-se um stigma evidente: quem no-las impae jf nos julga de antema, Impondo-nos o encargo, impoe-nos um castiga, E noses proprivs inte- esses sofreriio com isso. na medida em que lucrario os da coletividade. Quanto maior cficiéncia demonstrarmos em nossa agio, maior prejuizo pessoal tiraremos dela, nao sendo de espantar que ainda nos arruine quem nos haja atribuido a tarefa; ¢ o julgario justo, por certo. Se casos ha em que se possa desculpar a traigdo. diro respeito sem divida A que se emprega em punir um traidor. Vemos muitas vezes a perfidlia punida por aqueles a quem cla beneficiara. Todos conhecem a sentenga de '2 No se sabe exatamente a que alude Montaigne. Provavelmente aos fatos ecorridos na noite de Sio Bartolomeu, (N. do T.) ENSAIOS — 11 365 Fabricio contra 6 médico de Pirro. Ocorre também que quem a ordena castigue ele pro- prio o executante, como que Ihe denegando srédito ¢ poder, ¢ profligando to passiva ¢ eovarde obediéncia. Jarolpec, duque da Ris- sia. obtivera de um fidalgo hingaro que traisse Boleslau, rei da Polonia, adormecendo-o ou dando aos russ0s os meios de Ihe causar gra- ves prgjuizos. Q traidor agiu com habilidade, conseguindo granjear a amizade do rai ¢ tornando-se seu conselhairo'e confidente. Gra- Gas @ confianca assim alcangada, aproveitou- se oportunamente da auséncia de seu senhor para entregar ao inimigo a rica cidade de Vasi« Keia, a qual fol inteiramente saqueada c iucen diada, tendo tido morte violenta seus habitan- tes de ambos os sexos e de qualquer idade, bem ‘como numerosos fidalgos das viainhangas, que © hiingaro reunira para o fim visado. Jarolpec, depois de se vingar e aplacar uma justa cdlera (Boleslau fizera o mesmo com ele), jé sem pai xo e encarando 0 feito com serenidade, sentiu tamanho remorso e vergonha que mando vazar os olhos, cortar a lingua ¢ as partes geni tais do traidor. Antigone persuadira os argiraspides a the entregarem Fumenes, seu chefs, Mal acadou de executitto, arvorou-se em agente da jusiiga divina a fim de punir tao detestivel velhsco: ssereveu ag governador da provincia intiman- 0-0 a prender 03 que haviam cometido a trai gio e 4 extermind-los de qualquer mancira, E nenhum deles em verdade jamais reviv a Macedénia. Julgava-os, assim, tanto mais merecedores de custigo quanto melhor o ha viam servido, © eséravo que revelou 0 esconderijo de P. Sulpicio, seu amo, foi libertado por Sila de acordo com a promessa feita, mas este, a fim de dar uma satisfagio & opinigo publica, man- dou que. embora livre, o jopassem do altc da Rocha Tarpéia. Clovis, um de nossos reis, em lugar das armas de ouro que prometera aos traidores de Canacre, mandou enforcé-los. Fizeram-no, Pendurando-Ihes ao pescogo uma bolsa com a recompensa do crime. Assim, embora ¢um- prindo fielmente sua promessa, dava satisfagio 4 opinido saberana do povo. Maomé, descjoso de sc desfazer do irmio, que aspirava igualmente ao trono, empregou um de seus ofieiais, o qual afogou a vitima, obrigando-a a ingurgitar enorme quantidade de agua. Cometido o crime, Maomé entregou 0 assassino 4 mae do morto (cram irmios somente por parte de pai), Esta, em sua presen- ga, abriu © peito do criminoso, arrancando-Ihe © coragio que jogou, ainda palpitante, 205 caes. E’reconfortante, mesmo para os que so alimentam maus sentimentos, potler ligar a ago abominivel, cujo fruto colheram, um trago de bondade ¢ justia a fim de aliviar a consciéncia do peso de sua cumplicidade: tamlo mais quanto, sentindo nos executantes Juma censura possivel, procuram abafila e apagar com a moric a prova de sua propria participagio. Supondo ainda que se recom- pense o traidor, quem o faz nao deixa de o jul- gar cxecravel ¢ maldito, ¢ mais miseravel do que o julgaria o préprio traido. pois sabe perfeitamente o que vale tal individuo, c, se 0 emprega, encara-o como esses pobres homens de que se vale a justi¢a nas penas capitais ¢ uc 30 to dieis quo desprezivels, Alem do ‘que tém de vil, essas missGes nos desonram. A filha de Sejano que, segundo a legislacao romana, no podia ser exeeutada por ser ainda virgem, foi deflorada antes pelo Carrasco; ater dia-se dese modo 4 letra da lei. A profissio gue esse homem exercia exigiu dele, em seme. thante circunstancia, que emporcalhasse a alma, Amurat 1. no intuito de agravar a pena imposta_a seus siditos que tinham sustentado 8 rebelii de seu filho © s¢ haviam tornado Cimplices da tentativa de parricidio, ordenou que os mais préximos parentes dos condena dos auxiliassem pessonimente a execugao. Alguns, © que acho muito digno, preferiram ser considerados cimplices de um delito come- Lido por outrem a se tornarem culpados da vi- leza de justicar os proprios flhos. Em algumas choupanas tomadas de ussalto em nossas guer ras civis, tive a oportunidade de ver individuos que, para salvar a pele, concordavam em enforcar os companheiros: seu destino pare ceu-me bem mais lamentivel que o dos enforcados. - Dizem que Witold, principe da Lituinia, decretou que todos os condenados & morte se Matassem a si préprios, pois no achava justo obrigar um inocente ® cometer semelante crime: O principe que por uma circunstineia qual- quer ou acidente inopinado se vé forgado a Fal lar a sua palavre ou a desprezar o seu dever, deve encarar tal necessidade como uma prova imposta por Deus. Nio se trata entio de um defeito; sua razdo vé-se constrangida a ceder diante de outra mais poderosa; mas trata-se de uma desgraga, A alguém que indagava como remediar a isso, respondi: “E impossivel, se realmente © principe se encontra nessa situa- qo” (“que nfo procure pretextos para ser perjuro®"); precisa fa28-lo, mas se 0 faz sem Que isso the custe, & sinal de que tem a cons- ciéncia carcomida. Se surgisse alguém, tao "2 Cicero, 366 cscrupuloso que nenhuma necessidade the Pparecesse justificar o emprego de tio violento. remédio, eu o admiraria ainda mais, pois nie & possivel perder um reino de maneira mais desculpavel ¢ honrusa. Nao podemos tudo, por isso € preciso nao raro ventregar aos ctus o governo de nosso barca, porque a iltime possi bilidade de salvagao esta na protegio divin: Haver necessidade que mais justifique 0 apelo de um principe? Havera coisa mais impassivel para ele do que aquilo que $5 pode realizar a expensas de sus honra? Esta deve ser-Ihe mais cara do qué a propria vida ¢ a vida de sew povo. Portanto. se cruzar os bragos ¢ invocar 1 bondade divina, sem divida se vera atendido, em sendo sua causa justa. Mas tal cxemplo & Bor cero perigoso poraue fiz excegao as re @ras naturais. E normal, pois, que ceda quando preciso, mas que se modere onto. Newham Interesse particular mas (@o-somente 0 inte- esse piblico deve levar-nos a violentar assim nossa consciéneia; assim mesmo quando per: foitamente definido. As as de Timolek por ter morta o tirano. seu iemao, justifiea Tam-no perante 0 povos feria-the a conseléncia ter de atender ao inleresse coletivo a expensas de sua honra ¢ retidao. © proprio Senaco, que assim recuperava a liberdade, nfio ousow Pronunciar se aeerca de um gesto de tio gran de importincia. Os siracusanos chegaram a propssito para solicitar a protegio dos corin: tlos ¢ o envio de um chefe capaz de devolver cidade seu antigo explendor, purgando aSicilia da opressio de varios tiranetes, O Senado mandou-Ihes Timoledo e propis-the © seguinte trato: se se saigse bem da empresa, a sentenca ser-the-ia favoravel, levando:se em conta ape- nas a libertagio do pais; se nao tivesse éxito, julgi-loiam como assassino do imac. singular devisio explica-se pela gravidade do alo © © perigo de semelhante precedente. Raziio tiveram os corintios de nao confiar de imediate em seu proprio julgamento, ¢ de aguardar novos motivos para justificar a sen- tenga final. A conduta de Timoledo mosirou bem depressa o que se devia pensar dele, pois. foi muito digna sob todos os aspectos. A felici- dads com que se houve parecia ter-Ihe sido. Outorgada pelos deuses favoriveis & sua absolvigao. O fim visado por Timotedo desculps-the 0 aio na medida em que pode ser desculpada, Mas 6 beneficio que auferiu o tesouro, ¢ foi a razao de agir do Scnado na circunstancia que you relatar, niio bastaria para absolvélo da injustiga que cometeu em outra historia menos limpa.’ Certas eidades haviam resgatado sua liberdade, © isso fora ratifieado pelo Senado. Com a morte de Sila, porém, revogon se a MONTAIGNE decisio, ficando clas novamente sujeitas a contribuigées ¢ taxas e nio thes sendo devol- vida a soma despendida com o resgate. As guerras civis produzem com frequéncia exem- plos coma esses. Castigamos os cidadaos por terem acreditado em nés quando éramos dife- rentes do que agora somos; 0 magistrado obri- gado a mudar de orientagao aplica a pena a quem nada tem com isso:-0 professor agoita 0 aluno por ter sido décil demais, ¢ o guia mal- trata 0 cego. Linda imagem da justiga! Ha regras falsas e muito elasticas na filoso- fia. © exemplo sepuinte que nos. propsem, ‘como um caso em que o interésse particular prima sobre a palavra empenhada, nao me pa- rece com suficiente autoridade, dadas as circunstincias a que s¢ pretde. Suponhamos Que bandidos se apoderem de nés e nos devol- vam a liberdade depois de nos obrigar a jurar que thes pagaremos determinada importincia, Deve-se sustentar que, uma vex libertado, um homem de bem se ache dispensado de cumprir sua promessa? No. O que o temor me fez aceitar, devo continuar a aceiti-lo quando nada mais tiver a temer. E, ainda que esie temor me houvesse constrangido a dizer 0 que minha vontade aio desejava, devo cumprir a palavra empenhada, Quando me ocorreu, oeasionalmente, ir além de meu pensamento, sempre tiye o maior escripulo em niio me des mentir. De outro mode, a pouco © poucn, acabariamos por abolir quaisquer direitos de terceiros, baseados em promessas e juramen. tos; “como se a violéncia pudesse influir na desisio de um homem de cariter' *”, $6 no éaso de havermes prometido algo injusto ¢ mau em si,€ que o interesse particular pode ser invocado como deseulpa, pois os direitos da virtude precisam sobrepor-se a quaisquer ou- tos, Cologuei Epaminondas entre os homens mais eminentes; ndo volto atrés, pois ergucu Muito allo 0 que considerava seu dever pes: soal. Jamais matou um veneido: nunea, ainda que fosse para libertar seu pais, houvera climi nado um tirano ou seus cimplices scm ser Pelos meios legais; ¢ julgava perverso. quem io poupasse 0 amigo porventura militando nas fileiras inimigas. Rica cra sua alma, pois ras mais violentas ¢ rudes ages humanas per- manecia bom ¢ generoso; ¢ isso nas condigoes mais delicadas previstas pela filosofia. [ssa eoragem tio grande, essa tcnacidude © resis Kéncia @ dor, a morte, & pobreza, foi por arte ou Kemperamento que a alcangou, agrcgando- thes a dogura ¢ « bondade? Coberto de sangue, ‘obstinadd sab os golpes, enfrenta e vence urs 1 Clee nagio_que ninguém vencera; € em plena bata tha evita ferir 0 amigo! Senhor to indiscutivel da guerra que a forgava a inclinar-se ante sua bondade, ¢ isso em meio aos maiores horrores, na excitagdo dos combates, e do estrondo das armas! E milagroso introduzir em agoes dessa ordem uma imagem da justi¢a ¢ somente pelo Figor de seus principios péde Epaminondas associii-las & dogura é & pratica dos bons cos- tumes, da tolerancia ¢ dz mais pura inocéncia. Enquanto uns afirmam que “os tratados nada mais valem quando se pega em armas”,e ou- ttos ainda que o “ruida das armas os impede de ouvir a vor das leis", Epaminondas ouve até a da simples cortesia. Aprendera a sacrifi- sar is musas a caminho do combate, a fim de atcnuar pela dogura ¢ alegria que elas inspiram a fliria e 08 rigotes do guerreiro. Aprendamnos, pois, com tio nobre modelo, a pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitide & que o interesse geral niio deve tudo seivin- icar em detrimento do interesse particular: “O direito privado nao deve ser alvidado em melo as dissensées pablieas' ».” “Nao haforga ue nos possa levar a infringir os direitos da amizade’ ©.” 144 coisas que um homem de bem nao faz nem em defesa do rei, nem em defesa da ordem ¢ da lei, “pois a patria nao destrdi todas os deveres, e a ela prépria convém ter cidadios que honrem seus pais’ ’”. Parcce:me 9Portuno aprego.i-lo em nosso-tempo, Nio nos agradam os principios exclusi vistas; nfo € necessirio. que encouracemos Hossas almas como fazemos com nosso corpo; © que nossas penas malhem na tinta e nio no sangue. Se a maior virtude consiste em despre- zar a amizade e as nossas obrigages em faltar @ palavra ¢ ignorar os lagos de parentesco em beneficio do bem comum ¢.em obediéncia & lei, ha de justificar-the a auséneia 0 fato de nao a ter assim considerado o grande Epaminondas. Abomino a violéncia daquela alma em del rio que clamava: “Enquanio a espada estiver desembainhada expulsai a piedade de vossos soragdes: que @ priépria presenca de vossos pais nas fileiras inimigas ndo vos atemorize: golpeai as cabecas veneraveis’®.” Soneguemos 03 perversos, aos sanguinarios ¢ traidores, ‘ease pretexio para se entregarem a seus instin- tos; desprezemos essa justiga excessiva ¢ aten- temos para exemplos mais humanos. A esse Fespeilo a época ¢ 6 exemplo podem muito. Na guerra contra Cina, um soldade de Pom peu matou, sem querer, o irmio que combatia nas fileiras inimigas. E suicidou-se em seguida, de vergonha ¢ desespero. Entretanto anos depois, em outra guerra civil, um soldado que matara o irmao pediu uma recompensa a seus chefes. € um erro julgar a belcza ¢ a grandeza de uma agio pela sua utilidade ¢ imaginar que devemos fazer ¢ considerar honesto tudo o que é Util: “Nem todas as coisas convém igual: mente a todos" *.” Vejamos a mais necessiri ‘til ao género humano: 0 casamento, Nao acham o8 santos mais honesto evité-lo, repro- vando assim o mais respeitével dever dos homens? Pela mesma razio mandamtos para o haras, como teprodutores, os animais que menos apreciamos, "8 Tito Livio, Ovidio, " Lueano, "7 Cicero 1 Propércio. CAPITULO I Do arrependimento Outsos autares t8m como objetivo a educa: io do homem:; cu o descrevo. E 0 que assim apresento ¢ bem mal conformado, Se o tivesse de refazer, faria-o sem davida bem difer:ntc. Acontece que ja esté feito, Os trages deste seu Fetrate so fiéis, embora variem € se diver quem. O mundo & movimento: tudo nele rauda continuadamente; a terra, as montanha: do Caucaso, as pirdmides do Egito, wdo participa do movimento geral © do seu proprio; © a imobilidade mesma nao Passa de um movi- mento menos acentuado. Nao posso fixar 6 ob- Jeto que quero representar: move-ne e titubeia como sob o efcito de uma embriaguez natural, Pintow como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformagdes sucessi ‘vas, néio de sete em sete anos, como diz 0 povo que musiam as coisas, mas dia por dia, minuto Por minuto. E pois no momento mesmo em que © contemplo que devo terminar a descri 40; um instante mais tarde nao somente pode: ria encontrar-me diante de uma fisionomia

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