You are on page 1of 8
ecard) Via Lactea uando olhamos para um céu escuro vemos estre- las por toda a parte, mas talvez vocé ja tenha no- tado uma faixa mais bri- Ihante, um pouco esfumacada, que passa pela constelagao do Cruzei- ro do Sul e bem perto das faro- sas Trés Marias. Se vocé tiver a sorte de observar o céu noturno longe da poluigdo luminosa das grandes cidades, verd essa faixa ainda mais marcante e percebe- r que ela ¢ formada por muitas su, chama- 18 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 da de Via Lactea, corresponde & regido de maior concentragao de is que compiem nossa Hé cerca de 100 anos, a Ga- laxia era tida como todo o Uni- verso: tudo que era observado su- postamente estava contido den- tro dela. Porém, a partir da segun- da década do século XX, os astrd- nomos descobriram que ela é a- penas uma entre bilhdes de ou- alaxias também compostas principalmente de estrelas, gai poeira e matéria escura. Todos es ses componentes podem ser estu- dados individual e coletivamente para descrever a histéria de for- macio das galaxias. Em particular, as estrelas car- regam a meméria do local onde se formaram em sua composigéo quimica e, as vezes, em sua érbi- ta. Essas propriedades nos dao pi tas sobre a sua origem e a qual componente galactica elas perten- cem. Os parémetros orbitais sao obtidos a partir do estudo da érbi- ta da estrela ao redor do centro da nossa Galaxia, Alguns desses parametros sdo mais diretamen- te entendidos. A excentricidade ‘SEGREDOS DA VIA LACTEA orbital indica o quao distante de um circulo é a érbita da estrela ao redor do centro da Galaxia; a diregao de rotacdo mostra se a es- trela segue a rotagao do disco da Galdxia ou se move retrograda- mente; e, por fim, a altura maxi- ma mede o quanto a estrela se afasta do plano Galdctico. Essas caracteristicas mudam de acordo com a componente galactica. As estrelas que nasceram no disco vio ter érbitas majoritariamente progradas, praticamente circula- res e com pequena excursdo além do plano galactico. J4 as estrelas pertencentes ao halo estelar (cha- maremos apenas de halo) ou cap- turadas de outras galaxias podem ter orbitas retrégradas, extrema- mente excéntricas e que se afastam significativamente do plano ga- lactico. Um outro ponto importante é que as galaxias evoluem quimica- mente, por sucessivas geraces es- telares, através da formacao de elementos quimicos no interior das estrelas. As estrelas que nao evoluem rapidamente — de for- ma geral aquelas menores e mais frias —, mesmo apés bilhdes de anos, quando estio distantes e dis- persas do local onde foram for- madas, mantém a composicio qui- mica do local onde se formaram. Assim, se analisarmos uma gran- de quantidade de estrelas, conse- guimos discriminar as populagdes estelares de blocos constituintes da Via Lactea, como 0 disco, 0 bo- joe o halo. Dessa forma, através REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 | 19 Pagina dupla Via Lactea (Crédito: Florian Kurz/Pixabay). SEGREDOS DA VIA LACTEA Acima Na visto clissica, nossa GalAxia 6 classificada como uma galaxia espiral barrada e possui trés, principais populagoes estelares: um disco com 60 mill anos luz de raio e uma altura média de 400 anos luz; um bojo estelar localizado na regio central eum halo estelar difuso com uma extensao de cerca da composigao quimica da estre- la, podemos identificar sew local de origem e distinguir populages que so da Via Lactea daquelas que sofreram fusdo com ela. A partir da segunda metade do século XX, propriedades orbitais e quimicas de estrelas da vizinhan- ca solar ja permitiam concluir que a Galaxia se formou quando enor- fde-650 mil anosluz! Duas Mes nuvens de gas e poeira co- galéxias satélites da lapsaram sob a forca da gravida- Galéxia, a5 Nuvens de de, Segundo modelos de colapso Magalndes sdoconhecidas gravitacional, este evento pode- ria vir a formar as principais es- truturas da Galaxia: 0 disco, o halo € 0 bojo. Isso teria acontecido ha quase 14 bilhdes de anos. E no halo onde grande parte das estrelas mais velhas se encon- tram e, por isso, onde a histéria do inicio de nossa Galaxia 6, de certa forma, melhor contada. No entanto, estudar 0 halo é como montar um quebra-cabecas, uma vez que ele é um componente es- telar muito esparso e muito es- tendido, Mas trata-se de um que- bra-cabegas do qual cada pega conta uma histéria diferente. Por isso varios astrénomos encontra- ram lacunas na proposta simplis- ta do colapso gravitacional de u- ma nuvem de gas, No universo local, ou seja, nas galaxias mais proximas, astréno- mos ja observavam que as galé- xias passam por constantes pro- cessos mais violentos de fusdes ou “canibalismo galactic”. Sabe- mos que nossa Galaxia passaré por um evento dessa natureza da- quia alguns bilhdes de anos com Andrémeda. Isso decorre do gra- dativo movimento de aproxima- gao entre elas. Podemos também. antecipar que futuramente as for- gas de maré galactica levarao as, Pequena e Grande Nuvem de Ma- galhaes, visiveis ao olho nu no He- misfério Sul, a colidirem com a Via Lactea. Chamamos de acresaio o fend- meno pelo qual uma galéxia mai- or incorpora ao seu inventario o contetido de uma galaxia satélite, Popularmente, a acrecao é conhe- cida como canibalismo galactico. Além das evidéncias observa- cionais, simulacdes de formagdo de estruturas do Universo indi- cam que acregdes sao especial- mente comuns nas primeiras eta- pas do processo de formagio ga- lactica, Sera ent3o que podemos identificar que a Via Lactea pas- sou por processos semnelhantes? Acrecoes antigas e atuais A primeira evidéncia de que nossa Galaxia passou por proces- sos de acregdes de galaxias lites foi a descoberta do niicleo re- manescente da Galaxia And Elip- tica de Sagitario em 1994, A rela- tiva proximidade dela sugeriu que poderia estar sendo gravitacional- mente dissolvida pela Via Lactea. A confirmago desse fendmeno e consequente descoberta da mais evidente — e a mais extensa estrutura do halo galdctico veio da distribuicao espacial de estre- las gigantes M: aquelas presentes no halo estao preferencialmente dispostas em uma grande corren- te, chamada "corrente de Sagit rio, que sé foi encontrada em 2003, Acima [As galaxias NGC 4038 e NGC 4039 em processo de fusio (Crédito: NASA, Hubble. gracas ao mapeamento da Gali- ‘xia em luz infravermelha. Desde sua descoberta, foram i- dentificadas cerca de 60 corren- tes estelares em nossa Galaxia e, aparentemente, ha muitas outras para serem descobertas, a partir de observagdes que conseguem detectar estrelas menos lumino- sas e/ou mais distantes de nds. A busca por tais estruturas se popu- larizou devido sua importéncia pa- Correntes estelares Sao formadas quando um galaxia ana ou o aglomerado globular passa a interagir com uma galaxia de massa consideravelmente maior (por exemplo a Via Lactea). A forca ‘ravitacional da Galéxia iré perturbar a estrutura interna através de forgas de maré, fazendo com que as estrelas sejam arrancadas. Esse processo ocorrerd até que a galéxia ana ou 0 ‘aglomerado globular seja completamente destrogado e orbitando a galaxia de maior massa. Como as estrelas se depositam ao longo de uma érbita, a0 aspecto filamentar, dessa distribuicdo de estrelas foi dado o nome de corrente estelar SEGREDOS DA VIA LACTEA Latitude Galactica © 1 -Sagitarus +23 © 2-Acheron + © 3-ACs. 5 4 Aliga_Uma 26 © 5-Alpheus 7 + 6 ATLAS. +8 S7-cetus +29 © 8-Chenab : 0 © 8 Cocytos +n © 10- Corvus +R n1- ees 2 12- Equi ou 13 eridamus 38 © 14 Fimbulthul 36 15- Form me © 16 Gaia 8 © 17-Geie2 +38 18 -Gaia-d +40 © 19: Gsie-a at 20- Gals 2 © 21-601 13 22 Gill 4 ‘Acima Distribuigao espacial em coordenadas galdcticas das correntes estelares atualmente conhecidas, Figura feita utilizando 0 pacote GalStreams. -75* Longitude Galactica Hylus 46- PS. Indus 6 a7 SLE Jet 48 Ravi Jum +49: Sangarius Kwando 80+ Scamander Leipte, 51- Sie Lethe © 52- Styx = Molonalo © 53-Su0l Murrumbidgee = 54 Sylar NGcs466 655 TPis ophiucrus © 36: Tuconat Orinoco + 87-Turtio Orphan © 38. Turanbuera pans 59 Wambelong als + 60-wel Pandas = 62-wG3 Phlegetnon + 63-wos Phoenix 64 Wika Yoku PLA + 65-Yigr Psi. ra diversas questdes como a quan- tidade de matéria escura da Ga- laxia que pode ser estimada wma ‘vez que a distribuicao espacial e dinamica das estrelas das corren- tes estelares dependem da massa e do formato do campo gravita- cional da Galaxia. Além disso, o ntimero de correntes estelares e sua natureza servem para auxi- liar a compreensdo da histéria da formagao da Galaxia a partir 22 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 do mimero de eventos e de quan- do ocorreram. Finalmente, a com- parago do ntimero de estrutu- ras e galaxias satélites observa- das com aqueles preditos em mo- delos ajudam a refinar os mode- los de simulagdes cosmolgicas. ‘As mesmas buscas que levaram A descoberta de uma enorme quantidade de correntes estela- res, permitiu identificar, até ago- ra, que a Galaxia tem mais de 50 galaxias satélites, das quais a Pe- quena e Grande Nuvern de Maga- Ihdes so as maiores, que ainda orbitam nossa Galéxia mas que nao foram destrogadas. Essas pe- quenas galéxias também trouxe- ram respostas em relacdo a for- magao do halo e as predigdes te- Gricas, para pequenas escalas, re- gime no qual 0s modelos de ma- téria escura fria, tao adequados para explicar a formagdo de es- truturas no Universo em grande escala, apresentam discrepancia em relagio aos dados observados. ‘Até entéo, falamos sobre corren- SEGREDOS DA VIA LACTEA. tes estelares e galdxias ands que formam a parte mais externa do nosso halo galactico. Apesar de tantos objetos que foram e esto fem processo de fusio, a contri- buigo total de massa estelar néo chega a 1% de toda a massa este- lar da Via Lactea, Sabemos que 0 maior evento de coliséo da Via Grandes levantamentos espectrosc6épicos ‘Ao invés de usar um telescépio para observar uma estrela por ‘vez, nesses grandes projetos, 0 telescépio é equipado com instrumentos que permitem observar centenas, e por vezes milhares, de estrelas ao mesmo tempo. Isso permite que em alguns meses, obtenha-se dados com boa precisao e caracteristicas espectroscépicas de algumas centenas de Lactea também esta por vir com Andrémeda. No entanto, na tlti- ma década, gracas a grandes le- vantamentos espectroscépicos, fo- ram-se acumulando diversos in cios sobre 0 que pode ter sido 0 maior evento de acrecdo que aconteceu em toda a histéria de nossa Galaxia. Com o advento da missdo Gaia, foi finalmente con- firmado que, durante seus primei- ros trés bilhdes de anos, ou seja em sua “infancia’, a Via Lactea passou por um processo de fusiio com uma galdxia and que tinha entre 10-25% da massa total da Galaxia aquela época! Este even- tenets CEC) Aestrela v Indi, na constelagao do OME eee eee eto estrelas do disco que foi Penne ccs Cee ers eee ra ae ed milhares de estrelas. to foi téo significative que, além de formar o halo estelar local, per- turbou gravitacionalmente o dis- co que estava ainda em processo de formagio, Esta perturbagio fez com que as estrelas do disco ga- nhassem mais energia, fazendo com que suas érbitas atingissern maiores distancias do plano galac- tico. A galéxia ana que influenci- ou significativamente a formagao da Via Lactea dewse o nome Gaia- Enceladus, em referéncia a um dos Titds, fillto de Gaia, da mitologia grega. REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 | 23 @ SEGREDOS DA VIA LACTEA La Poe Acima Vista de cima de resultados de uma simulagao de um um processo de acrecio que se assemelha ao que pode ter ocorrido durante a acregio de Gaia-Enceladus coma Via Léctea. processo tem inicio nos Vocé pode estar se perguntan- do: se foi o maior evento de acre- do em nossa Galaxia, por que s6 agora foi descoberto? 0 principal motivo era a escassez de dados quimicos e dindmicos de estrelas para distingui-las entre diferentes Primeites Lébilhdesde cOMponentes da Galaxia e de anos, quandoodiscoda Gaia-Enceladus. De fato, numa es- galaxia principal ainda esta fera centrada no Sol com raio de gm procesode formacto. 7999 anos-uz,estima-se que uma galéxia ana vai paraseu eM cada 250 estrelas pertengeu a ultimo "mergulho" quando Gaia-Enceladus. Percebe-se entdo étotalmente destruida pela importancia dos grandes levan- felis principaltormade- tamentos especiroscépicos para Performance Computing aUmentar a estatistica que temos Facility/ Univ. of Central dessa estrutura e 0 motivo de a- Lancashire) penas recentemente termos con- firmado tal evento. ‘Uma vez que as estrelas do Gaia- Enceladus esto misturadas com as estrelas da nossa Galaxia, co- mo podemos distinguir as suas es- trelas daquelas estrelas nascidas Gaia 0 satélite Gaia foi desenvolvido pela Agéncia Espacial Europeia ‘com 0 ambicioso intuito de mapear com grande preciso 1,3 bilhdo de estrelas, ou seja 1% da populacao total de nossa Galdxia, Esse mapeamento 3D consiste em determinar das estrelas sua posic¢ao no céu através de suas coordenadas, distancia através de paralaxe e velocidade com que se movem pela Galéxia.. 24 | REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 e Een na nossa Galaxia? As estrelas do Gaia-Enceladus possuem caracte- risticas cinematicas diferentes das estrelas nascidas na Via Lactea, 0 que permite separar quais estre- Jas pertencem a cada galaxia. Por exemplo, a velocidade média de rotagéio das estrelas de Gaia-En- celadus em toro do centro galéc- tico é igual a zero. Enquanto que a velocidade média de rotagéo do disco na posicao do Sol é de 220 kmis. Além disso, essa difer- enga nas velocidades é suficiente para estimar a quantidade de es- trelas de Gaia-Enceladus que es- tao na nossa Galaxia. Além da cinematica distinta, a quimica das estrelas do Gaia-En- celadus também difere da nossa Galaxia, Isso ocorre pois, como mencionamos no comego do tex- to, as estrelas trazem o registro quimico do ambiente a partir do qual nasceram. Isso significa que, mesmo quando as estrelas esto dispersas de seus locais de nasci- mento, elas retém informa bre sua origem em sua compo- sigéio quimica. E utilizando uma técnica chamada espectroscopia, astrénomos conseguem medir a quantidade de cada elemento qui mico que a estrela possui através ‘SEGREDOS DA VIA LACTEA e da luz que elas emitem. Assim, estrelas com padrées similares de abundancias quimicas provavel- mente tém uma origem comum. Logo, a andlise de padrdes quimi- cos permitiria identificar se uma dada estrela apresenta quimica milar aquela das componentes da Galaxia ou de galaxias satélites. Portanto, com a grande quanti- dade de espectros estelares me- didos, novamente gragas ao ad- vento dos grandes levantamentos espectroscépicos, pode-se carac- terizar melhor as estrelas do Gaia- Enceladus. Isso ajuda os astréno- mos a entender 0 quao massiva era Gaia-Enceladus e estimar quando deve ter ocorrido a fus- 4o com a Via Lactea. A aparente ideia de que as e: trelas so iméveis ao observar 0 céu noturno esconde 0 quio di- namica e violenta é a evolucdo de nossa Galaxia, Porém, a escala de tempo em que isso ocorre é para além do que possa ser compre- endido na escala de vida do ser humano. Por isso, além das ob- servagies estelares que nos aju- dam a montar 0 quebra-cabecas da historia de nossa Galaxia, si- mulagdes de evolugdio de galax- jas como a nossa, nos ajudam a entender melhor esse quebra-ca- becas. Por exemplo, modelos que simulam 0 evento de acrecao de Gaia-Enceladus nos ajudam a en- tender o real efeito que teve em deixar 0 disco mais espesso, a- 1ém de ajudar a entender melhor os padrdes quimicos e dinamicos observados no halo estelar. A missio Gaia que ajudou a confirmar 0 maior evento de a- cregao de nossa Galéxia ainda es- té na metade de sua duragao. Até 2025 a qualidade e quantidade dos dados disponiveis vai aumen- tar ainda mais. Que outros segre- dos mais se encontram escondi- dos na Via Lactea? Hélio D. Perottoni hperottoni@gmail.com Universidade de Sao Paulo Joao A. $. Amarante Joaoant@gmailcom Universitat de Barcelona REVISTA BRASILEIRA DE ASTRONOMIA | JAN-MAR 2022 | 25 Acima Anova visto da Galaxia inclui nao apenas seus componentes tradicionais, mais também as correntes estelares e destrogos mareais de Gaia-Enceladus (em magenta) e de Sagitario (em cinza),

You might also like