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ANAIS DO VI CONACIR

CONGRESSO NACIONAL DE CIÊNCIA DA


RELIGIÃO

RELIGIÃO, BUSCA PELA PAZ E


DIREITOS HUMANOS

VOL I

2
VI CONACIR
CONGRESSO NACIONAL DE CIÊNCIA DA
RELIGIÃO

RELIGIÃO, BUSCA PELA PAZ E


DIREITOS HUMANOS

20 a 23 de setembro de 2022

ANAIS

Vol. I

Juiz de Fora
2022

3
Organização
DISCENTES DO PPCIR/UFJF

A revisão textual dos manuscritos originais é de responsabilidade de seus respectivos


autores, com anuência dos coordenadores dos Grupos de Trabalho.

Apoio:

4
Congresso Nacional de Ciência da religião. (6.: 2022:
C612c Juiz de Fora, MG).
Anais do VI CONACIR- Congresso Nacional de Ciência
da religião: Religião, busca pela paz e Direitos Humanos; 20 a
23 de setembro de 2022, Juiz de Fora, MG, Brasil / Organizado
por Frederico Pieper Pires, Felipe de Queiroz Souto, Ernani
Francisco dos S. Neto. Editado por Rafael Bertante. [realização
Discentes PPCIR]. – Juiz de Fora, Minas Gerais:
PPCIR/UFJF, 2022.

ISSN: 2447-7184

1. Ciência da Religião- Anais- Juiz de Fora -Minas


Gerais. 2. Religião. I. Universidade Federal de Juiz de Fora,
Núcleo de Estudos do Catolicismo. II. Título.

CDD 200
CDU 2

5
ORGANIZAÇÃO
COMISSÕES
PRESIDENTE
Prof. Dr. Frederico Pieper Pires
COORDENAÇÃO DISCENTE
Felipe de Queiroz Souto
Ernani Francisco dos Santos Neto
COMISSÃO CIENTÍFICA
Docentes
Dr. Emerson Sena (Religião, Sociedade e Cultura)
Drª. Maria Cecília dos Santos Ribeiro Simões (Tradições Religiosas e Perspectivas de Diálogo)
Dr. Jonas Roos (Filosofia da Religião)
Discentes
Grazyelle Fonseca (Religião, Sociedade e Cultura)
Gisele Maia (Tradições Religiosas e Perspectivas de Diálogo)
Rondinele Laurindo Felipe (Filosofia da Religião)
SECRETARIA E TESOURARIA
Maria Angélica de Farias Jurity Martins
Danilo Souza Mendes de Vasconcellos
Presley Henrique Martins
COMISSÃO ARTÍSTICA
Luanna Telles
Giovanna Sarto
EQUIPE TÉCNICA
André Yuri Gomes Abijaudi
Adriana Rocha Ribeiro Araújo
Mariane Gonçalves Bento
Paulo Victor Cota
Sérgio Manoel
Viviane de Sousa Rocha
EDIÇÃO
Claudia Santos
Rafael Bertante
COMUNICAÇÃO
Giovanna Sarto
Larissa Dantas
SITE DO CONACIR
Theobaldo Tollendal
ARTE
Luana Telles

6
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO......................................................................................................................11

GRUPOS DE TRABALHO........................................................................................................13

GT 1: CONSERVADORISMO E MODERNIDADE: DISCUSSÕES SOBRE O


PENSAMENTO CONSERVADOR, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS .................14

Filipe Costa Machado. “NÃO HÁ NADA DE NOVO DEBAIXO DO SOL”:


QOHÉLET E A CRÍTICA AO PROJETO PAN-ISRAELITA DO REINO DO SUL..........15

Geraldo Magela Rodrigues de Oliveira Neto. Luiz Ernesto Guimarães. ELEIÇÕES


MUNICIPAIS NA CIDADE DE BARBACENA MG: A RELIGIÃO NO DEBATE
PÚBLICO................................................................................................................................ ......23

Karolina dos Santos. JIHAD: REFLEXÕES SOBRE RELIGIÃO,


CONSERVADORISMO E VIOLÊNCIAS VIGENTES..........................................................30

GT 3: CRISTIANISMO DAS ORIGENS..................................................................................40

Eduardo Antônio de Faria. MATERNIDADE DIVINA: DAS ORIGENS À ÉFESO...41

GT 4: DECOLONIALIDADE, RELIGIÃO, DIREITOS HUMANOS E PÓS-


SECULARISMO...........................................................................................................................46

Andréa Olimpio de Oliveira. ARTE E DECOLONIALIDADE NAS RELIGIÕES AFRO-


BRASILEIRAS......................................................................................................................... ......47

GT 6: ENSINO RELIGIOSO: DIVERSIDADE E HUMANIZAÇÃO .................................59

Adriana Rocha Ribeiro Araújo. A DEMOCRACIA NO ENSINO RELIGIOSO


PERPASSA QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS E DE
GÊNERO......................................................................................................................................60

Cléa Luíza Rosa Dias. Heli Santos Santana. ENSINO RELIGIOSO: RELEVANTE
COMPONENTE CURRICULAR PARA COMBATER A INTOLERÂNCIA ÉTNICO-
RACIAL E RELIGIOSA NAS ESCOLAS.................................................................................72

Diego José Maria de Melo. Mauro Rocha Baptista. O ENSINO RELIGIOSO NA


PERSPECTIVA DO CURRÍCULO REFERÊNCIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS..83

Flávia Ribeiro Amaro. INTERCULTURALIDADE E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO:


UM ESTUDO DE CASO SOBRE A ATUAÇÃO ÉTICO-ECUMÊNICA DA TEOLOGIA
DA LIBERTAÇÃO......................................................................................................................95

Goretti Marciel Pereira Goulart. Luís Fernando Oliveira do Nascimento. O


ENSINO RELIGIOSO DESENVOLVIDO PELO ESTADO DE MINAS NOS PLANOS
DE ESTUDOS TUTORADOS DURANTE O ENSINO REMOTO..................................106

7
Norma Maria Duran. AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES, O ENSINO RELIGIOSO E
SUA RELAÇÃO COM A CIDADANIA PARA A EDUCAÇÃO ATUAL......................118

GT 7: FILOSOFIA DA RELIGIÃO .......................................................................................129

Alexsandro Melo Medeiros. CIÊNCIA E RELIGIÃO: UM DIÁLOGO A PARTIR DA


OBRA DE TEILHARD DE CHARDIN E PIETRO UBALDI..............................................130

Ana Paula Ferreira Gomes. Fabiano Veliq. TEMPO E MEMÓRIA NAS


CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO DE HIPONA..................................................140

Fabiano Victor Campos. Luiz Fernando Pires Dias. A PERSPECTIVA DE RELIGIÃO


NO PENSAMENTO DE EMMANUEL LEVINAS.............................................................149

Leandro da Costa Alhadas Cavalcanti. Andréa Olimpio de Oliveira. A BUSCA


PELA ESPIRITUALIDADE E SUA RELAÇÃO COM O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO.....................................................................................................................158

Moacir Ferreira Filho. O PRINCÍPIO PLURALISTA, A CRÍTICA A MODERNIDADE E


O DESAFIO DOS DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE A PARTIR
DE JACQUES MARITAIN......................................................................................................166

Simone Maria Zanotto. ÉTICA DA ALTERIDADE E ACOLHIMENTO


LEVINASIANO COMO CUIDADO EM DIREÇÃO AO OUTRO.................................174

GT 8: GÊNERO, OUTRAS INTERSECCIONALIDADES E CIDADANIA NA


RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO NA AMÉRICA LATINA:
DESAFIOS E INTERPELAÇÕES NA BUSCA PELA
PAZ.............................................................................................................................................182

Henry Isaac Peña Grajales. DO FLAVIO À ELIS REGINA: PERFORMATIVIDADE


DE GÊNERO NO ROMANCE UM AMOR DIFERENTE. NOSSAS ESCOLHAS DO
ESPÍRITU AUGUSTO CESAR VANNUCCI E O MÉDIUM JOÃO ALBERTO
TEODORO.............................................................................................................................183

Juliana Carvalho da Silva. OS ARQUÉTIPOS FEMININOS DE IEMANJÁ E IANSÃ:


DE AMOROSA À INSUBMISSA........................................................................................193

GT 9: HERMENÊUTICA DA RELIGIÃO ............................................................................203

Felipe de Queiroz Souto. CRISTIANISMO, SUBJETIVIDADE E HERMENÊUTICA:


UMA CONTRADIÇÃO DE GIANNI VATTIMO?..........................................................204

Sumaya Machado Lima. A PACIÊNCIA DE JÓ E ESTADOS DE BHAKTI YOGA –


CATEGORIAS DE COMPREENSÃO DE SOFRIMENTO E DE AMOR....................217

8
GT 10: ENTRE RELIGIÃO E O ESPAÇO PÚBLICO: FESTAS, TURISMO RELIGIOSO E
PATRIMÔNIO CULTURAL....................................................................................................228

Dora Deise Stephan Moreira. DOIS CAMINHOS DE FÉ, UM ÚNICO DESTINO:


PIACATUBA, DISTRITO DE LEOPOLDINA (MG) COM POTENCIAL DE
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO RELIGIOSO.....................................................229

Rosiléa Archanjo de Almeida. CAMINHADA DA FÉ: A DEVOÇÃO MARIANA À


APARECIDA............................................................................................................... ............242

GT 11: O CATOLICISMO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS


DIVINOS ...................................................................................................................................249

Felipe de Lima França. Severino Vicente da Sailva. UM “GRITO DO NORDESTE”


BRASILEIRO DE 1967: OS DIREITOS HUMANOS E DIVINOS POR MEIO DA
AÇÃO CATÓLICA RURAL.................................................................................................250

José Romélio Rodrigues dos Santos Júnior. João Victor de Oliveira Estevam. O
DIÁLOGO COM O NORTE E O SUL DO MUNDO: DOM HELDER CAMARA AO
ENCONTRO DAS JUVENTUDES (1967-1969)...........................................................262

GT 13: RELIGIÃO E CULTURA VISUAL....................................................................................273

Edmilson Sousa Rocha. O CORAÇÃO COMO CENTRO DA EXPERIÊNCIA


RELIGIOSA NA RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA...................................274

Helmut Renders. A ICONOGRÁFICA DAS BEM-AVENTURANÇAS NA ARTE


RELIGIOSA E A BUSCA PELA PAZ: O EXEMPLO DO PÁTIO DO MONASTÉRIO
SANTA CLARA EM COIMBRA.......................................................................................285

GT 14: RELIGIÃO E VIOLÊNCIA........................................................................................297

Ana Paula de Paula de Oliveira. GORDOFOBIA: OBESIDADE X GULA...........298

Julia Geralda dos Santos Machado. Airiely Ingrid Souza de Paula.


INTOLERÂNCIA E A “BUSCA PELA PAZ”: ANÁLISE DE DISCURSOS
NEOPENTECOSTAIS DIRECIONADOS A RELIGIÕES AFRO- BRASILEIRAS.......306

Jungley de Oliveira Torres Neto. DA HERMENÊUTICA À


DECOLONIALIDADE..........................................................................................................317

Luiza Bello. A PESSOA COMO FUNDAMENTO DA RELIGIÃO EM MAX


SCHELER.................................................................................................................................327

Marcio Henrique S. Ribeiro. VIOLÊNCIA COMO HERMENÊUTICA


RELIGIOSA.............................................................................................................................339

9
Rosemeire Celestino da Costa. O PAPEL DA IGREJA NA PROTEÇÃO DAS
CRIANÇAS QUANTO A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR...............352

Rondinele Laurindo Felipe. VIOLÊNCIA E MECANISMO VITIMÁRIO NO


CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO ATUAL....................................................................363

Tarcísio Lage Louzada. CRÍTICA A DITADURA MILITAR BRASILEIRA À LUZ DA


INTERPRETAÇÃO ESPINOSANA DE MARILENA CHAUÍ........................................371

GT 15: RELIGIÃO, ARTE E MATERIALIDADES: NOVOS DESAFIOS E


POSSIBILIDADES DE ESTUDOS ........................................................................................381

Adriana Fernandes Balbi. SANTUÁRIO DA SERRA DA PIEDADE: A ARTE SACRA


UMA PERSPECTIVA DA LINGUAGEM DO CULTO MARIANO.............................382

Rodrigo Nogueira Martins. ISLÃ X CANDOMBLÉ A MATERIALIDADE DOS


MALÊS COMO LEGADO RELIGIOSO NO TERREIRO DO BOGUM, SALVADOR,
BAHIA.....................................................................................................................................389

GT 18: RELIGIOSIDADES AFRO-AMERICANAS: CRENÇAS, SINCRETISMOS,


RITUAIS E RESISTÊNCIAS ....................................................................................................401

Janara Puchulate De Moraes. CANDOMBLÉ: MEMÓRIA, RESISTÊNCIA,


INOVAÇÃO..........................................................................................................................402

Sávio Roberto Fonseca De Freitas. José Bartolomeu Dos Santos Júnior.


QUANDO O SUBALTERNO FALA: A NARRATIVA DE AXÉ DE MÃE BEATA DE
YEMONJÁ..............................................................................................................................413

GT 20: TRADIÇÕES E RELIGIÕES ASIÁTICAS ...............................................................428

Breno Corrêa Magalhães. Fabiano Muniz Lima. MÚSICA COMO ELEMENTO DE


INCULTURAÇÃO: APROXIMAÇÕES COM O IMAGINÁRIO CRISTÃO PELA
IGREJA MESSIÂNICA MUNDIAL NO BRASIL..............................................................429

Caio Cézar Busani. UM BARCO PARA TODOS: A ABRANGÊNCIA DA PRÁTICA


DE BHAKTI-YOGA NA BHAGAVAD-GITA...................................................................441

Fernando Rodrigues de Souza. ASPECTOS DA TERRA PURA: UMA ÉTICA


BASEADA NO OUTRO PODER.......................................................................................449

Luciana Fernandes Marques. PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA MADHYAMAKA


E OS DESAFIOS DO SEU ESTUDO NA REALIDADE BRASILEIRA
CONTEMPORÊA..................................................................................................................460

Matheus Landau de Carvalho. USOS DE KANANA (BOSQUE) NA


ESPIRITUALIDADE HINDU SEGUNDO O ARAYAKAA, DO RAMAYAA DE
VALMIKI..................................................................................................................................468
10
Apresentação
O Congresso Nacional de Ciência da Religião (CONACIR) organizado
pelos discentes do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) realizou em 2022 sua sexta edição
com a temática Religião, busca pela paz e direitos humanos ocorrido entre os
dias 20 e 23 de setembro de 2022. Frente à preocupação mundial com a guerra
na Ucrânia provocada pela invasão russa e aos inúmeros contextos conflitivos
ao redor do mundo provocados por distintas causas, nós nos propomos a
pensar o papel da religião nestes espaços. Com isto, direcionamos as discussões
do congresso para a avaliação da realidade brasileira geralmente marcada por
guerras territoriais provocadas pelo fundamentalismo e seus desdobramentos
políticos, éticos e morais.

Assumindo esta perspectiva, tivemos no dia 20 de setembro a


conferência de abertura acerca do pluralismo e da convivência da religião em
ambientes plurais e sincréticos com o Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro e o
babalorixá Prof. Dr. Rodney William, a seção foi mediada pela doutoranda
Cláudia Aparecida Santos Oliveira. Foram organizadas duas mesas redondas
com enfoque no fundamentalismo e no seu desdobramento na vida cotidiana.
A primeira mesa redonda, realizada em 21 de setembro, tratou do tema
Fundamentalismo e Direitos Humanos e teve como debatedores os professores
Dr. Breno Martins Campos (PUC-Campinas), Dra. Dilaine Soares Sampaio (UFPB)
e Dr. Ricardo Mariano (USP) e foi mediada pelo doutorando Rafael Bertante. No
dia 22 de setembro tivemos a mesa redonda Religião, Paz e territorialidade com
a presença das professoras Dra. Mariana Gino, Dra. Patrícia Prado (ISTA) Pastora
e Dra. Lusmarina Campos Garcia. A mesa foi mediada pela doutoranda
Giovanna Sarto. Por fim, no dia 23 de setembro tivemos a conferência de
encerramento com a Profa. Dra. Marga Janete e o Me. Tiago Nhandeva,
liderança indígena, e a mediação da doutoranda Agnes Alencar.

11
Entre os dias 21 e 23 de setembro também foram realizados os Grupos
de Trabalho no âmbito do VI CONACIR, tivemos 16 GTs em funcionamento
durante todo o evento e 101 comunicações, das quais parte está publicada
nesta edição. O Conacir também ofertou o minicurso Uma reflexão sobre a
Natureza e o Sagrado: olhares organizado pelo grupo de pesquisa RENATURA
do PPCIR da UFJF.

Em nome da coordenação do VI CONACIR agradecemos a todos aqueles


que nos auxiliaram na organização do evento, desde pensar a temática junto à
comissão científica até a realização do evento em plataforma digital. Sem a
disposição e o trabalho de cada um o evento não teria o mesmo sucesso.

Desejamos a todos que têm em mãos esta edição dos Anais do VI


Conacir uma excelente leitura!

Felipe de Queiroz Souto

Ernani Francisco dos Santos Neto

12
Grupos de Trabalhos

13
GT 1 - CONSERVADORISMO E MODERNIDADE: DISCUSSÕES SOBRE
O PENSAMENTO CONSERVADOR, VIOLÊNCIA E DIREITOS
HUMANOS

Doutoranda Karolina dos Santos (UFJF)


Doutorando Rafael de Souza Bertante (UFJF)

Ementa: Em meio a modernidade e suas complexidades, presenciamos a


existência de diversos grupos que buscam reforçar suas identidades.
Concomitantemente, outros movimentos tombam ante crises de sentidos. Pois
essas transformações se dão – nos tempos atuais – em consonância com
elementos da modernidade e do conservadorismo. Neste sentido, voltamos a
nossa atenção para os grupos que se constroem a partir de ideias
conservadoras e para aqueles que se encontram em crise de identidade. Nesses
últimos, por vezes, percebemos discursos que afirmam um “retorno da tradição”
e, portanto, se colocam como um modelo a ser seguido, recusando influências
externas. Entretanto, ressaltamos que apesar do apelo para esse “retorno”, não
devemos negar a existência da modernidade nessas interpretações e linhas de
pensamento dos grupos. Outro ponto importante a ser levantado, é que por
vezes os movimentos conservadores e de retorno às origens, são
acompanhados por uma série de conflitos, sejam eles políticos ou religiosos. Um
caminho para proferir essas ideias e discursos, tem sido através do domínio da
linguagem digital e do bem executar das redes sociais. Ainda que
estatisticamente esses grupos não sejam tão numerosos, eles conseguem,
proporcionar “barulho” e consequentemente influenciar pessoas a sua volta.
Algo que preocupa, é a expansão de grupos conservadores mais extremados,
que incitam o uso da violência e violação dos direitos humanos. A partir deste
cenário, este grupo de trabalho buscará discutir aspectos utilizados em grupos
religiosos conservadores, destacando o quanto há de elementos políticos como
pano de fundo, sobretudo, quando notamos o uso da violência, intolerância e o
desrespeito aos direitos humanos. Um caminho para notar essas questões está
na análise dos discursos e nos atos e práticas de cada grupo, tomando em
consideração, as linhas de interpretações que procuram modelos ideais de
religião e os diálogos com as ideias da modernidade. A atualidade deste tema se
faz no nosso próprio contexto, onde percebemos o fortalecimento da ideologia
conservadora em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Logo, entendemos
ser necessário realizar estudos e debates acerca do tema, pois a circulação de
pesquisas sobre as questões que envolvem o conservadorismo religioso e a
violência, nas diversas identidades religiosas, pode nos ajudar a criar reflexões,
em busca de diminuir os conflitos e as violências e, quando possível, buscar, da
melhor forma, propostas dialogais.

Palavras-chave: Modernidade; Identidade; Conservadorismo; Violência;

14
“NÃO HÁ NADA DE NOVO DEBAIXO DO SOL”: QOHÉLET E A
CRÍTICA AO PROJETO PAN-ISRAELITA DO REINO DO SUL
Filipe Costa Machado
Doutorando em Teologia pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
filipemachado91@gmail.com

Resumo: Na antiguidade israelense, período em que se deu a escrita da Bíblia


Hebraica, havia uma intenção de centralizar o poder político e social em Jerusalém,
aqui denominado pan-israelismo, principalmente a partir da construção do templo,
coração da vida religiosa. Dessa forma, a religião de Israel não somente legitimou as
guerras para conquista da terra, como também atribuiu a responsabilidade pela
invasão assíria ao Reino do Norte à suposta idolatria dos separatistas. Para a Obra
Histórica Deuteronomista, principal fonte da Bíblia Hebraica que defende o pan-
israelismo, a suposta salvação do Norte, entendida como arrependimento e volta à
fidelidade para com Iavé, estaria na submissão ao Sul e ao Templo de Jerusalém. Nesse
sentido, a presente comunicação tem como proposta apresentar a crítica do livro de
Eclesiastes ao projeto unificador sulista em duas vertentes: a crítica à sabedoria
tradicional e à monarquia. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, caracteriza-se o
projeto pan-israelita da Bíblia Hebraica. Em seguida, apresenta-se o livro de Qohélet
como uma nova perspectiva inserida no texto sagrado para se repensar o Divino.
Finalmente expõe-se sua crítica à sabedoria tradicional - conhecida como a teologia da
retribuição e à monarquia, que abrem a possibilidade de uma nova análise dos textos
canônicos, não mais como legitimadores de um domínio político conservador ou do
uso da violência, mas como resultado de um processo histórico e social, cuja
consequência é a impossibilidade de leituras fundamentalistas ou conflituosas.
Palavras-chave: Bíblia Hebraica; Pan-israelismo; Eclesiastes; Qohélet; Conservadorismo.

Introdução
A Bíblia Hebraica (BH) é um dos livros mais importantes da história. Não
só por fundamentar as maiores religiões da contemporaneidade, mas também
por se tratar de uma obra literária de valor inestimável, com diversas histórias de
libertação, resistência e busca por uma sociedade mais justa e igualitária.
Entretanto, essas qualidades não a isentam da necessidade de ser lida e
interpretada de acordo com seu contexto histórico-social. Caso contrário, corre-
se o risco de hermenêuticas inadequadas, como as anacrônicas,
fundamentalistas.
Nessa perspectiva, o presente trabalho traz a releitura do livro de
Eclesiastes em relação a Deus e a teologia da retribuição, essa última

15
fundamental para o projeto pan-israelita. A partir de Qohélet, defende-se que a
própria BH se reinterpreta numa nova perspectiva acerca do divino que põe em
xeque seu uso para legitimar qualquer forma de domínio ou violência.

1. Pan-Israelismo
A história de Israel narrada na BH se confunde com suas experiências
religiosas com Iavé, o deus que se revela por meio de hierofanias e milagres. A
narrativa veterotestamentária mostra o Divino agindo desde a gênese não
somente do mundo, mas de toda a etnia – que se tornaria hebraica – na
mensagem a Abrão para que saísse da sua terra e fosse para uma outra,
prometida a ele pela divindade. A história, portanto, era “um trecho de caminho
em que o próprio Deus caminhava com seu povo” (VON RAD, 1996, p.89).
Nesse sentido, o texto bíblico, principalmente no que se propõe a narrar
a história de Israel, não é historiográfico, no sentido moderno do termo, isto é,
não constitui um relato de fatos históricos, mas é permeado de mitos religiosos
e ensinos teológicos que constroem a identidade hebraica. São narrações
didáticas que pretendem formar e unir o povo numa sociedade com cultura,
língua, descendentes e religião comuns: “quando, em Israel, uma geração
repassava sua história o que realmente passava era sua própria e peculiar
relação com Deus” (VON RAD, 1996, p.18). Sob um Deus criador e sua palavra
reveladora, deve-se manter a união de todo o povo, criando uma estrutura de
plausibilidade que sustenta a coesão do povo em todo o seu processo de
formação.
Porém, as divergências político-econômicas que surgiram após o início da
monarquia e principalmente após a morte do rei Salomão foram suficientes para
ruir a união outrora percebida. Anos depois, a invasão assíria ao reino do norte
e o exílio babilônico do reino do sul motivaram diferentes autores a compilarem
o texto que se tornaria a BH. Ele tinha a missão primeira de manter a cultura e a
unidade do povo durante período de exílio. Como afirma Estrada (2018, p.60),
“unificar correntes heterogêneas e contrapostas foi uma das grandes tarefas
que assumiram os escritores que buscavam salvar a identidade nacional judia

16
no período em que haviam perdido a sua independência territorial, social e
cultural”.
Trata-se, assim, de um período de decadência política e desorganização
social, mas de vasta produção teológico-religiosa com objetivos bem definidos.
A BH se tornou um texto tão importante e bem elaborado que sua leitura se
mantém atual para a contemporaneidade por apresentar “manifestação de
temas intemporais da libertação de um povo, da contínua resistência à opressão
e da busca pela igualdade social.” (FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003, p.425).
Ainda que sua importância seja imensurável, a BH não é um relato
histórico, fato que ficou conhecido apenas depois da adoção do método
histórico-crítico para estudá-lo. Comprovou-se, assim, que “a composição da
Bíblia obedeceu a um projeto teológico e ideológico mais que à história real”
(ESTRADA, 2018, p.58).
A historiografia moderna, sustentada pelas escavações arqueológicas,
o conhecimento das tradições do Oriente próximo e os dados
históricos das grandes nações vizinhas de Israel oferecem hoje outra
versão diferente da história judia. Não foi a história que gerou a fé,
mas o contrário, a partir da fé monoteísta tardia se recompôs história e
se transformaram os acontecimentos. (ESTRADA, 2018, p. 58).

Por outro lado, A BH não é uma criação sem uma base histórica de um
narrador que arbitrariamente combina datas e acontecimentos, mas possui
contornos da história do Antigo Israel, de memórias preservadas que foram
posteriormente compiladas. Isso aconteceu principalmente à época do rei
Josias, no Reino do Sul – final do século VII –, até o período do pós-exílio no
século V. Fontes diferentes, como a javista, eloísta, sacerdotal e deuteronomista,
de diversas narrativas com gêneros diferentes são reunidas e o resultado é “uma
composição gigantesca em conglomerado de peças heterogêneas que nesse
estado dificilmente poderiam ser pensadas como uma obra de leitura seguida”
(VON RAD, 1996, p.16).
Nessa reconstrução retrospectiva, juntam-se grandes feitos de caráter
político, teofanias, as histórias dos reis e dos profetas, legislações sobre a vida
em sociedade e sobre o culto. Houve também a mitificação de personagens
importantes, como Abraão e Moisés, que se tornariam os patriarcas de quem

17
todo o povo seria descendente. Antigas tradições e fatos históricos foram
misturados em epopeias bíblicas, legitimando novas teologias e projetos
político-religiosos e reafirmaram a identidade do povo eleito. Dessa forma, a
leitura bíblica deve partir dessa fundamentação teórico-histórica para se chegar
a uma fé crítica, mais que uma busca pela literalidade: “a perda da plausibilidade
e da verdade histórica afeta a leitura bíblica, desautorizando uma hermenêutica
literalista e historicista e também a fé ingênua em um livro revelado que deve
dar lugar a uma fé crítica.” (ESTRADA, 2018, p.58).
Nessa perspectiva, um dos ideais criados pelos redatores foi o pan-
israelismo, uma ideologia que pregava a unificação dos reinos do norte e sul
com centro em Judá e capital em Jerusalém. O monoteísmo judaico em torno
do templo de Jerusalém seria o fundamento da monarquia judaica, que deveria
ser restaurada após a separação dos reinos. Por isso, a BH, sobretudo na fonte
deuteronomista, inúmeras vezes reafirma a idolatria dos povos do Norte que
trouxe como consequência a invasão assírica enviada pelo próprio Iavé para
punir o povo. Assim, não somente a unificação era necessária para trazer Israel
de volta à adoração a Deus, mas ele retribuiria a desobediência com mais
castigos e a obediência com bênçãos. Dessa forma, a história de Israel é contada
a partir das ambições territoriais do Sul, contudo, a arqueologia apresentada por
Finkelstein e Silberman não comprova historicamente os relatos. Muitas das
narrativas jamais aconteceram, mas refletem primariamente a ideologia e a
visão de mundo dos seus escritores.
Nessa perspectiva, os autores também comentam sobre a monarquia
unida. Porém, afirmam que era mais um projeto que uma realidade, um “ideal
posterior e não uma realidade histórica” (FINKELSTEIN & SILBERMAN, 2003,
p.318), sem as glórias descritas sobre Davi ou Salomão. A mitologia hebraica
atribui a ambos o período áureo da história e, por ser dessa linhagem, Josias
seria o restaurador desse tempo. A aliança de Deus seria, então, cumprida nesse
monarca e estaria circunscrita ao templo de Jerusalém.
Dentro desse contexto, a teologia da retribuição empenha importante
papel para chamar o povo à fidelidade a Iavé, favorecendo o projeto pan-

18
israelita do Sul. Segundo essa perspectiva, todo aquele que “ouvir a voz do
Senhor” será exaltado e “todas as bênçãos virão” sobre ele (Cf.: Deuteronômio
28.1-13). Por outro lado, aquele que desobedece será amaldiçoado.

2. O livro de Qohélet
Nos séculos III e II a.C., contudo, tem-se a escrita de outros textos
veterotestamentários mais helenizados, reconhecidamente posteriores por
utilizar um hebraico que apresenta aramaismos ou até mesmo grego. Dentro
desse grupo, encontra-se o livro de Eclesiastes ou Qohélet, cuja autoria,
tradicionalmente atribuída a Salomão, já foi definida como dessa época tardia e
por isso seu autor é chamado apenas de “pregador”, em hebraico, “qohélet” ou
“coélet”.
O Eclesiastes é um livro que rompe com a teologia da retribuição e dá
uma nova perspectiva acerca de como o ser humano deve se relacionar com
Deus e deve viver. Para Qohélet, a obra de Deus – Elohim – é um mistério, nem
o sábio a conhece (Cf.: Eclesiastes 8.17).
Muito diferente do Iavé deuteronomista que, numa relação quase
mecanicista de causa e consequência – nos binômios obediência-benção e
desobediência-maldição –, relaciona-se com sua criatura por meio da
retribuição, o Elohim de Qohélet é inescrutável, desconhecido. Para o autor
hebraico, “assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se
formam os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as
obras de Deus.” (Cf.: Eclesiastes 11.5). Para o sábio, “há justos que recebem o
que o ímpio merece e ímpios que recebem o que os justos merecem” (Cf.:
Eclesiastes 8.14) e “tudo sucede igualmente a todos” (Cf.: Eclesiastes 9.2).
Qohélet apresenta uma nova proposta de teologia, uma teologia de
crise, diante de uma realidade que não é explicada pela retribuição. Na fronteira
entre o que se pode ver debaixo do sol e a realidade metafísica e transcendente,
o autor de Eclesiastes percebe que “a realidade humana não faz aparecer
nenhuma lei do agir divino; a impressão colhida é antes aquela de uma
arbitrariedade total.” (GLASSER. 1975, p. 64).

19
O traço semítico pode ser encontrado, desde logo, na inabalável fé de
Qohélet em Elohim, apesar da inescrutabilidade dos desígnios divinos
e mesmo daquilo que neles pareça repugnar à razão humana. Uma fé
que se exprime como ‘temor’, como espanto reverencial dos ‘filhos de
adão’ perante o incognoscível (Ec 3.14). (CAMPOS, 2004, p.19).

O relacionamento entre Criador e criatura não é mais definido pela


retribuição, mas pelo respeito silencioso diante do mistério. Como o autor
hebraico afirma, é “melhor ouvir que oferecer sacrifícios”, “sejam poucas as tuas
palavras” e “não tardes em cumprir teus votos” (Cf.: Eclesiastes 5.1-4). Para o
cardeal Gianfranco Ravasi (1993, p.180), todo diálogo com Deus “se extingue
na interrogação ou na resignação impotente do homem ou no silêncio de Deus,
que parece tão ‘celeste’ e distante do horizonte terrestre. [...] A ação de Deus,
imperscrutável e absoluta, não admite intervenções, retificações ou críticas”.
De fato, os resultados nunca são mecânicos, as proporções nunca são
matemáticas, os finais são sempre surpreendentes. Alguns dados são
verificáveis em sua raiz, mas não o são mais em sua plena atuação,
que pode manifestar-se de mil formas e em mil possibilidades. Seja
como for, na base de tudo está a nossa ignorância a respeito do
protagonista da história, Deus, e de seu estranho projeto. [...] tudo
está suspenso no imponderável de Deus e da natureza. [Nós] estamos
sempre na incerteza. (RAVASI, 1993, p.241).

Para o ser humano, isso significa que não há mais certeza nas promessas
divinas. A teologia aliancista é abandonada pelo Eclesiastes, na medida em que
a condição humana – inclusive do fiel a Iavé – não passa de “vaidade” (Cf.:
Eclesiastes 1.2, 12.8).
Por isso, Qohélet não busca fundamentar nenhum projeto de unificação
dos reinos, e até tece críticas à monarquia. Se o mistério caracteriza a ação
divina, então não se pode defender o trono davídico como centro do poder
político para Judá e Israel, nem o templo de Jerusalém como casa de Deus. A
ambição do sul perde sua base teológica e o pan-israelismo deixa de ser uma
proposta válida para o povo de Iavé.
Além disso, traz duras críticas ao governo do seu tempo – que podem
facilmente ser transportadas para a contemporaneidade. Não há esperança de
que os líderes políticos ou religiosos agirão em prol dos mais necessitados. Pelo
contrário, debaixo do sol, “no lugar do juízo há impiedade”, a hierarquia sempre

20
gera opressão do pobre, a corrupção corrompe o coração e os governantes
continuamente colocam tolos no poder (Cf.: Eclesiastes 3.16, 5.8, 7.7, 10.6)
Todos esses trechos ‘políticos’ de Qohélet repetem seu desprezo
resignado pela vulgaridade imperante nas cortes e dominante na sociedade e a
manutenção desesperançosa dessa situação. Nas palavras de Ravasi (1993, p.
155), “O Estado é visto, pois, como estrutura compacta e ‘mafiosa’, cujos níveis
se controlam reciprocamente e se protegem segundo regras de solidariedade. E
eis por terra o habitual e eterno pobre, esmagado, maltratado e humilhado.”
A injustiça institucionalizada é mais um dos males denunciados pelo
Eclesiastes. Não há, dessa forma, a quem recorrer, pois “o coração do homem
está cheio de maldade” e “se enche de planos para fazer o mal” (Cf.: Eclesiastes
8.11, 9.3). Para o teólogo espanhol Vílchez Líndez (1999. p. 236.), “o direito e a
justiça deveriam ser os pilares fundamentais em que se sustentariam toda a
sociedade. A realidade é bem outra e Qohélet confirma: o que prevalece é a lei
do mais forte, que necessariamente gera mais injustiça e violência.”
Em suma, o livro de Eclesiastes é uma obra que rompe com diversas
ideias caras ao texto da BH. Ele quebra a continuidade da narrativa
deuteronomista que traz o projeto pan-israelita, critica a sabedoria que afirma
conhecer Deus e saber como age o divino e diminui toda ação humana à mera
vaidade. Apresenta e fundamenta uma religiosidade mais humilde, mais
pessoal, mais cética, configurando-se, portanto, como a crítica necessária a
expressões judaico-cristãs dominadoras, que não cabem mais no mundo plural
da contemporaneidade.

Conclusão
A proposta de Qohélet, ainda que simples e na fronteira da negação da
transcendência, pode ser um terreno fértil para a teologia. Ao perceber Deus
como o Elohim e o ser humano como mera vaidade, desconstrói qualquer
projeto imperialista que tenha como base o texto bíblico ou uma revelação
divina. Pelo contrário, Qohélet é a correção da perspectiva violenta e

21
dominadora do deuteronomista dentro da própria BH, que nunca legitimaria
domínios, guerras ou governos a partir da voz divina.
Além disso, Qohélet chama o seguidor de Iavé a uma reavaliação acerca
da sua própria fé, na crítica contundente à sabedoria tradicional que afirma
saber quem Deus é e como ele age. Reafirma, dessa forma, uma característica
fundamental do ser divino, o mistério, que transcende a compreensão e a
experiência humanas.

Referências
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Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.
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RAVASI, Gianfranco. Coélet. São Paulo: Paulinas, 1993.
VÍLCHEZ LÍNDEZ, Jose. Eclesiastes ou Qohélet. São Paulo: Paulus, 1999.

22
ELEIÇÕES MUNICIPAIS NA CIDADE DE BARBACENA MG: A
RELIGIÃO NO DEBATE PÚBLICO

Geraldo Magela Rodrigues de Oliveira Neto


Graduando em Ciências Sociais na
Universidade do Estado de Minas Gerais,
Unidade Barbacena
geraldoliveira1951@gmail.com

Luiz Ernesto Guimarães


Doutorado em Ciências Sociais
Universidade do Estado de Minas Gerais
pr.ernesto@protonmail.com

Resumo: O presente projeto tem como intuito apresentar a relação que se estabeleceu
entre religião e política durante o período eleitoral de 2020, na cidade de Barbacena,
em que o então candidato pelo MDB se apresentou como um nome forte para a
renovação política do município, com um discurso muito acentuado na temática da
religião e da manutenção dos valores cristãos guiados pelo seu contato com a RCC. A
campanha se desenvolveu com um vínculo similar ao apresentado pelo atual
presidente Jair Bolsonaro, quando candidato em 2018. A pesquisa buscou identificar os
principais argumentos e movimentos utilizados pelo então candidato para disputar o
cargo do executivo municipal. A pesquisa foi desenvolvida a partir do levantamento de
dados das redes sociais (Instagram e Facebook), bem como entrevistas realizadas pelo
candidato, uma vez que o período eleitoral de 2020 teve sua particularidade, a
pandemia de Covid 19 e a necessidade do afastamento social. A pesquisa buscou,
portanto, a demonstração da influência do discurso religioso para a disputa do pleito
municipal no interior de Minas Gerais.
Palavras-chave: Antropologia da política; Renovação Carismática Católica; Religião e
Política; Barbacena-MG.

Introdução
A Renovação Carismática é um segmento católico muito importante para
entender parte da política e cultura do país, sua influência nos debates,
lançamento de candidatos e agendas condizentes com seus ideais de sociedade
tem se mostrado cada vez mais visíveis. Mas, é importante salientar que a
importância e influência desse movimento no cenário político não é aleatório e,
muito menos, descoordenado. Segundo Bulgarelli (2018), há no Brasil, um forte
movimento de amparo e crescimento das pautas morais em detrimento das
pautas sociais, é importante salientar que o referido autor está preocupado nas
questões que envolvem a orientação sexual e os direitos desses indivíduos no

23
Brasil, porém a forte intensificação de uma bancada religiosa, não esgota suas
atividades apenas nas pautas da sexualidade e não se limita apenas no
congresso nacional. Um exemplo claro dos ramos dessas ideias conservadoras
penetrando na sociedade civil são os grupos digitais e movimentos
conservadores como o MBL – Movimento Brasil Livre; Vem pra Rua; líderes
religiosos já conhecidos como Edir Macedo e Valdomiro Santiago, entre outros
que assumiram um protagonismo político e carregaram em seu bojo essa onda
de ideais conservadores, que se firmaram principalmente em 2018 com a
eleição de Jair Bolsonaro a presidência da República com seus lemas mais fortes
com um grande apelo moral, sendo eles: “Pátria, Deus e Família” e “Brasil acima
de tudo, Deus acima de todos’, é nesse cenário de ascensão conservadora que
os eixos principais do presente trabalho se lançam como opções para o cenário
político local, no caso as eleições municipais de Barbacena1 em 2020. O já
explanado contexto político a instauração da pauta conservadora foram cruciais
para ascensão também do, até então, candidato ao executivo na política local.
Embora já experiente, uma vez que o até então candidato, era vereador cargo
alcançado nas eleições de 2016, o mesmo se valeu da sua figura jovial e
carregado de um discurso anti-sistêmico ou seja, de fora da política tradicional,
discursos também conhecidos e reverberados no contexto das eleições de 2018
tendo expoentes como Romeu Zema (NOVO) e João Dória (PSDB), para
alcançar o eleitorado barbacenense e claro, o discurso religioso e sua
identidade como grande figura da RCC local.

1. RCC e a Política
A Renovação Carismática Católica é um segmento religioso dentro do
catolicismo que tem ganhado terreno não apenas no espaço religioso, como
também na esfera política institucional. Com figuras de destaque nacional como
Pe. Marcelo Rossi, membros que ganham forte destaque midiático, televisivo, no
rádio e até mesmo, na atualidade, as redes sociais dando ao movimento grande
oportunidade para adentrar na sociedade como um discurso quase orgânico.
1Cidade do interior de Minas Gerais, localizada a aproximadamente 170 km da capital, Belo
Horizonte.
24
Entrada e discursos que não se limitam apenas ao território religioso, embora
não se desconectem dele quase em tempo nenhum, um dos campos mais
visíveis de atuação e ocupação da RCC é na política institucional. Com o ideal de
transformar Fé e Política em coisas unas como indica (Silveira, 2008) a RCC
ganha sua roupagem política ao lançar e apoiar candidatos, sem partidos
definidos, embora com a ideologia mais ligada a conservação dos valores
morais defendidos pelo segmento, é nesse contexto que figuras religiosas
adentram o campo político. A atuação política de um membro da RCC é,
geralmente, mediada pelo Espírito Santo e tratada como “missão”, termo
também rotineiramente empregado por membros da RCC que se enveredam na
política, a atuação é, portanto, uma investida não por políticos profissionais nem
por uma formação de um bloco político hegemônico, mas sim de levar “leigos”
para a política, para que esses transmitam em suas ações, medidas que,
segundo o movimento, seriam um bem comum. É o caminho inverso, não se
utilizaria da política, nem do cargo para fazer mudanças morais, mas por ser
impactado na própria vida pessoal adentrar a rede política.

2. As Eleições Municipais de 2020 e o recolhimento de dados


O ano de 2020 foi período marcado pelo calendário eleitoral com as
eleições ao legislativo e executivo municipal. Trataremos nesse tópico
exclusivamente da campanha para o executivo, principalmente da figura chave,
o candidato membro da Renovação Carismática que venceu a referida disputa.
Cabe salientar que esse período foi perpassado pela pandemia de COVID 19,
que afetou a todos e, portanto, os candidatos e as suas formas de fazer
campanha.
A Eleição na cidade de Barbacena foi marcada principalmente pelo
advento da pandemia e as renovações na forma de se fazer campanha, o
campo digital foi muito utilizado pelos candidatos, as atividades comuns do
“tempo da política” (Heredia; Palmeira, 1995) como as passeatas, comícios e
shows foram remodeladas e, até certo ponto, substituídas e, para ocupar a
lacuna, as redes sociais foram a chave, talvez a maior, das eleições. Portanto, o

25
presente texto, trabalhará principalmente com a influência e o discurso
realizado pelo candidato membro da RCC, durante o período eleitoral,
principalmente a aproximação dos discursos políticos, institucionais da religião,
nesse caso a religião católica, guiada pelo segmento da Renovação Carismática.
As postagens, vídeos, fotos, panfletos e entrevistas analisadas durante o
processo de recolhimento e análise de dados da pesquisa foram,
majoritariamente, digitais e por isso cabe uma ressalva da forma metodológica
aplicada, principalmente amparada na Antropologia Digital e na ideia do online
não invalidar o real, mas ser parte dele, como demonstram (Horst; Miller, 2015),
baseado nisso que os dados recolhidos no Instagram e Facebook, desde posts
oficiais de campanha e comentários de apoiadores, que deram à pesquisa
instrumentos para mapear e identificar uma característica da campanha. Uma
campanha que foi abertamente cristã, declaradamente católica, mas que, para
além disso, se valeu de outros argumentos para conseguir votos de outros
segmentos da sociedade, é o que (Procópio, 2015) chama de movimento
“multiposicional” que é, grosso modo, o movimento que o candidato religioso
faz para conquistar apoio dentro do seu espectro, seja empresarial, civil, militar,
mas sem que isso fira os seus princípios ideológicos. Nas eleições de 2020 em
Barbacena-MG, o candidato observado, o jovem membro da renovação
carismática, se valeu dessa premissa “multiposicional” ao se encontrar e fazer
campanha com outros líderes religiosos cristãos, mas da vertente evangélica
pentecostal, que também foi candidato na referida eleição, mas concorrendo ao
cargo no legislativo municipal. Essa coligação gerou certo espanto,
principalmente no período eleitoral, mas foi completamente compreensível,
principalmente partindo da premissa exposta por (Reis, 2016) onde mostra a
aproximação entre o pentecostalismo evangélico e a Renovação Carismática
Católica, referida pelo autor, inclusive como, pentecostalismo católico.
As Eleições de 2020, em Barbacena, tiveram o entrave de busca de dados
e entrevistas presenciais, devido ao já referido período pandêmico. Marcada por
nomes da política tradicional mineira, nomes conhecidos da cidade, ex
vereadores influentes, trazia a sensação tanto nas conversas da esfera pública,

26
quanto nas pesquisas pré eleitorais divulgadas2 a disputa entre dois candidatos
e o membro da Renovação Carismática, objeto de observação e análise,
aparecia até então em 5º (quinto) lugar. Porém, nas redes sociais,
principalmente no Instagram, era o candidato que tinha a maior mobilização e
grande engajamento, desde o início das publicações ainda em príodo pré
eleitoral, o candidato se valeu das massivas publicações, onde chegava a postar
cerca de dois cards por dia com as notícias ou propostas como pré candidato, já
em setembro, um mês e meio antes do do dia das eleições, o oficialmente
candidato, remodelou suas redes, e passou a utilizar as cores verde e amarelo,
associando-se a bandeira do país, esse dado é muito importante, uma vez que o
candidato ao executivo municipal se valeu, mesmo que não denominando, de
estratégias já conhecidas no cenário politico: a adoção das cores e bandeiras do
Brasil, discursos conservadores em relação a família, aborto e outros temas de
pauta moral, discursos convergentes com o do presidente da república Jair
Bolsonaro, eleito dois anos antes, e com expressiva votação no município de
Barbacena. Cenário benéfico para o então jovem vereador, que se valendo do
discurso de novidade política, anti-sistema e pautas morais chegou no dia 15 de
Novembro com forte apoio e vencendo as eleições.

2.1. O dia da vitória


O dia 15 de Novembro, marcado pelo TSE para a realização das eleições
municipais, foi um período de forte movimentação nas redes sociais,
principalmente no período de apurações. A pesquisa focou nas transmissões ao
vivo realizados para cobertura das eleições tanto no YouTube quanto no rádio,
a primeira com mais atenção, pois era permitida a participação e interação dos
apoiadores e opositores pelo chat da transmissão. Foram recolhidas diversas
manifestações, com sua maioria relacionadas ao candidato carismático, que já
nos primeiros boletins de urna apontava na frente, discursos relacionados a
renovação, juventude e escolha divida para melhoria da cidade eram
recorrentes alguns repetidos, outros remodelados, mas sempre com a

2 Pesquisa noticiada no Barbacena Online, registrada no TSE com o número MG-07758/2020 4.


27
conotação que referia ao âmbito religioso. Outro período marcante do dia das
eleições, esse já com o resultado da vitória do candidato membro da RCC, foi,
depois da carreata, o pedido realizado pelo próprio candidato eleito de reunir
os apoiadores, no adro da Igreja de Santo Antônio, ponto de encontro comum
para as atividades políticas da cidade, para a realização de uma oração em
agradecimento ao resultado das eleições e afirmações de que a cidade estaria
“nas mãos do Senhor” e o pedido de mediação pelo Espírito Santo para seu
governo.

Conclusão
O presente trabalho teve como objetivo demonstrar a correlação entre
religião e política, principalmente no âmbito local, no município de médio porte,
Barbacena-MG, e como um líder político e, também, religioso se portou durante
o período eleitoral que concorria. Ademais, cabe salientar que Minas Gerais é
um dos estados com mais influência católica, portanto, uma candidatura com
esses ideais acaba tendo mais simetria e aceitação, foi o caso das eleições de
Barbacena, elegendo um jovem religioso para comandar o executivo local.
Para além das eleições de 2020, período relatado no presente artigo, o
grupo e a pesquisa avançam para o entendimento de como o jovem membro
da renovação carismatica seguirá, agora, como prefeito da cidade. Esse trabalho
é. portanto, base importante em três frentes: dar aporte teórico para os estudos
sociais, políticos e religiosos da cidade, acompanhar a carreira ascendente do
jovem político da Renovação Carismática e traçar um indício da manutenção
política da forte onda conservadora, explorada no início do texto.

Referências
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brasileira. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 38, n. 1, p. 185-213, jan./abr. 2019.

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1998. 260 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências
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28
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PALMEIRA, Moacir; HEREDIA, Beatriz. Os comícios e a política de facções. Anuário


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PROCÓPIO, Carlos Eduardo Pinto. Quando a religião fica perto da política: o caso dos
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SPYER, Juliano. Social media in emergent Brazil. London: UCL Press, 2018.

29
JIHAD: REFLEXÕES SOBRE RELIGIÃO, CONSERVADORISMO E
VIOLÊNCIAS VIGENTES
Karolina dos Santos
Doutoranda em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora
Pesquisadora bolsista CAPES.
apachesantos87@yahoo.com.br

Resumo: O conceito de jihad dentro do islã é considerado polissêmico, e regado a


categorias. Dessa forma, pretende-se abordar uma dessas categorias do jihad, a qual se
refere a defesa da fé e dos direitos. Portanto, é preciso pontuar a importância desse
conceito na religião. Para além disso, dentro do contexto atual, grupos retratados como
conservadores religiosos, e relacionados ao terrorismo e grupos de guerrilha, farão o
uso do conceito de jihad e, também, dessa categoria. O conceito de jihad, muito usado
nos dias de hoje ao abordar determinados grupos, é um conceito que nem sempre
possui conotação religiosa. Os pensadores jihadistas propõem o jihad como um ato de
liberdade para exercer a fé, além de ser colocado como dever de todo muçulmano.
Pensadores e idealizadores do jihad tais como Abdullah Azzam, Mohamed al Maqdisi
(Barqawi) e um dos co-fundadores da Al Qaeda, Ayman al Zawahiri ainda contribuem
de forma significativa para as ações vigentes de grupos, tais como o Talibã, Al Qaeda, e
em partes o Estado Islâmico. Portanto, para realizar essa análise, e trazer a tona parte
do pensamento jihadista elaborado por esses, será feito o uso de documentos, e
escritos elaborados pelos pensadores, para apresentar suas teorias e vivências a
respeito do jihad. Sendo assim, poderemos observar uma melhor compreensão
referente ao campo jihadista atual, onde é permeado por questões culturais, religiosas
e, também, políticas. Consequentemente, o presente trabalho irá contribuir com
discussões e apontamentos a respeito do conservadorismo e violência, relacionados a
essa forma de interpretação do jihad exercida pelos grupos e teóricos citados.
Palavras-chave: Jihad; Abdullah Azzam; Ayman al Zawahiri.

Introdução:
O conceito de jihad dentro do islã é considerado polissêmico, e regado a
categorias. Abordagens a respeito do jihad, são muito utilizadas nos dias de
hoje ao abordar determinados grupos, é um conceito que nem sempre possui
conotação religiosa. Dessa forma se faz necessário trazer a abordagem do
conceito de jihad na religião e posteriormente abordá-lo dentro de outros
contextos político-sociais.
O presente artigo busca uma compreensão do conceito de jihad através
das percepções de teóricos jihadistas, com suas abordagens que são utilizadas

30
por alguns grupos, e que possuem grande relevância dentro do âmbito
jihadista.

1.1. O conceito de Jihad


O jihad se apresentará, traduzido do árabe, em sua forma literal como
―esforçar-se (COOK, 2005). Dentro do idioma árabe, a palavra jihad pode ser
usada como verbo, substantivo, e, também, usada como nome próprio, tanto
para cristãos quanto para muçulmanos (CHEREM, 2013).
A palavra jihad é derivada do idioma árabe, e das palavras mujahada
(trabalhar com coração) e jahada (sinceridade ou grande esforço) [HAKIM,
2016]. O jihad se apresenta como uma forma de expressão ― “se dedicar com
todo esforço”, e também estará relacionado ao poder ou alguma habilidade,
então o jihad seria uma luta, lutar com habilidade e energia, com grande
esforço e empenho (HAKIM, 2016). Significa não medir esforços para dar o seu
melhor, para superar as dificuldades, é dedicar-se ao combate aos tiranos para
proteger os muçulmanos (HAKIM, 2016). De acordo com Aydin (2012) a
palavra jihad pode ser considerada como algo muito abrangente, mas que está
relacionada a algum tipo de esforço diante das dificuldades.
Durante o surgimento da primeira comunidade islâmica, nos processos
de divulgação da fé na língua revelada, torna-se importante visualizar que a
comunidade se dividia em dois polos: Os que desejavam promover o Islã através
da espada (sayf), mas também haviam aqueles que estavam dispostos a fazê-lo
através da paz (salaam) (HUZEN, 2006). E quando colocamos em uma
proporção maior, haviam aqueles que estavam prontos para a guerra pela
causa de Allah (jihad), enquanto outros estavam dispostos a lutar em defesa da
comunidade (ummah), que também pode ser considerada uma forma de jihad
(HUZEN, 2006). Nessa época, já era perceptível a polissemia e abrangência do
jihad, quando conhecemos e estudamos as interpretações e modos de vida da
primeira comunidade. Dentro desse contexto de muçulmanos militantes e
muçulmanos que não queriam ir para a guerra, surgirão as campanhas, ou
conquistas islâmicas para conseguir adeptos.

31
O senso de pertencer a uma comunidade de fiéis expressava-se na
idéia de que era dever dos muçulmanos cuidarem das consciências
uns do outros, proteger a comunidade e estender seu âmbito onde
possível A jihad, guerra contra os que ameaçavam a comunidade,
fossem eles infiéis hostis de fora ou não-muçulmanos de dentro que
rompessem seu acordo de proteção, era em geral encarada como
uma obrigação praticamente equivalente a um dos Pilares. ―O dever
do jihad, como os outros, baseava-se nas palavras do Corão: ‗Ó tu
que crês, combate o infiel que tens perto de ti‘‖(HOURANI, 2013, p.
205).

O jihad se apresenta dentro da religiosidade islâmica como uma forma de


empenho, ou esforço do indivíduo com ele mesmo, e, também, para o bem
estar coletivo (CHEREM, 2013). Posteriormente, com islã formado, o conceito
ganhará categorias, e o chamado “esforço” será dividido em etapas. A partir do
momento que surgem as categorias, tal esforço pode ser considerado um
empenho para o bem espiritual da comunidade (jihad maior), ou a defesa da fé
e das terras (jihad menor). Essas duas categorias maior/menor são as que
possuem significados aceitos e mais abrangentes, com conotações positivas
para os muçulmanos: Robinson (2021) sugere que o primeiro será o jihad
realizado em defesa do islã e seu território. O segundo podemos considerar um
jihad mais espiritual, que tem como significado lutar contra as tentações, é
colocado como uma luta pessoal (jihad al-nafs). Esse jihad é referido pelos
muçulmanos como o ― grande jihad ou jihad maior ― “jihad al akbar”
(ROBINSON, 2021).

1.2 . O jihad dos teóricos


Dentro do contexto atual, com a emergência de grupos chamados
terroristas, é preciso compreender como de fato esses grupos surgiram. Dessa
forma, é preciso ter em mente, que anterior a esses grupos existiram aqueles
que pensaram esses movimentos, esses personagens são os teóricos jihadistas.
Tais teóricos irão interpretar e reinterpretar o conceito de jihad principalmente
na categoria jihad menor onde é mencionado a “defesa da fé”. Além de fazerem
uma leitura conservadora a respeito do lado religioso, esses teóricos fazem uso
da violência, que em contrapartida vai contra os princípios da fé islâmica, que
prega a paz, e que prega uma religião direcionada à todos.

32
O jihad praticado por esses teóricos é diretamente relacionado às noções
do que representa o terrorismo. De acordo com Visacro (2019), o terrorismo
não é um fenômeno recente, mas desde o final do século XIX tem se
apresentado de forma crescente. Já no século XXI, com os ataques às torres
gêmeas nos Estados Unidos que são relembrados até nos dias atuais,
ressaltaram esse tipo de guerra, que Visacro (2019) coloca como guerra
irregular. O terrorismo dentro do contexto atual pode ser considerado um dos
maiores problemas, e podemos ver que nessa era de conflitos tem como uma
das principais características a presença do terror de forma exacerbada
(VISACRO, 2019).
Dentro do que esse artigo propõe, de agora em diante adentraremos no
contexto de vida dos teóricos que trabalham dentro do contexto de terrorismo,
juntamente com as suas abordagens a respeito do conceito de jihad, que no
contexto atual beberá bastante de contextos político-sociais. Os teóricos
mencionados nesse artigo foram aqueles que tiveram importância dentro do
movimento jihadista global, e que levaram ao mundo o conhecimento dos
grupos que fizeram parte, ou que chegaram a apoiar algum grupo especifico
em determinado momento.

1.2.1. Abdullah Azzam


Abdullah Azzam, ideólogo palestino, liderou o recrutamento de
combatentes para o Afeganistão na década de 1980, a qual pode ser
considerada a primeira mobilização de combatentes estrangeiros globais do
mundo de acordo com HEGGHAMMER (2020).
Azzam terá seu contato com o dawa‘a, o que os islâmicos chamam de
divulgação da fé, ou pregação, que funciona como um chamado para aderir ao
islã. O dawa‘a é visto como um chamado ou um convite, mas quando o dawa’a
é praticado por grupos terroristas tais como a al Qaeda cabe também como
uma forma de recrutamento (HEGGHAMMER, 2020). Dessa forma a vivência
com o Dawa’a de Azzam na Irmandade Muçulmana, movimento egípcio que

33
fez parte, influenciará a projeção das interpretações do jihad e suas formas de
divulgação.
Azzam tinha suas ligações com a questão Palestina, e consequentemente
com o seu jihad por conta de sua origem, mas Azzam também se apegou ao
jihad do Afeganistão. Azzam, durante os anos de 1967 e 1968, juntamente com
milhares de palestinos irão aderir à guerrilha contra Israel, pouco tempo depois,
Azzam seguirá para a Arábia Saudita para lecionar (ROBINSON, 2021).
A forma que Azzam desenvolveu sua ideia do jihad transcendia, porque
apoiava um jihad para defender o islã como um todo, não somente como
causas específicas. Tal fato fez com o que muitos palestinos não o apoiassem em
torno dos anos 1970 (COOK, 2005). Azzam buscou conhecer outros países do
Oriente Médio e, também, países do ocidente. Nesse momento ele já começou a
desenvolver seus contatos internacionais, com muçulmanos de várias partes do
mundo (HEGGHAMMER, 2020)
No ano de 1984, Azzam traz à tona a questão afegã e palestina ao emitir
uma fatwa. Azzam considera lutar pela causa afegã e palestina uma obrigação
para todos os muçulmanos (SCHNELLE, 2012). O jihad pregado por Azzam é
baseado na defesa das terras islâmicas, para que elas não sejam penetradas
pelos valores e explorações do ocidente (SCHNELLE, 2012). Azzam (1985)
declara que: a batalha entre a verdade e a falsidade é para a reforma da
humanidade, para que a verdade se torne dominante e o bem propagado.
Além disso, que suas práticas e locais de culto sejam salvos e guardados
(AZZAM, 1985 p13). Para Azzam, o jihad assegura a transformação da unidade
divina teórica em prática, e o sono não é possível sem o jihad. Envolver-se no
jihad é se emancipar do medo, e o jihad é a única forma possível de
compreender o islã de fato, pois esse pole a alma, ajuda livrá-la de ilusões, e é o
maior fator de união da comunidade islâmica. As grandes potências no
ocidente não são nada comparadas com o poder irresistível de Deus e seu
apoio aos crentes (AZZAM, 2011).
Azzam faz um chamado aos muçulmanos para que defendam seu
território suas terras e suas casas, além de defender o próprio islã. Azzam

34
ressalta a importância da luta, para que os muçulmanos não se deixem levar
pelos pensamentos e formas de vida ocidentais. “Uma das obrigações perdidas
mais importantes é a obrigação de lutar. Os muçulmanos atualmente por
estarem ausentes dessa condição atual, eles se tornaram o lixo das águas de
uma enchente (AZZAM, 1985 p13).
Azzam pode ser considerado um dos teóricos jihadistas mais influentes,
ao propor uma luta global, que foi usada como base teórica de grupos tais
como o Talibã e a Al Qaeda.Seus escritos através de fatwas, textos e livros ainda
são disponibilizados e muito utilizados no meio.

1.2.2. Ayman al Zawahiri


Um fato interessante, apresentado por Al-Zayyat (2005), é que o
Afeganistão, devido à ascensão dos mujahideen ganha o nome de ―terra do
jihad, e da mesma forma que primeiramente atrairá Azzam, posteriormente
atrairá nosso segundo teórico Ayman al Zawahiri, e em sequência Bin Laden.
Ayman terá suas divergências com Azzam, devido ao fato de que Ayman
acreditava que o Afeganistão não era o lugar ideal para se estabelecer o jihad.
Mas foi lá que mais soldados foram recrutados, seguindo as ideias de Azzam
(AL-ZAYYAT, 2005).
Zawahiri de acordo com Nasser (2021) é colocado como o cérebro
ideológico do jihad Global projetado pelos principais grupos jihadistas na
década de 90. Mas proponho que Zawahiri antes de chegar nessa etapa ele
acessará as ideias de Abdullah Azzam, que irá ajudar a estruturar seu
pensamento assim como outros teóricos que vieram anteriormente. Zawahiri
era médico, e iniciou seu lado jihadista ao trabalhar na Irmandade Muçulmana
no final da década de 70 (NASSER, 2021). Tal fato, possivelmente fez com que
Zawahiri tivesse acesso a outros teóricos tais como o egípcio Sayyid Qutb,
teórico de grande relevância para o âmbito jihadista. Na década de 80, Zawahiri
ao retornar ao Cairo, e com suas experiências adquiridas na Irmandade, irá
recrutar adeptos do jihad para se juntarem aos mujahedeen (NASSER, 2021).

35
Zawahiri construiu sua visão de mundo através de concepções que o
separam o em bom e mal, onde possuem divergências sobre o que representa
um governo democrático, onde existem aqueles que querem islamizar e aqueles
que são chamados de infiéis e traidores do islã (JACQUIER, 2013). Para al-
Zawahiri o mundo político é conflituoso, é onde se divide os crentes e os
incrédulos. E de acordo com o pensamento de Zawahiri os grupos islâmicos
devem lutar contra esses apóstatas ou incrédulos (JACQUIER, 2013).
Quando al-Zawahiri fala sobre o jihad, ele não coloca como uma ação
política, mas como um dever (caminho) que deve ser cumprido por cada
muçulmano, seja ele jovem ou idoso.O jihad deve atingir, e afetar à todos da
casa (ZAWAHIRI, 2006). Todo muçulmano é responsável por defender o Islã,
suas santidades, nação e pátria.É um erro os islamistas não enfatizarem esse
dever individual, Todo muçulmano deve se engajar no jihad (ZAWAHIRI, 2006).
Nas palavras de al-Zawahiri, o jihad representa“uma batalha de ideologias, uma
luta pela sobrevivência, e uma guerra sem trégua” (Al-Zawahiri, 2006, p. 111).
De acordo com Zawahiri (2006) justifica-se o jihad com o uso da violência
porque a violência é a única linguagem que o Ocidente entende. Dessa forma
negligenciar o jihad é abrir uma brecha para que os inimigos do Islã possam
destruir e enganar a nação muçulmana, e colocá-la em estado de desastre e
também de calamidade.

1.2.3. Muhammad al Maqdisi (Barqawi)


Muhammad al Maqdisi, palestino assim como Abdullah Azzam, iniciará
sua vida militante a respeito do jihad quando ele se muda para o Iraque mais
precisamente para o Kuwait. Dessa forma, Maqdisi cresceu e foi influenciado
pelos escritos conservadores do Kuwait, e posteriormente influenciado pelos
wahhabitas, uma vertente mais conservadora da religião islâmica de origem
saudita (WAGEMAKERS, 2011).
Maqdisi quando se torna um ideólogo não apresentará uma doutrina
explícita, mas é de forma nítida seu raciocínio, que bebem das idéias que ficam
entre o ativismo, a militância, e o terrorismo. Mas, em contrapartida, Maqdisi

36
ressalta a importância da pregação (dawa’a), do conhecimento religioso e
também político (CHEREM, 2015). Maqdisi, de acordo com Wagemakers (2011)
é talvez o ideólogo jihadista mais influente que esteja vivo, e que através de seus
escritos tem o poder de influenciar tanto o mundo islâmico quanto o ocidente.
Maqdisi ao construir sua forma de interpretação sobre o jihad, pontuará
sobre um jihad contra o politeismo, ou contra as coisas que são relacionadas ao
ocidente, e incluirá a democracia como uma delas:
Devemos destruir aqueles que seguem democracia, e devemos tomar
seus seguidores como inimigos - odiá-los e fazer uma grande Jihad
contra eles. A democracia é um politeísmo óbvio e, portanto, uma
clara descrença de que Allah nos avisou em Seu Livro (MAQDISI, 2022,
p. 1, trad. nossa)3.

O jihad proposto por Maqdisi, é que além da divisão tradicional entre um


jihad defensivo e ofensivo, propõe uma outra classificação, que pode ser
considerada complementar às categorias anteriores: jihad de “prejuízo” (jihad al-
nikâya) e jihad “de consolidação” (jihâd al-tamkîn). Cherem (2015) pontua a
respeito dessas categorias de jihad propostas por Maqdisi:
O jihad de prejuízo é uma ação justa e legislada, mesmo que não dê
resultados concretos. Encontram-se nesta categoria ações que
prejudicam de alguma maneira o inimigo, mas não mudam a relação
de forças, inclusive: irritar o inimigo, aterrorizá-lo, impedir que ele
prejudique os muçulmanos, resgatar cativos, oprimidos e fracos sob
seu jugo. Para Maqdisî, esse é o tipo mais frequente de combate nos
dias atuais. Outro tipo é o combate de “consolidação” – ou liberação
(tah.rîr). Esse tipo de Esse tipo de jihad visa a estabelecer o controle
territorial e o estado islâmico. Maqdisî deplora a situação atual, em que
as terras muçulmanas liberadas não são governadas por quem merece
– os mujahidin, seus libertadores, que não tomaram o poder em países
como Afeganistão, Tchetchênia e Bósnia. (CHEREM, 2015, p.131).

Dentro do que Maqdisi propõe, o jihad e o martírio assim como as


criaturas, e o livro revelado, todos foram criados por Deus. Dessa forma, aqueles
que não seguem o islã, são colocados como seguidores do diabo (shaytan),
sendo assim, haverá um conflito entre aqueles que foram criados por Deus e os

3No original: “It is not the religion of monotheism, and its parliamentary councils are just places
of polytheism, and safe havens for paganistic beliefs. All of these must be avoided to achieve
monotheism, which is Allah’s right upon His servants. We must destroy those who follow
democracy, and we must take their followers as enemies - hate them and wage a great Jihad
against them. Democracy is an obvious polytheism and thus a clear disbelief that Allah has
warned us against, in His Book”
37
seguidores do “shaytan”. Então, era preciso estabelecer um califado, e criar um
estado islâmico (MAQDISI, 2022).
É de grande relevância trazer a figura de Maqdisi, jihadista e ideólogo
influente, que possui livros publicados. Um dos pontos mais importantes da
influencia de Maqdisi, é quando ele se torna mentor de Abu Mus'ab al-Zarqawi,
o qual se tornou o líder da Al Qaeda do Iraque, e que também contribuirá de
certa forma na construção do grupo Estado Islâmico tempos depois
(WAGEMAKERS, 2011). Um fato curioso, é que Maqdisi posteriormente irá
criticar grupos e suas práticas jihadistas, os quais usaram suas obras como base
teórica e ideológica. De acordo com Maqdisi, esses grupos cometeram e ainda
insistem em cometer muitos excessos (WAGEMAKERS, 2011).

Conclusões
Dentro daquilo que foi apresentado, podemos ter uma idéia do
significado do conceito de jihad na religião islâmica, e que vai muito além do
estereótipo “guerra santa”. O jihad é um conceito polissêmico, abrangente e
regado à categorias que maioria das vezes é desconhecida.
É preciso ter em mente que a forma como os teóricos jihadistas
vivenciaram o conceito faz parte de todo percurso de vida que esses tiveram.
Tais interpretações não cabem ao islã como um todo. O jihad apresentado pelos
teóricos representa a minoria dentro da comunidade islâmica. Ao pregarem
com o uso da violência é esquecido a categoria de jihad maior, que deve ser
valorizada devido a preocupação com toda a comunidade.
Em contrapartida, mesmo que esses teóricos não representem toda a
comunidade, trazer ao conhecimento o pensamento desses contribui no
entendimento das ideias propostas por eles, e de certa forma compreender o
modo de operação de grupos tais como a Al Qaeda e o Estado Islâmico. Para a
Ciência da Religião traz ao conhecimento relacionado a uma das formas de
conservadorismo religioso atuais.

38
Referências
AL-MAQDISI Abu Muhammad. Democracy is a Religion “Al-Dimuqratiyya Din”
disponível em: www.almaqdese.net. Acessado 20/10/2022.
AL ZAYYAT, Montasser. Os caminhos da Al Qaeda: A história do braço direito de Bin
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AL- ZAWAHIRI, A. His own words: A translation of the writings of Dr. Ayman al-
Zawahiri Tradução: Mansfield. West Point, NY: TLG, 2006.
AZZAM, Abdullah. Defence of muslim lands. 1985.
AZZAM, Abdullah. O que a jihad me ensinou. In: O guia árabe contemporâneo sobre o
islã político. Trad. André Oídes. São Paulo: Madras, 2011.
AYDIN, Hayati. Jihad in Islam. In.: GJAT, v. 2, n. 2, Turquia, 2012.
CHEREM, Youssef. Jihad: duas interpretações contemporâneas de um conceito
polissêmico. Campos, v. 10, n. 2, p. 83-99, 2009.
CHEREM, Youssef. A crença, a lei, a guerra: Uma análise do pensamento de ‗Is.âm
Muh.ammad T. âhir al-Barqâwî. Campinas: UNICAMP, 2010.

CHEREM, Youssef. Jihad: interpretações de um conceito polissêmico. História e


Sociedade – Ciências da Religião, v. 11, n. 2, 2013.
COOK, David. Understanding Jihad. Berkeley: Universityof California Press, 2005.
HEGGHAMMER, Thomas. The Caravan: Abdallah Azzam and the Rise of Global Jihad.
Norwegian Defence. Research Establishment (FFI), Cambridge, 2020.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras,
2013.
HUZEN, Kent B. Jihadist Wheel: An Islamic Perspective of Jihad. 2006.
JACQUIER, James D. An operational code of terrorism: the political psychology of
Ayman al Zawahiri. School of Security and Global Studies, American Military University,
Charles Town, WV, USA, 2013.
NASSER, Reginaldo. A luta contra o terrorismo: Os Estados unidos e os amigos Talibãs.
Ed ContraCorrente, São Paulo, 2021.
ROBINSON, Glenn E. Global Jihad. California: Stanford University Press, 2021
SCHNELLE, Sebastian. Abdullah Azzam, Ideologue of Jihad: Freedom Fighter or
Terrorist? Journal of Church and State, v. 54, Oxford, 2012.
VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de
resistência ao longo da história. Editora Contexto, São Paulo, 2019.
WAGEMAKERS, Joas. Reclaiming Scholarly Authority: Abu Muhammad al-Maqdisi's
Critique of Jihadi Practices. Studies in Conflict & Terrorism, 2011.
WINTER, Lucas. The Abdullah Azzam Brigades. Studies in Conflict & Terrorism. São
Francisco: Routledge, 2014.

39
GT 3 - CRISTIANISMO DAS ORIGENS

Doutorando Iuri Nunes (UFJF)


Me. Daniel Salomão Silva

Ementa: O esforço de se compreender o contexto geográfico e cultural da


memória dos ditos de Jesus, a forma como foram organizados teologicamente
por seus primeiros seguidores, bem como o processo de transmissão das
narrativas que deram origem ao material do Novo Testamento, e mesmo de
textos não canônicos, pode nos oferecer uma visão mais robusta sobre as
primeiras comunidades cristãs em sua diversidade. Nesse sentido, esse GT tem o
objetivo de acolher pesquisas sobre materiais dos séculos III a.C. a III d.C.,
judaico-cristãos ou não, mas que possam enriquecer as reflexões sobre os
cristianismos originários. São naturalmente bem-vindas as contribuições dos
campos da História, da Teologia, das Ciências Sociais, dos Estudos Culturais e
Literários, bem como da própria Ciência da Religião, destacando seu caráter
multidisciplinar. Estudos filológicos e exegéticos dos judaísmos e cristianismos
antigos deram início às Ciências da Religião na Europa juntamente com a
História Comparada das Religiões e a posterior Fenomenologia da Religião.
Logo, entendemos como importante a tentativa de se recuperar essa tradição
junto à Ciência da Religião e em meio ao nosso atual contexto social e político,
ainda que de forma crítica e atenta às metodologias mais recentes. Mantendo
também em mente a importância do diálogo entre as pesquisas acadêmicas e a
comunidade não acadêmica, essas reflexões podem também ser um rico
material para os próprios grupos cristãos ou não que fazem parte de nossa
sociedade atual, para a compreensão de suas narrativas, como são articuladas e
incorporadas aos seus contextos específicos, em diálogo com o que podemos
estimar das primeiras formulações cristãs entre as comunidades originárias. Em
um momento em que leituras e posturas fundamentalistas, que se afirmam
baseadas na literatura bíblica, têm se destacado, entendemos como produtivo o
desenvolvimento de uma leitura mais atenta, crítica e madura dos textos bíblicos
neotestamentários e seus contemporâneos.

Palavras-chave: cristianismos originários. Novo Testamento. Narrativas judaico-


cristãs.

40
MATERNIDADE DIVINA: DAS ORIGENS À ÉFESO
Eduardo Antônio de Faria
Mestrando em Teologia Sistemática pela PUC-RJ
dudufaria@terra.com.br

Resumo: No escopo maior dos estudos teológicos, a mariologia ocupa lugar de


destaque, uma vez que uma correta compreensão deste tema em muito nos auxilia na
própria compreensão acerca do Cristo e de sua Igreja, sobretudo no que tange à
“Missio Ecclesiae”, semelhante à de Maria, de trazer Cristo ao mundo. Pretendemos
analisar alguns aspectos históricos do Dogma da Maternidade Divina de Maria,
destacando seu enunciado, sua fundamentação escriturística, bem como suas
implicações cristológicas e eclesiológicas. A expressão “Theotókos” já é encontrada na
prece mariana mais antiga de que se tem conhecimento, “Sub tuum praesidium.”
Composta em grego, esta oração foi encontrada em uma liturgia natalina copta,
datando de meados do século III. Em Lucas 1,43 lemos: “E de onde me provém que me
venha visitar a mãe do meu Senhor?” Nesta passagem, Isabel, cheia do Espírito Santo,
afirma que Maria é mãe do SENHOR (kyrios). É sabido que o nome do Deus de Israel,
quando vertido para a LXX, era traduzido como “Senhor” (kyrios). Desta forma, esta
passagem poderia até mesma ser traduzida como “E de onde me provém que me
venha visitar a mãe do meu Deus?” Por sua natureza viva, é natural que um
ensinamento da Igreja se desenvolva com o tempo. Observando algumas poucas
citações dos Padres sobre este tema, podemos perceber que a compreensão da
Maternidade Divina de Maria não foge a essa regra. Santo Irineu de Lyon, Santo
Atanásio e São Cirilo de Alexandria são exemplos que fazem uma “confissão
cristológica em forma mariológica.” Ao dizermos que Maria é Mãe de Deus, apontamos
para a união hipostática, ou seja, em Cristo há apenas uma pessoa, a divina. O concílio
nos relembra que “a Virgem está intimamente ligada à Igreja; a Mãe de Deus é o tipo e
a figura da Igreja.” (LG63) Desta forma, podemos afirmar que todos os Dogmas
Marianos revelam algo acerca da própria natureza da Igreja. Em relação a este dogma
especificamente, assim como Maria tornou-se portadora do Deus-Filho para o mundo,
também a Igreja, no poder do Espírito, tem a missão de levar Cristo ao mundo, o Cristo
gerado na Igreja.
Palavras-chave: Mariologia; Desenvolvimento da doutrina; Theotokos.

Introdução
A pessoa de Maria exerce um papel fundamental no plano divino de
redenção da humanidade, afinal de contas, foi por meio dela que o mistério da
encarnação do Verbo se realizou. Desta forma, no escopo maior dos estudos
teológicos, a mariologia ocupa lugar de destaque, uma vez que uma correta
compreensão deste tema em muito nos auxilia na própria compreensão acerca
do Cristo e de sua Igreja, sobretudo no que tange à “Missio Ecclesiae”,
semelhante à de Maria, de trazer Cristo ao mundo. No presente artigo, vamos
analisar alguns aspectos históricos do Dogma da Maternidade Divina de Maria,
41
destacando seu enunciado, sua fundamentação escriturística, bem como suas
implicações cristológicas e eclesiológicas.

1. Theotókos
A expressão “Theotókos” não foi cunhada tardiamente na cristandade e
nem mesmo é uma palavra de uso exclusivamente cristão. Pelo contrário, esse
nome já é encontrado na prece mariana mais antiga de que se tem
conhecimento, “Sub tuum praesidium.” Composta em grego, esta oração foi
encontrada em uma liturgia natalina copta, datando de meados do século III, e
logo no primeiro verso lemos: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de
Deus (Θεοτόκε)”.
Além disso, esse termo era largamente utilizado no paganismo. Segundo
Clodovis Boff destaca em sua síntese sobre os Dogmas Marianos
O termo Theotókos era usado pelos pagãos para deusas-mães como
Cibele, Astarté, Ishtar e especialmente a grande deusa egípcia Ísis,
“mãe do deus” Hórus, muito cultuada na Antiguidade. O povo cristão
assumiu Theotókos, e aplicou-o àquela que é a verdadeira “Mãe de
Deus”: Maria. (BOFF, 2018, p. 14).

Merece destaque o fato de que o sufixo “tókos” deriva do verbo “τίκτω”,


que significa “dar à luz” como podemos ver, por exemplo, em S. Mateus 1,21.
Em outras palavras, Theotókos denota literalmente “aquela que deu à luz Deus”.

2. O relato lucano
De todos os relatos bíblicos que apontam para a Maternidade Divina de
Maria, merecem destaque os apontamentos do terceiro evangelho. Em primeiro
lugar, é digno de nota que o evangelista, ao narrar as falas de Isabel e de
Simeão acerca de Maria, descreve-os como “cheio do Espírito Santo” (Lc 1,41;
2,25). Além disso, em Lucas 1,43 lemos: “E de onde me provém que me venha
visitar a mãe do meu Senhor?” Nesta passagem, Isabel, cheia do Espírito Santo,
afirma que Maria é mãe do SENHOR (kyrios). É sabido que o nome do Deus de
Israel, quando vertido para a LXX, era traduzido como “Senhor” (kyrios). Desta
forma, esta passagem poderia até mesma ser traduzida como “E de onde me
provém que me venha visitar a mãe do meu Deus?”
42
3. O concílio de éfeso
Resolvidas as controvérsias Arianas, nos concílios de Niceia (325AD) e
Constantinopla (381AD), a Igreja passa a lidar com formulações que
confessavam a divindade de Cristo, mas que de alguma forma atentavam ora
contra sua plena humanidade, ora contra sua plena divindade. Neste contexto,
emerge Nestório (386AD - 451AD), bispo de Constantinopla, influente e
versado nas Sagradas Letras. Sua proposição acerca do Cristo torna-se popular e
entrou para a história com o nome de Nestorianismo. Ensinava que Jesus tinha
duas naturezas (humana e divina) e duas pessoas (humana e divina), como se o
Jesus divino vestisse uma “roupa humana”, ou como se o Jesus divino “residisse”
no Jesus humano, pregando uma separação entre as pessoas. Ele dizia que
Maria era “anthropotókos”. Em um de seus sermões, Nestório afirma: “Deve- se
falar da Mãe de Deus (Theotókos), isto é, de uma mulher que tenha gerado
Deus? Ou antes se deve falar de uma mulher que deu à luz um homem
(anthropotókos)? Será que Deus tem mãe? Uma criatura não pode dar à luz o
Criador” (CHELLES, s.d., p. 1).
Diante da popularidade do ensino de Nestório e das não poucas
controvérsias geradas, o Imperador Teodósio II convoca um concílio para se
realizar em Éfeso em 431. Acaloradas discussões marcaram o concílio e Nestório
não acatou o parecer final:
O Concílio, contra Nestório, afirma que as duas naturezas, a divina e a
humana, perfeitas e diferentes, convergindo para verdadeira unidade
mediante misterioso e inefável concurso, constituíram um só Jesus
Cristo, um só Filho, sem, todavia, perder na união a diferença
específica de cada uma delas. Por isso, a virgem Maria é apresentada
pelo concílio direta, explícita, formalmente como “Theotókos”. Por isso,
eles [os santos padres] não duvidaram em chamar Mãe de Deus a
santa Virgem, não certamente porque a natureza do Verbo ou a sua
divindade tenha havido origem da santa Virgem, mas, porque nasce
dela o santo corpo dotado de alma racional, no qual o Verbo é unido
substancialmente, se diz que o Verbo nasceu segundo a carne. (DS §
254).

4. Evidências na patrística
Foi John Henry Newman, em sua Magnum Opus “Ensaio sobre o
desenvolvimento da doutrina cristã” que propôs que por sua natureza viva, é
43
natural que um ensinamento da Igreja se desenvolva com o tempo.
Observando algumas poucas citações dos Padres sobre este tema, podemos
perceber que a compreensão da Maternidade Divina de Maria não foge a essa
regra. É conhecida a fala de Santo Irineu de Lyon, do século II: “Assim como Eva
foi seduzida pela fala de anjo e afastou-se de Deus, transgredindo a sua palavra,
Maria recebeu a boa-nova pela boca de anjo e trouxe Deus em seu seio,
obedecendo à sua palavra” (AH 5.19.1). Dois séculos depois, Santo Atanásio em
“Encarnação do Verbo”, afirma: “O Verbo gerado do Pai do alto, inexprimível,
inexplicável, incompreensível e eternamente, é aquele que nasce no tempo aqui
embaixo da Virgem Maria, a Mãe de Deus” (AKIN, 2010). Por fim, São Cirilo de
Alexandria, que inclusive esteve presente no Concílio de Éfeso, defende
apaixonadamente em “Carta aos monges do Egito”, já no quinto século: “Estou
pasmo de que alguns estejam em dúvida se a Virgem Santa pode ou não ser
chamada de Mãe de Deus. Pois, se nosso Senhor Jesus Cristo é Deus, como
poderia a Virgem Santa que o deu à luz não ser a Mãe de Deus?” (AKIN, 2010).

5. Implicações cristológicas
Como afirmado anteriormente, este dogma nos auxilia em uma
compreensão acerca do Cristo. Pode-se até mesmo afirmar que se trata de uma
“confissão cristológica em forma mariológica” (SCHNEIDER, 2020, p.163). Ao
dizermos que Maria é Mãe de Deus, apontamos para a união hipostática, ou
seja, em Cristo há apenas uma pessoa, a divina. Também há duas naturezas, a
divina e a humana, ambas subsistindo na mesma pessoa divina.

6. Implicações eclesiológicas
O concílio nos relembra que “a Virgem está intimamente ligada à Igreja; a
Mãe de Deus é o tipo e a figura da Igreja” (LG § 63) Desta forma, podemos
afirmar que todos os Dogmas Marianos revelam algo acerca da própria
natureza da Igreja. Em relação a este dogma especificamente, assim como
Maria, sob a ação do Espírito Santo, torna-se portadora do Deus-Filho para o
mundo, também a Igreja, no poder do Espírito, tem a missão de levar Cristo ao

44
mundo, o Cristo gerado na Igreja. Sob esse prisma, as palavras do apóstolo
ganham novas cores, quando afirma “De novo sinto dores de parto por vós,
filhinhos meus, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19).

Conclusão
Ao nos determos na história das formulações dos dogmas, percebemos
pelo menos duas verdades complementares. Primeiramente, é certo que a
compreensão dos fiéis acerca de determinado ensino evolui. Mas também é
verdade que a Igreja não “cria” um dogma. A Igreja o recebe e o define, visando
o bem do rebanho. Isso significa dizer que a verdade divinamente revelada
contida no dogma já era uma realidade antes da formulação dogmática. Nas
palavras de Newman, “a profissão e os desenvolvimentos de uma doutrina
ocorrem de acordo com as urgências do momento, e o silêncio em certo
período não implica que ela não fosse sustentada, mas que não era questionada
(cf. NEWMAN, 2020, p. 460).

Referências
AKIN, J. The Fathers Know Best. El Cajon: Catholic Answers, 2010.
BOFF, C. Dogmas Marianos: Síntese Catequético-Pastoral. 5. ed. São Paulo: Ed.
Ave-Maria, 2018.
CHELLES, M. Cristologia – Aula 9. Apostila disponibilizada pela Paróquia Nossa
Senhora da Assunção, Arquidiocese de Niteróis. S/d.
DENZINGER, H.; RAHNER, K. The sources of Catholic dogma. St. Louis: B. Herder
Book Co., 1954.
IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. Tradução Lourenço Costa. São Paulo: Ed.
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NEWMAN, J.H. Ensaio sobre o desenvolvimento da Doutrina Cristã. Tradução
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PAPA PAULO VI. Constituição dogmática Lumen Gentium. Sobre a Igreja. Roma,
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https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/va
t-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html Acesso em 13 de janeiro de 2023.
SCHNEIDER, T. (org.) Manual de Dogmática. 5. ed. Tradução Luís Marcos
Sander. Petrópolis: Ed. Vozes, 2020.
45
GT 4 - DECOLONIALIDADE, RELIGIÃO, DIREITOS HUMANOS E PÓS-
SECULARISMO
Profa. Dra. Clarissa De Franco (UMESP)
Profa. Dra. Jaci de Fátima Souza Candiotto (PUC-PR)

Ementa: O GT objetiva estabelecer um diálogo interdisciplinar na esfera pública entre


direitos humanos, decolonialidade, religiões e pós-secularismo, de forma a apresentar
caminhos para a compreensão e desconstrução da lógica colonial. Para tal tarefa,
consideramos fundamental estudar a perspectiva do pós-secularismo, segundo a qual
as religiões compõem uma área relevante na construção do debate público e
democrático sobre direitos humanos. As dicotomias e cisões, típicas do pensamento
moderno, trouxeram um “secularismo agressivo”, termo utilizado por Ahmet Kuru
(2009) para designar a postura laicizante que concebe as religiões como adversárias do
processo democrático. Diante desta postura excludente e reducionista, Boaventura de
Sousa Santos aponta o pós-secularismo como o espaço encontrado pelas “teologias
políticas progressistas” ao “formular concepções historicamente concretas de dignidade
humana, pela qual Deus é o garantidor último da liberdade e da autonomia nas lutas
em que os sujeitos, tanto individuais como coletivos, travam no sentido de se tornar
sujeitos da própria história” (SANTOS, 2014, p. 114). A hermenêutica diatópica
proposta por Boaventura Santos (2014, 2006) conduz à possibilidade de diálogo e
negociação intercultural, envolvendo uma razão que tensiona as relações com base na
desigualdade de poder e sugere uma transição paradigmática apoiada em uma
“ecologia dos saberes”, articulando diferentes concepções de dignidade humana. De
maneira análoga à proposta de diálogos interculturais, Habermas fala em “esforços de
tradução” (2007) do conteúdo semântico religioso, no âmbito de uma linguagem
racional, de forma que as contribuições das religiões para o debate democrático sejam
acessíveis. Neste contexto, a presença cotidiana e pública das religiões na esfera
democrática tem sido exaltada por Habermas (2007), que reconhece nas cosmovisões
religiosas um “potencial de racionalidade”, compreendendo que a linguagem religiosa
pode oferecer contribuições valiosas para o debate público. Por sociedade pós-secular,
portanto, designa-se o deslocamento da consciência pública, que envolve a
reivindicação das religiões na participação dos debates democráticos. Boaventura de
Sousa Santos (2014, p. 113) indica a “possibilidade de ligar o retorno de Deus a um
humanismo trans-moderno concreto”, a partir de práticas interculturais e contra-
hegemônicas, nas quais a participação das religiões ou do que o autor chama de
teologias progressistas e pluralistas (SANTOS, 2014) atua na luta contra o sofrimento
humano, em conjunto com outros grupos. Portanto, as epistemologias do Sul e as
teorias decoloniais apontam caminhos de diálogo e tradução interculturais que
atravessam os desafios inerentes às tensões da vida pública nas sociedades
contemporâneas, considerando também o lugar das religiões nessa construção
coletiva. O GT pretende reunir pesquisadores/as e acolher propostas de comunicações
que discutam os elementos teórico-metodológicos acerca da articulação das temáticas
acima elencadas no intuito de examinar e propor reflexões críticas à lógica colonial.

Palavras-chave: decolonialidade; pós-secularismo; direitos humanos; religião;

46
ARTE E DECOLONIALIDADE NAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Andréa Olimpio de Oliveira
Mestre em Psicologia pela UFJF
andrea.olimpiodeoliveira@gmail.com
Resumo: Este estudo tem como tema “Arte e Decolonialidade em Religiões Afro-
brasileiras”. Objetiva-se evidenciar de que modo a arte pode servir como alternativa às
práticas decoloniais, ou seja, suplantando os efeitos do racismo e da colonialidade,
tanto em relação ao entendimento da arte em si, quanto nas suas representações
artísticas expressas nas religiões afro-brasileiras. Almeja-se encontrar, ainda, uma
compreensão da religiosidade afro-brasileira para além das concepções hegemônicas
da modernidade, no qual a arte e as expressões de crença e fé se dão simultaneamente
no mesmo espaço/tempo. A metodologia é baseada na pesquisa bibliográfica, através
de textos teóricos que abarquem à temática estudada, além de produções artísticas que
ilustrem os conceitos trabalhados. É primordial o reconhecimento de que nos espaços
dos terreiros de umbandas e candomblés existem artes e que às diversas formas de
manifestações artísticas produzidas em continuidade às religiões afro-brasileiras podem
ser entendidas como espaços de luta e resistências contra ações de silenciamento e
invisibilidade. Como contribuição aos estudos de Decolonialidade e Religião, espera-se
fomentar novas discussões que promovam a inter-relação da arte, à decolonialidade e
às religiões afro-brasileiras, integrando novos sentidos ao pensamento global da
modernidade. Acreditamos ser possível ampliar essa reflexão com novos estudos e
temáticas que considerem às especificidades locais e regionais, das mais diversas formas
de expressão artística nas religiões afro-brasileiras e que se sustentam em movimentos
de luta e resistência ao pensamento colonial.
Palavras-chave: Religião; Modernidade; Arte decolonial; Decolonialismo; Religião afro-
brasileira.

Introdução
A arte, embora seja configurada como uma experiência humana de
caráter subjetivo, tem sido uma importante ferramenta de posicionamento
sociocultural. Devido ao caráter econômico que subsidia diversas produções
artísticas, suas manifestações têm apresentado cada vez mais um caráter de
dominação hegemônica e globalizante, inviabilizando outras formas de
expressão cultural e artística de povos representados pelo Hemisfério Sul do
planeta e seus países colonizados, em grande maioria ignorada pela hegemonia
das produções europeias ou da América do Norte.
Em contrapartida, as manifestações artísticas e culturais podem ser
compreendidas como formas de resistência às práticas decoloniais, elementos
47
de conscientização libertadora, para todos aqueles que almejam fortalecer o
projeto de descolonização em construção. Abib (2019) compreende a cultura
como terreno de luta, que acionam memórias, tradições e identidades e
demarcam posições, ecoando vozes que buscam reconhecimento e autonomia
diante da cultura hegemônica.
Segundo Florêncio, Santos e Oliveira (2020), todo o projeto da
modernidade se consolidou através das bases filosóficas e epistemológicas da
colonialidade. A Europa, e mais recentemente, os Estados Unidos da América,
definem padrões de cultura, arte e ciência com a pretensão de serem universais
(embora locais), se configurando como modelos únicos e globalmente aceitos.
Baseando-se nas palavras do professor e sociólogo português Boaventuara de
Sousa Santos (2013), “o projeto de modernidade que se instaurou a partir do
modelo de colonialismo não foi mais que um epistemicídio violento e
devastador. ”
Desse modo, este estudo pretende abarcar de que modo a arte pode ser
compreendida como um espaço de se pensar a decolonialidade, especialmente
nas religiões afro-brasileiras, como forma de ruptura a esse modelo dominante
da hegemonia europeia.

1. Decolonialidade
Um debate importante se assenta na distinção entre colonialismo e
colonialidade, discutidos por autores como Santos (2013), Abib (2019) e
Quijano (apud Santos, 2013). Para eles, o colonialismo está para o campo
histórico-geográfico da colonização, enquanto a colonialidade se refere aos
poderes ideológicos historicamente determinados. Para Abib (2019), o
colonizador destrói e inviabiliza o imaginário do outro, subalternizando-o,
enquanto reafirma o seu próprio imaginário. Assim, a colonialidade de poder
inibe o mundo simbólico, os saberes, crenças, espiritualidade, impondo ao
colonizado novos elementos e novas formas de aculturação.
Desse modo, a dominação é concretizada não somente em seu aspecto
material, através das riquezas daquele povo ou da exploração do território

48
físico, mas principalmente na dimensão simbólica, por meio de uma suposta
ideia de superioridade cognitiva e racial. O homem branco europeu por meio de
justificativas de progresso e desenvolvimento, acreditava que estaria sendo justo
e até benéfico com aqueles povos recém conquistados. (ANDRADE, 2021).
O pensamento decolonial é, segundo Abib (2018), uma poderosa
construção teórica corporificada nas lutas sociais dos povos colonizados, se
baseando na luta pela decolonialidade do poder, do saber e do ser como três
importantes dimensões no qual a colonização se instaura. Emerge como
importante forma de contestação às concepções impostas pela modernidade,
visando a construção de um outro modo de (re)existência, oriundos do
pensamento, das experiências, das lutas e das crenças dos povos latinos,
africanos e asiáticos, contestando à ideia de que os povos não ocidentais não
seriam modernos e, sim, atrasados e não-civilizados.
Apesar do fim do colonialismo, vestígios do pensamento colonial ainda
estão presentes em diversos âmbitos da vida pessoal e coletiva, sendo
facilmente observáveis nas mais diversas formas de opressão. Ao contrário do
colonialismo, a colonialidade não se apresenta de forma direta e contundente,
através do controle absoluto da autoridade política ou do domínio dos recursos
naturais e meios de produção. A colonialidade se implanta a nível simbólico, de
forma velada e intersubjetiva. Por isso, a experiência subjetiva da cultura da
colonialidade não se encerrou nas sociedades pós-coloniais. Esse conceito
demonstra que embora o colonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade
sobrevive ao colonialismo. (OLIVEIRA; CANDAU, 2010).
Partindo dessa premissa, a noção de decolonialidade surge como uma
abordagem epistemológica, política e teórica, que possibilita a descentralização
de narrativas e desconstrução de essencialismos que ao longo da construção do
projeto de modernidade estiveram centradas hegemonicamente na Europa. O
pensamento decolonial carrega em si uma concepção que busca desvincular a
ideia de um único modo possível de pensar o mundo, ou seja, a lógica do
sistema-mundo capitalista, e se abre a uma diversidade de vozes e caminhos,
ampliando o direito à diferença, a pluraliversalidade de narrativas, através da

49
abertura para um pensamento-outro. A decolonialidade busca valorizar e
reconhecer, como um de seus princípios, epistemologias latino-americanas que,
assim como os países asiáticos e africanos, se encontram fora do centro
geopolítico do conhecimento (ANDRADE, 2021).
Boaventura de Sousa Santos (2013) aborda a existência de um sistema de
distinção racial que reflete uma diferença significativa entre duas realidades
distintas. Um sistema que marca uma linha de separação entre os que estão
“deste lado da linha” daqueles que estão “do outro lado da linha”. Santos defne
esse sistema através de um conceito denominado “pensamento abissal”. O
pensamento abissal se caracteriza pela capacidade de produzir e engendrar
distinções. Esta distinção assinala uma divisão entre as sociedades
metropolitanas e os territórios colonizados.
O pensamento abissal também deu origem à construção de lógicas
binárias que se consolidaram na edificação do mundo moderno, com a ideia de
belo/feio; certo/errado; bem/mal; verdadeiro/falso; racional/emocional; dentre
tantas outras. Sendo assim, qualquer lógica que se insere fora desses
constructos, isto é, que não se enquadram nesse modo dicotômico de pensar,
desapareciam, pois não seriam vistos como conhecimentos relevantes ou
comensuráveis. (ANDRADE, 2021).
De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2013), a característica que
demarca o pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois
lados da linha. Nesse sentido, para que um lado da linha possa ser fundamento
e visível, ele precisa necessariamente inviabilizar o outro lado, tornando-o
inexistente. Sousa Santos então esclarece que o ponto de partida para resolver
essa tensão seria a criação de um pensamento novo, um pensamento outro, um
pensamento pós-abissal. Enquanto não houver um novo meio de
enfrentamento às exclusões e ao pensamento abissal, as práticas excludentes
permaneceriam, não sendo possível fugir à lógica da opressão e do
silenciamento de determinadas comunidades. Para o autor, é preciso, pois,
pensar de um outro modo, do outro lado da linha, daquele lugar que, segundo
a modernidade ocidental, pertence ao domínio do impensável. (SANTOS, 2013).

50
Para que essa mudança ocorra, é necessária a construção de uma nova
epistemologia, que tenha como princípio o reconhecimento da pluralidade de
conhecimentos heterogêneos e que integre relações dinâmicas e sustentáveis,
sem comprometer a autonomia de cada um dos saberes. Essa epistemologia é
denominada de ecologia de saberes que, segundo Santos (2013), baseia-se
na ideia da diversidade epistemológica do mundo, ou seja, do
reconhecimento de uma pluralidade de formas de conhecimento.

2. Afro-diáspora e decolonialidade
O movimento decolonial, ou o engajamento intencional de ruptura da
cultura hegemônica para a valorização dos povos tradicionais latino e afro-
americanos, se expressa pela heterogeneidade cultural e religiosa na América
Latina, exemplificada pelas religiões de matrizes africanas que cultuam seus
Orixás e batem seus tambores, representando suas culturas e as desenvolvendo
em território democrático, apesar das barreiras do desconhecimento, do
preconceito e do racismo (FLORENCIO, SANTOS, OLIVEIRA, 2020).
A religião dominante e os meios de progresso e desenvolvimento
impostos pelo pensamento eurocêntrico não foram suficientes para suplantar a
cultura ancestral e têm mostrado que não respondem às inquietações e
demandas de povos indígenas, africanos ou asiáticos. Florêncio, Santos e
Oliveira (2020) ressaltam que mesmo com todos os processos de aculturação a
que foram submetidos, índios, negros, nativos, caboclos da terra e os chamados
povos tradicionais são testemunhas de sua própria história. História que
acontece tanto na atualidade quanto nas transmissões orais de seus povos,
evidenciando um rastro de dominação eurocêntrica, mas também uma luta
incessante pela manutenção de sua vida ancestral, dos costumes e práticas
curativas, de sobrevivência e de ritualística mística e religiosa.
Segundo Reis (2020), os povos da afro diáspora continuaram com seus
repertórios, saberes e fazeres, realocando narrativas, discursos e práticas
culturais da população negra, como forma de enfrentamento aos processos de
objetificação racistas a que foram submetidos. Esse modo de resistência ao

51
silenciamento dos saberes e narrativas dos corpos negros, contesta a
invisibilidade de discursos afrorreferenciados e se caracteriza pela reinvenção
das culturas negro-africanas na diáspora, assentadas pela lógica da oralidade,
que não é determinada pela razão ocidental dominante e seus desdobramentos
tais como as estruturas moderna/colonial, cristãs, patriarcais, monorraciais e
capitalistas de poder.
Ao evidenciar as reinvenções africanas em diáspora e indagar a
hegemonia cultural da branquitude, coloca-se em questão a soberania do
pensamento eurocêntrico, centrada no uso instrumental da razão técnico-
científica, da produção conceitual, da suposição de uma verdade “absoluta” e
uma única forma de narrar a história.
Reis (2020) sustenta, ainda, a primazia que o discurso científico adquire
na modernidade/colonialidade, por meio de seus critérios de validação objetiva,
neutralidade e impessoalidade, como se o conhecimento verdadeiro e
indubitável só pudesse ser produzido a partir do único lugar capaz de aferir à
sua verdade: a Europa. Fora de suas fronteiras reinariam a miséria, a selvageria,
a barbárie, o tradicionalismo, o primitivismo e, no campo das artes, um modo de
produção naíf, inferior ou sem densidade, a não ser pelo valor antropológico
atribuído ao folclore dos povos não civilizados.
No que se refere à estética e à história da arte, a partir do projeto de
modernidade/ colonialidade, seguindo as trilhas do pensamento greco-romano,
apresenta-se como o paradigma clássico – ou seja, do que permanece através
do tempo -, pautados pela ideia da representação, especialmente ligados à ideia
do belo e à imitação da natureza, com ênfase ao “bom” gosto, bem como à
concepção do gênio criativo. Essa forma de se pensar a arte e seus modos de
produção estão associados à uma concepção particular de perfeição, situada
num tempo-histórico-geográfico específicos, apesar de sua pretensão à
universalidade.
Não obstante, através do tensionamento crítico motivado pelo apelo ao
reconhecimento e valorização de outras culturas, poéticas e manifestações
artísticas, amplia-se o horizonte de criação, produção e fruição das artes. Há um

52
redimensionamento operado pela crítica à decolonialidade mediante à
pluriversalidade das práticas, discursos e experiências, não mais irredutíveis a um
único centro geopolítico de produção. (REIS, 2020).
Assim, observa-se que as práticas, vivências culturais e artísticas,
experiências epistêmicas e geopoliticamente localizadas dizem respeito às
múltiplas possibilidades de ser, de sentir e se colocar no mundo de diversos
sujeitos, situados em espaço-tempo históricos distintos. As práticas negras não
deixam de tensionar os arranjos, as formas e os modos de partilha baseados no
modelo eurocêntrico de produção de conhecimento, bem como suas formas de
transmissão igualmente eurocentradas.
Conforme esclarece Antonacci (2015), as memórias “in-corporadas” dos
negros ativam-se nas trocas e partilhas sendo transmitidas de geração a geração,
dos mais velhos aos mais jovens, como lembranças da história silenciada dos
povos e de suas tradições. Além disso, é necessário ressaltar que os modos de
transmissões reforçam os vínculos comunitários e de pertença, as narrativas
negro-africanas reafirmam as identidades afrorreferenciadas e suas
reconfigurações em espaços e territórios por vezes marginalizados como os
terreiros de candomblé ou as periferias urbanas e rurais.
No que diz respeito às memórias negras, Reis recorda o quanto a tradição
oral dos povos africanos em diáspora marcam as culturas religiosas afro-
brasileiras, como formas de expansão de valores civilizatórios a serem
preservados pelas diversas matrizes culturais. Além disso, essas memórias
reafirmam o lugar de produção de conhecimento dos povos negros, dos modos
de vida legítimos, bem como seus processos criativos e práticas culturais, a
serem valorizadas e legitimadas, contrárias ao uso de medidas empregadas
historicamente como meios de subjugação, injúria corporal e mental, violência,
condições precárias de vida, prevenção de nascimentos e morte. Todas essas
medidas que tinham como objetivo a exterminação de um grupo racial, político
ou cultural, sua linguagem, religião e cultura (NASCIMENTO, 1978).

53
3. Arte nas religiões afro-brasileiras
As manifestações artísticas afrodecoloniais redimensionam a questão
colonial, assinalado no apagamento das heranças negro-africanas e nas trilhas
de permanência do racismo, do patriarcalismo, do colonialismo. As produções
pautadas pelo Norte geográfico e epistemológico determinam a economia de
poder da arte e as legitimam. Revisitar trabalhos desenvolvidos por artistas e
coletivos negros contribui para reescrever a história por uma outra perspectiva.
Exemplos diversos são mencionados por Reis (2020), como as figuras
pintadas por Yêdamaria, onde a presença de barcos a velas e Iemanjás evocam
memórias ancestrais de errrâncias marinhas, contrastadas com a luminosidade e
arranjos cromáticos tropicais. No que concerne à arte afro-brasileira, inúmeros
artistas se destacam, muito embora silenciados ou configurados como exóticos.
Muitos artistas relacionam à esfera religiosa aos diversos elementos de
africanidades. A produção brasileira a partir dos anos 70 observou um
reaparecimento de temáticas afro ancestrais nas artes. (CONDURU 2007, apud
REIS, 2020). Apoiadas na temática dos candomblés, foi possível observar novos
sentidos e significados aos valores ancestrais transmutados nos processos
criativos, nas técnicas e nos materiais empregados. As imagens racializadas
expostas nos mais diversos meios artísticos e culturais, ancoram- se nas
experiências das culturas afro-brasileiras, compreendidas como movimentos de
resistência e afirmação identitária.
Talvez por isso mesmo, as religiões de matrizes africanas têm se
presentificado nas produções artísticas contemporâneas como modos de
resistência às práticas coloniais. Notadamente, em obras que apontam para a
descolonização da história, das religiões afro-brasileiras e da crítica da arte,
colaborando na constituição de subjetividades decoloniais.(REIS, 2020).
Machado e Araújo (2019) apresentam em seu artigo “Ações e
experimentos artísticos na Amazônia amapaense: produção de sujeitos que se
autodeclaram ‘artistas de terreiro’” como a arte afro-brasileira a partir da religião
afro e cultura dos povos de terreiro, desde às umbandas aos candomblés, bem

54
como a cultura afro-ameríndia na Amazônia amapaense, também podem ser
percebidas como atitude política e de resistência às práticas decoloniais.
Observam, ainda, que de acordo com a cosmovisão africana, a arte em
seu contexto original estava sempre atrelada a religiosidade, mantendo uma
relação utilitária como forma de servir e satisfazer as necessidades de toda a
comunidade. Portanto, a importância da arte para o povo africano só se justifica
pela coletividade.
Um pensamento de integração corroborado por Rolin, ao dizer que a
concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as
divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos,
os vivos e os que ainda vão nascer, em contínuo processo de transformação e
de devir. Nesse sentido, a natureza, a religiosidade e a arte estariam inseridas
num mesmo processo, sendo inseparáveis.
Assim,
(...) enquanto no ocidente a arte se constituía no campo estético da
produção artística e exposições em galerias e grandes salões
expositivos, nas culturas tradicionais africanas a arte só produzia
significados quando estava intrinsicamente ligada a outros objetos e
manifestações culturais como: cantos, danças e aos ritos de
ancestralidade e memória da comunidade. Ou seja, para a arte
africana, um objeto se constitui enquanto arte quando é levado em
consideração suas ações performáticas enquanto performances
sagradas. (MACHADO; ARAUJO, 2019, p. 144-5).

As práticas desses coletivos que se auto intitulam “artistas de terreiro”


carregam consigo marcas da cultura e religiosidade africanas, tanto em suas
formas de expressão e construção identitárias quanto em suas cosmovisões.
Como já mencionado acima, às memórias ancestrais, a arte africana em seu
contexto original, sempre tiveram uma relação com a religiosidade, além de
manter uma relação utilitária com a coletividade de origem.
Trabalhos de artistas como Ayrson Heráclito, Aline Motta, Regiane Rios e
Thiago Ortiz, apenas para mencionar alguns nomes, apresentam narrativas
afrodiaspóricas em suas obras e a presença afrodescendente no Brasil, muitas
vezes denunciando à violência a que são submetidos os povos negro-africanos,
outras vezes anunciando construções identitárias, vínculos de pertença e

55
coletividade cultivados pelas religiões de matrizes africanas através de seus
valores éticos, estéticos, políticos, existenciais. (REIS, 2020).
Zwetsch (2018), jornalista e repórter musical, ressalta, do mesmo modo,
que as representações de matrizes africanas foram fundamentais para o
desenvolvimento dos principais gêneros musicais do país, considerando que é
impossível compreender a música brasileira sem refletir sobre a diáspora
africana para os continentes americanos a partir de 1500. O musicólogo
entende o surgimento da capoeira e do candomblé como movimentos de
resistência, de reencontro e de reestruturação da cultura africana no Brasil.
Segundo ele, as batidas do funk evidenciam os elementos dos pontos de
macumba tocados nos candomblés, tornando-se assim uma referência intuitiva à
África.
Para Reis (2020), a temática dos candomblés alia duas dimensões que, no
âmbito social e cultural, aparecem entrelaçadas: as experiências religiosa e racial.
Segundo o autor, o imaginário religioso e as narrativas dos corpos negros não
se dão de forma separadas. A compreensão dos espaços sagrados como lugares
de resistência e aquilombamentos dos povos negros, no qual as lutas pelo
reconhecimento, pela sobrevivência e modos de re-existência não estão
desvinculados da prática religiosa e dos vínculos comunitários.

Conclusão
Quando se pensa a decolonialidade em sua relação com a poética
artística religiosa, o candomblé, mais do que motivo, é expressão de um grupo
identitário, de enraizamento e pertença, pelo qual as mais variadas expressões
artísticas se configuram como meios de resistência, das lutas antirraciais, contra
hegemônicas e decoloniais. A religião, atrelada a esse modo de expressão, se
configura como um território sagrado refletindo um modo de existir no mundo.
É primordial o reconhecimento de que nos espaços de terreiro de
umbandas e candomblés existem artes, e cada ação e experimentos artísticos
produzidos podem ser entendidos como espaços de luta e resistência contra

56
ações de invisibilidade e silenciamento. Muitas vezes esse reconhecimento só
não acontece pelos países hegemônicos europeus.
Buscou-se através deste estudo integrar a arte, à decolonialidade e às
religiões afro-brasileiras, integrando novos sentidos ao pensamento global da
modernidade. Essa tarefa não é fácil, mas é possível ampliar essa reflexão com
novos estudos e temáticas que levem em conta as especificidades locais e
regionais, primordialmente àquelas estabelecidas no Brasil e na América Latina,
que se sustentam em movimentos de luta e resistência ao pensamento colonial.

Referências
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descolonização. Ver.Educ. Questão, Natal, v. 57, n. 54, out 2019. Disponível em:
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MACHADO, Claudete Nascimento; ARAUJO, Patrick F. de. Ações e


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57
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música brasileira. Disponível em: https://www.redbull.com/br-pt/music/A-
influencia-da-musica-africana-na-musica-brasileira. Acesso em: 15 ago 2022.

58
GT 6 - ENSINO RELIGIOSO: DIVERSIDADE E HUMANIZAÇÃO
Doutoranda Nathália Ferreira de Sousa Martins (UFJF)
Mestranda Adriana Rocha Ribeiro Araújo (UFJF)
Doutorando Harry Carvalho da Silveira Neto (UFPB)

Ementa: Este Grupo de Trabalho procura atrair pesquisas que tratam sobre o
Ensino Religioso (ER) nas escolas públicas e privadas do Brasil para um debate
reflexivo e analítico deste componente curricular com a pretensão de ser um
espaço para a abordagem de temas como: educação, democracia, ética,
humanização e religião. Sobretudo, como o ER pode minimizar a intolerância
religiosa nas escolas a partir do entendimento dele como uma área do
conhecimento que tem por objetivo promover um (re)conhecimento do outro,
com suas diferenças e similaridades, que visa produzir práticas de respeito e
tolerância, o que colabora com uma perspectiva de garantia dos direitos
humanos. Nesse sentido, um ER que foge de práticas confessionais e
proselitistas. A relevância do ER para a formação crítica do (a) cidadão (ã)
justifica-se também no fato que inúmeras expressões religiosas presentes no
cenário brasileiro convivem por vezes em relações de tensão entre si e com a
sociedade, buscando legitimar seus discursos e doutrinas, extrapolando o
âmbito privado. Nesse sentido, esse GT abarca temáticas variadas que envolvam
o diálogo entre religião e educação com o propósito de entender e analisar a
configuração do ER na atualidade, seus avanços e perspectivas, principalmente
neste momento no qual este componente curricular é contemplado na BNCC
(Base Nacional Comum Curricular), assim como possui uma área de referência,
as Ciências da Religião, garantido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)
para licenciatura em Ciências da Religião. O ER nesse sentido, longe de
perpetuar o status quo, sendo um instrumento de reprodução social, se alinha a
uma perspectiva de educação que visa a transformação da sociedade, através
do diálogo, da empatia, do pensamento crítico e autônomo dos e das
estudantes. Assim, trabalhos que pesquisam os aspectos históricos, curriculares,
práticos, didáticos, epistemológicos, de formação e capacitação docente do ER
não confessional serão bem-vindos a esse debate.

Palavras-chave: Ensino Religioso; Humanização; Diversidade.

59
A DEMOCRACIA NO ENSINO RELIGIOSO PERPASSA QUESTÕES
ÉTNICO-RACIAIS E DE GÊNERO4
Adriana Rocha Ribeiro Araújo
Mestranda em Ciências da Religião – UFJF,
Bolsista Capes
arocharibeiroaraujo@gmail.com

Resumo: Abordar um ensino laico e dentro de uma abordagem voltada para


promoção dos direitos humanos pode parecer fácil em termos gerais, mas as
dificuldades e entraves podem ir muito mais além do que apenas falar sobre várias
religiões nas aulas de ensino religioso. A BNCC expõe que a “interculturalidade e a ética
da alteridade constituem fundamentos teóricos e pedagógicos do ensino religioso”,
visando assim “combater a intolerância, a discriminação e exclusão”. Assim, como seria
pensar religião no ensino religioso em termos éticos perpassando também por termos
estéticos que envolva a ação política do professor da disciplina considerando questões
como raça e gênero? Acreditamos que a decoloniar a educação é possibilitar que vozes
identitárias apareçam no estudo dos fenômenos religiosos promovendo o que é
proposto pela BNCC. Da mesma forma, acreditamos que conduzir um estudo dos
fenômenos religiosos nessa perspectiva seja um exercício de democracia visando o
reconhecimento e respeito às alteridades. Esta comunicação versará em reflexão sobre
essa questão, tendo Paulo Freire, Elisa Rodrigues, Andrei Mussopkf e Aparecida de
Jesus Ferreira como suportes teóricos para metodologia em estudo bibliográfico.
Compreendemos as dificuldades que possa haver em abordagens de gênero e raça no
estudo dos fenômenos religiosos que podem recair sobre a falta de preparo do
professor sobre essas questões pela ausência da formação em licenciatura em Ciência
da Religião; bem como outras dificuldades advindas do desconhecimento ou do
preconceito ou de visões fundamentalistas sobre a questão de gênero tanto do
professor quanto da comunidade escolar. Também compreendemos que haja uma
redução relacional de raça a religiões de matrizes africanas esquecendo que o negro
transita por diversas tradições religiosas levando consigo sua ancestralidade.
Esperamos contribuir com reflexão sobre a importância de incluir questões de raça e de
gênero nas aulas de ensino religioso.
Palavras-chave: Ensino Religioso; Raça; Gênero; Ética: Estética.

Introdução
Sempre que a escola pública é acionada para ser pensada, muitas abas se
abrem para serem postas a reflexão. Há uma rede de relações tanto macro
quanto micropolíticas que se interconectam e elencam, ou pelo menos
deveriam elencar, o estudante no centro de todos os cuidados. Pensar que o
que há na teoria é posto em vias de práticas reais, creio que seja um caminhar

4 Houve uma pequena alteração no título após apresentação no GT6 Ensino Religioso:
diversidade e humanização. No caderno de resumos do VI CONACIR está escrito A Democracia
no Ensino Religioso perpassa sobre raça e gênero.
60
que desejamos alcançar em pedagogias freireanas que também são galgadas
para o ensino religioso. Como será possível aproximar as orientações
documentais para a educação percebendo a necessidade de o ensino religioso
dialogar o currículo formal, o real com um currículo oculto, principalmente, num
momento de negacionismos, de fundamentalismos e de intolerâncias? O
objetivo desse ensaio é refletir sobre considerações de ordem epistemológicas
para se pensar em termos de desafios e ousadias. Assim, pensar nas
diversidades e interculturalidades nas aulas de ensino religioso deverá ir pela
laicidade, pela democracia e pela educação para as relações étnico-raciais e de
gênero.

1. Conceituando multiplus olhares: a democracia para no Ensino religioso


reflexivo
Comecemos um diálogo neste ensaio por uma reflexão sobre termos
utilizados no título para compreendermos os caminhos que trilharemos. O que
compreendemos por democracia é o que ela representa em vias de realidade
social? As ciências sociais e a história podem nos apresentar democracias em
diversos aspectos, em vias de contextos temporais e espaciais, envolvendo
questões como democracia econômica, democracia social, democracia jurídica,
democracia política. Nem sempre podemos ficar seguros sobre uma definição
fechada em si, pois há implicações outras que se interseccionam e alteram o
sentido e as abordagens, assim tratamos a democracia aqui como uma
categoria. Democratizar poderia ser associado à universalização e
representação em termos de possibilitar o acesso maior de participação aos
bens e serviços produzidos, assim, abrimos precedentes para a complexidade de
um sistema e para o refletir sobre considerações de existência de várias vozes
num espaço público.
Quando Rosseau pensou no Contrato Social, compreendeu a
necessidade de uma democracia participativa em todos os setores da sociedade,
sentido que muitas vezes trazemos de compreensão de que todo poder emana
do povo, para o povo e pelo povo. Pensando nesses termos democráticos,

61
torna-se curiosa a reflexão sobre a esfera pública e os bens e serviços
produzidos: por quem produzido, para que público, com que finalidade, se há
qualidade no que é oferecido de forma igualitária, se há acesso a esses bens e
serviços pela população, se há uma equidade social e isonomia jurídica, por
exemplo. Quando tratamos de bens, vale lembrar que podem ser de ordem
material ou simbólico. Os bens simbólicos desencadeiam produção de sentidos
e valores aos contextos em que estamos inseridos constituindo assim um
sistema simbólico que remetemos à arte, à religião, à linguagem, por exemplo.
Bourdieu vai nos informar que todos somos produtores de bens
simbólicos, mas há aqueles que os reduzem para controle social em valores e
estética de privilégios, assim vai classificar esses produtores nas relações de
poder, num domínio sociocultural, nos diversos campos da esfera pública. A
democracia, em termos ideais de atuação, na esfera pública deveria estar sendo
mais vivenciada em abertura para o diálogo com a complexidade das relações
existentes no âmbito sociocultural que traz o indivíduo como sujeito construtor
e, também, sendo objeto de construção de sentidos. As narrativas que são
articuladas em âmbito particular e coletivo na esfera privada e pública vão
organizando sentidos peculiares em cada indivíduo em realidades que chegam
à escola também e na sala de aula do ensino religioso. Trazer as diversas
narrativas para dialogarem na sala de aula é possibilitar a democratização de
compartilhar saberes, em perspectivas boaventuranas, além de fornecer uma
proposta reflexiva para o ensino religioso seguindo as diretrizes nacionais
curriculares.
É válido pensar em como tratar desses indivíduos tão particulares em
perspectivas de formação de um indivíduo crítico-reflexivo para protagonismo
de cidadania. A violência e a intolerância só crescem e podemos traçar relações
diretamente vinculadas, mesmo que em complexidade e dentro de nossa
limitação, a uma educação engessada em perspectivas colonizadoras de
silenciamentos e invisibilização de indivíduos. O engessamento provindo de um
discurso de democracia racial, de que a democracia deve agir em função da
maioria, de que há o respeito aos direitos para todos indistintamente de credo,

62
de gênero e de trato étnico-racial. Há desafios para um diálogo interreligioso,
pois cada indivíduo traz consigo verdades sobre a realidade, além das
experiências religiosas e orientações sobre valores e sobre o agir. O ensino
religioso, seguindo orientações da BNCC, tem a missão de desenvolver dez
competências gerais, juntamente com outros componentes curriculares, dentre
elas, destaco: o conhecimento; pensamento científico, crítico e criativo;
repertório cultural; empatia e cooperação; cidadania e responsabilidade. A
proposta de um ensino religioso reflexivo, segundo Rodrigues (2021), é tratar o
ensino com pressupostos teóricos e epistemológicos cunhados pela Ciência da
Religião, pois ele se abre ao diálogo interreligioso para leitura das realidades. Ler
realidades é uma tarefa que requer zelo e preparação para um protagonismo
social ético.
A escola é um meio por onde a grande maioria dos brasileiros passa e
vivência experiências sociais e cognitivas. Conhecido pelas famílias e estudantes
como segunda casa, a escola também é lugar de apreensão da realidade para
formação cidadã. O Ensino Religioso é hoje uma disciplina presente no quadro
de obrigatoriedade de oferta escolar pública e é legislado em documentos da
Educação Básica: a LDB5 9394/96 reformulada na Lei 9475/97 no art 33;
registrado como componente curricular sob a orientação da BNCC6 2017, além
de vir sendo citada nas diversas constituições e ainda presente na Constituição
Federal de 1988 e em consonância com as DCNs7 de CRE. A presença da
disciplina na BNCC é um avanço político-educacional que o professor Elcio
Cechetti8, um dos pareceristas sobre o Ensino Religioso na BNCC, traduz por
reconhecimento pelo Estado da função social e de identidade pedagógica do

5 LDB – Lei de Diretrizes e Base


6 BNCC – Base Nacional Comum Curricular
7 DCNs – Diretrizes Curriculares Nacionais
8 O professor Elcio Cechetti é doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC). Realizou doutorado sanduíche na Universidade de Salamanca (Espanha) entre


out./14 e out./15.Graduado em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso pela
Universidade Regional de Blumenau (FURB). É assistente técnico pedagógico efetivo da
Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC). É docente e coordenador do
Curso de Licenciatura em Ciências da Religião EAD da Unochapecó e é membro do FONAPER
(Fórum Nacional de Professores de Ensino Religioso)
63
componente curricular. O alerta que ele nos faz sobre currículo, nesse parecer9,
a partir da leitura de Miguel Arroyo10, envolvendo não apenas o currículo de
ensino religioso, mas o de todos as disciplinas, é que há disputas por esse
território documental por onde se estrutura a função social da escola num
“resultado das relações de poder que estão em ‘jogo’ nas disputas das relações
sociais e políticas de dominação-subordinação”. Também complementa essa
reflexão com a leitura que faz de Sacristán, informando que o currículo não
trata apenas de um documento norteador e regulador em que se encontra
“concepções educativas, objetivos, metodologias e procedimentos avaliativos”.
Apresentar dialógos-dialéticos para as aulas de ensino religioso não-
confessional é possibilitar que haja vozes de fenômenos religiosos multiplus
circulando na sala de aula. Rodrigues (2021) lembra que Pierre Sanchis elucida
sobre o campo religioso brasileiro dotado de diversas expressões de crenças e
consciências em “espaço de lógicas múltiplas derivadas das tradições
ameríndias, cristãs (primeiramente, católica apostólica romana e,
posteriormente, protestantes e pentecostais), africanas, além de outros
movimentos religiosos”. Essas expressões precisam estar presentes nas aulas de
ensino religioso trazendo uma compreensão ao campo de estudo que está
repleto de bricolagens, rupturas e ressignificações.
Estar comprometido com a fenomenologia da religião é possibilitar o
olhar reflexivo sobre diversas temáticas que a envolve atentando para os
aspectos histórico-sócio-cultural desprovido de qualquer cunho proselitista ou
classificatório. Estudar sobre a religião está na investigação sobre as maneiras
que o ser humano encontra nas diversas crenças, sistemas de crenças,
consciências e filosofias, maneiras de expressar suas vivências a partir das
interpretações. Elisa Rodrigues (2021) vai explicitar que a compreensão
ontológica e social estará vinculada a concepções de sentido internas ao
indivíduo que o fazem organizar a vida a partir de uma coletividade em que
esteja inserida promovendo assim o agir tanto individual quanto coletivo. Esse

9 O parecer pode ser acessado no endereço


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/Elcio_Cecchetti.pdf
10 ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011

64
agir infere diretamente em outras esferas da vida pública e será exatamente por
meio desse encontro que o estudo sobre religião se dará. A esfera pública, na
teoria de Habermas11, possibilita vários encontros e tipos de relações entre
vários sujeitos privados. Poderíamos dialogar Rodrigues com Habermas
voltando-nos para o Ensino Religioso e a democracia. A aproximação poderia
ser feita no que tange ao professor ser esse servidor público que possui em sua
sala vários sujeitos privados dotados de crenças individuais, valores,
cosmovisões. O professor terá a possibilidade de conduzir a compreensão sobre
a religião por meio dos fenômenos que ela apresenta atravessando as relações
sociais, históricas e culturais. Considerar a possibilidade do diálogo interreligioso
será possibilitar a compreensão das dimensões do ser humano na sociedade em
suas expressões e manifestações de vivências tendo a religião as atravessando,
situando o ser humano como ser histórico e político.
Em toda democracia há os diversos atores que estão presentes que
precisam ser visualizados, assim também um ensino religioso democrático
deverá ser reflexivo desses diversos atores presentes no campo religioso. Dessa
forma, o ensino religioso se comportará dentro de um estado laico de forma
respeitosa e também atendendo às orientações da BNCC. Isso se remeteria a
possibilidades de abordagens plurais sobre as diversas religiões, sobre as
crenças populares, sobre as espiritualidades e sobre as filosofias de vida que
contemplam ateus, agnósticos, desigrejados, sobre trânsitos religiosos, sobre
sincretismos, sobre religiões orientais. Abre-se a possibilidade de descobrir a
relação da religião com as artes, da religião com a política, a religião com a
economia, a religião com a estética, com a ética. Vai possibilitar a compreensão
sobre “a medida que as religiões alcançam as pessoas e interferem em suas
vidas interpelando-as, criando consensos e dissensos, abrindo ou fechando
horizontes, limitando decisões, modelando vidas e, por assim dizer, expressando
algo de nós mesmos”, (RODRIGUES, 2021). A religião tem esse poder de
influenciar na organização da vida das pessoas e assim modelar a vida.

11 A compreensão de Habermas para a relação entre o público e o privado é explorado por


Jessé Souza no livro A Elite do Atraso, da escravidão a Bolsonaro, fazendo-nos refletir sobre as
interferências que há na esfera pública envolvendo liberdade e poder de sujeitos privados.
65
Possibilitar um estudo compreensivo nos remete a possibilidade de
enxergarmos a nós mesmos e fazermos parte dessa formação integral do ser
humano para um cidadão de protagonismo pela cultura da paz e do respeito às
diferenças. Mas quais atores que são escolhidos a serem observados durante
esse estudo? Qual a presença do papel do homem e da mulher construído na
religião como fato social? Qual a composição de raça e etnia está presente na
estética e nos valores no campo religioso? Trazer um ensino reflexivo
democrático é possibilitar acesso a questão de gênero e de raça-etnia.

2. O campo religioso possui cores e gênero


Democratizar o estudo do campo religioso na educação básica também é
perceber os diversos atores nos contextos dos fenômenos a serem objetos de
estudo. Descolonizar o olhar de uma eugenia que só silenciou e marginalizou
pessoas também deverá se fazer presente nos estudos do fenômeno sócio-
religioso. A realidade de privilégio de branquitude só é enxergada com a
apreensão da realidade de negritude que se opõe a ela. A realidade de
extermínio indígena só é percebida a partir da compreensão de genocídio
cultural. Falar de democracia é falar de privilégios, de apagamentos e também
de resistência para reexistir na sociedade.
Poderíamos afirmar que somos herança da escravidão e do patriarcado e
por assim dizer passivos a invisibilizar a desumanização que a religião
proporcionou em violências contra pessoas não-brancas. Não se visibiliza a
religiosidade que pessoas LGBTs, por exemplo, trazem em suas experiências e
hermenêuticas; muito menos as violências que são impetradas a elas em nome
de dogmas fundamentalistas em controle de corpos. Acredito que a grande
maioria de professores de ensino religioso desconhecem a diversidade de
teologias (libertação, queer, feminista, latina-americana, negra, afroameríndias,
por exemplo). As teologias trazem traços de resistências, uma heresia e
transgressão de libertação a um engessamento de apenas um modo de viver
que é insistentemente transmitido como tradição de ordem e civilidade por
meio da violência simbólica de um ensino religioso não reflexivo sobre os

66
fenômenos religiosos vivenciados por vários atores, em contextos regionais,
diretamente ligados a uma visão hegemônica.
Toda nossa compreensão e realidade apreendida é derivada dessa
questão. “Na medida em que o passado foi transmitido como tradição, possui
autoridade; na medida em que a autoridade se apresenta historicamente,
converte-se em tradição” (ARENDT, 2008, p. 208). Nessas palavras, mesmo que
voltadas para as citações de Walter Benjamin12, estabelecemos um encontro de
Arendt com um pensamento weberiano sobre tradição e o poder de domínio
em que há num ciclo estabelecido. Assim podemos analisar que quando é
apresentado um passado de superioridade branca, patriarcal e cristã
relacionada a uma ordem, a uma civilidade; e, por assim dizer compreendida
como autoridade e transmitida como tradição, cria-se uma semiótica. Uma
semiótica de que tudo o que há dentro desse sistema de signos possa ser
traduzido como verdadeiro e inquestionável, pois a compreensão de que
sempre foi assim e assim se mantém uma organização social civilizatória é
repassada. Dessa forma estabelece-se o domínio pela tradição. Acontece que
num sistema de domínio num campo religioso, por exemplo em estudo,
conforme compreendemos em Bourdieu, a linguagem de valor estético por um
cristianismo, por uma branquitude e por um patriarcalismo é repassado como
natural à religião. Isso é motivo de embate entre os que estão inseridos num
sistema hierárquico contemplado nas camadas que atendem a esse sistema e os
que estão à margem em sincretismos e não pertencentes a esse sistema. Como
Bourdieu poderia alertar para uma luta no campo social entre a ortodoxia e a
heresia.

12 Walter Benjamin (1892-1940) tem um capítulo dedicado exclusivamente para ele no livro de
Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios. O capítulo é dividido em vários subtítulos: O
corcunda, Os tempos sombrios, O pescador de pérolas. Em cada subtítulo, Arendt vai expondo
suas percepções sobre o autor judeu Benjamin a partir da reflexão sobre fama póstuma e as
facetas dele de romper com o passado. Pelas próprias palavras de Arendt, “Benjamin se
considerava um crítico literário”, p168, mas ela o descreve anteriormente como alguém que
tinha erudição, mas não era erudito; era atraído pela teologia, mas não era teólogo; traduzia
livro, mas não era tradutor; resenhava livros, escreveu ensaios; pensava poeticamente sobre a
vida, mas não era filosofo nem poeta. A citação exposta no texto está no terceiro subtítulo, O
pescador de pérolas (p.208-222), em que é apresentado uma análise sobre a volta ao passado
como “desespero do presente e o desejo de destruí-lo”, bem como outras análises envolvendo a
atitude do colecionador e do herdeiro e outras questões.
67
Talvez possamos estabelecer um diálogo sobre essa compreensão de
herança social por vias de dominador e dominado por meio de autores como
Aparecida de Jesus Ferreira, Bell Hooks, Hannah Arendt, Lélia Gonçalves, Luiz
Rufino, Krenak, André Musskopf e Elisa Rodrigues para percebermos que talvez
a democracia não tenha sido uma conquista alcançada na maioria das salas de
aula, principalmente na disciplina de ensino religioso. Essa compreensão tem
contextos históricos da formação cultural brasileira que é atravessada pela
religião como uma esfera social cujos personagens também organizam suas
vidas por meio dela.
A visibilidade do povo negro e dos povos originários no campo religioso
brasileiro, na maioria das vezes, pode estar sendo tratada, nas salas de aula, com
víeis pejorativo, com víeis de inferioridade, com víeis folclórico de celebração de
data em calendário. Tratar dos fenômenos religiosos em perspectivas de uma
sociologia comparativa poderá trazer possibilidade de uma apreensão de
diversas realidades.
A apreensão das realidades é diferente, há vários fatores que interferem
na organização de vida e construção de identidades. Um desses fatores é a raça
e o gênero que dialogam com a questão de classe. A existência de racismo, de
racismo estrutural, de um sistema de dominação centrado na branquitude e no
patriarcado faz sufocar e influencia diretamente em como se apreende uma
realidade e como se age dentro dos contextos nas relações. Se é por meio da
linguagem que se expressa no mundo o mundo que conhecemos, é também
por ela que apreendemos e agimos em diversas manifestações, muitas vezes,
não apenas reproduzindo o que apreendemos, mas também com
potencialidade de rompermos com ela e a reconstruirmos. Democratizar a
educação brasileira é possibilitar a vivência de pluralidades em diversos espaços
públicos através da garantia de descolonizar o apreender de um víeis de
domínio de tradição.
Hooks (2013) vai apresentar a importância da transgressão como
estratégia de romper com um ensino colonial inferiorizador e determinante do
lugar da pessoa negra na sociedade. Transgredir é se tornar subversivo a um

68
sistema que invisibiliza ou distorce a participação histórica da pessoa negra, da
pessoa indígena, do imigrante, da mulher, de pessoas LGBTs na sociedade em
fenômenos socio-religiosos. Transgredir para libertar, dentro de um sistema
democrático decolonial, é possibilitar que o(a) estudante negro(a) ou indígena
se identifique com a linguagem que circula na sala de aula e possibilitar que ele
consiga construir seu projeto de vida, uma das habilidade para serem
desenvolvidas pelo ensino religioso, pautado na ética. A habilidade EF09ER08,
como orientação da BNCC, é para ser desenvolvida nos anos finais do
fundamental II e consiste em desenvolver o objeto de conhecimento princípios
e valores éticos possibilitando o educando construir seu projeto de vida. Dentro
desse objeto de conhecimento há também mais duas habilidades que deverão
ser desenvolvidas como o “reconhecer a coexistência como uma atitude ética
de respeito à vida e à dignidade humana” e o de “identificar princípios éticos
(familiares, religiosos e culturais) que possam alicerçar a construção de projetos
de vida”, (BNCC, 2017, p 459).
Se não tivesse havido políticas públicas afirmativas que obrigaram, pela
força da Lei 11.645/2008, para implementar o ensino de história e cultura
africana e indígena no Brasil, provavelmente ainda estaríamos mergulhados
num analfabetismo em prol de uma globalização hegemônica colonial. Ainda
há muito o que ser feito como traz Aparecida de Jesus (2019), falta um
letramento racial crítico, uma educação para as relações étnico-raciais. Embora
seu artigo mencione narrativas autobiográficas de professoras de línguas de
identidades sociais e de raça para serem analisadas, podemos nos valer por
comparação sociológica da importância de trazer para sala de aula narrativas de
religiosas negras para serem estudadas em fenomenologia de hermenêutica
mítica, de lidar com racismo estrutural dentro das instituições que frequentam,
de intimidade e/ou comunicação com o Transcendente, a participação nas
festas religiosas, a expressão de fé por meio dos ritos, como utilizam da religião
para obter um conforto não apenas espiritual como também material. Na
compreensão de um letramento racial crítico, trazendo para contextos da
religiosidade indígena, a compreensão de um viver intimamente ligado a Terra

69
e aos valores da partilha comunitária, a cosmovisão xamânica, as relações
sincréticas com o daime, com a jurema, com o marabaixo, com a umbanda.

Conclusão
Se o estudo sobre religião invisibiliza a existência de fenômenos religiosos
que abordam crenças, espiritualidades, expressões religiosas em questão étnico-
racial e de gênero, o silenciamento de diversidade e pluralidade religiosa poderá
permanecer a serviço da manutenção de uma eugenia de superioridade cristã,
branca e patriarcal. A leitura de um ensino religioso laico interreligioso pode
ficar comprometido se não houver um letramento para as relações étnico-raciais
e de gênero. O estranhamento do outro, que é diferente de mim, possibilita
perceber uma pluralidade e diversidade religiosa que precisa ser compreendida
para que haja uma convivência social pautada pela ética nas relações.
Compreender que o campo religioso brasileiro possui contextos
geograficamente sociais e culturais pautados pela história e as relações de
poder é possibilitar uma busca pela cultura da paz e pelo combate às
intolerâncias para promover uma igualdade racial e de gênero.

Referências
ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das
Letras. 2008
BRASIL. BNCC. MEC: 2017 Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/#fundamental/ensino-religioso-
no-ensino-fundamental-anos-finais-unidades-tematicas-objetos-de-
conhecimento-e-habilidades. Último acesso em agosto de 2022.
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: BOURDIEU,
Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 27-78.
FERREIRA, Aparecida de Jesus. Letramento racial Crítico: falta representatividade
negra em materiais didáticos e na mídia (entrevista). Revista Uniletras, Ponta
Grossa, v. 41, n. 1, p. 123-127, jan/jun. 2019.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Editora Paz e Terra. Rio de
Janeiro, 1986.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1997.
70
hooks, bell. Ensinando a Transgredir -a educação como prática da liberdade.
São Paulo: WMF. 2013.
MUSSKOPF, André S. Nem Santo te Protege: aids, teologia e religião de bolso.
Belo Horizonte: Senso, vol 1, 2020.
MUSSKOPF, André S. Que Comece a Festa: o filho pródigo e os homens gays.
Belo Horizonte: Senso, vol 2, 2020.
MUSSKOPF, André S. Viado Não Nasce, Estreia! Não Morre, Vira Purpurina. Belo
Horizonte: Senso, vol 3, 2020.
RODRIGUES, Elisa. Ensino Religioso: uma proposta reflexiva. Editora Senso.
2021.
SILVEIRA, Emerson Sena da; JUNQUEIRA, Sérgio (org). O Ensino Religioso na
BNCC – teoria e prática para o ensino fundamental. Petrópolis: Vozes, 2020.
ZABATIERO, Julio P. T.; MENEZES, Jonathan M de. Gianni Vattimo e Jen-
LucNancy: o fundamentalismo democrático. Revista Horizonte. Belo Horizonte,
v. 18, n. 57, p. 1031-1049, set./dez. 2020 – ISSN 2175-5841.

71
ENSINO RELIGIOSO: RELEVANTE COMPONENTE CURRICULAR
PARA COMBATER A INTOLERÂNCIA ÉTNICO-RACIAL E RELIGIOSA
NAS ESCOLAS
Cléa Luíza Rosa Dias
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana-FTSA
cleacexa2017@gmail.com

Heli Santos Santana


Pós-graduado em Educação a Distância UNOPAR
heli29053@gmail.com

Resumo: Propomos mostrar como o componente curricular Ensino Religioso pode


contribuir para a formação de uma sociedade menos violenta, mais igualitária e
antirracista. A presente pesquisa tem o escopo de identificar as manifestações
cotidianas de intolerâncias nas escolas e como enfrentá-las. Inicialmente será utilizada a
Legislação, partindo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei
9.394/1996, que preconiza o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil. No
entanto, esta lei deixou a lacuna de promover a valorização histórico-cultural e religiosa
sem proselitismo, havendo necessidade de alterá-la pelas Leis 9.475/1997 e
10.639/2003 e, posteriormente, esta última, modificada pela Lei 11.645/2008. Estas
foram elaboradas com viés de incluir obrigatoriamente o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena. A diversidade cultural e pluralismo religioso dentro do
ambiente escolar, gera uma tensão constante entre os alunos da educação básica,
aumentando a violência e distanciando-os de uma boa formação cidadã. O problema
maximiza com a falta de especialização e/ou capacitação dos professores e professoras
na área de ciências da religião para mediar estes conflitos, ocasionando o principal
entrave para aplicação efetiva das leis retromencionadas. Quanto a metodologia, será
baseada em pesquisas bibliográficas em artigos publicados em periódicos científicos,
dissertações, teses e obras nas áreas de teologia e pedagogia. Justifica-se que o Ensino
Religioso é relevante para trabalhar valores e respeito às diferenças histórico-culturais e
religiosas. Dessa forma, a pesquisa propõe elaboração de materiais didático-
pedagógicos que possam auxiliar professores e professoras a ministrarem suas aulas
através de ensino lúdico e interdisciplinares, contendo histórias em quadrinhos (HQ),
culinária, arte, poesia, ciência, religião e jogos digitais. Destarte, almejamos contribuir
com o GT 6 (Ensino Religioso: diversidade e humanização), mostrando que o Ensino
Religioso, o(a) professor(a) e a escola, terão uma grande relevância em reconhecer a
diversidade e pluralismo como construção histórica, social, religiosa e política das
diferenças, com enfoque na valorização humana e, consequentemente, no combate ao
racismo e quaisquer outros tipos de intolerância.
Palavras-chave: Ensino Religioso; Legislação; Violência; Intolerância.

Introdução
As constantes transformações que vem passando a sociedade exigem do
ser humano um novo modo de viver e compreender determinadas situações
72
que envolvem a família, a sociedade, a escola. Nesse contexto, a educação é um
importante meio que busca oferecer uma maneira de proporcionar a
compreensão dessas mudanças, pois faz com que o(a) aluno(a) possa descobrir
desde cedo a importância de viver em sociedade, ao oferecer condições para
descobrir por si mesmo e passe a se sentir parte integrante da sociedade.
Nessa perspectiva, o Ensino Religioso consiste em uma disciplina da
educação básica brasileira que tem como objetivo principal propor reflexões
sobre fundamentos, costumes e valores das várias religiões existentes na
sociedade. Nos encontramos inseridos em uma sociedade permeada por
constantes práticas racistas, preconceituosas e de intolerâncias, que se refletem
dentro das unidades de ensino. Dessa forma, falar de Ensino Religioso numa
perspectiva para a pluralidade religiosa é muito complexo e desafiador, por
buscar uma educação que contemple a diversidade cultural e, através disso,
proporcione a alteridade, a compreensão, o reconhecimento em relação às
diversas tradições religiosas e, ainda, resgate o diálogo com esse poderoso
fenômeno humano.
O Ensino Religioso, garantido no artigo 210, parágrafo 1°, da
Constituição Federal de 1988 e no artigo 33, da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394/1996, alterado pela Lei nº 9.475/1997, é
parte integrante da formação básica do cidadão, sendo assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil.
Em um processo de lutas e conquistas foi homologada a Lei nº
10.639/2003, tornando obrigatória a inclusão da História e Cultura Afro-
Brasileira e, posteriormente, a Lei nº 11.645/2008, que acrescentou a
obrigatoriedade do ensino da História e da Cultura Indígena, ambas alterando
alterou a Lei nº 9.394/1996. Tudo isto, constitui elementos norteadores e
desencadeadores para possíveis modificações de concepções e práticas
educativas no âmbito educacional brasileiro.
Justifica-se que o Ensino Religioso é relevante para trabalhar valores e
respeito às diferenças histórico-culturais e religiosas.

73
A metodologia utilizada se deu através de pesquisas bibliográficas em
artigos publicados em periódicos científicos, dissertações, teses e obras nas
áreas de teologia e pedagogia.
O presente artigo faz parte de uma pesquisa que vem sendo
desenvolvida no programa de Mestrado em Teologia, na linha de pesquisa
Teologia e Espaço Público, tendo como objetivo identificar as manifestações
cotidianas de intolerâncias nas escolas e como enfrentá-las, propondo a
elaboração de materiais didático-pedagógicos que possam auxiliar professores e
professoras a ministrarem suas aulas através de ensino lúdico e
interdisciplinares, contendo histórias em quadrinhos (HQ), culinária, arte,
poesia, ciência, religião e jogos digitais

1. O Ensino Religioso a partir da LDB/96


A disciplina de Ensino Religioso sempre fez parte do currículo escolar da
Educação Básica, mas sua característica histórica na educação brasileira esteve
relegada a um formato catequético e confessional. A possibilidade de uma
virada epistemológica, metodológica e pedagógica se concretizou com a nova
redação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e na
correção de redação de seu art. 33, em 1997, pela Lei nº 9.475, que altera o
dispositivo da LDB.
O texto original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB)
de nº 9.394/96, registra no seu artigo 33 as modalidades de oferta do ensino
religioso na escola pública, sendo essas, confessional e interconfessional para a
prática educacional, além da expressão “sem ônus para os cofres públicos”,
proporcionando a ampliação dos estudos sobre a identidade desta disciplina e,
também, reforçando a necessidade de salvaguardar os direitos a liberdade
religiosa ao cidadão que frequenta a escola pública (JUNQUEIRA, 2012, p. 113).
O texto da lei não trouxe novidades e não agradou todos. Além de
permanecer a confessionalidade, mesmo respeitando as diferentes confissões
religiosas, a questão que mais causou polêmica e desagrado foi que cabe à
escola oferecê-lo, porém, sem que represente qualquer ônus para o Estado,

74
restando às organizações religiosas a definição dos conteúdos e a garantia dos
professores. A partir da insatisfação de comunidades escolares e das Igrejas,
logo após a promulgação da Lei, inicia-se uma mobilização para mudança da
LDB no Congresso Nacional.
Nesse contexto, a Lei nº 9.475/97 deu nova redação para o artigo 33 e
foi a primeira emenda a LDB. Com a nova redação, foi superada a expressão
“sem ônus”, abrindo a possibilidade de os Estados remunerarem os professores
da disciplina Ensino Religioso. Acrescenta também que os sistemas de ensino
teriam a competência para regulamentar os procedimentos para a definição dos
conteúdos e estabeleceriam as normas para habilitação e admissão de
professores. O novo texto possui mais caráter confessional, pois prioriza o
aspecto plural da sociedade brasileira, respeitando sua diversidade cultural e
religiosa, sem preferência a qualquer tradição religiosa.
A partir de 1997, o Ensino Religioso teve um novo enfoque, pois sua base
deixou de ser teológica e passou a ser fenomenológica, isto é, incentivando
uma releitura do fenômeno religioso que se manifesta nas diversas culturas com
linguagens diferentes. Diante do exposto, precisamos compreender que este
fenômeno acompanha as mudanças do tempo, no sentido de apresentar outras
formas de expressões da religiosidade que, portanto, seria toda expressão
religiosa, seja coletiva ou individual. Isso inclui crenças, rituais, objetos, imagens,
palavras, símbolos e tudo o que possa ser entendido como expressão cultural de
um povo, revelando o sentido profundo e os valores cultivados na vida a partir
da experiência do sagrado (JUNQUEIRA, 2015, p. 9).
O reconhecimento do ER como elemento importante na formação
humana, com características essenciais de respeito à diversidade cultural e
religiosa, elevou a disciplina a uma área de conhecimento, sendo respaldada
pelas Resoluções CNE/CEB nº 04/2010 e CNE/CEB nº 07/2010, que definem as
Diretrizes Curriculares Nacionais.
Como o Ministério de Educação não elaborou um parâmetro curricular
para nortear a elaboração dos conteúdos da disciplina ER, a tarefa então foi
desempenhada pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso

75
(FONAPER) com a criação do documento dos Parâmetros Curriculares
Nacionais/Ensino Religioso (PCNER), em 1997.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso, o Ensino
Religioso é tratado como um componente curricular e, segundo Rodrigues,
Machado e Junqueira (2004, p. 2), começa a ser estruturado pelas orientações
do Conselho Nacional de Educação, pelo modelo fenomenológico com o
objeto do fenômeno religioso e objetivos organizados pelas diretrizes
curriculares, e deve ser levado em uma atuação docente pautada por uma
visão clara entre as religiões e a construção cultural do país, tornando o aluno
um sujeito crítico do conhecimento.
A concepção de Ensino Religioso, presente nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), vislumbra novas perspectivas para sua prática pedagógica, que
representam uma verdadeira mudança paradigmática nesta área do
conhecimento, e cumpre sua principal tarefa no ensino: a formação integral do
educando, a fim de que possa desenvolver de forma holística um ser humano
com consciência da diversidade, proporcionando mais tolerância e
entendimento, evitando-se o fundamentalismo desagregador e intolerante, e,
assim, possa alcançar o diálogo inter-religioso. O que se consolidou na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), elaborada pelo Ministério da Educação e
Cultura, como proposta pedagógica para o Ensino Religioso.
Em 2003, com a promulgação da Lei n° 10.639 sobre o ensino da Cultura
Afro-Brasileira, que foi alterada pela Lei n° 11.645/2008, ampliando para a
cultura indígena, propõe a discussão da temática étnico-racial em todas as
disciplinas. Especificamente para o Ensino Religioso, verifica-se que desde a
publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais do ER, em 1997, existe uma
orientação para organizar o conteúdo a partir das matrizes indígena e afro-
brasileira.

2. Impasses e desafios do Ensino Religioso


O ponto de partida para abertura à pluralidade religiosa na sociedade
moderna foi à secularização do Estado, a separação entre Igreja-Estado, pois

76
marcou o fim do monopólio da Igreja Católica e seus privilégios. Esse novo
cenário leva a ex-religião oficial do Estado a conviver com a possibilidade de
abertura a novos atores religiosos e, consequentemente, a perda de influência
social e fiéis. Para existir o pluralismo religioso torna-se fundamental a existência
da liberdade religiosa, e para isso, na sociedade moderna, o Estado é o agente
regulador jurídico com a função de garantir a liberdade dos vários credos, por
meio de sua secularização.
Uma sociedade que tem como característica a intransigência, o
fundamentalismo, e o monopólio por uma determinada religião ainda não está
apta para ser plural quanto ao fenômeno da religiosidade. O pluralismo
religioso remete ao reconhecimento das diversas religiões, aceitá-las, enquanto
tal, estar abertos ao diálogo e a “reconhecer os outros menos como
competidores, mas sim, verdadeiramente, como companheiros de aventura
existencial” (SILVA, 2002, p. 69).
Muitos conflitos entre as religiões podem ser vistos no decorrer da
história, fato de o fenômeno da violência e da intolerância religiosa revelado
como desafio de ser vivido o bom convívio entre as religiões. Diante disso, o
pluralismo religioso é “um ideal poderoso destinado a resolver a questão de
como se dar bem em um mundo dominado por conflitos” (BECKFORD, 2014, p.
16).
O pluralismo religioso é o exercício dialogal com outras tradições em
profundo respeito por sua dignidade e valor. Exige abertura, decisão de
aprender do outro e com o outro. Nesse diálogo, o único e essencial de cada
confissão religiosa se desenvolverá, e cada religião, na comunicação com outras
tradições religiosas, não se diluirá; ao contrário, reencontrará sua própria
identidade de um modo mais intenso e renovado.
A realidade brasileira é plurirreligiosa e traz como característica a
diversidade. O Ensino Religioso está inserido neste contexto, sendo afetado
diretamente por ele. Por um lado, a disciplina tem lei específica que a
regulamenta. Por outro lado, precisa dar conta da diversidade em termos de

77
diferentes tradições religiosas presentes tanto na sociedade brasileira como na
escola (STRECK, 2012, p. 262).
Pupo (2017, p. 167) coloca que, sendo o Brasil uma nação como
pluralidade cultural e religiosa, tem uma sociedade em que nem todos
respeitam a diversidade religiosa, e sendo a escola um local de socialização ela
abrange uma grande quantidade dessas diversidades.
Nessas circunstâncias, o papel social da educação escolar é determinante,
pois o trabalho pedagógico deve oportunizar que os seus alunos possam ter um
projeto de futuro que vislumbre uma vida digna. Para tanto, os educadores
necessariamente precisam ter clareza sobre a pluralidade religiosa que é marca
expressiva da cultura brasileira, no qual convivem inúmeras crenças de
diferentes matrizes. No dizer de Siqueira:
É perceptível que no trabalho pedagógico sobre o pluralismo religioso
que está presente no Brasil, vem acompanhado ao logo de sua
história, como sendo um contrassenso à legislação educacional, visto
que a realidade histórica-social-antropológica da formação do povo
brasileiro tende a ser excludente, formadora de mentalidades parciais,
invisibilizando a diversidade religiosa e não proporcionando reflexões
da multiforme de expressões cultural de nossa nação (2019, p. 101).

Diante dessa situação, seguindo o pensamento de Streck, como “educar


o ser humano de hoje, considerando uma realidade brasileira que é
plurirreligiosa e que tem como característica fundamental a diversidade
religiosa?” (2012, p. 263). É fato que já houve avanços em relação à pluralidade
e a liberdade religiosa nas instituições de ensino, porém ainda se convive muito,
atualmente, com visões baseadas na intolerância religiosa.

2.1. Da Intolerância Religiosa ao reconhecimento


A intolerância religiosa é um termo que descreve a atitude mental
caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer, ou respeitar
diferenças, ou crenças religiosas de outros. Na essência do conceito de
intolerância religiosa está o interesse de rotular o outro “para fazer oposição
entre o que é normal, regular, padrão, e o que é anormal, irregular, não
padrão”. Estigmatizar é um exercício de poder sobre o outro. Estigmatiza-se

78
para excluir, segregar, apagar, silenciar e apartar do grupo considerado normal
e de prestígio (NOGUEIRA, 2020, p. 19).
A intolerância religiosa é o não reconhecimento da diversidade, a não
aceitação das múltiplas visões de mundo. É uma forma de opressão
estimulada pela ideia de superioridade que se expressa na
estereotipação do outro religioso. Isso produziu passados e se faz
presente para milhões de pessoas e milhares de povos. E teima em se
manter no futuro através de elites seculares, desumanas e apegadas à
manutenção do seu poder colonizador (BORGES; BAPTISTA, 2020, p.
22).

A intolerância religiosa é expressão da permanência de laços coloniais na


contemporaneidade e possui caráter funcional à medida que reforça
hierarquias entre pessoas, comunidades e religiões. Nogueira aponta que:
Ouve-se muito que “é preciso tolerar a diversidade”. A expressão,
aparentemente, progressista e bem-intencionada, desperta a
indignação de alguns tolerados. Não, não é preciso tolerar ninguém.
“Tolerar” significa algo como “suportar com indulgência”, ou seja,
deixar passar com resignação, ainda que sem consentir
expressamente tal conduta. Quem tolera não respeita, não quer
compreender, não quer conhecer. É algo feito de olhos vendados e de
forma obrigatória (2020, p. 31).

Esse tipo de discurso, no fundo, nega o direito à existência autônoma do


que difere dos padrões construídos socialmente. Funciona como um expediente
do desejo de estigmatizar o diferente e manter este às margens da cultura
hegemônica, que traça a tênue linha divisória entre o normal e o anormal. A
tolerância é vista como uma resignação e uma omissão diante de uma
sociedade marcadamente injusta em suas diversas dimensões (NOGUEIRA,
2020, p. 31).
No ambiente escolar são encontrados alunos com múltiplas pertenças
religiosas que dividem o mesmo espaço. São crianças e jovens que, submetidos
às condições do meio escolar, sofrem todo tipo de assédio moral e tortura
psicológica relacionados às suas crenças e práticas religiosas por parte dos
grupos majoritários, quando não por parte dos próprios professores e
professoras, para quem os princípios religiosos superam a humanidade.
Por não reconhecer a diversidade cultural e o pluralismo religioso da
sociedade brasileira, muitas escolas acabam por se tornar coniventes ou omissas
com a doutrinação religiosa, transformando o Ensino Religioso, de promissora

79
disciplina facilitadora de convivência pacífica e aprendizado ético e cidadão, em
prática catequética que avaliza a segregação e pouco enriquece o currículo
escolar.

2.2. Promoção do respeito à diversidade cultural e religiosa


A consciência mundial está voltada para o crescimento de uma educação
fundamentada no respeito, valorizando a igualdade de oportunidades e,
principalmente, que essa educação esteja direcionada primeiramente à ação
das teorias, tendo como princípio o combate à discriminação e ao preconceito,
para que, de fato, seja vivenciado o efetivo cumprimento dos Direitos Humanos
por toda a sociedade.
Considerando essa diversidade de crenças e religiões presentes na
cultura brasileira, o Ensino Religioso deve buscar adotar uma metodologia de
educação onde todos os educandos e todas as educandas que tenham uma
educação adequada, com respeito e valorização de suas singularidades.
O Ensino Religioso como uma das disciplinas do currículo da escola é tão
importante, quanto qualquer outra disciplina, pois, deve ajudar o aluno a ver as
experiências míticas das tradições religiosas como válidas e dignas de respeito,
caso contrário, vamos continuar vivenciando e presenciando casos de
intolerância e racismo religioso entre os(as) alunos(as). Contudo, se o professor
de Ensino Religioso não possuir esta formação, poderá reforçar práticas de
intolerâncias religiosas na sala de aula.
No ambiente escolar não se deve privilegiar uma determinada religião, e,
sim, manter o respeito e, simultaneamente, promover uma educação sem
proselitismo. O professor é um mediador diante dessas questões, além de ser
um conhecedor da teologia, procurando sempre interpretar as várias
manifestações culturais que as diferentes religiões apresentam.
De acordo com Junqueira et al. (2008), os conteúdos a serem
trabalhados no ensino religioso devem combater todo o tipo de preconceito,
não ser proselitista, respeitar as crenças de cada educando e entender que a

80
escola não é espaço de doutrinação, contribuindo assim para a formação
integral do aluno (a).
A proposta pedagógica da disciplina Ensino Religioso deve auxiliar
professores e professoras para um ensino lúdico, através de aulas
interdisciplinares, contendo histórias em quadrinhos (gibis), música, culinária,
dança e jogos digitais, desenvolvidas no âmbito escolar para que estes possam,
indubitavelmente, contribuírem ao combate a qualquer tipo de intolerância
levando os estudantes a refletirem sobre seus valores e suas práticas.

Conclusão
Acreditamos que, na medida em que alunos(as) e professores(as) tenham
uma visão positiva da diversidade religiosa, visando ao (re)conhecimento da
contribuição social e cultural de diferentes tradições religiosas e ao estudo de
seus fenômenos, poderemos amenizar os preconceitos e as violências vividas
em sala de aula, violência essa, que se caracteriza como intolerância religiosa.
Para tal o professor de Ensino Religioso deve ter formação específica e
qualificada para poder atuar com mais propriedade em sala de aula.
Desta forma, será mais nítido o papel da escola em identificar os
comportamentos racistas e preconceituosos, herança de um passado escravista,
para aplicar uma proposta pedagógica da disciplina Ensino Religioso através de
um ensino lúdico e interdisciplinar. Assim, os problemas relacionados a
situações de discriminação e preconceitos passam a ser minimizados ou
sanados não apenas no ambiente escolar, mas em qualquer espaço social,
contribuindo assim, para uma sociedade igualitária.

Referências
BECKFORD, James. Re-Thinking Religious Pluralism. In: GIORDAN, Giuseppe;
PACE, Enzo. Religious pluralism: framing religious diversity in thecontemporary
world. Padova: Springer, 2014. p. 15-29.
BORGES, Cristina; BATISTA, Paulo Agostinho Nogueira. Entender o passado e
falar do presente: aportes a um Ensino Religioso descolonizador e pós-colonial.
Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 23, n.2, p. 21-
38, jul./dez. 2020.

81
JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo. A concepção de uma proposta: o Ensino
Religiosoem uma perspectiva pedagógica a partir do artigo 33 da LDB.
RELEGENS THRÉSKEIA estudos e pesquisa em religião, Curitiba, v. 01, n. 01, p.
102-129, 2012.
JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo et al. O sagrado no ensino religioso. São
Paulo: Paulinas, 2008.
NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Pólen, 2020.
PUPO, Michelle de Paula. A falta de laicidade e a intolerância religiosa das
escolas públicas brasileiras e o papel da disciplina de Ensino Religioso . Revista
Alamedas, Toledo, v. 5, n. 2, p.176-186, 2017.
SILVA, Eliane Moura. Ensino Religioso: O Ensino Religioso na escola pública do
Estado de São Paulo. São Paulo: Unicamp, 2002.
SIQUEIRA, Rosângela da Silva. Pluralidade religiosa: desafios na educação
escolar dos saberes produzidos pelos diferentes povos. Identidade!, São
Leopoldo, v. 24, n. 1, p. 97-106, 2019.
STRECK, Gisela Waechter. O Ensino Religioso e a diversidade religiosa no Brasil:
desafios para a educação. Revista Pistis e Práxis, Teologia e Pastoral, Curitiba, v.
4, n. 1, p. 261-276, jan./jun. 2012.

82
O ENSINO RELIGIOSO NA PERSPECTIVA DO CURRÍCULO
REFERÊNCIA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Diego José Maria de Melo
Graduado em Ciências Sociais e
Graduando em Pedagogia pela UEMG
Bolsista do PAPq/UEMG
josdiego43@yahoo.com.br

Mauro Rocha Baptista


Doutor em Ciência da Religião pela UFJF
Professor do departamento de Ciências Humanas da UEMG
Bolsista BPO/UEMG
mauro.baptista@uemg.br

Resumo: A implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) através da


resolução Nº 2, de 22 de dezembro de 2017 do Conselho Nacional da Educação trouxe
inúmeras mudanças para o cenário educacional nacional. Ela representou a
concretização de uma nova organização para educação brasileira cumprindo aquilo
que estava previsto pela Constituição Federal de 1988, cujas determinações
estabelecem a educação como um direito de todos e um dever do Estado, visando o
desenvolvimento humano em todas as dimensões. Assim todo o processo de abertura
permitiu que estados e municípios construíssem seus próprios currículos observando as
determinações da BNCC. Como exemplo deste movimento podemos citar o estado de
Minas Gerias que em 2018 instituiu o Currículo de Referência (CRMG) contendo as
habilidades e conhecimentos a serem desenvolvidas em todo o território mineiro no
âmbito da educação básica. O que inclui o componente curricular de Ensino Religioso
ramo disciplinar que busca propiciar ao indivíduo conhecimentos religiosos e culturais
provenientes de diferentes vivências. Dessa Forma como parte do Projeto de Pesquisa
“O Ensino Religioso na política pública do estado de Minas Gerais a partir do Currículo
de Referência de 2018” Financiado pelo Programa de Apoio a Pesquisa (PAPq) da
Universidade do Estado de Minas Gerais - (UEMG) este trabalho tem o objetivo de
propor uma reflexão a respeito das determinações do currículo de referência para o
Ensino Religioso partindo da análise da resolução 437 que institui e orienta a
implementação do currículo nas escolas estaduais assim como do parecer 937 que
manifesta a respeito da estrutura a ser trabalhada no processo. A inclusão no GT se
justifica ao observamos a implicação desses documentos na prática escolar cotidiana o
que demanda estudos contínuos em busca de resultados que propiciem melhor
desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem, e assim atuar na construção
de indivíduos prontos para a transformação social por meio do exercício do
pensamento crítico e da autonomia.
Palavras-chave: Currículo Referência; Ensino Religioso; Base Nacional Comum
Curricular.

83
Introdução
Desde 2016 temos mantido constantes debates junto ao grupo de
pesquisa “Estudos sobre Religiões e Religiosidades” da UEMG-Barbacena a
respeito da área de Ensino Religioso (ER), especialmente em seu
desenvolvimento no estado de Minas Gerais. Os dois primeiros projetos,
desenvolvidos até 2020, visavam trabalhar diretamente com os conteúdos
propostos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC–BRASIL, 2018), que
estava em desenvolvimento neste momento e representava grande mudança
em relação ao Currículo Básico Comum (CBC) que estava vigente no estado de
Minas Gerais até então. Com a ampliação da pandemia e o início do ensino
remoto foram produzidos os Planos de Estudos Tutorados (PETs) em 2020 e
2021, objetos de análise em outros projetos da equipe. Uma constatação
observada no âmbito da pesquisa com os PETs motivou o desenvolvimento
desta nova proposta. Primeiro foram constatadas mudanças entre o texto
nacional da BNCC e o texto produzido para o Currículo de Referência de Minas
Gerais (CRMG – MINAS GERAIS, 2018). Posteriormente foi observado que nos
três planos de curso disponibilizados pelo estado (2020, 2021 e 2022) para a
aplicação do CRMG, existem variações consideráveis no momento de trabalho
de cada habilidade, o que não permite a criação de um procedimento uniforme
e homogéneo ao longo dos anos.
O objetivo manifesto nesta etapa da pesquisa é compreender a política
pública do estado de Minas Gerais para o componente curricular de Ensino
Religioso a partir de uma desconstrução dos documentos produzidos com a
criação do CRMG de 2018. Fazem parte desta análise o parecer nº 937 do
Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais (CEE/MG, 2018), o texto final
do CRMG (MINAS GERAIS, 2018), a resolução nº 470 que homologa o CRMG
(CEE/MG, 2019) e os planos de curso produzidos pela Secretaria de Estado de
Educação de Minas Gerais (SEE/MG, 2020; SEE/MG, 2021; SEE/MG, 2022).

84
1. Desenvolvimento do CRMG
Assumimos que o primeiro passo para compreender os princípios de uma
política pública para a área de ER no estado de Minas Gerais seria o de revisar
como a adaptação da BNCC, prevista como obrigatória para todos os estados
da federação, foi realizada no estado. As modificações constatadas no CRMG
serão apresentadas em outras publicações, assim como a análise dos planos de
ensino propostos pela SEE/MG. Neste texto iremos nos concentrar nos
documentos externos ao CRMG, que indicam a sua recepção no estado de
Minas Gerais.
O primeiro destes documentos é o parecer 937 (CEE/MG, 2018). Este
parecer tem o objetivo de manifestar a respeito do Currículo Referência do
Estado de Minas Gerais visando à implementação nas escolas da Educação
Infantil e do Ensino Fundamental que compõe o sistema de ensino de Minas
Gerais. A elaboração do documento observou as normas estabelecidas pelo
Programa Nacional de apoio à implementação da Base Comum Curricular
(BNCC) e do Conselho Nacional de Educação. O Objetivo do Currículo
Referência é garantir os direitos e objetivos de aprendizagem aos estudantes do
sistema de ensino de Minas Gerais
Minas Gerais é um estado brasileiro com muitos municípios (oitocentos e
cinquenta e três) de um total de cinco mil quinhentos e sessenta municípios em
todo o Brasil. Compõe uma Unidade Federativa com grande dimensão territorial
e grande diversidade de contextos o que torna a gestão educacional complexa.
Cabe destacar a divisão das responsabilidades educacionais sendo que os
municípios se responsabilizam com a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental enquanto a rede estadual anos finais do Ensino Fundamental e
Ensino Médio. o Censo Escolar de 2017 apontava 16.151 escolas em todo o
território Minas Gerais dessas 3.622 são estaduais e 8.751 municipais. Cabe
salientar que com estes números pode-se dizer que a rede pública abarca 86 %
das matrículas da educação básica no estado.
A maioria das matrículas do estado se concentram na rede pública, o que
evidencia o desafio da educação de qualidade. Devem se atribuir os devidos

85
Destaques para documentos normativos como a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) que é responsável por compor as habilidades e competências
a serem desenvolvidas pelos estudantes da Educação Infantil e do Ensino
Fundamental de todo o território nacional. A criação do documento em
questão é um desdobramento das determinações da Constituição Federal de
1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) DE 1996 que culminaram
com a aprovação do documento em 2017.
Desde 2005 o estado conta com o Currículo Básico Comum
regulamentado pela resolução nº 666/2005 da SEE- MG que visa orientar o
processo de ensino e garante os direitos de aprendizagem dos estudantes em
Minas Gerais. O CBC, como proposta curricular busca responder às questões: “O
que ensinar? (Quais conteúdos, habilidades e competências). Por que ensinar?
(importância da disciplina na vida social e cultural). Quando ensinar? (Faixa
etária, ordenamento dos conteúdos e habilidades)”.
É importante notar que o CBC não é currículo único a ser seguido por
todas as escolas, em Minas Gerais. Ele tem caráter normativo para toda a rede
estadual e redes municipais sem sistema próprio. As redes privadas e municipais,
com sistema próprio, têm autonomia para elaboração de seus próprios
currículos.
A construção e elaboração do Currículo Básico Comum se deu por meio
de um regime de colaboração dos municípios e de entidades da sociedade civil.
Como salientamos, desde 2005, o estado já possuía um currículo base
comum, porém esta nova iniciativa vem para atender o previsto pela BNCC no
intuito de dar o caráter contemporâneo a diversos conteúdos trabalhados. Para
apoiar a implementação da BNCC, o Governo Federal criou o programa
PróBNCC que visa dar o apoio técnico e financeiro aos estados. Minas Gerais
ingressou no programa em 2018 e pode então contar com o apoio da união
previsto nas deliberações do projeto.
O processo de implementação do documento foi composto por cinco
etapas. A primeira, Etapa de Preparação, consistiu no estudo da versão
homologada da BNCC, por parte dos redatores e dos professores das escolas de

86
Minas Gerais. Neste processo destaca-se a realização do Dia D, nas escolas, ao
longo do mês de abril, sendo autorizado que as escolas escolhessem a data que
fosse mais conveniente, de forma a não ferir seu calendário. A Etapa de
Elaboração2 da Versão Preliminar consistiu na redação da primeira versão,
pelos Redatores de Currículo, a partir das contribuições recebidas das redes, no
dia D, e da análise da equipe de redação. A Etapa de Encontros Municipais e
Consulta Pública colocou a versão preliminar sobre crivo dos professores, em
todo o estado, onde foi discutida, com profundidade, presencialmente, nos
municípios, por professores e outros profissionais da educação, e por meio da
Consulta Pública online.
Cabe salientar que durante o processo de elaboração do documento não
foram aceitas propostas que continham: “1- Elementos que ferem a atual
legislação; 2- Que demonstram incompreensão da ideia proposta; 3- Que não
eram adequadas ao ano proposto, ou de alteração de ano, definido na BNCC; 4
- Solicitação de exclusão/modificação, sem justificativa ou fundamentação; 5-
Sugestões que não tratam do documento (infraestrutura das escolas, formação
de professores, etc.)”
A Etapa de Elaboração da Versão Final foi realizada com base na análise
das contribuições da Consulta Pública e dos Encontros Municipais. A Etapa de
Finalização e Distribuição contou com a impressão e envio, em meio físico e
digital, do documento, às escolas, durante o ano de 2019.
A Base Nacional Comum Curricular e os currículos elaborados a partir
dela têm papéis complementares para a garantia do direito à aprendizagem. O
Currículo diz respeito à organização escolar. É, no currículo, que se materializa o
direito a aprender, uma vez que ele define o que ensinar, o porquê ensinar e o
quando ensinar. Ao abordar a Educação Integral e Integrada, o currículo
reafirma a centralidade da escola como locus do processo educativo, mas não
se limita a ela, propondo a exploração de outros espaços da cidade, tornando-
os espaços educativos.
Durante o processo de elaboração foi feita a opção pela manutenção de
um documento único e pela não separação da Educação Infantil do Ensino

87
Fundamental, considerando que as concepções dos textos introdutórios devem
permear a Educação Básica, como um todo, pensando, sempre, na
integralidade do sujeito.
O currículo do Ensino Fundamental está alinhado às duas principais
normativas para a etapa: a BNCC e o Parecer CEB/CNE nº 11/2010. A
construção se deu através de uma visão que vê a educação como um processo
que ocorre ao longo de toda a vida seguindo assim a visão da BNCC. Cabe
destacar que currículo de Minas Gerais tem o intuito de seguir os seguintes
caminhos: Construção de um Espaço para a diversidade observando a BNCC e
os temas contemporâneos. Para os anos iniciais propõe-se uma articulação com
as experiências na Educação Infantil e a valorização das situações lúdicas de
aprendizagem. Já nos anos finais, o foco passa a ser a ampliação dos
conhecimentos, com desafios de maior complexidade, dando outro significado
para as aprendizagens dos anos iniciais, e fortalecimento da autonomia dos
adolescentes.
Como uma observação cabe destacar que documento manteve a
estrutura básica da BNCC, com a separação em: Áreas de Conhecimento e suas
competências específicas; Componentes Curriculares e suas competências
específicas; e na estrutura dos conteúdos em Campos de Atuação, Eixos e
Unidades Temáticas conforme componente curricular. Deste modo seguindo a
orientação do Parecer CNE/CP nº 2, de 2017, e da LDB, o Currículo Referência
de Minas Gerais possui parte diversificada integrada ao documento, respeitando
a diversidade local e adaptativa a cada contexto.
Em linhas gerais o parecer 937 (CEE/MG, 2018) indica uma observância
direta à BNCC e não faz menção específica às alterações presentes no
componente curricular de ER. Apenas é possível inferir que, uma vez que todas
as exclusões/modificações deveriam ser justificadas e fundamentadas para
serem aceitas, o que foi suprimido e/ou alterado no texto final do CRMG em
relação à BNCC deve ter sido aceito como pertinente pelo CEE.
O segundo documento da implementação é a resolução 470 (CEE/MG,
2019), homologando o CRMG. Documento organizado seguindo o viés de

88
educação colaborativa desenvolvida entre estado e municípios obedecendo a
documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)
Constituição Federal de 1988 e a resolução número 2 de dezembro de 2017 do
Conselho Nacional da Educação. Tendo como objetivo: garantir aos estudantes
do estado de Minas Gerais os direitos e objetivos de aprendizagem visando o
desenvolvimento integral.
Define o currículo de referência como um documento de caráter
normativo, que contém atitudes e valores a serem desenvolvidos em conjunto
com todos os estudantes. Que deve respeito às individualidades e as
características regionais. Objetivo do documento é superar a fragmentação das
políticas educacionais, aplicando-se a toda a educação básica da educação
infantil ao ensino fundamental.
Está alicerçado nas seguintes competências gerais, previstas na
Resolução CNE/CP nº 2/2017: “Valorização dos conhecimentos historicamente
construídos; Exercício da curiosidade; Valorização da cultura local; Utilização das
diferentes linguagens e manifestações; Compreender e utilizar as tecnologias de
modo crítico; Valorizar a diversidade; Argumentação crítica com base em dados;
Conhecer a si mesmo; Exercitar a empatia e o diálogo; Agir pessoal e
coletivamente com autonomia e protagonismo”.
Ensino deve ser pensado progressivamente em cada sujeito observando
seu tempo e espaço. A etapa do Ensino Fundamental deve manter articulação
com os conhecimentos construídos na Educação Infantil. Anos iniciais devem
focar na alfabetização como necessidade para o uso adequado dos
conhecimentos nas práticas sociais. Nos anos finais o objetivo é dialogar com
estes conhecimentos superando as rupturas que surgem em cada fase da vida.
Para o componente curricular de ER se destaca que, conforme prevê a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a oferta do ER é obrigatória no Ensino
Fundamental com matrícula facultativa aos estudantes. E que, observando as
competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) o ER deve
“Proporcionar conhecimentos culturais estéticos e religiosos de manifestações
presentes na realidade dos estudantes. Proporcionar conhecimento sobre a

89
liberdade de consciência. Desenvolver o diálogo e o respeito às diferenças.
Propiciar aos indivíduos a construção de seus próprios sentidos de vida”. E deve
garantir aos educandos o desenvolvimento das seguintes competências
específicas: “Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes

Habilidade PC 2020 PC 2021 PC 2022


tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida. Compreender, valorizar e
respeitar as diferentes manifestações culturais, religiosas e filosofias de vida.
Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza. Conviver
com a diversidade. Analisar as relações entre os conhecimentos entre os
conhecimentos religiosos e culturais. Debater, problematizar e posicionar-se
frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência,
especialmente de cunho religioso”.
Também na homologação do CRMG não é ressaltado nada das
modificações em relação à BNCC, apenas reproduzindo o texto dos objetivos e
das competências, conforme eles aparecem no CRMG, inclusive com a inclusão
do termo “culturais”, na segunda competência quando a BNCC trata da
valorização das “manifestações religiosas e filosofias de vida”. Essa é uma das
inserções repetidas diversas vezes ao lado do termo religiosa presente solitário
na BNCC.

2. Planos de Curso da SEE/MG


Se os primeiros documentos analisados não auxiliaram na compreensão
de uma política pública do estado de Minas Gerais para a área de ER, a análise
do movimento das habilidades a serem trabalhadas em cada ano tende a
mostrar, ao menos, uma falta de um maior cuidado com o componente. Os
planos de curso foram produzidos nos últimos três anos e, mesmo sem o
desenvolvimento de uma descrição de cada habilidade, é possível compreender
o efeito desta disposição do conteúdo. Neste momento apresentaremos apenas
o comparativo dos planos de curso criados para o sexto ano, ressaltamos que a
análise das habilidades e dos demais planos serão desenvolvidas em outras
publicações do grupo de pesquisa.
90
EF06ER01X 1º 1º 2º
EF06ER17MG 3º 3º 3º
EF06ER02 4º 3º 3º
EF06ER03X 2º 1º 3º
EF06ER04X 1º 2º 4º
EF06ER18MG 1º 2º 4º
EF06ER05X 4º 3º 4º
EF06ER06X 3º 4º 1º
EF06ER07X 3º 4º 1º
EF06ER19MG 4º 4º 2º
EF06ER20MG 2º 2º 2º
EF06ER21MG 2º 1º 1º
Tabela desenvolvida pelos autores a partir dos planos de curso da SEE/MG.

As habilidades são compostas pelas letras EF, indicativas do Ensino


Fundamental; os dois números seguintes indicam o ano a que são destinadas,
no caso o 06 indica que são do sexto ano; as letras seguintes são indicativas do
componente curricular, ER indicando o Ensino Religioso; os últimos números
são a posição da habilidade, neste caso do 01 ao 07 são as habilidades originais
da BNCC (para cada ano as habilidades da BNCC são reiniciadas para o número
01), do 17 ao 21, habilidades criadas pelo CRMG (no caso das habilidades do
CRMG segue-se uma numeração única iniciada no primeiro ano do
Fundamental até o nono ano, por isso a primeira do sexto ano é a 17). A última
inserção é indicativa da manutenção do texto original da BNCC, se nada for
colocado após o número; da sua modificação parcial, se for incluído um X, ou
da sua redação totalmente nova, se for incluído um MG.
Para o sexto ano é possível observar que, para as 7 habilidades originais
da BNCC, 6 foram modificadas e ainda foram acrescidas mais 5 pelo CRMG. O
que indica uma grande atenção do CRMG ao componente curricular que foi
bastante alterado em sua versão mineira.
91
Em teoria seria possível indicar que a sequência didática das habilidades
deveria seguir a ordem original da BNCC, e mesmo as acrescidas pelo CRMG.
Mas podemos ver que, para o ano de 2022, por exemplo, a habilidade 07 da
BNCC, última a ser pensada no documento nacional, aparece prevista para o
primeiro bimestre letivo, enquanto a 01 vai para o segundo bimestre. Assim
como a primeira habilidade acrescida pelo CRMG, a 17, aparece no terceiro
bimestre nos três anos, enquanto a última, 21, aparece no segundo de 2020 e
no primeiro em 20221 e 2022.
Causa estranhamento a falta de conexão entre o documento adaptado
pelo estado de Minas Gerais e homologado em 2019 e os planos de curso
propostos para os anos seguintes. Não há uma diferença temporal tão grande
que justifique as mudanças de ordem na apresentação das habilidades, assim
como não se justifica a mudança de ordem das habilidades já criadas pelo
próprio estado. Ainda que fosse compreensível a adaptação estadual das
habilidades propostas pela BNCC, modificando a sequência nacional em nome
de uma política pública estadual, a modificação das próprias habilidades criadas
no estado revela uma falta de planejamento desta política pública.
Algo que pode ser mais agravado se se observa a fragmentação de um
mesmo objeto de conhecimento. Por exemplo, as habilidades 06, 07, 19 e 20,
fazem parte do mesmo objeto: “Símbolos, ritos e mitos religiosos”. O objeto de
conhecimento é pensado como a parte formal que amarra as habilidades que
se desejam desenvolver nos discentes, logo é compreensível que estejam
aglutinadas em uma sequência didática própria, manifesta pelo próprio número
das habilidades 06 e 07 na BNCC, concluindo a etapa, e 19 e 20 no CRMG,
penúltimas, uma vez que é acrescida uma unidade temática não prevista na
BNCC para o sexto ano e que é contemplada pela habilidade 21. As habilidades
06 e 07 sempre estão no mesmo bimestre, contudo em 2020 estão no terceiro,
2021 no quarto e 2022 no primeiro, ou seja, não se repete, o que seria
esperado, a sua presença no quarto bimestre (apenas em 2021), uma vez que
são previstas como a conclusão na BNCC. Já as habilidades 19 e 20, que
complementariam o mesmo objeto de conhecimento, nunca estão juntas no

92
mesmo bimestre. A habilidade 19 está no quarto bimestre nos dois primeiros
anos, e no segundo no atual, ao menos mantendo a coerência de sempre estar
imediatamente após as habilidades 06 e 07 (em 2021 no mesmo bimestre). Já a
habilidade é colocada no segundo bimestre nos três anos. O que indica que ela
precede a discussão do objeto de conhecimento em 2020, em 2021 está
deslocada das outras três habilidades que só serão trabalhadas no quarto
bimestre, e em 2022, finalmente se agrupa, mas no início do ano letivo, quando
a discussão deveria ser proposta após o desenvolvimento das habilidades
anteriores.
Esta imprevisibilidade da disposição dos conteúdos não é producente
para o corpo docente do componente curricular, nem parece didaticamente
justificável, por isso tende a indicar uma falta de direcionamento entre o que foi
proposto na adaptação da BNCC pelo CRMG e sua aplicação nos planos de
curso dos anos seguintes.

Conclusão
Por mais que os anos de aplicação do CRMG tenham sido diretamente
relacionados com um período crítico do ensino como um todo, sobretudo pelo
período de Regime de Atividades Não Presenciais (REANP), 2020 e 2021, e suas
consequências ainda não totalmente mensuráveis em 2022, os caminhos da
recepção do CRMG e de sua aplicação na área de ER parecem demasiadamente
tortuosos para a área.
Algumas das adaptações feitas no texto da BNCC são minimamente
questionáveis e parecem arrefecer o caráter incisivo do método das Ciências da
Religião como uma fonte basilar para o ER, em nome de uma postura mais
próxima ao ecumenismo histórico do estado de Minas Gerais. Ainda que os
documentos externos ao CRMG não permitam constatar, ou mesmo justificar, as
alterações feitas, o simples fato de reproduzirem a inclusão do termo “cultura”
como um sócio constante da religião, mantem a indicação de que se deve
suavizar o peso de um estudo direto das religiões.

93
Enquanto isso, a análise dos planos de curso pensados como uma
aplicação do CRMG, indicam que essa política pública não segue uma mesma
diretriz, e mesmo que se descoordena com as indicações internas ao CRMG para
uma ordenação das habilidades. O que não nos permite concluir que haja uma
política pública precisa para a área, mesmo uma que indicasse a opção pelo
método da Antropologia Religiosa em contraposição ao das Ciências da
Religião.
Aquilo que fica presente no CRMG, não se faz sentir diretamente nos
planos. O que fica mais indicado é uma falta de direcionamento, e uma
oscilação sobre a qual não conseguimos supor os interesses didáticos. As
pesquisas do grupo “Estudos sobre Religião e Religiosidades” tendem a seguir
buscando a compreensão desta política pública, ou, ao menos, de sua falta.

Referências
BRASIL. LDB. Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm>, acesso em 16 de março de
2017.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf>. Acesso em: 09
fev. 2018.

CEE/MG. Parecer nº 937/2018. Belo Horizonte: CEE/MG, 2018. Disponível em: <
Parecer CEE nº 937/2018 sobre o Currículo em MG (sinep-mg.org.br)>, acesso em 13
mar. 2022.

CEE/MG. Resolução nº 470/2019. Belo Horizonte: CEE/MG, 2019. Disponível em: <
Resolução nº 470 de 27.6.2019 Currículo Referência de MG.pdf (educacao.mg.gov.br)>,
acesso em 13 mar. 2022.

MINAS GERAIS. Currículo Referência de Minas Gerais. Belo Horizonte: SEE/MG, 2018.
Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/1ac2_Bg9oDsYet5WhxzMIreNtzy719UMz/view>.
Acesso em: 03 abr. 2019.

94
INTERCULTURALIDADE E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO: UM ESTUDO
DE CASO SOBRE A ATUAÇÃO ÉTICO-ECUMÊNICA DA TEOLOGIA
DA LIBERTAÇÃO
Flávia Ribeiro Amaro
Doutora em ciência da religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora.
flavia.ramaro@gmail.com

Resumo: Diante da ampliação do escopo de atuação dos fundamentalismos no campo


religioso brasileiro, cujas implicações são sentidas em diversas esferas da vida individual
e coletiva, e da necessidade de se viabilizar a pauta do pluralismo, refletir sobre
possíveis conexões epistêmicas entre a perspectiva intercultural e a proposta ético-
ecumênica do diálogo inter-religioso se configura como um desafio de caráter urgente
e imprescindível. A reflexão acerca de possíveis interconexões, teórico-práticas, entre a
interculturalidade e o diálogo inter-religioso, se apresenta como uma demanda
fundamental junto aos esforços de combate à intolerância religiosa, alinhando-se às
estratégias decoloniais para a reformulação e/ou construção de alternativas críticas e
criativas voltadas ao tratamento do fenômeno religioso. Com o intuito de aprofundar
nessa discussão, é apresentado um estudo de caso sobre o movimento teológico,
intelectual e político, de caráter ecumênico, conhecido como Teologia da Libertação –
encarado aqui, como um dos precursores do paradigma decolonial/ intercultural, em
função de associar à reflexão científica, uma práxis engajada nas causas cotidianas e
espirituais dos povos oprimidos. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica, com
destaque para as obras de pesquisadores brasileiros das ciências da religião e latino-
americanos vinculados ao grupo de estudos Modernidade/Colonialidade.

Palavras-chave: Decolonialidade; Interculturalidade; Diálogo inter-religioso; Teologia da


Libertação.

Introdução
O Brasil tem protagonizado transformações substanciais nos âmbitos
cultural, político, econômico, cujas incidências convergem diretamente para o
campo religioso e, consequentemente, para o campo epistêmico das ciências da
religião, que envolve a análise do fenômeno religioso.
Nós, brasileiros e pesquisadores das ciências da religião nos
encontramos, simultaneamente, na condição de atores e sujeitos dessa
mudança de rumos paradigmáticos, que se acha atualmente em curso,
suscitando a abertura para novos arranjos epistemológicos capazes de recobrir

95
as novas realidades que se configuram. Dado que, estamos diante de uma
diversidade religiosa sem precedentes na história, ao passo que, enfrentamos o
problema do reavivamento e intensificação de fundamentalismos que,
cabalmente, tem encontrado terreno fértil para se reinventar e se reproduzir.
Em face à pluralidade de alteridades religiosas e de distintos loci de
enunciações dispostos no tempo e no espaço, uma adaptação teórico-
metodológica faz-se imprescindível, no sentido de incorporação das hodiernas
demandas por arranjos epistemológicos capazes de apresentar melhores
instrumentais de compreensão da realidade, o que nos direciona a considerar o
desenvolvimento da interface entre as ciências da religião e o paradigma
decolonial/ intercultural, que dentre suas principais prerrogativas pleiteia uma
intervenção prática e transformadora na sociedade. Nesse sentido, é que
evidencia-se a proposta do diálogo inter-religioso e sua premissa conciliadora.
A proposta do artigo consiste em buscar convergir os pressupostos
epistemológicos que se delineiam entre a noção do pluralismo e do diálogo
inter-religioso, intermediados pela perspectiva intercultural e decolonial. Pois,
acredita-se que assim, aproximar-se-á de uma compreensão do fenômeno
religioso pautada pelo princípio da laicidade. Bem como, evidenciar-se-á,
também, a necessidade de empreendimento de uma práxis voltada ao
apaziguamento das tensões por disputas de influência entre as diferentes
tradições religiosas, visando a interrupção do avanço dos fundamentalismos no
campo religioso brasileiro. À vista disso, por um lado, têm-se a ótica do
ecumenismo confessional e por outro, o do princípio laico, apreendidos como
instrumentais libertários aplicados à análise do fenômeno religioso. Tal
perspectiva, prevê um espaço de coexistência anti- proselitista, horizontal e
pacífico em que pode se expressar o pluralismo.
A discussão compreender três etapas. Primeiro, dimensiona-se
considerações teórico-metodológicas sobre as noções de diálogo inter-religioso
e interculturalidade. Num segundo momento, reflete-se sobre como a junção de
ambas as perspectivas podem ser proveitosas para o tratamento do fenômeno
religioso apreendido sob uma lógica afinada ao paradigma decolonial. E, por

96
fim, apresenta-se um estudo de caso sobre o movimento intelectual-teológico-
político e pastoral, a Teologia da Libertação, e que por sua vez, busca revelar a
conveniência do engajamento do cientista da religião diante do problema do
fortalecimento dos fundamentalismos no campo religioso brasileiro através do
fomento do diálogo inter-religioso e do combate à intolerância.

1. O que é diálogo inter-religioso?


Em função do acirramento das disputas por influência no plural campo
religioso brasileiro, algumas vertentes religiosas, especialmente, evangélicas-
pentecostais tem lançado mão de artifícios espúrios visando a ampliação de seu
escopo de atuação na sociedade. Com isso, certas correntes fundamentalistas
têm operado um instrumental de violência simbólica, que chega, inclusive, às
vias de fato físicas, como estratégia de imposição de suas cosmovisões, através
da alienação, desinformação, corrupção e manipulação das consciências de
seus fiéis, cujas consequências acabam extrapolando o âmbito da religião e
atingem outras esferas das vidas individual e coletiva. Contudo, vale ressaltar
que, há e sempre houve denominações e/ou movimentos religiosos que, em
contrapartida, são movidos por princípios altruístas, inclusivos, pautados por
ideais de paz e de conciliação, que visam emancipar as consciências de seus fiéis
das agruras da dominação.
A prerrogativa da libertação foi e continua sendo uma virtude esmerada
– propulsora do desenvolvimento da reflexão crítica e engajada numa práxis
transformadora do status quo, de desigualdade e opressão, o que se alinha à
perspectiva decolonial e intercultural, caracterizada por se comprometer com
uma via inter-religiosa de interpretação da condição humana.
A Teologia da Libertação tem como princípio norteador de sua reflexão e
engajamento político-sociocultural o acolhimento da alteridade, sobretudo, dos
oprimidos e invisibilizados pelo sistema, como forma de externar não só a
tolerância, como o respeito, a valorização e a legitimação de outras formas de
interpelação do fenômeno religioso, que não, exclusivamente, às da cristalizada
cosmologia cristã colonial impulsionada pelo capitalismo.

97
A discussão proposta perpassa a disposição de empreender um
alinhamento epistêmico entre a enunciação do diálogo inter-religioso e a
premissa da interculturalidade, tidas aqui como estratégias fundamentais para a
elaboração de uma práxis libertadora.
A diligência envolve o acionamento das bases conceituais – teológicas,
críticas e comprometidas com uma práxis efetiva – levada à cabo pelos
intelectuais integrantes da Teologia da Libertação, em associação com os
aportes interculturais propostos pelos pesquisadores vinculados ao grupo de
estudos Modernidade/ Colonialidade para refletir acerca de estratégias de
fomento e aprimoramento do diálogo inter-religioso diante das desigualdades
que se evidenciam no campo religioso brasileiro na atualidade e que se
demonstram cada vez mais drásticas e ameaçadoras para a harmonia social,
notadamente, pelo fato do fortalecimento dos fundamentalismos.
O diálogo inter-religioso assume a lógica do pluralismo e empreende
uma tentativa de, para além da troca de experiências enriquecedoras sob o
ponto de vista cultural, estabelecer um acordo de paz, para que a coexistência
das distintas tradições componentes do campo religioso brasileiro possa se
transcorrer de forma amistosa. Preza-se, assim, pelo cumprimento dos direitos
humanos que regem a autonomia dos indivíduos escolherem qual religião
querem seguir, quais arranjos entre diferentes religiões desejam fazer, como
tem assegurada a possibilidade de transitar de uma religião à outra ou até
mesmo de optar por não apresentar confissão de fé nenhuma.
Pressupõe à relativização frente as afirmações de verdade contidas nos
discursos religiosos das distintas denominações em interação. Busca-se um
consenso, mas não necessariamente no sentido da aceitação irrestrita dos
conteúdos da crença que cada uma delas professa, haja visto que, o objetivo
não é adentrar nesse âmbito da discussão, pois o diálogo inter-religioso sugere
a suspensão, ainda que provisória, da necessidade de se entrar no campo de
debate sobre as verdades essenciais. A ideia que se postula tem a ver com
colocar em diálogo assuntos que apresentam um notório interesse público, em

98
que a interpretação que cada tradição apresenta possam se complementar ao
invés de se confrontarem.

2. O que é interculturalidade?
Primeiramente, é importante esclarecer que a discussão que envolve a
compreensão da noção de “interculturalidade” para o campo epistemológico
das ciências da religião, pressupõe, instantaneamente, a correlação entre as
noções de cultura e de religião. Isto é, parte-se inevitavelmente de uma
abordagem cultural, que admite a legitimidade e a importância da cultura como
construtora e transformadora da realidade objetiva da vida cotidiana e que no
caso desta pesquisa é centrada na questão da religião.
A religião encarada como cultura leva ao entendimento de que cada
tradição religiosa possui suas particularidades, que sintetizam e expressam o
ethos de um determinado grupo social. Haja visto que, as religiões fornecem
significados e explicações tanto para questões existenciais fundamentais, ligadas
à vida e à morte, quanto para as vicissitudes triviais do cotidiano.
Inspirados pela perspectiva analítica proposta por Clifford Geertz em seu
livro, “Interpretação das culturas”13 (2008), considera-se pertinente aprofundar
na busca e compreensão dessas singularidades, tomando-as a partir de
situações e contextos preferencialmente localizados. Trata-se da construção de
um micro olhar em detrimento de análises mais generalizadas –
macroestruturais. Pois, acredita-se que o aprofundamento em uma realidade
religiosa específica é capaz de fornecer significados, que por sua vez, podem ser
entrelaçados à contextos mais amplos.
Cada religião apresenta suas especificidades socioculturais e, nesse
sentido, uma abordagem intercultural viria a colocá-las entrecruzadas,
permeadas umas nas outras. Pois, considera-se que existem inúmeras
possibilidades de arranjos na combinação entre diferentes culturas. E admite-se

13Geertz coloca que em sua obra, “O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos
pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na
construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas” (p. 19-
20).
99
que, quando essas culturas envolvem a religião, testemunhamos fenômenos tais
como: sincretismos, hibridismos, aculturação.
As diferentes religiões formam uma colcha de retalhos, em que cada
parte, à despeito de sua peculiaridade, compartilha uma integralidade. Nessa
linha de raciocínio, pode-se reconhecer que a dimensão imaterial do sagrado
perpassa todas elas, uma vez que, todas as religiões possuem como pano de
fundo o mistério.
A interculturalidade aplicada ao terreno epistemológico das ciências da
religião envolve o reconhecimento dos processos de sincretismo, aculturação,
miscigenação, transculturação – fruto do contato entre diferentes culturas que
se cruzam no tempo e no espaço e reconhece, portanto, que existem partes
aproveitáveis em cada uma delas, que corroboram para um entendimento mais
amplo, diverso e complexo do fenômeno religioso.
A partir da produção de análises críticas, que apontam para a construção
de uma práxis transformadora, aciona-se conhecimentos interculturais por
intermédio da aplicação de métodos e teorias transdisciplinares, capazes de
levar em consideração um novo locus de investigação e eleger novos ou
renovados objetos, tal como a subjetividade da crença religiosa de indivíduos e
grupos sociais.
A ideia de interculturalidade alinhada à de decolonialidade sugere que
algo de proveitoso da influência moderna diante das culturas pré-modernas
merece ser considerado. Ou seja, admite-se que o processo de colonialidade
não incorpora apenas aspectos negativos em seus princípios e consequências,
pois existem partes boas que podem ser aproveitadas. Trata-se da adoção de
uma “modernidade seletiva” (BERGER, 2017, p. 58).
A interculturalidade prevê o reconhecimento do pluralismo religioso,
legitimando a alteridade e a diversidade, seu principal objetivo epistemológico é
o alargamento do conhecimento sobre as culturas admitindo sua interação e
interconexão intrínsecas. Em que, o ponto de partida é a convergência, o
encontro, a mescla de influências enriquecedora. Nesse sentido, o pluralismo
religioso é tido como salutar para a vitalidade religiosa, gerando conhecimentos

100
novos que se tornam possíveis, justamente, pela unidade resultante desse
encontro.
As diferentes denominações religiosas são entendidas como
fornecedoras de códigos de estruturação da interpretação do mundo e da
sociedade capazes de atuar como sistemas de significação, desencadeando
cosmovisões responsáveis por pautar hábitos e costumes na vida cotidiana.
Parte-se do pressuposto de que as diferenças culturais no campo religioso
demandam uma ação, por parte do cientista da religião, no sentido de viabilizar
negociações frente aos conflitos desencadeados pela assimetria de poderes e
pontos de vista em jogo.
Na esteira da noção de decolonialidade, surge a ideia de “diferença
colonial”, proposta por Walter Mignolo (2003). Na concepção do autor, a
“diferença colonial” denota um espaço, tanto físico quanto simbólico, de
confronto entre as histórias locais e os projetos globais, no qual atua a
“colonialidade do poder”, subjugando as alteridades sociopolítico econômico e
culturais. Nessa perspectiva, o autor sugere que estamos vivenciando um
“colonialismo global”, responsável por perpetuar a diferenciação colonial em
escala planetária. Contudo, sua postura é a de crítica e de denúncia ao
ocidentalismo e, por extensão, ao capitalismo. Pois, ele acredita que para fazer
frente a esses processos arbitrários e excludentes deve-se valer do “pensamento
liminar” ou “fronteiriço”, em que se propõe negociações de influências
recíprocas através da interação entre o local e o global, entre o Oriente e o
Ocidente, entre a cultura hegemônica e as culturas populares. Sua proposição
principal envolve o direcionamento do foco analítico às subjetividades
subalternizadas, de modo que, a produção cultural e a religiosidade das massas
marginalizadas passam não só a serem reconhecidas como valorizadas. Admite-
se, assim, novas formas de produção do conhecimento, que não exclusivamente
as produzidas e apresentadas pela epistemologia europeia são válidas.
Enrique Dussel (2005), advoga em prol da noção de “interculturalidade”,
que para ele diz respeito à crítica à subordinação cultural e à proposição de
estratégias de enfrentamento das imposições hegemônicas eurocêntricas.

101
Partindo dessa premissa, Catherine Walsh (2005) sugere que se direcione
atenção ao protagonismo do hemisfério sul nos processos do que ela chama de
“interculturalidade crítica”, propondo, assim, um “giro epistêmico”, capaz de
ressignificar as cosmovisões dos povos subalternizados, ainda que
reconhecendo a irrevogabilidade da colonialidade. Em outras palavras, admite-
se a mútua influência e propõe-se a abertura ao diálogo entre as duas visões de
mundo, a europeia e a não europeia. Conforme defende a autora, a
interculturalidade é uma contrapartida à hegemonia geopolítica do Norte sobre
o Sul, é uma estratégia epistemológica, uma ferramenta metodológica que visa
valorizar outras formas de construção do conhecimento.
Maldonado-Torres (2007) fala sobre a conformação de um “racismo
epistêmico”, resultante da sobrepujança da visão colonizadora europeia sobre
as culturas e povos não-europeus, anteriormente colonizados, que por sua vez,
nutrem um “fetiche epistêmico” com relação ao colonizador. Isto é, o autor fala
sobre a admiração que o colonizador exerceu sobre o colonizado e que se
perdura. E argumenta que, frente à essa situação insinua-se a demanda por
uma revisão geopolítica do conhecimento. Por isso, Maldonado-Torres (2005)
propõe um “giro decolonial”, que passa a considerar e a valorizar a produção do
conhecimento que se constrói desde outros contextos geopolíticos, como o
latino-americano, por exemplo.
Boaventura de Sousa Santos (2018, p. 150), ao identificar os problemas
que conduzem à colonialidade epistêmica dos povos não europeus colocou
que,
A distinção sujeito- objeto, a separação total entre meios e fins, a
concepção mecanicista da natureza e da sociedade, o cisma entre
fatos e valores e a objetividade concebida como neutralidade, uma
ideia de rigor quantitativo euclidiano inimiga da complexidade e
insensível à fractalidade dos fenômenos, uma teorização
pretensamente universalista, mas na realidade androcêntrica e
etnocêntrica- tudo isto conspirou para criar um buraco negro
epistemológico à volta dos grandes problemas da vida coletiva e das
relações interculturais.

No terreno da religião, a interculturalidade assume o sentido do


pluralismo e do diálogo inter-religioso, entendidos como o reconhecimento e a
valorização da diversidade religiosa. Pois, tal como expôs Santos (2018), “A
102
interculturalidade emancipadora pressupõe o reconhecimento de uma
pluralidade de conhecimentos e diferentes concepções de mundo e de
dignidade humana” (p. 238-239).
A interculturalidade pressupõe uma complexificação das relações,
negociações, intercâmbios culturais em múltiplas vias. Seu intuito é estabelecer
parâmetros de inter-relações equitativas diante da alteridade e da diversidade.
Trata-se de uma interação que parte do conflito inerente às assimetrias culturais,
sociais, econômicas, intelectuais, religiosas etc., pautadas pela lógica do poder.
(WALSH, 2005)
Pesquisadores brasileiros, igualmente, têm se dedicado a abordar a
questão da religião e dos estudos da religião a partir de uma perspectiva
intercultural. Dentre eles destaco: Franco & Panotto14 (2021) e Borges & Senra
(2020).
A interculturalidade traz a demanda pela inclusão do olhar de sujeitos
concretos e seus respectivos códigos de sentido inscritos em uma trama cultural,
que reflete as cosmovisões que constroem acerca da realidade da vida
cotidiana.
[...] significa também dialogar com aqueles que vieram antes –
dialogar com o passado –, significa considerar a ideia de que há
outras lógicas para se pensar o mundo. Inclusive aquelas que foram
extintas ou subsumidas nas relações de poder. (BORGES; SENRA,
2020, p. 8).

Desse modo, destaca-se as contribuições da Teologia da Libertação para


a implementação de estratégias comprometidas com o enfrentamento dos
problemas que envolvem o campo religioso e a sociedade, conforme será
discutido a seguir.

3. Estudo de caso
O estudo de caso que aqui se propõe é o da Teologia da Libertação. Este
movimento social de caráter crítico, libertário e propositivo de ações práticas

14 Os autores colocam que: “A interculturalidade permite a compreensão da cultura e das


relações culturais como construtivamente conflitivas e tensas, reconhecendo espaço para uma
negociação cultural a partir do enfrentamento dos conflitos provocados pela assimetria do
poder.” (FRANCO; PANOTTO, 2021, p. 39)
103
tem origem cristã, contando com a participação de católicos, protestantes e
membros de outras denominações religiosas, responsáveis por apresentarem
uma prerrogativa ecumênica em sua organização intelectual-política e pastoral.
O objetivo que impulsionou o surgimento do movimento foi, dentre
outras questões, a promoção de um diálogo ecumênico envolvendo diferentes
tradições religiosas componentes do campo religioso nacional com vistas a
confrontar a opressão.
A Teologia da Libertação surge na América Latina como contrapartida
aos processos de exploração arbitrária do continente, que se apresentavam na
esteira do processo de colonização e do capitalismo. Assim dizendo, surge em
resposta à opressão exercida pelo “sistema mundo” europeu sobre as minorias
marginalizadas e subalternizadas. No passado, a TdL voltava-se àqueles sujeitos
sociais considerados “pobres” – povos originários indígenas, criollos,
camponeses e proletariado, contudo, atualmente, essa categorização se
ampliou, passando a incluir outras minorias, tais como: étnicas, de gênero,
geográficas, entre outras, e suas respectivas demandas socioculturais, além de
conferir atenção, também, à causa ecológica.
Trata-se de uma teologia crítica, comprometida com as causas populares
e suas respectivas espiritualidades, capaz de refratar a teologia cristã colonial
convencional e se engajar na esfera social a partir da promoção do diálogo
inter-religioso e da intervenção prática junto aos povos oprimidos.

Conclusão
O enfoque intercultural destinado à compreensão do fenômeno religioso
permite reconhecer que o multiculturalismo que, veio na esteira da globalização
desencadeando pluralismos e fundamentalismos, constrói formas alternativas
de conhecimento, que se evidenciam desde espaços fronteiriços, aliando
perspectivas modernas, pós-modernas e decoloniais.
O termo interculturalidade aplicado pelo campo epistemológico das
ciências da religião, mapeia em seus desdobramentos analíticos o entendimento
das configurações da religião na atualidade, pressupondo o desenvolvimento

104
de abordagens críticas e criativas, construídas a partir de micro realidades
enunciadoras de conhecimentos locais que podem ser contrapostos à
conhecimentos macroestruturais.
Conclui-se que a interculturalidade surge da cultura, da pluralidade, da
interação entre diferentes realidades dispostas no tempo e no espaço, da
interconexão entre diferentes formas de construção de conhecimento e que o
diálogo inter-religioso se evidencia enquanto uma diligência para o cientista da
religião.

Referências
BERGER, Peter. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da
religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
BORGES, Angela Cristina; SENRA, Flávio. Epistemologias marginais: ciências da
religião em perspectiva decolonizadora e intercultural. Reflexão, 45: e204909,
2020.
FRANCO, Clarissa; PANOTTO, Nicolás. Decolonização do campo epistemológico
da(s) ciência(s) da(s) religião(ões) e teologia(s) pela via contra- hegemônica dos
direito humanos. Estudos de religião, v. 35, n. 3, set./dez., 2021. pp. 33-54.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
PAGÁN, Luis Rivera. Racionalidade teológica e cultura cristã: uma alternativa
latino-americana. In: DUSSEL, Enrique; (et al); PIXLEY, Jorge (Coord.). Por um
mundo diferente: Alternativas para o mercado global. Petrópolis: Editora Vozes,
2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Construindo as epistemologias do sul: antologia
essencial. Vol. I: Para um pensamento alternativo de alternativas. MENESES,
Maria de Paula (et. al.) Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.

105
O ENSINO RELIGIOSO DESENVOLVIDO PELO ESTADO DE MINAS
NOS PLANOS DE ESTUDOS TUTORADOS DURANTE O ENSINO
REMOTO
Goretti Marciel Pereira Goulart
goretti.0793337@discente.uemg.br
Luís Fernando Oliveira do Nascimento
luizmiduoliver@gmail.com

Resumo: O presente trabalho busca apresentar os resultados alcançados através do


projeto de pesquisa: “O Ensino Religioso nos Planos de Estudos Tutorados dos anos
finais do Ensino Fundamental”, realizado com apoio do PAPq/UEMG. Os PETs foram
apresentados como primeiro material oficial produzido no estado de Minas Gerais
durante o Regime Especial de Atividades não Presenciais (REANP). O objetivo foi
analisar o conteúdo presente e os silenciamentos dos PETs apresentado pela SEE/MG.
Os primeiros resultados permitem considerar que houve uma amenização do teor não
confessional da BNCC em nome de uma postura mais guiada pela posição
interconfessional, ou ecumênica, historicamente defendida no estado de Minas desde a
década de 1970. Esta posição fica também caracterizada quantitativamente pela maior
presença de referências ao cristianismo quando comparada a outras tradições. Uma
vez que, a BNCC como base para adaptação do currículo de referência dos estados
reforça sua vinculação do ensino religioso ao modelo da ciência da religião (BRASIL,
2018, p. 435). Por sua vez, não sendo entendida como uma disciplina centrada em uma
religião ou das religiões, mas proporcionam o conhecimento dos elementos básicos
que compõem o fenômeno religioso, de acordo com os pressupostos dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) proposto pelo Fórum Nacional Permanente do Ensino
Religioso. (FONAPER 2009, p. 5). Por conseguinte, a escola é apresentada como o
espaço propício para a formação do cidadão para este tipo de convívio respeitoso com
a pluralidade. Como metodologia, a princípio foi desenvolvida a comparação das
inclusões e exclusões feitas no texto do CRMG em relação a BNCC. Em seguida foi
produzido um levantamento das habilidades da BNCC e do CRMG contempladas e
negligenciadas ao longo do ano de 2020. A última etapa do projeto envolveu o
desenvolvimento de tabelas com as tradições apresentadas nos PETs e a quantificação
de cada aparição para posterior análise dos dados que serão apresentados neste
congresso.
Palavras-chave: Ensino Religioso; Ciência da Religião; REANP; BNCC; CRMG.

Introdução
A pesquisa “O Ensino Religioso nos Planos de Estudos Tutorados dos
anos finais do Ensino Fundamental”, fomentada pelo PAPq/UEMG em 2021 e
2022, tem o objetivo de analisar o material produzido pelo estado de Minas
Gerais para suprir as deficiências do período do Regime de Atividades Não
Presenciais (REANP). Embora seja um material produzido em caráter
emergencial, os Planos de Estudos Tutorados (PETs), representam o primeiro
106
material oficial produzido pelo estado. Além disso é necessário destacar que
este material é o primeiro desenvolvido após a homologação da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e sua adaptação no Currículo de Referência de Minas
Gerais (CRMG), o que permite observar as nuances entre a proposta nacional e
sua regionalização.
Para a apresentação destes resultados faremos inicialmente a
apresentação das tabelas produzidas para o sexto ano, como uma forma de
exemplificar o trabalho desenvolvido. Na sequência apresentaremos os índices
remissivos dos quatro anos.

1. As tabelas por volume do PET


Para o desenvolvimento das tabelas relativas à presença das diversas
tradições religiosas nos PETs desenvolvidos pela SEE/MG, organizamos a tabela
de forma a destacar em cada volume as semanas previstas, as páginas
desenvolvidas e o aspecto central desenvolvido nela. Quanto ao aspecto central
a intenção é identificar se é trabalhada alguma tradição religiosa ou se há uma
apresentação genérica tratando sobre o tema proposto sem a indicação de
nenhuma religião específica. O objetivo com este levantamento era observar
em que medida os PETs tratavam diretamente do tema das religiões e em que
medida ele tendia para um escapamento em direção às questões puramente
culturais. Tal análise se fazia necessária uma vez que entre a BNCC e o CRMG
uma das principais diferenças observadas era a inclusão no segundo
documento de uma relação explícita entre religião e cultura. Quando o
documento nacional coloca apenas a temática da religião, o mineiro faz
questão de incluir a cultura como um correlato necessário.
As primeiras páginas de cada semana dos PETs trazem uma folha de
rosto com a indicação da unidade temática, do objeto de conhecimento, da
habilidade, dos conteúdos relacionados, e da interdisciplinaridade indicada.
Optamos por fazer a indicação de que se trata desta folha de rosto e mencionar
a habilidade indicada. Destacamos ainda se as páginas seguintes são referentes
ao desenvolvimento de um texto teórico ou de uma atividade, em ambos os

107
casos trataremos como genérico aquilo que não particulariza nenhuma tradição
religiosa específica. Caso haja alguma religião especificada, após a sua
identificação, marcaremos na sequência se ela é apresentada por meio de
imagem e/ou com algum texto explicativo, ou ainda se é apenas uma menção
simples, como uma enumeração de exemplos que não são trabalhados
individualmente.
O primeiro volume dos PETs não trouxe o componente curricular de
Ensino Religioso, por isso iniciamos a apresentação pelo segundo volume.
PET volume II
Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
1 119 Folha de rosto – habilidade (EF06ER18MG)
120 Texto genérico
121 Atividade genérica
Atividade – Matriz Indígena X X
Atividade – Matriz Africana X X
122 Atividade genérica
2 123 Folha de rosto – habilidade (EF06ER18MG)
124 Texto – Lista de textos sagrados: Vedas, X
Tripitaka, Tao Te King, I Ching, Kojiki, Torah,
Bíblia e Alcorão.
Budismo X
Islamismo X
125 Texto – Judaísmo X X
Texto – Cristianismo X X
126 Atividade – Hinduísmo X
Atividade – Rastafári X
Atividade – Islamismo X
3 127 Folha de rosto – habilidade (EF06ER18MG)
128 Texto – Menção do idioma: Tao Te Ching, X
Alcorão e Bíblia

108
129 Atividade genérica
4 130 Folha de rosto – habilidade (EF06ER18MG)
131 Texto – Cristianismo X
132 Atividade – Cristianismo X X
133 Atividade genérica
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. II, p. 119-133.

Deve-se destacar que este primeiro volume de Ensino Religioso, segundo


dos PETs gerais, traz indicações de elementos religiosos em todas as semanas,
além de abarcar um significativo número de tradições diferentes. A partir do
volume III a folha de rosto também passa a trazer a temática e uma
sensibilização. Em alguns casos até um desenvolvimento do tema. Quando
necessário faremos a indicação caso alguma religião seja tratada neste espaço.

PET volume III


Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
123 Folha de rosto geral com orientações e dicas
1 124 Folha de rosto – habilidade (EF06ER21MG)
125 Atividade genérica
2 126 Folha de rosto – habilidade (EF06ER21MG)
127 Texto e atividade genéricos
128 Atividade genérica
3 129 Folha de rosto – habilidade (EF06ER21MG)
130 Texto – Menção de matriz africana X
131 Atividade genérica
4 132 Folha de rosto – habilidade (EF06ER21MG)
133 Atividade genérica
134 Atividade genérica
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. III, p. 123-134.

Diferentemente daquilo que foi destacado no volume II, neste volume III
se destaca apenas uma menção à religião de matriz africana, o que acaba
109
rompendo com aquela imagem inicial de uma boa diversidade temática, além
de também causar também uma quebra na expectativa de que se mantivesse
de fato a temática da religião como algo central no Ensino Religioso.

PET volume IV
Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
1 120 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
121 Texto genérico
122 Texto – Catolicismo X
Texto – Crenças populares (raizeiros e X
benzedeiras)
123 Texto e atividade genéricos
124 Atividade genérica
125
2 126 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
127 Texto e atividade genéricos
128 Atividade genérica
3 129 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
130 Texto – Matriz indígena X
131 Texto e atividade – Matriz indígena X
132 Atividade genérica
4 133 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
134 Texto – Hinduísmo X X
Texto – Cristianismo X X
Texto – Islamismo X X
135 Atividade – Menção/Revisão Hinduísmo, X
Cristianismo e Islamismo
136 Atividade genérica
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. IV, p. 120-136.

110
O quarto volume resgata uma tematização maior das religiões, porém
uma das semanas também não tem qualquer menção. Outro aspecto
observável é a manutenção de um eixo básico, repetindo algumas mesmas
tradições religiosas (Cristianismo, Islamismo e Hinduísmo), apesar de serem
algumas das maiores tradições atuais, a diversidade inicial é reduzida
sensivelmente. Um aspecto positivo é a presença de um texto sobre as tradições
abordadas. É necessário lembrar que este material foi organizado para ser
utilizado em REANP, ou seja, não existia a presença de um docente como
facilitador do conhecimento. Muitas vezes o tratamento da diversidade apenas a
partir de imagens pode cumprir um padrão expositivo do diverso, mas
dificilmente consegue sensibilizar de fato os discentes.

PET volume V
Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
1 136 Folha de rosto – habilidade (EF06ER20MG)
137 Texto genérico
138 Atividade genérica
139 Atividade genérica
2 140 Folha de rosto – habilidade (EF06ER20MG)
141 Texto genérico
142 Texto e atividade genéricos
143 Atividade genérica
3 144 Folha de rosto – habilidade (EF06ER20MG)
145 Texto – Catolicismo X X
146 Texto – Catolicismo X
147 Atividade genérica
147 Atividade – Catolicismo X
4 148 Folha de rosto – habilidade (EF06ER20MG)
149 Texto genérico – presença de imagens X
diversas

111
150 Atividade – Símbolos do Judaísmo, Taoísmo, X
Hinduísmo, Islamismo, Cristianismo e
Xintoísmo.
151 Atividade genérica
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. V, p. 136-151.

No quinto volume a redução volta a ser drástica, sendo que apenas o


catolicismo é apresentado com um texto explicativo. A maior presença de
diversidade é apresentada apenas em uma atividade com símbolos das
tradições, mas a referência ao Xintoísmo, por exemplo, não pode ser imaginada
como autoexplicativa. Os símbolos poderiam estar relacionados com uma
pequena exposição sobre essa diversidade.

PET volume VI
Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
1 120 Folha de rosto – habilidade (EF06ER07X)
121 Texto – Matriz indígena X X
122 Texto – Matriz indígena X
123 Texto – Matriz indígena X X
124 Atividade comparativa matriz indígena X
2 125 Folha de rosto – habilidade (EF06ER07X)
126 Texto – Matriz indígena X
127 Atividade – Matriz indígena X
128 Atividade – Matriz indígena X
3 129 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
Texto – Matriz indígena X
130 Texto – Matriz indígena X X
131 Atividade genérica
4 132 Folha de rosto – habilidade (EF06ER03X)
133 Texto – Matriz indígena X X
134 Texto – Matriz indígena X

112
135 Texto – Matriz indígena X
136 Atividade comparativa matriz indígena X
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. VI, p. 120-136.

O sexto volume se dedica à matriz indígena, um modelo monopolista


ainda não assumido em volumes anteriores. Estratégia que consegue frisar
bastante um aspecto, mas que ao mesmo tempo revela o quanto outros ficam
sub-representados. Ao indicar que a matriz indígena deveria ser trabalhada
durante todo um volume o questionamento sobre o porquê não dedicar um
volume à matriz africana surge como impacto necessário. Um melhor equilíbrio
entre a diversidade poderia alcançar um efeito mais democratizante.

PET volume VII


Sem. Pág. Aspecto central Texto Imagem Menção
1 123 Folha de rosto – habilidade (EF06ER17MG)
124 Texto – Islamismo X
125 Texto – Islamismo X
126 Texto e atividade – Islamismo X
2 127 Folha de rosto – habilidade (EF06ER17MG)
Texto – Judaísmo X
128 Texto – Judaísmo X
Atividade genérica
3 129 Folha de rosto – habilidade (EF06ER17MG)
Texto – Hinduísmo X
130 Texto – Hinduísmo X
131 Texto – Hinduísmo X
132 Atividade genérica
4 133 Folha de rosto – habilidade (EF06ER17MG)
134 Texto – Sobre fundamentalismo e X
menciona: Catolicismo, protestantismo,
islamismo e judaísmo.

113
Texto – Judaísmo e Cristianismo X
135 Atividade genérica
Fonte: Tabela desenvolvida pelos autores a partir do PET vol. VII, p. 123-135.

O volume sete amadurece e alcança um melhor equilíbrio entre a


diversidade das tradições, porém retoma algumas das tradições mais
enfatizadas nos outros volumes, o que demonstra uma falta de coesão interna.
Essa falta de coesão faz parte de todo o contexto de excepcionalidade em que
se estava vivendo quando da composição deste material, mas não se poderia
deixar de demarcar tal ponto.

Conclusão
Feitas as tabelas de cada ano a pesquisa organizou índices remissivos que
permitem visualizar os resultados quantitativos de uma forma mais direta e
possível de chegar à totalizações mais coerentes. Por exemplo as referências do
sexto ano podem ser ordenadas pelo volume e página em que a referência
aparece:
Indígena: II, 121, 122; IV, 130, 131; VI, 121, 122, 123, 124, 126, 127, 128, 129, 130, 131,
132, 133, 134, 135, 136; VII, 124.
Africana: II, 121, 122; III, 130; VII, 124; PA, 40.
Lista de textos sagrados: Vedas, Tripitaka, Tao Te King, I Ching, Kojiki, Torah, Bíblia e
Alcorão: II, 125
Judaísmo: II, 125, 126, 127; V, 150; VII, 128, 129; VII, 135; PA, 41, 42.
Cristianismo: II, 126, 127, 132, 133; IV, 134, 135; V, 150; VII, 135; PA, 41, 42.
Hinduísmo: II, 127, IV, 134, 135; V, 150; VII, 130, 131, 132; PA, 42.
Rastafari: II, 127
Budismo: II, 127,
Islamismo: II, 125, 127, IV, 134, 135; V, 150; VII, 124, 125, 126, 127, 128, 135; PA, 41,
42.
Menção do idioma: Tao Te Ching, Alcorão e Bíblia: II, 129
Catolicismo: IV, 122; V, 145, 146, 147; VII, 135; PA, 40, 42.
Crenças populares (raizeiros e benzedeiras): IV, 122,
Taoísmo: V, 150,
Xintoísmo: V, 150,
Protestantismo: VII, 135.

Pode-se observar que o eixo monoteísta está bastante representado pelas


religiões do tronco abraâmico. Também é possível observar que as origens
brasileiras estão bem traçadas na matriz indígena, mas nem tanto na africana. O
oriente está muito mais apresentado no hinduísmo que nas religiões chinesas e
114
japonesas. Existe também uma grande discrepância entre as referências ao
catolicismo e a única referência ao protestantismo. Mais uma vez se
compreende que a diversidade foi apresentada, mas que precisa de um melhor
tratamento e uma maior equidade.
O sétimo ano também recebeu o mesmo tratamento, mesmo que neste
texto tenhamos optado por apresentar as tabelas apenas do sexto ano. A
intenção foi cumprir a análise dentro do limite de espaço deste texto. Com
relação ao sétimo ano algumas diversidades poderão ser observadas nos
resultados do índice abaixo.
Candomblé: II, 126, 128, 134, 135; III, 132, 133, 137; IV, 118.
Catolicismo: II, 128, 131; III, 133,, 134, 135, 136, 137; IV, 119, 121, 124; V, 158, 159,
160; VI, 131; PA, 43, 44, 45.
Cristianismo: II, 128; III, 133, 136; IV, 117, 119, 124; V, 151; VII, 135, 143.
Budismo: II, 131; III, 137; IV, 118, 124; VI, 131; VII, 137, 138, 143.
Hinduísmo: II, 131; IV, 119, 124; VII, 135.
Judaísmo: III, 133, 137; IV, 117, 124; VI, 131; VII, 135.
Islamismo: III, 133, 136; IV, 117, 124; VII, 135, 143; PA, 44.
Matriz Africana: III, 133, 137.
Agnosticismo: III, 136.
Ifa cubano: III, 137.
Espiritismo: IV, 119; VI, 133, 134; VII, 143.
Umbandista: VI, 131; VII, 143.
Matriz Indígena: VII, 143.

Para o sétimo ano é possível observar um aumento significativo na


abordagem da matriz africana. Assim como o budismo passa a ser mais bem
trabalhado no oriente, apesar do hinduísmo manter sua relevância,
diferentemente da diminuição de relevância da matriz indígena. O Espiritismo
também passa a ser mais bem abordado, mas o catolicismo se torna também
mais presente. De forma geral é possível observar que, se esse material fosse
trabalhado como um complemento o sétimo ano teria complementado
algumas lacunas do sexto. Mas se deve lembrar que este material foi criado
neste ano, logo, aqueles que cursaram o sétimo com este material não tinham
passado pela formação com o material do sexto, o que pode revelar um projeto
mais de médio prazo, desconsiderando as deficiências à curto prazo.
No material proposto para o oitavo ano será possível observar uma
tendência em tratar mais as religiões de matriz africana, assim como um
115
aumento de relevância do protestantismo. Filosofias de vida não religiosas
também são abordadas, o que pode indicar que determinados temas podem ter
sido pensados como mais pertinentes para um grupo mais amadurecido . Tal
elemento não está presente nem na BNCC, nem no CRMG.
Catolicismo: II, 133; IV, 121, 126, 127, 128, 129; V, 133; VII, 126; PA, 40, 41
Protestantismo: II, 133, 135; IV, 121, 126, 127, 128, 129; V, 139; VI, 125; VII, 126, 138;
PA, 41
Budismo: II, 133; III, 136, 139, 140; IV, 122, 123; PA, 40
Islamismo: III, 130; IV, 119; IV, 121, 122, 123, 130; V, 137, 138; VI, 128; VII, 138; PA, 40
Candomblé: III, 136, 139; VII, 138
Hinduísmo: III, 136, 139; IV, 122, 123, 124; VII, 126
Cristianismo: III, 136, 137, 140; IV, 119, 121, 122, 123, 125, 126, 130; V, 132, 137, 138;
VI, 128; VII, 138; PA, 40
Judaísmo: III, 136, 140; IV, 119, 121, 122; V, 138, 140
Xintoísmo: IV, 122, 123
Espiritismo: IV, 128; VI, 125; PA, 41
Umbandistas: IV, 128, 131, 132, 133; VII, 138
Candomblecistas: IV, 128, 131, 132; V, 133; VI, 128
Matriz Africana: IV, 130, 131, 132, 134; VI, 130; PA, 40
Indígena: PA, 40
Adventistas: V, 140
Politeísmo: IV, 118; PA, 40
Monoteísmo: IV, 118; PA, 40
Agnosticismo: IV, 118, 119; PA, 39
Humanismo: IV, 118; PA, 40
Panteísmo: IV, 118, 123, 124; VII, 138
Ateísmo: IV,118, 119; V, 133, 138; VII, 39; PA, 40
Deísmo: IV, 118

Enquanto o oitavo ano introduz uma discussão de filosofias de vida, o


nono ano irá apresentar algumas tradições que ainda não tinham sido
apresentadas aos discentes. Tais como o confucionismo e tradições míticas
ancestrais. Neste ano a matriz indígena é resgatada com mais relevância, depois
de ter grande representatividade no sexto ano.

Confucionismo: II, 144,


Judaísmo: II, 144; IV, 127; VI, 121, 122; VII, 123; VII, 123, 124; PA, 45, 48.
Budismo: II, 144; VII, 48.
Islamismo: II, 144; IV, 127; VI, 121, 122; VII, 123; VII, 123, 124; PA, 45, 48.
Espiritismo: IV, 127; VI, 121, 122; PA, 48.
Umbandista: IV, 127.
Cristianismo: IV, 127; VI, 121, 122, 124; VII, 123; VII, 123, 124, 128, 129; PA, 45, 48.
Candomblé: IV, 128; VII, 132, 133.
Hinduísta: IV, 128; VII, 123; VII, 123, 125, 126, 127.
116
Egípcia: IV, 128.
Indígena: IV, 128, 131, 132; V, 146; VI, 121, 125, 126; VII, 123; PA, 48.
Grega: IV, 128; VI, 128, 129.
Celta: IV, 128.
Panteísta: VII, 123, 124.
Africana: VI, 121; VII, 123, 124. (?)
Indiana: VII, 123, 124. (?)
Ancestralidade: VI, 121 (?)

É possível observar que uma grande gama de tradições foi tratada ao


longo dos quatro anos da formação dos discentes, mas se deve ressaltar que a
divisão não foi totalmente equitativa. Esta ressalva é extremamente importante
se se leva em consideração que a aplicação do material não seria de forma
continuada. Uma comparação entre o material produzido no primeiro ano dos
PETs e aquele que se desenvolveu no segundo poderá indicar se os
encaminhamentos foram ajustados. Essa análise será complementada e
apresentada em futuros textos do grupo de pesquisa “Estudos sobre religiões e
religiosidades” da UEMG-Barbacena.

Referências
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Vol. II. SEE/MG: Belo Horizonte, 2020.
Disponível em: < 6º Ano Ensino Fundamental Regular 04062020.pdf - Google Drive>,
acesso em 30 de julho de 2021.
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Disponível em: <EF2_MEAE_6ano_PF-corrigido-04_08_2020.pdf - Google Drive>,
acesso em 30 de julho de 2021.
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Vol. IV. SEE/MG: Belo Horizonte, 2020.
Disponível em: <EF2_REGULAR_6ano_PF-16.09.2020.pdf - Google Drive>, acesso em 30
de julho de 2021.
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Vol. V. SEE/MG: Belo Horizonte, 2020.
Disponível em: <EF2_6ano_PF1.pdf - Google Drive>, acesso em 30 de julho de 2021.
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Vol. VI. SEE/MG: Belo Horizonte,
2020.Disponível em: <EF2_6ano_V6_PF.pdf - Google Drive>, acesso em 30 de julho de
2021.
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Vol. VII. SEE/MG: Belo Horizonte, 2020.
Disponível em: <EF_6ano_V7_PF_11-12-2020.pdf - Google Drive>, acesso em 30 de
julho de 2021.
SEE/MG. Plano de estudo tutorado: 6º ano. Avaliativo. SEE/MG: Belo Horizonte, 2020.
Disponível em: < EF2_6ano_V8_PF.pdf - Google Drive>, acesso em 30 de julho de 2021.

117
AS CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES, O ENSINO RELIGIOSO E SUA
RELAÇÃO COM A CIDADANIA PARA A EDUCAÇÃO ATUAL
Norma Maria Duran
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Teologia da Faculdade Teológica Sul Americana
normaduran710@yahoo.com.br

Resumo: Este estudo tem-se por objetivos analisar o Ensino Religioso e defender o
papel das Ciências das Religiões nesse processo. Para tanto, realizou-se uma pesquisa
bibliográfica, fundamentada na preocupação dos educadores com a formação do
cidadão mediante o Ensino Religioso (ER) nas escolas instituídas pela Base Nacional
Comum Curricular (BNCC). O Estado e as instituições religiosas, mesmo sob tensões
históricas, caminham unidos na tentativa de estabelecer tanto o poder educacional
quanto a proteção às crianças e aos adolescentes. Isto por meio de algumas entidades
que assistem os menores desamparados e de escolas que primam pela qualidade de
ensino. Nesse cenário, as Ciências das Religiões poderão, pelas vias das pesquisas
científicas, isto é, pelo princípio da cientificidade, observar, experimentar, buscar os
indicadores de negligências tanto do Estado quanto da sociedade, apontando soluções
viáveis ao desenvolvimento da educação, das instituições religiosas e do ensino
religioso. O estudo revelou um ensino religioso interdisciplinar e transdisciplinar, que se
apresenta como uma disciplina que colabora com outras ciências, o que justifica a
necessidade de compreender o ensino religioso por meio de construções teórico-
filosóficos/sociológicos das religiões. Ante o ensino religioso atual, as Ciências das
Religiões podem contribuir de forma neutra e sem comparar as religiões entre si.

Palavras-chave: Ciências da Religião; Educação; Ensino Religioso; BNCC; Estado.

Introdução
As noções de cidadania variam muito de acordo com a cultura,
entretanto, esta base legal representa o respeito aos direitos inalienáveis do
indivíduo no meio social. No Brasil, um país diversificado culturalmente,
economicamente, socialmente e religiosamente, torna-se complexo estabelecer
parâmetros para se entender plenamente a cidadania. O Direito, por meio da
Constituição Federal, determina os direitos e garantias individuais, fatores
preponderantes à formação da cidadania brasileira (BRASILEIRO, 2010).
Atualmente, há uma preocupação com a cidadania religiosa, ou seja, a
compreensão dos direitos e deveres sociais no exercício de uma religião, o
respeito às diversas crenças e a liberdade de expressão, mas nem sempre foi
assim. A problemática relativa aos diversos tipos de ensino religioso não existia
quando no Brasil havia uma religião oficial. A cidadania religiosa nesse cenário

118
e, também, em outros sentidos estava mais relacionada ao vínculo com uma
religião (BRASILEIRO, 2010).
Uma vez que, a escola, envolvendo educadores e educandos, não tem
sido ouvida quanto à elaboração de grades curriculares adequadas à realidade
dos alunos, mesmo sendo ela portadora da maior responsabilidade pela
democratização do conhecimento, tomando ainda como referência as
transformações sociais, políticas e econômicas, o currículo escolar próximo a
essas transformações, pelo menos em teoria, possibilitará aos alunos a
conquista da capacidade de pensar e de ter segurança para tomar decisões
(BRASILEIRO, 2010).
Destaca-se ainda que por meio dessas reflexões, poder-se-ia ainda
afirmar que, nas últimas décadas, houve evoluções significativas no que tange
às conquistas para a cidadania. O Estado, as instituições religiosas, educacionais
e os meios de comunicação representam elementos básicos de construção de
cidadania para a criança e o adolescente. Essas quatro instâncias, ao
fiscalizarem uns aos outros, tentam coibir os abusos, estabelecendo direitos e
deveres por meio das informações sistematizadas, dificultando a manipulação
das massas (BRASILEIRO, 2010).
Diante disso, nas condições hodiernas, estabelecidas legalmente pelo
Ministério da Educação (MEC), instituídas através da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), (BRASIL, 2018a) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
curso de licenciatura em Ciências da Religião (DCNLCR), (BRASIL, 2018b), é que
está orientado o presente estudo. Ou seja, o seu significado em nível da
Educação Básica brasileira, na etapa do Ensino Fundamental, é relativo ao
entendimento do (atualmente ainda denominado) componente curricular de
Ensino Religioso com sua fundamentação epistemológica suportada pelas
Ciência (s) da (s) Religião (ões) (CRs). Com um recorte sobre as práticas
pedagógicodidáticas15 dos conhecimentos do ER no âmbito escolar.

15 Ressalta-se que essa opção segue o entendimento admitido de preservar o uso do termo
“pedagógico-didáticas” preferencialmente em relação a expressão mais habitual, ou seja, o
termo didático-pedagógicas, por reconhecesse que a Pedagogia incorpora o pensar a respeito
da educação proposta e a Didática engloba a educação que se faz. Consequentemente, nesse
sentido, o reflexionar (considerando-se o cerne do duvidar), que integra o planejar, vem muito
119
Em outras palavras, o ensino religioso voltado para as Ciências das
Religiões também visa conhecer os saberes acumulados pelas religiões ao longo
da História da Humanidade, envolvendo o passado, o momento presente, as
perspectivas e projeções para o futuro, ou seja, toda a sua trajetória histórica,
com características de natureza evolutiva ou estacionária. Isto por meio da
convivência com as diferenças, com as informações veiculadas por todos os
meios de comunicação (BRASILEIRO, 2010).
O Brasil um país laico, ou seja, não possui religião oficial, no entanto, é
um país multicultural. Sendo assim, devemos perceber a educação como um
processo que respeite essa multiculturalidade e a laicidade de maneira dialógica
a fim de que favorecer o relacionamento pacífico e respeitoso entre os atores
sociais das mais diversas culturas. A escola e a universidade, por sua vez, devem
ser, espaços capazes de desenvolver esse diálogo, o que não é uma tarefa fácil.
Dada a abrangência e a complexidade do tema, desta forma,
considerando o termo amplo do que consiste a educação, este estudo tem-se
por objetivos analisar o Ensino Religioso e defender o papel das Ciências das
Religiões nesse processo, fazendo com que a presente pesquisa sirva de
instigação a novas, no intuito de aprofundá-la e trazer reflexões acerca de sua
importância.
Para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, fundamentada na
preocupação dos educadores com a formação do cidadão mediante o Ensino
Religioso (ER) nas escolas instituídas pela Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). O Estado e as instituições religiosas, mesmo sob tensões históricas,
caminham unidos na tentativa de estabelecer tanto o poder educacional
quanto a proteção às crianças e aos adolescentes.

antes, ainda que perpasse todo o fazer. Sem perder de vista, o entendimento de que nas práxis,
a complexidade de suas interligações, resulta em uma complementação recíproca. Que
‘naturalmente’, sofre ressignificações e reapropriações por parte de cada professor, frente aos
desafios da mediação no processo de aprendizagem-do-ensino-aprendizagem-da-docência.
120
1. Histórico do componente curricular de ER no Brasil até a atual perspectiva
pedagógico-didática da BNCC
Ao relacionar-se o funcionamento didático do conteúdo do ER a partir da
BNCC, considerando-se esse dispositivo (o entendimento da utilização do
significado prático da teoria da Transposição Didática) utilizado no movimento
de transformação dos saberes das Ciências das Religiões, é essencial levar-se em
conta o contexto histórico do ER no Brasil.
Posto isso, até chegar-se à estruturação relativa aos conteúdos,
conceitos e ordenamento de cada elemento que compõe os três
conjuntos que constituem cada unidade temática da estruturação do
componente curricular de ER, conforme a BNCC especificamente
apresenta. Essencialmente, devido ela constituir-se como o conjunto
orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os
alunos devem desenvolver ao longo do Ensino Fundamental (BRASIL,
2018a, p. 7, grifo do autor).

Visto que, conforme também se verifica, entre esses professores existe a


ciência relativa ao fato de que por essa denominação integrar o artigo 210, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, (BRASIL, 2019a), é que
até então não foi pelo MEC tratada, uma vez que se priorizou examinar,
constatar e instituir a presente conjuntura por meio da BNCC. Dessarte,
mediante a veracidade, infere-se, que desde a década de 1970 quando essas
práticas pedagógico-didáticas começaram a ser empreendidas e aprimoradas,
até chegar-se na forma atual deste componente curricular para serem
ministradas essas aulas de Ciência (s) da(s) Religião(ões) e a formação inicial
para o seu docente encontrar-se instituída DCNLCR é que se ressalta o âmago
do dispositivo estudado.
Como na relação entre esses elementos estruturantes da organização
didática da aula e o conteúdo do ER, o professor, ao decidir sobre quais os
conteúdos serão apresentadas na orientação do processo ensino-
aprendizagem, baseia-se nos critérios de: “validade, utilidade, significação,
adequação ao nível de desenvolvimento do aluno e flexibilidade” (HAYDT,
2011, p. 96-97), verifica-se que o êxito nesse exercício constante encontra no
conteúdo, na maneira como em sua docência o mestre viabiliza os acessos aos
saberes, a fonte que alimenta todo o processo de ensino-aprendizagem.

121
2. A contribuição das Ciências das Religiões à educação para a cidadania
A literatura constata que o ensino religioso se constitui como um
conteúdo interdisciplinar e transdisciplinar, se apresentando como uma
disciplina que colabora com outras ciências, o que justifica a necessidade de
compreender o ensino religioso por meio de construções teórico-
filosóficos/sociológicos das religiões.
Segundo os PCN (BRASIL, 2002): A interdisciplinaridade supõe um eixo
integrador, que pode ser o objeto de conhecimento, um projeto de
investigação, um plano de intervenção. Nesse sentido, ela deve partir da
necessidade sentida pelas escolas, professores e alunos de explicar,
compreender, intervir, mudar, prever, algo que desafia uma disciplina isolada e
atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários (BRASIL, 2002, p. 88).
Quanto à transdisciplinaridade, segundo Japiassú (1976, p. 9) representa
uma integração disciplinar além da interdisciplinaridade, “trata-se de uma
espécie de coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de
ensino inovado, sobre a base de uma axiomática geral”.
Neste panorama, as Ciências das Religiões, por meio da
interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade, valorizam as ciências humanas,
sociais, biológicas, exatas, artes, dentre outras, com os propósitos de fortalecer a
educação e o processo democrático de consolidação da cidadania
(BRASILEIRO, 2010).
A problemática relacionada à cidadania permeia a história política e
religiosa do Brasil. A educação é tanto um direito quanto um dever da família,
mas sofre as influências do Estado.
O Estado pretende que o ensino religioso seja sem proselitismos. No
entanto, o ensino religioso sofre as influências das instâncias religiosas
que preferem um ensino confessional. Por tais razões, garantir um
ensino religioso que conduza à cidadania, não é tarefa simples porque
as resistências vêm tanto do poder religioso quanto do poder público.
O ensino religioso esbarra em quatro cantos: a família, o Estado, a
religião e a ciência (BRASILEIRO, 2010, p. 130).

Brasileiro menciona que:


O ensino religioso é, portanto, um elemento indispensável para a
educação integral do cidadão e para a obra de edificar uma sociedade

122
justa e solidária e, portanto, se destina a auxiliar na construção da
cidadania. Entende-se, portanto, que o ensino religioso se relaciona
com a cidadania a partir do instante em que se busca garantir direitos
básicos de educação e de formação da pessoa humana, enquanto ser
que vive em família, sociedade e em seu meio religioso (BRASILEIRO,
2010, p. 66-67).

Nas visões de Werner (2002) e de Ruedell (2005), o ensino religioso que


conduz à cidadania coincide com a manutenção de um ambiente saudável,
que possibilita a educação integral, a qual formará uma sociedade mais justa e
solidária. Os estudos também demonstram que o entendimento das
concepções de cidadania implica em reconhecer que ela está em permanente
processo de construção, pois se trata de um conceito histórico, sempre ligado à
vida das sociedades.
Neste sentido, nova cultura se cria a partir do entendimento de que todo
e qualquer indivíduo é portador de direitos e deveres, e que estes devem
tornar-se algo a ser buscado e conquistado de forma coletiva e não
interpretado como uma mera concessão. Porque o exercício da cidadania
consiste em ser cidadão no gozo dos próprios direitos e deveres. Machado
(2006) assim se expressa:
A cidadania apresenta-se como pressuposto para reconhecer e
respeitar a dignidade humana, que se apresenta imersa em uma
trama de significados que homologam o diálogo multicultural e
plurirreligioso em uma perspectiva de um ensino religioso que
transcenda as quimeras dos costumes e tradições cristalizados ao
longo do tempo. A formação do professor supõe a mobilização de
práticas pedagógicas solidárias, democráticas e reflexivas a respeito da
realidade social, capazes de gerar inovação completando a
diversidade presente no contexto brasileiro, entre elas, a diversidade
religiosa. Criando uma nova cultura a partir do entendimento de que
todo e qualquer indivíduo é portador de direitos e deveres, e que estes
devem tornarse algo a ser buscado e conquistado de forma coletiva e
não interpretado como uma mera concessão, pois, o exercício da
cidadania é ser cidadão no gozo de seus direitos e deveres, sendo
capaz de interferir na ordem social em que vive, constituindo-se em
uma luta pela inclusão (MACHADO, 2006, p. 7).

Em síntese as Ciências das Religiões podem constituir um instrumento


importante para intermediar todo o conhecimento religioso, sempre adquirido
de forma democrática. Esse tipo de ensino religioso possibilitará o
desenvolvimento da autonomia e da segurança dos estudantes, principalmente

123
no que tange à influência, por vezes negativa, de certas informações veiculadas
pela mídia. Isto possibilitará a consciência e a concretização de direitos e
deveres, base da cidadania (BRASILEIRO, 2010).

3. O ensino religioso nas escolas brasileiras


Para o Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso (FONAPER), a
finalidade do ensino religioso é proporcionar um conhecimento acumulado,
partindo da cultura, e aproximar as pessoas do fenômeno religioso, uma vez
que tem uma visão fenomenológica e antropológica do ser humano e da
religião.
Já do ponto de vista das Ciências da Religião, no ensino religioso o
conhecimento seria oriundo das reflexões acadêmicas da Filosofia, da
Sociologia e das demais ciências que dão suporte à interface ciência-
religião. Enfim, falta um estudo multidisciplinar da religião, que
valorize as diversas faces que envolvem o ensino religioso: sua
evolução histórica e legal, a formação curricular, docente e as diversas
experiências vivenciadas por professores e alunos (BRASILEIRO, 2010,
p. 19).

Quanto ao aspecto jurídico a Constituição brasileira de 1988 diz no


artigo 210, parágrafo primeiro: “O Ensino Religioso, de matrícula facultativa,
constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental” (BRASIL, 1988). Desse modo, o termo “facultativo” foi o diferencial
histórico da legislação, ou seja, deixou de ser obrigatório para o aluno
(BRASILEIRO, 2010).
Entretanto, somente em 1997, no entanto, a Lei federal 9.475, no seu
artigo 33, parágrafos primeiro e segundo, passou a regular o ensino religioso,
expressando nos seguintes termos:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante
da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer
formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a
definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as
normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas
diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos
do ensino religioso (BRASIL, 1997).

124
Então, o ensino religioso manteve-se, portanto, como um dever do
Estado e uma opção para os alunos, por ser facultativo, mas a sua prática ainda
é bastante diversificada. Isto porque a Lei, conforme já foi dito, deixa aberto aos
sistemas de ensino tanto a regulamentação dos conteúdos quanto a forma de
se admitir aos professores (BRASILEIRO, 2010).
A Constituição Federal, em seu art. 210, § 1º, preconiza:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, parte integrante da
formação básica do cidadão, constitui disciplina de oferta obrigatória,
nos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental e
médio, inclusive de educação de jovens e adultos, assegurado o
respeito à diversidade religiosa e cultural do Brasil e a todas as
crenças individuais (BRASIL, 1988, p. 124).

A lei nº 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em


sua versão original, diz no art. 33:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos
horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo
oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as
preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em
caráter:
I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou
do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores
religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou
entidades religiosas; ou
II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas
entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do
respectivo programa (BRASIL, 1996, p. 24).

Em 2010, o governo decide aprovar a Resolução nº 4 que define as


Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, relatada no
capítulo II, artigo 14 que apresenta as disciplinas da Educação Básica e dentre
elas cita o Ensino Religioso como parte integrante da base nacional comum e
como área do conhecimento de acordo com o parágrafo 2º (CARDOSO, 2017).
Sendo assim, conforme explica o Currículo Básico Comum (ESPÍRITO
SANTO, 2009), a escola, ao introduzir o Ensino Religioso na sua matriz
curricular, busca refletir e integrar o fenômeno religioso como um saber
fundamental para a formação integral do ser humano. O grande desafio,
porém, é efetivar uma prática de ensino voltada para a superação do
preconceito religioso e alicerçada no respeito à diversidade cultural e religiosa.
Portanto, o Ensino Religioso deve oferecer subsídios para que os estudantes
entendam como os grupos sociais se constituem culturalmente e como se
125
relacionam com o sagrado. Essa abordagem possibilita estabelecer relações
entre as culturas e os espaços por ela produzidos (CARDOSO, 2017).
As Ciências das Religiões são, portanto, uma alternativa eficaz para o
currículo de ensino religioso ser contextualizado com a realidade social e da
escola. Isto por contribuir para a elaboração de um currículo mais abrangente,
interdisciplinar, transdisciplinar e porque valoriza todas as ciências, revelando e
realçando cada vez mais o ordenamento jurídico estabelecido na Constituição
Federal brasileira (BRASILEIRO, 2010).

Considerações finais
A presente pesquisa nos permitiu perceber que a utilização adequada da
transposição didática pelo docente de ER como um dispositivo, favorece o
professor e promove o desembaraço da linguagem científica para o estudante
do nível da educação básica. Efetivamente, contribui para o desenvolver a
constituição dos saberes do ER (seus conteúdos), a partir da (s) Ciência (s) da (s)
Religião (ões), para o aprendente desse componente curricular fundamentar os
seus conhecimentos. Proporcionando assim a cada educando, através da
educação escolar e do “saber ensinado” pelo ER, um suporte mais adequado
para analisar as relações que perpassam a religião e a religiosidade, com base
nos aspectos histórico-sócio-político-econômicos do conhecimento religioso no
exercício de sua cidadania.
Portanto, a educação, enquanto pública e laica, não necessita ser
antirreligiosa ou anticristã, como também o respeito à minoria ou à maioria não
deve significar a deterioração do outro, assim com disposto na lei, a escola,
neste sentido, deve garantir a liberdade de expressão e de escolha de cada
indivíduo, sem que isso signifique uma ofensa à pessoa humana, onde
discordar não signifique desrespeitar. Ante o ensino religioso atual, as Ciências
das Religiões podem contribuir de forma neutra e sem comparar as religiões
entre si.

126
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação. Brasília:
Ministério da Educação - MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018a. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_
versaofinal_site.pdf. Acesso em: 02 set. 2022.
BRASIL. Resolução nº 5 de 28 de dezembro de 2018. Institui as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o curso de licenciatura em Ciência(s) da(s)
Religiã(ões) e dá outras providências. Ministério da Educação. Brasília-DF:
MEC/Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. 2018b. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/janeiro-2019-pdf/105531-rcp005-18/file.
Acesso em: 03 set. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília: Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2019a.
Disponível em: https://www.
stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf. Acesso em: 05 set.
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BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e
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Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2019b. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/559748/lei_de_diretrize
s_e_bases_3 ed. pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 10 set. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação (1997). Lei nº 9.475/97 da nova redação ao
artigo 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Diário Oficial da União, 23 de
julho de 1997, seção I.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/SEB,
2002.
BRASILEIRO, Marislei de Sousa Espíndula. Ensino religioso na escola: o papel das
Ciências das Religiões. 2010. 231 f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) –
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2010.
CARDOSO, Marcos Antonio. Breve Trajetória do Ensino Religioso no Brasil.
UNITAS-Revista Eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, v. 5, n. 2, p. 957-
976, 2017.
ESPÍRITO SANTO. Secretaria da Educação. Ensino fundamental: anos iniciais.
Currículo Básico da Escola Estadual. Secretaria da Educação. – Vitória: SEDU,
2009.
FONAPER – Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso. Parâmetros
curriculares nacionais: ensino religioso. 4. ed. São Paulo: Ave-Maria, 2001.
HAYDT, Regina Célia Cazaux. Curso de didática geral. São Paulo: Ática, 2011.

127
JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
MACHADO, Léo Marcelo Plantes. A cidadania na formação de professores para
o Ensino Religioso. 2006. 129 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.
RUEDELL, Pedro. Ensino Religioso no Estado do Rio Grande do Sul e a
legislação. 1999. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Vale
do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 1999.
WERNER, Iolanda Stela Smaiotto. Construindo cidadania. Monografia
(Especialização em Metodologia do Ensino Religioso) - Escola Superior de
Teologia, São Leopoldo, 2002.

128
GT 7 - FILOSOFIA DA RELIGIÃO
Doutoranda Rubia Campos Guimarães Cruz (UFJF)
Doutorando Danilo Mendes (UFJF)

Ementa: Desde os primeiros passos do que denominamos hoje como filosofia, a


religião com ela se relaciona de diferentes modos. As interpretações sobre essa
relação são tão vastas em multiplicidade quanto a relação mesma. O protótipo
fundamental da lógica filosófica, por exemplo, que se instaura a partir do
fragmento de Parmênides que diz que “o ser é, e que o não ser não é”, surge em
um momento no qual o filósofo dialoga com uma deusa não identificada.
Longe de mera abstração proveniente de um momento de ócio, como uma
imagem vulgar da figura de um filósofo poderia sugerir, a pedra fundamental
sobre a qual se constitui uma importante virada a favor da constituição
racionalista da filosofia se dá a partir da sabedoria de uma deusa. Essa relação
inicial, apesar de não apontar um destino teleológico a ser seguido, indica que a
questão religiosa está posta desde as origens da filosofia ocidental. Por isso,
fazer filosofia da religião é tarefa primordial tanto para quem se aventura a
pensar filosofia, quanto para quem se debruça sobre a religião. A partir disso,
o GT “Filosofia da Religião” no CONACIR propõe promover, a reunião de
diferentes pesquisadores para discutir reflexões, de cunho filosófico, relativos
aos modos de percepção e apreensão do fenômeno religioso. Em vista desse
propósito, apresenta-se três eixos temáticos, sendo: 1) a relação entre fé e razão;
2) conceitos filosóficos ligados a contemporaneidade; 3) o pensamento
filosófico-religioso de distintos/as pensadores/as historicamente relevantes. O
GT se caracteriza, de modo geral, pela investigação filosófica do fenômeno
religioso em suas múltiplas possibilidades de abordagem e compreensão, a
saber: fenomenológica, hermenêutica, teológica ou comparativa. Serão aceitos
trabalhos de estudantes de pós-graduação (mestrado e doutorado) das áreas de
Ciência da Religião, Filosofia e Teologia para comunicação oral e trabalhos de
estudantes de graduação das mesmas áreas para apresentação de banner
científico, dispostos a pensar filosoficamente as representações do fenômeno
religioso.

Palavras-chave: Religião; Fenômeno Religioso; Filosofia da Religião.

129
CIÊNCIA E RELIGIÃO: UM DIÁLOGO A PARTIR DA OBRA DE
TEILHARD DE CHARDIN E PIETRO UBALDI
Alexsandro Melo Medeiros
Doutor em Sociedade e Cultura da Amazônia pela
Universidade Federal do Amazonas
Mestre em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco
Professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas
alexsandromedeiros@ufam.edu.br

Resumo: Além de padre jesuíta, Pierre Teilhard de Chardin era também paleontólogo.
Por isso, procurou, ao longo de toda sua vida, conciliar os princípios científicos com os
dogmas religiosas, sobretudo da religiosidade cristã. Analisando a obra do padre
jesuíta, o filósofo espiritualista e cristão, Pietro Ubaldi, considera alguns pontos de
semelhança entre as suas ideias e as de Teilhard, dentre as quais podemos destacar,
exatamente, a possibilidade de conciliar o conhecimento científico com o
conhecimento religioso. Assim, nosso objetivo com este trabalho será o de analisar essa
síntese entre ciência e religião, a partir da obra destes dois pensadores, e como suas
ideias se aproximam exatamente considerando esta possibilidade. O ponto de
convergência entre as suas ideias se dá a partir da visão evolucionista que nós
encontramos tanto na obra O Fenômeno Humano (de Teilhard) quanto na obra A
Grande Síntese (de Ubaldi). Para o padre jesuíta, o estágio evolutivo atual que
culminou na consciência (noogênese) foi precedido por um longo processo de
expansão da vida (biogênese) que por sua vez foi precedido por um processo ainda
mais longo de organização da matéria inanimada (cosmogênese). Todo esse processo
tem uma finalidade: atingir o ponto ômega, que é Deus. É o mesmo telefinalismo que
encontramos na obra do filósofo italiano Pietro Ubaldi: o espírito, criado por Deus,
através de um longo e lento processo de maturação evolutiva, retorna ao Criador. É
assim que ciência e religião apontam para uma mesma direção. Não são dois tipos de
conhecimentos antagônicos, mas que revelam algo da própria essência da vida: a de
que a vida é evolução e de que essa evolução tem um propósito espiritual de natureza
divina. Com esta comunicação pretende-se contribuir para um profícuo debate entre
ciência e religião, tão necessário na atualidade. Como metodologia utilizamos a
pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Ciência; Religião; Espiritualidade; Deus.

Introdução
Pierre Teilhard de Chardin, além de padre jesuíta, foi também um
paleontólogo e a sua principal obra, O Fenômeno Humano, é o resultado de
sua visão evolucionista e espiritualista. Já o filósofo italiano, Pietro Ubaldi,
procurou realizar uma síntese da fenomenologia do universo que passa pelo
campo científico, filosófico e teológico e dedicou um vasto capítulo na obra A

130
Descida dos Ideais (UBALDI, 1995) para ressaltar os aspectos em comum entre a
sua e a obra do padre jesuíta. O que há de comum entre ambos, além da visão
evolucionista, é a visão de que a ciência pode ser iluminada pela religião e a
religião pode ter uma base científica, numa síntese lógica e harmônica na qual
concordam as teorias científicas e os dogmas religiosos. Aqui iremos, portanto,
ressaltar essa similaridade entre as ideias de ambos os autores de acordo com
um telefinalismo evolucionista de convergência para o ponto Ômega, último
momento e fim da evolução: Deus.
No telefinalismo evolutivo ubaldiano o espírito, criado por Deus, através
de um longo e lento processo de maturação evolutiva, retorna ao Criador
(ômega). É o mesmo telefinalismo que encontramos em Teilhard: o desenrolar
do processo evolutivo segue uma trajetória que se inicia com a cosmogênese,
prossegue na biogênese e noogênese, tendo como meta o ponto ômega: Deus.
Deus representa a meta final tanto para Ubaldi quanto para Teilhard: a escalada
evolutiva, descoberta e provada pela ciência, vai em direção a Deus, como já,
com outras palavras, ensinam algumas tradições religiosas e espiritualistas.

1. Ciência e Religião em Teilhard de Chardin


Marie-Joseph-Pierre Teilhard de Chardin foi o quarto filho de uma família
de onze. Nasceu em 1º de maio de 1881, no castelo de Sarcenat, na província
de Auvergne, situada no centro da França.
Desde muito cedo, Teilhard de Chardin nutria um prazer pela ciência,
notadamente pela geologia, que se tornara sua grande paixão, ao mesmo
tempo em que possuía inclinação para a vocação religiosa16. Aos seis anos,
acompanhado de sua irmã, o pequeno Teilhard teve a sua primeira experiência
de exploração científica em um vulcão próximo de sua casa. De suas
experiências passou a colecionar pedras coloridas e transparentes. Em seu
espírito dominava a paixão pelas pedras que o conduzirá mais tarde à Geologia.
Mas o sentimento religioso não tardará nele a se fazer presente e no período de

16Em 1901, quando pronunciou seus votos sacerdotais, Teilhard escreve uma carta para os seus
pais exprimindo sua felicidade de ser jesuíta e de ser “por inteiro enfim, do Sagrado Coração de
Jesus, por meio da Santíssima Virgem” (SESÉ, 2005, p. 27).
131
1899 até 1913 temos os anos de sua preparação para a vida religiosa e para o
sacerdócio: “Esses dois sentimentos despertados no espírito de Teilhard de
Chardin e a aparente firmeza do conflito existente entre eles, a ciência natural e
a religião, permaneceram com ele ao longo de toda sua vida” (LUCARELLI,
2019, p. 23).
A sua produção científica consta de algumas centenas de trabalhos
publicados depois de sua morte em revistas científicas. Nos últimos anos de
vida, coordenou uma pesquisa concernente à origem do homem a convite de
uma fundação antropológica americana em Nova York.
A sua paixão pela ciência e pela religião fez com que ele tentasse
construir uma visão integrada entre ambas, procurando conciliar a visão de
mundo material da ciência, com a visão de mundo espiritual da teologia: a
atividade científica se complementa pelo sacerdócio, em Teilhard de Chardin, e
se converte em adoração a Deus. “Peregrino da Evolução apresentou em seus
escritos uma visão do mundo evolucionista e mística” (SOUZA, 2007, p. 57).
A tensão entre a ciência e a religião “ocupou lugar importante nas
reflexões de Teilhard por muitos anos, pode-se dizer, por toda a vida. Sua busca
será sempre a harmonia entre dois mundos que faziam parte de sua existência”
(BORGES, 2015, p. 174). Teilhard procurou demonstrar que não existe
incompatibilidade entre religião e ciência. “Nisso reside a originalidade da
espiritualidade de Teilhard de Chardin: a unidade, a conciliação, a ligação”
(LANGER, 2018, p. 22) a busca de integração entre as concepções materialistas
e espiritualistas, uma visão integradora que aponta para uma cosmologia
espiritualista e um novo sentido para a existência humana.
O desafio de Teilhard, a esse respeito, não era (como não foi) fácil.
Conciliar ciência e religião a partir de uma visão evolucionista (como veremos
mais adiante). Foi criticado pelas duas vertentes: a científica e a religiosa. Os
primeiros, com algumas exceções, negaram o valor científico de sua obra,
acusando-a de ter uma linguagem estranha à ciência. Do lado religioso, suas
obras teológicas foram censuradas e proibidas de serem publicadas sendo
submetido a um duro período de exílio na China. Apenas postumamente a

132
Igreja Católica reconheceu o mérito de seu trabalho. “Poucos autores, na
história da Igreja, foram objeto de tão fervorosa admiração e de rejeição tão
implacável” (LIMA VAZ, 1996, p. 347). Aconteceu com Teilhard o mesmo que
aconteceu com os inovadores das ciências, desde Giordano Bruno, Galileu
Galilei e tantos outros, sendo condenados como heréticos: “Aconteceu o que
acontece a todos inovadores que viram mais longe do que os outros aos quais
quiseram fazer ver mais longe também, para além dos limites das verdades já
vistas e codificadas por eles. É neste ponto que aparecem as condenações”
(UBALDI, 1995, p. 88). Impulsionado por uma visão de mundo muito mais vasta
e convincente, Teilhard viu-se compelido para gritá-la ao mundo. Mas nem tudo
que é novo é aceito sem desconfiança, porque o novo parece dissonante aos
ouvidos acostumados aos velhos conceitos.
Então os conservadores se precipitam em levantar barreiras de defesa,
para calar aquele escandaloso “eureka” que pretendia tudo resolver,
fazendo abandonar a velha estrada sobre a qual caminhava tão bem a
sua antiga sapiência. Este foi o martírio de Teilhard, como o é de todos
os inovadores (UBALDI, 1995, p. 89).
Em 1951 Teilhard transferiu-se para Nova York onde permaneceu até a
sua morte, em um domingo de páscoa, aos 74 anos, em 1955. Foi ao mesmo
tempo um período fecundo e doloroso. Trabalhou ainda mais intensamente
pela renovação da visão cristã entregando-se à missão de conciliar a ciência e a
religião, mas permaneceu incompreendido.

2. Ciência e Religião em Pietro Ubaldi


Ao contrário de Teilhard de Chardin, Pietro Ubaldi não era um cientista.
Mas o subtítulo de sua primeira grande obra, A Grande Síntese, revela a sua
intenção: síntese e solução dos problemas da ciência e do espírito.
O nosso século e o século anterior são, se assim podemos dizer, os
séculos da ciência. Com os avanços tecnológicos proporcionados pelo
conhecimento científico, a humanidade atingiu um estágio sem precedentes de
desenvolvimento tecnológico. Mas para além da conquista de comodidades e
bem-estar material, é preciso que a ciência nos ajude a resolver os grandes
mistérios insondáveis que há tanto tempo atormentam a humanidade. É nesse

133
aspecto que podemos falar da necessidade de conciliar o conhecimento
científico com o conhecimento religioso, se quisermos ter uma compreensão
cada vez mais exata da realidade.
A ciência tem o seu valor. Mas o conhecimento científico não é capaz de
revelar tudo. Mesmo com os mais avançados conhecimentos tecno científicos
que a ciência nos oferece, podemos dizer que ela tocou os mais profundos e
necessários conhecimentos que tanto tem inquietado o pensamento humano?
“Vossa ciência lançou-se num beco escuro, sem saída, onde vossa mente não
tem amanhã. Que vos deu o último século? Máquinas como jamais o mundo as
teve (mas que, no entanto, são apenas máquinas) e, em compensação, ressecou
vossa alma” (UBALDI, 2017, p. 17). A ciência resolveu todos os problemas que
afligem a humanidade? Nas mãos humanas, o saber e a força não podem servir,
igualmente, como fonte de dominação e até de destruição, quem sabe até da
própria natureza e, com ela, da vida no planeta? “Para que serve, então, o saber,
se ao invés de impulsionar-vos para o Alto, tornando-vos melhores, para vós se
torna instrumento de perdição? Não riais, ó céticos, que julgais ter resolvido
tudo, porque sufocastes o grito de vossa alma que anseia por subir!” (UBALDI,
2017, p. 18).
O intelecto, a racionalidade, a técnica, pode ter proporcionado inúmeros
conhecimentos à humanidade. Mas será a razão capaz de revelar para nós tudo
aquilo de que temos necessidade de conhecer?
Vamos, pois, homens de boa vontade, ouvi-me! Primeiro
compreendei-me com o intelecto e quando este ficar iluminado e
virdes claramente a nova estrada que vos traço, palpitará também
vosso coração e nele se acenderá a chama da paixão, para que a luz
se transmude em vida e o conceito em ação (UBALDI, 2017, 19).

E o que dizer das religiões? Estão elas isentas de erros? “As religiões,
tantas e, erro imperdoável, todas lutando entre si, exclusivistas na posse da
Verdade e isto em nome do próprio Deus, aplicando-se não a procurar a ponte
que as una, mas a cavar o abismo que as divida” (UBALDI, 2017, p. 34). Isto não
significa que, também as religiões, não tenham trazido algum conhecimento
realmente necessário para a humanidade. Mas se a ciência é feita de erros (e

134
não apenas de acertos), o mesmo também pode ser dito quando se fala das
religiões.
Mas como os nossos dois autores procuraram conciliar conhecimentos
aparentemente tão distintos? É o que nós veremos a partir de agora.

3. Telefinalismo Evolutivo em Teilhard e Ubaldi


Vimos que ciência e a religião ocuparam desce cedo lugar importante
nas reflexões de Teilhard e que tais reflexões o acompanharam por toda a vida.
Por qual caminho o padre jesuíta tentou harmonizar estes dois mundos
aparentemente tão distintos?
Teilhard tomou para si a tarefa de buscar essa integração assumindo as
ideias evolucionistas e procurando realizar uma síntese original entre a ciência e
a fé cristã. Em outras palavras, Teilhard procurou conciliar as ideias de criação e
evolução. Para o teólogo francês, tal oposição era apenas aparente. O conceito
de criação é teológico, bíblico, metafísico, religioso, que se fundamenta na
relação da criação com o seu criador. O conceito de evolução é de natureza
científica e, para Teilhard, a ideia de criação do mundo não exclui a evolução
biológica e, por outro lado, a evolução pressupõe a criação. A obra de Deus
(criada por Ele), converge para Ele mesmo (evolui para Ele). Em Deus se revela
todo o sentido da evolução. Teilhard assumiu as ideias evolucionistas e em sua
obra mestra, O Fenômeno Humano (CHARDIN, 1970), discorre a respeito da
evolução de todo o Universo. Analisando a obra de Teilhard, assim se refere o
pensador italiano:
Observando os fenômenos, sobretudo no seu íntimo significado, ele
chegou a uma visão do plano geral da existência, no qual domina o
princípio da evolução, que faz do ser um transformismo em marcha. O
conhecimento do passado hominal fez entrever a Teilhard as
perspectivas em direção às quais se encaminha aquela marcha e,
portanto, aquilo que o homem poderá no futuro realizar na Terra.
Então Teilhard se sentiu iluminado por uma súbita luz orientadora
(UBALDI, 1995, p. 87).

Ao apresentar a teoria evolucionista criadora de Teilhard, vejamos


simultaneamente se ela não está de acordo com as ideias do filósofo italiano
Pietro Ubaldi, como ele mesmo afirma inúmeras vezes.

135
De acordo com a visão evolucionista e criadora, Deus permanece sendo
o criador do mundo, da vida e do homem. Mas essa criação não ocorre de uma
maneira instantânea e fixista, como descrito no Livro do Gênesis. O que não
significa dizer que o Livro do Gênesis esteja errado, mas que é necessário haver
um esforço interpretativo para compreender tal livro.
Para Teilhard, o estofo do universo, a matéria do universo, evolui criando
formas cada vez mais complexas, pela Lei de Complexidade e Consciência.
“Segundo essa lei, formulada por Teilhard, o mundo atual é nada mais que o
resultado de um movimento contínuo descontinuado da não-vida
(cosmogênese) à vida (biogênese) e da vida à auto-reflexão do homem
(antropogênese)” (ZILLES, 1995, p. 16). Tudo o que existe no universo evoluiu
“Dos átomos às moléculas, das moléculas aos vírus e às células e, finalmente, a
toda a gama dos seres vivos, entre os quais é evidente uma sucessiva e maior
complexificação: vermes, insetos, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos, até o
homem” (LIBÓRIO, 2010, p. 94).
Ao se referir a cosmo-bio-noogênese de Teilhard de Chardin, Ubaldi
(1995) afirma que ela corresponde ao físio-dínamo-psiquismo de A Grande
Síntese e o filósofo italiano propõe uma síntese da fenomenologia do universo
em termos de matéria, energia, vida e espírito. Ubaldi acrescenta aqui o
conceito de energia, pois segundo ele, é preciso considerar o termo
intermediário (energia) que explica a origem da vida e sua evolução. Toda a
obra de Ubaldi se baseia na teoria evolucionista: “O todo não foi feito por Deus
de uma só vez para sempre, de improviso, num dado momento, mas antes se
está continuamente formando. O todo é resultado de uma criação contínua,
obra de um Deus sempre ativo e presente” (UBALDI, 1995, p. 90). A vida é
evolução, fruto de um profundo dinamismo universal:
A época da concepção estática do universo e da vida está superada
[...] Hoje abre-se o caminho para a concepção dinâmica, que nos diz
que o paraíso não se conquista só negando a vida terrena com a
renúncia, mas sobretudo afirmando-se de um modo positivo, com o
trabalho e a conquista no terreno do pensamento e do espírito. Então,
se a ciência foi em princípio considerada inimiga das religiões, porque
perturbava o sono de quem se tinha dentro delas acomodado
(inimigo das descobertas destrutivas do mistério, elemento de
domínio). Hoje a ciência representa o caminho para chegar à religião
136
do futuro que, como a ciência, será universal, sem possibilidade de
escapatórias, verdadeira para todos, convincente porque
demonstrada pela lógica e pelos os fatos (UBALDI, 1995, p. 94).

O homem faz parte de uma imensa unidade orgânica e, ao contrário da


visão fixista do Livro do Gênesis não foi feito em um só momento, de uma só
vez, da mesma forma como não foi a obra de Deus. O homem “é antes o
resultado de um longo caminho percorrido, de formas biológicas inferiores
superadas, que o precedem e que encontram nele a razão da sua existência, a
continuação do seu caminho, a coroação da sua obra evolutiva” (UBALDI, 1995,
p. 91).
Ao invés de contraria a religião, esta hipótese na verdade deve vir
sustentá-la: “Será irreligioso tudo isto? Mas esta é precisamente a mais elevada
religião do futuro, a do homem inteligência e consciente, que substituirá o
homem ignorante e instintivo de hoje” (UBALDI, 1995, p. 92).
Assim podemos pensar não mais em oposição entre ciência e religião,
oposição entre matéria e espírito. No primeiro caso temos apenas formas
diferentes de perceber a realidade e, no segundo, pontos diversos de um
mesmo transformismo fenomênico. “Ciência e espírito, conhecimento e moral,
têm as mesmas raízes. E Teilhard não podia deixar, ele também, de ver a
unidade fundamental de todas as coisas” (UBALDI, 1995, p. 92).
Quando se chegou a compreender que matéria e espírito, hoje
concebidos como dois termos antagônicos inconciliáveis, são
redutíveis à mesma substância fundamental, os atritos entre a forma
mental da ciência e a das religiões podem desaparecer, e é possível
fundir, numa só, as duas concepções do ser. Elas, em vez de se
excluírem, se integram indispensáveis uma à outra, como duas partes
da mesma unidade. Hoje estes dois aspectos parciais e
complementares da mesma verdade se estão combatendo, cada um
pretendendo constituir o todo e não uma parte; estão-se negando
reciprocamente quando são apenas duas afirmações incompletas, que
se procuram uma à outra para completar-se (UBALDI, 1995, p. 95-96).

Devemos então crer, como as religiões nos ensinam, mas não uma
crença cega, como ignorantes, para a realidade da ciência. Devemos aprender
com a ciência, de olhos abertos, iluminando a estrada com a nossa inteligência.
“Crer segundo as religiões, mas conhecer cada vez mais segundo a ciência; isto

137
é, crer cada vez menos com os olhos fechados, como ignorantes, e cada vez
mais com os olhos abertos, conhecendo” (UBALDI, 1995, p. 94).

Considerações Finais
A partir da visão evolucionista de Teilhard de Chardin e Pietro Ubaldi,
vimos como é possível, através de uma síntese lógica e harmônica, fazer
concordar o conhecimento científico e o religioso. Se a ciência pode oferecer
uma base lógica para a religião, esta, por sua vez, pode iluminar o
conhecimento científico. Esta possibilidade ficou evidente ao levarmos em
consideração que para ambos os autores a evolução é um processo natural cuja
finalidade é fazer convergir toda a criação para o ponto Ômega, último
momento e fim da evolução: Deus.
A evolução, descoberta e provada pela ciência, pode perfeitamente se
colocar de acordo com os ensinamentos da tradição religiosa. Teilhard de
Chardin, o peregrino da evolução, procurou demonstrar essa ideia sobretudo
em sua obra O Fenômeno Humano, onde o padre jesuíta analisa o processo
evolutivo do universo de acordo com as diferentes etapas da criação do cosmos,
da vida e do pensamento. A paixão de Teilhard pela ciência e a sua vocação
religiosa para o sacerdócio despertaram nele o interesse de conciliar o aparente
conflito existente entre ambas e construir uma visão integrada entre a visão de
mundo da ciência com a visão de mundo da religião.
A mesma visão evolutiva nós encontramos na obra do filósofo Pietro
Ubaldi. Para o pensador italiano, se quisermos ter uma compreensão mais exata
da realidade, é preciso conciliar o conhecimento científico com o conhecimento
religioso. E ambos, Ubaldi e Teilhard, concordam não apenas com o aspecto
evolutivo do universo como igualmente com a ideia de que essa evolução tem
como meta final o retorno ao Criador (ponto ômega).
A originalidade do pensamento de ambos está em demonstrar que não
existe incompatibilidade entre a religião e ciência. Ambos buscaram uma
integração entre as concepções materialistas da ciência e espiritualistas da
religião, concebendo uma cosmovisão integradora da realidade, a partir de uma

138
visão evolucionista. É assim que ciência e religião apontam para uma mesma
direção. Não são dois tipos de conhecimentos antagônicos, mas que revelam
algo da própria essência da vida: a de que a vida é evolução e de que essa
evolução tem um propósito espiritual de natureza divina.

Referências
BORGES, Deborah Terezinha de Paula. Diafania de Deus no Coração da Matéria: A
Mística de Teilhard de Chardin. Tese (Doutorado em Ciência da Religião), Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora-MG, 2015.
CHARDIN, Pierre Teilhard de. O Fenômeno Humano. 3 ed. Porto: Livraria Tavares
Martins, 1970.
LANGER, André. A Espiritualidade de Teilhard de Chardin. Tabulæ - Revista de
Philosophia, ano 12, n. 24, p. 10-37, jan.-jun., 2018. Disponível em:
<https://www.faculdadevicentina.com.br/intranet/revista-tabulae/category/15-revista-
tabulae-ano-12-n-24-jan-jun-de-2018>. Acesso em: 20 out. 2022.
LIBÓRIO, Luiz Alencar. O Fenômeno Humano: Aspectos Antropológicos-Teológicos.
Kairós – Revista Acadêmica da Prainha, ano VII, n. 1, p. 77-118, jan./jun., 2010.
Disponível em:
<https://ojs.catolicadefortaleza.edu.br/index.php/kairos/article/view/220>. Acesso em:
09 ago. 2022.
LIMA VAZ, Henrique C. de. Teilhard de Chardin e a Questão de Deus. Síntese Nova
Fase, Belo Horizonte, u. 23, n. 74, p. 345-370, 1996. Disponível em:
<https://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/981>. Acesso em: 20
out. 2022.
LUCARELLI, Vera Lúcia Moreira Alves. Ciência e Espiritualidade no Pensamento de
Teilhard de Chardin. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo-UMESP, São
Bernardo do Campo-SP, 2019.
SESÉ, Bernard. Pierre Teilhard de Chardin. São Paulo: Paulinas, 2005.
SOUZA, Maria Aparecida de. Criação e Evolução: em diálogo com Teilhard de Chardin.
Dissertação (Mestrado em Teologia), Programa de Pós-graduação da Faculdade de
Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2007.
UBALDI, Pietro. A Grande Síntese: Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do
Espírito. Tradução de Carlos Torres Pastorino e Paulo Vieira da Silva. 24. ed. Campos dos
Goytacazes-RJ: Instituto Pietro Ubaldi, 2017.
UBALDI, Pietro. A Descida dos Ideais. Tradução de Manuel Emygdio da Silva. 3. ed.
Campos dos Goytacazes-RJ: Fraternidade Francisco de Assis,1995.
ZILLES, Urbano. Criação ou Evolução? 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

139
TEMPO E MEMÓRIA NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO DE
HIPONA
Ana Paula Ferreira Gomes
Graduanda em Psicologia pela PUC Minas.
FAPEMIG/PUC Minas.
anapaulaferreiragomes03@gmail.com

Fabiano Veliq
Doutor em Psicanálise.
Doutor em Filosofia.
Professor adjunto do Departamento de Filosofia da PUC Minas
veliqs@gmail.com

Resumo: A obra de Agostinho de Hipona, em toda a sua dimensão, trabalha temas


valiosíssimos para a teologia, desde a patrística, nos primeiros séculos do cristianismo,
até os dias atuais, considerando sua influência sobre a filosofia ocidental. Sendo assim,
o presente trabalho, em uma tentativa de sondar parte de sua literatura, busca, como
objetivo principal, explorar os conceitos de tempo e memória e sua relação, aos quais a
obra Confissões reserva alguns livros, bem como compreender as implicações desses
conceitos para as ideias de Amor, Vida Feliz e Eternidade.Iniciando suas ponderações
sobre o tempo, Agostinho trata das ideias de criação e criador. O tempo, enquanto
criação, submete-se ao criador, e não poderia existir até ser, enfim, criado. Desse modo,
o agir de Deus, o criador, não se define pelas mesmas contingências do agir humano:
suas obras não podem ser contidas pelo tempo ou pelo espaço. O tema do tempo se
articula à questão da memória quando a tratamos enquanto habilidade da mente
humana. A memória, segundo Agostinho, é capaz de duplicar a imagem dos objetos
que captam a atenção dos sentidos, de forma que, mesmo não tendo o objeto em
mãos, podemos nos lembrar dele. Com o armazenamento de imagens dos objetos e
acontecimentos passados, a mente também se mostra capaz de criar ideias e
expectativas para o futuro, por meio da recombinação das imagens guardadas. O
estudo desses temas abre espaço para a investigação do conceito de Vida Feliz, bem
como da origem da alma humana e a possibilidade de memórias que guardamos desse
período, ponderações essas importantes ao debate da filosofia através dos séculos.
Palavras-chave: Memória; Tempo; Teologia; Vida Feliz.
Dize à minha alma: eu sou tua salvação. Dize-o, para que eu ouça. Eis
diante de ti os ouvidos do meu coração; abre-os e dize à minha alma:
eu sou tua salvação. Correrei atrás dessa voz e te alcançarei. Não me
escondas tua face: que, para não morrer, eu morra para vê-la.
(AGOSTINHO, 2017. p. 40).
Ó caminhos tortuosos! Ai da alma do temerário que esperou
encontrar uma morada melhor deixando-te! Vira-se e revira-se sobre
as costas, o ventre e os flancos, mas tudo é duro, e só tu és repouso.
(AGOSTINHO, 2017. p. 167).

1. O conceito de tempo no livro XI das Confissões de Agostinho


As considerações de Agostinho de Hipona a respeito da memória e do
tempo são extensivamente trabalhadas pelo autor na obra Confissões, redigida

140
no século IV, principalmente entre os livros X e XI. Neles, trabalha-se não apenas
a conceituação — ou a tentativa de definição — de vocábulos paradoxalmente
tão próprios do cotidiano e, ao mesmo tempo, tão difíceis de assimilar, mas
também a relação entre ambas as concepções com a alma e sua busca
incessante pela verdade de Deus. “De fato, quando te procuro, meu Deus,
procuro a vida feliz. Procurar-te-ei, para que viva minha alma. Pois meu corpo
vive por minha alma e minha alma vive por ti.” Agostinho (2017. p. 275)
O livro XI de Confissões se inicia com um questionamento que dita o tom
do restante do volume: “Porventura, Senhor, sendo tua a eternidade, ignoras o
que te digo, ou vês no tempo o que se dá no tempo?” Agostinho (2017. p. 306)
Essa introdução de Agostinho ao livro, por si mesma, já nos permite a
proposição de uma série de questões. A princípio, a afirmação “[…] sendo tua a
eternidade […]”, oportuniza a compreensão de Deus como criador e, portanto,
de sua obra como criatura. No entanto, a expressão “eternidade”, que diz
respeito à ideia de Tempo, mostra que ela, enquanto criatura, foi criada e,
portanto, passou a existir antes de sua existência e, assim, fora do próprio
tempo. Entende-se que, afinal, a existência de Deus não se limita à sua criação e
independe do tempo. Como mostra Agostinho em outro momento:
Aqui estão os céus e a terra, eles declaram que foram feitos: mudam e
variam, enquanto naquilo que não foi feito, mas é, nada há que não
fosse antes, quer dizer, que mude ou varie. Declaram também que
não se fizeram a si mesmos: ‘Somos por isso: por ter sido feitos;
portanto, não éramos antes de ser, para que pudéssemos nos fazer a
nós mesmos.’ (AGOSTINHO, 2017. p. 310)

Considera-se que a condição criadora de Deus permite que Ele crie fora
das contingências determinantes que limitam a vida humana, tecendo o tempo
fora do tempo, tramando céus e terra sem se assentar sobre lugar algum.
Tu fizeste o homem que fabrica; tu, a animação que governa seus
membros; tu, a matéria de onde ele faz algo; tu, o engenho que
contém a arte e vê dentro de si o que executa fora; tu, os sentidos do
corpo, pela mediação dos quais este leva da mente para a matéria o
que faz, e traz de volta à mente o que fez, para que ela julgue
internamente, sob a direção da verdade, se é bem-feito. (AGOSTINHO,
2017. p. 311).

Em conclusão, aqui podemos analisar a indagação trabalhada pelo


filósofo: “Que fazia Deus, antes de criar o céu e a terra?” Agostinho (2017. p.
141
316) A própria frase já traz em si uma marca linguística da temporalidade
humana: “antes”, que indica uma sucessão de acontecimentos assim como
“durante” ou “depois”. No entanto, examinando a proposição, é preciso
relembrar que, antes que o tempo fosse de fato criado, não havia como medi-lo,
não havia um “antes”. Deus, enquanto criador, não se enquadraria em uma
ordem cronológica de ações, de maneira que o homem, marcado pela
transitoriedade, não pode nem sequer especular sobre uma vivência fora do
tempo.
Seguindo em análise, a segunda parte da proposição, que enuncia:
“ignoras o que te digo, ou vês no tempo o que se dá no tempo?”, abre duas
possibilidades para a compreensão do saber divino: a primeira, que
rapidamente é contestada pela própria essência Onisciente de Deus, propõe
que Ele não conheceria os fatos narrados pela sua criatura até que essa se
dispusesse a contá-los. Enquanto isso, a segunda possibilidade, condicionada
pela resolução da primeira — ou seja, pelo fato da Onisciência —, nos leva a
questionar: a onisciência de Deus premedita todos os fatos antes que esses
sejam, ou se dá simultânea ao tempo em que ocorrem, detendo o saber do
passado, mas estando tão subjugada à inconstância do presente e incerteza do
futuro quanto qualquer criatura? Aqui, faz-se necessária a diferenciação entre o
Tempo do Homem e o Tempo de Deus. A princípio, entende-se que o homem
vive uma sucessão de Presentes: “[…] um tempo não poderia ser longo se não
por muitos movimentos passageiros, que não poderiam se estender
simultaneamente;” Agostinho (2017. p. 316), que, ao transcorrerem,
transformam-se em Passado que, já não sendo mais presente, não é. Da mesma
forma, considerando-se o Futuro, temos um repertório de Presentes que ainda
não são, já que, até então, não foram vividos. Toda essa organização se dá
sobre a delicada trama do Tempo, em que uma partícula de presente, antes que
se perceba, já se transformou em passado, uma experiência, fugaz, se esconde
na memória. E nisso, o homem vive cada um de seus dias, horas, minutos e
segundos — e quaisquer outras subdivisões possíveis ou conhecidas — em uma
dimensão quase utopicamente rúptil, quando analisada com proximidade.

142
Assim, as vivências do Presente, pérfido, são acessadas apenas na consulta da
memória — que, como será aprofundado mais adiante neste artigo, mantém a
ideia de algo que já não é — e, rearranjando-se, transformam-se em expectativas
para o Futuro.
Apesar dessa complexa relação entre o homem e o Tempo, é preciso,
aqui, considerar a imperfeição da atividade desse mecanismo. Sendo criatura, o
homem não pode compreender plenamente a verdade: sua memória é falha e
suas esperanças podem ser enganosas. Por outro lado, Deus, enquanto a
própria Verdade, tem sua percepção de Tempo explicada pela seguinte
afirmação:
Tampouco tu antecedes os tempos no tempo: porque, se fosse assim,
não antecederias todos os tempos. Mas tu antecedes todos os
passados do alto da eternidade sempre presente e ultrapassas todos
os futuros, porque estes são futuros e, como vêm, passarão; mas tu és
sempre o mesmo, e teus anos não findarão. Teus anos não vão nem
vêm: estes nossos vão e vêm, para que venham todos. Os teus
permanecem todos juntos, porque permanecem, e não são removidos
pelos que vêm, porque não passam; mas estes nossos só serão todos,
quando todos já tiverem sido. Teus anos são um único dia, mas um
hoje, porque teu hoje não é suprimido por um amanhã, nem substitui
um ontem. Teu hoje é a eternidade, logo geraste cometer-nos-emos
aquele a quem disseste: ‘Hoje te gerei’. Tu fizeste todo o tempo e és
antes de todo tempo, e não houve um tempo em que não havia
tempo. (AGOSTINHO, 2017. p. 318).

A partir da citação de Confissões, entende-se que, para a filosofia


agostiniana, Deus tem acesso a uma percepção de tempo que é sempre
presente, de forma a enxergar simultaneamente, "[...] do alto da eternidade [...]"
Agostinho (2017. p. 318), todos os acontecimentos que se deram no início da
história do mundo, bem como os que ainda estão por vir. E esse panorama,
portanto, não poderia acrescentar algo novo ao saber de Deus, uma vez que o
conhecimento de todas as coisas, a idealização de tudo que há, bem como a
ordem de efetivação já se encontram nele, como mostra Agostinho no
fragmento a seguir: “Porque assim como conheces no princípio o céu e a terra,
sem que teu conhecimento mude, assim fizeste no princípio o céu e a terra, sem
que houvesse distensão em tua ação.” Agostinho (2017. p. 336)
Entende-se, aqui, parte do conceito da eternidade de Deus, que
corresponde, em suma, à ideia de constância. Deus não poderia ser eterno se
143
não por sua imutabilidade, de forma que sua ação criadora, fundamentalmente,
pertence à sua essência, não partindo de um rompante criativo.
Pois, se apareceu em Deus um movimento e uma vontade nova de
produzir uma criação que nunca produzira antes, como poderia ser
ainda verdadeira eternidade, se nela surge uma vontade que não era?
Com efeito, a vontade de Deus não é uma criatura, mas anterior às
criaturas, porque nada poderia ser criado, se não fosse precedido pela
vontade do criador. Logo, a vontade de Deus pertence à sua própria
substância. Ora, se surgiu na substância de Deus algo que não estava
nela antes, então não é verdade que aquela substância seja eterna; se,
porém, era eterna a vontade de Deus que produziu a criação, por que
a criação também não seria eterna? (AGOSTINHO, 2017. p. 316).

Essa perspectiva alinha-se ao que é tratado por Plotino nas Enéadas, em


Sobre a Eternidade e o Tempo. No texto, discute-se o conceito de eternidade e
as condições para que algo seja eterno, como propõe o autor: “nunca jamais
deixar de ser e em não ser de outro modo, isso é, em ser do mesmo modo, isso
é, indiversificadamente”17 Plotino (1985. p. 207).
Plotino usa da ideia de “sempre existente”18 Plotino (1985. p. 192) para se
referir ao que apenas é, nunca foi e nunca será Plotino (1985. p. 192), de forma
que nunca deixa de ser, não se torna algo diferente do que já é por essência.
Segundo Leite (2020), a auto-determinação de Deus como “Ser” evita o uso de
nomeações imperfeitas, visto que abrange a infinitude de possibilidades que se
alinham no Criador. Essa característica garante unidade e imutabilidade ao que
é Eterno, de forma que o termo pode ser, e muito frequentemente é, atribuído à
ideia de Deus: “Um dos nomes da divindade é mesmo Eternidade, em hebraico
antigo;”19 Leite (2020. p. 6) O Criador, em seu caráter inalterável, “se revela e se
apresenta a si mesmo tal qual é, a saber, como o Ser em sua modalidade de
“incomovível”, de idêntico, de ser como é e de estar firmemente assentado na

17 Tradução nossa: “nunca jamás dejar de ser y en no ser de otro modo, esto es, en ser del
mismo modo, esto es, indiversificadamente” (PLOTINO, 1985. p. 207)
18 “siempreexistente”
19 “No Gênesis, além de Elohim [‫( ]אלהים‬Pai/Senhor criador e onipotente) (Gn. 1:1) a divindade é

El-Olam [‫( ]אל עולם‬Pai/Senhor- Eternidade) (Gn. 21:33); El de sempre, El de eternidade (Römer,
2014, p. 107). Nome que se repete em outros momentos da Tanakh, por exemplo, nos salmos
davídicos, que situam temporalmente a natureza divina fora do mundo, pois “antes que
nascessem os montes, ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de eternidade a
eternidade [‫ ]ומעולם עדעולם‬tu és Deus” (Sl, 90:2). O atributo (in)temporal eternidade [‫ ;עולם‬olam] é
a própria natureza primeva da divindade, cuja gênese se desconhece, pois ela se perde no fluxo
exotérico do que é eterno e, assim, corrobora sua índole infinita e misteriosa.” (LEITE, 2020. p. 6)
144
vida”20 Plotino (1985. p. 206) A partir disso, e retomando o que já foi
apresentado anteriormente, a criação não poderia partir de um ímpeto, uma
vez que isso se oporia à própria natureza divina, mas, em verdade, já fazia parte
do ser de Deus antes que de fato passasse a existir, já que nele, não há
possibilidade de se originar algo novo: “ nada em absoluto se há originado nele
— pois se algo se houvesse originado, ele não seria sempre existente e não seria
um todo sempre existente”21 Plotino (1985. p. 205)
Em razão do exposto, em suma, a eternidade, como também apontado por
Plotino, “deve ser concebida como estando não só em repouso, mas também
em unidade, e ademais como inextensa, para evitar que seja idêntica ao
tempo”22 Plotino (1985. p. 200) Aqui, trata-se de repouso no sentido de manter-
se invariável, sempre estável e exato em essência, mas também eterno em ato,
como Uno. Segundo Nascimento:
O Uno é repouso e unidade, ou seja, ele repousa na unidade. […] O
Uno é essencial, isto é, essência inteligível, imutável, identidade,
uniformidade e permanência, e devemos compreendê-lo como
modelo dos inteligíveis. Consciência e objeto de si mesmo, o Uno se
constitui como sujeito e objeto ao mesmo tempo. […] Não há passado
nem futuro, como algo eterno que participa da eternidade ele está
sempre presente. (NASCIMENTO, 2019. p. 155).

O Uno, na filosofia de Plotino, seria o princípio inominável de tudo,


presente em todas as coisas, de onde todas as coisas emanam e para onde
querem retornar. Entende-se o Uno como inalterável e imortal e,
consequentemente, perfeito, como mostra Romanelli (2021). No entanto, e
aqui, diferencia-se do Deus de Agostinho, por ser impessoal. Agostinho trabalha
a ideia de um Deus criador, que propositalmente e essencialmente cria,
enquanto o Uno plotiniano emana como um centro absoluto anterior a tudo e
origem de si mesmo.

20 “se revela y se presenta a sí misma tal cual es, a saber, como el Ser en su modalidad de
‘inconmovible’, de idéntico, de ser como es y de estar firmemente asentado en la vida.”
(PLOTINO, 1985. p. 206).
21 “nada en absoluto se ha originado en ella — pues si algo se hubiera originado, ella no sería

siempreexistente o no sería un todo siempreexistente” (PLOTINO, 1985. p. 205).


22 “debe ser concebida como estando no sólo en reposo, sino también en unidad, y además

como inextensa, para evitar que sea idéntica al tiempo.” (PLOTINO, 1985. p. 200).

145
Com base na exposição da temática do tempo, podemos também
analisar mais profundamente a relação entre o tempo e o homem, e em
específico o funcionamento da faculdade da mente que, segundo Agostinho,
nos permite acessar as distensões do tempo: a memória. O filósofo se refere a
ela espacialmente, quase como se, materializando-a, pudesse perscrutar todos
os cantos da mente, analisando seu funcionamento e eficiência diante da
relação entre o homem e o que o cerca: “[…] e eis que chego aos campos e aos
amplos palácios da memória, onde se encontram tesouros de inumeráveis
imagens de todo tipo de objeto, trazidas pelos sentidos.” Agostinho (2017. p.
262) Como introduzido pela citação, Agostinho entende a memória como um
abrigo para as mais diversas sensações captadas pelos sentidos, permitindo a
evocação dessas em momentos oportunos — desde que não as tenha
esquecido. A recordação dos objetos armazenados na memória nos permite
uma vivência singular da temporalidade, uma vez que, no presente, pode-se
remontar ao passado e, a partir das experiências registradas, expectar o futuro.
É isso que Agostinho chama de distensão da alma.
O debate proposto a partir dos conceitos abordados por Agostinho, de
tempo e memória, leva à ideia de Vida Feliz, trabalhada no livro X das
Confissões. Considerando-se as faculdades da mente, é proposto que apenas
seria possível reconhecer ou ansiar por algo cuja imagem estivesse guardada na
memória. A partir do já exposto processo de duplicação dos objetos, a memória
guardaria imagens das vivências, sensações, sentimentos, objetos propriamente
ditos, saberes e de tudo mais que atravessa o homem no mundo. Assim, o
conhecimento e o consequente reconhecimento desses objetos só seriam
possíveis a partir de uma primeira exposição. Aqui, Agostinho traz o exemplo da
mulher que busca por uma dracma perdida: se não guardasse na memória a
imagem da moeda, não a reconheceria mesmo que a encontrasse. Assim, é
proposto que a busca humana pela verdade de Deus estaria baseada em uma
experiência que, mesmo armazenada na mente, não pode ser acessada — o
homem está sempre procurando pela felicidade da vida com Deus por já ter
uma experiência primária com Ele, mesmo que não se lembre. Agostinho, para

146
responder à procura pela Vida Feliz, apresenta duas hipóteses: ou todos os
homens viveram com Deus junto ao primeiro homem, a partir de quem todos
nasceram em pecado, ou vivenciaram a presença de Deus em espírito,
individualmente. 23 Tempo e memória se ligam de maneira íntima na
formulação agostiniana e dessa forma fica evidente que o tema em questão é
de suma importância para entender temas caros à filosofia e teologia
agostiniana.

Conclusão
O presente artigo teve por objetivo o aprofundamento nos principais
conceitos trabalhados por Agostinho nos livros X e XI de Confissões: o tempo e
a memória. Mesmo sendo princípios amplamente empregados no nosso
cotidiano, Agostinho vai além da mesmice e mostra, através de inúmeros e
didáticos exemplos, a complexidade dessas ideias, bem como a relação entre
elas, o homem e Deus.
Nosso texto se inicia tratando do conceito de Tempo e mostramos que o
Tempo é uma criatura como qualquer outra criada por Deus, que o cria fora
dele mesmo, cria para que, enfim, exista. Enquanto criador, a essência de Deus
não se altera com o tempo, não se afeta, se não, não seria eterna e inalterável.
No entanto, o homem, como criatura, se vê à mercê do tempo e de incontáveis
contingências, em sua limitação. Em seguida, mostramos que, diferentemente
de Deus, o homem vive pequenos presentes, recorda do passado e imagina o
futuro, habilidade essa possibilitada pela memória, uma faculdade da mente
que permite a distensão da alma pelo tempo, por meio da duplicação dos
objetos que nos cercam. As experiências vividas, para Agostinho, seriam
armazenadas na memória por imagens, que podem ser revisitadas desde que
não tenham sido esquecidas.
Seguindo na análise de Confissões, também exploramos a ideia de
Eternidade de Deus, um conceito abordado por Plotino nas Enéadas, ao citar o

23O assunto pode ser aprofundado no artigo O Amor e a Memória no livro X das Confissões de
Santo Agostinho:https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2020v11n22p577-588

147
Uno, e adaptado ao cristianismo por Agostinho, mais tarde. A eternidade, em
suma, faz referência ao inalterável e constante, de forma que para Agostinho a
associação com Deus pode ser feita de maneira mais direta. Fomos capazes de
vincular o pensamento de Plotino ao de Agostinho ressaltando a importância
do filósofo grego para a composição agostiniana. Nosso trabalho, dessa forma,
vincula o tempo à noção de memória e põe em relevo temas importantes da
filosofia e teologia agostiniana.

Referências
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2017.
LEITE, A. B. C. D. (2020). A forma da eternidade. Archai 28, e0280.
NASCIMENTO, Sidnei Francisco. Eternidade e tempo: Plotino e Agostinho.
Argumentos, ano 11. n. 22 - Fortaleza, jul/dez. 2019
PLOTINO. Enéadas. Madrid: Editorial Gredos, S. A., 1985.
ROMANELLI, Elaine David Barra. O caráter intelectualista da mística em Plotino.
Veliq, F., & Gomes, A. P. F. (2020). O AMOR E MEMÓRIA NO LIVRO X DAS
CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO. Sapere Aude, 11(22), 577-588.

148
A PERSPECTIVA DE RELIGIÃO NO PENSAMENTO DE EMMANUEL
LEVINAS
Fabiano Victor Campos
Doutor em Ciência da Religião pela UFJF
Professor do PPGCR da PUC Minas
fvocampos@hotmail.com

Luiz Fernando Pires Dias


Mestre e Doutorando em Ciências da Religião
(Bolsista Capes) pela PUC Minas
l.ferna2805@gmail.com

Resumo: A presente comunicação tem como objetivo pontuar a concepção de religião


no pensamento de Emmanuel Levinas, perspectiva que tem a ética como o tópos
originário da inteligibilidade. O filósofo franco-lituano abriu novas possibilidades à
questão através de pressupostos e postulações que determinaram uma profunda
unidade entre a ética e a transcendência, distanciando-se da tematização e da rigidez
conceitual, frequentemente, empregadas no discurso filosófico sobre Deus. Levinas
recusa a abordagem de Deus como ser, mesmo que na condição de ser supremo,
situando a questão na intriga ética da relação humana. No entendimento de Levinas, a
ética assimétrica – aquela que não constitui uma totalidade, com o Eu assumindo a
responsabilidade incondicional e intransferível pelo outro homem, resguardando a sua
alteridade inalienável – mantém uma relação de homologia com a religião, fora do
campo institucional. A abordagem da religião e de Deus em Levinas afastou-se de um
horizonte dogmático, enfatizando a questão do significado, buscando as circunstâncias
nas quais tais palavras podem ser pronunciadas com sentido. O rosto de Outrem, na
sua total nudez, é o lugar privilegiado onde Deus vem à ideia como palavra
significante, como mandamento de responsabilidade pelo próximo, fazendo do rosto o
lugar central da religião e da ética no pensamento de Levinas.
Palavras-chave: Deus, Ética, Levinas, Religião, Transcendência.

Introdução
Vivemos uma sociedade multicultural e, também, multiconfessional, na
qual foram desenvolvidas diversas perspectivas sobre o transcendente, tanto
pelas religiões históricas, como pela filosofia, além de outras disciplinas. O
cenário atual apresenta, de forma concomitante, uma crise nas religiões
institucionalizadas e a manifestação de uma espiritualidade que, muitas vezes,
prescinde de vinculação a uma instituição religiosa24. Tal contexto nos sugere

24No último censo realizado no Brasil, os sem religião formaram o terceiro maior grupamento,
sendo que, a maioria desse contingente não era composta por ateus ou agnósticos, mas sim
portadora de uma espiritualidade não atrelada às religiões tradicionais, na qual a fé em Deus é
149
um desgaste das narrativas religiosas tradicionais, o que nos leva ao seguinte
questionamento: quais abordagens sobre a religião estariam congruentes às
mudanças que estão ocorrendo em nossas sociedades, nas quais a
espiritualidade aparece, frequentemente, ligada a preocupações com a justiça
social e com a dignidade humana?
A proposta da presente comunicação é buscar no campo filosófico uma
das respostas possíveis a essa questão, através da perspectiva de religião em
Emmanuel Levinas e a sua correlação com a ética, com a religião alcançando
um novo patamar de sentido ao ser associada à socialidade, em uma trama na
qual o eu é irremissivelmente responsável pelo seu próximo.
O desenvolvimento do presente texto se dará em três etapas.
Primeiramente, abordaremos a aproximação – e o distanciamento – entre a
religião e a filosofia no pensamento de Levinas. Em seguida, trataremos do
status que a ética alcançou na perspectiva de religião formulada pelo filósofo.
Posteriormente, buscaremos o sentido conferido à palavra Deus na filosofia
levinasiana. Nas considerações finais, retomaremos alguns aspectos
desenvolvidos pelo filósofo, relativos à religião e à transcendência.

1. Filosofia e religião
Emmanuel Levinas foi considerado por alguns de seus críticos25 como um
pensador judeu, no sentido redutor dessa expressão. No entanto, essa avaliação
– refutada em certo sentido pelo próprio Levinas26 – merece uma reflexão mais
aprofundada, pois desprezar a inspiração do judaísmo no pensamento de
Levinas equivale a cometer uma grave omissão, assim como incorremos em erro
quando restringimos sua filosofia tão somente a esse horizonte.

contemplada (VIEIRA, 2016, E-book). A posição brasileira dos sem religião reflete o cenário
mundial: “os não afiliados vêm em terceiro lugar, abrangendo 16,3% da população global, em
torno de 1,1 bilhão de adeptos.” (TEIXEIRA; MENEZES, 2013, E-book).
25 Citamos como exemplo Jean-François Lyotard (SEBBAH, 2019, p.182).
26 “Me considerar como um pensador judeu é uma coisa, que absolutamente não me choca.[...].

Mas eu protesto contra essa fórmula quando entende-se por isso alguém que ousa fazer
aproximações entre conceitos baseados unicamente sobre a tradição e os textos religiosos sem
se dar o trabalho de passar pela crítica filosófica.” (LEVINAS, 1996, p. 130, tradução nossa).
150
O judaísmo esteve sempre presente na produção intelectual de Levinas27
e na sua vida como um todo, desde a mais tenra idade na cidade de Kovno na
Lituânia – país do grande talmudista Gaon de Vilna (1720-1797) – onde o
judaísmo ditava naturalmente a cadência da vida cotidiana. Era um judaísmo
voltado ao estudo dos livros sagrados, como relata o próprio Levinas: “o
essencial do espiritual – e isso se mantém como ‘judaísmo lituano’ – residia para
mim não em suas modalidades místicas, mas em uma enorme curiosidade pelos
livros.” (LEVINAS, 1996, p. 66, tradução nossa).
A Bíblia, livro dos livros, no qual “[...] se dizem as coisas primeiras, aquelas
que deveriam ser ditas para que a vida humana tenha um sentido [...]”
(LEVINAS, 1982b, p.13, tradução nossa), tem um caráter fundante no
pensamento de Levinas, juntamente com o Talmude. Contudo, faz-se
importante sublinhar que tais leituras não acarretaram uma visão étnica ou
nacionalista em Levinas, que vislumbrou nessa sabedoria uma ótica universal,
uma maneira “[...] de pensar endereçando-se a todos os homens.” (LEVINAS,
1982b, p. 15, tradução nossa). Sublinhamos, também, que Levinas vê na ética o
eixo central, o polo de convergência dos relatos bíblicos, constituindo o seu
conteúdo essencial (LEVINAS, 1982b, p.113).
No entanto, muito embora a Bíblia e o Talmude tivessem o papel de
inspiração e de reflexão no pensamento levinasiano, deles não foram extraídos
argumentos irrefutáveis ou elementos comprobatórios de qualquer postulação
filosófica: “uma verdade filosófica não pode se basear na autoridade do
versículo. É necessário que o versículo seja fenomenologicamente justificado.
Mas o versículo pode permitir a busca de uma razão.”(LEVINAS, 1996, p. 131,
tradução nossa).
A fenomenologia foi o principal instrumental filosófico utilizado por
Levinas, aluno de Husserl e de Heidegger. No entanto, afastando-se de seus
professores, o pensamento levinasiano se desenvolveu já no limiar da
fenomenologia, em um contexto no qual a relação com outrem não é ontologia
e sim responsabilidade ética incondicional.
27Levinas, que produziu tanto reflexões filosóficas como comentários talmúdicos, manteve uma
separação entre esses escritos, utilizando editoras distintas para cada tipo de publicação.
151
A ética é o referencial primeiro de Levinas, que na busca do sentido do
humano concedeu precedência absoluta à ordem do Bem, instância
considerada pelo filósofo como anterior ao ser e ao saber, postulação que alçou
a ética ao patamar de filosofia primeira e ponto central de seu pensamento, de
onde partem as reflexões de sua filosofia, incluindo a sua perspectiva de
religião.

2. A ética como ótica espiritual


O primado da ética é uma constante em todos os segmentos do
pensamento levinasiano. No entanto, cabe ressaltar que a noção de ética em
Levinas se diferencia substancialmente do significado comumente atribuído a
esse termo em nossa tradição. A ética ocidental é concebida como uma
disciplina, como um objeto de conhecimento, sendo considerada uma ciência
do comportamento humano determinada pelo saber. Na perspectiva
levinasiana, “a ética, para além da visão e da certeza, desenha a estrutura da
exterioridade como tal. A moral não é um ramo da filosofia, mas a filosofia
primeira.” (LEVINAS, 2014, p. 340, tradução nossa).
O filósofo franco-lituano entende a ética como um ordenamento
primordial – antecedente às próprias relações com o Outro e com o mundo –
que fundamenta a realidade humana, no sentido mais profundo desse termo.
Portanto, na concepção de Levinas, a ética não é determinada pelo exercício da
ratio, mas, ao contrário, ela consiste no eixo estrutural da própria razão. Não se
trata de uma ética prescritiva ou sistematizada, mas de uma ética que
representa o elemento inaugural ou o princípio instaurador de uma
racionalidade fundada na responsabilidade intransferível e irrecusável pelo
próximo. A relação assimétrica com o outro homem, na qual Outrem não se
deixa assimilar e tem a precedência absoluta, coloca em questão o saber
fundado em uma razão que habitualmente é hostil ao Outro e à diferença:
Nomeamos esse colocar em questão minha espontaneidade pela
presença de Outrem, ética. A estranheza de Outrem – sua
irredutibilidade a Mim – a meus pensamentos e às minhas posses, se
realiza precisamente como uma contestação de minha
espontaneidade, como ética. A metafísica, a transcendência, o
acolhimento do Outro pelo Mesmo, de Outrem por Mim, se produz
152
concretamente como a contestação do Mesmo pelo Outro, quer dizer,
como a ética que realiza a essência crítica do saber. (LEVINAS, 2014, p.
33, tradução nossa).

Essa concepção de ética – na qual o Eu não promove a aquisição do


Outro às suas posses, esquivando-se da totalização, respeitando a alteridade
inalienável de Outrem – promove a homologia entre ética e religião no
pensamento de Levinas: “propomos que se chame religião ao laço que se
estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade” (LEVINAS,
2014, p. 30, tradução nossa).
No pensamento levinasiano, a ética ocupa um status decisivo, pois, além
de ser considerada como o parâmetro para a crítica ao saber e de constituir-se
como o elemento estruturante da realidade humana enquanto tal, a ela é
atribuído um papel proeminente no que se refere à transcendência: “a ética é a
ótica espiritual.” (LEVINAS, 2014, p. 76, tradução nossa). A transcendência se
esquiva da relação sujeito/objeto, caracterizada pela indiferença em relação a
Outrem. Para Levinas, a abertura ética ao Outro, a relação social como
exigência à obra de justiça, ocasiona uma fissura na imanência na qual a
transcendência se manifesta, abertura que conduz ao Deus invisível, em forma
de palavra, como ordenamento ético: “a metafísica se desenvolve nas relações
éticas.” (LEVINAS, 2014, p. 77, tradução nossa).
A religião em Levinas relaciona-se ao Dizer pré-originário da relação ética,
na qual ecoa o Infinito – que se expressa sem se mostrar – como fonte primeira
de inspiração à justiça. Trata-se de uma noção religiosa fora da acepção
institucional, longe do campo da sistematização dogmática, distanciando-se, de
certa forma, até mesmo da esfera das consolações religiosas. Para Levinas, a
perspectiva ética não exclui totalmente as consolações da religião, mas, o
filósofo argumenta que “talvez seja digna dessas consolações somente uma
humanidade que pode prescindir delas.” (LEVINAS, 1982b, p. 117, tradução
nossa).

153
3. Deus outramente que ser
Levinas desenvolveu uma contundente crítica à tematização da
transcendência produzida no transcurso histórico ocidental, desaprovando o
discurso filosófico sobre Deus, que manteve o Infinito ajustado e,
consequentemente, limitado à razão humana: “o Deus dos filósofos, de
Aristóteles a Leibniz, passando pelo Deus dos escolásticos, é um deus adequado
à razão, um deus compreendido que não saberia perturbar a autonomia da
consciência [...].” (LEVINAS, 2010b, p. 263, tradução nossa).
Trata-se de uma análise crítica que se insere no contexto maior da
contestação levinasiana ao modelo ontológico – prevalente no pensamento do
Ocidente28 – que através da tematização e da conceitualização reduziu e
equalizou o Outro ao idêntico, restringindo-o aos domínios do Mesmo. Nesse
modelo, a significação subordina-se ao ser, que passa a ter um papel
inquestionável e indestronável.
No entanto, para Levinas, “a inteligibilidade da transcendência não é
ontológica” (LEVINAS, 2004, p. 125, tradução nossa), sendo um equívoco tomar
o ser por Deus ou considerar Deus como o ente supremo, diagnóstico que
inicialmente aproxima-se da leitura heideggeriana29, para logo dela se afastar,
pois na concepção de Levinas Deus relaciona-se ao sentido e não ao ser
(SEBBAH, 2010, p.57).
A abordagem levinasiana sobre Deus se dará fora do paradigma
ontoteológico e apartada de questões comprobatórias de Sua existência, pois,
para o filósofo, opor Deus à ontoteologia permite uma nova maneira de
conceber o Transcendente (LEVINAS, 1993, p.144), possibilitando uma nova
noção de sentido buscada na concretude do face-a-face das relações
intersubjetivas: “a aproximação não onto-teo-lógica da ideia de Deus passa pela
análise das relações inter-humanas que não entram no quadro da

28 “O ontologismo, sob a sua significação mais ampla, permaneceu o dogma fundamental de


todo o pensamento.” (LEVINAS, 1982a, p. 124, tradução nossa).
29 “Mas se por um lado Levinas concorda com Heidegger acerca da distinção entre ser e Deus,

por outro lado ele julga inviável conceber o ser como o horizonte em que Deus possa se
revelar.” (CAMPOS, 2020, p. 172).
154
intencionalidade, a qual, tendo sempre um conteúdo, pensa sempre à sua
medida.” (LEVINAS,1993, p. 201, tradução nossa).
Um tópico fundamental na abordagem levinasiana de Deus é a ideia de
Infinito, inspirada no filósofo René Descartes. Levinas abandona o contexto
substancialista da postulação de Descartes, evidenciando o rompimento da
consciência por ela provocado, pois a ideia de Infinito apresenta uma
desproporcionalidade entre a ideia e o objeto da ideia. Quando se pensa o
Infinito, o pensamento põe-se a pensar mais do que pode. Para Levinas, “a
experiência, a ideia de infinito, está ligada à relação com Outrem. A ideia de
infinito é a relação social.” (LEVINAS, 2010b, p. 239, tradução nossa). As
relações éticas representam o acolhimento da exterioridade e o absoluto
respeito à alteridade do Outro enquanto Outro, em cujo rosto Deus se revela
como palavra:
A relação moral reúne então ao mesmo tempo a consciência de si e a
consciência de Deus. A ética não é o corolário da visão de Deus, ela é
esta visão mesma. A ética é uma ótica. De sorte que tudo o que eu sei
de Deus e tudo o que eu posso entender de Sua palavra e Lhe dizer
razoavelmente deve encontrar uma expressão ética. (LEVINAS, 2010a,
p. 37, tradução nossa).

O rosto é o ponto central na relação com Outrem, por ser portador de


um apelo de responsabilidade, devido à sua absoluta vulnerabilidade e
indigência, característica constitutiva de nossa condição – ou incondição –
humana. O rosto, em sua nudez, se recusa a ser conteúdo e não se sujeita à
relação sujeito/objeto, pois ele rompe com as estruturas cognitivas do
pensamento, em razão de seu caráter excessivo, que transcende as suas
próprias delimitações físicas. A relação com o rosto, o face-a-face, determina
uma situação ética que contesta o primado da relação ontológica e institui um
contexto metafísico, revelando uma relação tipicamente religiosa, sobretudo em
razão de sua diacronia assimétrica ou separação (RIBEIRO JÚNIOR, 2008,
p.448).
O mandamento de responsabilidade inscrito na nudez do rosto do Outro
é a palavra de Deus, imune à tematização. É através do rosto de Outrem que
Deus me vem à ideia, como um imperativo de justiça em favor do outro homem,
como obrigação ética: “essa obrigação é a primeira palavra de Deus. A teologia
155
começa para mim no rosto do próximo. A divindade de Deus atua no humano.
Deus desce no “rosto” do outro. (LEVINAS, 1994, p.179, tradução nossa).
A transcendência só se realiza no face-a-face da socialidade: “não há
modelo da transcendência fora da ética.” (LEVINAS, 1993, p. 226, tradução
nossa). Portanto, na concepção de Levinas, pensar a palavra Deus de maneira
apropriada é pensá-la no contexto ético das relações intersubjetivas.

Considerações Finais
Emmanuel Levinas desenvolveu uma noção bastante peculiar de religião
e de transcendência, se afastando da ontologia e desarticulando o Eu da
posição de soberania adquirida no transcurso histórico da filosofia ocidental.
Partindo de uma matriz judaica que o inspirou, embora sem nunca avocar a
sabedoria do Livro como argumento de autoridade, Levinas conferiu à ética o
status de filosofia primeira e de estrutura basilar da realidade do humano
enquanto humano. Nesse contexto, a religião foi abordada fora do seu
significado institucional ou normativo, sendo-lhe conferido um novo sentido. A
religião foi pensada, sobretudo, como relação com o Outro, em cujo rosto o
Infinito se manifesta, nos obrigando, eticamente, à obra da justiça.
Na concepção de Levinas, a palavra de Deus que passa como vestígio no
rosto do Outro é revelação, é a religião original não oriunda das especulações
da razão humana. O acolhimento dessa palavra é o próprio testemunho do
Infinito, que se concretiza com a palavra ética primeira, o “eis-me aqui”,
pronunciado diante do chamado de responsabilidade proveniente do rosto do
próximo.

Referências
CAMPOS, Fabiano Victor. De outro modo que ser: o Deus de Emmanuel
Levinas. In: CHACON, Daniel Ribeiro de Almeida; ALMEIDA, Frederico Soares de.
(org..). Filosofia da religião: problemas da Antiguidade aos tempos atuais. São
Paulo: Edições Loyola, 2020. p. 171-198.
LEVINAS, Emmanuel. De Dieu qui vient à l’idée. 2ª ed., Paris: Vrin, 2004.

156
LEVINAS, Emmanuel. De l’évasion. Paris : Fata Morgana, 1982a. (Le livre de
poche).
LEVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris : Grasset & Fasquelle, 1993.
(Le livre de poche).
LEVINAS, Emmanuel. Difficile liberté: essais sur le judaïsme. 9.ed. Paris: Albin
Michel, 2010a. (Le livre de poche).
LEVINAS, Emmanuel. En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger.
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LEVINAS, Emmanuel. Éthique et infini: dialogues avec Philippe Nemo. Paris:
Fayard, 1982b. (Le livre de poche).
LEVINAS, Emmanuel. Les imprévus de l’histoire. Paris: Fata Morgana, 1994.
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Academic, 2014. (Le livre de poche).
LEVINAS, Emmanuel. Entretiens Emmanuel Levinas / François Poirié. In: POIRIÉ,
François. Emmanuel Levinas: essai et entretiens. Paris: Actes Sud, 1996, p. 59-
169.
RIBEIRO JÚNIOR, Nilo. Sabedoria da paz: ética e Téo-lógica em Emmanuel
Levinas. São Paulo: Loyola, 2008.
SEBBAH, François-David. Levinas. Paris: Perrin, 2010.
SEBBAH, François-David. Levinas no ouvido de Lyotard. Revista Ética e Filosofia
Política, Número XXII – Volume I, p. 179-195, junho de 2019.
TEIXEIRA, Faustino; Menezes, Renata. Religiões em movimento: o Censo de
2010. Petrópolis: Vozes, 2013. E-book.
VIEIRA, José Álvaro Campos. Os sem religião: aurora de uma espiritualidade
não-religiosa. Fortaleza: Parole, 2016. E-book.

157
A BUSCA PELA ESPIRITUALIDADE E SUA RELAÇÃO COM O
PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO
Leandro da Costa Alhadas Cavalcanti
Graduando de Psicologia
Centro Universitário de Viçosa
leandropsi@konekta.io

Andréa Olimpio de Oliveira


Doutoranda em Ciência da Religião UFJF
andrea.olimpiodeoliveira@gmail.com

Resumo: Este estudo tem como proposta analisar e identificar as interfaces entre a
experiência da espiritualidade e o processo de individuação; conceito central da
Psicologia Analítica, desenvolvida pelo psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung (1875–1961).
Objetiva-se com este estudo, realizar uma correlação entre a experiência da busca pela
espiritualidade, com o processo de individuação. Como metodologia, se trata de uma
pesquisa de revisão bibliográfica cuja fonte literária primária é o Jung. Apoiando-se nos
fundamentos teóricos da Psicologia Analítica, assim como em artigos que aprofundam
o conceito de espiritualidade, o texto busca esclarecer as diferenças entre
espiritualidade e religião, bem como de individualismo e individuação. Ao comparar os
conceitos de espiritualidade e individuação, o estudo analisa a espiritualidade como um
fenômeno de caráter coletivo e qualidade arquetípica, inerente à própria estrutura
psíquica, que remete há tempos primordiais da humanidade. Espera-se com este
estudo trazer contribuições que ampliem o entendimento da espiritualidade dentro de
um contexto clínico, independente da crença religiosa do paciente ou da abordagem
teórica do psicólogo. Ao passo que não há intenção de trazer respostas fixas, o
resultado desta pesquisa poderá contribuir com um aclaramento sobre a função da
espiritualidade dentro do manejo clínico e como parte integrante do processo
psicoterápico.
Palavras-chave: Arquétipo; espiritualidade; individuação; psicologia analítica.

1. Introdução
Em janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou
uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional, em função do surto
do Coronavirus-2019 (COVID-19). Logo em seguida, em março de 2020, foi
oficialmente declarado como pandemia. Durante o período mais crítico da
Pandemia, que se situa entre janeiro de 2020 a dezembro de 2021, tornou-se
um tema comum de discussões informais e em diferentes mídias a forma como
as pessoas estavam vivenciando a pandemia. Houve, de forma geral, dois
movimentos opositores como resposta à experiência da pandemia: de um lado,
pessoas manifestando experiências percebidas como negativas, como
158
ansiedade tristeza, sintomas depressivos e agressividade; por outro, pessoas que
a experienciaram como uma oportunidade positiva de introspecção, voltar a si
mesmo, de desenvolvimento espiritual e uma ressignificação de aspectos da
vida.
O tema da busca pela espiritualidade em momentos de crise possibilita
análises profundas, sobre como as pessoas reagem quando em uma situação de
tensão psíquica. A proposta desta pesquisa é fazer uma correlação a nível
conceitual de espiritualidade com alguns dos conceitos mais fundamentais da
teoria Junguiana como individuação, si-mesmo (Self), inconsciente coletivo,
arquétipo e ego. A partir disso, busca-se gerar reflexões sobre o lugar que a
espiritualidade ocupa no enfrentamento de crises, e relacionar este movimento
com o processo de individuação; conceito central da Psicologia Analítica,
desenvolvida pelo psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung (1875–1961). Entender a
relação da espiritualidade com a individuação é relevante pois, além de nos
informar a respeito de marcos históricos que impulsionam o ser humano a
buscar mais autoconhecimento, também levanta reflexões a respeito do caráter
arquetípico da espiritualidade na humanidade. Para Jung, é justo através do
processo de individuação que “o paciente se torna aquilo que de fato ele é”
(JUNG, 2009. p. 24).

2. Objetivos
Como objetivo geral busca analisar, apoiando-se em conceitos teóricos
da Psicologia Analítica, identificar quais seriam algumas das interfaces, ou
pontos de congruência, entre a experiência de estar conectado com algo que
transcenda através da espiritualidade e o processo de individuação proposto
por Carl Gustav Jung. A pesquisa pretende assim, relacionar a busca da
espiritualidade como um fator catalisador, que faz parte da ancestralidade
humana e fomenta o processo de individuação.
Como objetivos específicos almeja:
a) Elucidar os conceitos de individuação, Self (Si-mesmo), arquétipo, ego,
psique e inconsciente coletivo;

159
b) Investigar diferentes conceitos de espiritualidade e religião e
esclarecer a diferença entre individualismo e individuação;
c) Fazer uma correlação entre a busca da espiritualidade em momentos
de crise com o processo de individuação.

3. Metodologia
No contexto desta investigação, será́ feita uma diferenciação entre
espiritualidade e religião entendendo que espiritualidade não está
necessariamente circunscrita dentro da religião. Para isto será́ realizado uma
reflexão sobre a etimologia da palavra espiritualidade com base em artigos
científicos secundários e pesquisas de campo que discutem o conceito de
espiritualidade e sua relação com religião e saúde mental.

4. Resultados e Discussão
Com base nas pesquisas iniciais realizadas para este projeto, vê-se
necessário incluir como escopo desta pesquisa, os conceitos fundamentais da
Psicologia Analítica e de espiritualidade, propondo um entendimento mais
amplo e universal da mesma, e vê-la como um fenômeno humano,
independente se a pessoa é religiosa, cientificista ou ateia. Portanto, julga-se
pertinente trazer alguns dos conceitos teóricos da Psicologia Analítica, que
serão utilizados no texto. As descrições dos conceitos abaixo foram
reproduzidas de painéis da exposição, “Nise da Silveira – A Revolução pelo
Afeto” realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro (novembro,
2020):
Tabela 1 – Conceitos centrais da Psicologia Analítica
Estruturas presentes no inconsciente coletivo como formas
Arquétipo predeterminadas para pensar e agir, são possibilidades herdadas
comum a todos os seres humanos.
Está relacionado à vontade; é a percepção geral do próprio corpo e
Ego
da própria existência.

160
É uma camada profunda da psique que contém os instintos e os
arquétipos. São disposições funcionais herdadas, de caráter
Inconsciente
universal, inerentes à própria estrutura psíquica; matrizes em que
Coletivo
tomam forma representações correspondentes a experiências
primordiais da humanidade.
Conceito central da psicologia junguiana, a individuação visa ao
conhecimento de si mesmo, permitindo que o inconsciente surja
no mundo consciente. É um processo que estimula o indivíduo a
Individuação criar condições para que desperte o melhor de si e do outro,
fazendo-o sair do isolamento e empreender uma convivência mais
ampla e coletiva, consciente da totalidade, mantendo a sua
coletividade.
É o conceito de si-mesmo; é o arquétipo central da ordem, da
Self
totalidade do ser humano; o centro regulador da psique.
Reúne todos os aspectos da personalidade, os sentimentos, os
pensamentos e os comportamentos, tanto conscientes quanto
Psique
inconscientes. Tem a função de harmonizar e regular internamente
o indivíduo.

Para compreensão do processo de individuação, Jung (2009), esclarece a


diferença entre individualismo e individuação. Enquanto o individualismo
favorece um movimento direcionado ao ego, o que dentro da organização da
estrutura psíquica proposta por Jung está no centro da consciência, o processo
de individuação seria “tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a
humanidade toda, em que também nos incluímos” (2009, p. 227). Entende-se,
então, que o processo de individuação, apesar de ser um movimento da
dinâmica do ego (pois é uma tomada de consciência de conteúdos
inconscientes), diferentemente do processo de individualismo, está orientado
para o Self (si-mesmo), e esta instância, enquanto arquétipo (parte do
inconsciente coletivo, e a totalidade da psique humana), representa a essência
do indivíduo; normalmente inacessível à consciência.

161
Assim como é necessário fazer-se uma distinção entre individualismo e
individuação, também o é distinguir espiritualidade de religião. Oliveira &
Junges (2012, p. 470) fazem uma análise bibliográfica de vários autores sobre
este tema e sugerem que: “o conceito de religião refere-se ao aspecto
institucional e doutrinário de determinada forma de vivência religiosa. Já a
espiritualidade faria referência à experiência de contato com algo que
transcende as realidades normais da vida”. Dessa forma, podemos perceber a
experiência da espiritualidade como algo de qualidade arquetípica, pois essa
busca de ir ao encontro de si mesmo e de algo que transcenda a experiência
humana (do ego), existe desde tempos primordiais, antes mesmo das
instituições religiosas. Ora, este fenômeno pode ser compreendido como um
processo de individuação; ou seja, o “si-mesmo” é tudo aquilo que ele tem
potencial de ser; sua essência. Com base nisso podemos entendê-lo como algo
que engloba todos os aspectos do ser humano. Jung (2009 p. 140) comenta
que “a experiência do si mesmo nada tem a ver com intelectualismo, mas é uma
experiência vital e profundamente transformadora. O processo que conduz a
ela foi por mim denominado processo de individuação”.
Nesse sentido, “o processo da individuação natural produz uma
consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à
consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a
todos os homens” (JUNG, 2009, p. 11). Em outras palavras, ao conectar-se com
o si-mesmo, estará conectando-se ao todo, à experiência do coletivo.
“A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba” (JUNG,
2000, p. 83). Em outras palavras, ela ocorre em termos de indivíduo (para si-
mesmo), mas tem caráter coletivo pois é um movimento comum ao coletivo (um
grupo de indivíduos), pois “bebe” da fonte do coletivo e o devolve para as
mesmas águas que serão a fonte de outros indivíduos.
Olhando para a etimologia latina da palavra espírito, que vem de spiritus,
constata-se que ela está intimamente relacionada ao verbo spirāre, que, por sua

162
vez, implica na ação de soprar como parte da respiração do corpo30. Nessa
leitura, o espírito seria o “sopro da vida”, e estaria relacionado ao próprio sentido
de existir. Podemos ampliar esta imagem então para pensar a espiritualidade
como algo que adjetiva essa experiência de sentir-se vivo, que manifesta uma
energia vital. Oliveira & Junges (2012, p.470), chegam a citar o teólogo, escritor,
filósofo e professor universitário brasileiro, Leonardo Boff, que diz que a
espiritualidade “significa experimentar uma força interior que supera as próprias
capacidades”.
Houveram no decorrer da pandemia da COVID-19 várias pesquisas que
destacavam estatísticas interessantes que demonstrando desdobramentos
positivos como resultado das pessoas que recorreram à espiritualidade ou
alguma prática terapêutica como uma estratégia, mesmo que não planejada, de
enfrentamento. No Brasil, pode-se citar uma pesquisa realizada pela UERJ
(Universidade Estadual do Rio de Janeiro) com 1.460 pessoas em 23 estados,
respondendo a um questionário on-line com mais de 200 perguntas, em dois
momentos específicos: de 20 a 25 de março e de 15 a 20 de abril 2020. Esta
pesquisa demonstrou que “quem recorreu à psicoterapia pela internet
apresentou índices menores de estresse e ansiedade'' (DIRETORIA DE
COMUNICAÇÃO DA UERJ, 2020).
Sobre esse mesmo tema, um estudo realizado por Sant'Ana, Silva e
Vasconcelos (2020) destacou que “cerca de 850 estudos que avaliaram a
associação entre envolvimento espiritualista e aspectos da saúde mental
demonstram que a maior parte das pessoas que vivenciaram melhor saúde
mental e mais se adaptaram ao estresse eram religiosas” (p.73). Os
pesquisadores mencionados comentam “que os indivíduos, ao resignificarem o
trauma vivido através de valores pessoais, com atividades espirituais e
compaixão, apresentaram maior resiliência e menores índices de complicações
psicológicas (2020, p. 73).

30Benjamin Veschi. Ano: 2020. Em: https://etimologia.com.br/espirito/. Acesso em 01 junho,


2021.

163
Conclusão
Ao relacionar o processo de individuação com o movimento da busca da
espiritualidade em momentos de crise, podemos entender que esta busca
possui qualidade arquetípica no sentido em que há algo próprio do ser
humano, deste os tempos primordiais que o impulsiona a buscar compreender
a si mesmo, e tendo como aporte para imbuir de sentido o mundo em que ele
habita, algo que transcenda à sua condição. Este fenômeno da busca por algo
que transcenda, é instintivo no ser humano. Este dinamismo é biográfico,
constitucional, fazendo parte da dinâmica do próprio Self (enquanto centro da
psique e instância que representa a totalidade do indivíduo), e anterior a uma
organização religiosa; a religião ou qualquer tipo de crença dogmática só pode
existir devido ao fenômeno da busca espiritual. É interessante perceber também
que segundo o conceito de individuação, voltar-se a si-mesmo é também voltar-
se ao coletivo; pois dentro da perspectiva da Psicologia Analítica, a nossa
camada mais profunda da Psique é o inconsciente coletivo.
Ao passo que não há intenção de trazer respostas prontas a respeito da
espiritualidade, o resultado desta pesquisa poderá contribuir com um
aclaramento sobre a função que a mesma ocupa dentro do manejo clínico e
como parte integrante do processo psicoterápico. Espera-se que este estudo
possa trazer contribuições que ampliem o entendimento da espiritualidade
dentro do contexto clínico, independente da crença religiosa do paciente (e do
psicólogo) ou da abordagem teórica do psicólogo.

Agradecimentos
Ao Jung, por meu encontro com sua obra ser uma parte tão intrínseca
do meu próprio processo de individuação e à Professora Andrea Olimpio de
Oliveira por ser uma fonte constante de inspiração e motivação nesta jornada.

Referências
DIRETORIA DE COMUNICAÇÃO DA UERJ (Brasil). UERJ. Pesquisa da UERJ
indica aumento de casos de depressão entre brasileiros durante a quarentena.
Disponível em: https://www.uerj.br/noticia/11028/. Acesso em: 1 jun. 2021
164
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Editora Vozes Limitada, 2000.
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. Editora Vozes Limitada, 2009
OLIVEIRA, Márcia Regina de; JUNGES, José Roque. Saúde mental e
espiritualidade/religiosidade: a visão de psicólogos. Estudos de Psicologia, Natal,
v. 17, n. 3, p. 469-476, 2012.
RAFFAELLI, Rafael. Imagem e self em Plotino e Jung: confluências. Estudos de
Psicologia, PUC-Campinas, v. 19, n. 1, p. 23-36, janeiro/abril 2002.
SANT’ANA, Geisa; SILVA, Cristina Duarte; VASCONCELOS, Maria Beatriz Aguiar.
Espiritualidade e a pandemia da COVID-19: um estudo bibliográfico.
Comunicação em Ciências da Saúde, v. 31, n. 03, p. 71-77, 2020.

165
O PRINCÍPIO PLURALISTA, A CRÍTICA A MODERNIDADE E O
DESAFIO DOS DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE A
PARTIR DE JACQUES MARITAIN
Moacir Ferreira Filho
Doutorando em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo com
período intercalar com a Universidade Católica Portuguesa
Financiado pela CAPES.
Professor do Centro Universitário FAVENI e
Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI.
moacirff@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento


que pretende compartilhar alguns resultados preliminares de modo que se abra ao
diálogo acadêmico. Tendo como referencial teórico e, posteriormente, como objeto de
análise crítica, o pensamento de Jacques Maritain, propõe-se expor o princípio
pluralista fundamentado pelo autor e a partir disso, analisar o pensamento dele e suas
críticas ao pensamento moderno que tem enfraquecida a dignidade da pessoa
humana e cria um ambiente onde o ser humano é tratado como mera coisa. Nessa
perspectiva, abrem-se as possibilidades de se instaurar um comportamento de violência
legitimado pelas religiões ferindo a dignidade da pessoa humana e seu status de ser
dotado de direitos. A partir de uma revisão sistemática, análise crítica e de
procedimentos observacionais, elaborou-se um estudo qualitativo de natureza aplicada
com objetivo exploratório de procedimento bibliográfico. Essa pesquisa pretende abrir
o diálogo em relação a pluralidade e diversidade presente em nossos tempos, refletir
sobre o pensamento moderno e contemporâneo acerca da imagem do ser humano
diverso em si e enfim, propor caminhos possíveis para a geração da paz social, o
respeito entre as pessoas e a promoção da dignidade da pessoa humana tão ferida em
nossos tempos. Nessa perspectiva, pretende contribuir para esse GT no que se refere ao
desafio da promoção da dignidade da pessoa humana em meio ao contexto de tantos
discursos de ódio em violência onde em pleno século XXI a humanidade recorre a
guerras como meio de "solucionar" conflitos.
Palavras-chave: Diversidade; Modernidade; Direitos Humanos; Jacques Maritain.

Introdução
A sociedade atual passa por um momento em que muitas coisas estão
sendo ressignificadas. O Direito é uma ciência que regula as relações humanas
e, quando elas se tornam variadas, ele é modificado. Conceitos que já eram
tidos como inegociáveis, hoje passam por uma espécie de “revisão” e, por vezes,
negação. O mundo polarizou-se de modo que exige respostas cada vez mais
delicadas da ciência que se vê imersa nesse imenso “barril de pólvora” com a
missão de (tentar) responder a demanda de modo que promova a vida e a

166
dignidade da pessoa humana. Nesse contexto de renegociações, negações e
reafirmações, poderia a dignidade da pessoa humana estar em “jogo”?
Considerar que o ente humano é um animal racional não é suficiente
para valorizar sua dignidade. Considera-lo um ser de direitos é possível por
poder dize-lo como pessoa e não apenas indivíduo. Contudo, o termo pessoa é
proveniente de um fundamento teológico que exige um certo tipo de crença,
nesse sentido, quando existe uma sociedade com um pluralismo de crença, a
visão acerca da pessoa humana pode ser também variada. Fato este que causa
polarizações e exige respostas que abarquem a diversidade. Vale destacar que o
pluralismo não é considerado um problema, muito pelo contrário, ele traz ao
centro a discussão de um conceito que seja eficiente à diversidade.

1. O princípio pluralista no pensamento de maritain


Maritain (1951) destaca que o princípio pluralista pode ser observado já
em Tomás de Aquino31. Esse princípio também é reforçado na sua obra
“Humanismo Integral”: “(...) não é composta a sociedade somente de indivíduos,
mas das sociedades particulares por eles formadas (...) na cidade dos tempos
atuais fiéis e infiéis são misturados”. (MARITAIN, 1965, p. 130/132). O filósofo
ensina que a harmonização dos plurais objetiva alcançar a boa vida humana. A
lei deve tornar o ser humano moralmente bom.
Em “Man and the State”, Maritain (1951) defende que para se conviver
bem numa sociedade democrática, é necessário obter uma harmonia entre os
opostos. Essa harmonia, não precisa se dar no campo teórico, mas basta que
tenham um acordo prático acerca dos direitos humanos.
Obviamente, a consciência de cada pessoa muda de acordo com a
religião, a filosofia entre tantos outros fatores que são capazes de influenciar a
mente humana, porém o que não deveria mudar de acordo com as ideologias é
a prática diante da promoção da dignidade da pessoa humana e a luta pela
defesa ao respeito pela humanidade.

31 ST II – II q. 10 e 11.
167
Embora estejamos inserido numa sociedade plural, seguindo o raciocínio
maritainiano, é possível identificar uma crença comum entre as pessoas : a
liberdade. O oposto a isso gera o fascismo, comunismo, a democracia burguesa,
racismo...que são considerados erros pelo filósofo francês.
“O conceito de fé e inspiração que a democracia precisa não pertence à
ordem da crença religiosa e na vida eterna, mas à ordem temporal e secular da
vida terrestre. A fé em questão é a cívica ou secular, não a religiosa”. (MARITAIN,
1951 p. 110 – Tradução Livre)
Alguns podem até argumentar erronemanete que Maritain pretendia
rrelaborar um projeto de sociedade aos moldes de um república cristão,
entretanto, o filósofo deixa claro em sua obra que não se deve esperar uma
nova república, mas sim que seja possível uma unidade política e espiritual do
cidadão, isto é, uma sociedade onde a pluralidade de ser e de pensar sejam
garantidas e respeitadas e que, acima de tudo esteja a missão de promover a
dignidade da pessoa humana independente de ideologias contrárias.
A sociedade civil não é composta somente de indivíduos, mas das
sociedades particulares por eles formadas; e uma cidade pluralista
reconhece a essas sociedades particulares uma autonomia tão ampla
quanto possível, e diversifica sua própria estrutura interna segundo as
conveniências típicas da natureza delas. (MARITAIN, 2018 p. 171).

“Perante toda diversidade é preciso que se busque também a paz dos


povos, pois o que se precisa não é uniformidade de maneiras de se comportar,
mas de uma orientação que leve a uma aspiração comum, a uma vida melhor”
(EUFRÁSIO, 2018, p.5).

2. A crítica a modernidade: entre a individualidade e a personalidade


Notoriamente, em linhas gerais, o mito fundante predominante no
ocidente é do livro do Gênesis, mais precisamente nos capítulos 1, 2 e 3 onde
na interpretação de Agostinho na Cidade de Deus, quando o texto relata que
Deus criou o ente humano à sua imagem, isso significa que ao cria-lo, Deus deu
a ele intelecto, vontade e poder sobre seus atos. Ser imagem de Deus, na
perspectiva de Agostinho, significa, que os entes humanos são dotados de
elementos que os distinguem de todas as outras criaturas. A imago Dei é

168
justificada pela sua natureza racional. Através disso, é possível chamar o ente
humano de pessoa e não somente indivíduo de acordo com essa tradição
filosófica.
Na concepção de Boécio (2005, p. 165), pessoa é “uma substância
individual de natureza racional”. Tomás de Aquino (2015) adota tal definição e
utiliza-se dela para elaborar o seu tratado acerca das pessoas divinas e das
pessoas humanas. Spaemann (2000) destaca que o conceito de pessoa se
encontra no núcleo da teologia cristã, portanto, conclui que sem a dimensão
teológica, o conceito de pessoa desapareceria. Wojtyla (1961) escreve que o
personalismo de Aquino não se trata apenas de uma teoria sobre o que é
pessoa. O escolástico não se preocupa com pessoa como um objeto de estudo,
mas como um sujeito de direitos. A doutrina religiosa da imagem de Deus se
torna a doutrina filosófica da pessoa.
Na formação do pensamento jurídico ocidental, nota-se como o conceito
da dignidade da pessoa humana é aplicado para garantir direitos até mesmo
em sociedades laicas. Segundo Azevedo (2009), Jacques Maritain se utilizou de
conceitos tomistas de dignidade e liberdade para auxiliar na elaboração da
DUDH adotada pela ONU. Observa-se que a dignidade da pessoa humana
decorre da concepção da dignidade da pessoa divina e, se com o
desencantamento do mundo proposto pela razão contemporânea enfraquece-
se tudo o que é transcendental, logo a dignidade da pessoa humana está
ameaçada. A pessoa humana corre risco de ser reduzida ao mero status de
indivíduo. Deixa de ser alguém para ser algo.
Maritain (2019) aponta que o mundo moderno confunde a
individualidade e a personalidade. “Enquanto indivíduos, estamos submetidos
aos astros. Enquanto pessoa, nós os dominamos” (MARITAIN, 2019, p. 26). O
francês define o individualismo moderno como a exaltação da individualidade
camuflada em personalidade. Em ocorrendo o desencantamento do mundo
juntamente com o enfraquecimento de algumas concepções transcendentais,
perde-se aquilo que Maritain chama de armadura social.

169
Atravessamos o século XX fazendo guerra e, quando pensamos que os
ânimos haviam se acalmado, fazemos guerra no XXI também. Ainda há muita
gente passando fome, passando por segregação, privado de saúde e educação.
Enfim, há quem não goze de seus direitos básicos e fundamentais. As pessoas
são reduzidas ao status de meras coisas.

3. Os desafios dos direitos humanos na contemporaneidade


Levitsky e Ziblatt (2018) escrevem “Como as democracias morrem” tendo
como fio condutor as polarizações que os governos demagogos geram através
dos discursos de ódio fazendo com que a democracia que outrora era vista
como o sistema político mais adequado para atender a demanda dos direitos
humanos fosse vista como obsoleta, frágil e que precisasse apelar para o retorno
de um possível governo autoritário e totalitário que se faz absoluto e governa
sem o controle ou a existência dos outros poderes.
Ao escrever “Homo Deus”, Harari (2015) relata que a humanidade nunca
havia passado tanto tempo sem fomo, guerra e pestes aos moldes como
contam os livros de história mundial. O que o autor não esperava é que em ao
término de 2019, o mundo começaria o enfrentamento de uma pandemia que
assolou a população mundial. Harari (2015) também não imaginaria que em
pleno 2022, países como Rússia e Ucrânia estariam em confronto direto
disputando poder, território impulsionados por uma Teologia Política que, no
caso, do lado dos russos, recebeu apoio do Patriarca ortodoxo Kirill para que a
chamada “operação militar” tivesse “sucesso” com rapidez. Em se tratando de
guerra e direitos humanos, sucesso é que esse embate não estivesse
acontecendo e que as vidas não estivessem sendo dizimadas, mas infelizmente,
os fatos estão aí e não podemos negar. Cabe lembrar que esse não é o único
conflito vigente em nossa era, vale citar da Etiópia, Iêmen, Mianmar, Haiti, Síria,
Afeganistão e regiões da África sob domínio de militantes radicais jihadistas.32

32 GALLAS, Daniel. Além da Guerra na Ucrânia: 7 conflitos sangrentos que ocorrem hoje no
mundo. 14.mar. 2022. Acesso em 3.set.2022. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60690640
170
Um dos aspectos mais marcantes do texto de Harari é justamente a
concepção de que o ser humano daria conta agora de controlar todas essas
questões catastróficas para toda espécies.
Sabemos bem o que precisa ser feito para evitar a fome, as pestes e a
guerra – e geralmente somos bem sucedidos ao fazê-lo. (...) Sim,
quando a fome, as pestes ou as guerras saem de nosso controle,
costumamos achar que alguém deve ter se equivocado, (...) e
prometemos que na próxima vez faremos melhor. (HARARI, 2015, p.
9).

Nessa perspectiva, aquilo que numa visão de mundo encantado era visto
como desígnios de Deus, em consonância ao pensamento de Harari, passa a ser
visto como falha ou escolha da própria humanidade, inclusive o evento morte.
Se algo de ruim aconteceu já não é considerado como a vontade de Deus, mas
é interpretado como uma falha humana diante da própria história.
É nesse cenário que os Direitos Humanos hoje se encontram desafiados.
Num ambiente internacional caótico e polarizado onde o ser humano é
detentor de todas as escolhas, por vezes, impulsionado por uma Teologia
política que, dependendo de seu uso, em vez de promover e garantir a vida e a
dignidade humana, apenas legitimam e promovem guerras, mortes e conflitos.

Conclusão
Os paradigmas do pensamento sempre passaram por mudanças. Para o
Direito não é diferente. Uma de suas fontes é o costume da sociedade, e
quando esta passa por modificações, ele também é modificado. É o que se pôde
notar diante deste breve estudo acercar dos paradigmas filosóficos e a
consideração da dignidade da pessoa humana. Só é possível manter esse
conceito vigente a partir de uma reflexão lógica que envolva um discurso
teológico e filosófico. Se há uma tendência de banalização de discursos de
cunho religioso ocorre o problema anunciado por Maritain de se reduzir a
pessoa a um mero indivíduo e daí decorrem todas as injustiças sociais. Quando
se trata de pessoa, trata-se de um sujeito de ação e de direitos.
A atualidade tem nos mostrado a desvalorização da pessoa humana que
vive essa tensão entre a individualidade e a personalidade que, como exposto,
do ponto de vista ético, ode fazer toda a diferenças. O estudo contribui para
171
que a sociedade fique atenta às injustiças sociais, abre caminhos para que se
discuta uma nova maneira de pensar a revalorização da pessoa humana. Este
artigo pode ser limitado pelo fato de abordar apenas um aspecto em que se
nota uma falha quanto a aplicação do conceito da dignidade da pessoa
humana em nossos dias.
Com o advento da razão, da ciência moderna, a desinstitucionalização
religiosa, o enfraquecimento das instituições, o crescimento do número dos
sem-religião, aqueles princípios fundamentados em dogmas e crenças religiosas
se encontram enfraquecidos e far-se-á necessário de um conceito comum que
abarque a humanidade universalmente e urgentemente, haja vista que ainda
em pleno século XXI a humanidade se encontra em contexto de guerra e,
infelizmente, fomentada por uma Teologia Política. Um dos caminhos a serem
traçados, porém longo, é o caminho da educação tal como proposto por
Jacques Maritain, ademais, o autor também apresenta algumas inconsistências
em suas teses que podem dar margem ao discurso que quer se dizer
conservador e que, por vezes, quando exacerbado torna-se ferramenta de
opressão e anulação das alteridades.
No século XVI, Thomas More elaborou um romance filosófico que levou
o nome de Utopia. Numa tradução simples do grego para o português, utopia
quer dizer um "não lugar" ou um lugar imaginário. Nessa sociedade criada por
ele, não existia intolerância religiosa e as pessoas tinham vergonha de fazer
guerra. Pois bem, parece que do século XVI para o XXI, essas características
continuam sendo utópicas.

Referências
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus: parte II. São Paulo: Federação
Agostiniana Brasileira; Bragança Paulista, SP: Editora Universidade São Francisco
(Vozes de bolso), 2012.
ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
AZEVEDO, Ferdinand. Jacques Maritain e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Universidade Católica de Pernambuco. 2009. Disponível em: Acesso
em: 4 jun. 2021.

172
BOÉCIO. Escritos (opuscula sacra). Trad. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
EUFRÁSIO, Thiago de Moliner. Humanismo integral segundo Jacques Maritain:
a pessoa humana como ser de relação e promotora de dignidade. International
Studies on Law and Education (28 jan-abr 2018) CEMOrOc-Feusp/IJI-Univ. do
Porto.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus – Uma breve história do amanhã. São Paulo:
Companhia das letras, 2015. PDF.
LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução:
Renato Aguiar. 1 ed. São Paulo: Zahar, 2018 (LIVRO DIGITAL).
MARITAIN, Jacques. Humanismo integral. São Paulo: Cultor de Livros, 2018.
MARITAIN, Jacques. Três reformadores. Lutero, Descartes e Rousseau. Tradução
de João Henrique Garcia Dias. São Paulo: Cultor de livros, 2019.
MORE, Thomas. Utopia. Edição Ridendo Casting Mores. Ebook Brasil, 2001.
PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos de
um conceito. São Paulo: Editora 34, 2003.
SPAEMANN, Robert. Personas. Acerca de la distinción entre algo y alguien.
Tradução: José Luis del Barco. 2ª ed. Universidade de Navarra, Pamplona:
EUNSA, 2000.
TOLONE, Oreste. Filosofia da Religião no pensamento de Bernhard Welte.
Aparecida, São Paulo: Ideias e Letras, 2011.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica I. São Paulo: Loyola, 2015.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica II. São Paulo: Loyola, 2002.

173
ÉTICA DA ALTERIDADE E ACOLHIMENTO LEVINASIANO COMO
CUIDADO EM DIREÇÃO AO OUTRO
Simone Maria Zanotto
Mestranda em Teologia Profissional,
Faculdade Teológica Sul Americana.
Docente Efetiva da SEDUC GO
simone.zanotto@estudante.ufjf.br

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo analisar os conceitos de “Ética da


alteridade” e de “Acolhimento” a partir da filosofia de Emmanuel Lévinas, como
cuidado em direção ao Outro, o qual pode ser apresentado na figura dos vulneráveis
da sociedade contemporânea. O interesse dessa investigação justificasse das
inquirições de observações fatuais as quais apontam um espírito desagregador
presente em diversas esferas da sociedade deslocando a humanização e a compaixão
do ser humano em relações egóicas e totalitárias. O problema proposto verifica de que
maneira é possível pensar a filosofia levinasiana, enquanto uma dimensão de cuidado
com os mais frágeis na luta e na superação das violências, das perseguições, das
exclusões e das injustiças de nossos tempos? A metodologia utilizada neste estudo
permeou fontes de revisão e de reflexão bibliográfica, sobretudo os textos clássicos de
Emmanuel Lévinas a respeito da temática abordada. Com base no exposto, essa
comunicação no GT 12 - Religião e cuidado: perspectivas protestantes e existenciais
traz como resultado o fomento do debate sobre o tema em questão, em relação ao
apontamento do cuidado como prática não só da religião, mas de outros setores da
esfera pública no agir do mundo pela garantia da paz e dos Direitos Humanos.
Palavras-chave: Religião; Ética da alteridade; Acolhimento; Cuidado.

Introdução
Em tempos regidos por ideais multiculturais e plurais que incorporam
diversos campos da sociedade, a atenção e o respeito pelas diferenças
demandam a necessidade de refletir sobre a alteridade de modo ético para que
a noção de outro não seja vista com inferioridade. Assim, esse contexto estimula
a leitura da crítica de Emmanuel Lévinas a respeito de paradigmas filosóficos
que não só estimulam como alimentam violências metafísicas como estratégia
de ações de totalitarismo de modo velado. Os textos de Lévinas responsabilizam
a filosofia de não trabalhar com as diferenças, mas ampliar a redução do Outro
ao mesmo, dando força ao Mito da Totalidade. A filosofia levinasiana constrói
uma subjetividade que promove o encontro com o rosto do Outro, para o qual
o Eu é responsável e não se ausenta do cuidado. Sem responsabilização e
alteridade, não há significação como será visto adiante. Para compreensão da
174
ética da alteridade e do acolhimento levinasiano como expressão de cuidado
em relação ao outro, faz-se necessário conhecer as chaves de leitura
influenciadoras da filosofia de Lévinas.
Nascido em Kaunas - em 1906 - na Lituânia, em berço judeu, Lévinas
experimentou com sua família um período de exílio que posteriormente o
destinou a Universidade de Estrasburgo onde estudou Edmund Husserl e
Martin Heidegger (HUTCHENS, 2009). Durante o período da Segunda Guerra
Mundial, trabalhou forçado como prisioneiro em um campo de concentração,
experimentando as atrocidades e os horrores do nazismo como a perda de sua
família, de seus amigos e de seu povo judeu. Lévinas presenciou os eventos
degradantes do Holocausto que o fizeram questionar sobre o papel da filosofia
em deixar ocorrer genocídios como esse. Suas reflexões foram marcadas por
esse cenário desumanizado.
Com efeito, seu aprendizado foi originado do período em que esteve em
cárcere, pois fez a mais trágica vivência de ser um prisioneiro judeu intelectual e
um filósofo sobrevivente. Junto a isso, há diversas vozes que cruzam seu
pensamento como os clássicos da literatura russa, as lições do Talmude e de
grandes filósofos judeus como Martin Buber, Franz Rosenzweig, Walter
Benjamim, Ernst Bloch e Emil Fackenheim (HUTCHENS, 2009). Sua obra
também foi influenciada por outros pensadores como Hegel, Kant, Spinoza,
Husserl, Heidegger e por poetas como Maurice Blanchot, Gabriel Marcel etc.
Em suma, são vozes que o levaram ao confronto da ontologia do poder
do Eu, do movimento da Totalidade no aprisionamento do outro ao Mesmo, na
anulação ou na redução das diferenças (LÉVINAS, 2022). Sua filosofia não só
tece uma crítica diante dos contextos de crueldade e de desumanização, como
denuncia um papel para toda humanidade a de ser responsável pelo caos
diante da supremacia do Eu que se instala na vida de outros, os quais são rostos
vulneráveis em um sistema desumanizador e injusto.

175
1. Ética da alteridade, acolhimento e cuidado no pensamento levinasiano
A ontologia do poder, de acordo com Hutchens (2009) é o principal
aspecto analisado na filosofia levinasiana. Ela manifesta interesse “pela
totalização – redução de qualquer forma de diferença à uniformidade – com o
objetivo de aumentar o poder de racionalização” (HUTCHENS, 2009, p. 30).
Assim, como resultado, a individualidade é transformada, pois é reduzida à
uniformidade, fortalecendo a racionalidade proposta pelo objetivo da metafísica
que influencia valores em diversas esferas. Lévinas, nessa conjuntura, irá
explorar o status da ética diante da condição humana e da totalidade. Diante
dessa perspectiva, o filósofo fraco-lituano criticou a ontologia heideggeriana
como cúmplice e fomentadora da violência de sua época em relação ao
sofrimento a e desumanização do outro. Segundo Maldonado-Torres (2022, p.
11) essa é uma das razões “pela qual a ética e a relação rosto-a-rosto ocupa um
lugar no pensamento de Lévinas”.
De acordo com Lévinas, o ontológico, a dimensão do ser, deve sua
existência e obtém seu sentido a partir da necessidade da justiça na
ordem transontológica; necessidade da justiça que introduz a medida
e a sincronia na ordem diacrônica da experiência ética primitiva entre
a subjetividade nascente e a outraidade. A introdução da justiça
contém o excesso da demanda ética pelo Outro, dividindo-a
igualmente entre todos os outros, incluindo aí o doador mesmo, que.
em virtude da justiça, aparece pela primeira vez como outro entre
outros. A justiça, com isso, cria, a partir da relação vertical entre a
subjetividade e a outraidade relações horizontais entre mim e os
outros, o que transforma a subjetividade em alter ego da justiça.
(MALDONADO-TORRES, 2022, p. 50).

Desse modo, quando a ontologia é fundamento e princípio, ela prioriza


um ser anônimo acima das relações subjetivas, promovendo a renúncia da
justiça e da responsabilidade com o Outro. Na filosofia levinasiana, as relações
humanas que se desenvolvem no face a face são essenciais para “irrupção da
transcendência que exalta no sujeito a vocação humana para santidade.
Vocação que o desperta e o arranca ao enredamento complacente em torno do
ego, reconhecendo no outro diante dele uma primazia sobre seus próprios
interesses.” (BARCELOS, 2011, p. 68).
Por conseguinte, enxerga-se no Outro um apelo, um chamado
irrecusável colocando-se a sua disposição, ao seu cuidado, enfim ao seu serviço.

176
O questionamento ético surge por intermédio dessa relação originada da
alteridade, em que a responsabilidade do eu diante do Outro, o impele ao
acolhimento e ao diálogo com um terceiro que o encara e o leva a linguagem
da justiça (LÉVINAS, 2022). Em Lévinas (2004), a ética como filosofia primeira
antecede a ontologia vivificando a justiça, pois tira dela um caráter mecanizado
de direitos e deveres.
A justiça, essencial à comunidade humana na qual, segundo
expressão de Lévinas, a “palavra de Deus” não se faz ainda ouvir
completamente, não pode prescindir da promessa do despertar
redentor de cada homem para a responsabilidade infinita pelo outro,
para sua desigualdade como móbil que suporta a igualdade dos
outros através de um excesso dos seus deveres face aos seus direitos.
A componente dialogal, da refundação ética da subjetividade do eu
pela abertura à alteridade, na qual se ancora a concepção levinasiana
de sociabilidade, está igualmente presente nas discussões
contemporâneas em torno da temática do reconhecimento. Também
aqui o surgimento do outro convida-me à hospitalidade, impele-me a
acolhê-lo na sua irredutível diferença. (BARCELOS, 2011, p. 70).

Nesse sentido, tem-se o acolhimento como cuidado que permeia uma


responsabilidade total, irrecusável que reclama a justiça desinteressada pelos
que sofrem, pois há uma escuta de fidelidade ao apelo do Outro (LÉVINAS,
2021). Em decorrência disso, a responsabilidade do eu é indeclinável, ou seja,
ele não pode ser substituído nesse status. Além disso, o eu responde ser
responsável inclusive pela responsabilidade do outro diante do sofrimento e de
outras mazelas. Não há indiferença diante das perseguições, da morte e da falta
de justiça. Isto posto, para Lévinas (2021), somos responsáveis por tudo que é
feito por outras pessoas e não há escolhas no acolhimento diante do rosto
infinito do Outro que conduz o eu a ética da alteridade.
O acolhimento levinasiano compreende no oferecimento gratuito de um
lugar, de uma casa em que o Eu, como refém, recolhe um terceiro que não é
igual a si. Como consequência, se dá um fenômeno caracterizado em uma
responsabilidade incondicional, pois o Outro na figura de Infinito Absoluto
torna-se hospede, pois é ouvido em seus apelos e em suas necessidades
(LÉVINAS, 2022). É nesse recolhimento que o cuidado se faz presença como
uma dobradiça em que o olhar e a escuta para com o hóspede são convertidos
em respostas frente a vulnerabilidade desse que é recolhido. Dessa maneira, o

177
hóspede é ouvido de forma constante e intensa uma vez que o anfitrião se abre
em intimidade para ser cuidador de uma alteridade sem desconfiança.
É no face a face como o Outro que o acolhimento se constrói na
preservação da identidade do Outro como uma subjetividade que não agride,
mas protege e propicia a preservação do rosto acolhido. A ética da alteridade,
ou seja, essa responsabilidade ética sem medida é uma resposta ao apelo do
rosto enigmático, denominado por Lévinas (2021) de ileidade (Infinito). É nesse
encontro que surge o sentido da ética, pois um movimento de entrega
incondicional é realizado pelo Outro na figura de acolhedor do Infinito. O Outro
está além de uma ideia finalizada, ele é surpreendente porque a Infinitude está
presente no Rosto. Assim, “acolher o Outro em sua presença, para que a própria
presença se faça possível, é ir além da capacidade do Eu, ter a ideia do Infinito”
(MENEZES, 2022, p. 41).
Diante do que foi apresentado, vê-se que em Lévinas o Outro não pode
ser tematizado, contudo o Rosto do Outro se apresenta sem máscaras, então é
possível reconhecer um apelo, uma fome, uma necessidade diante da presença
que não pode ficar em silêncio, devendo exigir a justiça que atualizará a
responsabilidade no cuidado com o Outro. De acordo com Menezes (2022),
para Lévinas a religião ocorre de modo verdadeiro na praça pública quando há
luta por justiça social.
A justiça como um dito necessário, uma resposta concreta à fome do
outro que não pode esperar, não pode esquecer sua inspiração, ou
seja, a significação primeira o Dizer presente o rosto. O dito é a
resposta possível sempre, insuficiente para responder ao Dizer que nos
remete a um além, mas que possui sua significação no Rosto. A justiça
representa a urgência do presente, enquanto o Rosto é expressão de
um além para um aquém (futuro e passado) de si mesmo. Assim a
justiça não pode se contentar com suas conquistas, devendo sempre
ser revista. A ética é então um movimento possível da justiça. A justiça
é, desse modo, a responsabilidade pela vida; a impossibilidade de
omissão diante da morte do Outro. (MENEZES, 2022, p. 68).

A justiça em Lévinas está presente no face a face com o Outro de modo


concreto em sua fala. Dessarte, ela deve estar disposta a escutar para traduzir de
modo legítimo a fala dos vulneráveis de modo singular se responsabilizando por
suas fragilidades. A fala do Outro convoca o Eu a um ato de acolhida,
colocando-o em um questionamento ético em que o Outro é reconhecido em
178
sua humanidade sem a pretensão de ser submetido ao saber do Eu. Perceber o
Outro em seu Rosto é escutá-lo aceitando sua responsabilidade em relação a ele
(LÉVINAS, 1997).
Vale ressaltar que na ideia de acolhida está a escolha entre o bem e o
mal, pois no acolhimento não há distrações que impossibilitam o Eu de
enxergar as injustiças e de se esquivar da obrigação (LÉVINAS, 2001). É nessa
obrigação que aparece a luta por direito à diferença e à igualdade diante da
alteridade. É na singularidade que Outrem interpela o direito de luta por
reconhecimento em um apelo de hospitalidade e de acolhimento. “A palavra
justiça, com efeito, situa-se bem melhor aí onde se requer não minha
subordinação ao outro, mas a equidade” (LÉVINAS, 1986, p. 119).
É possível refletir diante dessa abrangência que a filosofia de Lévinas
(2022) não tece críticas apenas diante de situações de injustiça, de crueldade e
de falta de humanidade com o Outro, mas ela rompe com qualquer ideia
totalizadora em que o Outro é subordinado ao Mesmo. Desse modo, em um ato
de responsabilidade ética incondicional ocorre um exercício de defesa e
proteção como forma de cuidado no acolhimento com o Outro que pode ser
figurado em pessoas que são marginalizadas, seja na esfera econômica, social,
acadêmica e inclusive na religiosa.
É nessa postura responsável pelo Outro que a ética da alteridade se faz
presente de modo necessário, preservando a identidade do Outro sem
questionamento - sem qualquer tipo de agressão, porque não há desejo de
transformar ou padronizar o Outro que é único em seu gênero. Somado a essa
abordagem, vê-se na filosofia levinasiana que não há a necessidade de
conhecer para exercer o cuidado no acolhimento e na hospitalidade. Como
forma de guardião, o Eu assume uma infinita responsabilidade acolhedora do
Outro independente do que o Outro tem a oferecer. O Eu atende a um
chamado, pois ouve a súplica de alguém que sofre e requer ajuda.

179
Considerações finais
A presente comunicação possibilitou reflexões que relacionaram a ética
da alteridade e o acolhimento levinasiano como expressão de cuidado em
direção ao Outro que são os vulneráveis do corpo social. Em tempos de
violência física e simbólica, esses conceitos não só levam à reflexão como
podem nortear ações, as quais acrescentam um papel relevante para a
construção de uma sociedade mais justa e mais aberta à alteridade.
É possível notar de modo claro que os desafios para promoção de um
mundo mais humanizado são imensos diante de Estados e de Nações
fomentadores de necropolítica. Contudo, vemos na filosofia levinasiana um
chamado a responsabilização de todos diante desses sistemas que se
encontram no poder. Dessarte, a ética de Lévinas (1997) aponta para
responsabilização de resultados das situações de caos encontradas por falta de
justiça que levam o Outro à morte a ao sofrimento. A morte do Outro é também
a minha morte (LÉVINAS, 2022). Se eu permaneço indiferente, torno-me
cúmplice. Assim, “o outro me individualiza por meio da responsabilidade que
tenho por ele. A morte do outro que morre me atinge em minha identidade
mesma” (LÉVINAS, 2021, p. 22).
Escutar o apelo do Outro é, então, uma obrigação irrecusável que requer
atenção e consciência. É nesse encontro que o acolhimento se torna cuidado
promovendo a igualdade na preservação das diferenças. O anfitrião abre as
portas de sua casa sem medo de se fazer presença obediente as necessidades
do Outro nesses tempos de egoísmo para a garantia da paz e dos Direitos
Humanos.

Referências
BARCELOS, Paulo. Em voou de Grou:para uma extensão global do princípio do
reconhecimento. BARCELOS, Paulo (Orgs). In: Entre o reconhecimento e a
hospitalidade. Lisboa: Edições 70, 2011. 67-78

HUTCHENS, B.C. Compreender Lévinas. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2009.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Trad.


José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2022.
180
LÉVINAS, Emmanuel. Deus, a morte e o tempo. Trad. Fernanda Bernardo.
Lisboa: Edições 70, 2021.

LÉVINAS, Emmanuel. Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações


talmúdicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Rio de Janeiro:


Vozes, 1997.

LÉVINAS, Emmanuel. Autrement qu’etre ou au-delà de I’essence. Paris: Klumer


Academic, 2004.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre a colonialidade do ser: contribuições
para o desenvolvimento de um conceito. Rio de Janeiro: Via Verita Editora,
2022.

MENEZES, Magali Mendes de. O dizer como subjetividade maternal: um ensaio


desde Lévinas e J. Derrida. Porto Alegre:CirKula, 2022.

181
GT 8 - GÊNERO, OUTRAS INTERSECCIONALIDADES E CIDADANIA
NA RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO NA AMÉRICA
LATINA: DESAFIOS E INTERPELAÇÕES NA BUSCA PELA PAZ
Doutoranda Giovanna Sarto (UFJF)
Doutoranda Paulina Valamiel (UFMG)

Ementa: Nos últimos vinte anos o Campo Religioso Brasileiro tem intensificado os laços
com o espaço público. Conforme apontou Roberta Bivar Campos, no texto
“Interpretações do catolicismo: do sincretismo e antissincretismo na/da cultura
brasileira” (2009), se, por um lado, a configuração do Estado moderno e democrático
valoriza a pluralidade e diversidade, por outro, tal pluralidade e diversidade não
significa necessariamente respeito e tolerância. No contexto da modernidade, a
pluralidade de identidades, sejam elas de gênero, sexualidade, classe, raça e religião,
entre outras, também se apresentam no campo religioso e em sua relação com o
espaço público. As pautas reivindicadas pelos movimentos sociais têm se feito
presentes no interior das religiões, reorganizando suas práticas, sobretudo a partir das
reivindicações feitas pelas teólogas e teologias feministas, queer, lésbicas, gays e
negras. Ao mesmo tempo, nota-se que tais reivindicações de grupos subalternizados
têm desestabilizado identidades fixas e restritivas as quais muitas vezes são defendidas
e asseguradas pela religião. Movidos pela ideia de combate a essas pautas, diversos
grupos religiosos encontram nesse combate, novas formas de participação política.
Com efeito, gênero, raça, classe e identidade religiosa configuram-se como temas
centrais na relação entre Religião e Espaço Público e implicam em relações diretas e
mudanças fundamentais nas diversas áreas que se propõem a uma análise científica
sobre a relação entre essas interseccionalidades e o fenômeno religioso. Isso porque
tanto as religiões configuram e são configuradas pelas relações sociais que os
indivíduos na sociedade civil estabelecem, quanto porque historicamente sempre
desempenharam ações sociais. Esses grupos transformam e complementam a noção de
cidadania à medida que elaboram reflexões e ações práticas acerca dos problemas
sociais para além do plano político-governamental. Ao se inserirem de forma mais ou
menos institucionalizada no debate público, movimentos sociais, bem como diferentes
construções identitárias, vêm disputando espaços dentro e fora da religião. Nesse
sentido, ela atua como ferramenta política – que pode funcionar como instrumento
tanto de opressão quanto de emancipação de grupos subalternizados. Uma vez que
oscila entre conservadorismo e fundamentalismo, em concepções restritivas de gênero
e outras interseccionalidades, mas também entre inclinações progressistas e mais
abertas a novas epistemologias. Nesse sentido, o presente GT abre espaço a pesquisas
que visam refletir sobre a busca pela paz, à guisa de convocar e articular categorias
interseccionais como as de gênero, raça, classe e identidade religiosa para análise das
alternativas, desafios e interpelações a um diálogo democrático e construtivo.

Palavras-chave: Religião e Espaço público. Religião e Gênero. Interseccionalidade.


Modernidade. Cidadania.

182
DO FLAVIO À ELIS REGINA: PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO NO
ROMANCE UM AMOR DIFERENTE. NOSSAS ESCOLHAS DO
ESPÍRITU AUGUSTO CESAR VANNUCCI E O MÉDIUM JOÃO
ALBERTO TEODORO
Henry Isaac Peña Grajales
Mestre e doutorando em Ciência da Religião pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista Fapemig
henisapegraj@aol.com

Resumo: Flavio é o garoto homogênero, protagonista do romance homoafetivo "Um


amor diferente", que trabalha, como transformista&nbsp;todo fim de semana no
espaço público de uma casa de entretenimento noturno. Seus espetáculos musicais
têm muito sucesso, suas imitações de mulheres são perfeitas, atraentes e interessantes
para os homens que curtem esses musicais performativos de gênero na procura de
lazer e diversão. Uma das artistas performadas, interpretadas e dubladas pelo Flavio é a
cantora brasileira Elis Regina, desencarnada em 1982. À luz do espiritismo, o espírito
imortal não tem sexo, isso explana que identidade de gênero sejam questão de
desconstrução e performance social e espiritual. No ato performativo representativo,
como a representação e construção de uma personagem ou da feminidade mesma,
não há um dado fornecido, mas performado, representado, construído, desconstruído
e reconstruído. Dai que ninguém nasça mulher, e sim se transforme numa delas
(BEAUVOIR, 1970), como é o caso da performação e representação no cenário da Elis
Regina por Flávio. É tal qual disse Butler (2003) a categoria mulher é um quefazer
cultural variável, posto que ninguém nasce com um gênero, o gênero é sempre
adquirido, aprendido, performado. Através da metodologia bibliográfico-
argumentativa se pretende explicar o fenômeno e o fato da performance de gênero
com base na teoria do espiritismo e na obra Problemas de gênero. Feminismo e
subversão da identidade da Judith Butler (2003). Para ela a performatividade de
gênero se dá em dois casos: no primeiro, dá volta em torno à figura da linguagem
metalepse, e, no segundo, como repetição e ritual que consegue seu efeito no contexto
de um corpo, compreendido como a duração temporal mantida culturalmente. O
objetivo é relacionar o romance espírita homoafetivo com a teoria da performatividade
da Judith Butler. A apresentação contribuirá para compreendermos o transformismo
musical como um ato artístico, público e performático de gênero. Espera-se que o
relacionamento fato entre o romance e a performance de gênero motive mais analises
de personagens lésbicas, homogenéricas, bigenéricas, trigenéricas, etc., em narrativas
literárias espíritas para a busca da compreensão, a valorização e a convivência pacífica
em espaços públicos de performance artística de gênero.
Palavras-chave: Transformismo; Performatividade de gênero; Performance musical em
público.

183
Introdução
Flavio é o garoto homogêneo, protagonista do romance homoafetivo
Um amor diferente. Nossas escolhas, que trabalha, como transformista33, todo
fim de semana, no espaço público de uma casa de entretenimento noturno.
Seus espetáculos musicais têm muito sucesso, suas imitações de mulheres são
perfeitas, atraentes e interessantes para os homens que curtem esses musicais
performativos públicos de gênero na procura de prazer, lazer e diversão. Uma
das artistas performadas, interpretadas e dubladas pelo Flavio é a cantora
brasileira Elis Regina34, desencarnada há 30 anos: 1982.
À luz do espiritismo, o espírito imortal, não sendo matéria, não tem sexo
(KARDEC, 2020), isso explana que identidade de gênero seja tanto
desconstrução, quanto performance social e espiritual. No ato performativo
representativo e interpretativo musical, como a representação e construção de
uma personagem ou da feminidade mesma, não há um dado fornecido, fato,
mas performado, representado, construído, desconstruído e reconstruído. Dai
33 Transformista é um adepto do transformismo, ou evolucionismo, na doutrina do espiritismo
kardecista, mas no romance também significa performance de gênero. O transformista é o
mesmo travesti ou drag queen, que se traveste de mulher com intenções artísticas, musicais,
imitativas, ou sexuais para com os homens, como é o caso do personagem Flávio. O drag queen
pode imitar uma mulher de modo exagerado na maquiagem, na peruca, nos gestos, nos
sapatos de salto. Esses personagens são hoje mais conhecidos como transgêneros por sua
sensação psíquica, pessoal e social de não querer pertencer ao “gênero nuclear” do corpo com
que nasceram, sua “identidade de gênero” pode fazer com que eles apresentem disforia do
“gênero nuclear”.
34 Elis Regina de Costa Carvalho (17 mar. 1945, POA-19 jan. 1982: 36 anos) foi uma cantora

brasileira. Seu desencarne antes do tempo fez dela um mito musical. Imortalizou muitas canções
da MPB, tais como Águas de março, Casa no Campo e Como Nossos Pais, Upa neguinho; Se eu
quiser falar com Deus. Seu precoce passo para o mundo espiritual derivou-se do consumo de
craque e álcool. Seu namorado a achou jogada no chão quase sem vida, tento ajudá-la, mas
veio a óbito chegando no hospital. Elis Regina começou a cantar, tendo 11 anos, no programa
“No Clube do Guri” da Rádio Farroupilha Em 1960 foi eleita Melhor Cantora da Rádio Gaúcha.
Em 1961 já no RJ, com apenas 16 anos, lançou seu primeiro disco musical “Viva a Brotolândia”.
Em 1964 foi contratada pela TV Rio para apresentar o programa “Noite de Gala”. Em 1964 se
instala em SP. Em 1965 estreia no festival da Record com a música “Arrastão”, de Edu Lobo e
Vinicius de Moraes. Fez-se ainda mais popular pelos seus gestos cantando: alçava os braços e os
movimentava. Foi premiada com o Berimbau de Ouro e o Troféu Roquette Pinto. Escolhida
como a melhor cantora do ano. Entre 1965 a 1967 apresentou o programa “O Fino da Bossa”
na Record TV em SP. Tal programa fez com que produzisse 3 discos “Dois na Bossa”, do primeiro
vendeu um milhão. Elis foi cantante eclética, virava-se com vários estilos musicais, tais como
MPB, jazz, rock, bossa nova e samba. Levou ao estrelato a cantores como Milton Nascimento,
João Bosco e Ivan Lins. Foi duetista junto com Tom Jobim e Jair Rodríguez. Sobressaem seus
álbuns Ela (1971); Elis e Tom (1974); Falso brilhante (1976); Essa Mulher (1979); Saudade do
Brasil (1980) e Elis (1980), (FRAZÃO, 2022).

184
que ninguém nasça mulher, e sim se transforme numa delas (BEAUVOIR, 1970),
como é o caso da performação e representação no palco da Elis Regina pelo
Flávio. É tal qual disse Butler (2003) a categoria mulher é um quefazer cultural
variável, posto que ninguém nasce com um gênero, o gênero é sempre
adquirido, aprendido, performado.
Através da metodologia bibliográfico-argumentativa se pretende explicar
o fenômeno e o fato da performance musical de gênero com base na teoria do
espiritismo sobre gênero performativo e na obra Problemas de gênero.
Feminismo e subversão da identidade da Judith Butler (2003). Para ela a
performatividade de gênero se dá em dois casos: no primeiro, dá volta em torno
à figura da linguagem metalepse, a forma em que a essência provista de gênero
dá a origem ao que é exterior a si mesma e, no segundo, a performatividade de
gênero não é um ato único, mas uma repetição e um ritual que consegue seu
efeito através da sua naturalização no contexto de um corpo, compreendido,
até dado momento, como a duração temporal mantida culturalmente.
O objetivo é relacionar o romance espírita homoafetivo com a teoria da
performatividade da Judith Butler e a psicologia simbólico-junguiana do anima-
animus. A apresentação contribuirá para compreendermos o transformismo
musical como um ato artístico, público e performático de gênero. Espera-se que
o relacionamento realizado entre o romance e a performance de gênero motive
mais analises de personagens lésbicas, homogenéricas, bigenéricas, trigenéricas,
etc., em narrativas literárias espíritas para a busca da compreensão, a
valorização e a convivência pacífica em espaços públicos de performance
artística de gênero.

1. Pedofilia, estupros sexuais e identidades de gênero


Os dois protagonistas do romance Flávio e Guilherme são dois
personagens com identidade de gênero35 homo. E isso será determinante nas

35 A identidade de gênero de uma pessoa vai se revelando muito antes de vir ao mundo. De
fato a teoria do indutor da diferença sexual primária diz que no desenvolvimento dos
mamíferos, como nós, e nos homens, há uma tendência para a feminidade, de acordo com o
dito pelas Jayme e Sau (1996). A identidade de gênero é uma construção vivida, se for pensada
desde a perspectiva de Moore (2000 apud COLING: TEDESCHI, 2019).
185
suas vidas, primeiro porque será uma das razões que reforçará suas identidades
de homogêneros, porém também será uma das causas que os guiará para eles
se identificarem como tais e fará com que eles estabeleçam um relacionamento
homoafetivo e uma família homoparental.
O primeiro estupro, revelado pelo Vannucci, é o do Flávio, da parte do Zê
Paulo, descrito assim:
Zé Paulo era um homem moreno e muito forte e estava somente de
cueca. Vendo que o pequeno estava sem jeito e muito nervoso por ele
estar quase nu, ali em sua frente, Zé Paulo começou a rir:
⸺ Nunca viu?
O menino ficou sem jeito. Não sabia o que dizer, tentou sair correndo,
mas foi seguro pelas mãos fortes de Zé Paulo.
⸺ Venha cá, não vou lhe bater ⸺ disse ele puxando-o para junto
de si.
O coração de Flávio parecia que ia sair do peito, batia descompassado.
Zé Paulo puxou uma cadeira e, sentando-se, colocou o menino entre
suas pernas, prendendo-o. Assustado, ele tentou gritar, mas foi
impedido pela mão de Zé Paulo.
⸺ Se gritar será pior...
Com medo, o menino tremia, e começou a sentir que a mão de Zé
Paulo começou a acariciar suas costas. Logo depois, começou a sentir
dor.
⸺ Não! Gritou ele. Zé Paulo, então, o beija, fazendo-o calar.
O pequeno sentia dor e, ao mesmo tempo, nojo e pavor. Lágrimas
caiam dos olhos de Flávio, ele não tinha forças para gritar.
⸺ Quieto! Seja um guri bonzinho, eu não vou lhe fazer mal, só
estou brincando ⸺ disse ele (TEODORO, 2013, p. 101-2).

Foi assim como Flávio conheceu sua primeira vez, entre dores, estupro e
violência sexual, que passou a ocorrer com frequência. Depois, segundo a
revelação do Vannucci, o Flávio foi se costumando com a situação. Aprendeu
muito bem a ser “um menino bonzinho” (TEODORO, 2013, p. 106). No entanto,
também fica registrado no romance que o pequeno Flávio se sentia uma presa
em mãos de seu carrasco e predador sexual. Mesmo que Flávio tentasse fugir e
esquivar a Zé Paulo, ele sempre o surpresava, ria sardonicamente, e fazia-o
novamente presa em suas mãos.
Depois de todos esses abusos sexuais e com o passo dos anos, Flávio
esperienciou as mudanças corporais devidas aos hormônios, foi a partir desse
momento que, enquanto seus amiguinhos admiravam as meninas, ele ficava
maravilhado contemplando homens mais velhos do que ele. Ele estava se
descobrindo como homogênero, pois até admirava ao pai como homem forte e
186
bonito. E perguntava ao Raul, seu pai, se um homem sempre se apaixonava por
mulher. Era já sua mente homocentrada, seus sentimentos que desbordavam e
extravasavam no seu peito de homogênero e amador de homens. O normal
para o pai do Flávio era que homem e mulher namorassem, casassem e
tivessem filhos, mas não era assim como pensava Flávio, que irá depois formar
um casal homoafetivo com Guilherme a família homoparental com adoção da
Patrícia, filha da Silvia, empregada doméstica do casal.
Outro estupro revelado pelo Vannucci é o do Guilherme por parte de seu
tio materno Ismael. Guilherme reprocha a Ismael que de criança tenha sido o
primeiro que começou a lhe ensinar coisas sujas e pedofilizadoras. É aí, nesse
comenos, que Flávio lembra os abusos também sofridos por ele quando criança
pelo Zê Paulo. Guilherme disse ao seu tio Ismael que foram muitas as lágrimas
derramadas pensando que voltaria mais uma noite a se deitar com ele para
fazê-lo xeta e brinquedinho sexual no escuro do seu quarto. Guilherme também
reprocha ao tio ⸺ que tem HIV e foi afastado da vida sacerdotal para cuidar
da saúde ⸺, que além de ter abusado dele, agora esteja julgando seu
relacionamento homoafetivo com Flávio.
Viu-se que o casal homoafetivo ⸺ Flávio e Guilherme ⸺ protagonista
deste romance foi estuprado, um por Raul, amigo do pai, e, outro pelo Ismael,
seu tio materno. Isto irá determinar sem dúvida que as identidades de gênero
tanto do Flávio e Guilherme vão dar na homogeneridade, que é a atração e
afetividade pelo mesmo gênero deles: os homens.
O espírito do Vannucci faz ver que o abuso sofrido pelo Flávio é
depredatório e, por conseguinte, traumático:
O pequeno cão começou a latir enquanto seu dono estava nas mãos
de seu predador. Irritado, Zê Paulo pegou um galho de árvore.
Observou mirou bem e atirou na direção do cão, acertando-o. Lico
saiu em disparada, choramingando de dor. O animal ficou
observando de longe, e choramingando, ao ver o que acontecia com
seu amigo (TEODORO, 2013, p. 106).

As crianças, como objeto da libido e do desejo sexual são vítimas e presas


indefesas e passivas perante a predação ativa do pedófilo. Etologicamente, é tal
qual um predador, devorador ou caçador de meninos, que logra se resguardar

187
e atuar manhosa e matreiramente, sem que ninguém suspeite ou duvide das
suas caças predatórias sexuais, segundo Hisgail (2022).
O sadismo é uma pulsão sexual ativa que dá relevo ao masoquismo no
cabritismo com propensão homoerótica. Em que as leis e costumes sociais são
violentados para fazer do desejo sexual um imperativo de dominação sobre o
frágil menino. A exclusividade do objeto sexual pelos meninos revela a
preferência quanto ao sexo e à idade das presas. Há uma satisfação narcisista na
fixação da libido e do desejo sobre a figura da infância em movimento. Há na
pedofilia um anelo pela erotização da criança que traz as lembranças das surras,
reais ou imaginadas pelo pedófilo na infância. São impressões do desejo libidinal
da sexualidade perversa polimorfa, como a pedofilia. O menino, como objeto
libidinal do pedófilo, danificará o desenvolvimento normal psicossexual do
menino e matará as restrições que devem dominar à pulsão sexual de desejo
efetivo, é o que assevera Hisgail (2022).
É pela afetação do livre desenvolvimento da identidade psicossexual do
gênero da criança prejudicada e erotizada que Teodoro (2013, p. 107) afirma
que “Flávio começou a sentir que seu corpo estava mudando e, ao contrário
dos outros amiguinhos, que ficavam olhando as meninas, ele ficava admirando
os homens mais velhos”.

2. Performance musical de gênero


Uma das características do protagonista homoafetivo do romance é que
gosta da música e de performar à sua cantora favorita Elis Regina. Flávio
trabalha performando a Elis Regina às noites, mas seu trabalho de performer
também se encontra paralelamente com seu gênero homocentrado de
identidade. Flávio faz parte do grupo do Bruno que, quando encarnado,
liderava uma equipe de artes cênicas, depois da volta à pátria espiritual,
trabalhava com outros irmãos que se dedicavam às artes do cenário. A música é
para o grupo muito importante no tratamento dos pacientes. Nesse grupo está
Flavio, que junto com mais 15 pessoas dedicadas às artes, trabalham com a
música como o elemento importante na cura dos pacientes no hospital da

188
colônia espiritual. Para Kroeker (2022, p. 41): “Assim como os rituais xamânicos
de cura, a música na analise não é em si uma performance, ela é antes, uma
expressão de conteúdos inconscientes por meio do som”.
Flavio alterna, encarnado, seu emprego no banco com o de transformista
e performer, às noites e nos fins de semana, máxime, com a representação da
cantora Elis Regina e suas músicas, tais como: Me deixas louca e Atrás da porta.
Flavio desborda de forte emoção em cada apresentação. É uma energia
permeando-o e envolvendo-o para fazer com que fizesse a mais perfeita
dublagem, transformação e interpretação da Elis Regina, pelo que é muito
aplaudido. A interpretação de Atrás da porta é pela que recebe maior
reconhecimento do público.
Flavio, ao cantar a música da Regina, não está fazendo apenas
performance dela, como também há uma conexão emocional e espiritual entre
a personalidade e o modo de sentir dele com a música da Elis Regina. Isto quer
dizer que as mesmas historias de amor cantadas pela Elis Regina são também as
do Flavio, há uma identificação amatória e de sentimentos pelos homens entre
ele e ela.
Se, de acordo com Kroeker (2022, p. 131) “Somos o que ouvimos”, com
muita mais razão somos o que cantamos e performamos, que seria um belo
‘ritual’ de performance do que fala Butler (2003).
Como pode ser visto pela letra de “Me deixas louca”, da Elis Regina, que
Flávio performava, há uma identificação total entre o performador e a cantora
performada, já desencarnada, pois o gênero dela é o mesmo dele, no que
concerne não apenas aos sentimentos, atrações e afetividades pelos homens,
mas também pelos jogos da identidade social de ambos no cenário musical
perante o público. Ambos são deixados loucos, Flávio é deixado louco pelo
Guilherme e a Elis é deixada louca pelo homem ideal ou real ao qual dedicou
sua música:
Quando caminho pela rua / Lado a lado com você / Me deixas louca /
E quando escuto o som alegre do teu riso / Que me dá tanta alegria /
Me deixas louca / Me deixas louca quando vejo mais um dia / Pouco a
pouco entardecer / E chega a hora de ir pro quarto / E escutar as
coisas lindas que começas a dizer / Me deixas louca / Quando me
pedes por favor / Que nossa lâmpada se apague / Me deixas louca /
189
Quando transmites o calor / De tuas mãos / Pro meu corpo que te
espera / Me deixas louca / E quando sinto que teus braços se
cruzaram em minhas costas / Desaparecem as palavras, outros sons
enchem o espaço / Você me abraça, a noite passa / Me deixas louca /
Ah ah ah / Ah ah ah / Ah ah ah / Me deixas louca / Sinto os teus
braços se cruzando em minhas costas / Desaparecem as palavras,
outros sons enchem o espaço / Você me abraça, a noite passa / E me
deixas louca / Louca.

Outra das músicas performadas da Elis Regina pelo Flávio é Atrás da


porta. Esta musica é pela que o performer musical recebe maior
reconhecimento do público no romance. Elis Regina diz nela que foi possível
amaldiçoar o seu lar com o do amado e emporcalhar e humilhar o nome dele, e
se vingar dele, apenas para comprovar que ainda era dele:
Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus /
Juro que não acreditei / Eu te estranhei / Me debrucei / Sobre teu
corpo e duvidei / E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus
cabelos / Nos teus pelos / Teu pijama / Nos teus pés / Ao pé da cama
/ Sem carinho, sem coberta / No tapete atrás da porta / Reclamei
baixinho / Dei pra maldizer o nosso lar / Pra sujar teu nome, te
humilhar / E me vingar a qualquer preço / Te adorando pelo avesso /
Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua...

Para Butler (2003) o gênero é performativo, é a substância e a parte real


de alguém, quer dizer, é a parte essencial da identidade do que uma pessoa é.
O gênero é sempre um fato, mesmo que não seja obra de um individuo que
precede à obra. A identidade de gênero é constituída performativamente pelas
próprias expressões havidas como seus resultados.
O dito pela Butler (2003) pode ser atribuído ao performer Flávio. A
performação musical da Elis Regina revela que o gênero é performativo através
da imitação e representação da cantora por parte do seu performer, fato que
colheita os resultados das ovações do público, junto com a satisfação pessoal e
a felicidade da sua psique.

Considerações finais
Qualquer homem, sendo homogênero, ou não, com atitude interna
emocional para fazer performance pode performar musical e genericamente
uma mulher cantora, como foi revelado pelo espírito de Vannuci e feito pelo
personagem imaginário e ficcional Flávio no romance “Um amor diferente.
Nossas escolhas”. Sem embargo, que seja um personagem imaginário, não
190
significa que não tenham acontecido esses fatos, pois um romance é uma
história de amor que também pôde ter acontecido na vida real. Se for visto
como romance de revelação homoafetiva, seria certo e haveria acontecido com
um casal. E o revelado pelo espírito de Vannucci, que está além dos limites dos
sentidos e do tempo, seria um caso homoafetivo real testemunhado pelo
Vannucci. Ainda mais, Flávio é a representação da mulher fálica Elis Regina que
tem em si mesmo o duplo contrassexual junguiano anima-animus (JUNG,
1984), tal qual é visto pelo espiritismo na noção do espírito eterno. Também,
pode se concluir, de acordo com o dogma da reencarnação simbólica, que
Flávio é Elis revivida, reencarnada agora no homo que a performa artística e
genericamente, imita e simboliza. Elis Regina está no corpo do homogênero
Flávio, agora é ele no romance. Ela voltou nele para ser performada e
representada no palco. A performação da Elis pelo Flávio é um transformismo
evolutivo, que não fica no playback, pois ele age como a cantora Elis Regina, ele
é ela no cenário musical da casa noturna para homens, é Elis Regina agindo no
corpo genérico do Flavio, é Elis agindo na psique do Flavio para ele conseguir
imitá-la e cantar as canções. Flávio se identifica com Elis porque a parte feminina
nele é a anima da Elis, que mora nele. Elis está reencarnada no inconsciente do
Flávio, mas se exterioriza conscientemente para cantá-la, imitá-la e representá-la
no cenário. Para um homem homogênero, com mais anima do que animus, seu
animus complementar está num homem com mais animus do que anima. Flavio
é a representação genérica e inconsciente da anima Elis, é seu feminino nele,
pelo que é admirado, ovacionado e aplaudido. Porém o gosto pela teatralização
da Elis Regina não deve ficar, aí, no elogio pela sua performance dela, deve
avançar ao respeito e à aceitação da também personalidade do Flavio e nele os
transformistas que também se sintam identificados. Pois Flavio, antes de ser o
performador da Regina, é primeiramente uma pessoa. Também porque por trás
do gênero não há uma artista com gênero, e sim uma pessoa.
Outrossim a metalepse performativa da Butler faz intuir que Elis
reencarnou em mulher novamente na performance transformista e
performadora feita pelo Flavio. Em que a essência do gênero do Flavio

191
exterioriza e origina sua identidade de homogênero, mas também de
transformista e performador musical da Elis Regina. Performance que vira um
ritual até se renovar e atualizar a cada representação feita no cenário da
cantora desencarnada já. É Regina que se movimenta no corpo do Flavio,
através da sua voz canta e recanta o que ela sendo Regina cantou.

Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970.
BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
COLLING, Ana María. TEDESCHI, Losandro Antônio. Dicionário crítico de
gênero. Dourados-MS: Universidade Federal da Grande Dourados, 2019.
Disponível em https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/1097. Acesso:
5 out. 2022.
ELIS REGINA. Atrás da porta. Disponível em https://www.vagalume.com.br/elis-
regina/atras-da-porta.html. Acesso: 24 out. 2022.
ELIS REGINA. Me deixas louca. Disponível em
https://www.google.com/search?q=me+deixas+louca+elis+regina+letra&rlz=1C
1UEAD_esCO992CO992&oq=me+&aqs=chrome.0.69i59j69i57j69i59l2j69i60j6
9i61l2j69i60.1785j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-
8#imgrc=PmLF2G1ucuzlOM%253A. Acesso: 23 out. 2022.
FRAZÃO, Dilva. Elis Regina. Cantora brasileira. Disponível em
https://www.ebiografia.com/elis_regina/. Acesso: 17 set. 2022.
HISGAIL, Fani. Pedofilia. Um estudo psicanálitico. Disponível em
https://doceru.com/doc/xc8c0x8. Acesso: 23 out. 2022.
JAYME, María. SAU, Victoria. Psicología diferencial del sexo y el género.
Barcelona: Icaria, 1996.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos e reflexões. São Paulo: Brasiliense, 1984.
KARDEC, Allan. El libro de los Espíritus. Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
Confederación Espiritista Argentina, 2020. Disponível em
https://www.ceanet.com.ar/obras-de-allan-kardec/. Acesso: 1 jun. 2022.
KROEKER, Joel. Quando a psique canta. A música na psicoterapia junguiana.
São Paulo: Paulus, 2022.
TEODODO, João Alberto. Um amor diferente. “Nossas escolhas”. Pelo espírito
Augusto Cesar Vannucci. São Paulo: Mundo Maior, 2013.

192
OS ARQUÉTIPOS FEMININOS DE IEMANJÁ E IANSÃ: DE AMOROSA
À INSUBMISSA
Juliana Carvalho da Silva
Mestranda pelo Programa de História Comparada (PPGHC) da UFRJ
Bolsista pelo programa CAPES.
carvalhojuliana0701@gmail.com

Resumo: No presente trabalho buscar-se-a analisar e compreender, através do método


comparativo, de que forma se dá a construção dos arquétipos femininos das mulheres
negras no mundo ocidental e, mais especificamente, na sociedade brasileira, partindo
das figuras dos orixás Iemanjá e Iansã. E, de tal forma, buscar-se-a também
compreender como a religiosidade interfere e contribui na construção do imaginário
acerca das expressões afro-brasileiras.
Palavras-chave: Candomblé; Feminino; Arquétipo; Orixás.

1. A problemática do gênero: A África iorubá versus o Ocidente


A expansão das potências europeias, o surgimento do capitalismo e o
desenvolvimento de conceitos de raça e gênero, todos esses adventos da
modernidade, acarretaram uma série de mudanças político-sociais e culturais.
Tais mudanças permitiram, como salientou Oyěwùmí (2004, p. 1), que “pessoas
fossem exploradas, e sociedades, estratificadas”.
Assim, o Ocidente rapidamente buscou produzir, com eficácia, discurso
de exclusão sobre o outro. A ciência se encarregou das questões raciais em que,
baseada no darwinismo social, construiu a dicotomia de civilização (as
sociedades brancas e europeias) e a barbárie (sociedades não-europeias e,
nesse caso, africanas). Os teóricos raciais instauraram então uma ideia de
supremacia de raça branca, enquanto os negros eram descritos como infantis,
supersticiosos, ignorantes e podendo até mesmo apresentar características de
imoralidade e animalização (cf. SILVEIRA, 1999). Cabia então ao homem branco,
europeu e racional garantir que esses seres “inferiores” fossem reeducados, a
fim de atingirem a ordem, o progresso e a civilização. A Europa, sob seu falho
prisma da razão, dominou e explorou a África – assim como seus indivíduos.
Na cultura ocidental, o gênero é necessariamente fator regulador,
dividindo os indivíduos em macho e fêmea, o que não acontece na sociedade
Iorubá pré-colonização. Uma vez que não havia categorias socialmente
193
construídas de homem e mulher, pensar na sociedade Òyó36 pré-colonização
baseada nessas divisões gera inúmeros anacronismos. Portanto, enquanto o
Ocidente buscou dividir e categorizar os seres por suas questões biológicas a
fim de justificar e garantir hierarquias sociais, a sociedade Iorubá limitou a
biologia à questão reprodutiva – as mulheres eram responsáveis por perpetuar
a linhagem, mas isso não as inferiorizava socialmente. Por exemplo, a “ausência”
de uma preocupação com o gênero é representada quando uma mãe Iorubá
refere-se muitas vezes aos seus filhos como omó mì que significa, em uma
tradução mais livre, “meu rebento” (OYĚWÙMÍ, 2017). Assim como os nomes,
para essa sociedade, não denotavam a dicotomia feminino/masculino.
Fanon apud Araújo (2013) salienta que a imagem do negro, e mais
especificamente da mulher negra, esteve altamente associada a ideia de uma
sexualidade descontrolada. Se a mulher branca remetia a imagem de esposa e
mãe, de forma quase sacralizada, a mulher negra surge como um objeto
satisfação sexual. É importante entender que, enquanto Beauvoir (1980) está
pensando na família e como essa é uma forma de controlar e regular as
mulheres brancas ocidentais, o que fora (e ainda é) experimentado pelas
mulheres negras não representa uma “liberdade sexual”, mas sim uma violação
de seus corpos. Ainda de acordo com Fanon (2008), ser negro caracterizou-se
como inferior e perigoso, uma vez que esses indivíduos aparecem desprovidos
de racionalidade – assim, era necessário domesticar e controlar seus corpos,
principalmente o feminino.
Se a modernidade garantiu a introdução, sem esforços, dos conceitos de
raça, não fora diferente com os conceitos de gênero. Davis (2016), em
consonância com Fanon (2008), demonstrou que não é possível pensar o
segundo sem que esse esteja intrinsecamente ligado ao primeiro. Em linhas
claras: se o feminino também assume uma posição de outro, isto é, inferior, a
situação é bem mais cruel com mulheres negras. Por óbvio, mulheres, de uma
forma geral, sofreram violências e invalidações ao longo da história. Entretanto,

36 Povos de origem iorubá provenientes da atual Nigéria que, antes da colonização do


Ocidente, entendiam suas relações sociais baseadas na senioridade e não em questões
biológicas e/ou de gênero (OYĚWÙMÍ, 2017).
194
o gênero, somado a condição racial, fez com que as mulheres negras
praticamente perdessem suas humanidades. Ainda de acordo com a autora, no
cenário da escravidão, por exemplo, as africanas escravizadas eram vistas como
“sem gênero” quando tão lucrativas quanto os escravizados homens,
trabalhando nas plantações de forma braçal, quando podiam ser exploradas
sexualmente e reprimidas, essas agora passavam a ser reduzidas e
estigmatizadas na condição de ser mulher.
Retomando à África Iorubá pré-colonização, Amadiume (2005) vai
dialogar com Oyěwùmí (2004) no que se refere ao fato da mulher iorubá não
aparecer como submissa ou definida por seu gênero. As iorubás também eram
comerciantes natas, sendo figuras marcantes nas feiras e mercados. Essas
mulheres gozavam de certa autonomia, além de serem responsáveis pelas
trocas imateriais – como a manutenção familiar, a formação dos laços através
dos casamentos, as trocas religiosas... (cf. BERNARDO, 2005). O contato com a
“civilização” não apenas criou, por parte dos europeus, os discursos acerca dos
africanos, como também os obrigou a cruzarem o Atlântico e se reinventarem.
Não há dúvidas que o Ocidente conseguiu criar moldes e fincar visões
que perdurariam por séculos a fio e, assim, as mulheres africanas, assim como
suas descendentes, passaram a ser vistas como objetos sexuais indomáveis,
fonte inesgotável de prazer, mas não passíveis de afeto, por exemplo. Os corpos
negros femininos passaram a ser altamente consumidos, mas nunca respeitados
e/ou valorizados.
Não é possível esquecer que, a sociedade ocidental marginalizou o negro
em todas as suas expressões político-culturais, de modo que a questão religiosa
não poderia ficar à parte disso. Asreligiões de matriz africana passaram a serem
vistas como feitiçarias muito perigosas, que precisavam ser combatidas. Por
outro lado, as africanas, assim como suas descendentes, encontraram na
religião uma forma de identificação e liberdade. Portanto, e agora no âmbito
religioso, mais uma vez as concepções de gênero e raça se entrelaçam, como
observar-se-á a seguir.

195
2. Gênero, raça e religiosidade: os arquétipos de Iemanjá e Iansã
A diáspora, o contato com o europeu e a escravidão fez com que os
negros incorporassem novos elementos as suas práticas religiosas. Todavia, tal
prática já ocorria dentro do próprio território africano, uma vez que esses
indivíduos, antes mesmo da chegada da colonização, já contavam com a
presença do Islã e do Cristianismo (cf. OPOKU, 2010, p. 592). Assim, torna-se
válido aqui afirmar que os africanos, agora na condição de escravizados, não
possuíam dificuldade em sincretizar tanto cultural quanto religiosamente.
Alguns claros e conhecidos exemplos desse sincretismo vê-se em: Ogum fora
associado com São Jorge; Iemanjá com Nossa Senhora; Oxalá com Jesus Cristo;
e assim sucessivamente.
Bastide (2000) traz à luz que o candomblé aparece, no cenário
diaspórico, como uma maneira de reconstruir, tanto temporal quanto
simbolicamente, a África. Homens e mulheres negras visavam trazer “o passado
para o presente”, aplicando os conhecimentos ancestrais na vida cotidiana. Os
candomblés e suas capacidades de curar (e causar) doenças, a presença de
incorporações e rituais que envolviam abates de animais (nos candomblés),
assim como a utilização de amuletos, ervas e dialetos africanos, trouxeram medo
à sociedade branca, o que ainda se mostra presente atualmente. Assim, surge
novamente a dicotomia: o negro que amedronta versus o branco que guia e
cura. A partir desses conceitos, pensar-se-á mais adiante as figuras de Iansã e
Iemanjá, respectivamente.
Gonzalez (2018) demonstra que, no cenário escravocrata, muitas facetas
surgem para as mulheres negras, mas a mais latente é a da mucama, sendo esse
o estereótipo pilar da sociedade brasileira. De um lado, a “mucama” representa
a mulher sensual; do outro, a força de trabalho que mantém a ordem. Mesmo
com o final da escravidão, tal lugar continuou reservado à essas mulheres,
transformando-as mais tarde nas empregadas domésticas. Um segundo
estereótipo – tão marcante quanto o primeiro - ainda de acordo com a autora, é
o da mulata. Mais uma vez associada à sensualidade, essa mulher é valorizada
no carnaval, nas ruas em dias de festa, mas não são livres – na Quarta-Feira de

196
Cinzas voltam, com suas vozes abafadas, para cuidarem dos filhos das patroas e
aguentar os abusos dos patrões.
Construídos na sociedade brasileira por quatro longos séculos, os
estereótipos mantiveram as mulheres negras em uma posição cruel. Muito
embora nas últimas décadas, e com muita luta, essas tenham conseguido certa
ascensão social, deixando as “Casas Grandes” para ocuparem posições mais
elevadas de poder, universidades e produções científicas, a marca de uma
sociedade que sente saudade de uma época escravocrata, ainda as persegue.
Mas é no espaço dos terreiros, sejam eles de umbanda ou candomblé, que essas
mulheres expressam suas forças e curam suas feridas. Aqui, elas não são apenas
mucamas ou mulatas. É, olhando para os arquétipos femininos de deusas
guerreiras e poderosas, que essas mulheres se identificam.
Há aqui uma forte correlação entre Orixá e médium. Jung (2000) explica
que tal identificação, por meio dos arquétipos, dar-se-á por esses serem uma
ferramenta capaz de traçar perfis psicológicos que, presentes no inconsciente,
reverberam no cotidiano desses indivíduos.
Assim sendo, os arquétipos carregam traços psíquicos, assim como
representa uma formação simbólica de papéis que podem ser exercidos. Por
óbvio, é necessário salientar que não cabe reduzir os Orixás a figuras
fantasiosas, uma vez que suas imagens, mesmo que possuam diversas maneiras
de representação, estão inteiramente ligadas à realidade de seus praticantes. A
figura dessas divindades estão além do mithós grego37. Portanto, a mitologia
presente nos candomblés é também parte de uma construção psicossocial (cf.
SILVA, 2021, p. 28). e, sendo assim, interfere como as pessoas dessa
comunidade e “filhas/os” de Orixás específicos, se enxergam no mundo e se
relacionam.
Tomar-se-á primeiro o arquétipo de Iansã para análise. Também
conhecida como Oyá, nome iorubá do Rio Níger, onde é cultuada em África (cf.
Verger, 2002, p. 168), é a orixá dos ventos e tempestades, sendo representada
com uma espada e um chicote nas mãos, montada em um búfalo. Iansã é

37 Esse, por sua vez, entendido como mentira e/ou fantasia.


197
impetuosa, valente e dona de si (e de diversos amores). A Orixá apresenta
muitas faces: ao mesmo tempo que pode ser sedutora, pode igualmente se
mostrar indomável. Iansã desperta, na mesma proporção, fascínio (para as
mulheres feministas, principalmente as mulheres negras) e olhares atravessados
(da sociedade branca, patriarcal e judaico-cristã).
O arquétipo de Oyá é fortemente ligado ao empoderamento feminino a
ponto de muito se falar sobre suas filhas. As mulheres de Iansã possuem
aspectos psíquicos muito específicos nas comunidades de terreiro. Essas
mulheres, assim como sua mãe, são fortes, valentes e independentes, e
Bernardo (2003) entende essa relação como uma representação das violências
e transformações nas quais as mulheres negras-africanas e suas descendentes
foram submetidas. Mas, é claro, que há o outro lado da moeda: Iansã também é
vista como uma Orixá muitas vezes “masculina”, pelos mesmos atributos antes
mencionados. Apesar de não ser tão marginalizada quanto a figura da
Pombagira, a Orixá representa a mulher que não se encaixa dos padrões e
moldes de feminilidade esperados pela sociedade – e que, assim, incomoda.
Muito embora também possa assumir a expressão de guerreira, o
arquétipo de Iemanjá está altamente associado à maternidade e, não à toa, essa
é muitas vezes comparada com Maria. Embora seja comum observar os demais
Orixás representados de forma branca, Janaína – nome ao qual também
responde – é o maior expoente disso: sua imagem mais comum é de cabelos
longos, lisos, a pele branca e o vestido que cobre praticamente todo seu corpo.
Considerada como “mãe de todas as cabeças”, a Orixá ocupa cargo
elevado no Panteão de divindades africanas e até mesmo para além desse, uma
vez que sua devoção rompe barreiras e não se restringe as religiões afro-
brasileiras. Ortiz apud Batisde (2000, p. 297) descreve Iemanjá como o Orixá da
maternidade universal, sendo ela também temperamental e de emoções
vívidas38, mas também muito vaidosa e sempre bela, seu arquétipo remete
quase que exclusivamente a feminilidade. Entretanto, esse não representa,
necessariamente, como as mulheres são, mas sim deveriam ser.

38 Souza, 2015.
198
Mas se os arquétipos de mãe representados por Maria e Iemanjá se
aproximam, essas duas personagens igualmente se afastam. Enquanto Maria é
boa “por natureza”, sendo ela caridosa, mãe, virgem e digna do reino dos céus,
Iemanjá surge como ambivalente, podendo assumir esses traços em sua
personalidade, ao mesmo tempo que se mostra vingativa e furiosa – aqui,
remetendo a sua africanidade. Portanto, Iemanjá e Maria seriam, na realidade,
dois lados de um mesmo arquétipo, mas representando uma face positiva
versus uma face negativa39.
Como dito antes, o Ocidente criou moldes a fim de regular o outro – e
tampouco seria diferente com o feminino. Esperava-se das mulheres um lado
maternal tão latente a ponto de criar-se a ideia de que esse era uma condição
universal e instintiva, o que Batinder (1985) demonstrou não ser realidade.
Então, essa sociedade ocidental fundiu a persona católica com a orixá africana
única e exclusivamente pela maternidade, o que não é de todo falho, mas
limitante.
Os arquétipos são manifestações um tanto quanto complexas. Reunindo
uma gama de componentes simbólicos, materiais e imateriais, esses se
exprimem de forma emocional, podendo ser negativos ou positivos. Em linhas
claras: em forma de projeção, os arquétipos geram fascínio ou incômodo. Assim,
o arquétipo de Iemanjá, quando associado a Maria e a branquitude, gera uma
imagem de afeto, de cuidado, de serenidade. Iansã, por outro lado, é mais
complexa: se essa aparece como forte expoente para as mulheres feministas
que, nas últimas décadas, buscam entender e ressignificar suas posições no
mundo, também gera um desagrado à uma sociedade que não está pronta
para reconhecer o feminino além da figura redutora de maternal/”do lar”.
Iansã muito mais se aproxima da mulher iorubá que está nos mercados e
nas feiras, que se movimenta, que é corpo presente na vida social e familiar. Sua
representação de guerreira, segurando uma espada, se distancia de Iemanjá
com espelhos e pentes – numa alusão a vaidade. Não que Oyá não fosse
vaidosa, muito pelo contrário: seus cabelos são sempre longos, macios e

39 Iwashita, 1989, p. 326.


199
brilhosos, e não perde sua imensa beleza ao transformar-se em búfalo. Portanto,
torna-se mais confortável, a esse ponto, alegar que a grande dicotomia está em
Iansã aproximar-se da mulher iorubá; como a face mais conhecida de Iemanjá
(dentro de seu poderoso sincretismo) aproxima-se da mulher ocidental e do que
se espera dessa.

Possíveis conclusões
As mulheres negras foram invalidades por séculos a fio, incluindo no
próprio movimento feminista, surgido no século XIX. Enquanto pensava-se no
que era ser mulher, a questão racial, deixada de lado, deixava lacunas inteiras
vazias. As experiências das mulheres negras sempre foram diferentes das
brancas, inegavelmente. Muito embora “mulher” acarrete violências, mulheres
negras foram bem mais sexualizadas, invisibilizadas, marginalizadas.
Agora, como propôs Chakrabarty (2007), é hora de romper a dialética
mestreescravizado que o ocidente e o colonialismo fincaram no imaginário
social como elemento organizador dessa sociedade, em que o primeiro
representaria civilização e conhecimento, enquanto o segundo é apenas arcaico
e bárbaro, e aqui, os terreiros aparecem como elemento importante para tal
ruptura: reconhecer o valor da religiosidade afro-brasileira é reconhecer que
esses indivíduos produzem conhecimento.
Memória é um traço marcante na “vida de terreiro”, sendo essa
preservada e transmitida de geração em geração através da oralidade40. Ou
seja, a memória ancestral é reconstruída e reproduzida no cotidiano, mas essa
ultrapassa os muros do barracão, abraçando todas as sociabilidades desses
indivíduos. A religiosidade permitiu que as mulheres negras encontrassem, no
passado, a força para mudar o presente. O cabelo black, as vestimentas, as guias
no pescoço: muito além da estética, é uma forma de se (re)colocar no mundo.
Assim, os arquétipos femininos, dentro dessas religiões, são de extrema
importância para que essas mulheres, principalmente as mulheres negras, não
apenas se identifiquem, mas se reconheçam. Esses permitem a “quebra” da

40 Carneiro apud Cury, 2008.


200
ordem patriarcal como hierarquia social, em que o feminino é força criadora e é
também movimento. O presente trabalho focou em Iansã e Iemanjá, mas
poderia ter trabalhado Nanã, Oxum, Obá, Maria Mulambo, Padilhas... Todas
essas personas femininas que, com suas particularidades, criam, recriam e
resistem. Que se por um lado incomodam e causam “medo”, por outro abraçam
suas filhas e as protegem.
Em suma, Iansã e Iemanjá representam a força feminina. Seja em meio à
guerra, seja na maternidade latente, ambas são personagens que, a diferentes
modos, rompem ideais previamente construídos. Muito embora se pense que
essas são completamente antagônicas, muito se parecem e se conversam. Como
já havia demonstrado o movimento feminista, não é possível encaixar todas as
mulheres nos mesmos quadros de experiências, vivências e sentidos. E, aqui,
mais uma vez, é possível observar como os arquétipos, tão inseridos no
inconsciente coletivo, fazem parte do cotidiano: elas representam diferentes
vertentes do que é ser mulher.
Carregar uma guia vermelha (iansã) ou azul (iemanjá) no pescoço é
resistir as violências e imposições. É proteger os corpos que, há muito, vêm
sendo talhados. É pertencer. E pertencer indica ser. Ser mulher.

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VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 6.ed.
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202
GT 9 - HERMENÊUTICA DA RELIGIÃO
Prof. Dr. Luís Gabriel Provinciatto (PUC-Campinas)
Prof. Dr. Márcio Cappelli (PUC-Campinas)

Ementa: A hermenêutica da religião não se resume a técnicas de leitura e


interpretação de textos sagrados provindos de diferentes tradições religiosas. A
hermenêutica é um método de investigação reconhecidamente aplicado à
linguagem e àquilo que nela se expressa. Nesse sentido, a hermenêutica da
religião lida com textos concretos e também com os diferentes modos de
concretização da linguagem: fala, gesto, dança, música, símbolo, rito, mito,
imagem, entre outros. Ela, por assim dizer, desafia o intérprete a
compreender/interpretar a religião em suas múltiplas formas de manifestação e
em suas variadas tradições. O olhar dirigido à linguagem deve se encontrar com
a experiência aí realizada e manifestada: o que a linguagem manifesta é o
sentido da religião, que, no entanto, nunca se esgota em um só significado. O
que a hermenêutica da religião, a princípio, aborda é o fenômeno religioso, o
que torna-a próxima da fenomenologia. A também possível abordagem
fenomenológico-hermenêutica precede a redução gnosiológica sujeito-objeto
porque entende a religião em sua manifestabilidade, ou seja, antes de ser
objeto da ciência. O fenômeno religioso é compreendido como experiência viva
e vivida. Isso é fundamental para a constituição da ciência da religião, pois
compreende-se a religião enquanto manifestação de sentido possível, que, por
sua vez, ocorre antes da objetivação científica. A hermenêutica da religião,
assim, desvela-se como um vasto campo de investigação que abriga
abordagens teórico-práticas e está em diálogo com outras metodologias
provenientes da filosofia, teologia, ciências sociais, entre outras. Ela contribui, de
fato, para uma epistemologia integral da religião. Por fim, o grupo temático
“Hermenêutica da religião” está aberto a receber comunicações provenientes
de investigações teórico-bibliográficas e/ou empírico-quantitativas desde que
nelas se faça perceber uma efetiva abordagem hermenêutica da religião.

Palavras-chave: Hermenêutica; Religião; Fenômeno religioso; Ciências da


Religião.

203
CRISTIANISMO, SUBJETIVIDADE E HERMENÊUTICA: UMA
CONTRADIÇÃO DE GIANNI VATTIMO?

Felipe de Queiroz Souto


Doutorando em Ciência da Religião pela UFJF
com período sanduíche no
Centro UPF para la Filosofía y los Archivos de Gianni Vattimo
da Universitat Pompeu Fabra, Barcelona.
felipeqsouto@gmail.com

Resumo: O pensamento filosófico de Gianni Vattimo constitui-se por uma retomada da


filosofia heideggeriana, mas também do cristianismo enquanto sua religião de pertença
e como herança histórica. Ao construir uma filosofia cristã, leva Vattimo assume
contradições tanto da perspectiva heideggeriana, quanto da perspectiva da teologia
cristã. Nos interessamos aqui a pensar a primeira contradição que se configura pela
interpretação de Vattimo acerca da subjetividade, termo que corriqueiramente é
apresentada em seus textos como interioridade, devido a retomada do cristianismo em
seu pensamento. Por levar a cabo a leitura de Heidegger acerca da modernidade,
Vattimo entende que essa é a época da história do ser na qual o paradigma da
objetividade metafísica recebe sua maior força e estabelece seus maiores feitos. No
entanto, contrariando aquilo que Heidegger articula em O tempo da imagem do
mundo (1998) de que a objetividade se configura como uma circularidade junto à
subjetividade, Vattimo coloca a subjetividade como eixo pelo qual a objetividade pode
ser desarticulada. Assim, ele põe ênfase na necessidade de afirmação da subjetividade
na época pós-moderna à medida em que ela aparece como uma motivação
hermenêutica. Vattimo recupera do cristianismo a noção de interioridade e a articula
com sua noção de sujeito hermenêutico. Parece que há, deste modo, um problema que
compromete todo o pensamento de Vattimo e que pode trazer consequências que
desmontam sua própria argumentação, já que a noção de interioridade cristã será
importante para o filósofo articular sua hermenêutica e, até mesmo, sua filosofia
política pelo princípio da caritas. Na tentativa de apresentar o problema, iremos
abordar como a questão da subjetividade se articula com a objetividade partindo
daquilo que Heidegger expõe, para então vermos a subjetividade enquanto a
interioridade cristã resgatada por Vattimo em Depois da cristandade (2004) e Después
de la muerte de Dios (2010). Por fim, nos apoiaremos na articulação que Vattimo faz
entre sujeito e o Übermensch de Nietzsche, pela qual é possível encontrarmos uma
resposta à questão apresentada, à medida em que ela pode se revelar mais como uma
má apresentação, por parte de Vattimo, do conceito de subjetividade em suas obras de
filosofia da religião.
Palavras-chave: Subjetividade; cristianismo; hermenêutica; objetivismo.

Introdução
O pensamento filosófico de Gianni Vattimo constitui-se por uma
retomada da filosofia heideggeriana, mas também do cristianismo (católico)

204
enquanto sua religião de pertença, mas também de herança histórica. A
necessidade de construir uma filosofia cristã (que fica claro em sua última obra
Essere e dintorni (2018) por categorizar sua produção como um breviário
teológico-filosófico que coroa sua filosofia cristã iniciada com os textos após
anos 90), leva Vattimo a assumir contradições tanto da perspectiva
heideggeriana, quanto da perspectiva da teologia cristã. Nos interessamos aqui
a pensar a primeira contradição que se configura pela interpretação de Vattimo
acerca da subjetividade, termo que corriqueiramente é apresentada em seus
textos como interioridade, devido a retomada do cristianismo em seu
pensamento.
Por levar a cabo a leitura de Heidegger acerca da modernidade, Vattimo
entende que essa é a época da história do ser na qual o paradigma da
objetividade metafísica recebe sua maior força e estabelece seus maiores feitos.
No entanto, contrariando aquilo que Heidegger articula em O tempo da
imagem do mundo (1998) de que a objetividade se configura como uma
circularidade junto à subjetividade, Vattimo coloca a subjetividade como eixo
pelo qual a objetividade pode ser desarticulada. Assim, ele põe ênfase na
necessidade de afirmação da subjetividade na época pós-moderna à medida em
que ela aparece como uma motivação hermenêutica. Vattimo recupera do
cristianismo a noção de interioridade e a articula com sua noção de sujeito
hermenêutico. Parece que há, deste modo, um problema que compromete todo
o pensamento de Vattimo e que pode trazer consequências que desmontam
sua própria argumentação, já que a noção de interioridade cristã será
importante para o filósofo articular sua hermenêutica e, até mesmo, sua filosofia
política pelo princípio da caritas.
Na tentativa de apresentar o problema, iremos abordar como a questão
da subjetividade se articula com a objetividade partindo daquilo que Heidegger
expõe, para então vermos a subjetividade enquanto a interioridade cristã
resgatada por Vattimo em Depois da cristandade (2004) e Después de la
muerte de Dios (2010). Por fim, nos apoiaremos na obra Más allá del sujeto
(1992) para apresentarmos uma hipótese de resolução do problema com

205
articulação que Vattimo faz entre sujeito e o Übermensch de Nietzsche. A partir
da leitura que Vattimo faz do filósofo alemão, talvez seja possível encontrarmos
uma resposta à questão apresentada, à medida em que ela pode se revelar mais
como uma má apresentação, por parte de Vattimo, do conceito de
subjetividade em suas obras de filosofia da religião. Se este é o caso, o problema
pode ser apenas aparente e, por esta razão, já merece nossa atenção.

1. Subjetividade e objetividade
A consequência da interpretação de Vattimo acerca da subjetividade é
que sua obra se abre para um curto-circuito quando posta ao lado da filosofia
de Heidegger, já que o filósofo alemão salienta que
Quanto mais abrangente e inexoravelmente o mundo estiver à
disposição como conquistado, quanto mais objectivamente aparecer o
objecto, tanto mais subjectivamente, isto é, tanto mais manifestamente
se erguerá o subjectum, tanto mais irresistivelmente a consideração do
mundo e a doutrina do mundo se transformará numa doutrina acerca
do homem, em antropologia. (HEIDEGGER, 1998, p. 116).

Quanto mais a subjetividade humana (a razão) está como fundamento,


ὑποκείμενον, subjectum (aquilo que subsiste, que está por debaixo), mais
presente se faz o pensamento da objetividade que traz consigo o dogmatismo
científico, aquele que “tenta reduzir a realidade ao que se pode ver, medir e
pesar objetivamente” (ZILLES, 2019, p. 29). Pelo seu ensaio, Heidegger torna clara
a sua preocupação com a afirmação da subjetividade pela filosofia moderna. Ao
dar ênfase na noção de “objetividade”, a modernidade ressalta ainda mais
aquilo que sustenta seu caráter objetivador: o humano como subjectum do
pensamento. Por este termo, Heidegger entende que aquilo que subjaz ao
pensamento objetivo, à metafísica, é uma compreensão de ser humano como
fundamento deste circuito.
A essa questão, remete a leitura que Heidegger oferece acerca da
problemática entre ontologia e teologia em Aristóteles, se a primeira é o estudo
do fundamento do ser e a segunda o estudo do ser do fundamento, então há
uma correlação necessária entre os dois termos, o que indica que eles não
podem ser compreendidos separadamente. Heidegger lê essa bifurcação como
presente na interpretação aristotélica de physis, pela qual entendia-se tanto o
206
estudo do ser das coisas, quanto daquilo que dá as coisas movimento. Assim, a
physis designava tanto ontologia enquanto discussão acerca do fundamento do
ser, quanto teologia, a discussão acerca do ser do fundamento. Conforme
observa Pieper: “a ontologia é a questão pelo fundamento do ser e a teologia é
a pergunta pelo ser do fundamento. Aqui reside a circularidade entre ambas”
(PIEPER, 2013, p. 239). Nesta relação entre ontologia e teologia contém a noção
heideggeriana de onto-teo-logia, quer dizer, ontologia e teologia passam a
designar um mesmo movimento. Essa bifurcação contida na significação de
physis é o que define a constituição da metafísica no pensamento ocidental.
Urbano Zilles aclara estes termos da seguinte forma: “Como ciência dos
primeiros princípios e das primeiras causas, a filosofia primeira é arqueologia,
como ciência do ser enquanto ser é ontologia e como ciência que versa sobre a
primeira substância, para Aristóteles e seus seguidores, é teologia” (ZILLES,
2019, p. 12).
De acordo com a leitura que Heidegger faz, a modernidade recupera a
bifurcação da filosofia primeira de Aristóteles e a conjuga com a subjetividade,
assim ela busca no sujeito a circularidade entre teologia e ontologia. Deste
modo, o sujeito é fundamento do ente e, também, ser do fundamento. É o que
está expresso na citação acima de Heidegger, de modo que a ontologia
moderna conduz o pensamento à antropologia. O sujeito humano é ao mesmo
tempo o subjectum da ontologia e da teologia. Heidegger escreve:
se o homem se torna no primeiro e autêntico subjectum, então isto
quer dizer que o homem se torna naquele ente no qual todo o ente,
no modo do seu ser e da sua verdade, se funda. O homem torna-se
centro de referência do ente enquanto tal. Mas isso só é possível
quando se transforma a concepção do ente na totalidade.
(HEIDEGGER, 1998, p. 111).

Com a descrição acerca do humano enquanto subjectum, Heidegger põe


o problema da ontoteologia moderna que apenas colocou o ser humano como
o ente enquanto fundamento primeiro da filosofia aristotélica. O ser humano
que pensa a si mesmo é que fundamenta o modo de relação com os entes. O
subjectum humano passa a ser o ente entre os entes e que quer fundamentá-
los. Desta feita, a ontologia e a teologia presentes na filosofia de Aristóteles
permanece inalterada, embora tenha recebido o elemento da subjetividade.
207
Ontologia e teologia, subjetividade e objetividade marcam o pensamento
moderno, no qual o ente é “agora tomado de tal modo que apenas e só é algo
que é, na medida em que é posto pelo homem representador-elaborador”
(HEIDEGGER, 1998, p. 112). À medida em que o sujeito moderno representa
diante de si mesmo o ente, ele pode vir a ser. Nesta perspectiva, de acordo com
Heidegger, a modernidade produziu um objetivismo “que nenhuma era antes
dela produziu” e, por isso, “O essencial aqui é a alternância necessária entre
subjectivismo e objectivismo” (HEIDEGGER, 1998, p. 110).
Enunciando brevemente o problema presente na filosofia de Heidegger,
temos que o elemento da subjetividade enquanto aquela que provoca uma
objetividade jamais vista na história do pensamento, não parece ser
incorporado totalmente pela filosofia de Vattimo. Isto se justifica à medida em
que o filósofo não se preocupa com esta questão quando propõe ser a
subjetividade oriunda com o cristianismo o principal eixo de desarticulação da
metafísica. Se Heidegger mostrou o contrário em suas reflexões, como Vattimo
pode aceitar sua filosofia e contrariá-la ao mesmo tempo? Há, de fato, um
problema de difícil resolução na obra de Vattimo que pode ter consequências
em todos os aspectos do seu pensamento, sendo que ele assume que é
justamente a introdução da subjetividade que traz a preocupação com as
vítimas (da objetividade)41. Quais os impactos dessa decisão no pensiero debole
e mesmo na promoção do princípio da caritas? Ainda, estaria a hermenêutica
de Vattimo favorecendo a subjetividade moderna?

2. Cristianismo e subjetividade
Como é sugerido amplamente pela filosofia ocidental, o cristianismo é o
responsável por trazer o elemento da subjetividade à ordem do pensamento.
Vattimo também identifica essa herança e a lê como um efeito positivo da
mensagem cristã no Ocidente, já que ela aparece como um ponto de ruptura

41“O mais decisivo no acontecimento do cristianismo é, precisamente, a atenção que se presta à


subjetividade, que, incidentalmente, também traz consigo a preocupação com os pobres, os
indefesos e os marginalizados” (VATTIMO, 2010, p. 55). Todas as traduções para o português
presentes no texto são nossas.
208
frente à objetividade da metafísica grega. Na concepção do filósofo – a là
Dilthey – é como se houvesse duas grandes correntes do pensamento que se
chocam na história ocidental. De um lado, há a herança dos gregos com sua
leitura objetiva da realidade e de outro, há o anúncio cristão de uma verdade
interior. Neste sentido, assume Vattimo: “O que distingue a metafísica dos
antigos daquela dos modernos é a reviravolta que se verifica com o advento do
cristianismo, que desloca o centro do interesse filosófico do mundo natural para
a interioridade humana” (VATTIMO, 2004, p. 133). Com isso, mais do que uma
religião, o cristianismo aparece como uma forma de pensamento que vai na
contramão da filosofia grega, pois ao invés de pôr a ênfase da reflexão no
objeto “fora” do sujeito, assume a necessidade da valorização da subjetividade,
de modo que, ao deslocar “a atenção do pensamento na direção da
interioridade, e isto fazendo, entre outras coisas, coloca em primeiro plano a
vontade mais que o intelecto” (VATTIMO, 2004, p. 133).
Nesta direção, “o cristianismo realizou o primeiro ataque contra a
metafísica interpretada exclusivamente como objetividade” (VATTIMO, 2010, p.
54). Com essa posição fortemente influenciada por Dilthey, Vattimo
compreende que o cristianismo é o responsável por preparar a dissolução da
metafísica e o advento do kantismo na modernidade. Sendo Kant, considerado
por Dilthey, o filósofo que melhor desenvolve a tese da subjetividade cristã42.
Acerca do cristianismo e do pensamento grego, Dilthey escreve:
Para o espírito grego, o saber era a reprodução de algo objetivo no
intelecto. Agora, a vivência se converte no centro de todos os
interesses das novas comunidades, mas esta vivência é uma simples
percepção daquilo que se dá na pessoa, na autoconsciência; este
certificar-se íntimo se encontra impregnado de uma segurança que
exclui toda a dúvida; as experiências da vontade e do coração
absorvem com seu enorme interesse todo outro objeto do saber, se
mostram em sua própria certeza todo-poderosa frente a todos os
resultados da contemplação do cosmos e frente a toda dúvida que
procede de considerar as relações da inteligência com os objetos que
tem que reproduzir. (DILTHEY, 1944, p. 288).

42 “o acento colocado sobre o sujeito e a fundação do saber com base na interioridade certa de
si mesma são os princípios que inspiraram Descartes e Kant e que dominarão a filosofia
moderna” (VATTIMO, 2004, p. 134).
209
O que está em jogo com a leitura que o filósofo faz acerca da influência
do cristianismo no pensamento ocidental é que ao introduzir a subjetividade, a
referência de certeza/verdade passa a habitar as “experiências da vontade e do
coração”, frente a adequação grega da coisa ao intelecto. No entanto, é notório
que essa influência do cristianismo não provoca uma ruptura imediata. Seus
efeitos são lentos na história da metafísica e sua introdução no mundo grego
não é de embate, mas de aproximação (desde o testemunho de Paulo aos
gregos até a sistematização da teologia cristã com Tomás de Aquino, se vê uma
tentativa de conciliação entre as duas mensagens, por exemplo). Vattimo, ainda
sim, considera junto com Dilthey que Agostinho é um sinal da novidade cristã
frente ao mundo grego, já que nele “a certeza interior da relação da alma com
Deus se mistura com uma teoria da veritates aeternae derivada do platonismo e
do neoplatonismo” (VATTIMO, 2004, p. 134) e ainda em Después de la muerte
de Dios (2010), ele afirma: “a única coisa que Kant nos apresentou vários
séculos depois foi o que o cristianismo já tinha afirmado, isto é, a ideia de santo
Agostinho de que in interiore homine habitat veritas (‘a verdade habita no
interior do ser humano’)” (VATTIMO, 2010, p. 54). Agostinho, portanto,
desponta como um precursor do desenvolvimento da interioridade cristã no
Ocidente e que pode ser visto pela história da filosofia, tanto na Idade Média,
quanto na modernidade ainda que de formas e graus diversos (cf. VATTIMO,
2004, p. 135), da qual apenas Kant “extrairá finalmente as consequências
antimetafísicas” (VATTIMO, 2004, p. 135).
Até sua interpretação do advento do cristianismo com o anúncio da
subjetividade no Ocidente, Vattimo acompanha Dilthey. No entanto, ele se
aventura a ir além do filósofo alemão para pensar essa mensagem do
cristianismo como influenciadora das filosofias antimetafísicas de Nietzsche e
Heidegger e aqui as coisas começam a se complicar e contradizer. Vattimo
escreve:
Esta visão da história do pensamento europeu como história de uma
luta entre, de um lado, o princípio de dissolução da metafísica –
interioridade, vontade, certeza do pensamento – introduzido no
mundo pelo cristianismo e, de outro, a objetividade visual-naturalista
(estética) da cultura grega, marca profundamente, como já disse

210
antes, também e sobretudo, a visão heideggeriana da sobrevivência e
da dissolução da metafísica (VATTIMO, 2004, p. 136).

Com isso, o filósofo italiano assume que Heidegger está numa esteira de
interpretação do cristianismo como um fenômeno da cultura europeia que a
constitui como traço fundamental. Esse traço não aparece como um dado
factual num ponto determinado da história, mas possui a marca de um evento.
Aliado à interpretação que Dilthey oferece acerca do cristianismo e à filosofia de
Heidegger, Vattimo poderá compreender o cristianismo “como o ponto de
partida para a dissolução moderna da metafísica” (VATTIMO, 2004, p. 136) à
medida em que seu acontecimento mais decisivo é “a atenção que se presta à
subjetividade” (VATTIMO, 2010, p. 55). Ele comenta, inclusive, a contribuição da
subjetividade cristã à hermenêutica:
Por muitas razões o cristianismo contribui para uma filosofia da
interpretação. Uma delas é que orienta a mente para dentro de si e,
assim, segundo dizem os historiadores do pensamento, torna possível
o sujeito kantiano e antecipa as filosofias modernas da subjetividade.
(VATTIMO, 2010, p. 58).

O que se percebe, porém, é que até Kant, a questão da


interioridade/subjetividade anunciada pelo cristianismo ainda está sendo lida
com a “pretensão de reconduzir a certeza interior a uma estrutura não-histórica,
natural e, neste sentido, objetiva” (VATTIMO, 2004, p. 136). Assim, é pela
tentativa de se esquivar de um suporte na pretensão objetiva da subjetividade,
que Vattimo elege Nietzsche (com o anúncio da morte de Deus) e Heidegger
(com a filosofia do evento) como os “herdeiros mais radicais do princípio
antimetafísico, introduzido no mundo por Cristo” (VATTIMO, 2004, p. 136-137).
Neste sentido, é como se Vattimo ainda quisesse torcer a noção de sujeito, sem
abandoná-la completamente. É nesta direção que tentaremos pensar o
problema de Vattimo junto à sua leitura de Nietzsche.

3. O problema de Vattimo: contra ou a favor da subjetividade?


Este texto não se propõe a resolver o problema de Vattimo com a
subjetividade e a contradição que ela abre em seu pensamento quando
confrontado com a postura heideggeriana. No entanto, acreditamos ser
possível deixar uma hipótese de trabalho para pensarmos futuramente: é

211
possível que a resolução do problema já esteja dada por Vattimo nos seus textos
anteriores à sua filosofia da religião. Nós nos apoiamos aqui na obra Más allá del
sujeto (1992), na qual aponta o problema da subjetividade moderna e tenta
pensar o sujeito para além dela. Para isso, Vattimo utiliza da filosofia de
Nietzsche acerca da morte de Deus e do Übermensch. Ao comentar O
crepúsculo dos ídolos, escreve uma passagem que apresenta sua consciência do
problema do sujeito moderno e sua necessidade de superá-lo. Ele argumenta
num trecho extenso:
O sujeito não é o primum ao qual se pode voltar dialeticamente; é ele
mesmo um efeito de superfície e, como disse o mesmo parágrafo de O
crepúsculo dos ídolos, se converteu em uma “fábula, uma ficção, um
jogo de palavras”. Pôde não sê-lo, ou não ser considerado tal, por um
largo período da história humana porque num certo ponto desta
história “a causalidade se estabeleceu como um dado”. Como os
outros grandes erros da metafísica e da moral, também a crença no eu
se remonta, mediante a crença na causalidade, à vontade de
encontrar um responsável do acontecimento. A estrutura da
linguagem, e ante toda a gramática de sujeito e predicado, de sujeito
e objeto, e ao mesmo tempo a concepção do ser que sobre esta
estrutura construiu a metafísica (com os princípios, causas, etc.), está
totalmente modelada pela necessidade neurótica de encontrar um
responsável do devir. Mas, “entretanto, temos pensado melhor, de
tudo isso já não cremos nem em uma palavra”. O entretanto ao qual
alude Nietzsche aqui é todo o arco da história do pensamento no qual
se consumou a constituição e a destituição da metafísica; a história da
morte de Deus, como devir supérfluo das explicações últimas, dos
princípios e, também, do sujeito responsável. O universo da metafísica,
dominado pela categoria do Grund, pelo fundamento, está modelado
pela crença supersticiosa no sujeito: é esta perspectiva que faz
aparecer a nós tudo na perspectiva do fazer e do sofrer. (VATTIMO,
1992, p. 30).

A posição de Vattimo no texto denota uma conversão do problema. Ao


assumir a subjetividade cristã trabalhada anteriormente, ele não a aceita
gratuitamente. Ele a submete à crítica do pensamento enfraquecido, de modo
que “encontra sua própria identidade filosófica no mundo do pluralismo
nietzscheano e do enfraquecimento do ser heideggeriano, hipostatizando uma
subjetividade além do sujeito” (ROVATTI, 2009, p. 159). Quer dizer, Vattimo
pensa o sujeito para além da subjetividade moderna, garantindo ainda a
utilização do conceito de sujeito/subjetividade (talvez, aqui esteja uma outra
hipótese à utilização de interioridade em alguns textos). A utilização do sujeito é
possível, à medida em que se retira dele a qualidade de sujeito responsável, isto

212
é, que está condicionado à lógica da causalidade moderna. O sujeito deixa de
ser aquele subjectum da teologia e da ontologia que discutimos anteriormente
e passa a ser compreendido como o Übermensch nietzscheano. Neste sentido,
a título de hipótese, quando Vattimo se utiliza das noções cristãs de sujeito e
subjetividade assumindo-as hermeneuticamente em suas obras, poderíamos
compreender que ele está tratando este sujeito como Übermensch, ainda que
se aproprie da terminologia moderna. Tal sujeito que é um “sujeito dividido que
é o ultrahumano não pode corresponder a um ser pensado com as
características de grandiosidade, força, definitividade, eternidade, atualidade
desraigada, que a tradição sempre reconheceu” (VATTIMO, 1992, p. 44).
O Übermensch da filosofia de Nietzsche está marcado com uma hybris
definida como nossa posição e relação com as coisas e com o mundo. Neste
movimento, Vattimo começa a converter sua intepretação de sujeito pra
hermenêutica, já que vai defender a tese de um Übermensch hermenêutico. A
condição de hybris do além-do-humano trata-se de um movimento de
passagem da condição de domínio para a libertação do sujeito. Essa questão
fica mais clara em O sujeito e a máscara (2017) quando Vattimo escreve “a
hybris do além-do-homem é aquela que o opõe, com desprezo e atitude de
soberania, ao gado, ao rebanho e à sua moral” (VATTIMO, 2017, p. 332). Pela
condição de hybris é que o além-do-humano pode libertar-se da subjetividade
enquanto atrelada à moral platônico-cristã que está em voga até a
modernidade, como também libertar-se do objetivismo grego presente na
filosofia. Pelo fato desta libertação ainda estar em curso, o que caracteriza a
condição pós-moderna do além-do-humano, ela aparece ainda como em
trânsito, numa hybris¸ ao além do humano. Este “trânsito à condição humana,
como também o trânsito do niilismo passivo ao niilismo reativo, não é o se
estabelecer em uma condição de saúde da alma, de claridade, de conciliação e
de fim dos conflitos; mas uma libertação do jogo das forças” (VATTIMO, 1992, p.
33). O sujeito além da subjetividade moderna que Vattimo advoga está,
portanto, apoiado no sujeito nietzscheano do além-do-humano. Seu advento
emplaca o ideal de subjetividade moderna, pelo fato dela estar ainda associada

213
ao “homem do rebanho”, isto é, ao ideal de sociedade fixado num
desenvolvimento progressivo e técnico da história que é condicionado pela
linearidade teleológica da metafísica. O homem do rebanho promulga a
História, enquanto o além-do-humano liberta-se da História, em favor da sua
própria historicidade. O sujeito pelo qual Vattimo se interessa a dar voz é uma
ameaça à subjetividade moderna, tal como ele afirma:
O além-do-homem é uma ameaça para o homem presente apenas
enquanto o homem presente é rebanho, sociedade da ratio
desenvolvida, disciplina social produtiva interiorizada através da
consciência, da linguagem, de todo o sistema da moral-metafísica
dominada pelo espírito da vingança (VATTIMO, 2017, p. 332).

A afirmação do sujeito enquanto Übermensch é, desta forma, a


libertação do sujeito que compõe a filosofia do enfraquecimento desenvolvida
por Vattimo. Sua intenção não é ir contra à subjetividade moderna
desenvolvida pelo fio condutor cristão da história do Ocidente, mas ir além
desta subjetividade. Quer superá-la não porque o Übermensch é mais
verdadeiro, mas porque ele carrega uma consciência hermenêutica que
compreende sua situação de trânsito na história, já que a hybris o caracteriza43.
Nestes termos, “o Übermensch exercita esta hybris conscientemente, enquanto
o humano da tradição sempre a rechaçou” (VATTIMO, 1992, p. 35). Esa
dinamicidade do sujeito além-do-humano só pode ser desenvolvido pelo
pensamento hermenêutico que entende o ser enquanto acontecimento, como
algo não estático, peremptório, preso à história ou ao sistema. Levando a
discussão para essa discussão, Vattimo argumenta:
O über do Übermensch nietzscheano, pois, não alude a uma
superação de tipo dialético; nem se refere, em primeiro lugar, ao
exercício de uma vontade de vida que se manifeste na luta pela
existência ou, menos grosseiramente, na planificação técnico-científica
do mundo; está, ao contrário, pensado sobre o modelo da estrutura
característica, segundo Nietzsche, da experiência hermenêutica. Esta
experiencia é concebida por Nietzsche de modo radicalmente
ultrametafísico; isto é, não como um acesso ao ser através da remoção
das máscaras que assumiu ou que lhe foram impostas, mas como um
verdadeiro acontecer do ser (VATTIMO, 1992, p. 35).

E ainda, no mesmo texto:

43“O que caracteriza ao Übermensch como seu atributo próprio é o exceder como exercício da
hybris”. No original: “Lo que caracteriza al Uebermensch como su atributo propio es el exceder
como ejercicio de hybris” (VATTIMO, 1992, p. 34).
214
Em primeiro lugar, uma ontologia hermenêutica radical implica o
abandono da noção metafísica do sujeito entendido como unidade,
também quando esta está pensada como resultado de um processo
dialético de identificação. A condição normal do Übermensch é a
ruptura; o significado filosófico desta doutrina nietzscheana está
totalmente no situar-se no extremo oposto de qualquer filosofia de
reflexão como reconciliação do sujeito consigo mesmo. (VATTIMO,
1992, p. 43).

Com as citações supracitadas, torna-se ainda mais clara a preocupação de


Vattimo com a questão do sujeito entendido como Übermensch. Sua
provocação vai na direção de afirma-lo à medida em que abandona o sujeito
moderno. No entanto, o que Vattimo parece não abandonar é a utilização do
conceito de sujeito e a utilização lacônica do termo em textos que extrapolam
sua leitura nietzscheana favorecem a contradição em seu pensamento. De todo
modo, a hipótese que estamos levantando aqui parte da leitura que Vattimo faz
de Nietzsche para tentarmos resolver um problema que ele obtém com
Heidegger. Se a solução é suficiente, não temos as condições de estabelecer no
momento, mas enquanto hipótese de trabalho, pode ser uma aposta
interessante.

Conclusão
Pelo percurso que fizemos, partindo do problema da subjetividade e da
objetividade com Heidegger, olhando para a forma como Vattimo põe o sujeito
em seus textos sobre cristianismo e recuperando a noção de sujeito
nietzscheano pela leitura vattimiana, tentamos apresentar um problema de
contradição na obra de Gianni Vattimo. Para resolvê-la, a afirmação do além-do-
humano da filosofia de Nietzsche foi fundamental. O que a princípio parece ser
uma questão crítica no pensamento de Vattimo, pode ser apenas uma questão
lacônica. Quer dizer, Vattimo não se preocupa em desenvolver qual noção de
sujeito ele se apoia quando desenvolve seus escritos sobre cristianismo, o que
facilmente abre um problema, já que, à medida em que ele não explica, parece
assumir a subjetividade que o cristianismo introduziu no pensamento ocidental
e que é aceito e desenvolvido na modernidade.

215
Referências
DILTHEY, Wilhelm. Introducción a las ciencias del espíritu. Ciudad de México:
Fondo de Cultura Económica, 1944.
HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin.
Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1998, p. 96-138.
PIEPER, Frederico. Ontologia, teologia e metafísica no projeto transcendental de
Martin Heidegger. 2013. 259f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013.
ROVATTI, Pier Aldo. Pensamiento débil 2004: un tributo a Gianni Vattimo.
ZABALA, Santiago (Org.) Debilitando la filosofía. Ensayos en honor a Gianni
Vattimo. Barcelona: Anthropos Editorial/México: Universidad Autónoma
Metropolitana-Cuajimalpa, 2009, p. 159-174.
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso.
Trad. Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Record, 2004.
VATTIMO, Gianni. Hacia un cristianismo no-religioso. VATTIMO, Gianni.
CAPUTO, John D. Después de la muerte de Dios. Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Barcelona: Paidós, 2010, p. 49-74.
VATTIMO, Gianni. Más allá del sujeto. Madrid: Paidós, 1992.
VATTIMO, Gianni. O sujeito e a máscara. Nietzsche e o problema da libertação.
Petrópolis: Vozes, 2019.
ZILLES, Urbano. Discurso sobre o fim da metafísica. São Paulo: Paulus, 2019.

216
A PACIÊNCIA DE JÓ E ESTADOS DE BHAKTI YOGA – CATEGORIAS
DE COMPREENSÃO DE SOFRIMENTO E DE AMOR
Sumaya Machado Lima
Doutora em Teoria Literária UFSC - SC.
Pós-graduanda, UFJF - MG.
sumayamlima@gmail.com
Resumo: O Livro de Jó conta a história de um devoto muito dedicado e paciente, que
chama a atenção de Deus. Curioso, Deus quer saber a opinião do Diabo, já que a tarefa
deste é perambular pelo mundo, confundindo a razão das pessoas. Tantas qualidades
de Jó parecem ter despertado a inveja e o despeito do Diabo, pois que este dúvida que
o personagem continue tão bem conceituado diante de Deus, se acaso seja privado de
algum conforto que possui. Desafiado, Deus permite o Diabo testar a paciência de Jó,
retirando-lhe o que julgar necessário. Obviamente, o Diabo não tem compaixão. Priva-o
de todo o conforto, segurança material, afeto familiar, status social e saúde. Apesar do
sofrimento, Jó permanece aos farrapos, na sarjeta, culpando apenas a si, nunca a Deus.
Os amigos de Jó, com pretexto de ajudá-lo, o oprimem ainda mais fazendo-lhe
perguntas e acusações até o desfecho da história mudar. De forma despretensiosa, a
análise desse livro faz uma analogia da relação de alguns personagens com sua visão
de Deus, do sofrimento e da devoção. O comportamento dos personagens e seus
discursos podem ilustrar os conceitos de Devoção, Bhakti Yoga encontrados na filosofia
do tantra Yoga da instituição espiritualista Ananda Marga no Brasil. Categorizando
quatro tipos de personagens e suas visões sobre a figura Divina, o texto aproxima-as de
noções tais como Tamásika Bhakti, Rajásika Bhakti, Sattvik Bhakti e kevala Bhakti. Desse
modo, numa linguagem despojada e elucidativa, pretende-se abrir espaço para um
diálogo entre escrituras tradicionais ainda pouco visitadas no estudo hermenêutico.
Palavras-chave: Livro de Jó; Sofrimento; Devoção; Bhakti; Yoga; Diálogos.

1. Inquietações e tensões
No atual contexto de palanques no Brasil, as disputas eleitorais têm sido
comparadas a “uma guerra do bem contra o mal” (BBCNEWS BRASIL, 2022).
Num clima vestigial das Cruzadas, política e religião têm sido confundidas em
pensamentos maniqueístas. Compara-se o cargo do atual presidente do Brasil a
um cargo político-espiritual44, como que investido de funções sagradas, uma
“missão de Deus” (EL PAÍS BRASIL, 2022)45. Torna-se o adversário um inimigo

44 “Michelle Bolsonaro a trajetória da primeira-dama que promete ‘Jesus no governo’”, 2022.


“Em agosto, ela se tornou onipresente na campanha. Em eventos religiosos, diz que o marido é
“escolhido de Deus”, afirma, sem provas, que a esquerda vai fechar igrejas, faz coreografias e
canta música gospel”. BBC NEWS BRASIL.
45 Desde eleito, o atual presidente usa as palavras “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”,

ignorando pessoalmente leis e protocolos por onde vai e comparando o seu cargo a “uma
missão divina” (EL PAÍS, 2022).
217
desumanizado, associado, pejorativamente, a religiões de matriz africana e a
forças nefastas comunistas que promovem, elas sim, a cultura do ódio, a queima
de Igrejas Católicas e persegue cristãos46 (ESTADÃO, 2022). Distorcendo fatos,
para induzir a sociedade a uma reeleição presidencial, lideranças políticas e
religiosas unem-se e utilizam de redes sociais e marketing para convencer fiéis
de votarem em determinado político. Ou perseguem e ameaçam fiéis que não
votam ou votam em candidato adversário e expulsam pastores discordantes
deste ato (BBCNEWS, 2022)47. Se lideranças como essas conseguiram, algum
dia, tornar Deus um produto que pode ser adquirido, como consequência de
uma visão “mercantilizadora da fé” – como explica Ed René Kivitz (2019) 48 –
entende-se que, desta vez, essas lideranças conseguiram transformar Deus em
um candidato. Conforme o iPec (G1Eleições, 2022)49, a sua popularidade,
especialmente em intenções de votos, não estava muito alta para vencer num
primeiro turno – cerca de 36%. Apesar disso, se se pensar em número
populacional, ainda é um número considerável. Logo, surge a questão: que
tipo de fiel poderia aceitar esse jogo de palavras, ambiguidades e crenças, e
depositaria o seu voto em “Deus”? O que desejaria um fiel devoto? Um órgão
de pesquisa e estatística poderia responder essas perguntas do ponto de vista
econômico e social. Mas do ponto de vista discente e filosófico, este artigo
acadêmico elabora uma pesquisa hemerográfica e bibliográfica de textos de
escrituras ancestrais sobre Bhakti Yoga. Não para responder essas perguntas
retóricas supracitadas, mas para manter a memória propedêutica de tradições
religiosas milenares e deixar para o leitor observar o que há nelas de humano e
divinal.

46 “Michelle prega união das Igrejas contra suposta “ameaça do comunismo”” (ESTADÃO, 2022.)
47 Eleições de 2022: pastores fazem pressão por voto e ameaçam fiéis com punição divina e
medidas disciplinares (BBCNEWS, 2022) “Há ainda um caso mais grave de infração, relacionado
ao uso de violência ou grave ameaça para coagir alguém a vota, ou não votar, em determinado
candidato ou partido. A infração está prevista no Código Eleitoral, Artigo 301. A pena sugerida
é de reclusão de até quatro anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa” (Líder religioso que usa
culto para pedir voto, BBCNEwS).
48 Para uma abrangência conceitual do termo mercantilização da fé e fé Cf. KIVITZ. A

Espiritualidade Inconsistente: Deus como mercadoria, 2019. Cf. KARNAL. Fé líquida, 2019. Cf
MOSÉ, Vivane. Fé e Filosofia, 2018.
49 Inteligência em Pesquisa e Consultoria.

218
1.1. Recorte
A reflexão que trazemos para o universo acadêmico da Hermenêutica é
abordar alguns significados milenares de devoção (ETIMOLGIA, 2022)50. Além
disso, também apresentar dois conteúdos de escrituras antigas, uma da filosofia
indiana, sobre a qual apresentaremos cinco categorias de devoção, para
inciados e não-inciados, comentadas em textos tântricos de Bhakti51 Yoga. E
outra da filosofia judaico-cristã, o Livro de Jó, situado no Antigo Testamento do
Evangelho. Deste último será feito uma livre síntese da história, mas ressaltando
características pertinentes ao assunto devoção e sofrimento de alguns
personagens do texto judaico-cristão. Aparentemente, o conteúdo original de
ambos os textos datam de períodos bem distantes (pelo menos três mil anos),
mas existe nelas em comum a instância teleológica da salvação e libertação do
sofrimento. E em ambos os textos destaca-se o sentimento como algo
importante para buscar discernimento e uma ação assertiva em direção ao alívio
determinante da causa-raiz do sofrimento primordial.

2. Sofrimento e razão
As tradições teístas e ancestrais da Índia, de forma geral e plural, estão
associadas à agnição de que há uma existencialidade sofredora em cada
indivíduo, resultante de uma condição alienadora da visão sobre as coisas do
mundo.
Nesse âmbito, as chances de resolver o sofrimento com eficácia e
eficiência totais é vislumbrada através do conhecimento (jinana), da ação,
(karman) e de elementos devocionais (bhakti). Porém, para estabelecer as
resoluções é fundamental uma “razão esclarecedora” filosófica dessa condição
alienadora e uma pedagogia da iniciação ao modus operandi de textos que
ensinam a aplicação prática da razão filosófica. Essa razão aprofundada, com

50 Na etimologia das palavras voto vem do latim votum, v. vovere = promessa, originalmente
uma aliança de devoção a Deus, ou uma homenagem a uma entidade divina na intimidade de
um pedido ou apreciação. Devoto do latim devotum, v. devovere = promessa solene, dedicação
por um voto, sacrifício. ETIMOLOGIA, 2022
51 Bhakti “Geralmente traduzida por “devoção, a palavra bhakti deriva da raiz Sânscrita bhaj, que

significa literalmente “participação”, “compartilhamento”. (LOUNDO, 2022, p 102)


219
orientação especializada, pode levar o indivíduo à liberação do seu sofrimento
existencial através da liberação da sua consciência, não após a morte, mas
durante a sua existência.
A razão filosófica (vicara) cumpre nessas tradições suma
função primordial, insubstituível e decisiva nos
processos de encaminhamento soteriológico,
conducentes aqui e agora, à realização cognitiva da
natureza última do Real e à superação definitiva do
sofrimento (moksa/nirvana). (LOUNDO, 2022, p.16).

De acordo com o filósofo Dilip Loundo (2019), há um tipo de sofrimento


que pode ser identificado como pontual, devido a desejos ou a carências físicas,
intelectuais ou psicológicas e que podem ser pontualmente satisfeitas (por
exemplo, se sofro com multas recorrentes, devo observar as leis, se tenho
problemas de saúde, devo buscar um médico). Mas de acordo com as literaturas
tradicionais indianas também há um outro tipo de sofrimento que implica na
busca da resolução da sua causa-raiz e da sua superação definitiva. Este último
tipo, ligado a uma questão essencial: o conhecimento. Uma vez que o
sofrimento tem como causa última a ignorância, o conhecimento pode levar à
visão das coisas tais como elas não são. Afinal, ignora-se que o desejo sobre as
coisas é uma fantasia sobre elas (LOUNDO, 2019).

2.2. Sentimento e razão


Ao comentar a importância do sentimento na teoria estética indiana 52,
Dilip Loundo (2019) observa que o sentimento é uma disposição subjetiva com
relação aos objetos (de prazer ou de repulsa) mas, que é absolutamente
necessária, porque, de alguma forma, ela indica uma conexão esquecida,
ontológica, que se tem com um determinado objeto. Independentemente do
sentimento ser positivo ou negativo, é importante porque é o que possibilita
haver uma relação ou uma aproximação “trazer o outro pra mim”. O filósofo
continua que é preciso, no entanto, uma dimensão de reflexão racional, um
certo controle das emoções, visto que a emoção tem uma dimensão
egocêntrica, um elemento originário de manipulação e apropriação do objeto

52 Pergunta elaborada da plateia ao professor que motivou seus comentários: como se


caracteriza a noção de sentimento dentro da filosofia hindu?
220
com o qual o sujeito se relaciona. Dessa forma, o ato racional que elimina o
sentimento de manipulação, egoísmo, posse, rejeição do sujeito na relação com
o objeto pode trazer a “real natureza do vínculo” entre ambos. Ele afirma a
necessidade de haver a combinação entre sentimento e razão.
Ao buscar conceituações aprofundadas sobre o teor dessa proposição do
filósofo, encontramos que há diversas maneiras de se expressar devoção. Em
Bhakti Yoga, o Yoga da Devoção, na Filosofia Tântrica, cada pessoa adota
(consciente ou inconscientemente) o processo da prática espiritual devocional
de acordo com a sua própria natureza. Diz-se que há cinco tipos de devotos.
Támasika Bhakti (a devoção estática), Rajasika Bhakti (ou devoção mutatória),
Sáttvik Bhakti, Nirguna Bhati e Kevala Bhakti. Este último seria o nível de maior
aprofundamento humano para cumprir o seu Dharma Humano isto é, se auto-
realizar, ou alcançar a maior intimidade com o Amor Supremo, até liberar sua
mente do sofrimento que o separa de sua verdadeira essência e fundir-se com
Ela (Mukti). Porém, até que isso aconteça, algumas pessoas ou devotos podem
passar por certos processos de aprendizado e níveis de relação com os objetos.
O que define aqueles que buscam Conhecimento (Ajiná), Ação (Karman)
e Devoção (Bhakti) são três aspectos fundamentais para o humano cumprir o
seu Dharma Humano isto é, se auto-realizar, ou alcançar a maior intimidade
com o Amor Supremo até liberar sua mente do sofrimento que o separa de sua
verdadeira essência e fundir-se com Ela (Mukti). Somente com conhecimento e
com Ação é impossível isso ser alcançado. Porém, se uma pessoa analfabeta agir
e desejar muito fundir-se com esse Amor, poderá conhecer a Devoção mais Sutil
e tornar a sua Consciência Individual una com a Suprema Consciência. E essa
Devoção não depende do indivíduo querer, sobretudo deve partir da
Consciência Suprema para a consciência individual. Vejamos a partir de agora
um desdobramento desses conceitos na história de Jó.

3. Personagens do livro de jó – uma leitura possível


O Livro de Jó (BÍBLIA SAGRADA, 2013, pp. 613-657) conta a história de
um devoto muito dedicado e paciente, que chama a atenção de Deus. Curioso,

221
Deus quer saber a opinião do Diabo, já que este havia perambulado pelo
mundo – confundindo a razão das pessoas. Segundo o filósofo Leandro Karnal
(2019) sobre este episódio do livro de Jó, o Diabo é considerado “o divisor, o
tentador que, na tradição judaica, não é o inimigo de Deus, mas uma contra-
prova do plano divino”. De acordo com a escritura, ao consultar o Diabo ––
Deus pergunta: “Notaste o meu servo Jó, não há ninguém igual a ele na Terra,
íntegro, reto, temente a Deus e afastado do mal. Persevera sempre em sua
integridade” (Jó 2, 3). Tantas qualidades de Jó parecem ter despertado a inveja
e o despeito do Diabo, pois que este duvida que o personagem continue tão
bem conceituado diante de Deus, se acaso seja privado de algum conforto que
possui.
Desafiado, Deus permite o Diabo testar a paciência de Jó, retirando-lhe o
que julgar necessário. Obviamente, o Diabo não tem compaixão. Priva-o de
todo o conforto, segurança material, afeto familiar, status social e saúde. Mas,
apesar do sofrimento, eis que Jó permanece aos farrapos, na sarjeta, culpando
apenas a si, nunca a Deus. Os amigos de Jó, com pretexto de ajudá-lo, o
oprimem ainda mais fazendo-lhe perguntas e acusações até o desfecho da
história mudar.
O livro de Jó parece um caso de amor (que demanda provas de amor
exigentes) entre Deus e Jó, um devoto extremamente (porém não
absolutamente) dedicado aos ensinamentos e presença Divinas. A sua grande
angústia está em incompreender o que motivou seu Deus a fazer isso e a
abandoná-lo. Aliás, Jó afirma sentir medo e solidão, isto é, sente-se na des-graça
(des – negação; graça – presença divina, por conseguinte, o sentido pode ser
“negação da presença divina” ou “ausência do Senhor”). Para Jó, não sentir a
presença divina é causa de todo o terror e solidão: “Que (Deus) retire sua vara
de cima de mim para pôr um termo a seus medonhos terrores, então lhe falarei
sem medo; pois, estou só comigo mesmo” (Jó 9, 34-35). E pouco mais adiante:
“Clamo a ti e não me respondes, ponho-me diante de ti, e não olhas para
mim”(Jó 30, 15; 19).

222
4. As diferentes categorias de devoto
Apesar da perda, Jó continua uma pessoa paciente e pura. Sua esposa,
intolerante e enfastiada por tanto sofrimento, reconhece a pureza do marido:
“Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa Deus e morre!” (2, 9). Sua
participação nos diálogos é breve, mas significativa pois talvez sua experiência
social a tenha levado a se relacionar com os objetos no famoso dito popular
“toma lá, dá cá”. Ela deduz funcionalmente que, se a Deidade não lhe é útil,
deve-se procurar outra que o seja. Afinal, apesar de obedecer aos
mandamentos divinos, ambos foram despojados de todos os seus pertences e
conforto. Uma espécie de confiança num acordo foi quebrada. Por isso, para a
esposa é incompreensível o sofrimento do marido, o que caracterizaria a
primeira ou a segunda categoria de devoção: Támasika Bhakti (a Devoção
Estática) (ANANDAMURTI, 2013, p.59) define aqueles que buscam prazeres
finitos em lugar de Bem-Aventurança Suprema e são influenciados pela
arrogância, a inveja, a violência, são os aspirantes espirituais estáticos, tipo de
devoto em início de processo de conhecimento. Os que realizam suas práticas
espirituais para alcançarem favores de Deus ou o veneram com adornos para
obterem riqueza, fama, não desejam o Supremo, mas o que Ele pode dar a eles.
Essa é o tipo de devoção Rájasika Bhakti (ou Devoção Mutatória) (Idem). O tipo
de mercadoria que cita René Kivitz (2019) em “ Espiritualidade inconsistente e o
mercado de Deus”.
Já os colegas, ao contrário da mulher, conhecem muito bem as escrituras
são frequentantes de sinagogas e de inúmeros rituais, mas o respeito pelo
Supremo é cofundido com o medo de represálias. Há uma relação de amor, mas
de amor temeroso. É notável um grande temor pelo Senhor e como Este pode
desgraçá-los a qualquer momento, especialmente se forem ímpios ou injustos.
Na visão dos amigos, Deus é uma figura divina punitiva e que separa o bem do
mal.
Segundo as escrituras indianas, os que exercem a sua prática espiritual
como dever e por temer as pessoas que podem censurá-los são classificados
como aspirantes espirituais de devoção sutil: Sáttvik Bhakti (Idem). Um nível

223
intermediário nesse processo de entendimento devocional. Eles não conseguem
crer na inocência do amigo, que insiste em confirmá-la. Os amigos questionam a
pureza de Jó, porque, se Deus é suave e justo com os puros, por que Deus
aterrorizava um homem puro e o colocava à prova? Não lhesfazia sentido. Ou
não existiam homens puros, ou Jó escondia a verdade. Além do mais, por que
Jó dizia ter tanto medo da mão de Deus, se estava seguro de ser leal, obediente
aos seus ensinamentos e de amá-Lo tanto?

4.1. Quem sofre, por que sofre?


Uma das características da prática de devotos avançados da quarta
categoria é Nirguna Bhakti, ou Devoção Qualificada:
aqui, o aspirante não tem nenhum outro propósito; ele vai em direção
à Consciência Suprema conduzido apenas pelo ímpeto do seu próprio
espírito. Se lhe perguntam por que ama e se consagra à Consciência
Suprema, o aspirante responde então: por que a amo? Não sei. Eu A
amo tão somente porque gosto de amá-la. E por que eu não deveria
amá-la? Ela é a Vida da minha vida, a Alma da minha alma!”
(ANANDAMURTI, p 46, 2013).

Se analisarmos por esse viés, esse aspecto do Sagrado é muito


semelhante ao que está subliminar na vontade de Jó até este momento. Ele
ainda desenvolve um pequeno sentimento de temor, mas o que ele anseia é
agradar a seu Deus. Mas, ainda que o desejo que o mova seja agradar a Deus,
sua devoção ainda relaciona o amor Divinal a um tipo de bem em que há uma
troca: seja pela paz, seja pela bênção divina, ou a Sua Graça.
Não obstante, o protagonista sofre e esse sofrimento parece fazer
mudanças graduais em sua psicologia. Ele compreende tudo o que os amigos
judeus lhe falam, não se importa com a perda de seu patrimônio, antes,
desdenha a existência e o sofrimento. Ele não se desespera tanto com as perdas
e as punições, nem com o falatório dos amigos, quanto com “o silêncio de
Deus”. Isso o faz sofrer intensamente.
Seu sofrimento passa pela incompreensibilidade de Deus. A ansiedade é
uma forma de querer se apropriar, controlar ou manipular o desejo do seu
objeto de amor: neste caso, Deus. Falta-lhe, como afirma Loundo, o uso racional
do sentimento, de modo a eliminar a dimensão egocêntrica de sua emoção e

224
compreender “a real natureza do vínculo” entre ambos. Se o seu objeto de amor
é um ente imanente e transcendente, quem é o sujeito, quem é o objeto?
Por algum motivo, no entanto, a narrativa muda completamente,
quando o personagem, num estado ininteligível, como se em estado de torpor,
desperta a confiança de que Deus virá para defendê-lo. Excedendo-se na fé de
que haverá uma intervenção Divina a seu favor, Jó é tomado por uma súbita
esperança.
Eu o sei: meu vingador está vivo, e aparecerá, finalmente, sobre a
terra. Por detrás de minha pele, que envolverá isso, na minha própria
carne, verei Deus. Eu mesmo o contemplarei, meus olhos o verão, e
não os olhos de outro, meus rins se consomem dentro de mim. (19,
25-29).

Nesse trecho da narrativa, parece que Jó tem uma visão de Deus muito
próxima em si, a solidão parece dissipar e as suas certezas se reestabelecerem. A
partir deste momento, há um quarto tipo de relação intersubjetiva do devoto Jó
com o seu Senhor. É uma relação de confiança inabalável. Em seguida, Jó fala
com autoconfiança, aos seus amigos, que o perturbam com inúmeros
questionamentos e condenações: “Temei o gume da espada, pois a cólera de
Deus persegue os maus e sabereis que há uma justiça” (19, 25-29)

4.2. Bhakti - devoção qualificada e não qualificada


Estar consciente 100% da presença de Seu Amor talvez fosse o grande
obstáculo a ser vencido pelo protagonista. Logo, o que parecia uma devoção
extrema (Devoção não qualificada), torna-se Devoção Completa ou Kevala
Bhakti, um quinto nível de categoria de devoto avançado:
[Kevala Bhakti ocorre] Se o aspirante espiritual percebe, desde o ínicio,
a permanência da devoção não qualificada, perguntas como “o que
eu já consegui?”, “o que pretendo atingir?” não lhe surgem na mente.
Isto é a culminação de Bhakti. Se exisitir o conhecimento indissolúvel
com o objeto, então existirá uma e apenas uma entidade, e é por isso
que tal devoção não é conseguida através de banhos, exercícios,
esforços. Aqueles que não foram abençoados com pelo menos um
pouco de graça Divina não podem realizá-la. (ANANDAMURTI, 2013,
p. 46).

No caso de Jó, parece ter havido uma transição e mais um elemento: um


sentimento forte e sincero. A sua Iniciação ou “Provação” parece ter sido
transformar a sua “Devoção Não Qualificada” (Nirguna Bhakti, quando o
225
aspirante não possui outro propósito, salvo ir em direção a Consciência
Suprema em sublimar o sentimento de amor...) para “Devoção Completa”
(Kevala Bhati, sentir-se indissolúvel com Deus). “Por detrás de minha pele, que
envolverá isso, na minha própria carne, verei Deus”(JÓ, 19, 27). E, ao que tudo
indica, através do esforço e da esperança (e graça), ele conseguiu transformar o
seu amor temeroso em amor não temeroso. Jó transformou o seu extremo
Amor em Amor Absoluto.

Referências
ANANDAMURTI, Shrii Shrii. A Graça do Senhor Parte 2, Brasília, DF 2013.
BBCNews Brasil. “Michelle Bolsonaro a trajetória da primeira-dama que promete
‘Jesus no governo’”. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
62668831 Acesso em 22/09/2022> Acesso em: 21/09/2022.
BBCNews Brasil. “Líder religioso que usa culto para pedir voto arisca multa e, em
casos de ameaça, prisão”. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63320704 acesso em: 19/10/2022.
BBCNews Brasil. ”Eleições 2022: pastores fazem pressão por voto e ameaçam
fiéis com punição divina e medidas disciplinares”, Disponível em:<
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63209750> Acesso em: 19/10/2022.
BÍBLIA SAGRADA, tradução dos originais mediante a versão dos Monges de
Maredsous (Bélgica), pelo centro Bíblico Católico, 18ª edição, São Paulo: Editora
Ave Maria LTDA. 1997.
EL PAÍS Brasil. “André Mendonça no STF vira trunfo de evangélicos, mas fiéis
ignoram batalha política” Regiane Oliveira. Fernanda
Becker. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-12-13/andre-
mendonca-no-stf-vira-trunfo-de-pastores-evangelicos-mas-fieis-ignoram-batalha-
politica.html> Acesso em: 22/09/2022.
ESTADÃO. “Michele prega união das Igrejas contra suposta “ameaça
comunista”” Disponível em: < https://www.estadao.com.br/politica/michelle-
prega-uniao-das-igrejas-contra-suposta-ameaca-do-comunismo/ > Acesso em:
22/09/2022.
G1. Data folha votos válidos: Lula 50%, Bolsonaro 36% - a pesquisa ouviu 6800
pessoas entre os dias 27 e 29 de Setembro, seção: Pesquisa Eleitoral, Disponível
em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/pesquisa-
eleitoral/noticia/2022/09/29/datafolha-votos-validos-lula-50percent-bolsonaro-
36percent.ghtml> Acesso em: 30/09/2022.

226
KARNAL, Leandro. “Fé líquida”, Café Filosófico, 2019. Diponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=6ra6L-yoWmM > Acesso em 30/09/2022.
KIVITZ, Ed René. “A Espiritualidade Inconsistente e o Mercado de Deus”, CAFÉ
FILOSÓFICO, 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=X9gDpHI8v7A >, acesso em 21.09.2022
LOUNDO. Dilip. Razão (jnana) e Devoção (bhakti) no Advaita Vedanta:
Madhusudana Sarasvati e o Bhagavad Gita, in: Razão com Sabor de Mel: ensaios
de filosofia indiana. Coleção Índia em Foco, Campinas, SP: Editora Phi. 2022
LOUNDO. Dilip. Como se caracteriza a noção de sentimento dentro da filosofia
hindu? Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jpFRFsCToKw>
acesso em 21/09/2022
METRÓPOLES. “Guerra do bem contra o mal”, diz Michelle em culto com
Bolsonaro” Vitor Fuzeira. Disponível em:<
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/guerra-do-bem-contra-o-mal-
diz-michelle-em-culto-com-bolsonaro > Acesso em 22/09/2022.
MOSÉ, Viviane. “Fé e Filosofia”, Café Filosófico, 2018. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=SAzX83gWNB8 > Acesso em: 19/09/2022.

227
GT 10 - ENTRE RELIGIÃO E O ESPAÇO PÚBLICO: FESTAS, TURISMO
RELIGIOSO E PATRIMÔNIO CULTURAL

Doutorando Diego Santos Barbosa (UNIRIO)


Doutoranda Elza Aparecida de Oliveira (UFJF)

Ementa: Este GT pretende discutir a temática da religião na sua relação com o


espaço público e apresentar pesquisas que propõem um lócus religioso fora dos
limites do Estado. As discussões estarão orientadas prioritariamente para a
compreensão dos fenômenos religiosos e suas possíveis articulações entre si.
Pretende-se, também, ressaltar a pluralidade de reflexões contemporâneas e
favorecer um debate profícuo entre perspectivas conceituais que perpassam
diferentes áreas temáticas, como é o caso dos temas: Festa, Turismo Religioso e
Patrimônio Cultural. Interessa-nos a conjugação entre os estudos de rituais,
símbolos, performances e as abordagens das formas expressivas – gêneros
poético-musicais, danças, encenações, manipulação e fabricação de objetos e
artefatos que se articulam e desarticulam no contexto de formas mais festivas ou
mais cotidianas da prática social. O GT pretende reunir pesquisas que reflitam
sobre os processos associados entre os espaços e a religião no mundo
contemporâneo, com o intuito de colocar em discussão as formas pelas quais as
religiões participam da vida pública, adquire expressão e contribuem para
configurar o nosso universo social.

Palavras-Chave: Religião; Espaço Público; Patrimônio.

228
DOIS CAMINHOS DE FÉ, UM ÚNICO DESTINO: PIACATUBA,
DISTRITO DE LEOPOLDINA (MG) COM POTENCIAL DE
DESENVOLVIMENTO DO TURISMO RELIGIOSO
Dora Deise Stephan Moreira
Doutora em Ciência da Religião pela UFJF
Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais
ddsstephan@gmail.com

Resumo: Dois caminhos de fé, um único destino: Piacatuba, distrito de Leopoldina


(MG) com potencial para o desenvolvimento do turismo religioso. A partir do ano 2000
(Steil; Carneiro, 2008), começaram a surgir no Brasil as peregrinações que seguem o
modelo do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Em 2013, em
Cataguases, cidade localizada na Zona da Mata mineira, um grupo de fiéis criou a
peregrinação Caminhos da Piedade que, conforme informações do Jornal
Leopoldinense (Edição online de 02/09/2019), que teve como inspiração o Caminho
de Santiago. Em 2015, surgiu em Leopoldina a peregrinação Fé na estrada, organizada
pela Igreja Nossa Senhora do Rosário. Ambas acontecem na mesma data, 1° de
setembro, e têm como destino Piacatuba, distrito leopoldinense localizado entre as
duas cidades. A programação consiste em missa campal na Praça da Santa Cruz, onde
se localiza o principal símbolo religioso do distrito, a Capela da Cruz Queimada, seguida
de procissão até a Igreja de Nossa da Piedade, onde a imagem da santa de mesmo
nome é abençoada. O presente trabalho problematiza a possibilidade de que essas
peregrinações possam ser inseridas, inicialmente, no calendário cultural das duas
cidades e, posteriormente, no calendário nacional de peregrinações, de forma a
fomentar o turismo religioso na região. Partimos da perspectiva de que na
contemporaneidade a experiência religiosa e a experiência turística “podem se imbricar
num mesmo contexto, sendo que para isso é preciso “reconhecer que os próprios
‘olhares’ (religioso e turístico) passam por um processo de transformação no mundo
contemporâneo” (STEIL; CARNEIRO, 2008, p.108). Conforme os autores “essa nova
modalidade de peregrinação, a que provisoriamente atribuímos o rótulo de
‘moderna’ parece re-vitalizar o fenômeno da peregrinação, não só como experiência
religiosa, de um lado, mas também como expressão cultural (turística), de outro”
(ibidem). Cremos também que a junção do religioso com o turismo pode fomentar o
desenvolvimento sócioeconômico da região. Utilizaremos como referenciais teóricos os
autores supracitados, além de Emerson Silveira (2007) Edênio Vale (2006), Antônio
Giddens (1991) Zygmunt Bauman (1999), dentre outros, de modo a entendermos o
turismo religioso enquanto fenômeno religioso da modernidade.
Palavras-chave: Turismo religioso; modernidade; Piacatuba; Capela da cruz queimada.

Introdução
A virada do século XX para o século XXI se traduziu em transformações
em todas a dimensões sociais, inclusive na religiosa. Na dimensão política, por
exemplo, fenômenos como o crescimento do segmento evangélico e retração

229
do segmento católico, bem como o crescimento das chamadas bancadas
evangélicas nos congressos, podem ser destacados, sobretudo na América
Latina. Na dimensão social, neste continente, mais especificamente no Brasil,
verificou-se o surgimento de peregrinações que seguem o modelo da
Caminhada de Santiago de Compostela, na Espanha.
Nos municípios de Leopoldina e Cataguases, na Zona da Mata mineira,
respectivamente em 2013 e 2015, surgiram duas peregrinações, cujo destino é
o mesmo: o distrito leopoldinense de Piacatuba. No decorrer deste artigo,
detalharemos essas caminhadas, as quais, a partir deste ano, tiveram seu nome
unificado, passando a chamar Caminhadas da Piedade.
Antes de as descrevermos, faremos uma contextualização, com destaque
para os aspectos religiosos e para o potencial turístico de Piacatuba. Nosso
objetivo principal é discutir a possibilidade do desenvolvimento do turismo
religioso no distrito leopoldinense, uma vez que, no nosso entender, ele reúne
condições para que isso ocorra, por seu patrimônio arquitetônico, cultural e
religioso, cujo principal símbolo é a Cruz Queimada, e por sua infraestrutura,
que cada vez mais se volta para a atividade turística.

1. Piacatuba - Lugar de gente de bom coração


Uma história que começou em 1844, com a edificação de uma capela em
louvor à Nossa Senhora da Piedade (vide foto abaixo) como pagamento de uma
promessa do Capitão Domingues de Oliveira Alves, doador de uma sesmaria de
cerca de três alqueires de terra, onde seria fundado também o povoado que,
inicialmente, recebeu o nome da santa. O vilarejo surgiu mesmo antes de
Leopoldina, cidade a qual pertence hoje, cuja fundação data de 27 de abril de
1854.

230
Igreja Nossa Senhora da Piedade
De acordo com a historiadora Nilza Cantoni (2001), a construção da
capela ocorreu entre 1844 e 1850, tendo sido acompanhada pelo Padre
Francisco Ferreira Monteiro, o primeiro cura do povoado. Dez anos após, o
Curato de Nossa Senhora da Piedade53 passou a pertencer à Freguesia de São
Sebastião de Leopoldina, antiga Vila do Feijão Cru e atual município de
Leopoldina. Vale registrar que o Curato pertencia ao Bispado do Rio de Janeiro
e somente em 1897 foi transferido para a Diocese de Mariana, cidade histórica
de Minas Gerais.
Passados alguns anos, o nome do lugarejo teve que ser trocado, devido à
existência de outra localidade em Minas Gerais com o mesmo nome, o que fazia
com que as correspondências fossem extraviadas e não chegassem ao local de
destino. O nome escolhido foi Piacatuba, cujo significado é pia = coração + catu
= bom + ba = lugar, em homenagem aos índios Puris, que habitavam o local até
a chegada dos homens brancos no início do século XIX. Segundo Cantoni

53Segundo a historiadora Nilza Cantoni, em alguns registros o nome do povoado a prece como
Curato de Nossa Senhora da Piedade do Rio Pardo.
231
(2001), com base em pesquisas realizadas junto a jornais locais, o nome foi
sugerido pelo Senador da República Basílio de Magalhães.
A bucólica Piacatuba, localizada a 22 km de Leopoldina e a 26 km de
Cataguases, possui uma população residente de 1532 habitantes, conforme
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2011) habitantes,
sendo que 714 se encontram na área urbana e 818 na área rural, o que
corresponde a 46,6% e 53,4%, respectivamente. O distrito, predominantemente
rural, possui 472 domicílios (GOMES, 2015, p. 5).
Diferentemente da maioria das cidades mineiras onde as igrejas católicas
se localizam nos centros das praças principais, o que tem no distrito no lugar de
um templo é a Escola Estadual Doutor Pompílio Guimarães. À sua frente, está a
Capela da Cruz Queimada, principal símbolo religioso da cidade, ao qual
retomaremos no decorrer deste artigo.
Piacatuba se notabilizou, sobretudo, pelo Festival de Viola e
Gastronomia, que já está em sua décima sétima edição. O evento, além dos
tradicionais concursos de violeiros, reúne artistas oriundos de várias partes do
país, sendo que lá já foram realizados shows de músicos como Alceu Valença,
Almir Sater, Geraldo Azevedo e Banda de Pau e Corda, bem como turistas
vindos de várias regiões do Brasil. É também conhecida pela Festa da Cruz
Queimada, realizada todo dia 3 de maio54, e, mais recentemente, pelas duas
caminhadas de fé, que se encontram numa bifurcação da estrada de acesso das
duas cidades ao distrito, sendo que é para lá que elas se destinam. As
peregrinações acontecem agora no domingo posterior à semana do feriado de
Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.
O povoado, que é visitado sobretudo aos finais de semana por pessoas
da região, possui uma infraestrutura de restaurantes, pousadas e similares. As
principais atrações turísticas são ao Igreja Nossa Senhora da Piedade e a Capela
da Cruz Queimada. Em seu entorno existem cachoeiras, como a Poeira D’Água,
e o lago da Usina Maurício, de propriedade da Energisa e localizado no

54 A Festa da Cruz Queimada é realizada desde 1928.


232
município de Itamaraty de Minas, que também serve de atrativo natural para
turistas das cidades vizinhas.

2. A lenda da Cruz Queimada


“O sagrado é algo imputado a certos objetos, a certas coisas (animais,
manifestações da natureza), ou seja, consagra-se um ser, um objeto. O
objeto consagrado suscita sentimentos de pavor ou veneração,
apresenta-se como um ‘interdito’. O sagrado é sempre mais ou menos
aquilo que não nos aproximamos sem morrer.” (Roger Caillois)

Como referido acima, a história de Piacatuba teve início quando o Capitão


Domingos de Oliveira Alves, para cumprir uma promessa, fez a doação de uma
sesmaria, onde deveria ser construída uma igreja em louvor à Nossa Senhora da
Piedade. Para demarcar a área doada, onde também se instalou o povoado com o
mesmo nome da santa, o militar mandou erguer uma cruz confeccionada em
madeira-de-lei.
Contudo, como era comum naquela época contendas envolvendo a posse da
terra, outro fazendeiro teria reivindicado aquela gleba. Esse conflito teria dado origem
ao que mais tarde ficaria conhecido como o episódio da Cruz Queimada. De acordo
com a história oral, popular, a cruz teria sido profanada. No entanto, ela teria resistido
às escavações, aos machados e ao fogo e, por isso, se tornou uma lenda que vem
sendo cultuada através das gerações.
Para o principal símbolo religioso do distrito, foi erguida uma capela que abriga
a Cruz Queimada de Piacatuba, como é mais conhecida. A cruz atrai milhares de
devotos e peregrinos, os quais vão lhes render homenagens e pedir-lhe proteção,
além de agradecer-lhe as graças alcançadas, colocando ex-votos55 nela, como
demonstrado na foto abaixo.

55 De acordo com José Marques de Melo, a partir de Luis Saya e Luiz Beltrão, o ex-voto,
expressão atrelada à Folkcomunicação e mais conhecida na região Nordeste do país,
corresponde a “quadro, imagem, fotografia, desenho, fita, peça de roupa, utensílios domésticos,
mecha de cabelo etc., que se oferece ou se expõe em capelas, igrejas, salas de milagres,
cruzeiros, em ação de graças por um favor alcançado do céu [...]”. (MELO, 2008, p.114).
233
Capela da Cruz Queimada

Ex-votos na Cruz Queimada

A lenda da Cruz Queimada é motivo de orgulho para os moradores de


Piacatuba. Tanto é assim que no muro da Escola Estadual Dr. Pompílio Guimarães foi
pintada e contada na forma de versos.

3. As caminhadas de fé de Leopoldina e Cataguases


No ano de 2013, em Cataguases, cidade localizada na Zona da Mata
mineira, um grupo de fiéis criou a peregrinação que recebe o nome de
234
Caminhos da Piedade que, conforme informações do Jornal Leopoldinense
(Edição online de 02/09/2019) também tinha como inspiração o Caminho de
Santiago. Dois anos depois, surgiu na vizinha Leopoldina a peregrinação Fé na
estrada, organizada pela Igreja Nossa Senhora do Rosário. Ambas aconteciam
na mesma data, isto é, 1° de setembro, e tinham como destino Piacatuba, um
bucólico distrito leopoldinense localizado a 22 km do município a qual pertence
e a 26 km de Cataguases.
Devido à pandemia do COVID-19, as duas peregrinações ficaram
suspensas, mas nas edições anteriores fiéis das duas cidades e de outras
localidades da região (Itamaraty de Minas, Argirita, Muriaé etc.) participaram de
uma programação que abrange uma missa campal na Praça da Santa Cruz,
onde se localiza o principal símbolo religioso da cidade, a Capela da Cruz
Queimada, seguida de uma procissão até a Igreja de Nossa Senhora da
Piedade, levando a imagem da santa de mesmo nome, para que seja dada a
benção.
Este ano, as caminhadas foram retomadas e ambas passaram a receber o
mesmo nome: Caminhos da Piedade. O modus operandi delas também foi
modificado, sendo que os peregrinos se deslocaram de diversos pontos e se
concentraram nas cidades de Cataguases, Leopoldina e Argirita. Na primeira, os
peregrinos ficam concentrados, a partir de 4 horas da manhã, em frente ao Santuário
Santa Rita de Cássia, e de lá seguiram até Piacatuba, fazendo um percurso de cerca de
20 km. Em Leopoldina, os romeiros se encontraram na Praça Dom Helvécio, em frente
à Catedral de São Sebastião, até o distrito leopoldinense, percorrendo 23,5 km. Em um
determinado ponto da estrada de acesso à Piacatuba, as caminhadas se cruzaram,
como nos anos anteriores.

235
Caminhada da Piedade rumo à Piacatuba.

Diferente dos anos anteriores, em Leopoldina a caminhada teve como anfitriã


a Catedral em vez da Igreja do Rosário. Isso porque, segundo os organizadores do
evento, o objetivo é mobilizar o maior número de fiéis possível, razão pela qual a igreja
matriz anfitrionou aqueles que se concentraram no município. Como nas edições
anteriores, ao chegarem em Piacatuba, os peregrinos participaram de uma missa
campal na Praça da Santa Cruz, onde fica a Capela da Cruz Queimada. Sacerdotes das
igrejas de Cataguases e Leopoldina foram responsáveis pela celebração.
Embora o número de fiéis que participaram dessas últimas caminhadas seja
impreciso, de acordo com os jornais das duas cidades houve um crescimento
considerável. De acordo com o site da Diocese de Leopoldina, cerca de 2 mil fiéis
participaram do evento interparoquial.

4. O turismo religioso: um fenômeno da modernidade


A partir do ano 2000, de acordo com Steil e Carneiro (2008), começaram
a surgir em diferentes estados brasileiros as peregrinações que seguem o
modelo do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Com base nos
autores, podemos destacar como as primeiras a surgirem: Caminho da Luz, em
Minas Gerais; Caminho do Sol e Caminho da Fé, ambos em São Paulo; Caminho
de Anchieta, no Espírito Santo e Caminho das Missões, no Rio Grande do Sul.
Alguns desses caminhos, como o da Fé e o das Missões foram ressignificados,

236
enquanto outros foram “inventados”, nos termos de Steil e Carneiro (2008, p.
107).
Ainda conforme os dois autores, na contemporaneidade a experiência
religiosa e a experiência turística “podem se imbricar num mesmo contexto,
sendo que para isso é preciso “reconhecer que os próprios ‘olhares’ (religioso e
turístico) passam por um processo de transformação no mundo
contemporâneo” (STEIL; CARNEIRO, 2008, p. 108). Desse imbricamento, surge
como um fenômeno tal-qualmente contemporâneo o turismo religioso, em
grande medida fomentado pelas peregrinações e pelas chamadas caminhadas
de fé.
É importante ressaltar, como fruto da globalização típica da
contemporaneidade que corrobora para os “deslocamentos espaciais” (STEIL;
CARNEIRO, 2008, p. 105), a existência de novos atores sociais com atuação em
várias searas da sociedade. No caso do turismo, podem ser destacados os
turistas, os peregrinos, os viajantes, os mochileiros e até mesmo os “andarilhos”
e “vagabundos”56, nos termos de Zygmunt Bauman (1999, p. 75), para quem
“hoje em dia estamos todos em movimento”.
Transportando-nos para o fenômeno religioso, como assevera Magnani
(2009, p. 20), parafraseando Clifford Gertz (1978),
Pode-se dizer que na base de toda experiência religiosa há, em graus
variados, uma tríplice procura: a busca de uma justificativa (e alívio)
para o sofrimento, de um sentido para a perplexidade e a percepção
da finitude e de uma motivação para o comportamento moral
(MAGNANI, 2009, p. 20).

Com base no exposto, compreendemos que a experiência religiosa


possui motivações distintas. O fato de as pessoas estarem em constante
movimento no mundo contemporâneo também é movido por diferentes

56O filósofo polonês Zygmunt Bauman, ao usar o termo “vagabundos”, alude aos refugiados da
guerra, da fome e de outras circunstâncias sociais desfavoráveis. O autor diferencia os
“vagabundos” dos turistas da seguinte forma: “Os turistas ficam ou se vão a seu bel-prazer.
Deixam um lugar quando novas oportunidades ainda não experimentadas acenam de outra
parte. Os vagabundos sabem que não ficarão muito tempo num lugar, por mais que o desejem,
pois provavelmente em nenhum lugar onde pousem serão bem-recebidos. Os turistas se
movem porque acham o mundo a seu alcance (global) irresis-tivelmente atraente. Os
vagabundos se movem porque acham o mundo a seu alcance (local) insuportavelmente
inóspito”. (BAUMAN, 1999, p. 89).
237
razões. Retomando Steil e Carneiro (2008, p. 108), é possível depreender que a
experiência religiosa e a experiência turística podem se imbricar num
determinado contexto. É preciso considerar, ainda, que motivos diferentes
levam as pessoas a participarem dessas peregrinações. Tanto podem estar em
busca de experiências religiosas ou turísticas, ou de ambas, quanto estarem em
busca de experiências outras.
Não é nosso objetivo neste trabalho nos aprofundarmos nessa reflexão
sobre o que tem levado as pessoas, fiéis ou não, a se deslocarem especialmente
para essas caminhadas de fé, as quais têm proliferado no Brasil e no mundo.
Como já adiantado, nossa pretensão é discutir a possibilidade de
desenvolvimento do turismo religioso no distrito leopoldinense de Piacatuba,
assunto sobre o qual discorreremos no próximo capítulo.

5. A perspectiva do desenvolvimento do turismo religioso em Piacatuba


“[...] É necessário proteger o sagrado de todo o comércio com o
profano. Este, com certeza, faz-lhe perder suas qualidades específicas,
esvazia-se de uma só vez da virtude poderosa que ele continha”
(Roger Caillois).

Piacatuba possui uma localização privilegiada, pois está a 257 km do Rio


de Janeiro, a 118 km de Juiz de Fora (cidade polo da Zona da Mata) e a 322 km
da capital mineira. Além disso, é circundado por muitas pequenas cidades.
Como já descrito acima, possui uma infraestrutura razoável de pousadas e
restaurantes, além de ser palco de um Festival de Viola e Gastronomia que atrai
turistas de toda parte do Brasil. E conta com festejos religiosos, como as próprias
caminhadas, o Dia da Cruz Queimada, a Cantata de Natal, além das tradicionais
festas juninas com suas quadrilhas e quermesses.
O distrito leopoldinense também exibe um patrimônio arquitetônico e
cultural diferenciado, com seus casarões no entorno da praça, onde também se
localiza um braço da Secretaria de Cultura de Leopoldina, instalada num desses
casarões. Lá são realizadas mostras de fotografia, de artes plásticas e feiras de
artesanato, geralmente de artistas e artesãos da região, o que contribui para a
valorização da cultura local.

238
As caminhadas da fé que se destinam a Piacatuba, que começaram
tímidas e que na última edição teve um aumento considerável do número de
participantes segundo seus organizadores, são vistas pelo atual prefeito de
Leopoldina, Pedro Ribeiro Junqueira, como passíveis de fomentar o turismo
religioso, segundo declarou para o Jornal Leopoldinense, na edição do dia 17
de outubro deste ano.
Como assinalado por Steil e Carneiro (2008, p.108) “essa nova
modalidade de peregrinação, a que provisoriamente atribuímos o rótulo de
‘moderna’ parece re-vitalizar o fenômeno da peregrinação, não só como
experiência religiosa, de um lado, mas também como expressão cultural
(turística), de outro”. Diante de todo o exposto, depreendemos que a junção do
religioso com o turismo, devido à tradição religiosa do distrito, pode resultar no
desenvolvimento sócioeconômico da região, gerando novos empreendimentos
e, por consequência, novos empregos, o que é típico da atividade turística, haja
vista exemplos dos santuários existentes no país.
É necessário, no entanto, que esse desenvolvimento socioeconômico
ocorra de forma sustentável, sem colocar em risco o patrimônio natural que
circunda o distrito, bem como o seu patrimônio arquitetônico e cultural, de
modo que o sagrado e o profano possam coexistir de forma equilibrada, sem
que haja o esvaziamento do primeiro, como preconizado por Roger Callois na
epígrafe deste tópico.

Conclusão
Como referido na introdução deste artigo, o século XXI foi marcado pelo
surgimento de novos fenômenos na dimensão religiosa. Um deles é a eclosão
do turismo religioso em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, o qual é
fomentado, em larga medida, pelas peregrinações no estilo do tradicional
Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, realizado desde o século IX.
Embora já existam há muitos anos, e realizados por motivações de cunho
religioso diferentes, as caminhadas de fé estão perfeitamente sintonizadas com
a contemporaneidade, que tem como uma das características principais os

239
“deslocamentos espaciais” em ritmo frenético. A pandemia do COVID-19, um
acontecimento mundial ocorridos nos anos 2020 e 2021 colocou um freio
nesses deslocamentos, mas tão logo ela foi controlada, os diferentes atores
sociais voltaram a transitar pelo planeta. O turismo, uma potente atividade
econômica, foi retomada quase que imediatamente. Com o turismo religioso,
que entrecruza as experiências religiosa e turística, não foi diferente. Tão logo
foi possível, as peregrinações voltaram a ocorrer.
Na pequena e singela Piacatuba, as caminhadas oriundas de Leopoldina
e Cataguases, não só foram retomadas, como ganharam novos contornos,
tornando-se maiores não somente em termos numéricos, mas também em
matéria de visibilidade, pois foram muito mais divulgadas nas mídias regionais e
nas redes sociais do que nos anos anteriores Também passaram a ter o
reconhecimento por parte da Igreja Católica, que investiu mais na organização
das mesmas, e do poder político local de que têm potencial para o fomento do
turismo religioso na região, contribuindo para o seu desenvolvimento
socioeconômico.
Embora não desconsideremos os conflitos de interesse que possam advir
do turismo religioso, pois envolve várias agências públicas – questão que
pretendemos desenvolver em um próximo trabalho acadêmico sobre esta
temática -, e ainda que não tenhamos empreendido maiores investigações
sobre o tema, depreendemos que os caminhos da fé existentes hoje em
Leopoldina e Cataguases possam se desdobrar em caminhos que levem à
retomada dessa microrregião da Zona da Mata, hoje tão empobrecida e tão
esvanecida do mapa político, econômico e cultural de nosso país.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. As consequências humanas da Globalização: Jorge Zahar
Editor Rio de Janeiro 1999.
SESQUICENTENÁRIO DE PIACATUBA 1851 – 2001. Leopoldina, MG: História e
Memória. Disponível em:
https://cantoni.pro.br/?s=a+constru%C3%A7%C3%A3o+da+capela+piacatuba.
2001. Acesso em: 15, set, 2022.

240
PIACATUBA: EVOLUÇÃO ADMINISTRATIVA E ORIGEM DO NOME. Leopoldina,
MG: História e Memória. Disponível em:
https://cantoni.pro.br/2001/09/01/piacatuba-evolucao-administrativa-e-origem-
do-nome/. 2001. Acesso em: 15, set, 2022.
CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1979.
GOMES, Eulália de Lima. A valorização da cultura no novo rural mineiro:
Piacatuba sob as lentes da Economia Criativa. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal de Viçosa, Abril de 2015.
MAFRA, Clara e ALMEIDA, Ronaldo de (Orgs). Religiões e Cidades: Rio de
Janeiro e São Paulo. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
MELO, José Marques de. Mídia e cultura Popular: História, taxonomia e
metodologia da Folkcomunicação. São Paulo: Paulus, 2008.
STEIL, Carlos Alberto e CARNEIRO. Peregrinação, Turismo e Nova Era: Caminhos
de Santiago de Compostela no Brasil. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro,
28(1): 105-124, 2008.

241
CAMINHADA DA FÉ: A DEVOÇÃO MARIANA À APARECIDA
Rosiléa Archanjo de Almeida
Doutoranda PPCIR (UFJF), CAPES.
rosileaarchanjo@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo apresenta a peregrinação a pé feita por fiéis da cidade de


Juiz de Fora à Aparecida (SP), onde localiza-se o Santuário Nacional em honra à Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, padroeira do Brasil. Analisamos os discursos dos
peregrinos juiz-foranos que percorrem o trajeto de 297Km na chamada “Caminhada da
Fé”. Enfrentam no percurso, adversidades, como calo nos pés, cansaço corporal e
mental. Sabendo de tais condições, nos questionamos: o que motiva estes sujeitos
religiosos a participarem desta Caminhada? Acreditamos que além da fé, a pertença a
um grupo social são os motes para a participação na Caminhada. Para chegar aos
objetivos deste artigo, apresentamos as falas dos caminhantes, a partir da série
“Caminhos da Fé”, publicada no jornal impresso Tribuna de Minas, e em suas mídias
sociais. O artigo se mostra oportuno ao GT proposto, por se tratar de uma pesquisa do
lócus religioso fora do estado de Minas Gerais, discutindo a temática da religião na sua
relação com o espaço público.

Palavras-chave: Caminhada da Fé; Peregrinação; Nossa Senhora Aparecida; Devoção;


Espaço Público.

Introdução
Sabemos que as peregrinações já foram temas de diversos artigos,
dissertações e teses, como de Emerson Silveira (2007), Jaqueline Moreira (2007)
e Haudrey Calvelli (2006), onde encontramos referências sobre o turismo
religioso no Brasil, e sobre os “caminhos devocionais” que levam à Aparecida.
Retomamos a este tema, inclusive utilizando tais obras, para ampliar o
conhecimento a respeito de mais uma peregrinação, com um traçado diferente
dos demais, assim também com as diferentes formas da expressão religiosa dos
peregrinos da Caminhada da Fé.
A “Caminhada da Fé” é uma peregrinação onde se dá a aplicação da
experiência religiosa individual a partir da fé, e para além, passa a ser também
um “lugar” de entrelaçamento coletivo e social. Assim como o modelo de
percurso do Caminho de Santiago de Compostela57 na Espanha, e do Caminho
da Fé que liga cidades do interior de Minas Gerais à Aparecida, a Caminhada
que sai de Juiz de Fora é resignificada

57Os Caminhos de Santiago são os percursos dos peregrinos que vão a Santiago de Compostela
desde o século IX para venerar as relíquias do apóstolo Santiago Maior.
242
pelas tradições locais. O propósito dos idealizadores dos caminhos
nacionais para peregrinação é possibilitar um lugar para a realização
de uma experiência semelhante, no Brasil, àquela vivenciada no
caminho europeu, bem como a divulgação do turismo, visando ao
desenvolvimento econômico das regiões que circundam esses
caminhos (CALVELLI, 2006, p. 48).

Em 2019, a “Caminhada da Fé” foi realizada pela sétima vez, com a


participação de oitenta e sete participantes.

1. A devoção a nossa senhora aparecida


A devoção à Nossa Senhora Aparecida remonta a outubro de 1717,
quando os pescadores Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso
organizavam uma pescaria em favor à comitiva de Dom Pedro Miguel de
Almeida Portugal. Ao lançarem suas redes nas águas do Rio Paraíba, após
tentativas frustradas, depararam com uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição, que se encontrava sem a cabeça e coberta pelo lodo do rio.
Prosseguindo o trabalho, lançaram novamente a rede e resgataram a cabeça da
mesma “santa”, e a partir daí a pescaria fez-se abundantemente.
O fato se espalhou levando os moradores do Vale do Paraíba a chamar a
imagem de a “Aparecida”. No caminho de Itaguaçú, por volta de 1745, foi
construída a capela do Morro dos Coqueiros, iniciando as romarias e formando-
se uma vila ao redor da capela. No dia 08 de setembro de 1904, realizou-se a
festa de coroação por aprovação oficial da Igreja, através do pontificado do
Papa Pio X. Na ocasião a Princesa Isabel doou uma coroa de ouro 24 quilates e
realizou a jura, registrada nos livros da Cúria da Basílica (MENDES, 1995). Em
1929, Nossa Senhora foi proclamada oficialmente a padroeira e “Rainha do
Brasil”, por provisão do Papa Pio XI. E a partir de 11 de novembro de 1955,
começou a ser construída a nova Basílica, inaugurada em 1984.
Os traços históricos e a consequente devoção mariana reforçam o motivo
das peregrinações realizadas ao Santuário Nacional e enfatiza
[...] mais do que elementos de fé, de crença, de peregrinação e de
romaria; transformam-se num espaço no qual se desenrolam práticas de
deslocamento e consumo que, acopladas à forma como a religião se
apresenta, fabricam um novo tipo de arranjo social (HERVIEU-LÉGER
apud SILVEIRA, 2007).

243
Motivados pela fé, pedidos de intercessão e promessas alcançadas, os
devotos realizam romarias como o “Caminho da Fé58” (cf. SILVEIRA, 2007), que
hoje recebe ampla divulgação, incentivo público e privado como promoção.

2. Breve histórico da caminhada da fé


A Caminhada da Fé de Juiz de Fora segue o exemplo de peregrinações
nacionais e internacionais como o Caminho de Santiago de Compostela, na
Espanha, que será cursado neste ano por um grupo de peregrinos que
percorrem o trecho entre Juiz de Fora e Aparecida.
Conforme os organizadores, a primeira Caminhada a pé que partiu de
Juiz de Fora em 2012, contou com a presença de doze homens, que dispunham
apenas de barracas, sem outra estrutura. Ao idealizar e planejar o trajeto, Marco
Aurélio acreditava que Juiz de Fora sendo uma cidade, “majoritariamente
católica” (CAMPOS, 2019), poderia ter um percurso semelhante aos demais com
destino à Aparecida.
No primeiro ano, a gente foi no peito e na raça. A gente pegou um
carro velho aqui, já conhecia um pouco o trajeto. Foram três em um
carro, e fomos marcando: aqui a gente vai dormir. Mas a gente não se
organizou muito não. Vamos deixar Deus agir, né? (CAMPOS, 2019).

Em 2015 as três primeiras mulheres participaram da Caminhada. Em


2018, o arcebispo de Juiz de Fora Dom Gil Antônio Moreira celebrou uma Missa
às 03h, antes da saída dos peregrinos, partindo próximo à entrada do Estádio
Municipal Radialista Mário Helênio. Em 2019 os peregrinos também saíram do
mesmo local após Missa.

3. A hermenêutica dos testemunhos de uma caminhada da fé


A Caminhada da Fé, segundo Miriam (BRANDÃO, 2019), é promovida
sem fins lucrativos. Entretanto cada participante deve contribuir com
quatrocentos reais que ajudará nas despesas durante o percurso. Este valor

58Percurso entre os estados de São Paulo e de Minas Gerais em direção ao Santuário de


Nacional. Neste caminho os participantes levam entre 14 a 21 dias para se chegar a Aparecida,
caminhando de 20 a 30 km diários a partir de Tambaú.
244
[...] paga, camisa, boné, a caminhonete, o caminhão, todas as
refeições: café da manhã, almoço e jantar. A gente leva um cozinheiro,
então são dois motoristas e um cozinheiro que já vai no caminhão e
prepara tudo. O cardápio já vai programado daqui [Juiz de Fora]. O
valor paga também o ônibus de volta. O ano passado foram três
ônibus especiais (BRANDÃO, 2019).

Durante o ano, realiza-se uma vez ao mês um treino, no tamanho


semelhante ao percurso diário do trajeto principal.
Na Caminhada da Fé os peregrinos partem de Juiz de Fora à Aparecida e
percorrem mais de 300Km pelos seguintes distritos e cidades: Torreões (JF),
Santa Bárbara do Monte Verde (MG), São Pedro de Itaguá (MG), Santa Isabel
(Valença-RJ), São Joaquim (RJ), Vargem Grande (Resende-RJ), Itatiaia (RJ),
Queluz (SP), Cachoeira Paulista (SP) e Aparecida (SP). Miriam descreve que o dia
dos peregrinos inicia às 03h quando se levantam para tomar o café. Às 04h com
a meditação do terço, rumam ao percurso pré-determinado, de
aproximadamente sete horas diária. Ao chegar no destino, aguardam até o
último peregrino para que todos possam almoçar juntos. “A tarde e à noite
ficam livres para o descanso e para a cura de possíveis machucados” (BRNDÃO,
2019).
Uma caminhonete dá o apoio com alimentação de cinco em cinco
quilômetros. “Nela tem água, fruta e resgata o pessoal” (BRANÃO, 2019).
Conforme Marco Aurélio “se alguém machucar, o carro pega e leva a pessoa
para onde a gente vai dormir e depois volta de novo para dar apoio ao resto
das pessoas que ficaram pra traz” (CAMPOS, 2019). Além da caminhonete, um
caminhão “leva toda a bagagem. A gente só caminha com água, uma
mochilinha mesmo. Tem gente que não caminha com nada” (BRANDÃO, 2019).
Notamos que nesse caso “é representado por aquele que faz uso do Caminho
em grupos e dispõem de uma infraestrutura ambulante ao longo da rota”
(CALVELLI, 2006, p. 134).
Em nossa pesquisa, verificamos nos discursos dos romeiros da
Caminhada, que a motivação procede da fé que professam em Deus e da
devoção a Nossa Senhora Aparecida. Na série “Fé na Estrada”, publicada no
jornal Tribuna de Minas, a jornalista Regina Campos também aponta tal

245
devoção como norteadora do percurso. Para a repórter kardecista, o objetivo de
sua série de reportagens parte de seu interesse em
[...] saber quem são esses devotos e porque eles caminham a pé até
o santuário, mostrar a rotina da viagem, as refeições, os alojamentos,
os lugares por onde passam os romeiros, os voluntários que abrigam e
ajudam a alimentar os peregrinos e descobrir a fé que move todas
essas pessoas (CAMPOS, 2019).

Durante a série, observamos nos discursos a composição da rotina diária


dos caminhantes.
Pomadas e spray analgésicos são espalhados por pernas e costas.
Antes de pegar a estrada, pomadas antiassaduras e fitas adesivas dão
proteção aos pés. Após a caminhada, água fria da fazenda serviu para
aliviar os pés doloridos. Rogo que consigam vencer as dores e o
cansaço e cheguem andando ao Santuário de Aparecida (CAMPOS,
2019).

Tais machucados ameaçam até a chegada ao destino como observa


Miriam na chegada em um local de repouso.
Às vezes você chega meio dia, uma hora. Você olha para a cara de
todo mundo. Como vão caminhar amanhã? Todo mundo estourado,
passa o resto da tarde curando as bolhas. No dia seguinte, três e meia,
quatro horas, tomando o café, tá todo mundo rindo até as orelhas.
Parece que curou todo mundo (CAMPOS, 2019).

Além da fé, podemos supor que o entrosamento entre os romeiros


reforça a motivação para a Caminhada. A professora aposentada Anamaria, por
exemplo, recolhe o lixo e limpa os locais onde se hospedam. Na saída para a
estrada, puxa o terço e está sempre no pelotão da frente. Gosta de chegar cedo
à próxima cidade para deixar tudo pronto para quando todos chegarem.
Carrega as malas, arruma os colchonetes para as companheiras que chegam
cansadas (CAMPOS, 2019). Regina Campos (2019) conta que no meio das
dores, o professor de geografia Carlos Ney, nascido em Astolfo Dutra (MG),
interage com todos, faz piada e não deixa ninguém desanimar.
Verificamos a partir dos discursos, que a pertença ao grupo e a simples
participação na Caminhada, também são estímulos ligados à causa maior de se
unir aos demais do grupo no trajeto. Claudio Bonadim, por exemplo, disse que
ficou sabendo da Caminhada através de uma reportagem há dois anos. Foi de
Brasília para Juiz de Fora, de ônibus (16 horas de viagem). Assim, a
peregrinação seria mais do que uma experiência, seria “uma forma de

246
deslocamento espacial, categorias de compreensão, que expressam [...] formas
de sociabilidade humana: a peregrinação, remetendo ao modelo de Victor
Turner de communitas (AMIROU apud SILVEIRA, 2007).
Nos discursos de experiência da fé, apontamos o relato de Miriam
Brandão, que em 2016 realizou sua primeira Caminhada, tendo um significado
especial, pois sua família passava por problemas familiares com um filho, e ela
tinha como propósito de “ir não para pagar promessa”, mas para se entregar.
“Sabe, aquele momento em que eu precisava refletir comigo mesma o meu lado
espiritual, alimentar, procurar força para enfrentar problemas. Foi muito
marcante!” (CAMPOS, 2019). O que pode se associar “à experiência de um
caminho interior a ser percorrido por cada indivíduo na direção do
‘autoconhecimento’” (CALVELLI, 2006, p. 133).
Observamos nos depoimentos a experiência com o sagrado no decorrer
do percurso, “onde pode-se dizer que a peregrinação marca o tempo e organiza
o espaço, deixando para trás o mundo profano e aproximando do sagrado”
(CALVELLI, p. 2006, 140).
Tem muitos casos, e não são poucos não, de pessoas que caem na
exaustão e a gente consegue vencer com o Espírito Santo. É uma
coisa abençoada. [...] Então superação, muita devoção, é muita
adoração, que a gente entrega tudo a Nossa Senhora e a Deus. O
Espirito Santo a gente clama ele direto. Teve pessoas que já travou no
meio do caminho, de todo mundo em volta dela, rezando, invocando,
aí a pessoa vai (BRANDÃO, 2019).

Para Regina (CAMPOS, 2019), a fé demonstrada pelos caminhantes é


uma resposta para seu questionamento inicial que não pode ser dita, e sim
vivenciada.
O corpo dói, mas a mente ignora, e as pernas teimam em seguir
adiante. O que tenho presenciado nestes dias acompanhando os
peregrinos que seguem de Juiz de Fora ao Santuário de Aparecida é
algo difícil de ser compreendido por uma pessoa sem fé. A fé vence
toda e qualquer dor (CAMPOS, 2019).

Conclusão
Concluímos, acreditando o que “confere à peregrinação um caráter
essencialmente universalista, será sua capacidade de absorver e refletir uma
multiplicidade de discursos e se capaz de oferecer aos romeiros o que cada um
deseja (EADE & SALLNOW, 1991, p. 15).
247
A Caminhada se transforma para os participantes num ritual de
significados e práticas, aliado ao discurso oficial da experiência da fé.

Referências
BRANDÃO, Miriam. Entrevista concedida à Rosiléa Archanjo, 09 mai. 2019, na
Universidade Federal de Juiz de Fora situada em Juiz de Fora na Rua José
Lourenço Kelmer, s/n, São Pedro.
CALVELLI, Haudrey Germiniani. A “Santiago de Compostela” brasileira: Religião,
turismo e consumo na peregrinação pelo Caminho da Fé. Juiz de Fora, 2006.
Disponível em: http.:
<https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/3262/1/haudreygerminianicalvell
i.pdf>. Acesso em: 12 Mai. 2109.
CAMPOS, Regina. Fé na Estrada. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 16 Jun. 2019. à
04 Ago. 2019. Caderno Dois. Disponível em: <http:
www.tribunademinas.com.br>. Acesso em 06 Ago. 2019.
EADE, J & SALLNOW, Eds. Contesting the Sacred: the Antropology of cristian
piligrinage. London and New York, Routledge, 1991.
MENDES, G.; MARCOVICCHIO, M. Nossa Senhora Aparecida. Aparecida Santa
Cidade. Roteiro de Dorinho Marques e Dori Neto. Aparecida: Reserva Especial
Cinema e Vídeo; Mário Marcovicchio Produções, 1995. 1 videocassete (40 min.),
VHS, son., color.
SILVEIRA, Emerson Sena da. Turismo Religioso no Brasil: uma perspectiva local e
global. 2007. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/rta/article/view/62606/65394>. Acesso em: 12
Mai. 2019.

248
GT 11 - O CATOLICISMO ENTRE OS DIREITOS HUMANOS E OS
DIREITOS DIVINOS

Prof. Dr. Rodrigo Portella (UFJF)


Me. Paulo Victor Zaquieu-Higino (UFJF)
Me. Nilmar de Sousa Carvalho (UFJF).

Ementa: A civilização ocidental, apesar das constantes inflexões que tem sofrido
- sobretudo na contemporaneidade - está de tal maneira eivada de traços
cristãos que, em muito, tais traços – como, por exemplo, princípios morais
cristãos - são reconhecidos nas várias esferas da gestão pública e no cotidiano
da vida social. Contudo, a partir do recrudescimento de conflitos envolvendo os
mais variados segmentos religiosos e não religiosos, o catolicismo também tem
enfrentado conflitos (internos e externos a ele). Estes conflitos se dão,
principalmente, no âmbito de disputas internas relativas à discussão sobre qual
deva ser a missão da Igreja no mundo (moderno), e interferem no
posicionamento da Igreja diante de pautas globais e locais, como: economia,
guerras, direitos reprodutivos e sexuais, uso de recursos naturais, entre outras
pautas visibilizadas por movimentos sociais. A partir de tal cenário, o GT
pretende reunir pesquisadoras e pesquisadores com interesse em discutir
temáticas relacionadas ao papel da Igreja na sociedade ao longo da história,
especialmente no que diz respeito à: proteção dos direitos fundamentais do ser
humano; influência da Doutrina Social da Igreja na construção de direitos
trabalhistas; concepção de pessoa humana à luz da Declaração Universal dos
Direitos Humanos e da doutrina da Igreja; direitos da pessoa à liberdade de
culto, de maneira privada ou pública; relação entre a liberdade religiosa e a
política; devoções populares e sincretismos ante o olhar da hierarquia; discursos
e reações que se entendem como conservadores e tradicionais na Igreja. Em
síntese, coloca-se a pergunta: até que ponto há convergências e divergências
entre as denominadas leis divina e natural, propugnadas pela Igreja, e a
compreensão moderna ocidental de Direitos Humanos, com suas respectivas
consequências práticas e legais na sociedade contemporânea?

Palavras-chave: Igreja Católica; Direitos humanos; Igreja e Sociedade;


Modernidade.

249
UM “GRITO DO NORDESTE” BRASILEIRO DE 1967: OS DIREITOS
HUMANOS E DIVINOS POR MEIO DA AÇÃO CATÓLICA RURAL
Felipe de Lima França
Graduando em História pela
Universidade Federal de Pernambuco.
felipe.mazzapx@gmail.com

Severino Vicente da Sailva


Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco
severino.vsilva@ufpe.br

Resumo: A Ação Católica Rural (ACR) surgiu como uma proposta de evangelização das
pessoas do campo, iniciando em Recife em 1964 a convite de Dom Hélder Câmara a
um padre francês de nome Joseph Servat, e que se espalhou por todo o nordeste
brasileiro. Em 1967, inspirados na encíclica de Paulo VI acerca da promoção do
homem “Populorum Progressio” (O desenvolvimento dos povos) surgiu o “Grito do
Nordeste”, jornal trimestral de comunicação elaborada pelas próprias equipes
responsáveis dessas experiências e publicadas a partir do mesmo ano como um dos
importantes frutos dessa promoção. São vários os temas e as provocativas abordadas
em cada edição, encontrando uma colaboração em rede que envolve os líderes
regionais e nacionais, a Igreja, os estados nordestinos, os homens e as mulheres, os
letrados e os analfabetos, os ministros ordenados e o povo, os anônimos e invisíveis, os
periféricos e marginalizados, entre tantos outros. Dessa forma, o presente trabalho se
propõe a isolar os quatro primeiros números contemplando assim todo o ano de 1967,
e identificar como a ACR fez, por meio desse instrumento, para assumir posições tanto
de intermediação e ponte entre os direitos divinos com os direitos humanos, como
também de conscientização de direitos silenciados ou suprimidos, apagados ou
esquecidos.
Palavras-chave: Ação Católica Rural - ACR; Movimentos Sociais; Igreja Católica.

Introdução
A Ação Católica Rural - ACR - foi um dos movimentos católicos que tinha
como campo de missão e evangelização o meio rural, iniciando na Arquidiocese
de Olinda e Recife - AOR - com sede na capital pernambucana, no Recife. O
convite para iniciar essa experiência foi feito do recém-empossado arcebispo
dessa arquidiocese, Dom Hélder Câmara59, a um padre de nacionalidade
francesa chamado Joseph Servat, experiente em trabalhar na Ação Católica em
seu país de origem. Além do convite do arcebispo, sua chegada foi possível por
causa do envio dos padres da Fidei Donum (O dom da Fé, publicada em abril

59 6º Arcebispo da AOR de 1964 a 1985, falecido em Recife no ano de 1999.


250
de 1957). De acordo com Silva em seu livro Entre o Tibre e o Capibaribe: os
limites do progressismo católico na Arquidiocese de Olinda e Recife (2014, p.
171-172), essa encíclica foi uma espécie de convocação do papa Pio XII60 aos
padres europeus para a evangelização da África, aperfeiçoada depois por João
XXIII61 incluindo também América Latina após a Revolução Cubana (Cuba,
1953-1959).
Na entrevista de história de vida que Montenegro fez com Servat em
1997, mas publicada na íntegra no livro Travessias: padres europeus no
nordeste do Brasil (2019, p. 257-258) o padre afirmou que o movimento
desenvolveu de maneira rápida, procurando conscientizar os camponeses em
uma nova mentalidade de pastoral na Igreja do Nordeste, para também mudar
as mentalidades e as estruturas socioeconômicas, mirando a libertação de tudo
que impedia a igualdade e a afirmação dos povos empobrecidos.
O boletim o Grito do Nordeste é um dos frutos da experiência da ACR,
com periodicidade trimestral, iniciando no ano de 1967, dois anos após o início
das atividades e a chegada de Servat em Recife (PACHECO, 2012, p. 158-159;
ABREU E LIMA, 2018, p. 90-91). Todo o acervo desse movimento está sendo
organizada pelo Núcleo de Documentação sobre os Movimentos Sociais Dênis
Bernardes da Universidade Federal de Pernambuco - NUDOC/UFPE62, e aos
poucos sendo disponibilizada para acesso ao público por meio digital no
Repositório da UFPE63.
A escolha de trabalhar com um ano inteiro se deu pelo fato do boletim se
inspirar no Calendário Litúrgico da Igreja Católica, sendo a história contada com
viés cristão, da Páscoa onde se celebra a ressurreição de Jesus Cristo, ao Natal,
onde se celebra o nascimento de Jesus. Todos os quatro primeiros números do

60 Cardeal Eugenio Pacelli (Roma, 2 de março de 1876 – Castelgandolfo, 9 de outubro de


1958); 260º Papa da Igreja Católica Romana, adotou o nome de Pio XI e governou de 1939 a
1958 (19 anos).
61 Cardeal Angelo Roncalli (Sotto Il Monte, 25 de novembro de 1881 – Vaticano, 3 de junho de

1963); 261º Papa da Igreja Católica Romana, adotou o nome de João XXIII e governou de 1958
a 1963 (4 anos). Canonizado pelo Papa Francisco em 2014.
62 É um Núcleo de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) criado em 2005

por professores e alunos dos Departamentos de História, Comunicação Social e Serviço Social da
instituição; mais informações no Instagram @nudoc.ufpe.
63 Disponível em: https://attena.ufpe.br/handle/123456789/16982. Acesso em: 10 out. 2022.

251
Grito estão dentro dessas duas datas, da Páscoa ao Natal de 1967. Vale ressaltar
que o calendário cristão não começa com a Páscoa, mas com o Advento, quatro
domingos que antecedem o Natal. Entretanto, é a Páscoa o centro da fé cristã,
onde Cristo vence a morte e ressuscita, cumprindo assim sua missão de também
salvar a humanidade do pecado e da morte.
Como metodologia do nosso trabalho, escolhemos selecionar e recortar
algumas passagens que contemplem a contextualização do Grito do Nordeste
como informativo da Ação Católica Rural, delimitando seu objetivo e missão, os
conceitos que aparecem tais como Nordeste, evangelização rural e
conscientização, liberdade e libertação, direitos divinos e humanos, pecado e
morte. Ainda assim, mesmo delimitando nosso trabalho nos quatro primeiros
números do boletim, foi preciso fazer uma seleção do que iremos tratar, visto ser
impossível esgotar as questões trazidas em 1967 e/ou resumi-las em poucas
páginas.

1. A ACR e o Grito do Nordeste


A missão do boletim, de acordo com a própria fonte, é fazer com que
todas as pessoas participem dessa ressurreição de Jesus, que por algum motivo
não sabem ou não tem consciência, ou até mesmo correm o risco de estarem
conformadas ou alienadas frente à própria realidade. São estas as palavras que
o Grito do Nordeste escolheu como epígrafe e fundamento de sua missão

252
Fragmento 1: Epígrafe64

É inspirado em uma profecia do antigo testamento, mais especificamente


no profeta Isaías, que o informativo adota o nome de “Grito”. Dessa forma é
impossível também não lembrar do único profeta que aparece no novo
testamento, João Batista, que é aquele que se autointitula como a “voz que
clama no deserto e prepara o caminho do messias esperado, como disse o
profeta Isaías” (Cf. Jo 1, 23). Pensando no contexto rural do nordeste brasileiro,
no pós-golpe militar de 1964, é verossímil fazer uma ponte entre a missão de
João Batista com o jornal, onde os dois têm o mesmo objetivo, só que um no
século I e o outro no século XX, denunciando tudo o que impede o caminho
para se chegar a Jesus e conduzir para ele.

64 Jornal Grito no Nordeste. Ano I, no I: Jan/Mar 1967, p. 2.


253
Fragmento 2: Apresentação do Ano I, n 165

Outra diferença é que o grito, desta vez, não é apenas na figura isolada
do profeta, surgem outras pessoas que gritam, outras motivações para gritar,
gente de todas as idades, crianças, homens e mulheres, os maltratados e
injustiçados. Gritar faz parte da vida, e vida plena. É por meio do grito que todos
assumem também o papel de profetas e profetisas. O profeta deixa de ser uma
figura mitológica que existiu no tempo de Jesus, e passa a ter função de
proclamar o direito que todos têm de participar da vida plena, da ressurreição
de Jesus, da vitória e libertação de Cristo sobre a morte e o pecado, situados na
realidade e no tempo presente.
Também fica claro a delimitação de Nordeste mencionada pelas fontes.
Embora o movimento tenha iniciado suas atividades no Recife no ano de 1965
e onde se estabeleceu enquanto sede, em 1967 já é possível identificar
atividades em cidades de todos os estados que formam a região Nordeste (NE)
do Brasil, são eles Maranhão (MA), Piauí (PI), Ceará, Rio Grande do Norte (RN),
Paraíba (PB), Pernambuco (PE), Alagoas (AL), Sergipe (SE) e Bahia (BA).
Como já dissemos, a teologia católica aparece como pano de fundo e
linguagem escolhida para permear o conteúdo de forma simples e acessível, até

65 Idem.

254
porque não se pode esquecer que antes de tudo é fruto de um movimento
católico. Aproveitando o tema principal do primeiro número, a Páscoa de Jesus,
o jornal aponta exemplos de pessoas que são invisíveis e que não participam
dessa ressurreição, ou seja, levam uma vida que não está conforme o plano de
Deus.
Pessoas com nomes comuns surgem como exemplos de casos que não
vivem conforme o plano de Deus por causa de salários incompletos e atrasados,
famílias que morrem de fome e vivem em casebres, sem roupas e sem escolas,
muitos expulsos de pequenos lotes sem poder plantar e cultivar para a própria
subsistência, alguns obrigados a migrar para as periferias das grandes cidades…;
enfim, são pessoas oprimidas pela indiferença e avareza de uma pequena
privilegiada classe possuidora do bem estar e da riqueza. João, Severino e Maria
do Carmo são esses exemplos de que já no primeiro número do informativo
saem da invisibilidade, como se pode ver no fragmento a seguir

Fragmento 3: Ressurreição66

Outra informação importante que aparece nessa edição, e que também


fundamenta a natureza do Grito do Nordeste, é a encíclica Populorum
Progressio de Paulo VI (1967) com o tema principal acerca do desenvolvimento
dos povos, “do homem todo e todos os homens”. Também não é tratada de
forma pesada e nem o assunto é esgotado, mas é tomada como ponto de
partida sem perder de vista as palavras do papa, retomando o assunto em

66 Idem.

255
outros números e em outras questões, de um jeito que seja compreendida na
vida prática das pessoas.
A ACR assume essa missão do desenvolvimento dos povos como
orientação da essência do próprio movimento e como fundamento do Grito do
Nordeste. Encontrando uma situação de realidade muito dura que negligencia
os direitos humanos e os direitos divinos do homem do campo, a Evangelização
Rural se torna esse instrumento de mediação. Além da Populorum Progressio
outros documentos importantes estão nessa orientação, tal como é o caso do
Gaudium et Spe (1965), do Concílio Vaticano II (1962-1965), selecionando uma
parte que trata da história não como algo estático, mas dinâmica por causa da
ressurreição de Jesus.
De acordo com o número 2 do Grito67, a realidade encontrada no início
das atividades é de que o povo no campo estava “desevangelizado” com um
sono profundo, com fome, sem ter consciência de que eles são todos irmãos. A
missão da ACR passou então a iluminar os corações e mostrar as situações nuas
e cruas, mas sem assumir a vez dos que devem atuar para não barrar a
independência e iniciativa das pessoas, tentando apresentar os fatos e
apresentar também como Deus vê os mesmos fatos, ensinando-os a colocar em
prática o método Ver, Julgar e Agir (PACHECO, 2012, p 99; ABREU E LIMA,
2018, p. 93).

67 Jornal Grito no Nordeste. Ano I, no II: Abr/Jun 1967.

256
Fragmento 4: Um pedaço de História, assinado por Manoel Aureliano da Silva68

Esse fragmento acima mostra um relato de um homem do campo que


partilha seu processo dentro dessa evangelização rural, apresentando o modelo
de trabalho de base que a ACR assumiu, colaborando por meio de reuniões e
encontros com vizinhos, se tornando consciente de um sono profundo que
estavam ou de uma conformidade, denunciando a vida de miséria que viviam.
Por meio da evangelização, todos se tornam filhos de Deus e irmãos, com
direitos a uma vida digna.
Outras questões que vão surgindo das análises desses números do ano
de 1967 são os resultados em andamento ou concluídos de pesquisas e
encontros que acontecem na base, ou seja, no meio rural nordestino do Brasil, e
como já foi dito, contemplam todos os estados do nordeste69. O que seria
invisível do ponto de vista macro da história, passa a ser importante e valorizado
quando essas bases se tornam os lugares de atuações, e informes como nomes
de pessoas comuns, datas de casamentos, nascimentos e batizados, reuniões e

68 Idem.
69 Jornal Grito no Nordeste. Ano I, no III: Jul/Set 1967, pp. 4-6.
257
ações pequenas, ou seja, tudo se torna importante e a rede de comunicação se
estabelece entre os membros e as regiões.
Também é notável o conteúdo voltado para o público feminino, desde
coisas simples como receitas de bolos até coisas mais sérias como a questão que
surgiu de uma possível mobilização de esterilização das mulheres, discussão
causada por meio de um projeto de política pública que responsabilizava as
mulheres pela fome no nordeste, em vista da quantidade de filhos. O Grito
também assume seu papel ao denunciar essa tentativa como ilegítima,
contribuindo numa reflexão mais profunda para compreender melhor a raiz do
problema da fome, deslocando a culpa das mulheres para a má gestão pública.
Com esse exemplo das mulheres, de conscientização e trabalho de base
na formação integral, o ser humano, na vontade de Deus, foi criado para ser
dotado de inteligência e vontade, por isso precisa desenvolver as aptidões e
qualidades para fazer render os dons e talentos, sendo responsáveis pelo
crescimento pessoal, humano e comunitário. É possível conhecer o plano de
Deus por meio de reuniões, que acabam com todo conformismo, sono
profundo e medo de lutar por melhoria de vida, dignidade e direitos. Os
sindicatos e as greves se tornaram instrumentos aliados nessa busca.
O Natal, por fim, é o tema principal do último número do ano de 1967 70.
Assim como a Páscoa, essa data também foi lida e interpretada à luz da
realidade do homem do campo nordestino. Apresenta a missão de Jesus com o
seu nascimento, mas convida a todos os leitores a assumir também sua missão
de cristãos, que é continuar a missão do próprio Jesus. Ele entra na história para
transformar, e é missão de todo cristão continuar essa transformação.
A seguir, trazemos exemplos de relatos do Agreste nordestino que
explicitam um pouco em qual nível do processo dessa evangelização eles estão
como pessoas do campo, revelando as características tão caras na
evangelização rural proposta pela ACR, tais como encontros de base e a
consciência de que a luta precisa ser feita em comunhão, e não sozinhos. É

70 Jornal Grito no Nordeste. Ano IV, no I: Set/Dez 1967.

258
dessa forma que se descobre e coloca em prática o Evangelho de Cristo, dando
um novo sentido às palavras como libertação e vida.

Fragmento 5: Depoimentos de companheiros do Agreste71

É por meio dessa evangelização e formação que as pessoas do campo


começaram a ter consciências da realidade em que se encontravam, buscando
um desenvolvimento pessoal e comunitário, e assim lutar com toda estrutura
que inibia a liberdade, que silenciava suas vozes e que impedia o
desenvolvimento dos mais pobres e vulneráveis ao manter condições de
opressão, miséria e falta de dignidade.
A partir dessa catequese, os direitos humanos negligenciados como
salários atrasados ou injustos, décimos terceiros atrasados, férias acumuladas,
carga horária abusiva, se tornaram motivos de organização dos trabalhadores
em grupos e sindicatos, sendo assim uma forma de luta e resistência (ABREU E

71 Jornal Grito no Nordeste. Ano I, no II: Abril/Jun 1967, p. 5.

259
LIMA, 2018, p. 102). Se eram filhos de Deus, era vontade divina ter vida digna e
direitos garantidos; se Jesus ressuscitou e venceu o pecado e a morte, como
cristãos também eles tinham que participar dessa festa; manter a estrutura que
impedia o desenvolvimento e os direitos humanos e divinos era colaborar com
o mal, com o pecado e com a morte.

Considerações finais
O jornal O Grito do Nordeste foi uma forma de comunicação das pessoas
do campo no nordeste brasileiro dentro do contexto do pós-golpe militar de
1964. Fruto do movimento chamado Ação Católica Rural, iniciado no Recife no
ano de 1965, lança o primeiro número no ano de 1967 assumindo um papel
profético de conscientizar os cristãos acerca dos seus direitos humanos e divinos
negligenciados por muitos motivos, além de denunciar todas as injustiças que
impediam uma vida conforme a vontade de Deus
A Ação Católica Rural não foi o único movimento católico que existiu
voltado para as pessoas do campo no Brasil. Ao longo dos números do boletim
vão surgindo outros nomes de experiências pastorais, algumas com existências
e fundações anteriores ao ano de 1965 que marca o início da ACR. Nos
números do primeiro ano do Grito do Nordeste, é a Juventude Agrária Católica
- JAC - que mais aparece em colaboração e parceria.
Por assumir esse papel profético de conscientizar os cristãos do campo
em lutar por dignidade de vida despertando de um sono profundo, com uma
linguagem simples e teológica aplicada à vida concreta dos membros, foram
perseguidos e acusados de Teologia da Libertação e também de comunismo.
Ao ter contato com o conteúdo, é possível perceber que a missão da ACR, por
meio do Grito do Nordeste, era de colocar em prática as palavras do papa Paulo
VI acerca do desenvolvimento do homem na sua integralidade, assumindo a
própria missão de Jesus e o próprio evangelho.

260
Referências
ABREU E LIMA, M. do S. de. A Ação Católica Rural: mudanças e desafios políticos
de 1978 a 1985. Revista Crítica Histórica, [S. l.], v. 9, n. 18, p. 89–118, 2019. DOI:
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em: 1 out. 2022.
MONTENEGRO, A. T. Padres e artesãos: narradores itinerantes. História Oral, [S.
l.], v. 4, 2009, p. 39 - 54. Disponível em:
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MONTENEGRO, A. T. Padres e artesãos: narradores itinerantes. História Oral, [S.
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MONTENEGRO, A. T. Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em
tempos de regime militar. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 228-249.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/topoi/a/vYyWK6G8wDMfCJjB5z9vXXL/?format=html&l
ang=pt Acesso em: 1 out. 2022.
MONTENEGRO, A. T. Travessias: padres europeus no nordeste do Brasil (1950 –
1990). - CEPE, 2019.
SILVA, Pedro Henrique Pacheco da. Ação Católica Rural: um compromisso
libertador em
Pernambuco. 2012. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
de Pernambuco, Recife, 2012.
SILVA, S. V. Dom Helder: um sopro progressista na Arquidiocese de Olinda e
Recife. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 62, n. 245, p. 133-149, 31 jan. 2002.
Disponível em:
https://revistaeclesiasticabrasileira.itf.edu.br/reb/article/view/1990 Acesso em: 1
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SILVA, S. V. Entre o Tibre e o Capibaribe: os limites do progressismo na
Arquidiocese de Olinda e Recife (1950-1990). Recife: Editora Universitária da
UFPE, 2006.
SILVA, S. V. Igreja católica e ditadura civil-militar: algumas palavras sobre a
experiência da Arquidiocese de Olinda e Recife. CLIO: Revista de Pesquisa
Histórica - CLIO (Recife. Online), n. 37, p. 70-84, Jan-Jun, 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/240168/31900
Acesso em 1 out. 2022.

261
O DIÁLOGO COM O NORTE E O SUL DO MUNDO: DOM HELDER
CAMARA AO ENCONTRO DAS JUVENTUDES (1967-1969)
José Romélio Rodrigues dos Santos Júnior
Graduado em História
pela Universidade Católica de Pernambuco
Bolsista CNPq no Laboratório História e Memória
romelio.jr@hotmail.com

João Victor de Oliveira Estevam


Graduado em História
pela Universidade Católica de Pernambuco
joaoviictor65@gmail.com

Resumo: Buscando desenvolver uma narrativa acerca do personagem Dom Helder


Camara (1964-1985), recolhemos o máximo de informações, documentos e obras
bibliográficas sobre este religioso. Quanto ao objetivo da pesquisa, buscamos analisar e
destacar elementos que apontam as ideias do arcebispo de Olinda e Recife acerca da
relevância dos jovens para combater as injustiças sociais, contextualizados pela
segunda metade do século XX, período da Ditadura Militar no Brasil, Guerra Fria no
mundo e a Revolução da juventude em vários países, na década de 1960. Diante
dessas circunstâncias, Helder viaja a diversos países realizando conferências/palestras
em vários continentes, tratando sobre a cultura de paz, direito dos jovens e seus
deveres enquanto cidadãos, a desigualdade mundial etc. Assim, analisamos os
discursos realizados por ele nos Estados Unidos (1967), Berlim (1968) e Inglaterra
(1969), em direção aos jovens do mundo. Nossa pesquisa procurou indagar-se e
responder: Qual objetivo das viagens do Arcebispo? Qual sua mensagem? Suas
denúncias, nas muitas universidades, afetaram o momento em que o Brasil se
encontrava? O que pensava acerca dos jovens? Sendo o pós-guerra um tempo
bastante conflituoso – disputa política, econômica e militar – analisar uma figura como
Helder Camara é significativo, ciente do seu envolvimento, de forma nacional e
internacional, na luta contra a miséria, atingindo vários públicos. Em suma, pontuamos
a contribuição deste trabalho para o campo da História e da Ciência da Religião, pois
lidamos com questões que envolvem a religiosidade, a política, a economia e a
juventude do período estudado.
Palavras-chave: Catolicismo; Juventudes; Diretos Humanos; Justiça social.

Introdução
Sendo Helder Camara um personagem que se constrói através de vários
acontecimentos na história do Brasil, é possível, na década de 1960, destacar a
aproximação dele com as juventudes e a cultura de paz no mundo. Para tal
feito, através da análise de discursos e jornais da época que estão relacionados a
Dom Helder, recorremos ao estudo da memória, com base em Pierre Nora, para

262
a construção de uma narrativa acerca do arcebispo de Olinda e Recife (1964-
1985), sendo um relevante personagem político-religioso.

1. A guerra fria, a juventude dos anos 60 e a ditadura civil-militar


Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mundo se organizou de
forma polarizada pelos Estados Unidos da América (EUA) e a União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), promovendo uma corrida em diversos
aspectos – econômico, militar, cultural, tecnológico etc. Assim, várias questões
foram colocadas em disputa, como produções cinematográficas e viagens
espaciais, pois era crescente a hostilidade entre esses dois blocos, firmando a
Guerra Fria. Assim, ambos buscavam países aliados, movidos por seus interesses
políticos e econômicos.
À vista disso, outra movimentação na história ocorreu durante o pós-
guerra, germinada nos Estados Unidos e países da Europa Ocidental: a
revolução cultural da juventude da década de 1960, a qual daremos ênfase
durante a nossa escrita. Este período foi marcado por diversas reivindicações
dos jovens no mundo, inconformados com as ideias e a cultura conservadora da
época, levantando as bandeiras da democracia, dos direitos humanos, da
liberdade comportamental e do anticolonialismo.
O movimento estudantil surge, na segunda metade do século XX, em
vários lugares da Europa e da América. Os estudantes, em destaque os
parisienses, compreendiam que “a repressão sexual, o racismo, o colonialismo, a
guerra, e o conservadorismo político eram faces de um mesmo sistema que
devia ser combatido” (NAPOLITANO, 2021, p. 122). Além disso, contextualizado
pela Guerra Fria, o Brasil sofreu um golpe Civil-Militar em 1964, com
interferência dos estadunidenses (FICO, 2019, p. 52). O nacionalismo e o
anticomunismo foram pertinentes para este acontecimento histórico no país.
Porém, houve resistência dos movimentos sociais, estudantis, operários etc.

263
2. A trajetória do “irmão dos pobres"
Helder Pessoa Camara, décimo primeiro filho de João Eduardo Torres
Camara Filho e Adelaide Rodrigues Pessoa, nasceu em 07 de fevereiro de 1909,
no Ceará. Além deste estado, viveu no Rio de Janeiro e Pernambuco, sem
contar as suas viagens ao exterior. Em 1923, aos quatorze anos, ingressou no
Seminário, possuindo, desde cedo, um contato com as literaturas francesa,
portuguesa e brasileira.
Em 1931, aos vinte e dois anos, foi ordenado padre ao receber uma
autorização do Vaticano, pois faltavam dois anos para a idade mínima de
ordenação ao sacerdócio. Trabalhou, enquanto esteve no Ceará, na Secretaria
de Educação do estado e atuou nas questões político-partidária, fazendo parte
do grupo fascista Ação Integralista Brasileira (AIB), “vista como uma maneira de
combate às ditas ‘ameaças à fé católica’ (comunismo, individualismo, heresias,
modernismo etc.)” (SILVA; JÚNIOR, 2021, p. 222). Entre 1930 e 1960 sua
trajetória ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, dedicando-se a causa dos mais
pobres e se corrigindo, daqui em diante, por sua filiação ao Integralismo72.
Ademais, é ordenado bispo auxiliar do Rio de Janeiro, em 1952. No ano do
golpe, em 1964, Helder Camara é transferido para Pernambuco, tornando-se
arcebispo de Olinda e Recife, função que assumiu até 1985.
Dom Helder foi criticado duramente por personagens da Igreja e da
política, pois possuía um papel relevante na defesa das camadas populares,
sendo posto como alguém da ala progressista do catolicismo. Assim, diante da
desigualdade mundial, na segunda metade do século XX, o arcebispo realizou
viagens aos países ricos, no Norte, para levar uma mensagem de paz e

72 A sua participação no integralismo foi resultado de uma equivocada visão, como explica ao
jornalista Marcos de Castro, em 1977, ao ser entrevistado: “Eu saí do seminário [em 1931] com
uma convicção clara: o mundo ia dividir-se cada vez mais entre capitalismo e comunismo. Então,
a mim me parecia que dos males o menor. E como o comunismo me era apresentado como
intrinsecamente mau, sendo materialista, e o capitalismo, que podia ter seus defeitos, ao menor
não era tão perigoso assim, optei pelo menos mau. Mas, hoje, quanto mais eu medito, no
capitalismo – embora não tenha nenhuma ilusão quanto ao que seja a prática do comunismo
na Rússia e na China –, mais reconheço que um sistema econômico, qualquer que seja o nome
que venha a ter (porque hoje há capitalismos, é importante acentuar o plural), que coloca o
lucro como preocupação dominante e às vezes até, pode-se dizer, como preocupação exclusiva,
este é também um sistema intrinsecamente materialista, desumano” (CASTRO, 2002, p. 58).
264
dignidade humana acerca das pessoas que viviam no Sul73 do planeta, em
situação subumana.

3. Dom helder camara e o diálogo com a juventude da década de 1960


Na década de 1960 vários países latinos americanos sofriam com regimes
repressivos. O Brasil passou 21 anos nestas circunstâncias, em constante
violência de todos os tipos. Foi resgatada, naquele momento ditatorial, a
narrativa anticomunista e a instabilidade política chega ao seu ápice na
legitimação da tortura, na deposição e cassação dos direitos políticos com a
decretação do Ato Institucional nº 05, em 1968. Os militares, com o apoio civil,
tomaram o poder alegando restaurar o Brasil, em nome de Deus, da pátria e da
família.
Dom Helder foi considerado subversivo e comunista pela ditadura
brasileira. Além disso, passou a ser vigiado por onde andava e muitos dos que
estavam próximos a ele sofreram com a violência deste regime, como o Pe.
Henrique, sacerdote jovem e secretário do arcebispo, que foi encontrado morto
depois de ser torturado, aos 28 anos, em 196974. O padre Henrique pode ser
visto como um símbolo dessa relação de Helder com a juventude.
Mesmo diante deste cenário, Dom Helder não deixou de participar de
palestras e reuniões pelo mundo, sendo uma figura de renome internacional.
Assim, utilizou-se desses espaços para denunciar os abusos e injustiças que
ocorriam no Brasil. Desta forma, destacamos três discursos deste arcebispo, em
relação às juventudes, que ocorreram nos Estados Unidos (1967), na Alemanha
(1968) e na Inglaterra (1969).

73 A expressão “Terceiro Mundo” foi bastante utilizada nesta época para se referir aos problemas
dos países pobres, subdesenvolvidos, regidos tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo, no
continente asiatíco, africano e sul-americano.
74 “Padre Henrique foi trucidado de um modo terrível. Apenas porque trabalhava com os jovens.

Esse foi seu único crime. Padre Henrique era o colaborador da arquidiocese para um trabalho
junto à juventude. Por isso começou a receber ameaças em casa, telefonemas do Comando de
Caça aos Comunistas (CCC), pessoas que se anunciavam como pertencentes a essa organização,
sem identificar-se, é claro. Padre Henrique trabalhava diretamente ligado a Dom Hélder.”
(CASTRO, 2002, 147).
265
4. “Universidade: parceiros em humanização” (Estados Unidos, 1967)
O primeiro discurso a ser analisado trata-se da palestra realizada no
simpósio da Cornell University, nos Estados Unidos, em 1967, com o título “A
Universidade: parceiros em humanização”. A fim de combater a pobreza no
mundo, traz em sua fala como a liberdade não pode funcionar se há pessoas
que vivem em situação desumana.
Ser humano é criar, na própria vida, espaço para a inteligência e a
liberdade. É habituar-se e superar instintos, a força bruta para deixar-
se guiar pela razão. É desembaraçar-se de condicionamentos que
impedem a liberdade de funcionar, impedem a liberdade de merecer
seu belo nome. Acontece que, de saída, 2/3 da humanidade vivem em
situação infra-humana. Se a situação é abaixo da humana, se o nível
humano não foi atingido, a inteligência e a liberdade não estão em
condições de funcionar ou, pelo menos, não estão podendo funcionar
de maneira normal. No extremo oposto da miséria, e excesso de
conforto e de luxo, costumam desumanizar o homem (CAMARA,
1967, p. 1).

Ao pronunciar estas palavras, o arcebispo denuncia a condição de


miséria existente no mundo e pontua alguns argumentos enfatizando a
relevância das universidades na defesa da humanização das pessoas. Ele
destaca, em seu discurso, como a conformação com a desigualdade de grupos
privilegiados (ricos) e as guerras são fatores significativos para amplificar a
desigualdade e dividir os humanos.
Proponho que não nos limitemos a pensar apenas nas universidades
dos EUA. Pensemos nas Universidades do mundo inteiro. Em que
medida, podem e devem ajudar-se, mutuamente, para humanizar o
homem? [...] Depois de milênios de vida humana, menos de 1/3 dos
homens aceita tornar-se cada vez mais rico enquanto mais de 2/3 se
tornam cada vez mais miseráveis; [...]. Enquanto houver guerra, o
homem continuará sendo mais animal do que homem. enquanto
achar que aquele que destruir mais provou com isso que tem razão,
estará provando que a inteligência está longe de ter a última palavra.
(CAMARA, 1967, p. 2).

Em seguida, defende a união das religiões, seja do Ocidente ou do


Oriente, com o intuito de combater a desumanização das pessoas. Para ele, a
justiça social e a fé estavam interligadas. Caso houvesse um pacto global para
ajudar os países subdesenvolvidos, as religiões seriam agentes no caminho
dessa construção. Vejamos o que ele comenta:
Proponho que não paremos nas Igrejas cristãs, mas consideremos o
papel que todas as forças espirituais – cristãos ou não cristãs, do
Ocidente ou do Oriente, grandes ou pequenas – possam ou devem

266
exercer para humanizar o homem. [...] Como não tentar unir todas as
forças espirituais do mundo para combater o egoísmo, como doença
generalizadíssima e cujo efeito direto é tornar o homem menos
humano? (CAMARA, 1967, p. 2-3).

Helder Camara, desta forma, buscou aproximar o mundo acadêmico e a


fé na tentativa de humanizar os homens, pois a educação e a religiosidade se
fazem presente entre os jovens. Recorrer a essas esferas da sociedade sustenta a
sua visão acerca do impacto dos jovens na luta contra a miséria. Além do mais,
diante de tantas desigualdades no mundo, ele propõe diálogos entre as
universidades nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, acreditando que
essas instituições no mundo subdesenvolvido devem sair das suas torres de
marfim e produzir uma educação que alcance os marginalizados, pois, assim,
integrariam a “realidade dura em que [países subdesenvolvidos] se encontram,
assumir [iam] os problemas da região, e, sobretudo, ajudar [iam] as massas em
situação infra-humana a tornar-se povo.” (CAMARA, 1967, p. 3). Dom Helder
acreditava numa educação de base e popular.

2.1. A “Os jovens exigem e constroem a paz” (Alemanha, 1968)


O segundo discurso analisado, trata-se da viagem feita a Berlim, em
1968, no Congresso Mundial da Federação Feminina das Juventudes Católicas
Femininas, com o título “Os jovens exigem e constroem a paz”, destacando a
sua esperança nos jovens, pois afirmava ser os adultos mais egoístas e menos
generosos; “Deus me dá a felicidade de amar os jovens e de neles acreditar. Na
medida p. ex. em que a Paz é construída pelos homens, creio que ela será muito
mais trabalho dos jovens, do que propriamente dos adultos” (CAMARA, 1968, p.
1). Na ocasião, mediante a conjuntura da Guerra Fria, Helder Camara criticou o
capitalismo, pontuando as desigualdades e explorações que o sistema estaria
provendo. Helder discursou as seguintes palavras aos jovens dos países
desenvolvidos do Ocidente:
Poderá o capitalismo deixar de considerar o lucro como motor
essencial do processo econômico; a concorrência, como lei suprema
da economia; a propriedade dos bens de produção, como direito
como direito absoluto, sem limites nem obrigações sociais
correspondentes? Esses princípios, que parecem inerentes à própria
essência do capitalismo, conduzem a absurdos e injustiças revoltantes,

267
que comprometem o desenvolvimento do homem todo e de todos os
homens [...]. (CAMARA, 1968, p. 1).

Ao colocar esses princípios capitalistas como condutores de injustiças


humanas, o arcebispo faz menção a América Latina, explorada pelo
colonialismo europeu por séculos e que abriu caminhos para um pequeno
grupo de privilegiados no continente latinoamericano, “cuja riqueza é mantida
à custa da miséria de milhões de concidadãos75.” (CAMARA, 1968, p. 1).
Ademais, realiza diversos questionamentos aos jovens dos países
desenvolvidos76 de regime capitalista, como a criação de classes em seus países,
a situação subumana de milhões de pessoas, os preconceitos raciais e a
exploração de outros países. Fica claro como Dom Helder busca criticar a
imagem que foi construída sobre estes países como lugares modelo.
Helder Camara também falou aos jovens de países desenvolvidos do
regime socialista, no qual problematiza as perspectivas e práticas deste sistema,
pois, mesmo que defenda, teoricamente, a paz, a solidariedade e a fraternidade,
teria se ausentado, na prática, de diálogos com outras formas de pensar o
mundo, tornando pensamento de Karl Marx um dogma. À vista disso, Dom
Helder afirma que “as falhas nascem dos dois lados” (CAMARA, 1968, p. 4), que,
através de uma leitura atenciosa, explicita a sua ênfase na luta contra a
desigualdade entre o Norte e Sul do mundo, situada na Guerra Fria.
Em seu último tópico, Helder Camara buscou falar aos jovens de países
subdesenvolvidos, caminhando do discurso Leste-Oeste (EUA e URSS) para o
Norte-Sul (países desenvolvidos e subdesenvolvidos), afirmando que tudo “o
que foi dito sobre capitalismo e socialismo tem repercussão direta sobre os
nossos Países do Terceiro Mundo” (CAMARA, 1968, p. 5). Ele sendo latino,
compreendia e se colocava diante das realidades de explorações,
silenciamentos e ditaduras frutos da bipolarização da Guerra Fria, discursando

75 Na sequência do parágrafo, Helder Camara fala sobre os latifundiários (grupo privilegiado) e


as famílias pobres que trabalhavam e moravam nessas terras. Destaca que a situação destas
famílias era desumana e que qualquer exigência de melhoria era motivo de ameaça por parte
dos latifundiários. Dom Helder coloca esta situação como escravidão.
76 Diante do contexto da época, Dom Helder compreendia que os países desenvolvidos se
encontravam nos dois blocos, EUA e URSS, pois eram potências mundiais.

268
que as “injustiças são grandes demais e a frieza e a displicência dos que nos
exploram são revoltantes.” (CAMARA, 1968, p. 5).

2.2. A “em ‘resposta à crise’, que deveis fazer?” (Inglaterra, 1969)


O último discurso de Dom Helder que analisamos foi o pronunciado em
Manchester, na Inglaterra (1969). Entusiasta com as juventudes, o arcebispo
pontuou sete “pecados” do mundo que os jovens combatem de forma
contínua. São eles: o Racismo, o Colonialismo, as Guerras, o Paternalismo, o
Farisaísmo, a Alienação e o Medo. Assim, observando os jovens, destaca da
seguinte forma, respectivamente, sobre o racismo e as guerras:
O homem branco se convenceu de que é superior ao homem de cor
[negro] e tem a missão de dominar o mundo. [...] Os jovens sabem
que a população de cor só está em nível subumano, em consequência
das injustiças de que é vítima. Negro, amarelo, moreno ou mulato –
bem alimentado, bem vestido, com casa confortável, com o mínimo de
condições quanto à educação, à saúde e ao trabalho, com amor – vai
tão longe ou mais longe do que o branco: em inteligência, em cultura
e em virtude.
[...]
Os jovens repelem as guerras, tanto mundiais como as locais, tanto as
quentes como as frias. A guerra é cada vez mais desumana e imoral.
Perdeu, do todo, a aparência do heroísmo, com lances de corpo a
corpo, em que a coragem e a bravura se revelam. Hoje, foguetes
teleguiados levam a destruição e a morte a populações civis, inclusive
velhos, doentes e crianças, e a locais como escolas, hospitais e igrejas
(CAMARA, 1969, p. 2).

Dom Helder Camara compreendia a relevância das juventudes no


mundo ao combater as mazelas geradas pela desigualdade77. Desta forma, para
ele, conceder visibilidade às reivindicações dos jovens impulsionaria o mundo a
viver a justiça, a equidade e o respeito mútuo.
Os jovens não admitem a ideia de ver o Mundo dividido em Países
que, em breve, passarão à categoria de pós-industrializados e em
Países que sempre mais se afundam no subdesenvolvimento e na
miséria. Repelem o conforto e o luxo, em cujo bojo, sabem que há
sangue, suor e lágrimas de 2/3 da Humanidade (CAMARA, 1969, p. 2).

No início do seu discurso em Manchester, Helder Camara relaciona os


Beatles, sendo uma banda musical significativa na década de 1960, às lutas dos

77 Embora, neste período, os países subdesenvolvidos sofressem de uma maior forma as


consequências da desigualdade, a luta pelo direitos humanos, pela democracia e contra as
guerras também se fez presente nos países desenvolvidos, como a resitência feminina, estudantil
e a defesa pelos direitos civis dos negros nos EUA.
269
jovens nos diversos continentes, ciente do impacto da música para a
mobilização das juventudes contra uma cultura opressora, na defesa pela
democracia, pelos direitos humanos e outras reivindicações salientadas neste
período. Vejamos a afirmação de Dom Helder:
"Eles [os Beatles] chamaram a atenção do Mundo inteiro e lideram o
protesto da juventude de todos os Continentes. Com nomes
diferentes, vários traços em comum, por vozes se combatendo
mutuamente, jovens irmãos dos Beatles se rebolam contra a
monstruosa maneira do viver de hoje, com seus falsos valores e a
mecanização absurda de tudo, inclusive do homem" (CAMARA, 1969,
p. 1).

Diante do contexto da época, Helder Camara sofreu diversas críticas,


como as do escritor Nelson Rodrigues78, que o chamava de “arcebispo
vermelho” (FALEMOS, O Globo, Rio de Janeiro, 06/08/1970), em referência ao
comunismo. Nelson Rodrigues afirmava que Dom Helder influenciava
negativamente a juventude da Igreja. Assim, escreveu em uma de suas crônicas
acerca da menção do arcebispo aos Beatles, a qual foi citada acima, proferindo:
"Um cristão sem Cristo. Quer que os jovens sejam como os 'Beatles' e, portanto,
os acompanhem nas perversões da carne e da alma.” (É UM SIMPLES, O Globo,
15/04/1969).
Ao analisar a vida e obra do arcebispo, observamos que ele não se
defendia atacando as pessoas, mesmo que sofresse com narrativas detratoras.
Todavia, buscava esclarecer a sua visão de mundo diante dos acontecimentos
históricos. Sendo assim, acerca do comentário de Nelson Rodrigues, destacou:
"O que foi que eu disse na Inglaterra? O que eu disse foi isto: a
Inglaterra era o país dos Beatles, foi lá que começou a reação dos
jovens [...]. Então, o que eu disse foi isto: tenhamos inteligência,
tenhamos coragem, tenhamos amor diante do protesto dos jovens,
porque na medida que formos examinar as causas desta revolta,
verificaremos que há muito de justo neste protesto [...]" (Helder, O
Pasquim, 23/03-1º/07/1970).

Helder Camara esteve, desde cedo, próximo às artes, pois escrevia


poemas na adolescência, quando seminarista, e seu pai era crítico teatral. Deste
modo, durante a sua vida, aproximou-se cada vez mais do artístico, através de
crônicas, poesias, cinema, romances, novelas, teatro e músicas. Por fim, as
viagens de Helder para o exterior, ao falar sobre a desigualdade e violências no
78 Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980), foi um escritor, jornalista e dramaturgo brasileiro.
270
mundo, atingia o Brasil, realizando denúncias, pois o país vivenciava uma
ditadura, incomodando diversas figuras, como Nelson Rodrigues.

Considerações finais
Helder Pessoa Camara foi um personagem importante no mundo e no
Brasil ao longo do século XX. Sua trajetória foi reconhecida, nacionalmente e
internacionalmente, pela defesa da vida, da democracia e dos direitos humanos,
sendo abordada em diversas obras já publicadas sobre esta figura. Assim, nosso
trabalho teve por objetivo analisar, em um recorte entre 1967 e 1969, Dom
Helder e a sua relação com as juventudes, a relevância da educação nos países
desenvolvidos e subdesenvolvidos e a conjuntura da Guerra fria entre os
regimes capitalista e socialista, ciente que a década de 1960 é bastante ativa
através dos movimentos dos estudantes.
Por acreditar que os jovens fossem uma força fundamental para o
combate à desigualdade e na defesa do valor do ser humano, Dom Helder,
durante as suas viagens internacionais, procurou deixar claro a relevância das
reivindicações das juventudes, contra a guerra, o racismo, colonialismo, miséria,
fome, entre outras questões. Somando a isso, as problematizações que trouxe
em seus discursos alcançavam o Brasil, sendo necessário criticar e rejeitar o
regime violento que se iniciou em 1964.
Em suma, mesmo com as acusações que sofreu, durante este período, a
imagem de Dom Helder que se destaca com estes discursos foi a de um
religioso preocupado com a justiça social. Assim, com o objetivo de contribuir
com os estudos acerca desta figura, constatamos a relevância de se analisar a
relação de Helder Camara com os jovens, observando uma geração que estava
vivenciando um século bastante turbulento.

Referências
ALVES. Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1985). Bauru:
Edusc, 2005.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

271
BARROS, José D’Assunção. Memória e História: uma discussão conceitual.
Tempos históricos. volume 15 - 1º semestre de 2011 - p. 317-343.
CAMARA, Helder. Revolução dentro da paz. 2. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968.
CAMARA, Helder. Em ‘resposta à crise’, que deveis fazer?. Inglaterra, 1969.
CAMARA, Helder. Os jovens exigem e constroem a paz. Berlim, 1968.
CAMARA, Helder. Universidade: parceiros em humanização. Estados Unidos,
1967.
CASTRO, Marcos de. Dom Hélder: misticismo e santidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
É UM SIMPLES MORDEDOR DE ORELHA, O Globo, Rio de Janeiro, 15/04/1969
FALEMOS DO PRÊMIO NOBEL DA PAZ, O Globo, Rio de Janeiro, 06/08/1970
FICO, Carlos. História do Brasil contemporâneo. São Paulo: Contexto, 2019.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos, 1914-1991. São Paulo: Companhia das
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HELDER, O Pasquim, Rio de Janeiro, 23/03-1º/07/1970
LAIN, Vanderlei (Org.). Mosaico religioso: faces do sagrado. – Recife: Fundação
Antônio dos Santos Abranches, 2009.
LUCA, Tania Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. PINSKY, Carla
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NAPOLITANO, Marcos. História contemporânea 2: do entreguerras à nova
ordem mundial. São Paulo: Contexto, 2021.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
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PARADA, Maurício. Formação do mundo contemporâneo: o século estilhaçado.
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PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a
profecia. São Paulo: Ática, 1997.
SILVA, Cícero Williams da. Dom Helder Camara e a Sinfonia dos Dois Mundos.
Recife: Bagaço, 2018.
SILVA, Cícero W. da.; JÚNIOR, Romélio. “El arzobispo de la revolución”: as
crônicas de um detrator, um jornal defensor e a “autodefesa” do bispo.
Perspectivas históricas: historiografia, pesquisa e patrimônio, v. XV, p. 220-232,
2021.

272
GT 13 - RELIGIÃO E CULTURA VISUAL

Ma. Ana Beatriz de Carvalho dos Santos Alexandrini


Me. Edmilson Sousa Rocha
Doutoranda Elainy Fátima de Souza (UFJF)

Ementa: As áreas de estudos Religião e Cultura Visual são limítrofes, atuando


tanto no discurso simbólico quanto nos componentes visuais, referindo-se ao
intelecto humano. Segundo Helmut Renders, as diversas linguagens textuais,
pictoriais, ritualistas e gestuais, sonoras, oftálmicas, espaciais, experimentados e
imaginados possibilitam a sistematização humana da religião. Assim sendo, os
variados meios de condução ao sagrado englobam elementos visuais ao se
tratar das díspares formas religiosas que podem ser legitimadas ou não. Por
outro lado, a cultura visual de uma determinada sociedade não deve ser
compreendida de maneira limitante, apenas como uma atividade estética ou
mercadológica. Entretanto, como um vasto campo epistemológico inerente à
religião, no qual também há uma busca pela condição espiritual humana, pelo
incentivo à paz, e na contemporaneidade pela promoção dos direitos humanos.
Desta maneira, a idealização e as perspectivas ampliam as manifestações das
várias relações e as diferenças de classe, gênero e etnias. Levando isto em
consideração, as pesquisas sobre o diálogo inter(trans)disciplinar ampliam-se no
meio acadêmico. Conforme Etienne Higuet, é possível utilizar vários repertórios
de procedimentos interpretativos das imagens e questionar a finalidade da
imagem pictural, que não pretende apenas copiar ou representar, mas também,
concentrar, aumentar e enriquecer a realidade. Destarte, este GT tem como
finalidade agregar pesquisadores que aprofundem às conexões entre a religião
e as diversificadas modalidades da cultura visual. Para tanto, incorpora
pesquisas que tratem das inúmeras características, pelas quais a cultura visual
ganha expressão (ícones, fotografia, gravura, escultura, artes plásticas, cinema,
etc.) dos mais diversos períodos históricos, tradições religiosas e culturas.
Englobando, trabalhos que apresentam análises da força performativa de
imagens e sobre a metodologia para interpretação da cultura visual
contemporânea.

Palavras-chave: Religião; Diálogo inter(trans)disciplinar; Cultura visual; Artes.

273
O CORAÇÃO COMO CENTRO DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA
RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA
Edmilson Sousa Rocha
Mestre em Ciências da Religião – Umesp.
edmilsoncat41@gmail.com

Resumo: Esta comunicação analisa a presença da religio cordis na Renovação


Carismática Católica, nossa primeira abordagem parte da história da Renovação
Carismática Católica; e sua relação com a religio cordis, sua influência inicial e sua
consolidação no movimento apresentando suas representações textuais e visuais nos
diversos âmbitos de sua estrutura organizacional de modo a identificar a forte presença
da religião do coração na RCC. Num segundo momento a abordagem será sobre as
narrativas visuais históricas da religio cordis até a primeira metade do século 20, e as
novas narrativas visuais desenvolvidas a partir da conclusão do Concílio Vaticano II que
inseriu a Igreja Católica na modernidade, até os nossos dias. Por fim num terceiro
momento, abordaremos de maneira mais profunda sobre a utilização religião do
coração pela Renovação Carismática Católica como símbolo da mediação com o
sagrado, para este intento utilizaremos o conceito filosófico sobre as formas simbólicas
de Ernst Cassirer, a aproximando a figura do coração as formas simbólicas da religião e
da arte, além de apresentar as narrativas visuais de diversas áreas de atuação do
movimento.
Palavras-chave: Religio Cordis; Renovação Carismática Católica; Coração; Cultura Visual.

Introdução
A Renovação Carismática Católica é um dos novos movimentos leigos
surgidos após o Concílio Vaticano II, sua espiritualidade é focada na relação
íntima e subjetiva com o Espírito Santo. No Brasil apesar de ser um movimento
leigo chegou pelas mãos de missionários jesuítas no final da década de 1960,
tornando-se um dos principais movimentos leigos da Igreja Católica. Por conta
de sua característica pentecostal e da forma como atua na Igreja, é alvo de
muitos estudos acadêmicos de diferentes abordagens. Neste estudo, no
entanto, a abordagem se dará dentro da cultura visual do movimento, mais
especificamente na figura do coração. Presente em diversos segmentos do
movimento, a imagem do coração ganha uma centralidade representativa e
simbólica como lugar do encontro e da relação com o Sagrado, diante disso
utilizaremos aproximaremos a metáfora do coração a teoria das formas
simbólicas do filósofo Ernst Cassirer.

274
1. A História da Renovação Carismática Católica
A Renovação Carismática Católica é um dos novos movimentos surgidos
após o Concílio Vaticano II que foi marco na inserção da Igreja Católica no
mundo moderno de grandes transformações sociais e culturais. Com o concílio
foram abertas as portas da Igreja para a atuação dos leigos em diversos
segmentos até então reservados aos sacerdotes ou dirigidos por eles, pelo
decreto Apostolicam Actuositatem, sobre o apostolado leigo, dá-se um
protagonismo ao laicato inserindo-o como corresponsável pela missão da Igreja.
Com essa abertura da Igreja surge diversos movimentos fundados e dirigidos
por leigos como a “Comunidade de Santo Egídio”, o “Caminho
Neocatecumenal”, “Encontro de Casais com Cristo”, a “Renovação Carismática
Católica”, entre outras, porém há de se mencionar que na América Latina
também surgiu as “Comunidades Eclesiais de base – (Cebs)”, ligada a Teologia
da libertação. Cada uma voltada para um carisma próprio e um modo de
atuação diferente, seja no serviço as famílias, na catequese, na promoção de
uma certa espiritualidade ou no engajamento social. Neste contexto em
fevereiro 1967 seguindo o movimento de reavivamento pentecostal protestante
norte-americano e a abertura dada pelo concílio, surge com um grupo de
estudantes da Universidade de Duquesne em Pittsburgh, Pensylvania, a
Renovação Carismática Católica, a partir da busca pela experiência do Espírito
Santo como descrita no texto bíblico de Atos, 2.
A Renovação Carismática Católica (RCC) é um movimento de
características semelhantes aos pentecostais protestantes diferenciado apenas
pelo sentimento de amor e fidelidade a doutrina católica e prática sacramental,
com cantos alegres, orações, uso dos dons carismáticos como a glossolalia,
rapidamente se espalhou pelo Estados Unidos, pela América Latina e pelo
mundo, tendo o apoio da hierarquia da Igreja e sendo recebida pelos papas
posteriores ao concílio como uma corrente de graça e um sopro do Espírito
sobre a Igreja. Estima-se que hoje os adeptos do movimento seja cerca de 119,9
milhões de participantes espalhados por 253 países representando o
equivalente a 11,3% dos católicos batizados ao redor do mundo.

275
2. A Renovação Carismática Católica no Brasil
No Brasil a RCC chegou pelos padres jesuítas padres Haroldo Joseph
Rahm e Eduardo Dougherty, vindo dos Estados Unidos como missionários e
trazendo em sua bagagem a Renovação Carismática Católica que passaram a
difundir em todo Brasil por meios de encontros, retiros e formações de grupos
de oração que é a base do movimento, no entanto encontrando certa
resistência pela hierarquia da Igreja no Brasil devido sua prática semelhante aos
pentecostais protestantes que arrebanhavam descontentes ou não praticantes
da fé católica ou que não concordavam com apoio da Igreja aos movimentos
leigos como as Comunidades Eclesiais de Base ligadas a Teologia da Libertação,
envolvidas nas questões sociais e políticas.
A pesquisadora Maria das Dores Campos Machado uma das pioneiras
nos estudos sobre a RCC no Brasil, descreve o movimento da seguinte maneira:
Constituídas por pessoas com participações anteriores em cursilhos e
por membros atuantes de agremiações católicas, esse movimento
reforçou o biblicismo, levando às vezes a uma leitura fundamentalista
das escrituras; revalorizou a glossolalia, a profecia, as orações de
intercessão e outros dons carismáticos colocados há muito tempo em
segundo plano na tradição católica (MACHADO, 1996, p.47).

No entanto a RCC foi um meio de que a Igreja encontrou para


reconquistar seus fiéis, por meio do incentivo a uma vida de oração, a prática
dos sacramentos a aderência sem questionamentos da doutrina Católica e de
sus líderes e desenvolvendo uma espiritualidade alheia as questões sociais ou a
vida terrena a RCC ganhou seu espaço a partir da década de 90 na promoção
de grandes encontros e sua inserção na mídia, em canais de tv e emissoras de
rádio difundido sua espiritualidade. No final década de 70 surge as
comunidades de vida e de aliança que se identificam com a espiritualidade
carismática inserindo na Igreja um novo modo de vida religiosa. Leigos e leigas,
famílias, religiosos, homens e mulheres vivendo juntos a serviço de um mesmo
carisma, diferentemente das ordens e congregações tradicionais, trazendo uma
nova dinâmica a vida religiosa, atuando em diferentes aspectos da vida seja na
educação ou na promoção social ou mesmo somente na contemplação e

276
pregação de retiros. Dentro das características dessas comunidades estão a
Comunidade Canção Nova, Comunidade Shalom, Obra de Maria, Toca de Assis
entre outras, inclusive formando padres em suas estruturas.
A organização da RCC nacional se dá em diferentes níveis, há uma
coordenação nacional representada por um presidente, a coordenação
estadual, a coordenação diocesana e pôr fim a coordenação regional e
paroquial, todos eles dirigidos por leigos engajados no movimento e
acompanhados por um bispo referencial no caso nacional e por um sacerdote
no caso estadual e diocesano. No entanto a base dessa estrutura e a mais
importante é o grupo de oração é lá que está a essência do movimento e é
também lá que o movimento toma corpo.

3. O Grupo de Oração
O grupo de oração é a base da Renovação Carismática Católica e é onde
acontece a experiência com o Espírito Santo, chamado pelos seus adeptos do
“batismo do Espírito” é onde se faz uso dos dons carismáticos. O grupo de
oração também é o lugar da evangelização querigmática onde a identidade da
RCC é inserida num contexto de comunhão, participação, obediência e serviço,
a fim de promover uma renovação espiritual ao participante, de modo que ele
tenha uma experiência pessoal com o Espírito Santo, mesmo sendo uma
reunião coletiva, pois entende-se que cada participante tem o seu modo de
relacionar com a divindade.
Geralmente as reuniões duram cerca de duas horas, iniciadas com a
oração do terço seguida de músicas animadas de louvor e acompanhadas por
gestos e danças, envolvendo o participante numa atmosfera religiosa, em
seguida é o momento de adoração, com uma música mais suave o participante
e levando a entrar em contato com o Espírito Santo ou Jesus, é o chamado
momento de “comunhão”, também é neste momento, estimulado por um
dirigente que há a prática dos dons carismáticos de glossolalia, de revelação de
cura e de profecia sendo finalizando com músicas de euforia e de
agradecimentos, em seguida é a pregação da palavra onde um pregador

277
preparado irá falar sobre temas bíblicos ou doutrinários finalizando com
testemunhos se houver e músicas de encerramento. Segundo o site oficial
nacional do movimento:
O objetivo do Grupo de Oração é levar os participantes a
experimentar o Pentecostes pessoal, a crescer e chegar à maturidade
da vida cristã plena do Espírito, segundo os desejos de Jesus: ‘Eu vim
para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância’ (Jo
10,10b) (RCCBRASIL, 2016).

Não é raro que a prática religiosa do grupo de oração, é acusada por


membros da hierarquia da Igreja por uma certa ênfase emocional, desligada da
realidade humana, promovendo uma fé mágica, sentimental e até mesmo
ilusória, desconectada com o cotidiano e a realidade da vida promovendo
segundo Sofiati (2011, p. 135) “uma religião de menos razão e mais coração, ou
seja, uma religião cuja emoções dominam as ações”. No movimento quase não
há ações práticas, mas há ações emocionais, relacionadas ao cotidiano dos
participantes e a fé, a busca de soluções milagrosas as questões humanas
principalmente relacionadas a saúde, a família e ao trabalho, muitas destas
dificuldades apresentadas como período de prova ou tribulações ou falta de fé.
Nota-se também no movimento um caráter conservador anterior as novidades
do Concílio Vaticano II.

4. A Teologia da RCC
A teologia desenvolvida pela Renovação Carismática Católica tem
antecedente do movimento pietista norte-americano Machado identifica esse
caráter afirmando que:
[...] uma ética individual contestadora da moral circundante com
insistência de uma vida de pureza, santificação e piedade; uma ênfase
na experiência religiosa que por vezes coloca a emoção à frente das
reflexões teológicas, uma atividade devocional intensa; e um espírito
de reativação da espiritualidade que não chega a ser sectário
(MACHADO, 1996, p.105).

Esta teologia possui como pontos fundamentais o conceito de uma vida


nova conduzida pela atuação do Espírito Santo e sob a tutela do senhorio de
Jesus, cuja vida e tudo que é inerente a ela deve ser submetida a este senhorio.
Nesse sentido o processo de conversão é extremamente importante pois ele

278
marca um antes e depois a partir da experiência chamada “Batismo no Espírito”,
que a partir daí o fiel demostra sua conversão centralizando sua vida a fé se
abstendo daquilo que é considerado profano e buscando uma vida santidade
na frequência sacramental de modo especial a confissão e a eucaristia, e nas
práticas devocionais tipicamente católicas como a oração do terço, a devoção a
Maria mãe de Jesus e aos santos.
Embora inseridos na tradição católica referente a Santíssima Trindade, o
movimento enfatiza a centralidade do Espírito Santo pois entende que a
pessoa só se torna cristã a partir da recepção desse espírito pois o próprio Jesus
o recebeu e compartilhou com seus discípulos que deram continuidade a
missão de Jesus, esse centralidade dada ao Espírito Santo está ligada aos
carismas que no entender do movimento sem eles não há Igreja, os carismas a
partir e uma experiência profunda do Espírito Santo reativa os dons recebidos
no batismo sacramental (conselho, entendimento, fortaleza, sabedoria, piedade,
ciência e temor a Deus) além de conceder novos dons considerados
extraordinários tais como a glossolalia, a cura, a revelação e a profecia, estes
dons muito incentivados e promovidos pelo movimento pois eles demostra a
presença do Espírito Santo no indivíduo.
Apesar da semelhança com o pentecostalismo protestante seja na
centralidade do Espírito Santo ou na ênfase aos dons extraordinários a
Renovação Carismática Católica de modo a reafirmar seu catolicismo e
demarcar fronteiras com o pentecostalismo protestante assume e coloca com
extrema importância a figura de Maria como esposa do Espírito Santo presente
no evento de Pentecostes descrito no texto bíblico de Atos 2, além de cultuar as
figuras dos papas João Paulo II e Bento XVI por suas intervenções
conservadoras na vida da Igreja e o combate a Teologia da Libertação
considerada heresia pelo adeptos do movimento.

5. A relação religiosa e simbólica na RCC


O ser humano dentre outras características de que é própria é um ser de
relações. Ele se relaciona com o mundo temporal de acordo com o que lhe é

279
oferecido, seja no ambiente de trabalho, no convívio com a família ou com a
sociedade em que vive. Essa socialização faz parte da experiência humana, o ser
humano não vive sem se relacionar, por meio desta relação ele se desenvolve,
adquire conhecimento, cultura, interage com o mundo numa troca contínua de
saberes, sentimentos e emoções. No entanto essa necessidade de relação não
se dá apenas num mundo imanente, mas também numa perspectiva
transcendente, relacionando-se com o que julga sagrado, e na maioria das
vezes se junta a outros indivíduos com afinidades comuns na busca pelo
transcendente, daí surge as religiões e os grupos religiosos que promovem uma
experiência religiosa entre a realidade humana e transcendente (CROATTO,
1994).
Neste contexto situamos a RCC como um dos grupos ou movimentos
religiosos que promovem essa relação com o sagrado de uma forma que o
indivíduo consciente de sua realidade e limitações humanas tenha contato com
o transcendente, de modo que possa buscar respostas ou alentos as realidades
vividas ou mesmo repostas aos questionamentos sobre a vida ou sobre
finalidade da existência humana. Ela relação no movimento se dá pela
promoção de uma vida voltada a espiritualidade por meios de orações
individuais ou coletivas, na frequência as reuniões do grupo de oração e das
atividades propostas pelo movimento, sejam eles celebrativos ou formativos,
pois essa relação com o Espírito Santo se dá por via de regra em todo encontro
promovido pelo movimento seja no âmbito do grupo de oração ou nas esferas
de sua organização.
Essa relação com o transcendente, não é diferente de outros grupos
religiosos, ela se dá de forma simbólica por meio da utilização de símbolos
religiosos já existentes com seus significados ou ressignificados de acordo com a
sua finalidade. A simbologia intermedia a relação com o sagrado de maneira
muitas vezes hierofânica promovendo um sentimento da presença divina
denominado por Rudolf Otto de “Numen”, gerando no indivíduo um
sentimento de criatura dependente de seu criador, de temor frente ao ser
absoluto, preenchido pela energia do numen que pode leva-lo a um êxtase

280
individual ou coletivo além de despertar o desejo de querer sempre estar
presente diante do numinoso que o fascina e o transfere para uma outra
realidade subjetiva, a do mundo espiritual. Segundo Ernst Cassirer, que definiu
o ser o humano com um ser simbólico que não conhece a realidade “crua e
nua” a não ser pela intermediação das formas simbólicas que possibilita o
conhecimento e a interação com a realidade é bem aplicável aos símbolos
religiosos, o ser humano não tem acesso direto a divindade a não ser pelos
símbolos ora identificados como “porta de acesso” a uma realidade
transcendente que se revela a partir do imanente, ou seja a partir de objetos, da
natureza ou dos cosmos. Nesta perspectiva entre os muitos símbolos utilizados
pela Renovação Carismática Católica notamos que o símbolo do coração é
muito presente no movimento desde sua ao chegada ao Brasil no início da
década de 70, até os nossos dias, mantendo a concepção cristã onde o coração
é entendido como núcleo íntimo do ser humano, o lugar dos sentimentos, das
emoções, da afetividade e da relação com o transcendente, a RCC relaciona sua
experiência religiosa a uma “abertura” do coração para que o Espírito Santo
possa “entrar” e fazer morada, ou seja o coração passa ser um símbolo de
intermediação com o sagrado, um lugar da hierofania, individual pela qual o
indivíduo sente a presença do numinoso que o transforma e passa a fazer nele
morada porém sem interferir no livre arbítrio que é inerente a pessoa humana.
Dentro as muitas narrativas bíblicas que trata do coração é muito comum
na RCC a reflexão do texto bíblico de Ezequiel 36,26 “Dar-vos-ei coração novo,
porei no vosso íntimo espírito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e
vos darei coração de carne”, relacionando a conversão do coração e a presença
do Espírito Santo e seu poder transformador. O símbolo do coração na RCC está
relacionando indiretamente a experiências místicas da idade média de Matilde
de Helfta (séc. 13), Catarina de Sena (séc. 14) que relatam um matrimônio
espiritual de troca de corações com Jesus ou de Teresa de Ávila (séc. 16) com a
transverberação do seu coração, não é à toa que as duas últimas sejam muito
veneradas pelo movimento. Essa dinâmica de um coração novo, da habitação
da divindade é difundida pelo movimento nas suas pregações, na música, nos

281
gestos, nas ornamentações de seus lugares de culto, na sua literatura e na sua
comunicação visual, ou seja, o símbolo do coração faz parte da cultura do
movimento e é por meio dele que a divindade se manifesta relacionando-se
com o indivíduo que está aberto a esta relação.

Conclusão
Neste artigo procuramos apresentar o movimento católico pentecostal
denominado Renovação Carismática Católica apresentando um breve histórico
de seu surgimento como movimento leigo pós Concílio Vaticano II e sua
semelhança com o pentecostalismo protestante, abordamos um pouco de sua
teologia para melhor compreender sua espiritualidade e como se dá a relação
entre a divindade e o indivíduo, identificamos dentro muitos outros símbolo
utilizados pelo movimento, o símbolo do coração tem um lugar de destaque as
vezes conscientemente ou inconscientemente pois está inserido dentro de sua
cultura visual e imagética. Para o movimento o coração é o lugar da hierofania e
ao mesmo tempo é o símbolo que intermedia a relação humana individual com
o transcendente proporcionando um contato direto com o numinoso.

Referências
CARRANZA, Brenda M. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e
tendências. Aparecida. Ed. Santuário. 2002
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: uma introdução a uma filosofia da
cultura. São Paulo. Martins Fontes, 2005. 391 p.
CROATTO, José Severino. As Linguagens da Experiência Religiosa: uma
introdução a fenomenologia da religião. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2010. 526 p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Ed. Arcádia, 1979. 173p.
MACHADO, Maria das D.C. Carismáticos e Pentecostais: adesão religiosa na
esfera familiar. Campinas e São Paulo: autores associados e ANPOCS. 1996.
NOGUEIRA, Paulo A. (org.). Religião e Linguagem: abordagens teóricas e
interdisciplinares. São Paulo: Paulus, 2015
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Tradução: Walter O. Schlupp. 4ª ed. São Leopoldo:
Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2017.

282
SOFIATI, Flávio Munhoz. Religião e Juventude: os novos carismáticos.
Aparecida. Ideias e Letras; São Paulo: Fapesp, 2011.
Anexo 1 - as representações visuais gestuais e musicais do coração na RCC
Figura 1: Tema anual 2015

Fonte: rccbrasil.org.br

Figura 2: Tema anual 2018

Fonte: rccbrasil.org.br

Figura 3: Mão e Bíblia no coração

283
Fonte: facebook.com/rccosasco

Figura 4: Ornamentação

Fonte: facebook.com/rccosasco

284
A ICONOGRÁFICA DAS BEM-AVENTURANÇAS NA ARTE RELIGIOSA
E A BUSCA PELA PAZ: O EXEMPLO DO PÁTIO DO MONASTÉRIO
SANTA CLARA EM COIMBRA
Helmut Renders79
Doutorado em Ciências da Religião pela UMESP
helmut.renders@metodista.br

Resumo: Já faz um tempo que me raparei que em diversas gravuras católicas dos dois
caminhos as bem-aventuranças ocupam um lugar de destaque para conduzir o
discernimento e a devoção. Recentemente vi em Portugal na cidade de Coimbra no
pátio interior do mosteiro de Santa Clara uma instalação de uma série de azulejos
também retratando as bem-aventuranças. Quando li o tema do CONACIR desse ano,
“Religião, busca pela paz e Direitos Humanos” pensei que seria interessante investigar
se o uso de destaque das bem-aventuranças em gravuras, litografias e instalações em
pátios interiores de monastérios nos dá algumas pistas iconográficas e iconológicas em
especial, para a “busca pela paz”. Quanto ao monastério de Santa Clara pode se além
disso ainda afirmar em relação ao contexto de que se trata nesse lugar do único
programa iconográfico. Proponho de interpretar os aspectos iconográficos dos dez
azulejos do século 18 no monastério de Santa Clara em Coimbra. sob a consideração
adicional que a composição de cada bem-aventurança segue a estrutura de um
emblema (com suas respetivas implicações para seu “uso”). Como método proponho
aplicar o método iconológico de Erwin Panofsky. Quero entender se a linguagem
iconográfica foca na vida interna do monastério ou eventualmente também demonstra
aspectos que podem ser hoje traduzidos como orientações para a promoção de uma
cultura da paz no espaço público.
Palavras-chave: Monastério Santa Clara em Coimbra; azulejos das bem-aventuranças;
iconografia; iconologia; Erwin Panofsky.

Introdução
A proposta inicial da comunicação oral original introduziu nas evidências
visuais da importância de representações das bem-aventuranças na arte
religiosa cristã para contextualizar sete azulejos representando bem-
aventuranças que se encontram até hoje no pátio interno do monastério Santa
Clara em Coimbra, Portugal. Entretanto, até um texto com forte tendência de
resumir as partes principais ia ocupar um espaço bem maior do que foi
permitido para estes anais de congresso. Por causa disso optamos por fazer um
recorte bastante severo e focar somente em um dos motivos das molduras que

79 Doutorado em Ciências da Religião (UMESP, 2006). Coordenador do Grupo de Pesquisa


RIMAGO – Cultura Visual Religiosa. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião e do Curso de Teologia da UMESP. Este trabalho conta com o apoio da FAPESP e do
CNPq. Contato: helmut.renders@metodista.br.
285
acompanham todas as representações das bem-aventuranças. Como método
usamos o método iconológico de Erwin Panofsky, reunindo, com uma ênfase
em uma descrição pré-iconográfica e a análise iconográfica unidas e a
interpretação iconológica, sob consideração que se trata de emblemas.

1. Os azulejos das bem-aventuranças do pátio interno do monastério Santa


Clara em Coimbra
Das – Dos-originalmente 8 motivos das bem-aventuranças segundo o
evangelho de Mateus, encontram-se hoje somente sete, falta a representação
de Mateus 5.4. Por razões do espaço, reproduzimos -reproduziremos- em
seguida nestes anais somente os emblemas referentes ao Mateus 5.5 e Mateus
5.10 (figuras 1 a 2)80.

Figura 1: Azulejo “B.[eati] mite. etc; Matth. Figura 2: Azulejo “B[eati] qui persecut[ionem]
5v4”. In: Claustro do Silêncio, Igreja de Santa patiuntur pro[pter] iust[itiam], [Matth.] 5.10.”.
Cruz, Coimbra. Azulejo, séc. 17 In: Claustro do Silêncio, Igreja de Santa Cruz,
Coimbra. Azulejo, séc. 17

Fonte: Fotografia do autor Fonte: Fotografia do autor

2. Descrição pré-iconográfica
A composição desses azulejos segue um esquema muito claro. No seu
centro, em formato oval, temos uma imagem. Cada imagem é dividida para um
retrato de uma figura masculina, em pé ou sentada, às vezes ao seu redor
outras figuras masculinas, e uma cena um pouco mais complexo. Abaixo dessa
imagem encontra um oval menor que contém um texto em latim e uma
referência. Ao redor de tudo isso temos um tipo de moldura, segurada por duas

80 Todas as fotografias são do autor.


286
figuras pequenas sentadas em dois leões. Na parte superior e mais alta dessa
moldura, encontram-se três cabeças pequenas com lago parecido de asas.
Cenas e figuras são mantidas em azul sobre um fundo branco, os elementos
mais ornamentais e os dois leões de cada imagem em amarelo, com linhas
laranjadas arte morenas.
Como o espaço nestes anais é bastante limitado, precisamos em seguida
fazer mais uma redução drástica: vamos somente estudar um aspecto da
moldura que sua vez acompanha cada um dos sete emblemas que se referem
às bem-aventuranças, mais, outros oito emblemas que reproduzem cenas de
histórias que se encontram nos evangelhos de Mateus e de Lucas.81 Desta
moldura, por sua vez, estudaremos somente o motivo de uma figura sentada
em um leão, que aparece em cada emblema duas vezes (figura 3).

Figura: Azulejo “Parábola inimici Figura: Azulejo “Parábola inimici


supersemenantes zizania, Math 13v24”. In: supersemenantes zizania, Math 13v24” /
Claustro do Silêncio, Igreja de Santa Cruz, detalhe. In: Claustro do Silêncio, Igreja de
Coimbra. Azulejo, séc. 17 [Detalhe] Santa Cruz, Coimbra. Azulejo, séc. 17

Fonte: Fotografia do autor Fonte: Fotografia do autor

81Trata-se de mais 8 azulejos (nos reproduzimos aqui a subscriptio deles]: Azulejo “P.[araboa
aequele operarum mercede; Matth. 20v1”; Azulejo “P[arábola] no habentis vestem muptialem,
Matth. 22v1”; Azulejo “P.[arabola] decem virginum; Matth. 23.v1”; Azulejo “Parábola de
captando ultimo loco, Lc v.7”; Azulejo “Parábola amici importune petentis” Lc II.5; Azulejo
“Parábola misericordis samaritani, Lc X.30”; Azulejo “Paraboa Boni Pastoris Mercenary; Joan
10.v2”; Azulejo “Parábola inimici supersemenantes zizania, Math 13v24”. Isso faz 4 emblemas
para cada uma dos quatro lados do pátio interno.
287
3. Análise iconográfica
Dizemos já que os respectivos azulejos são emblemas. Geralmente,
emblemas são compostos por três partes: a inscriptio que serve como um título
ou um lema, a pictura que é uma imagem e a subscriptio. Em nosso caso,
propomos ler a moldura como este subscriptio. Mas vamos primeiro ver a
importância das bem-aventuranças como todas na cultura visual cristã.
A relação entre uma cultura de paz e as bem-aventuranças não é
incomum, como a obra Diálogo inter-religioso: a missão do diálogo e da paz à
luz das bem-aventuranças de Sebastiano D´Ambra (2019) explicita. Entretanto,
não se trata de uma obra sobre as bem-aventuranças na arte. De fato, em
dicionários sobre a arte cristã as bem-aventuranças são poucas vezes
mencionadas. Uma excepção é o Dicionário de assuntos e símbolos na arte,
editado por James Hall em 1974:
Sermão da Montanha (“As oito bem-aventuranças”) (Mt 5:1-12).
“Quando viu a multidão, subiu a colina. Lá ele se sentou e, quando
seus discípulos se reuniram em volta dele, começou a se dirigir a eles.'
Esta é a primeira ocasião nos evangelhos em que o ensino de Cristo é
relatado em detalhes. Ele começou tratando das oito condições de
bem-aventurança: 'Como são bem-aventurados os pobres, os tristes, os
de espírito manso', e assim por diante. Ele é geralmente representado
de pé em uma colina baixa cercado por homens e mulheres ouvindo,
trocando opiniões ou ajoelhados em oração, ao fundo, o Mar da
Galiléia (HALL, p. 277)82.
O texto é breve, genérico e menciona alguns elementos gerais de
composição com foco nas personagens retratadas, gestos e posturas. Em
enciclopédias confessionais encontramos outras breves menções. Na
Enciclopédia Católica de 2007 encontramos duas observações. Por um lado,
nota-se que as bem-aventuranças eram um tema comum nos vitrais de igrejas
católicas:
As alas laterais são muitas vezes acompanhadas por vitrais que
retratam cenas bíblicas, as bem-aventuranças (Mt 5:3-11), obras de
caridade, santos, virtudes teologais e outras cenas edificantes.
Antigamente, as janelas das catedrais eram dispostas de acordo com
uma regra da TIPOLOGIA teológica, com cenas do Antigo Testamento
(lado norte, sombra) prenunciando cenas do Novo (lado sul, luz)
(FLINN, 2007, p. 299).

82 Muito parecido com Earl (1987, p. 140).


288
Mais exato referente ao uso inicial da iconografia das bem-aventuranças
é o respectivo verbete no Léxico da Iconografia Crista de Okar Holl (1972, p.
148-149). Ele menciona pinturas em igrejas alemães, franceses e italianos do
século 12, entre elas, a famosa São Marcos da Venécia. Infelizmente o autor não
vai além do século 14. Quanto à época medieval, Leslie Ross (1996, p. 33)
aponta à ampliação do gênero das bem-aventuranças:
Além disso, os teólogos medievais (notadamente Santo *Anselmo no
século XI) expandindo as bem-aventuranças bíblicas, identificaram
uma série de "dons" a serem antecipados pelos justos no estado
renovado do mundo após o *Juízo Final. Essas catorze bem-
aventuranças do corpo e da *alma também são retratadas na arte
medieval, especialmente durante o período gótico, como figuras
personificadas que representam: Beleza, Agilidade, Força, Liberdade,
Saúde, Prazer e Longevidade (as dádivas do corpo), e Sabedoria,
Amizade, Concórdia, Honra, Força, Serenidade e Alegria (os dons do
espírito). As figuras são acompanhadas de atributos apropriados, por
exemplo, Rosas para Beleza, Pombas para Amizade. Para temas
relacionados, veja: *Sete Dons do Espírito Santo83, *Virtudes84.

Percebe-se aqui também, a aproximação entre bem-aventuranças e


virtudes como dons do espírito, Essa tendência, provavelmente, abriu aos
poucos o caminho para relacionar as bem-aventuranças não somente com o
grupo considerado a “elite” e o grupo militante da igreja cristã, os monges e as
monjas, mas, pessoas comuns. O texto de James Clifton (2014, p. 545-578)
“Modos de ilustração escriturística: as bem-aventuranças no final do século XVI”
lembra do uso ao final do século 16. Ele menciona gravuras dos artistas Jacques
de Bie (1589; CLIFTON, 2014, p. 548 [ilustração 1]), Harmen Jansz Muller (1566.
CLIFTON, 2014, p. 551 [ilustração 2]), Hans Collaert (1575-1580); Hendrick
Goltzius (1578; CLIFTON, 2014, p. 555 [ilustração 5]), Theodoor Galle (CLIFTON,
2014, p. 559 [ilustração 7]) e Antoon II Wierix (antes 1604; CLIFTON, 2014, p.
562, [ilustração 8]). A partir dessas obras afirma Clifton que não se estabelece

83 Cf. para isso a pintura A adoração do carneiro místico (1432) de Hubert e Jan van Eyck.
84 “Os sete dons são sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, conhecimento, piedade e
temor de Deus. Na arte, especialmente manuscritos góticos e vitrais, os presentes são mais
frequentemente simbolizados por sete pássaros, geralmente pombas (ver: *Pássaros, Simbolismo
de). Às vezes também são representados como lâmpadas ou chamas. Podem aparecer de forma
independente ou circundando a figura de *Cristo, a *Madona e o Menino, ou a *Árvore de
Jessé. Às vezes, os presentes são identificados por inscrições (por exemplo, em pergaminhos
mantidos nos bicos dos pássaros). Exemplo: Sete Dons do Espírito Santo” (ROSS, 1996, 251).
289
um padrão iconográfico, mas, que se manteve uma certa variedade
hagiográfica que já existia na época medieval.
Mesmo assim, pode ainda identificar uma linguagem compartilhada
entre Van Heemskerck/Muller; Goltzius e Snellinck/Collaert (CLIFTON, 2014, p.
576).
A tradição exegética tanto do Sermão da Montanha como como um
todo e as bem-aventuranças em particular é um rio longo, profundo e
largo, com comentários particularmente influentes de Gregório de
Nissa, Agostinho, Nicolau de Lira e a Glossa Ordinaria, e Tomás de
Aquino, seguidos pelos Reformadores e uma útil compilação sobre o
lado católico neste período do jesuíta Cornélio a Lapide. No entanto,
não há tradição visual comparativamente extensa: antes do início do
período moderno, as bem-aventuranças assumiam várias formas, mas
eram mais frequentemente representadas como mulheres segurando
pergaminhos (CLIFTON, 214, p. 546).

Além disso é importante que as bem-aventuranças eram tanto


valorizadas pelos católicos como pelos protestantes, apesar que na sua lista de
referências visuais somente Harmen Jansz Muller (1540-1617) era protestante.
O então já antigo interesse no motivo das bem-aventuranças reaparece
também em vitrais nos EUA ao fim do século 19, inclusive, não somente em
igrejas católicas. Virginia C. Raguin (2010, p. 1276 e 1277) menciona uma Igreja
Unitária que recebe vitrais com esse motivo a partir d 1898 e fala
especificamente dentro da secção “Novo Assunto: O Indivíduo, Família e
Natureza” de uma “popularidade geral” do motivo na época. Essa afirmação se
aproxima a um segundo comentário de Flinn (2007, p. 93): “Há muita escrita
devocional, muitas vezes sentimental, sobre as bem-aventuranças na literatura
católica e protestante.” As bem-aventuranças servem então para a devoção
pessoal e como um tipo específico de modelo de virtude ao lado dos temas da
fé, do amor e da esperança. Não ficamos sabendo nada da base de dados do
autor, mas, as duas menções deixam claro que as bem-aventuranças eram
presente no imaginário religioso da igreja, visualmente reforçados e
pessoalmente procurados.
Assim não surpreende que o tema das bem-aventuranças é comum em
dicionários éticos, tanto quanto uma forma literária específica encontrada tanto

290
no Antigo como no Novo Testamento e como expressão de expectativas divinas
se não do caráter de Deus:
BEATITUDES é uma forma literária usada para descrever um indivíduo
cuja vida é consistente com o que Deus espera, e para indicar que a
“recompensa”, ou bênção, deve ser antecipada. [...] As bem-
aventuranças ao longo das Escrituras tratam tanto da personalidade
quanto do estilo de vida. Cada bem-aventurança visa a
implementação da justiça de Deus no mundo ao nosso redor. Viver as
bem-aventuranças é, portanto, refletir algo do caráter de Deus.
(PARKYN, 1995, p. 204).

Outros textos tematizam as bem-aventuranças como textos


primariamente direcionados à vida monástica:
Para quem escolhe uma vocação “religiosa”, as bem-aventuranças são
conselhos estritos de perfeição, enquanto para leigos e casados as
bem-aventuranças podem ser recebidas apenas como preceitos gerais
de orientação moral. Somente no Vaticano II (Gaudium et Spes, 50) a
Igreja Católica revisa oficialmente este ensinamento e declara que a
vida religiosa clerical e laica são caminhos igualmente valiosos e
honrosos (GUROIAN, 2005, p. 220)12.

Guroian aponta os pesos distintos das expressões visuais das bem-


aventuranças na vida monástica e na vida leiga católica até a segunda parte do
século 20. No mundo protestante isso ocorreu antes, como por exemplo obras
de John Wesley (século 18) e de Dietrich Bonhoeffer (primeira metade do
século 20) documentam85. Além disso, estabelecem-se ainda vínculos mais
específicos. Na Enciclopédia de Religião na Amércia as bem-aventuranças
aparecem, por exemplo, com elemento essencial do cristianismo afro-
americana. Na sua discussão da literatura afro-americana Kimberly Era Conner
(2010, p. 2044) chega de falar de uma específica
[,,,] verdade das bem-aventuranças: que os últimos serão os primeiros,
que o espiritual tem mais valor do que o material, e que o que é
abençoado nem sempre é encontrado em um ambiente santificado. O
mais importante, talvez, para uma comunidade tradicionalmente
marginalizada é o senso de responsabilidade que o povo espera de
seu Deus.

Uma obra visual que representa isso é a pintura Um sermão para os


nossos ancestrais (2006) de Laura James. Outros, como Christopher Holt, na sua

85O livro Discipulado foi inicialmente escrito para os seminaristas da igreja confessante, mas,
depois lido como texto para leigos. Assim, o texto de Bonhoeffer se dirige aos dois grupos.
291
pintura Bem-aventuranças da Rua Haywood (2018/2019), estabelecem mais
uma relação entre as bem-aventuranças e grupos urbanos marginalizados.
Podemos concluir que na cultura visual cristã, as bem-aventuranças
aparecem como orientação atitudinal de uma forma intensiva na arquitetura de
capelas e igrejas – ou seja se direcionando tanto aos leigos como ao clero – a
partir do século 12 e durante toda a época medieval e que eles depois nunca
despareceram plenamente. Observe-se uma tendência de relacionar as bem-
aventuranças com grupos marginalizados ou com grupos se considerando
militantes, tanto leigos (John Wesley, Dietrich Bonhoeffer) como religiosos
(monastérios).
Quando nós voltamos mais uma vez às evidências iconográficas percebe-
se que molduras não são incomuns, em especial não em gravuras, mas, que a
moldura encontrada em Coimbra não tem equivalente. Isso nos pode levar a
duas conclusões distintas: ou se trata de um elemento basicamente decorativo,
um tipo de ornamentação, ou nós temos aqui um aspecto mais significativo
para entender o emblema como tudo. Quanto ao retrato das três cabeças com
asas temos muitos exemplos que se trata a uma referência à Trindade. E quanto
ao motivo de um anjo ou um puto sentado acima de um leão, temos também
uma interessante tradição, ao mesmo tempo iconográfica e emblemática.
A combinação anjo / puto montando um leão forma de fato um motivo
famoso e conhecido entre os livros com emblemas. Em sua forma mais
expressiva, o motivo forma por si mesma um emblema com o título Omnia vincit
amor, o amor vence tudo (figura 4)..Este emblema aparece pela primeira vez no
livro Quaeris quid sit Amor (1601) de Daniel Heinsius como primeiro emblema
de um total de 24 emblemas da obra. Este lugar de destaque na obra fez que o
emblema se tornou famoso, inclusive, independente do próprio livro.
Para entender esse emblema, precisamos decifrar, primeiro, seus três
elementos: o símbolo do leão, o símbolo do anjo ou do cúpido e a tradição
visual de pessoas montando animais costumeiramente não usadas para isso.
Começamos com o primeiro:

292
Os leões são onipresentes como animais simbólicos e são
interpretados positiva e negativamente na tradição judaico-cristã. Ao
contrário do lobo e do cão, o rei dos animais foi integrado na
iconografia sagrada, basicamente como símbolo de Cristo e imagem
da sua Ressurreição, da sua vigilância e da sua natureza divina
(COHEN, 2008, p. 213).

Quando um leão montado, a leitura é negativa. Um exemplo é a pintura


mural Procissão dos pecados montados na capela Notre Dame des Grâces em
Plampinet, Savoy, França, do ano 1490 (COHEN, 2008, p. 18), onde o leão
também aparece. O conjunto pertence então à iconografia dos vícios, nos quais
o leão especificamente representa o pecado da superbia (COHEN, 2008, p.
179). Ao lado dessa leitura há uma outra tradição antiga que parte de 1 Pedro
3.8 e em qual o leão representa o próprio diabo. Esta leitura parece
transparecer diretamente na gravura Omnia vencit amor (1599) de Agostino
Carracci (1557–1602). Nela vemos um cúpido lutando com um fauno, diabo ou
demônio. Já as figuras “humanas” com asas podem significar o próprio amor
(normalmente um cúpido, cf. figura 4), o amor divino (anjos) ou a alma
humana86. Em nosso caso, o símbolo do leão é evidente e que ele é montado
também. Como os elementos do cúpido – arca e flexa – como também dos
anjos e das almas humanas (asas) são omitidos, precisamos fazer uma aposta.

4. Interpretação iconológica
Nós optamos por uma leitura “moral” dessa iconografia que entende que
o amor humano como virtude ganha em força e perseverança na luta contra o
mal por meio do amor divino. Resumimos, então, que os leões montados por
anjos que “seguram” as imagens nestes azulejos tem então um significado
muito além do decorativo. Elas não são meras ornamentações, mas, elas
interpretam as bem-aventuranças e, além disso, mais outras oito narrativas do
Novo Testamento. Eles querem ser lidos como exemplos do amor vencendo
obstáculos, inclusive, o próprio diabo. Esta atribuição “negativa” do símbolo do
leão prevalece tanto na gravura com a frase atribuída a Hugo Grotius (figura 4),

86 Confere a iconografia da alma humana no livro de Schola cordis (Escola do coração), de


Benedictus van Haeften (1588-1648), lançado em 1623 (mais informações veja RENDERS, 2017,
p. 239-269).
293
“Vidi ego qui durum poßit franare leonem: vIdi qui solus corda domaret Amor,
traduzido: “Eu vi aquele que poderia dominar até mesmo um leão feroz, Eu vi
aquele que sozinho poderia domar corações: Amor”. O leão feroz, então,
representa as adversidades mencionadas nas próprias bem-aventuranças. Em
tudo, representam as bem-aventuranças, então, o amor em ação, o amor eficaz.
Além disso, em termos técnicos, assume a moldura o papel da subscriptio um
elemento terceiro que deve ser considerado e lido junto a inscriptio e pictura.
Num sentido mais amplo, é a ideia que o amor ou bem vence o mal, na sua
essência parte da teologia da reconciliação que sempre trata da superação da
inimizade pela amizade humana. Neste sentido é interessante que uma ideia
tão cara para Hugo Grotius, um calvinista arminiano, aparentemente foi
integrado em um livro católico num ambiente da reforma católica. Este aspecto
editorial explica que este aspecto iconográfico reaparece cem anos depois na
iconografia das molduras de emblemas portuguesas em um pátio interno de
um monastério feminino em Coimbra. La se conhecia certamente Hensius (Cf.
ALMEIDA & RENDERS, 2023) e muito provavelmente, Grotius, já que ele, além
de ser teólogo, era jurista e criador de uma lei marítima que favorecia a
navegação em todos os mares por todas as nações.

Considerações finais
A ampla existência de representações das bem-aventuranças em igrejas e
monastérios, mesmo que com intensidades distintos em lugares e tempos
diferentes, pode ser lido como a tentativa de uma cultura de paz? Acreditamos
que sim e em especial quando se aplica uma leitura católica clássica dentro do
campo das virtudes cristãs. Além disso são os emblemas de Coimbra um
exemplo que na própria cultura visual da época se fundam criações
protestantes e católicos em uma linguagem compartilhada, pontualmente mais
pacífica do que bélica, mais, reconciliadora do que combatente, com raízes
antigos e expressões mais contemporâneas. A discreta integração da
iconografia principal do emblema Omnia vincit amor, o amor vence tudo, na
moldura dos emblemas do pátio, fortalece essa interpretação. Nesses azulejos,

294
as bem-aventuranças são vistas como virtudes que promovem o amor; um amor
que vence tudo.

Bibliografia
ALMEIDA, Jonadab Domingues de. RENDERS, Helmut. “Tempora mutantur, et
nos mutamur in illis: um azulejo franciscano brasileiro entre continentes,
confissões e temporalidades”. In: Teoliterária, São Paulo. Aceito para 2023
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296
GT 14 - RELIGIÃO E VIOLÊNCIA
Doutorando Jungley de Oliveira Torres Neto (UFJF)
Doutorando Rondinele Felipe (UFJF)

Ementa: O objetivo deste Grupo de Trabalho é promover um debate qualificado em


torno da temática: religião e violência. A abordagem poderá se desenvolver a partir de
teóricos variados e abordagens metodológicas diversas, com ênfase nos seguintes
eixos: violência no campo da vida política, cultural, econômica e da epistemologia;
essas referidas instâncias tocam propriamente à religião e se repercutem. Abrir-se-á
para abordagens da violência no campo simbólico, em que não há coação física, mas
há danos morais, psicológicos, afetivos, e traços bem ‘violentos’ ao ser humano em sua
afeição. As propostas ao GT podem enfocar em ‘estratégias’ de adotar uma postura
anti-violenta, como, por exemplo: o caminho dialógico, interdisciplinar e interreligioso.
Como extensão da proposta do núcleo ETER, a proposição do GT dedica-se ao debate e
ao estudo de teorias sobre a religião, com intuito de reunir professores, pesquisadores e
estudantes interessados nessa temática supracitada, e, por conseguinte, em debatê-la.
A proposta pode seguir tanto na linha da Filosofia e Epistemologia da Religião, quanto
da Antropologia da Religião. Vertentes que pretendem investigar os aspectos
filosóficos, históricos e sistemáticos da constituição da área de CR e debates
contemporâneos sobre o tema, no que se refere ao nexo entre religião e violência.
Pensar a religião sob os aspectos ambíguos da violência poderá ser promissor no
sentido de buscar reflexões, às vezes polêmicas, mas não sem efeitos práticos para uma
possível implementação didática de busca pela paz, respeito e tolerância entre os
povos. Pensar nessa polêmica junção entre religião e violência, significa também
investigar o conceito de violência e sua repercussão nos cenários religiosos.
Semelhante questão, nos dará suporte para tentarmos responder o que é violência, ou
como a violência se apropria do sagrado. E mais: Quais são as contribuições da Ciência
da Religião para o tema? Movendo-nos na direção desses questionamentos buscar-se-á
trazê-los para o campo da abordagem, debate e reflexão temática da: religião e
violência ou, por extensão, religião e a atitude anti-violenta, de busca pela paz e dos
direitos humanos. Neste desiderato, também será muito interessante proposições de
abordagens fenomenológicas e hermenêuticas. Que investigam como pensadores da
fenomenologia (tanto da religião como filosófica) e da hermenêutica podem auxiliar na
interpretação da religião. Neste caminho, serão indagadas as contribuições para o
entendimento e relação entre religião e violência numa aproximação hermenêutica e
que busca outras fontes para se pensar o tema.

Palavras-chave: Religião; Violência; Diálogo; Paz.

297
GORDOFOBIA: OBESIDADE X GULA
Ana Paula de Paula de Oliveira
Pós- Graduanda em Ciências da Religião e
Ensino Religioso pela Facuminas
mailanapauladepaula@gmail.com

Resumo: O presente estudo gira em torno da correlação contemporânea da obesidade


com o pecado da gula. A gordofobia gera estigmatização da pessoa com excesso de
peso ou obesidade, afetando tanto sua vida social quanto religiosa. Para tanto,
pretende-se realizar uma pesquisa exploratória bibliográfica-documental, por meio de
uma compreensão histórica acerca dessa correlação a partir da Revolução Francesa. A
erudição no que concerne essa analogia, possivelmente logra a consciência sobre o
preconceito estabelecido na sociedade contemporânea. Objetiva-se a compreensão
histórica quanto às similitudes levantas social e academicamente acerca da obesidade e
o pecado da gula ou glutonaria. Espera-se ampliar a compreensão acerca da correlação
entre essas duas temáticas, confirmando o preconceito nessa correlação que se
encontra engendrada na sociedade contemporânea. Acredita-se que o presente
estudo poderá contribuir para o grupo de trabalho, religião e violência. Visto que o
preconceito denominado pelo neologismo, gordofobia, reflete na vida dos sujeitos com
excesso de peso ou obesidade. Afetando o bem estar-mental, a saúde física e espiritual
desses indivíduos que são segregados por pessoas que julgam o excesso de peso e a
obesidade, principalmente pela ligação do mesmo a um dos pecados capitais, a gula, e
neste sentido culpabilizando os atores por seus pecados.
Palavras-chave: Preconceito; gordofobia; obesidade; pecado.

Introdução
O termo gordofobia, trata-se do neologismo para o comportamento
preconceituoso baseado no julgamento de uma pessoa por ter excesso de peso
ou obesidade, o assunto vem ganhando destaque no cenário nacional,
sobretudo como resultado do ativismo-gordo.
O excesso de peso e a obesidade tem sido frequentemente associado ao
pecado da gula, com compreensão restrita ao consumo exagerado de
alimentos, além das necessidades fisiológicas do indivíduo. Portanto este estudo
gira em torno da compreensão dessa correlação na sociedade contemporânea.
Objetiva-se a compreensão histórica quanto às similitudes levantas social
e academicamente acerca da obesidade e o pecado da gula ou glutonaria.
Espera-se ampliar a compreensão acerca dessas duas temáticas, confirmando o
preconceito nessa correlação que se encontra engendrada na sociedade.

298
A presente pesquisa caracteriza-se como exploratória visando uma maior
familiaridade com o problema, no caso a correlação do pecado capital da gula,
com a característica estética do excesso de peso e a obesidade. Quanto ao
procedimento, optou-se por uma pesquisa bibliográfica por permitir uma
cobertura mais ampla dos fenômenos e fatos passados. Através de uma busca
sistematizada em periódicos, utilizando como palavras chaves: gula, obesidade,
idade média, idade moderna, idade contemporânea. Utilizando operadores
booleanos e combinações dos termos, foi possível obter sete bibliografias que
colaboram para o desenvolvimento do estudo. Nesse ponto salientamos o
artigo, O nascimento do discurso patologizante da obesidade de Cezar Santolin
e Rigo Barbosa. Além da obra, Gula: história de um pecado capital do
historiador Florent Quellier.

1. O quinto pecado capital


No século IV o monge asceta Evágrio do Ponto, foi o primeiro autor a
criar um catálogo com oito vícios, tentações que prejudicavam moralmente o
cristão e a elevação de suas almas. Mais tarde no século VI o Papa Gregório
Magno, reduz essa lista para sete e denomina-os de “pecados
capitais”(BÁCSFALUSI, 2016,p.221). De acordo com Quellier (2011, p.18) “a
ordem dos pecados foi ligeiramente modificada até assumir a forma canônica
atual, de maneira que a gula aparece em quinto lugar”. A saber: orgulho,
avareza, luxúria, ira, gula , inveja e preguiça. Gula , pecado que trataremos neste
estudo, deriva do latim “goela” que significa “garganta” (QUELLIER,2011, p.12).
Sobre o entendimento da Igreja acerca desse pecado, destacamos:
Para Gregório, o Grande, ele pode assumir inúmeras formas: comer fora
das refeições ou antecipar o horário das refeições; comer e beber muito
(“mais do que é necessário”) em relação às próprias necessidades
fisiológicas; comer com avidez ; buscar um preparo sofisticado
(“suntuosamente”), alimentos mais ricos, iguarias refinadas (“com
requinte”) (QUELLIER, 2011,p.19).

Para Tomás de Aquino, comer era algo "inerente à natureza do homem,


portanto, não é pecado ter apetite”(PILLA, 2018,p.219). Para os teólogos
medievais, a gula não passava de um “pecado venial”, se preocupavam muito

299
mais com as consequências morais como a “alegria animal, obscenidade, perda
de pureza, loquacidade excessiva e enfraquecimento dos sentidos”, visto que o
pecado da gula incluí também a embriaguez que pode “conduzir a disputas,
atos violentos como até mesmo um homicídio, a palavras obscenas ou
blasfemas” (QUELLIER, 2011, p.19).
Entre as injúrias medievais, glutão e seus derivados “abarcam o sentido
atual de comilão, mas também de depravado e de libertino, de maneira que a
referência à luxúria nunca está distante” (QUELLIER, 2011, p.20). Para o mesmo
autor a representação medieval do guloso designa frequentemente categorias
sociais, onde era representado como “um pecado dos ricos e dos poderosos”.
Em seu seio a Igreja Católica lutou veementemente contra os escândalos
envolvendo padres e monges embriagados. No final da Idade Média, não
demonstrou esse mesmo ímpeto para lutar contra os amantes da boa comida.
Inicia-se o processo que o historiador Quellier (2011, p.100) denomina de
“desculpabilização do prazer da gula”. O prazer pela boa comida é aceito
quando se respeita as regras de boas maneiras à mesa, dessa forma incentiva a
“moderação e a decência à mesa sem condenar os prazeres gustativos e
enológicos”, dessa forma a Igreja Católica “proscreve o glutão , mas valoriza o
gourmet” (QUELLIER,2011,p.101).
De acordo com Dillmann (2021, p.420), na modernidade, os autores
religiosos não tinham um consenso sobre as características que conferissem
sentido ao pecado da gula enquanto hábitos alimentares. Para o padre do
período, Pedro Santa Clara, por exemplo, o “maior erro estava no modo voraz
de comer e não no consumo exagerado em si” (DILLMANN, 2021, p.421).
Pecar pela gula não estava relacionado direta e exclusivamente com o
consumo em si de comidas e bebidas e nem mesmo ao desejo/vontade
de comê-las, mas sim, aos modos vorazes, curiosos, esquisitos e
exagerados, capazes de prejudicar a saúde, a razão e o juízo sobre o
caminho da salvação (DILLMANN, 2021, p.434).

Conforme Quellier (2011, p. 105-110), na Idade Moderna o processo de


“codificação dos modos à mesa” que surgiram nos séculos XII e XIII tem sua
continuidade e a gula se torna “sinal de distinção social, a marca de uma
educação”. O mesmo autor salienta que a partir do século XVII a “gula honesta”
300
se impõe, “como componente essencial do modelo cultural francês”. O rei Luís
XV (1715-1774), teve seu reinado conhecido como um reinado gourmet,
marcado pelas ceias em Versailles, preparadas pelos cozinheiros mais reputados
de Paris, é nesse cenário que se desenvolve uma cozinha mais refinada e criativa
que posteriormente dá origem a alta cozinha francesa (QUELLIER, 2011, p. 110-
105).

1.1. De gula a gourmandise


A Revolução Francesa que marca o fim da Idade Moderna e o início da
Idade Contemporânea, é lembrada pela " luta contra a tirania exercida pelo
regime monárquico da França", motivada pela “crescente desigualdade social,
pela crise econômica devastadora e pela fome endêmica sofrida pela grande
maioria da população" (ALCOFORADO, 2016, p.1). O monarca Luís XVI, de
acordo com Varela (2006, p. 84) “gostava de caçar e de consumir, comia por
enfado, por inadequação ao trono, por indecisão crônica”. Muitos são os
autores que relacionam o rei deposto com seu apetite voraz, quando não o
denominam de glutão.
O contraste entre o luxo da aristocracia e a pobreza dos camponeses foi
intensificado pela crise agrícola e o aumento populacional. De acordo com
Coggiola (2013, p. 289) o chamado terceiro estado vivia a "base de pão preto e
em casas de péssimas condições, sem saneamento básico e vulnerável às
doenças de todo tipo". Com seus meios de subsistência ameaçados, a população
dá início a revolução influenciados pelos ideais iluministas, “liberdade, igualdade
e fraternidade”, defendendo o uso da razão contra o regime absolutista,
buscando mais liberdade econômica e política (ALCOFORADO, 2016, p.1).
Na primeira metade do século XVIII, era comum os famosos manuais de
civilidade que continham instruções de boas maneiras, além de conselhos que
visavam a santificação. Contavam ainda com instruções para que se evitassem
pensamentos e ações pecaminosas. Com relação a mesa, as atitudes que
deveriam ser controladas e modificadas eram as do “consumo exagerado,
prazeroso e curioso de comidas e bebidas, já que desde o medievo, o discurso

301
cristão estabeleceu a oposição entre alimento espiritual e alimento material”
(DILLMANN, 2021,p. 411).
Nesse período circulava na França, “compreensões contraditórias e
supostamente ambíguas a respeito da gula, a depender dos interesses de quem
enunciava” (DILLMANN, 2021, p. 415). Isso porque a partir do século XVII o
bom gosto influenciado pelo discurso sobre as Belas-Artes é elevado a um
diferenciador social (QUELLIER, 2011,p.128).
Na Enciclopédia francesa do século XVIII, o verbete gourmandise
apresentava diferentes entendimentos, todavia começava referindo o
“amor à boa mesa”, uma decorrência da ostentação, com exemplos dos
requintes e prazeres gastronômicos da Antiguidade(DILLMANN,
2021,p. 415).

1.2. Em bom ponto


Na Idade Média “nunca foi aprovada a corpulência excessiva ou a gula,
mas não por motivos de saúde, porém devido às correntes filosóficas, éticas,
estéticas, morais e/ou religiosas” (RIGO, SANTOLIN, 2012). De acordo com os
autores, a emergência do conceito de obesidade e a patologização dessa
condição ocorreram a partir do final do século XVIII, e “junto com os discursos
patológicos jazem valores morais e políticos”.
Rigo e Santolin (2015) no artigo “O nascimento do discurso
patologizante da obesidade”, relatam que ao pesquisarem em enciclopédias do
período que vai de meados do século XVII a meados do XVIII, sobre os verbetes
“obésité/obesity e corpulence/fatness”, identificaram que autores da época
consideravam “corpulence e obésité” como sendo “embonpoint excessivo”. A
expressão “embonpoint” ou em português “em bom ponto” abordada como:
[...]ocorre quando todas as partes são abundantemente regadas pelo
suco nutritivo, que os corpos estão macios e rechonchudos [roliços], em
uma palavra cheia de suco; denomina-se os corpos neste estado corpos
quadrados, o que queremos dizer é que as partes são nutridas em todas
as suas dimensões, que dão ao corpo sua força, a beleza e a
consistência exigidas. (RIGO, SANTOLIN, 2012 apud ETTMULLER, 1699,
p. 608-609).

Os autores salientam o papel valorativo do adjetivo em relação à


negatividade dos verbetes corpulence ou obésité. No entanto, se trata de uma
questão estética e não relacionada à massa ou gordura corporal. Configurada
como uma qualidade feminina no século XIX, “embonpoint” ou ser macia,
302
rechonchuda é relatada por um sujeito que, possivelmente, fala em nome do
gênero masculino. Já na obra de Sauvages (1772) os autores identificam
“embonpoint em excesso”, ou seja, “a corpulência ou polisarquia” utilizadas
como sinônimos e denominadas como “doenças caquéticas ou caquexias,
termo que significa feiura” (RIGO, SANTOLIN, 2015, p. 85).

1.3. A gula secularizada


A campanha para prevenção da obesidade infantil lançada em 2019
pelo Ministério da Saúde, foi noticiada pelo site Alerta Paraná (2019) sob o título
de, “Pecado da gula produz uma geração de obesos”. O excesso de peso
sempre foi associado a estereótipos negativos como à preguiça, a gula e a falta
de força de vontade (FRANÇA, 2022). A palavra obesidade deriva do latim
obesus, “seria uma das declinações de ob edere – se dirigir à comida – e,
geralmente, vinha acompanhado da palavra nimia – excessivamente, ou seja,
obesus ou obesus nimia se referia àquele que se dirige à comida
excessivamente ou come excessivamente” (RIGO, SANTOLIN, 2012). Surge no
contexto médico relacionado à gula pela primeira vez em 1620 referindo-se
como um risco ocupacional principalmente das classes mais abastadas (DE
OLIVEIRA, 2014, p.328).
Como visto anteriormente, a relação entre obesidade e o pecado da
gula surge inicialmente nas temáticas filosóficas e religiosas pautadas em
questões morais e éticas próprias, perpassa para as questões estéticas
influenciadas pelos anteriores. Finalmente na época mais recente da história
Ocidental essa associação vem a transformar os discursos estéticos e morais em
uma questão biológica. Embora “os médicos já estivessem trabalhando na
construção de um discurso patologizante desde o final do século XVIII é
somente a partir da segunda metade do século XIX [...] que a patologização da
gordura irá se tornar um discurso mais popular”(RIGO E SANTOLIN, 2015 ,
p.90). Para o historiador francês Quellier (2011, p. 214) “o ressurgimento
vigoroso de um jugo médico penoso e de um discurso dietético moralizante

303
reatualizou o pecado da gula nas sociedades, todavia marcadas por um recuo
histórico das igrejas cristãs”.
Durante os séculos XX e XXI as agências de publicidade utilizando-se do
legado cristão dos pecados capitais como argumentos de venda onde a
“associação gula-sedução, ou até mesmo gula-erotismo, tornou-se um
verdadeiro clichê para vender café, chocolate, sorvetes, iogurtes…” (QUELLIER,
2011, p.216). Pelos mesmos meios publicitários, por outro lado a gula é
condenada e o excesso de peso é rejeitado, visto como horrendo, devido ao
apelo estético-midiático.

Conclusão
Inicialmente desejava-se a compreensão acerca da correlação do pecado
da gula e da obesidade na sociedade contemporânea, no entanto durante o
levantamento de informações identificou-se a necessidade de ir mais a fundo e
buscar essa compreensão desde a idade média, para compreender qual o
legado que foi recebido pela sociedade atual.
O quinto pecado capital apresentou-se como polissêmica e carregava a
concepção da moralidade cristã. Perpassa a associação com a luxúria, como
uma forma de condenação as bebedeiras nas tabernas medievais, os exageros
dos banquetes da aristocracia e até mesmo a voracidade do clero. Aparece com
frequência relacionado a voracidade e a comportamentos condenáveis e não
com a quantidade de comida em si.
A utilização do termo obesidade, relaciona a pessoa com excesso de peso
única e exclusivamente com o ato de comer em excesso. A patologização da
obesidade pelo discurso biomédico amplamente difundido socialmente, carrega
influência da narrativa religiosa cristã e o pecado da gula ou glutonaria.
Culpabilizando assim os sujeitos por seus pecados e falhas morais.
A obesidade sofreu uma alteração de classe social, passou de um risco
operacional das classes mais abastadas para, na sociedade contemporânea,
afligir os mais desfavorecidos, os mais pobres, com baixa escolaridade e com
maior incidência em mulheres. O mesmo ocorreu com o pecado da gula. A

304
sociedade contemporânea compreende que o gourmet é o apreciador e
entendedor da boa mesa, da alimentação requintada, do preparo sofisticado e
das iguarias. Já o glutão é aquele que não tem segurança alimentar, acesso a
frutas, legumes e vegetais. Que não possui acesso a educação e atividades
físicas adequadas.
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o mundo. Curitiba: Editora CRV, 2016.
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Pecado da gula produz uma geração de obesos. Disponivel em:
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geracao-de-obesos Acesso: 19 Set 2022
PILLA, Maria Cecilia Barreto Amorim. Dominando a própria carne: gula,
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XX). Diálogos, v. 22, n. 1, p. 218-228, 2018.
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VARELA, Ana Paula Gramacho. Você tem fome de quê?. Psicologia: ciência e
profissão, v. 26, p. 82-93, 2006.
305
INTOLERÂNCIA E A “BUSCA PELA PAZ”: ANÁLISE DE DISCURSOS
NEOPENTECOSTAIS DIRECIONADOS A RELIGIÕES AFRO-
BRASILEIRAS
Julia Geralda dos Santos Machado
Graduanda em Ciências Sociais
pela Universidade do Estado de Minas Gerais
juuhhmachado45@gmail.com

Airiely Ingrid Souza de Paula


Graduanda em Ciências Sociais
pela Universidade do Estado de Minas Gerais
airielypaula@gmail.com

Resumo: A intolerância religiosa destinada a religiões afro-brasileiras é um fenômeno


que tem crescido, gradativamente, na sociedade brasileira. A presença de violências
físicas e simbólicas em relação a esses grupos em diferentes contextos se deu mediante
as especificidades do Brasil, construído às margens de um colonialismo segregativo e
impositivo. Diante da crescente desse fato e da emergência, progressiva, dos grupos
neopentecostais no Brasil, a presente pesquisa visa observar como se concebe essa
intolerância atualmente por parte dos neopentecostais destinados às religiões afro-
brasileiras. Para isso, pretende-se analisar os discursos de Edir Macedo e Valdemiro
Santiago - líderes evangélicos - em suas redes sociais (Instagram, Twitter e YouTube), de
modo a detectar as características discriminatórias voltadas às religiões afro-brasileiras.
Não obstante, é possível notar que os neopentecostais consideram religiões de matrizes
africanas como “inimigas” e, por isso, promovem tais violências. A pesquisa se encontra
em fase embrionária, mas traz percepções sobre como a marginalização social
acontece e assim, fere a liberdade de expressão e os direitos humanos no que tange a
diversidade social do país. Além disso, nos faz compreender como se dá a magnitude
do fenômeno e troca de saberes de estudos relacionados com as questões étnico-
raciais, contemplando o desenvolvimento da pesquisa.
Palavras-chave: Discurso; Intolerância Religiosa; Neopentecostal.

Introdução
A intolerância religiosa destinada às religiões afro-brasileiras é um
fenômeno que tem crescido gradativamente e, com isso, o discurso violento tem
se enraizado descomunalmente no pensamento social brasileiro. Tal fato se
consolida no interior das relações sociais, devido às imposições durante o
período colonial no Brasil, colocando os negros em uma posição desfavorável
na hierarquia social, onde foram segregados e tratados com extrema violência.
No entanto, sobreviveram naquele contexto em prol das predileções dos
aspectos culturais, sociais e econômicos de seus “senhores”, onde o corpo negro

306
fora desumanizado (tratado com extrema violência), assim como os seus
costumes atrelados a algo maligno e desfavorável no tocante à esfera social.
Os jesuítas tiveram um papel elementar para conceber esse pensamento,
a partir do processo de catequização dos povos que aqui habitavam e dos que
estariam prestes a chegar. Um dos maiores exemplos de apagamento histórico
de um grupo que ocorreu na História do Brasil, através da imposição dos
costumes, linguagem, cultura, modo de vida que se difere de sua realidade. Um
espaço moldado à desumanização outorgado pelo eurocentrismo dos
exploradores sob os explorados.
Os negros ao exercerem a sua religiosidade era considerado um ato de
desrespeito para aqueles que os superintendiam. Sendo assim, só seria possível
fora dos limites da fazenda ou do olhar dos “patrões”. Eis então a necessidade
de tornar o cristianismo enquanto um modelo que deve ser seguido,
indiferentemente das particularidades religiosas dos africanos. Portanto, o
exercício de sua fé, de cultuar os seus deuses e orixás não era uma tarefa fácil,
quase inexistente - só não era extinta devido a imensa resistência dos quilombos
e desse povo.
Ora, evangelizar os negros e indígenas era uma maneira de implementar
psicossocialmente, a ideia de que o cristianismo era o modelo correto e ideal de
exercer a fé, no intuito de formar homens e mulheres em conciliação com as
arbitrariedades das incontingências e eventualidades daquela época.
Na perspectiva bourdieusiana, enraizou as questões antagônicas (por
meio de um habitus) no que tange a estrutura social, de modo a manter o
estado das coisas através da naturalização de um discurso desigual - até mesmo
dos próprios grupos subalternizados socialmente.
Mesmo após a abolição da escravatura (1888), o pensamento a respeito
do negro e de sua cultura se enraíza como algo pernicioso. A resistência se
torna ainda maior para resgatar suas crenças, ritos, danças etc. além do convívio
com os 353 anos de escravidão. Com a inauguração de uma sociedade de
classes, a sua luta por independência - em todos os aspectos - se tornou algo
mais difícil.

307
Essa complexa relação hierárquica e exploratória demonstra as
especificidades do nosso país e se encontra interligada ao tradicionalismo
cultural brasileiro que, consciente ou inconscientemente, contribui para essas
espécies de relações de poder, fazendo com que esses indivíduos inseridos em
um contexto de desigualdade social e racial, se tornem progressivamente mais
vulneráveis ao racismo estrutural.
E é fundamentado nisso que podemos afirmar que a presença de
violências físicas e simbólicas em relação a esses grupos, em diferentes
contextos sociais, são traumas de um tempo que consolidou no imaginário de
nossa brasilidade uma imagem desalmada dos negros. O que muda é que em
nossa contemporaneidade usa-se de uma “cordialidade racial” para se referir aos
negros, onde procura-se mascarar o preconceito racial, ou melhor, o discurso
intolerante, de maneira mais ou menos “apaziguada”. Entretanto, tal discurso é
considerado violento, visto que se constitui de forma excludente e exploratória,
que dão forma a estrutura desigual - em todos os aspectos sociais - do sistema
capitalista.
Dessa forma, se considerarmos a epistemologia da palavra “intolerância
religiosa” - aquilo que não leva em conta a diversidade de crenças existentes -
ela é insuficiente para explicar o que transcorre com grupos religiosos afro-
brasileiros. Isso se consolida na medida que o preconceito ou os ataques,
referentes a este segmento religioso próprio, são intolerantes porque se
encontram conectados com um grupo étnico específico: o negro. No entanto,
estão inseridos subalternamente em um espaço de desigualdade religiosa,
ferindo a dignidade humana e o direito de liberdade para o exercício de
qualquer fé/crença.
Considerando este fato, o presente trabalho busca trazer pontos que
procuram compreender o fenômeno aqui apresentado a partir da análise de
discursos de grupos neopentecostais direcionados ou que aludem às religiões
afro-brasileiras. A escolha se deu devido à crescente deste grupo religioso no
Brasil (principalmente a partir da década de 70), que tem influenciado
drasticamente diversos outros campos na sociedade.

308
Foram examinadas as redes sociais, mais precisamente Instagram,
Facebook e Youtube, de duas figuras famosas neste âmbito, apontados como
porta-vozes do neopentecostalismo no país: Edir Macedo e Valdemiro Santiago.
Também foi levado em conta as publicações das igrejas que correspondem à
corrente de pensamento evangélica particular dos sujeitos. O objetivo do
estudo é detectar quais são as tendências, as características discriminatórias
voltadas às religiões afro-brasileiras e como isso repercute na sociedade.
O estudo está em fase de desenvolvimento, mas já traz alguns resultados
interessantes mediante ao fato. Podemos perceber como os neopentecostais se
utilizam de um discurso de uma luta do “bem contra o mal” - que nesse caso o
mal está ligado com o outro, enfatizando as desigualdades perante esse grupo
social. Além disso, muitas das falas não fazem um ataque direto aos afro-
brasileiros, mas são carregadas de signos e símbolos que ferem a liberdade de
expressão e os direitos humanos no que tange a diversidade existente no país,
permanecendo nas entrelinhas da sociedade - que será pontuado no tópico 3
deste artigo.
Ademais, estudos que concernem a respeito da intolerância religiosa nos
fazem compreender como se dá a magnitude do fenômeno, em diversas
perspectivas teóricas metodológicas no país, ampliando a troca de saberes de
estudos e produção do pensamento científico relacionados com as questões
étnico-raciais em nacionalidades heterogêneas como o Brasil, contemplando o
desenvolvimento da pesquisa.

1. O racismo religioso
Como destacado anteriormente, os povos africanos trazidos para o nosso
território experienciaram o dano do apagamento e silenciamento de suas raízes
culturais e sociais originárias de seu continente ao chegarem no Brasil.
Mediante a isso, criou-se no ideário social uma imagem negativa e estereotipada
do negro devido ao estigma social arraigado, marginalizando- os socialmente.
O posicionamento desfavorável em relação ao todo dominante
(patriarcalismo tradicionalista) é consonante com o desenvolvimento da

309
industrialização, que inaugura a inserção de um capitalismo particular ao país -
em conformidade com uma gama de questões desiguais no que concerne a
raça, espaço, cultura, etc. As antigas “Casas Grandes” se transformam em
prédios e espaços nos grandes centros urbanos frequentados por pessoas cuja
classe social é favorável relativamente à massa marginalizada, prevalecendo o
prestígio da cultura predominante. Todavia, às “Senzalas” se configuram
enquanto casas amontoadas umas sobre as outras - ou em subúrbios - às
margens dos centros permanecendo, relativamente, uma boa parcela da
população considerada “sem cultura”, de “cor” e miserável, colocando em xeque
o mito de uma democracia racial no país.
É de acordo com essa questão que se inaugura a modernidade no país,
dialogando com um capitalismo selvagem que desclassifica e desumaniza os
desfavorecidos, em detrimento dos favorecidos.
Teóricos como Nina Rodrigues, por exemplo, se debruçou nos estudos
acerca das problemáticas sociais no Brasil, adotando uma postura positivista e
darwinista a respeito do negro. Em “Os Africanos no Brasil”, tece sua análise por
meio de um discurso racista e eurocêntrico para conceber às religiões afro-
brasileiras. Desse modo, percebe-se que conforme sua perspectiva, o problema
do Brasil é porque se tornará “mestiço”, visto que em um território diferente do
seu não poderia exercer seus costumes e crenças.
Através disso, a formação do pensamento social brasileiro a partir de
autores que compartilhavam mais ou menos das mesmas idéias de Nina
Rodrigues, via como solução para o Brasil o “embranquecimento” da população.
De certa forma, uma atitude tanto quanto danosa e perversa no que tange ao
ser humano, tendo em mente que foi uma maneira de “expurgar” o negro da
brasilidade - e assim, silenciar toda uma história.
Ademais, as representações e/ou crenças afro foram consideradas em
muitos lugares (e ainda são) “representações do demônio”, tal como: exus,
pomba giras, orixás, etc.. Além disso, acreditava-se que em seus rituais
aconteciam sacrifícios humanos e os que usavam animais eram vistos como
pessoas com distúrbios sexuais, como ninfomania (Nina Rodrigues, 2010).

310
Outrossim, as diferenças ou similaridades de uma religião em relação a
outra era medida pelo nível intelectual, marginalizando as especificidades
culturais das religiões afro-brasileiras.
O ódio aos terreiros era compartilhado nos Diários de Notícias da época
(entre 1885 e 1905), conjecturando a ideia de que se praticava a feitiçaria e
“baderna”, onde os pais e mães de santos eram tidos enquanto "exploradores
da credulidade dos néscios”. Entretanto, o “problema” social em questão se
estreitava mediante ao negro, que “desprovido de cultura” e de “Deus”,
subvertia os campos sociais.
Na realidade, em conformidade com os estudos de Bastides, o negro é
pensado a partir do “outro”, mais precisamente sob aqueles que possuem uma
vantagem social em relação à sua posição no ordenamento. Devido às
mudanças na estrutura social, eles tiveram grandes dificuldades de se inserirem
em uma sociedade cujo domínio se concebe de maneira patriarcal europeu,
tradicional e católico, que de certa forma impactou o quadro cultural de suas
manifestações.
Sendo assim, o sociólogo afirma que as religiões afro-brasileiras não
podem ser compreendidas a não ser se examinadas, simultaneamente
sob uma dupla perspectiva: de um lado, elas expressam certos efeitos
do dualismo estrutural senhores - escravos, são modificados pela luta
de cores e refletem a estrutura da sociedade global; de outro, em
conseqüência da divisão das grandes classes em grupos de interesses
ou de crenças diferentes, formam o ponto inicial de uma nova
estrutura de classes de negros, são elas mesmas criadoras de formas
sociais. Para compreender essas nações, esses batuques ou essas
confrarias, é preciso recolocá-los na sociedade total da época,
caracterizada pela monocultura, pela escravidão e pela grande
propriedade (BASTIDE, 1971, p. 32).

Para além disso, vale ressaltar todas as mudanças que as religiões afro-
brasileiras sofreram para que pudessem sobreviver fora de seu continente de
origem. Com o decorrer do tempo é possível notar o sincretismo que foram
acometidas, que teria sido diferente caso não fossem silenciadas, valorizando
suas especificidades e particularidades culturais e sociais e assim, de seu povo.
Camurça e Gonçalves (2009), destaca como isso ocorre, aludindo o
quanto que as religiões afro tomaram para si determinados aspectos do
catolicismo em suas práticas religiosas, haja visto que é concebida como religião

311
dominante. Para que fosse possível existir, o período escravocrata atiçou essas
desigualdades, tornando esse silenciamento uma das marcas sombrias de um
contexto para a nossa contemporaneidade.

2. Do Velho ao novo - o paradigma do neopentecostalismo


Foi a partir das influências norte-americanas que o pentecostalismo se
instituiu no Brasil. Essa nova vertente do protestantismo, porém de maneira
popular, é disseminada no início dos anos 70 - carregado de novas
características, possibilitando a denominação neopentecostal. Essa nova forma
de expressão religiosa se encontra atrelado a uma cultura de consumo, típicos
do capitalismo, mas com um culto dotado de especificidades, como: o poder de
“livramento” (geralmente conectados com outros segmentos religiosos);
libertação dos males da vida humana; realização da cura de enfermos. Em
outras palavras, os neopentecostais “abominam” determinadas práticas
religiosas, como é o caso do culto a vários deuses ou orixás, e usam de um
discurso do entrave de uma luta do “bem contra o mal" em seu ideário cristão.
As lideranças neopentecostais, enxergam a religião e a fé a partir de um
capital, usado para internalizar um habitus religioso, em que influencia não só
as regras do mundo religioso, mas também da vida humana (BOURDIEU, 2007).
Tendo em mente este enunciado, a instituição/pastores neopentecostais são,
satisfatoriamente, influentes na sociedade e conseguem intervir em diversos
campos sociais, explicando o número crescente de fiéis.
Ademais, os ideais cristãos neopentecostais são ensinados e
estabelecidos pelo corpo da igreja enquanto “tipo ideal” a ser seguido,
convergindo em diferentes classes sociais. Isso se concebe principalmente em
classes mais baixas, haja visto que um dos discursos ideológicos utilizados é de
oferecer ajuda aos pobres, cura de doenças, “libertação dos pecados”, entre
outras coisas. Isso também repercute e conquista cidadãos mais
fundamentalistas, devido a valorização e autoconservação de valores
tradicionais brasileiros, (como pró-vida, o poder da família, combate ao mal da
sociedade etc.). Além disso, possui templos em diversos lugares do mundo, não

312
se limitando ao território de origem da instituição - como é o caso da Universal,
do bispo Edir Macedo.
Sendo assim, o uso dos meios de comunicação se faz presente e a
remodelagem no discurso a fim de mobilizar o público é a parte crucial para
entender esse avanço da onda neopentecostal no país. As religiões passam a ter
o fiel como um bem, estabelecendo uma lógica de mercado sobre eles,
competindo com diferentes segmentos - católica, evangélica, afro-brasileira,
entre outras.
Dessa forma, o sagrado não ocorre após a morte, mas a partir da
conquista de bens simbólicos, típicos dos ideais protestantes aliados com os
ideais de consumo da sociedade capitalista. É comum observar atitudes pelos
pastores de tais instituições a venda de adereços “mágicos” e de "cura'', orações
e sessões de “descarrego”, cujas indulgências dos fiéis podem ser perdoadas por
meio de doações dos mesmos.
A igreja oferta bens e serviços para a comunidade, mas são interesses
criados e estabelecidos pela igreja em que o fiel toma para si, por meio do
habitus arraigado, como algo verídico e necessário para sua vida. Logo, acredita
em tal demanda, beneficiando a igreja, demonstrando o quanto ela possui um
poder simbólico em relação aos seus praticantes.

3. Edir Macedo e Valdemiro Santiago nas redes sociais - teleparticipação


Mediante ao imenso poder que a igreja e seus líderes emana, neste
ponto iremos levar em conta duas figuras importantes, porta-vozes do
neopentecostalismo no Brasil: Edir Macedo e Valdemiro Santiago, bem como
suas instituições. Com o passar do tempo essas duas personalidades
emblemáticas se tornaram um dos bispos evangélicos mais bem sucedidos do
país, com um patrimônio de milhões de reais, devido ao crescimento de suas
igrejas.
Entretanto, apesar de fazerem parte de um movimento neopentecostal,
possuem performances diferentes, dado as inúmeras formas de segmento da fé
evangélica. Logo, seguem aspectos básicos do neopentecostalismo, acerca da

313
“batalha espiritual” contra o diabo, a pregação da teologia da prosperidade
particular à suas igrejas e estão, progressivamente, ancorados em uma estrutura
e base interna empresarial, ou seja, a igreja enquanto uma característica do
sistema capitalista neoliberal.
O uso das redes sociais se faz necessário visto que é uma das formas
pelas quais serve de aparato para publicação de suas atuações, seja individual,
seja coletiva (nas igrejas), ampliando o alcance de fiéis. Logo, utilizamos como
recurso as análises de suas redes sociais tais como: Instagram, Facebook e
Youtube. Diante disso, ambos fazem postagens todos os dias em suas redes,
com temas diversos que vão desde a questões relacionadas com a fé nos
conformes de suas ideologias religiosas, até assuntos relacionados com o
âmbito político.
Em relação à persona dos evangélicos neopentecostais pesquisados,
nota-se que Valdemiro Santiago se mantém em um discurso mais
“transparente”, em contrapartida, a Edir Macedo, cujo discurso é identificado
nas entrelinhas. Contudo, ambos produzem atos perlocucionários que
produzem um discurso de ódio a um grupo específico e repercutem efeitos
negativos na sociedade.
Ora, Edir Macedo, em boa parte de suas publicações faz ataques
relacionados com outros segmentos religiosos, abarcando o conceito de “fé
inteligente” e “fé burra”, onde a última está conectada com crenças que
contemplam o rito, a dança, o cântico, o “axé” e o batuque - muito presente em
religiões afro-brasileiras. Além disso, no site da própria Igreja Universal, há uma
gama de publicações que fazem um ataque direto aos candomblés e
umbandas, que de certa forma (re) produz efeitos negativos diversos entre os
seus seguidores.

Considerações parciais
Mesmo com questões polêmicas envolvendo os dois bispos evangélicos,
a aprovação social de ambos se concebe de forma efetiva por parte de seus
seguidores. Além disso, o ataque às religiões afro-brasileiras, mais do que uma

314
estratégia de proselitismo junto às populações de baixo nível socioeconômico
parece ser uma espécie de estratégia à la “cavalo de Tróia” às avessas. Combate-
se essas religiões para monopolizar seus principais bens no mercado religioso,
as mediações mágicas e a experiência do transe religioso, transformando-o em
um valor interno do sistema neopentecostal (GONÇALVES, 2005).
Conforme os estudos de Vagner em relação as razões desta batalha
espiritual, procura entender algumas dimensões desse ataque (de forma física
ou simbólica), partindo do trânsito de certos termos entre os sistemas religiosos
em disputa, sob aparência de uma ruptura formal dos seus modelos,
continuidades significativas para o processo de aproximação e diferenciação
dessas práticas religiosas.
Tal como um dos livros produzidos por Edir Macedo intitulado “Orixás,
Caboclos e Guias: deuses ou demônios?”, publicado em 1997 - retirado do
mercado por ferir os direitos humanos, a liberdade religiosa de um grupo e
instigar o racismo religioso - e retoma ao mercado em 2019, é considerado um
dos livros evangélicos mais vendidos no Brasil.
Por oposição ao sistema afro-brasileiro, decretando-lhe uma guerra sem trégua,
o neopentecostalismo adotou o diabo como protagonista tornando-se refém de
quem pretendia aprisionar, pois o que seria do céu sem o inferno, da glória do
vencedor sem as contínuas legiões de vencidos? (Almeida, 1996; Oro, 1997;
Mariano, 1999).
Não somente os bispos, mas a própria instituição ligada a eles insulta a
população afro, agredindo simbolicamente as crenças e ritos que correspondem
a umbanda e/ou candomblé, dentre outros segmentos religiosos afro. No
entanto, conectam suas especificidades religiosas com “macumbarias”, feitiçarias
ou do “demônio”.
Os resultados da pesquisa ainda são parciais, mas trazem percepções
interessantes a respeito do fenômeno, demonstrando o quanto os
neopentecostais consideram as religiões afro prejudiciais para a sociedade, algo
prejudicial para a diversidade existente em nosso país.

315
Sendo assim, mesmo que nas entrelinhas, dá para notar o
posicionamento intolerante e racista por trás de suas publicações, usando da fé
evangélica e de suas práticas enquanto representação de Deus, contra outras
manifestações religiosas. Portanto, demonstra a luta do “bem” contra o “mal” no
ideário evangélico neopentecostal.

Referências
ALMEIDA, S. L.. O que é racismo estrutural?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento,
2018.
BASTIDES, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. Perspectiva, São Paulo, 1973, p.384.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.São Paulo: Perspectiva,
2007.
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Entre sincretismo e guerras santas: dinâmicas e
linhas de força do campo religioso brasileiro. Revista USP, São Paulo. n.81,
p.173-185, 2009.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes:(no
limiar de uma nova era), v. 2, São Paulo: Herdeiros. 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. São Paulo: Global, 2003.
GONÇALVES DA SILVA, Vagner. Religião e identidade cultural negra: afro-
brasileiros, católicos e evangélicos. Afro-Ásia, 56 , p. 83-128, 2017.
GONÇALVES DA SILVA, Vagner. Concepções religiosas afro-brasileiras e
neopentecostais: uma análise simbólica. Revista USP, São Paulo. n.67, p. 150-
175, 2005.
NINA RODRIGUES, Raymundo. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro:Biblioteca
Virtual de Ciências Humanas, 2010.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
2000.

316
DA HERMENÊUTICA À DECOLONIALIDADE
Jungley de Oliveira Torres Neto
Doutorando em Ciência da Religião pelo PPCIR- UFJF
jungleyjf@hotmail.com

Resumo: Pretende-se mediar a hermenêutica filosófica, a partir de Gadamer e a sua


postura socrático-platônica, com o pensamento Latino-americano, mais precisamente,
com a decolonialidade, abrindo-se às perspectivas de abordagens anti-violentas. A
presente comunicação seguirá, portanto, o método hermenêutico em seu caminho
dialógico. Neste labor, será proposta a reflexão dialógica nas bases da hermenêutica de
Gadamer para além de seu lugar de fala. Em outros termos, será proposto o encontro
autêntico da hermenêutica filosófica/ dialógica de Gadamer com o pensamento da
América subalternizada durante anos, construindo-se, assim, uma proposta crítica e, ao
mesmo tempo, de possibilidades de contatos e necessárias mediações. A justificativa da
proposição da presente comunicação respalda-se na importância de debater e abordar
as muitas faces da relação entre Religião e Violência, sejam elas denominadas: violência
física, violência psicológica, violência moral, violência política, violência cultural ou toda
força violenta de poder que se sobrepõe no mundo de modo discursivo, simbólico e
prático. Objetiva-se suscitar o diálogo intercultural nas trilhas da hermenêutica
filosófica, através da perspectiva dialógica, enquanto postura anti-violenta, pois o
diálogo enquanto experiência hermenêutica conserva o lógos que pode ser
compartilhado por todos, de modo que construa uma ‘ponte’ entre o Eu e o “Outro”. O
caminho dialógico situa-se no movimento de abertura e não se enquadra em
pressupostos fixos e/ ou fechados que justificam a apropriação do “Outro” nas
categorias do Eu. Nessa abertura do diálogo, justifica-se a atitude anti-violenta, que leva
em consideração a diversidade étnica: religiosa, cultural e histórica do “Outro”. Almeja-
se suscitar reflexões e contribuições na área de pesquisa em Filosofia da Religião e, por
conseguinte, no GT de Religião e Violência, de pensar na liberação da “verdade” do
conhecimento epistêmico eurocêntrico, enquanto projeto universal-ocidental de bases
económicas, políticas e epistêmicas de poder. Aspira-se refletir, na perspectiva dos
entre-lugares, nos pontos de mediações/ fronteiras: que, ao mesmo tempo, separa,
limita, mas, igualmente, permite o contato e, eventualmente, aproxima. O que permite-
nos ir além da “terra natal” de Gadamer (ponto de partida da proposta de trabalho) e
se direcionar às abordagens decoloniais (ponto de avanço do presente trabalho).
Palavras-chave: Decolonialidade; Diálogo; Hermenêutica; Violência.

Introdução
O ponto de partida do presente trabalho será a hermenêutica filosófica
desenvolvida por Gadamer, onde o mesmo adota uma postura dialógica
socrático-platônica, no sentido que Heráclito designava de “harmonia dos
contrários”, pois o diálogo aparece enquanto caminho ou ponte na proposta
filosófica gadameriana. Neste caminho dialógico, a experiência de verdade é

317
refletida, ponderada e propriamente dialogada. A experiência de verdade se
manifesta para além da pretensão de impor à última palavra, pois o conceito de
verdade, irredutível à noção de certeza, acontece no diálogo que constitui um
dos principais fios-condutores da hermenêutica filosófica de autor em questão.
Gadamer retoma o diálogo platônico enquanto experiência
hermenêutica filosófica, retendo o lógos que pode ser compartilhado por todos,
de modo que construa uma ponte entre o Eu e o Outro. O filósofo retoma o
diálogo a partir da dialética platônica, centrado na abertura que contém a
pergunta que não se enquadra em pressupostos fixos que justificariam a
apropriação do Outro nas categorias do Eu. Mais precisamente, o diálogo é
caracterizado pela abertura ao Outro, permitindo-nos pensar além de nós
mesmos, além de nossas fronteiras, de não visar ter respostas fixas ou categorias
prévias que enquadrariam a resposta ou enclausuraria o Outro. Mas, o diálogo
permanece, sempre e dinamicamente, em aberto.
Neste percurso dialógico gadameriano, pretende-se suscitar reflexões
sobre as muitas faces da relação entre Religião e Violência, sejam elas
denominadas: violência física, violência psicológica, violência moral, violência
política, violência cultural ou toda força violenta de poder que se sobrepõe no
mundo de modo discursivo, simbólico e prático. O que nos conduzirá ao
diálogo intercultural e a postura anti-violenta. Direcionar-se-á, então, o diálogo
com o grupo Modernidad/Colonialidad, à América subalternizada, e ao
pensamento decolonial, que nos estimula à releitura da história e de tudo que
nós herdamos, o que não significa se desapropriar do que existe, dos eventos
planetários, mas, dialogicamente e através de uma visão crítica, em assumirmos
uma interpretação daquilo que se coloca diante de nós. No reconhecimento de
que não somos donos da história e sim pertencentes dela e herdeiros de todas
as consequências que ela nos traz.
Almeja-se, portanto, suscitar reflexões e contribuições na área de
pesquisa em Filosofia da Religião e, por conseguinte, na temática Religião e
Violência, de pensar na liberação da “verdade” do conhecimento epistêmico
eurocêntrico, enquanto projeto universal-ocidental de bases económicas,

318
políticas e epistêmicas de poder. Aspira-se refletir, na perspectiva dos entre-
lugares, via o caminho dialógico, em necessárias mediações: que, ao mesmo
tempo, separa, limita, mas, igualmente, permite o contato e, eventualmente,
aproxima. O que permite-nos ir além da “terra natal” de Gadamer e se direcionar
às abordagens decoloniais.

1. Os traços fundamentais de hermenêutica de Gadamer: diálogo e


compreensão
A hermenêutica filosófica desenvolvida por Gadamer não se resume
apenas no modo instrumental de compreensão, mas relaciona- se no modo
existencial de compreender que paira na facticidade e historicidade do ser. O
que constata que a interpretação se funda existencialmente na compreensão e
não vice-versa. Interpretar não se resume apenas em tomar conhecimento do
que se compreendeu, mas elaborar as condições de possibilidades projetadas
na compreensão. E, por isso, não se trata de uma filosofia hermenêutica (de
uma disciplina da filosofia ou de interpretação), mas trata-se,
fundamentalmente, de uma hermenêutica filosófica, aberta ao “Outro”, à
história da qual pertencemos e à compreensão.
Gadamer diz:
Não podemos esconder de nós mesmos o quão duro e o quão
imprescindível é que vivamos em diálogo. Não buscamos o diálogo
apenas para compreender melhor os outros. Ao contrário, nós
mesmos é que somos muito mais ameaçados pelo enrijecimento de
nossos conceitos ao querermos dizer alguma coisa e ao buscarmos o
acolhimento do outro [...] O problema não está em não
compreendermos o outro, mas em não nos compreendermos.
Precisamente quando buscamos compreender o outro, fazemos a
experiência hermenêutica pela qual precisamos romper uma
resistência em nós, se quisermos ouvir o outro enquanto outro. Essa é,
então, uma radical determinação fundamental de toda a existência
humana e ela domina até mesmo a assim chamada autocompreensão
(GADAMER, 1999, p. 70).

Neste sentido: “A experiência, para Gadamer, é a qualidade da pessoa


não dogmática se abrir para possibilidade [...], é realmente uma forma de
entendimento”. (LAWN, p. 89). O que designa a mobilidade fundamental do
ser-aí, a qual perfaz sua finitude e historicidade, e a partir daí abrange o todo de
sua experiência de mundo. A hermenêutica como fio-condutor no “processo”

319
de realização da compreensão (Verstehen), da interpretação (Auslegung) e da
aplicação (Applikation) não se contenta apenas com o saber técnico (téchne)
“manipulado” ou conduzido à análise dos fatos, mas, manifesta- se de forma
dinâmica, relacionando-se fundamentalmente com o modo de “ser-no-mundo”
de quem analisa/interpreta. A compreensão e a aplicação levam em pauta a
história, a tradição, a diferenciação e fusão de horizontes (do Eu diante de um
“Outro”).
A hermenêutica de Gadamer constata-nos o fato de que o sujeito da
interpretação é histórico, assim como o que se pretende interpretar. Há
hermenêutica porque o ser humano é hermenêutico. O ser humano é finito e
sua interpretação não pode ser definitiva e estática. Isso marca o todo de sua
experiência de mundo. Percebe-se na história da filosofia a guinada
hermenêutica, na qual deixa de ser apenas atividade científica, aplicada e
rigorosamente demonstrável, para se constatar “atividade” inerente à existência
humana dentro de um mundo preexistente, cujo foco é o modo de como se dá
a compreensão sem imposição de um método ou uma autonarrativa enquanto
verdade única e universal.
Enfatiza-se, que o diálogo se caracteriza pela abertura ao Outro,
conforme o teórico Rohden aponta: “Platão escreveu sua filosofia em forma de
diálogo e reconheceu que filosofar é possível somente um-com-o-outro; o
diálogo aberto é para Platão o único modo como a verdade pode realizar-se”
(ROHDEN, 2003, p. 184). Essa postura dialógica que Gadamer assume lança luz
ao conhecimento no sentido auto-implicativo, ou seja, trata-se de um modo de
conhecer que amplia o saber sobre nós mesmos e não é, por conseguinte,
estático, mas sim o movimento dinâmico e aberto. E por isso, conserva o lógos
que pode ser compartilhado por todos, de modo que construa uma ponte entre
o Eu e o Outro. Gadamer afirma que: “A possibilidade do outro ter direito, é a
alma da hermenêutica” (GADAMER apud GRONDIN, 1999, p. 201).
Desse modo, o diálogo “nos põe à prova”, provoca a exposição de nossas
dúvidas diante daquilo que se coloca e sempre proporciona o movimento. O
que rompe com os enclausuramentos das respostas e não as torna fixas e

320
fechadas nelas mesmas, mas o ponto de chegada de uma resposta é sempre a
abertura para o novo ponto de saída e uma nova projeção. E por isso nas
palavras de Gadamer o diálogo “requer não abafar o Outro com argumentos,
mas, pelo contrário, sopesar realmente o peso objetivo da opinião contrária. Por
isso, é uma arte do ir experimentando” (GADAMER, 1999, p. 541).
Neste rumo, o diálogo, em sua abertura, possibilita a compreensão de
outros modos de habitar, de ser, na releitura da história, abrindo-se, assim,
efetivamente ao Outro. Em outros termos, a dialogicidade, característica da
hermenêutica de Gadamer. abre-se ao modo de existência do próprio indivíduo
em suas mais variadas condições de possibilidade, permitindo-nos pensar nos
“entre-lugares”, na noção ‘espacial’ (não se limitando a espaço físico), que se
caracteriza por ser fronteira, que ao mesmo tempo separa/ limita, mas,
igualmente, permite o contato e eventualmente aproxima, nos permitindo ir
além da “terra natal” de Gadamer e se direcionar às abordagens decoloniais.

2. Da perspectiva hermenêutica-dialógica à decolonialidade


Essa postura dialógica que Gadamer assume lança luz e amplia o saber
sobre nós mesmos, possibilitando-nos ir além de nossas próprias “fronteiras”,
pois o diálogo pressupõe uma segunda via, um “Outro”, mais precisamente, um
duplo movimento enquanto potência explicativa de duas ou mais posições,
reconhecendo nessas posições a dimensão tensional presente em toda a
relação com a alteridade. Neste sentido, acredita-se que, através da
hermenêutica filosófica de Gadamer, podemos dar um passo adiante no
encontro com o pensamento Latino-americano, pois como o hermeneuta
aponta, essa abertura diz respeito à inclusão do “Outro” e seus acervos de
conhecimentos, histórias, culturas, religiões, opiniões, etc., pois ela é a própria
relação autêntica e, por isso, a “consciência formada hermeneuticamente tem
que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade” (GADAMER,
1999, p. 405).

321
O grupo Modernidad/Colonialidad87 nos estimula na releitura da história
e de tudo que nós herdamos, o que não significa se desapropriar do que existe,
dos eventos planetários, mas, dialogicamente e através de uma visão crítica, em
assumirmos uma interpretação daquilo que se coloca diante de nós. No
reconhecimento de que não somos donos da história e sim pertencentes dela e
herdeiros de todas as consequências que ela nos traz. Sendo assim, então,
temos o dever de assumirmos o compromisso histórico do que herdamos e se
posicionar. O que conflui com a hermenêutica da recepção e, por conseguinte,
o compromisso em assumi-la.
Há de se reconhecer que o mundo é um lugar complexo, diversificado e
multicultural. O que faz-nos pensar também em uma rede mundial
interdepende, em uma dependência histórico-estrutural não apenas de âmbitos
económicos ou políticos, mas, fundamentalmente, também epistêmicos
(QUIJANO, 2005, p118). Existe um evento moderno planetário e suas
consequências que são inegáveis e das quais não dá para “jogar fora” ou “abrir
mão” de todo legado que chegou até nós, mas deve-se dialogar com as
questões fundamentais, das quais contribuem para o avanço da humanidade. É
preciso dar voz e rosto àqueles que não tiveram na história o seu lugar.
Neste sentido, faz-se necessário pensar em alternativas que não se limite
a produzir e reforçar esta hegemonia europeia que se tornou planetária. Mais
precisamente, há de valorizar também o âmbito ‘extra-europeu’, de movimentos
identitários étnicos, como: às identidades indígenas, suas crenças, mitos e
saberes espirituais; às identidades africanas, suas manifestações culturais e
religiosas, que são considerados como uma resistência à colonialidade. É
necessário contar as histórias que não foram contatas, das quais tem suas
repercussões. Neste percurso, a religião, seja ela qual for, deve ser dialógica,
inclusiva e aberta. Além de si própria, isto é, além de sua própria fronteira.

87 Um dos grupos mais importantes do coletivo pensamento crítico na América Latina. Podemos
citar, por exemplos, importantes teóricos críticos como: Aníbal Quijano (colonialidade), Walter
Mignolo (diferença colonial) e Enrique Dussel e sua crítica à Modernidade via
transmodernidade.
322
Outrossim, no tocante a colonialidade do poder, Mignolo aponta-nos
que as populações dominadas têm suas identidades submetidas à hegemonia
eurocêntrica, que define o que é conhecimento, por conseguinte, o imaginário
é construído ao longo da formação de um sistema colonial/moderno e resulta
na mutilação epistemológica de outros saberes que não foram provenientes da
Europa, na qual estabelece a dominação hegemônica de pensamento em
âmbito ocidental-planetário. É urgente a constatação de Mignolo de que é
necessária a libertação epistemológica (MIGNOLO, 2020, p. 197).
É patente que a crítica à Modernidade ultrapassa limites teóricos se
impondo enquanto uma atitude “revolucionária”, no sentido de transformação,
o que Dussel denominou de “transmodernidade”, que indica tanto para o
prefixo trans, indicando além de., isto é, além da autonarrativa da Modernidade,
como também indica o movimento antecedente, isto é, de releitura da história
da humanidade. Através dessa postura, de revisitar a história, é constatado
alguns “encobrimentos” e trazê-los à tona é imprescindível para o diálogo. Em
outros termos, Dussel toma partido dos vencidos e denuncia a história dos
vencedores. O ponto de partida da crítica é a autonarrativa eurocêntrica,
percebida em eventos como: Renascimento, quando os europeus se
conceberam a si mesmos como o centro do mundo. Essa autonarrativa traz a
visão antropocêntrica, racional e impulsionadora do progresso e a Europa seria
a responsável por levar essa racionalidade às outras culturas (DUSSEL, 2015, p.
51).
Neste desiderato, faz-se necessário uma “libertação”, Dussel fala em Ética
da Libertação, que certamente não é uma ética filosófica euro-norte-americana
e nem se limita a uma ética do “Outro”, mas sim em uma ética das vítimas, pois
para o pensador argentino é preciso pensar o sistema-mundo com vistas à
libertação das vítimas. Neste sentido, a professora Cristina Borges aponta que
Dussel propõe uma ética que afirme a vida humana, ante as barbáries para as
quais a humanidade se encaminha se não mudar o rumo (BORGES, p. 192).
Faz-se necessário, neste diálogo, ouvir verdadeiramente aqueles que não
tiveram voz na história: os índios sacrificados, os negros escravizados, as

323
mulheres oprimidas, os pobres, em síntese, os vencidos da história. É preciso dar
voz e rosto àqueles que não tiveram na história o seu lugar
Em suma, à luz da hermenêutica filosófica, cuja iniciativa recebe-se de
Gadamer, via diálogo, que implica em estarmos abertos ao horizonte do outro,
do diferente e dos efeitos da história propriamente dita (GADAMER, 2006, p.
71), faz-se necessário ouvir verdadeiramente as vítimas que não tiveram voz na
história e que foram marginalizadas. Conforme afirma Dussel, é fundamental
situar tal problemática “no horizonte planetário, para tirá-la da tradicional
interpretação meramente eurocêntrica” (DUSSEL, 2007, p. 19). Neste caminho,
da anti-violência, a abertura para o diálogo é essencial, pois ele estimula a
reflexão, a mediação entre o confronto de ideias e, mais do que isso, dá voz e
abre-se ao “Outro”, permitindo-nos ir além de nossas fronteiras, além de nossa
“terra natal” e de nossos valores preconcebidos sobre algo/ alguém, permitindo
que esse algo/ alguém venha à fala e que essa fala se repercuta efetivamente na
história.

Conclusão
Constata-se que há hermenêutica porque o ser humano é hermenêutico,
isto é, o ser humano é, fundamentalmente, um ser compreensivo em seu modo
de habitar; compreensivo diante do mundo, diante do que está às suas
margens, diante do Outro e diante de si mesmo. O ser humano é finito e sua
interpretação não pode ser definitiva e estática. A hermenêutica, portanto, não
é apenas atividade científica, aplicada e rigorosamente demonstrável, mas é
inerente à existência humana dentro de um mundo preexistente, cujo foco é o
modo de como se dá a compreensão sem imposição de autonarrativas
enquanto verdade única e universal. Por isso o ponto de partida do presente
trabalho é a hermenêutica filosófica de Gadamer, pois nela o fenômeno da
compreensão relaciona-se ao modo de existência do próprio indivíduo em suas
mais variadas condições de possibilidade, abrindo-se, assim, ao diálogo e aos
entre-lugares.

324
Neste percurso, percebe-se a postura socrática e dialógica que o filósofo-
hermeneuta Gadamer assume, e o fato de que compreender significa entender-
se uns com os outros. Isto é, a compreensão acontece no diálogo, no encontro
dos “diferentes” e isso caracteriza, em sua potencialidade, o fenômeno da
compreensão e abre espaço e voz aos povos que foram colonizados,
valorizando as suas manifestações, saberes e, mais diretamente, às abordagens
decoloniais. Mais diretamente, via diálogo somos conduzidos à postura anti-
violenta.
Como consequência do caminho percorrido, foi proposta a reflexão: da
perspectiva hermenêutica-dialógica à decolonialidade. Reconhecendo o fato de
que o mundo é um lugar complexo, diversificado e multicultural e que se faz
necessário dar voz, rosto e protagonismo àqueles que não tiveram ao longo da
história, como: às identidades indígenas, seus saberes e suas espiritualidades; às
identidades africanas, suas manifestações culturais e religiosas, que são
considerados como uma resistência à colonialidade. Devemos, então, assumir o
compromisso histórico do que herdamos, o que conflui na hermenêutica da
recepção. E constata-se, fundamentalmente, que mediante o diálogo abre-se
possibilidades e trajetórias ontológicas e epistemológicas para além daquelas
trilhadas pela modernidade ocidental eurocêntrica.

Referências
BORGES, Cristina. A crítica descolonial em Enrique Dussel: desmitificação da
modernidade europeia. In: Revista Poiesis. v. 15, n. 2, pp. 184-195, 2017.
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São Paulo: Vozes, 1992.
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão.
Petrópolis: Vozes, 2007.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/gsdl/collect/clacso/index/assoc/D1200. > Acesso
em: 20 de julho de 2022.
FLICKINGER, H-G & ROHDEN, L. Hermenêutica filosófica nas trilhas de Hans-
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325
GADAMER, Hans-Georg. Los caminos de Heidegger. Trad. Ángela Ackermann
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LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho.
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MIGNOLO, Walter. A Geopolítica do Conhecimento e a Diferença Colonial. In:
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MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. On Decoloniality: Concepts, Analytics,
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QUIJANO, A. A colônialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
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ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.

326
A PESSOA COMO FUNDAMENTO DA RELIGIÃO EM MAX SCHELER
Luiza Bello
Doutoranda em Filosofia do PPG Lógica e Metafísica
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mestra em Filosofia pelo PPG em Filosofia da UFJF.
luizabelloborges@gmail.com

Resumo: Esta comunicação alicerça-se em uma pesquisa em andamento que pretende


relacionar o personalismo ético, desenvolvido por Max Scheler em sua obra
Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik (1912) e a possibilidade de
renovação da religião na obra Probleme der Religion (1921). A fundamentação
fenomenológica conferida por Scheler à pessoa oferece duas vias de reflexão. A
primeira delas permite compreender a pessoa enquanto um valor do Sagrado (Wert
des Heiligen), constituindo-se em um conteúdo estático independente das
contingências dinâmicas do acontecer histórico, especialmente dos conflitos e das
guerras pelos quais as vivências humanas perpassam. Ou seja, a pessoa - enquanto
resíduo absoluto e eterno - resiste ao que há de violento no mundo. A segunda, por
sua vez, refere-se à possibilidade da primeira via ter o condão de fundar uma
renovação da religião no sentido da universalização e do compromisso com o que há
de eterno no fenômeno humano, isto é, com a pessoa enquanto conteúdo
valorativo.&nbsp;Os valores do Sagrado são incapazes de limitação, divisão e redução
em seu próprio ser. Ora, se é a pessoa um valor desta natureza, eterno e universal, a
intuição do ser pessoal do outro abre-se como possibilidade de apelo ao divino e
comum nas experiências coletivas. Intuir o outro ser pessoal corresponde a uma
vivência valorativa do Sagrado. Assim, a pessoa abre-se para as dimensões do divino,
como o Incondicionado, o Infinito, a Finalidade última, a Fonte da ordem, a Origem da
harmonia e o Sentido da vida. Tais dimensões confluem para Deus, transcendendo as
dimensões meramente individuais, sensíveis e psicofísicas das concretudes vivenciais.
Trata-se da possibilidade pessoal de ascender ao universal, eterno e absoluto. Nesse
sentido, Scheler apresenta uma possibilidade de renovação da religião,
compreendendo-a como um compromisso universal com a pessoa. O desenvolvimento
da pesquisa se dá na forma de investigação filosófica em que se define um objeto
identificável, o personalismo ético de Scheler e a possibilidade de renovação da religião,
com o intuito de situar a pessoa como valor do Sagrado, oferecendo um olhar
fenomenológico possível acerca da religião.
Palavras-chave: Pessoa; valor; sagrado; religião; violência.

Introdução
O fio condutor do pensamento de Max Scheler é o personalismo ético
que permite refletir sobre a pessoa tanto enquanto condição de possibilidade
da intuição dos valores no mundo quanto como valor intuído. Além de
condição de possibilidade da apreensão dos valores, a pessoa também é valor e,
portanto, conteúdo de intuição emocional e finalidade da vida comunitária.

327
Trata-se de um valor superior na hierarquia apriorística de valores, referente à
esfera do Sagrado (Wert des Heiligen), constituindo-se em um conteúdo
estático independente das contingências dinâmicas do acontecer histórico. A
pessoa, nesse sentido, é um resíduo absoluto e eterno. Assim, Scheler realiza um
percurso fenomenológico que parte da intuição emocional dos valores como
conteúdos vivenciais e atinge a comunidade de pessoas. Somente a pessoa intui
as relações hierárquicas de valores no mundo, constituindo uma ordem de
preferência concreta em sua vida moral. Essa ordem é condicionada pela
hierarquia de valores.
A noção de pessoa é desenvolvida por Scheler em sua obra Formalismus
in der Ethik und die materiale Wertethik (1912), cuja tradução utilizada aqui é a
Formalism in Ethics and Non-Formal Ethics of Values (1973), e se consubstancia
em uma unidade de ser que se relaciona fenomenologicamente com o mundo
(relação pessoa-mundo), intuindo conteúdos teóricos e práticos. Os conteúdos
práticos, aqueles aqui relevantes, são os valores. Neste trabalho, importa refletir
tanto sobre a intuição emocional dos valores, ou seja, o ponto fundamental do
personalismo ético scheleriano quanto sobre a relação deste com a
problemática levantada pelo próprio Scheler acerca da renovação da religião
em sua obra Probleme der Religion (1921), cuja tradução utilizada neste
trabalho é a Problems of Religion (2010).
Na relação entre a intuição emocional e os conteúdos valorativos, reflete-
se sobre a peculiaridade da pessoa enquanto aquela que intui as relações
hierárquicas de valores no mundo, constituindo uma ordem de preferência
concreta em sua vida moral. Essa ordem é condicionada pela estática hierarquia
de valores. Ou seja, estática e dinâmica relacionam-se nas concretudes
vivenciais pessoais. A estática desvela a hierarquia dos valores do ponto de vista
ontológico. A dinâmica manifesta-se nas ordens de preferência valorativas nas
concretudes vivenciais, o que inclui os conflitos e as guerras pelos quais as
vivências humanas perpassam.
O mundo o é para uma pessoa. Como este mundo é dotado de
conteúdos axiológicos, a pessoa é um ser que se coloca diante dos valores e, no

328
pensamento scheleriano, como fundante e fundamental para a Ética
scheleriana. Pretende-se, portanto, refletir sobre a relação entre o personalismo
ético proposto pela fenomenologia scheleriana e a inquietação do filósofo
acerca da renovação da religião. O desenvolvimento da pesquisa se dá na
forma de investigação filosófica em que se define um objeto identificável, o
personalismo ético de Scheler e a possibilidade de renovação da religião, com o
intuito de situar a pessoa como valor do Sagrado, oferecendo um olhar
fenomenológico possível acerca da religião.

1. O personalismo ético
A pessoa se consubstancia em uma unidade de atos de consciência
sensíveis, psíquicos e espirituais. Importa para uma fundamentação da religião
os atos espirituais da consciência que caracterizam a pessoa em Scheler. A
consciência é transcendental e intencional, o que também caracteriza a pessoa.
Em razão da transcendentalidade da consciência, a pessoa não se confunde
com os seus próprios atos e nem se esgota nos mesmos. Assim, o agir pessoal é
capaz de ir além dos limites do consciente, abrindo-se para os conteúdos do
mundo. Acontece que tal característica seria insuficiente para explicar a pessoa,
se não houvesse a intencionalidade da consciência. Esta, por sua vez,
caracteriza a pessoa como um ser que se volta para o mundo, que realiza atos
no mesmo e se aprimora enquanto ser pessoal. Nesse sentido, consubstancia-se
a relação pessoa-mundo, fundamental e fundante da proposta ética
scheleriana.
A proposta ética de Scheler insere-se no paradigma fenomenológico da
pessoa enquanto ser que intui emocionalmente conteúdos de valores nas
vivências mundanas. Isso significa dizer que há uma relação essencial entre a
pessoa e as suas vivências. Interessa à Ética de Scheler as vivências axiológicas,
isto é, aquelas nas quais são intuídos conteúdos de valor. Assim, pessoa,
intuição emocional e valor são os pilares da pretensão de Scheler de formular
uma hierarquia dos valores enquanto ontologia, voltando-se ao ser do valor,
sem esgotar a existência do valor em tal pureza ontológica. O motivo disso está

329
na concretude das vivências pessoais nas quais são intuídos os conteúdos de
valor. Eles estão situados nos bens e as suas relações essenciais independem das
relações essenciais existentes nos próprios bens.
Os valores estão nos bens, mas não se confundem com eles. A separação
ontológica entre o mundo dos bens e o mundo dos valores é primordial. É o ser
dos bens diverso do ser dos valores. O bem suporta o valor. Do mesmo modo, o
ser dos valores não se confunde com o ser da coisa, em razão disso o
fundamento da Ética é a experiência valorativa (aquela que se volta ao ser do
valor). Entretanto, não se trata de afastar qualquer modalidade de experiência,
mas tão somente aquela de caráter empírico-indutivo (a posteriori) que embasa
as ciências naturais. Importa, para Scheler, a experiência fenomenológica que,
na filosofia prática, adquire o sentido de experiência dos valores enquanto
objetos a priori da intuição emocional. Perguntar sobre o ser das coisas implica
em conferir-lhes conceitos, características comuns. O mesmo não ocorre no ser
do valor, sendo este tão somente desvelado à pessoa mediante um ato
intencional da consciência e o seu correlato encarnado no mundo, qual seja, os
bens dotados de valor. O ser dos bens e o ser dos valores são modos de ser
distintos e que se manifestam à pessoa.
Em outras palavras, não é possível definir um valor em torno de
características e propriedades comuns. A esfera dos valores e as suas relações
eidéticas são dadas intuitivamente nas vivências emocionais em um mundo
contingente de bens. Há, dessa forma, uma relação eidética entre a ordem a
priori dos valores e o mundo dos bens.
Essa relação se verifica na forma de um apriorismo da ordem hierárquica
dos valores em relação ao mundo dos bens. A ordem valorativa é encarnada na
ordem dos bens que confere aos valores efetividade. Essa tal ordem de valores
não determina a ordem dos bens, mas delineia o campo de possibilidade, além
do qual a formação dos bens não pode avançar. Trata-se de uma ordem a priori
de valores que se desvela numa ordem de bens variados, situados
historicamente, culturalmente e socialmente. Esse desvelamento do ser dos

330
valores é o que há de peculiar ao ser humano enquanto ser espiritual, ou seja,
pessoa.
Na determinação correta de um valor, não é suficiente tentar derivá-lo
de características e propriedades que não pertencem à esfera do
fenômeno de valor. O valor mesmo deve ser sempre dado
intuitivamente [...]. Assim como é ausente de sentido perguntar sobre
as propriedades comuns das coisas azuis e vermelhas, uma vez que
elas não possuem nada em comum a não ser o seu caráter azulado ou
a sua vermelhidão, também é incoerente questionar-se acerca das
propriedades comuns das atitudes boas e más, dos conteúdos morais
[Gesinnungen], dos homens, etc. (SCHELER, 1973, p.14-p.15, tradução
da autora)88.

A pessoa é um ser para os valores, na medida em que sua consciência é


intencional e emocionalmente direcionada para os valores enquanto conteúdos
intuídos e motores da sua ação. Além disso, a pessoa é também valor na
hierarquia dos valores, um valor superior, concernente à esfera do Sagrado
(Wert des Heiligen). Essa abordagem da pessoa é o que justifica tratar a
proposta antropológica scheleriana como um personalismo ético.
A questão que é colocada neste trabalho é sobre a relação entre este
personalismo ético e a problemática levantada pelo nosso filósofo acerca da
renovação da religião. E isso porque o próprio Scheler, em sua obra Problems of
Religion, volta-se à totalidade e a indivisibilidade da pessoa (SCHELER, 2010,
p.107).

2. A renovação da religião
Na referida obra Problems of Religion, Scheler aponta tanto para a
totalidade quanto para a indivisibilidade da pessoa como condições de
possibilidade para transcender as nossas condição psíquico-física e finitude,
dirigindo-se ao divino. Assim, a totalidade pessoal, característica do
personalismo ético de Scheler, desenvolvido na obra Formalism in Ethics and

88 In correctly determining a value, it never suffices to attempt to derive it from characteristics


and properties which do not belong to the sphere of value-phenomena. The value itself always
must be intuitively given or must refer back to that kind of givenness. Just as it is senseless to ask
for the common properties of all blue or red things, since they have nothing in common except
their blueness or redness, so is it senseless to ask for the common properties of good or evil
deeds, moral tenors [Gesinnungen], men, etc. (SCHELER, 1973, p.14-p.15).
331
Non-Formal Ethics of Values, aparece como condição de possibilidade para a
relação da pessoa com o divino no mundo.
Porque na pessoa toda e indivisível, no centro da pessoa humana [...]
no nosso mais fundo, então, lá está aquele maravilhoso motivo
poderoso o qual, geralmente desapercebido e desconsiderado em
circunstâncias favoráveis, é ainda latente e ativo para nos conduzir
para cima, mais e além de nós mesmos e de todas as coisas finitas, até
o divino. (SCHELER, 2010, p.107, tradução da autora) 89.

A renovação da religião acontece em dois momentos. O primeiro deles é


o individual, silencioso e restrito à batalha interna da pessoa consigo mesma.
Trata-se de um movimento que se inicia a partir do sofrimento, do
arrebatamento e/ou do luto, isto é, com sentimentos puramente psíquicos,
referentes ao terceiro nível dos sentimentos:
[...] quatro bem-delineados níveis de sentimento que correspondem à
estrutura da nossa existência humana completa. Eles são (1)
sentimentos sensíveis ou “sentimentos de sensação” (Carl Stumpf), (2)
sentimentos do corpo vivo (como estados) e sentimentos da vida
(como funções), (3) puros sentimentos psíquicos (puros sentimentos
do ego) e (4) sentimentos espirituais (sentimentos da personalidade).
(SCHELER, 1973, p.332, tradução da autora) 90.

Considerando a profundidade da vida sentimental humana, escalonada


em quatro níveis, os sentimentos de sofrimento, arrebatamento e luto
movimentam o centro da pessoa humana, sendo condição necessária, mas não-
suficiente para a renovação da renovação e para a transcendência ao divino.
Tais sentimentos de ordem psíquica não são suficientes, pois sofrem o controle
dos demais níveis de sentimento e importa neste trabalho refletir sobre a
influência dos sentimentos espirituais sobre os sentimentos puramente
psíquicos. Apesar disso, constituem-se no elemento sem o qual não há a
renovação religiosa. Tal movimento é relevante tanto do ponto de vista da
pessoa individual quanto da perspectiva da pessoa coletiva.

89 For in the person whole and undivided, in the core of the human person [...] in our deepest
depth, then, there lies that wonderful mainspring which, mostly unnoticed and disregarded in
wonted circumstances, circumstances, is ever latent and active to lead us upward, over and
beyond ourselves and all things finite, to the divine. [...] (SCHELER, 2010, p.107).
90 [...] four well-delineated levels of feeling that correspond to the structure of our entire human

existence. These are (1) sensible feelings, or “feelings of sensation” (Carl Stumpf), (2) feelings of
the lived body (as states) and feelings of life (as functions), (3) pure psychic feelings (pure
feelings of the ego), and (4) spiritual feelings (feelings of the personality). (SCHELER, 1973,
p.332).
332
Os sentimentos puramente psíquicos são descobertos pela pessoa
individual que, ao se ver arrebatada pelo sofrimento ou pelo luto, sentimentos
que movimentam a profundeza da sua humanidade, é provocada a se conduzir
ao divino, transcendendo a sua finitude psíquica. Trata-se de um fenômeno
limitado à dimensão individual. Cada pessoa individual é peculiar do ponto de
vista humano, uma realidade concreta do humanamente possível no interior da
constituição eidética do mundo.
Ao sentir o sofrimento, o arrebatamento ou o luto, a pessoa se vê
rodeada de uma comunidade de pessoas, ou seja, situada em um contexto de
relação interpessoal. E é também para tal comunidade que a superação dos
sentimentos psíquicos direcionará o sentimento religioso. Nas palavras do
Scheler:
Quando, portanto, um acontecimento como este, ao despertar o
centro da alma humana e libertar este motivo poderoso para uma
atividade maior, impinge não apenas na alma individual, no segredo
de seu sofrimento e na dificuldade, mas na comunidade de homens;
quando ele impinge na comunidade mundial, dividida em povos, os
quais não têm nada senão o seu Deus; quando seu impacto é maior
que qualquer outro evento de toda a história; quando o evento está,
além disso, tão inimaginavelmente saturado de lágrimas, sofrimento e
sangue como a última guerra – então pode-se esperar o chamado
para uma renovação da religião para ressoar através do mundo com
tamanho poder e força como não tem sido há séculos. (SCHELER,
2010, p.107)91.

Ou seja, o sofrimento da comunidade de pessoas gera um apelo à


renovação da religião. E aqui Scheler utiliza a expressão comunidade de
homens, considerando que a pessoa é a dimensão espiritual e se consubstancia
nos sentimentos espirituais. Ora, a humanidade vai além de tal dimensão,
abarcando as dimensões sensíveis e psíquicas. Ocorre que a pessoa é a
dimensão humana que permite delimitar o humano, isto é, a sua peculiaridade
no mundo. Assim, a dimensão espiritual maneja as demais dimensões, sendo a

91 When therefore such an event as awakens the core of the human soul and unpinions this
mainspring for greater activity impinges not only on the individual soul, in the dumb secrecy of
its suffering and struggle, but on the community of men; when it impinges on the world-wide
community, divided in peoples, which has nothing over it but its God; when its impact is greater
than that of any event in the whole of history; when the event is in addition so unimaginably
saturated with tears, suffering, lifeblood as the late war—then one may expect the call to a
renewal of religion to resound through the world with such power and strength as has not
been for centuries. (SCHELER, 2010, p.107).
333
esfera da liberdade, da intuição dos valores e das tomadas de decisão. A
renovação religiosa, portanto, possui um caráter humano, mas é sobretudo
pessoal. Os sentimentos espirituais delimitam a ação dos sentimentos psíquicos,
o que permite ao ser humano não se confundir com seus sentimentos de luto e
de arrebatamento, transcendendo-os em direção ao divino.
No tocante à intuição dos valores, é fundamental situar a intuição
emocional dos valores como o modo pelo qual as pessoas apreendem os
valores. E isso porque a renovação religiosa, na interpretação deste trabalho,
somente é possível se se considerar o caráter valorativo da pessoa em Scheler,
isto é, como um valor do Sagrado (Wert des Heiligen).
O ato através do qual a pessoa intui valores é a intuição emocional pelo
qual a pessoa, nas vivências concretas, apreende os conteúdos valorativos dos
bens. Os valores, conteúdos a priori da ontologia dos valores proposta por
Scheler, encarnam nos bens e aparecem à pessoa através da intuição
emocional. É a partir da concretude dos bens que a pessoa intui os valores. São
eles entes puros e concretos num mesmo momento: o momento vivencial. A
hierarquia dos valores é invariável e estática, enquanto a ordem de preferência
desses valores na história e na sociedade é variável e dinâmica, submetendo-se
às contingências histórico-sociais, como conflitos e guerras. A primeira ordem de
preferência se volta aos valores mesmos e é, para Scheler, a priori. A segunda
ordem de preferência se dirige aos valores enquanto situados nos bens
mundanos e é, portanto, empírica.
Na ordem estática, os valores são hierarquizados em uma pirâmide, cuja
base é constituída pelos valores sensíveis e o topo é referente aos valores do
Sagrado. Importa neste trabalho refletir sobre a posição da pessoa enquanto
um valor do Sagrado e, portanto, conteúdo valorativo da intuição emocional
das pessoas enquanto agentes. Ora, a pessoa é tanto ponto de partida da
intuição emocional como também valor intuído.
A hierarquização ontológica dos valores segue os seguintes critérios:
duração, divisibilidade, fundamentação, satisfação e relatividade. No tocante ao
primeiro critério, quanto superior for um valor, mais durável ele será. A

334
durabilidade do valor é independente da durabilidade objetiva e concreta do
bem. A primeira é essencial e, portanto, a priori. Afirmar que um valor dura
implica em também dizer que ele é capaz de existir no tempo
independentemente da existência de algo que o suporte. Em relação à
divisibilidade, quanto menos redutível a diferentes expressões e manifestações,
superior é um valor em relação aos demais. A divisibilidade de um valor
depende da repartição de tal ente para os indivíduos. Os exemplos trazidos por
Scheler são o de uma fatia de pão e o de uma obra de arte. O valor nutritivo do
pão se divide em um número finito de pedaços para um número considerável
de indivíduos. Em cada pedaço, estará o valor nutritivo, porém dividido e
reduzido a cada divisão. Uma obra de arte, por outro lado, não pode ser
dividida, ela existe em sua integridade e indivisibilidade. Por isso o valor do belo
é superior ao valor da nutrição.
Já a fundamentação se desenvolve da seguinte maneira. Um valor B
fundamenta um valor A quando o dar-se deste depende do dar-se daquele. Essa
dependência se dá por uma necessidade eidética. Aqui, quanto superior for um
valor, menor será a sua dependência da existência de outros valores para seu
próprio ser superior. Isso significa dizer que um valor superior não depende da
fundamentação de algum outro valor. No exemplo dado, o valor B será superior
em relação ao valor A, uma vez que fundamenta este.
O quarto critério é o da satisfação. Scheler esclarece que satisfação nada
tem a ver com prazer, ainda que este resulte daquele. A satisfação é uma
experiência de preenchimento, isto é, de plenitude (SCHELER, 1973, p. 96). Há
aqui uma relação essencial entre o valor superior e a profundidade da
satisfação. Entre os valores A e B, se há for independente de B, a satisfação dele
será mais profunda que a satisfação de B. Assumir tal critério ontológico é uma
consequência da objetividade dos valores. Há um ato pessoal e há o conteúdo
do ato, ambos se relacionam essencialmente.
O quinto critério é da relatividade. Quanto mais alto for um valor na
hierarquia, menos relativo será. Assim, o valor mais alto será também absoluto.
A relatividade a qual Scheler se refere é existencial, ou seja, é o valor enquanto

335
objeto relativo à existência humana e a sua organização. Trata-se do valor
relativo a um ser que sente, que vive, etc. O valor do prazer, por exemplo, é
relativo a um ser que sente prazer. Os valores do nobre e do vulgar são relativos
à existência de um ser vivo. Ambos os valores são inferiores e relativos à
concretude da existência pessoal. Os valores superiores são absolutos e, por
isso, não são contingentes, sendo ontologicamente independentes da vida
pessoal concreta, isto é, de um ser que sente e vive.
Ora, os valores do Sagrado, em sendo superiores, são absolutos; possuem
profunda satisfação, na medida em que atingem o centro da pessoa humana;
não são fundamentados por outros valores; são indivisíveis; existem e tem
potência de eternidade, independentemente da sua efetividade, ou seja, da sua
encarnação nos bens concretos.
Do ponto de vista da hierarquia dos valores, a pessoa é valor superior e,
portanto, conteúdo da intuição emocional que fundamenta o apelo à
renovação da religião. Em Scheler, tal renovação é a pedra de toque da própria
religião, isto é, não há abordagem religiosa no filósofo em questão sem a
abordagem do problema da renovação. Isso implica em dizer que a religião
abordada por Scheler na obra de 1921 está imersa nas concretudes conflituosas
do mundo do pós-Primeira Guerra Mundial que provocam a necessidade da
renovação da religião. Tal movimento inicia-se parcialmente e dirige-se ao todo.
A parte, conforme se viu, é um recorte dos níveis do sentimento que
correspondem à vida emocional humana, a saber, a dimensão dos puros
sentimentos psíquicos. Desta parte, o humano se movimenta, em razão da sua
dimensão espiritual, ao todo, isto é, aos valores superiores. Aqui, toma-se como
elemento de abordagem os valores do Sagrado.
Em suma, o humano, na renovação religiosa de Scheler, inicia seu
movimento em uma parte da sua vida emocional e o conclui no todo desta
mesma vida, isto é, na dimensão espiritual concernente à intuição do valor da
pessoa, valor do Sagrado.

336
Conclusão
O apelo à renovação da religião, nesse sentido, se inicia na própria
finitude humana, em seus sentimentos psíquicos de arrebatamento e/ou luto. A
partir deles e através dos movimentos dos sentimentos espirituais, a pessoa é
capaz de transcender a dimensão psíquica, em direção à dimensão espiritual,
aquela que se relaciona com os valores do Sagrado. Em outras palavras, a
ascensão ao divino depende da concretude psíquica, mas não se resume a ela,
demandando a dimensão eminentemente pessoal do fenômeno humano, qual
seja, a intuição emocional dos valores, elemento que caracteriza e torna possível
o personalismo ético do Max Scheler.
Daí que a pessoa funda a religião em Scheler, pois é ela a referida
dimensão espiritual do humano e a condição de possibilidade da renovação
religiosa que, em última análise, é o fundamento de uma fenomenologia da
religião no filósofo em questão. Além de fundamento, é a pessoa a finalidade da
religião, no tocante à busca existencial por sentido e por dignidade em um
mundo como aquele no qual Scheler estava situado, isto é, um mundo pós-
guerra.

Referências
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Scheler e seus impactos. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Filosofia,
Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/13607.
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337
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SCHELER, Max. Problems of Religion. In: SCHELER, Max. On the Eternal in Man.
London and New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2010.

338
VIOLÊNCIA COMO HERMENÊUTICA RELIGIOSA
Marcio Henrique S. Ribeiro
Doutorando em Teologia Sistemático-Pastoral na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
onde obteve o mestrado e o bacharelado em Teologia.
mhribeiro@uol.com.br

Resumo: Esta comunicação aborda a crítica feita pelo chamado novo ateísmo à
religião, tendo em conta sua relação com a violência. Seu objetivo é apresentar seus
questionamentos e hipóteses, bem como, as implicações para a imagem divina e a
prática de fé a partir da violência. Metodologicamente, a análise do discurso dos
autores representantes do novo ateísmo nos serve como mediação para a
compreensão da crítica atual à religião. Para tanto, o objeto material desse exame são
as obras representativas desse discurso; sendo objeto formal o modo como a religião e
as imagens divinas são apresentadas. Disso resultam hipóteses que caracterizam a
religião, seja como fenômeno imanente, ou fenômeno natural que exerce uma força
maligna significativa em nosso mundo; seja como origem da violência e do mal, que, a
partir de sua influência ambígua com relação à humanidade, ela não apenas
representa, mas é um veneno para essa humanidade. Consequentemente, ao
interpretar a religião como causa e replicação da violência, a crítica do atual ateísmo
afirma a destrutividade da religião e predica um mundo sem religião por conta do mal
e da violência.
Palavras-chave: Religião; Violência; Hermenêutica religiosa.

Introdução
A tarefa teológica ocupa-se do conhecimento e transmissão da
mensagem cristã nos diversos contextos culturais e sociais. Como estes estão em
constante mutação, principalmente hoje, e para ser fiel à sua finalidade, a
reflexão teológica procura interpretar o respectivo horizonte de compreensão,
no qual a mensagem salvífica é proclamada, vivida e celebrada (PARRA, 2005, p.
12).
Partindo do pressuposto de que o princípio da teologia, assim como o da
filosofia, está na comum tarefa da compreensão da realidade, seja do ser
humano e do mundo em seu todo, essa tarefa se impõe, dentro de sua tradição
e perspectivas, como a função da teologia como tal (PANNENBERG, 2008, p.
332). E isso não apenas pela classificação da teologia como ciência
hermenêutica, mas principalmente por ser ela hermenêutica (BOFF, 1998, p. 89;
PARRA, 2005, 14). Esse é o caráter hermenêutico da teologia, como uma tarefa

339
ampla e múltipla da interpretação teológica, na qual os aspectos da existência
cristã necessitaram constantemente ser interpretados nos contextos sempre
cambiantes da prática da fé.
Ao proceder correspondentemente de maneira hermenêutica, o
horizonte de compreensão da mensagem cristã também abrange a mensagem
salvífica enquanto objeto de crítica, diante da qual a teologia deve se posicionar
duplamente: acolhendo a crítica, percebendo sua veracidade, suas exigências e
implicações; assumindo uma postura responsável diante da crítica como tal.
Assim agindo, a teologia enquanto momento de autocrítica da fé mantém-se fiel
à dimensão dialogal, assumindo o discurso alheio como um desejo de partilha.
A crítica religiosa hodierna nos coloca diante da tarefa de acolher o
questionamento vindo do atual ateísmo à violência religiosa e divina. Para
tanto, abordaremos as obras representativas do chamado novo ateísmo
(HAUGHT, 2008, p. ix): Christopher Hitchens (2007), Daniel C. Dennett (2011),
Richard Dawkins (2007) e Sam Harris (2008, 2009). A aproximação a esses
autores é feita com uma intenção mediadora para a interpretação do fenômeno
religioso na atualidade. Nosso olhar se voltará especificamente para o modo
como criticam as religiões e as divindades pelo viés da violência.
A apropriação dessa crítica como mediação analítica da religião, fio
condutor de nosso trabalho, na busca de responder a esse questionamento
com uma postura de seriedade e sinceridade, deve reconhecer sua pertinência
tanto para a apropriação quanto para a resposta.

1. A análise da crítica do atual ateísmo como método de trabalho


Tomando a crítica à religião por conta de sua relação com a violência, tal
questionamento nos coloca diante da seguinte hipótese: se, e em que nível, a
relação entre religião e violência, especificamente no caso do cristianismo,
deturpa a imagem de Deus revelada em Jesus Cristo e quais seriam as
implicações, teológicas e éticas, para a prática cristã dessa imagem deturpada
de Deus.

340
A análise do discurso dos autores representantes do novo ateísmo nos
serve como mediação para a compreensão da crítica atual à religião. Para tanto,
os textos representativos desse discurso formam o objeto material desse exame;
sendo o objeto formal o modo como as imagens religiosa e divina são nelas
apresentadas. O objetivo desta pesquisa teológica não é o ateísmo em si, mas
sua abordagem na condição de mediação aproximativa da realidade religiosa
hodierna, ou seja, uma mediação hermenêutica. Para tanto, procedemos a uma
síntese das percepções e ideias dos autores analisados, a fim de delimitar a
imagem de Deus e a percepção da religião que surgem da reação ateísta a
situação da religião em nossos dias.
O caminho a ser percorrido para sintetizar essa visão abrange a
perspectiva mais ampla da religião bem como a visão específica da divindade no
cristianismo; em ambas, a violência se faz presente na crítica que os autores
fazem à religião. Como o fenômeno religioso conduz, consequentemente, à
questão da divindade ou as divindades (ESTRADA, 2007, p. 8.), a violência
divina também se faz presente nessa crítica.

2. A abordagem do fenômeno religioso


A proposta metodológica exposta acima parte de uma pressuposta
presença da violência no quadro religioso, desde o âmbito mais geral da
religião, passando pelos monoteísmos (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), até
o âmbito mais estrito do cristianismo. Presença que não é acidental ou
periférica, nem se limita a uma questão de linguagem religiosa, por mais
fundamental que esta seja para os estudos da religião (ESTRADA, 2007, p. 17-
47). Como já mencionado, ela é uma chave de leitura da questão religiosa, que,
portanto, exerce uma função hermenêutica, na medida em que a violência se
faz presente como inerente ao fenômeno religioso (HOUTART, 1997, p. 7;
ARMSTRONG, 2015, p. 3) assim como à concepção de Deus.

341
2.1. Religião
A apreciação do entendimento da religião na perspectiva do atual
ateísmo esbarra na imprecisão deste sobre tal conceito, seja numa perspectiva
especulativa ou fenomenológica do religioso. Não fica claro que vertente
epistemológica conduz a abordagem da religião, se científica (PETERS, BENNET,
2003), filosófica (SWEETMAN, 2013; TALIAFERRO, 2002, p. 445-482), teológica
(PIKAZA, 1981, p. 127-300; LIBANIO, 2002) ou da ampla área dos estudos das
religiões (FILORAMO, PRANDI, 1999; DERRIDA, VATTIMO, 2000).
Pode-se perceber que há uma relação da religião com a dimensão
cultural do ser humano. Contudo, essa relação da religião com a cultura não é
devidamente explorada, muito menos a representatividade e o significado da
diversidade religiosa (ou da religiosidade) para o ser humano: a amplitude
semântica do que convencionamos chamar de religião (VALLET, 2002, p. 3;
DALGALARRONDO, 2008, p. 15-28; LIBANIO, 2002, p. 87-110), seus elementos
básicos e constitutivos (GARCÍA BAZÁN, 2002; TERRIN, 2003; NEVILLE, 2005), a
complexidade presente na história do problema religioso (MONDIN, 1980, p.
219-241; DALGALARRONDO, p. 29-75), a religião como sistema ou instituição
(ELIADE, COULIANO, 2003, p. 17-21; LIBANIO, 2002, p. 111-217).92

2.1. Religião como transmissão cultural


Em linhas gerais, diante da necessidade de sumariar o que seja a religião
ou o fenômeno religioso, direcionamos nosso olhar para a intenção que os
autores analisados têm com relação à religião, ou seja, seu modo de abordagem
do religioso e suas inferências que sustentam suas ideias e hipóteses.
Nesse sentido, um dado preliminar é a relação do fenômeno religioso
com a capacidade humana de transmissão cultural, por conta da linguagem e
dos símbolos (DENNETT, 2006, p. 35). Como tal, há uma identificação da
tradição religiosa como sendo uma ideologia, cuja função e obra têm sido

92 As obras citadas não têm a intenção de apresentar as mais importantes e imprescindíveis


referências dos aspectos reportados sobre a religião, muito menos de exaurir seus exemplos. Seu
propósito é mostrar a importância de se estabelecer o campo referencial em uma abordagem
como essa, mormente sobre um tema complexo como é o religioso.
342
encantar, ou mesmo enfeitiçar, a sociedade humanidade ao longo de sua
história (DENNETT, 2006, p. 16). Em conseguinte, Dennett (2006, p. 19)
apresenta uma conceituação da religião como “um sistema social cujos
participantes confessam a crença em um agente ou agentes sobrenaturais cuja
aprovação eles buscam”.
Destarte, uma característica essencial da religião comum aos autores
analisados é sua dimensão imanente, a religião é nada mais que um fenômeno
natural (DENNETT, 2006, p. 35). O fenômeno religioso é ontologicamente um
produto humano, cuja origem está intrinsecamente ligada às necessidades e
desejos humanos. Como produto humano, a religião é um subproduto, fruto de
uma propensão psicológica subliminar (DAWKINS, 2006, p. 227, 230), que,
baseada na confiança e obediência, leva a uma credulidade escrava e a uma
vulnerabilidade, marcadamente irracionais. Essa irracionalidade advém da
ignorância e da superstição que caracterizam a religião (HITCHENS, 2007, p.
65), e que, por sua vez, desenvolvem uma visão deformada da realidade
(HITCHENS, 2007, p. 48). Desse modo, a religião é incongruente com a
inteligência e os questionamentos da vida, e nenhuma religião tem a
capacidade de oferecer respostas satisfatórias à existência (HITCHENS, 2007, p.
15).
Pelo que se pode notar, há nessas afirmações uma percepção negativa
da imanência religiosa. Na verdade, essa negatividade é inerente também à
condição humana. Como tal, através da linguagem e do simbolismo, agentes de
sua transmissão cultural (DENNETT, 2006, p. 35), as religiões são meramente
replicadoras antropomórficas de mazelas humanas, que amplificam e
exacerbam (DAWKINS, 2006, p. 336) os males inerentes à natureza humana,
justificadas por uma visão religiosa solipsista, que olha para a realidade
circundante como anéis periféricos que giram em torno do eu religioso
(HITCHENS, 2007, p. 58, 74 e 110).
Esse mal que caracteriza a natureza humana e que, portanto, resvala em
sua criação religiosa, se relaciona com a capacidade destrutiva do ser humano a
qual encontra na religião sua máxima expressão. A agressividade presente nas

343
religiões é reflexo da natureza humana, uma consequência da limitação
racional do ser humano, e não de sua maldade (HITCHENS, 2007, p. 19).
Portanto, essa factualidade religiosa violenta é uma condição da natureza
humana, na qual está a origem (humana) da religião. É o que se percebe na
história da humanidade, manchada pelo sangue derramado em nome da
religião (HARRIS, 2008, p. 81), e que se relaciona com o paradoxo que a religião
representa para a humanidade: uma autofagia, uma criação humana que
vilipendia o próprio ser humano (HITCHENS, 2007, p. 73).

3. Religião e violência
3.1. A distinção pela violência
Contiguamente, um aspecto que distingue o atual ateísmo é sua postura
de predicar um mundo sem religião por conta do mal e da violência (DAWKINS,
2006, p. 24), bem como de interpretá-la como sua causa (DAWKINS, 2006, p.
335), como origem e engendração da violência (HARRIS, 2008, p. 77-78), como
uma força maligna significativa em nosso mundo (DAWKINS, 2006, p. 338). Essa
característica se revela também pela afirmação da destrutividade da religião
(HITCHENS, 2007, p. 19 et passim), dado que a partir da influência ambígua
com relação à importância da religião para a humanidade, ela não apenas
representa, mas é um veneno para a humanidade, que intoxica as conquistas e
o discernimento humanos; por meio do ódio, da infelicidade, da desconfiança,
da hostilidade e do sectarismo, ela é uma ameaça à civilização e sobrevivência
humanas (HITCHENS, 2007, p. 31-35).
Essa simbiose entre religião e violência, na visão do ateísmo hodierno,
representa um grave perigo, mormente pela influência que a religião exerce
sobre as pessoas e grupos, pois a fé, ou a crença religiosa, exerce seu valimento
baseada na certeza religiosa (HARRIS, 2008, p. 68). Além disso, sua presença
atinge e induz pessoas de diversos estamentos culturais e sociais (HARRIS, 2008,
p. 78s), possibilitada pela lógica do encanto que as religiões provocam nas
pessoas (DENNETT, 2006, p. 274).

344
Isso faz com que o caráter e a ética dialógica comum às religiões (KÜNG,
1993; 1999) seja sobreposto por um solilóquio que nega a palavra do outro. Na
medida em que se fundamenta a violência no mundo exatamente a partir da
convicção religiosa (DENNETT, 2006, p. 27), recria-se a experiência de uma
babel marcada pelo preconceito, pela discriminação, pelo ódio, cujo demiurgo é
a própria religião.

3.2. Moralidade religiosa e violência


Elencando algumas características da violência religiosa, ou da religião a
partir da perspectiva da violência, uma característica primária toca a própria
moralidade religiosa no modo de proceder diante da violência, ou como a
religião manifesta a violência. A relação entre ambas está, em germe, na
incapacidade que a religião apresenta em dar conta da visibilidade da própria
violência. Nesse caso, pivô dessa relação é o sofrimento humano. A violência
religiosa se manifesta originariamente não apenas quando sua existência é
produto da ação religiosa, mas também na medida em que se nega, concreta e
moralmente, a existência do sofrimento (HARRIS, 2008, p. 60).
Essa negação do sofrimento deriva do modo como a religião se relaciona
com a realidade material, ou a realidade mundana. Esta é vista como objeto de
rejeição, como objeto de ódio (HITCHENS, 2007, p. 235). Por conta do desprezo
à vida no mundo, cresce um desejo religioso de destruição deste mundo
(HITCHENS, 2007, p. 60, 63), em torno do qual se desenvolve um “culto à
morte” e o fim de toda a realidade terrena (HITCHENS, 2007, p. 257).
Nessa relação se percebe a inserção de um elemento da realidade
vulnerável humana na prática moral religiosa. As religiões, em seus conjuntos
doutrinais, e em seus rituais e em seus discursos manifestam sua violência ao
inserir o medo como mediação entre as pessoas e as divindades; elas se apoiam
no medo dos deuses para o controle de seus membros (DENNETT, 2006, p.
188) e para sua manutenção.
A religião sustenta e explora a credulidade das pessoas, na medida em
que ela exacerba a vulnerabilidade humana para propiciar seu crescimento

345
(DENNETT, 2006, p. 188). Essa sacralização do medo extrapola a esfera da
relação com o sobrenatural. Na verdade, ele acaba por justificar a partir de sua
dimensão transcendente a imanência das relações humanas. De modo
paradoxal, a religião acaba por corromper o amor para que este fundamente a
violência. Baseado numa identificação “amorosa” com a divindade, o amor se
perverte em ódio contra o diferente, contra os que não professam sua religião
(DENNETT, 2006, p. 272).

3.3. Violência religiosa e sofrimento humano


Outra característica da violência religiosa (imoralidade religiosa) é o
desmembramento da moral com a realidade. A moral religiosa obsta a
percepção do verdadeiro problema do sofrimento na qual uma pessoa se
encontra, por conta de algo que ela fizera. Sua preocupação moral se ocupa do
erro, de sua acusação e condenação, menos com as consequências –
sofrimento, dor, angústia – que devem ser sanadas. Ao se ocupar com o erro
em si e não com sofrimento causado pelo erro, as crenças religiosas se mostram
letais (HARRIS, 2008, pp. 37 e 39). A profissão e exercício da fé torna-se algo
fechado em si mesmo, autossuficiente e autorreguladora; a religião se
desmoraliza na medida em que não propicia o bem-estar das pessoas
(DENNETT, 2006, p. 274). Nesse estado de coisas, a moral chega ao estado
presunçoso de se desvincular da realidade. Como tal, uma moral dogmática e
alienada, sem comprometimento com o outro, dado que seu critério está
naquilo que ela elege com valor (HARRIS, 2008, p. 42). A moral dogmática, a
preponderância do dogma religioso sobre o raciocínio moral, desobriga-se à
compaixão genuína.
Desse modo, a relação entre religião e ética é marcada por uma
ambiguidade, ou mesmo um paradoxo. De certo, para o atual ateísmo a moral e
a ética são realidades humanas e sociais autônomas, que, portanto, estão
desvinculas e independem da religião (HITCHENS, 2007, p. 57), de modo que é
absolutamente possível ter uma vida ética sem religião. Contudo, mesmo
entendendo que a virtude não seja um crédito religioso (HITCHENS, 2007, p.

346
171), outra coisa é afirmar que entre essas instâncias há somente oposição e
contradição, principalmente pelo fato de a religião incentivar um
comportamento ético individualista (HITCHENS, 2007, p. 17), de tal modo que
uma pessoa se sinta moralmente autorizada pela religião a se comportar de
modo contrário à ética, respaldada por uma imunidade especial e divina; o que
permite que uma pessoa religiosa aduza ter um mandato divino para agir de tal
maneira.

3.4. Violência religiosa e fundamentalismo


A lógica do encanto religioso acaba por se materializar no fanatismo
religioso. A pluralidade, a diversidade religiosa fica reduzida à singularidade de
um aspecto ou espectro religioso, por conta do encanto idolátrico da violência,
das “guerras justas”, do fanatismo que justificam a morte e o assassinato com
algo moralmente aceito (DENNETT, 2006, p. 301).
Para o atual ateísmo, essa “ética solipsista” está na raiz do fanatismo e,
principalmente, do fundamentalismo religioso. Desse modo o fundamentalismo,
ou o extremismo religioso, não é visto como um desvio, deturpação ou
sectarismo, mas é identificado como o que constitui a religião em si (DAWKINS,
2006, p. 392). Como essencialmente fundamentalista, a religião, toda e
qualquer religião, é vista como a causa do mal no mundo (DAWKINS, 2006, p.
368). A religião é essencialmente imoral (HITCHENS, 2007, p. 57, 189), pois ela
fundamenta a prática de seus adeptos como reflexo de seus elementos
constitutivos e de seus preceitos originais (HITCHENS, 2007, p. 189-197), seus
mitos, doutrina, tradição, superstição, regras e leis.
Dessas características pontuadas acima, um sumário apanhado da atual
crítica religiosa, pode-se concluir que a propriedade da religião, tanto numa
perspectiva radical quanto liberal, é seu aspecto dogmático, retrógrado e,
principalmente, destrutivo (HARRIS, 2008, p. 49-50). Todo esse conjunto de fatos
e fatores constitui o cenário e a percepção da crítica do atual ateísmo sobre a
religião, seu motivo para insuflar que ela seja um vetor para o mal e o
sofrimento no mundo (DAWKINS, 2006, p. 368). Esta propriedade evidencia a

347
importância da síntese do pensamento hodierno sobre a religião, exatamente
pela passagem da crítica à plausibilidade da religião para a negação da
moralidade e a necessidade da religião, tendo como chave interpretativa sua
relação com a violência e suas consequências (HITCHENS, 2007, p. 60).
Emergindo de uma tradicional acusação de que a fé é contrária à
investigação científica e à emancipação humana decorrente dela (HITCHENS,
2007, p. 129, 258), a violência religiosa se manifesta pelo atraso que ela
representa para a humanidade. A religião se apresenta, então, como uma força
que faz a humanidade retroceder em seu desenvolvimento, contradizendo aos
frutos do conhecimento e da razão em nome da divindade.
Contudo, superando uma visão pragmática e utilitária da religião, na qual
sua negação não traria prejuízo para as sociedades, como o incremento da
maldade ou da desordem, para o ateísmo atual, a rejeição, a superação, o
aniquilamento da religião, por conta de sua inerente violência, é condição sine
qua non para a evolução do ser humano (HITCHENS, 2007, pp. 19 e 257) e para
o bem das sociedades.
Finalmente, a crítica feita pelo atual ateísmo sintetiza e catalisa a visão de
que o mal presente nas religiões se relaciona, em última instância, com as
divindades. As religiões não agem por si, mas agem em obediência aos desejos
e aos mandatos divinos (HITCHENS, 2007, p. 57). Se a religião corrompe o ser
humano, ela antes foi corrompida pelos deuses; pelo mal que deles emana.

Conclusão
Esta breve apresentação da relação entre religião e violência na
perspectiva do atual ateísmo nos mostra que, para este, a religião compartilha a
limitação racional humana, já que ela nada mais é que uma criação humana.
Desse modo, ambas, religião e violência, partilhariam sua gemelaridade em sua
condição antropológica, dado que encontram sua origem no ser humano como
humano. Essa afirmação se sustenta no debate e na visão de que a origem da
violência está exatamente relacionada à condição humana como tal, e não na

348
sua animalidade; seja no nível estrutural ou mesmo essencial (BASTOS, CABRAL,
REZENDE, 2010, p. 13, 35; COSTA, PIMENTA, 2006; DANDOUN, 1998).
Retomando a hipótese crítica que surge da relação entre religião e
violência, ao menos o que tange ao cristianismo, é preciso reconhecer que, na
prática, tal relação tem provocado certa deturpação da imagem de Deus. As
implicações dessa imagem podem ser percebidas em concepções teológicas e
posturas éticas presentes em nossa realidade social e eclesial.
Desse modo, tanto o questionamento vindo do atual ateísmo, quanto
essa realidade social e eclesial, evocam a atenção da Teologia cristã para a
necessidade de ouvir e acolher essas demandas e se posicionar crítica e
teologicamente diante delas. A análise da reflexão dos autores aqui
apresentados nos mostra que seu objeto material toca não tanto os
pressupostos filosóficos da existência ou não existência de Deus. Muito menos
ele se presta a analisar os paradigmas científicos dessa questão. O
questionamento do atual ateísmo coloca em evidência a pertinência do debate
sobre os fundamentos e as implicações de uma imagem de Deus e uma prática
religiosa (e social) marcadas pela violência.
É preciso reconhecer que as religiões, na qualidade de fontanárias de
“certezas morais” das quais seus fiéis dependem, não podem ser usadas como
fator de desculpa ou de isenção da responsabilidade pessoal. Diante desse
quadro, esses próprios autores colocam como uma tarefa, e não somente como
tal, mas como um fundamental desafio para as pessoas de todos os credos
religiosos a missão de praticar e disseminar o respeito à fé e aos elementos
sagrados de outras tradições religiosas como base para a convivência humana.

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351
O PAPEL DA IGREJA NA PROTEÇÃO DAS CRIANÇAS QUANTO A
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR
Rosemeire Celestino da Costa
Mestranda em Teologia pelo
Programa de Mestrado Profissional em Teologia da FTSA
rosemarrie1000@outlook.com

Resumo: O Brasil tem convivido com um problema complexo e desafiador que vem
abalando toda a sociedade, a violência doméstica e intrafamiliar contra crianças. Os
traumas e as consequências desse mal merecem profunda reflexão, seguida de
iniciativas sérias e urgentes, a fim de que o número de vítimas não atinja níveis
incontroláveis. O objetivo geral é analisar, através de pesquisa bibliográfica, a
responsabilidade e o compromisso da Igreja na proteção das crianças no que se refere
a violência doméstica e intrafamiliar. A pesquisa bibliográfica visa contribuir na
ampliação da compreensão a respeito dos aspectos que envolvem o tema em foco,
sendo de fundamental importância, visto que suscita questionamentos de interesse
acadêmico e social. O tema é relevante, visto que visa levar a Igreja a refletir sobre seu
papel sociopolítico, pedagógico e cultural na prevenção e no enfrentamento desse tipo
de violência contra as crianças. A Igreja deve assumir um papel mais efetivo na defesa
dos direitos da criança, construindo estratégias eficazes de enfrentamento da violência
doméstica e intrafamiliar para que possa modificar esse cenário, conscientizando,
sensibilizando e instrumentalizando os líderes religiosos para a gravidade desse
problema. Palavras-chave: Igreja. Violência doméstica e intrafamiliar. Crianças.
Palavras-chave: Igreja; Violência doméstica e intrafamiliar; Crianças.

Introdução
A violência que aflige crianças no mundo inteiro é de tal forma
importante que mobiliza todos os setores da sociedade, já sendo reconhecida
como relevante problema de saúde pública e de Direitos Humanos. Diante
desse cenário exige-se a intervenção não apenas do Estado, mas também da
sociedade, bem como o comprometimento de instituições e profissionais de
diversas áreas, assegurando seus direitos e proteção.
No Brasil, “a criança tem respaldo na legislação brasileira para sua
proteção integral. Na Constituição Federal de 1988, essa missão é definida
como prioridade absoluta a ser compartilhada pela família, sociedade e Estado”
(LIMA, 2018, p. 13).
A partir da Constituição de 1988, as crianças só realmente tiveram seus
direitos fundamentais, especificamente reconhecidos, por meio da Lei nº 8.069,
de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. O ECA
352
estabeleceu que crianças e adolescentes têm direito à vida, saúde, alimentação,
educação, esporte, cultura e liberdade. Também determinou a proteção de
crianças ou adolescentes contra maus tratos, além de fazer com que a violência
contra esse público fosse sendo removida do quadro de invisibilidade e
silenciamento.
O fenômeno da violência consiste em toda forma de maus tratos que
ocorra em uma relação de responsabilidade ou poder e que resulte em dano à
dignidade, saúde e desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.
Dentre as diferentes formas como a violência se apresenta, uma
particularmente vem chamando a atenção, a violência doméstica/intrafamiliar
contra as crianças, que se torna um problema familiar e se impõe de maneira a
prejudicar o desenvolvimento físico, psíquico e social desses sujeitos, negando
seus direitos de cidadania.
A complexidade dos processos de violência nos coloca diante da
responsabilidade de refletir e de buscar caminhos para entender e lidar com a
violência em geral e, no caso específico, com a violência doméstica e
intrafamiliar contra crianças.
A escolha do tema deve-se pela relevância do assunto na sociedade
atual. A gravidade da violência doméstica e intrafamiliar contra crianças no
Brasil tem se tornado cada vez mais evidente, entretanto, quase não existem
pesquisas relacionadas a esse tema observadas na perspectiva da igreja.
Diante do exposto, o problema de pesquisa que propomos é: qual o
papel da igreja em relação à violência doméstica e intrafamiliar contra crianças?
A metodologia utilizada se deu através de pesquisa bibliográfica, no qual
exploramos assuntos relacionados a temática proposta, através da leitura e
análise de livros, teses, dissertações e artigos.
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a responsabilidade e o
compromisso da Igreja na proteção das crianças no que se refere a violência
doméstica e intrafamiliar.

353
1. Considerações sobre a violência
A Organização Mundial da Saúde define violência como:
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça,
contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma
comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar
em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou
privação (KRUNG et al., 2002, p. 5).

Podemos então dizer que a violência compreende a utilização da ação de


força, influência e atribuições que alguma pessoa tem para reprimir, sujeitar e
causar males a si mesmo e/ou a outra(s) pessoa(s). É uma conduta de
determinado indivíduo que traz prejuízo físico e/ou moral a outros, incluindo a
negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e psicológico.
A violência é um fenômeno que possui características variadas e
peculiares, que “[...] não somente atinge a integridade física, mas também as
integridades psíquicas, emocionais e simbólicas de indivíduos ou grupos nas
diversas esferas sociais” [...] (ABROMOWAY, 2002, p. 27 apud KRAVICZ, 2019, p.
2).
No tocante à violência contra crianças, o Conselho de Prevenção contra
o Abuso Infantil da Organização Mundial de Saúde esboçou a seguinte
definição:
O abuso ou maus-tratos em relação à criança constitui todas as formas
de tratamento doentio físico e/ou emocional, abuso sexual,
negligência ou tratamento negligente, exploração comercial ou outro
tipo de exploração, resultando em danos reais ou potenciais para a
saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no
contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder
(KRUNG et al., 2002, p. 59).

Podemos dizer, então que a violência contra crianças é todo o ato ou


omissão dos pais, parentes, responsáveis, instituições e sociedade em geral, que
resulta em danos físicos, emocionais, sexuais e morais, e interfere na educação e
qualidade de vida da criança.
Ao contrário do que se pode imaginar, a violência contra crianças pode
acontecer em qualquer contexto social, econômico, cultural e religioso. Pode
ocorrer nas escolas, locais de atividades esportivas, unidades socioeducativas, de
acolhimentos institucionais, instituições religiosas e quaisquer outros espaços de

354
convivência. Muitas vezes ela ocorre no próprio ambiente familiar: na residência
dos pais, tios, avós, primos etc.
Historicamente, as sociedades têm submetido crianças a inúmeros tipos
de violência, sendo a de cunho doméstico e intrafamiliar uma das mais comuns.

1.1. A violência doméstica e intrafamiliar contra crianças


As últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI levaram
vários especialistas, dos diversos campos científicos, a se inquietarem e darem
mais atenção adequada a violência doméstica e intrafamiliar, que ocorre no
ambiente privado ou público, dentro das residências ou fora dela, normalmente
praticada por indivíduos que precisariam dar apoio e proteção às crianças que
estão sob sua responsabilidade direta ou indiretamente.
Aquele que, muitas vezes, pratica o ato de violência é alguém a quem foi
confiada a função de zelar (DINIZ; ANGELIM, 2003, p. 23).
A violência doméstica e intrafamiliar é difícil de ser revelada, por ser
protegida pela cultura do silêncio, pelo receio e pela falta de punição de seus
executores. Engloba tipos e formas específicas (JORGE et al., 2018, p. 35).
As distinções entre elas, violência doméstica e intrafamiliar, foram
construídas à medida que as políticas e os estudos referentes à temática
passaram a preocupar a sociedade, fato esse que se originou a partir dos
movimentos sociais de mulheres e dos movimentos de defesa da criança e do
adolescente (BRASIL, 2002, p. 15).
À expressão violência doméstica subentende-se a atitude que leve a
danos físico, psíquico ou sexual a alguma pessoa que conviva no mesmo local,
incluindo empregados e agregados (CELMER, 2010, p. 72-73).
Mesmo diante do fato de que além dos aspectos de
sociabilidade e de afetividade, o plano familiar também pode
constituir-se como palco de violências como as elencadas a
seguir: simbólica, física, sexual, patrimonial, psicológica e moral
que ocorrem na privacidade do lar e sinalizam para a origem de
todas as demais (CAVALCANTI; GOMES, 2015, p. 314).
Essa forma de violência além de afetar a integridade corporal, pois causa
a propagação de condutas violentas e destrutivas, leva, também, a modificações

355
tanto no espaço físico quanto na dinâmica familiar, criando distanciamentos,
desprezo, mágoas, apatia de uns para com os outros, falta de um convívio
harmônico (DINIZ; ANGELIM, 2003, p. 26).
Podemos diferenciar a expressão violência doméstica de violência
intrafamiliar, apontando que a primeira acrescenta outras pessoas ao grupo
familiar, sem função parental, que coabitem no mesmo ambiente. Ocorre
dentro de casa ou unidade doméstica e geralmente é praticada por um
membro da família que viva com a vítima. Já a intrafamiliar é possivel de
acontecer no interior do lar ou fora dele, “por algum membro da família,
incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços
de consangüinidade, e em relação de poder à outra” (MORESCHI, 2018, p. 15).
A violência doméstica e intrafamiliar é um fenômeno amplo, visto que é
capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima. É uma violência
interpessoal e subjetiva, é um abuso do poder disciplinar e coercitivo dos pais e
responsáveis, é uma forma de violação dos direitos essenciais das crianças e,
portanto, uma negação de valores humanos fundamentais: como a vida, a
liberdade e a segurança.
O ato da violência doméstica e intrafamiliar não está ligado somente a
ações violentas, mas envolve todo tipo de negligência familiar, no qual deveria
ser um local cheio de afeto, carinho e apoio. Isso afetará para sempre a vida da
criança, deixando marcas que poderão ser irreparáveis por parte de quem
deveria amar, proteger, educar e cuidar.

2. A igreja no combate à violência doméstica e intrafamiliar contra a criança


Para compreender o papel da igreja no combate à violência doméstica e
intrafamiliar contra a criança, é necessário entender que o contexto no qual a
sociedade está inserida tem conexão com a religião, portanto, o alcance de
qualquer ação, projeto ou movimento da cristandade tem um valor
inimaginável e efetividade imediata. Assim sendo, a igreja, enquanto um espaço
de socialização, não pode ser uma instituição omissa a prática da violência
doméstica e intrafamiliar à criança.

356
A igreja é convocada para o seu papel profético. Olhar para o
problema e denunciá-lo. Sair às ruas, colocar-se ao lado das mulheres,
meninas, meninos e das organizações que atuam na busca da justiça,
da inclusão, da saúde e da vida – direitos de cidadania, que serão
obtidos através da consciência e da mobilização popular. (SOARES,
2013, p. 2).

Tal forma de violência deixou de ser um problema pessoal ou privado,


que eventualmente envolvia o poder público, e tornou-se um problema social,
portanto, de responsabilidade de todos.
A conscientização de cada ser humano é pré-requisito para acabar com a
violência no âmbito doméstico. Neste sentido, a religião, independentemente
do seu regimento, é uma forte aliada na propagação de práticas de
enfrentamento, uma vez que, um contexto inimaginável para que haja violência
doméstica e intrafamiliar é o lar cristão, mas ela também acontece nesse
ambiente.
A princípio é difícil pensar que possa existir um potencial de violência em
um meio religioso como a igreja cristã, que prega o amor a Deus sob todas as
coisas e ao próximo como a nós mesmos como base de organização social e de
mandamento divino. A ideia de “família da fé” faz com que esse local seja
entendido como um local de acolhimento e que o modelo familiar pregado seja
de suporte em amor uns aos outros, tanto na família de crentes quanto na
família social (SOARES, 2013, p. 2).
Muitas vezes a violência pode ocorrer, quer seja pela índole violenta que
o ser humano, por diferentes razões, carrega em sua formação, quer seja por
justificativas religiosas. Nesse último caso destacamos a interpretação bíblica a
respeito das funções de autoridade no lar, que pode ocorrer de maneira
errônea e equivocada. Até mesmo crianças educadas em certas doutrinas
religiosas acreditam ser “natural” serem agredidas, por ouvirem do agressor tal
interpretação equivocada de trechos bíblicos. Como exemplo trazemos o texto
de Provérbios 13.24 que afirma: “aquele que poupa a vara aborrece a seu filho;
mas quem o ama, a seu tempo o castiga”. Isso leva a pensar que a família pode
ou deve ser mantida, acima de tudo, em meio a agressões físicas e psicológicas.
O fato da violência doméstica aparecer como algo “natural”,
provavelmente sinaliza não somente a banalização da violência na
357
sociedade, como também a legitimação dessa violência no seio das
famílias (independente do credo religioso) como algo que faz parte da
educação doméstica e da orientação bíblica, em que as pessoas
adultas exercem sua autoridade como abuso de poder para educar
crianças e adolescentes: batendo, castigando fisicamente, humilhando
e exigindo obediência incondicional (SOARES, 2013, p. 2).

Os espaços familiares em que se defende o uso da força física como meio


de educar possibilitam que os pais e as mães ensinem seus filhos e filhas a
aceitarem e aguentarem a violência como algo natural, apropriado para seu
processo educativo e religioso. Geralmente a dinâmica de uma família que vive
em situação de violência doméstica aponta para relacionamentos conflituosos
nos subsistemas; tanto entre o casal parental, quanto entre os pais, as mães, e os
filhos e as filhas.
A compreensão bíblica da família precisa ser feita à luz do Senhor Jesus
Cristo. Muitos membros familiares, especialmente os adultos, não procuram
interpretar as escrituras de modo correto. O apóstolo Paulo, na carta aos Efésios
6:4 declara: “Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos segundo a instrução
do conselho do Senhor”.
Assim, devido à má interpretação, ou uso de pequenos trechos das
escrituras em benefício próprio, muitas crianças, em seus lares cristãos, têm
sofrido violências físicas e psicológicas (SOARES, 2013, p. 2).
A violência deve ser compreendida pela religião cristã como um
problema de ordem social e não apenas espiritual, sendo necessário observar o
conhecimento oferecido pelas demais ciências e assim, realizar um
aconselhamento pastoral com excelência, minimizando a violência doméstica e
intrafamiliar.
Necessariamente, a Igreja como um todo, precisa reconhecer que, desde
a violência psicológica até a violência física, existe um facilitador de ordem
cultural e, por vezes, reproduzido em aconselhamentos pastorais, pregações e,
sobretudo, nos lares cristãos.
O grande desafio do aconselhamento pastoral consiste em criar um
panorama histórico, cultural e social do aconselhando que explique a violência
sofrida e causada. Não deve o conselheiro abster-se apenas nos ensinamentos
da Bíblia, ou ainda, basear-se apenas na fé. A igreja tem se mobilizado, ainda
358
que vagarosamente, em busca do modelo ideal. Faz-se necessário que as
lideranças religiosas se unam primeiramente para conscientização dos seus fiéis,
e consequentemente para discutir novos métodos, novas abordagens de
enfrentamento.
Desta forma, o maior desafio da igreja atualmente é, repelir toda
estrutura autoritária, inclusive a religiosa, que venha tolerar a presença de
violências no âmbito doméstico e intrafamiliar.
Partindo do pressuposto que a igreja inclui uma perspectiva social e
integral, onde a pregação e o amor ao próximo são correlacionados, não se
preocupando unicamente com a alma do ser humano, mas possuindo uma
dimensão de responsabilidade que abrange o cuidado total com as facetas que
compõem a vida cristã.
[...] o cristianismo pode se colocar com um agente efetivo em combate
aos problemas sociais em todas as áreas. Nos relatos bíblicos podemos
ver como Jesus não apenas pregou a salvação da alma, mas resgatava
pessoas de enfermidades, de condições sociais deploráveis e de
estágios de vulnerabilidade (FARIAS, 2019, p. 141).

Para um assunto tão complexo é necessário que haja líderes, pastores e


obreiros capacitados a lidar com esses casos. Não é incomum ver pessoas que
buscaram a ajuda de líderes religiosos para seus problemas pessoais e saíram
mais feridos e machucados do que chegaram. Isso porque, na maioria das
vezes, tais líderes não obtiveram a capacitação correta para o aconselhamento.
A igreja pode trazer grandes benefícios para quem está necessitando, por
isso é importante que ela seja capacitada para aconselhar outros. Grande parte
das pessoas que buscam ajuda na comunidade eclesial se frustra.
Acreditamos que assim a igreja cumpre sua missão de forma integral na
sociedade em que está inserida, pois, além de uma questão ministerial, é
necessário que o problema seja visto como de saúde e ordem pública e não
apenas de âmbito familiar. O acolhimento empático e aconselhamento de
vítimas de violência doméstica e intrafamiliar certamente são necessários dentro
das igrejas.

359
É necessária uma conscientização da Igreja em relação ao assunto para
que ela esteja cada dia mais aberta a acolher as vítimas. Para que ocorra essa
conscientização, conforme Coelho (2010, p. 39-40), é preciso:
- Discutir sobre o assunto da violência, como ele permeia a vida cotidiana,
não somente de forma aberta, mas frequentemente de forma velada e insidiosa
com os diversos grupos de interesse dentro da igreja. A igreja deve questionar e
eliminar o pensamento patriarcal.
- Conhecer, compreender e analisar as manifestações locais da violência
onde a comunidade está inserida.
- Registrar e compartilhar com a comunidade ações afirmativas tomadas
neste processo que possam servir de diretrizes para outras pessoas que
procurem ajuda semelhante.
- Utilizar o púlpito como local de ensino bíblico com aplicação prática nas
questões de violência, usando linguagem apropriada.
- Examinar e revisar a teologia de sua igreja para encontrar ensinamentos
que estejam associados ao abuso de poder. Corrigir conceitos teológicos
equivocados que favoreçam um ambiente de opressão a crianças, de modo a
alcançar a mensagem essencial do evangelho, que assegura vida para todos.
- Estabelecer conexão entre as mais variadas instituições sociais no
sentido de fortalecer a rede de apoio às vítimas. Desenvolver trabalhos visando
a ampliação da cidadania e eliminação de todas as formas de violência em
nossa sociedade.
- Ensinar e equipar a comunidade cristã para promover o acolhimento e
aceitação das vítimas extremamente feridas física e emocionalmente por
sequelas da violência sofrida.
Tendo como base essas orientações, certamente a Igreja estará mais
aberta e apta para lidar com o assunto da violência doméstica e intrafamiliar
contra crianças de maneira correta.
A Igreja deve assumir um papel mais efetivo na defesa dos direitos da
criança, construindo estratégias eficazes de enfrentamento da violência
doméstica e intrafamiliar para que possa modificar esse cenário,

360
conscientizando, sensibilizando e instrumentalizando os líderes religiosos para a
gravidade desse problema.

Conclusão
Na igreja, a violência doméstica e intrafamiliar é nutrida pela cultura do
silêncio. Assim, para combater esse mal é preciso trazê-lo a público, examiná-lo e
dar a solução necessária.
As igrejas e comunidades religiosas são responsáveis por se unir às
autoridades e organizações da sociedade civil na missão de prevenir e combater
a violência doméstica e intrafamiliar contra crianças, desenvolvendo ações
efetivas, ainda que enfrente muitos desafios, assumindo, assim, sua
responsabilidade social.
Para a igreja se envolver na questão da prevenção e combate à violência
é necessário que abrir novos caminhos para uma Teologia que acolha as várias
formas de necessidades sociais e espirituais da sociedade, principalmente nas
famílias.
A percepção da complexidade que envolve a violência vivenciada pela
criança no seio familiar exige formação de líderes eclesiásticos em
conhecimentos teológicos relacionados à família e a questão da violência,
conhecimentos básicos na área da saúde pública, nas leis que garantem a
segurança, integridade física, moral e emocional de menores dentro e fora de
casa, envolvimento tanto de líderes como da comunidade cristã com ações de
conscientização e sensibilização contra a violência entre membros familiares no
meio cristão e comprometimento com atenção à família, principalmente com
essa faixa etária.

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VIOLÊNCIA E MECANISMO VITIMÁRIO NO CENÁRIO POLÍTICO
BRASILEIRO ATUAL
Rondinele Laurindo Felipe
Doutorando em Ciência da Religião UFJF
Bolsista FAPEMIG
rondinelelfelipe@gmail.com

Resumo: A pretendida comunicação versará acerca do debate das ocorrências de


violências e perseguições vitimárias no cenário político brasileiro inspirada na teoria
mimética do pensador franco-americano René Girard. Desse autor, destacaremos seu
mote principal que é o estreito vínculo entre a violência e o sagrado, como
consequência da polêmica noção de que os humanos seriam governados por um
mimetismo de caráter competitivo que instauraria em crises e bestialidades de tal
ordem que uma fortuita solução pacificadora não se isentaria de violência. Aliás, tratar-
se-ia de violência vitimária e coletiva contra uma vítima, um bode expiatório. Desse
modo, os sacrifícios expiatórios ao mesmo tempo que assumiam a função de
apaziguarem a explosão de conflitos, revelariam nossa terrível disposição com
implicações persecutórias e vitimárias. Isso nos faz pensar nas vítimas afetadas pelo
sistema político no contexto brasileiro. De certa forma, a moralidade evangélica
associada à política parece nos ofuscar ao ponto de encararmos com certa
naturalidade as imposições de caráter violento propagadas em nome de deus. Diante
disso, em que medida o “fator deus” legitima e sustenta formas de violências?
Semelhante questão parece se confirmar na expressão máxima da campanha política,
por assim dizer, vitimária do governo Bolsonaro que diz: “Brasil acima de tudo deus
acima de todos.” Essa taxação de cunho hegemônico e exclusivista não deixa de
reverberar com aspectos autoritários e pretenciosos quando assume uma ideologia
particularmente teocêntrica. Aqui, o problema da violência não parece ser a violência
em si, mas na maneira como impomos nossas “verdades” para maioria. Afinal, parece
que a ideologia impositiva, pseudo evangélica, se impõe em virtude do bem comum,
em nome da família, de deus, dos “cidadãos de bem.” Não obstante, os desassistidos
vítimas da miséria, dos preconceitos e autoritarismos de todos os tipos, de um Brasil que
ainda respira ares de violência patriarcal e colonial. Talvez, a postura decolonial nos
permitirá enxergar através dessa nuvem nebulosa que esconde as verdadeiras vítimas;
os bodes expiatórios, inocentes, perseguidos pela lógica implacável e sentenciadora da
epistemologia dominante.
Palavras-chave: Violência; política; mecanismo vitimário; subalternidade;
decolonialidade.

Introdução
Dizem que religião e política não se discutem. Ora, como não discutir o
futuro coletivo e socioeconômico das pessoas? Como não discutir
democraticamente o nosso destino ou nossa exaurível existência? Talvez, a
questão que nos causa mais incômodo seja o fato, quase indissociável no

363
cenário político brasileiro, do aparelhamento entre religião e política. Não
obstante, quando nos referimos à religião, precisamos especificar que se trata
de uma parcela pequena, de vertente evangélica neopentecostal, cuja
derivação se ramificou ao nível de uma moral teocêntrica e proselitista. Os riscos
desse tipo de conduta são muitos, porém o mais problemático para um país
laico e democrático talvez seja a completa exclusão das outras religiões não
cristãs e, não menos importante, a eminente estigmatização de qualquer
perspectiva dialogal com outros seguimentos cristãos. Talvez, essa máxima de
não se discutir política seja uma forma colonialista, impositiva de estagnar e não
acender problematizações e polêmicas envolvendo o cenário político. Quando
não priorizamos as pautas políticas públicas e democráticas deixamos o nosso
direito de cidadão à mercê da classe dominante; das epstemologias dominantes.
É nesse sentido que a urgência do pensamento decolonial se faz necessário.

1. Mímesis e efeito manada


Quando voltamos a nossa atenção em direção aos, por assim dizer,
cataclismos políticos no cenário brasileiro atual não passa despercebido o
quanto a polarização de violências e do ódio coletivo mimetizam e reúnem as
pessoas numa espécie de arrebatamento servil e irracional em proveito de um
ideal comum. Nesse panorama, inimigos e opositores convivem oportunamente
em nome do mesmo ideal. Como na metáfora bíblica (Isaías, 11:6) em que os
lobos conviverão com os cordeiros, desde que o ideal seja o mesmo. É
interessante notar que na obra: psicologia das massas e análise do eu e outros
textos, Freud aponta que: “numa massa todo sentimento, todo ato é
contagioso, e isso a ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse
pessoal ao interesse coletivo”. Ele continua: “eis uma aptidão contrária à sua
natureza, de que o homem só se torna capaz enquanto parte da massa.”
(FREUD, 2011, P. 20). Percebemos com isso que Freud chama atenção para o
fator contagioso do efeito manada, ou, em termos girardianos: contágio
mimético. Vale inteirar que na coletividade a massa é arrebatadora, numa
sujeição hipnotizante os indivíduos atuam na direção conjunta e gregária,

364
semelhante a um rebanho de ovelhas. Que poder estranho seria esse que faz
com que a ideologia, ou simplesmente a polarização do ódio coletivo, seja o
único ideário pelo qual se deve lutar? E mais, como explicar essa maciça adesão
odiosa de cunho religioso e político contra os periféricos e as minorias sociais? É
no sentido de tentar responder a tais questões que pretendemos pensar os
fenômenos miméticos de perseguição vitimária e violenta a partir dos conceitos
do teórico franco-americano René Girard.
A teoria mimética de René Girard (1990), pensada sob fio condutor do
desejo, insere um extraordinário elemento acerca do contágio coletivo e do
entendimento sobre a violência humana. De acordo com ele, o desejo humano
é mimético, ou seja, imitamos o desejo de um modelo que ao desejar
determinado objeto aguçará nosso interesse pela posse do mesmo. Isso parece
explicar nossa disposição em seguir a coletividade; a multidão. Nesse sentido,
encontramo-nos presos nesta teia tecida e orientada pelo desejo alheio. E por
ser assim, os desejos se ampliam na mesma direção, na disputa pelo objeto,
podendo progredir para rivalidades e violências. Tal fato, pode obter uma
escalada tão crescente que uma solução emergiria de maneira igualmente
violenta. Surge aqui a necessidade de se encontrar um culpado, ou seja, um
bode expiatório que carregasse a culpa pelo infortúnio. O golpe fatal desferido
contra esse culpado teria sido o antídoto que aplacaria a violência coletiva e
virulenta nos primeiros agrupamentos sociais. A intuição de Girard está em
mostrar que esses conflitos coletivos, aplacados pelos sacrifícios, possibilitaram o
nascimento do sagrado. Para além disso, podemos perceber que o contagio
coletivo de efeito manada que se instaura a partir do desejo de apropriação
mimética, incide num contágio dilacerador e violento. Ou seja, se a violência
acontece quando desejamos o mesmo objeto, como o efeito da violência é
contagiante, tender-se-á ao arrebatamento coletivo de tal ordem que o
aparelhamento grupal e violento converge para uma única vítima ou para as
minorias.
Nos grupos antigos, surgiria, fortuitamente, a necessidade de encontrar
uma solução pacificadora que resolvesse a crise. Nesses grupos arcaicos, essas

365
crises eram apaziguadas pelos sacrifícios expiatórios. A morte dessa vítima, do
culpado pelas crises, tinha o poder de exorcizar a violência que permeava as
relações humanas, restaurando a ordem social. Por isso, de acordo com essa
teoria, o sagrado deriva da violência humana e, logo, encontra-se
inerentemente ligado à violência. É pela necessidade de conter a violência
mimética, de requerer bodes expiatórios para despejar suas violências, que,
segundo Girard (1990), o homem evoluiu no meio social. Dessa maneira, as
divindades arcaicas não passaram de bodes expiatórios, perseguidos e
sacrificados, afim de saciar a necessidade dos grupos humanos de encontrarem
um culpado para suas causas. Com o sacrifício do bode expiatório a paz social
era restaurada e o convívio restabelecido entre os indivíduos do grupo. Ora,
seria essa necessidade de encontrar culpados nosso fortuito destino de buscar
na violência o alivio para os problemas coletivos? Talvez a resposta mais
coerente se expressa assim: se o nosso desejo é mimético e a causa das
rivalidades, logo, a violência que parece orbitar nas esferas coletivas não se
isenta de violência. A violência é virulenta e contagiosa; a violência tende a
progredir para o nível sacrificial. No entanto, é aqui que Girard polemiza ainda
mais seu projeto mimético. De acordo com esse autor, os evangelhos
denunciam a violência sacrificial e, paradoxalmente, ao denunciarem essa
violência acabaram por interromper o ciclo mimético, coletivo e sacrificial. Como
Girard sustenta essa tese? Ele mesmo responde que:
os relatos da paixão projetam sobre o impulso mimético uma luz que
priva o mecanismo vitimário da inconsciência de que precisa para ser
verdadeiramente unanime e para suscitar sistemas míticos-rituais. A
difusão dos evangelhos e da Bíblia deveria assim originar, para
começar, o desaparecimento das religiões arcaicas. É isso,
efetivamente, que se verifica. Por todo o lado onde o cristianismo
penetra, os sistemas míticos-rituais definham e desaparecem (GIRARD,
2009, p. 191).

O que Girard sugere em seu projeto mimético, consiste na audaciosa tese


que poderá ser resumido da seguinte maneira: o evento Cristo, cujo caráter
denunciativo e revelador dos evangelhos, testificam o quão essa divindade
poderá ser complacente e avessa ao sacrifício. E mais, nos Evangelhos a lógica
das religiões primitivas é invertida. No mito primitivo a vítima é condenada,

366
sacrificada, e se torna sagrada, ao passo que nos evangelhos, o sagrado, o
inocente, que é sacrificado. Ora, se o sagrado é sacrificado, o sacrifício é injusto,
pois a vítima que está sendo sacrificada é consequência da crise mimética e,
portanto, da violência. Entretanto, isso ainda não responde ao fato de ainda
buscarmos bodes expiatórios para nossas crises de violência coletivas.
Não é exagero imaginar que as consequências dessas afirmações são
polémicas. Isso porque se o desaparecimento das religiões arcaicas se liga ao
fato desse mecanismo persecutório, fazedor de vítimas, ser revelado e
denunciado pelos evangelhos. Ora, se essa é uma tese plausível o que dizer,
então, das vítimas perseguidas pela cristandade? E das incontáveis vítimas da
escravatura e das ocupações coloniais? Essas questões nos servirão no decorrer
desse texto para pensarmos em que medida o advento da cristandade justificou
e legitimou, por assim dizer, as perseguições vitimárias praticadas desde as
sociedades primitivas.
Dito isto, tentaremos perceber o quanto a leitura decolonial parece não
apenas mostrar que o mecanismo vitimário ainda mostra seus efeitos
persecutórios, porém, ao mesmo tempo, nos dará a possibilidade de refletir
acerca desse mecanismo vitimário que parece encontrar estereótipos
persecutórios não apenas nas minorias excluídas do convívio socioeconômico
mas, muito além disso, nas culturas diferentes, nas etnias diversas, aquelas do
terceiro mundo, sobretudo naqueles casos em que a cor da pele define a
condição de milhares de seres humanos, subalternizados e perseguidos pela
autoritária e implacável hegemonia cristã colonial. Porém, em nos dias atuais os
resquícios dessa cristandade colonial e persecutória ainda mostra seus ares
odiosos de carrascos e implacáveis sentenciadores de vítimas. Ora, quem são
essas vítimas, cujos gritos reverberam por todos os lados em nossa sociedade?
Não difícil sugerir que tais vítimas são aquelas das classes subalternas, os
miseráveis, a população LGBT, a população indígena, os pretos, etc. Mas, o que
teria acontecido para que o ressurgimento das esquecidas e quase superadas
mazelas viesse nos atormentar e nos fazer sentir no coração e na alma esse
gosto amargo, de inconcebíveis preconceitos e atos de violências? Nossa

367
hipótese é de que o discurso de ódio, potencializado pelas redes sociais e os
veículos de divulgação em massa, mostrou, na mais clara luz, o projeto da
extrema direita política, dos conservadores, sacerdotes do colonialismo e do
autoritarismo hierárquico que, insistentemente, procuram bodes expiatórios
para expiar seus pecados e ressentimentos. Obviamente que o seguimento
cristão neopentecostal, não parece ser isento da culpa quanto ao apoio ao
presidente que não mensura suas palavras e atos numa perversidade contrária
a qualquer projeto evangélico.

2. A tarefa decolonial: esperança política


É sob as bases teóricas decolonial que pretendemos mostrar que a lógica
persecutória de alguns bolsonaristas autoritários parecem basear-se no
ressentimento. Isso porquê aqueles das classes hegemônicas parecem
ressentidos pela crescente verticalização socioeconômica dos pobres; a paridade
social em que os pobres vinham conquistando e ocupando espaços que antes
era impossível e que, portanto, qualquer possibilidade de ascensão ou
nivelamento social é visto como demérito, neste, por assim dizer, equívoco
socioeconômico, em que os filhos de empregadas domesticas adentraram nas
universidades públicas, conquistaram espaço nos cargos públicos, ou mesmo
empreendendo seus negócios, tendo acesso à financiamentos, etc. Em se
tratando dessa lógica sentenciadora, meritocrata, patriarcal e colonialista da
direita conservadora não parece coerente que os subalternizados comam, nem
mesmo, as migalhas que caem das mesas sempre fartas dos ricos e
predestinados pela cultura colonialista da branquitude; da epistemologia
dominantemente eurocêntrica com a qual impuseram todos os seres humanos
a uma ontologia ocidental, forjada pelos vencedores, invasores de terras,
colonizadores.
Parece ser, deste modo, tornando aparente essa face oculta, dissimulada,
da modernidade-cristã que será possível enxergar através dessa cortina
colonialista que esconde as verdadeiras vítimas, os bodes expiatórios, inocentes,
perseguidos pela lógica implacável e sentenciadora da epistemologia

368
dominante moderna. Como adverte Henrique Dussel (1995): a cristandade,
talvez o cristianismo, são quem perseguem os culpados, as vítimas, e que,
portanto, contraria à hipótese girardiana que defende uma leitura anti-sacrificial
do cristianismo. Nesse sentido, os carrascos dissimulados pela modernidade
ainda são protegidos pela epistemologia dominante, e, seus crimes legitimados.
Com efeito, quais são as vítimas da modernidade? Como já foi apontado: são os
índios, sacrificados, os negros escravizados, as mulheres oprimidas, a população
LGBT, as crianças alienadas, a cultura popular, etc.
Diante dessas constatações, a tarefa decolonial consiste em pensar e
construir uma outra realidade a partir de outras categorias de pensamentos
como predicados que avançam para além dos pensamentos ocidentais
dominadores, exclusivistas e sentenciadores. Entendemos que a tarefa
decolonial deve repercutir de maneira efetiva na vida de todos os esquecidos
pela história colonial que, aliás, não constam como indivíduos de histórias. A
questão que surge é: como pensar, efetivamente, questão práticas para além do
modelo colonial? É de conhecimento público os modelos, em alguns casos
ultrapassados, para não dizer utópicos, de vertentes socialistas, comunistas, de
categorias religiosas, etc. que não chagaram a lograr o êxito esperado (nos
referimos à assistência aos subalternos e escravizados). Não queremos ser
pessimistas, mas é difícil visualizar as vítimas desassistidas, condenadas e
esquecidas pela história ocidental protagonizando suas histórias. Embora, o
termo resistência parece sintetizar e despontar como um vocábulo de espera
para que a leitura as avessas da modernidade e colonialidade poderá suscitar,
em princípio, a libertação epistemológica dos subalternos, e, progressivamente,
serem sujeitos de suas histórias.

Conclusão
Constituiu tarefa difícil, nessas poucas páginas, uma leitura mais
detalhada acerca do intrigado e polêmico mecanismo vitimário no contexto
brasileiro. Não sabemos o quão problemático será se retrocedermos aos
princípios morais do colonialismo, cujo tradicionalismo se impões coma a forma

369
mais promissora de sociedade. Contrariamente, a libertação epistemológica
pensada pelo modelo decolonial, longe de querer reviver o passado de
violências e sofrimentos, consistirá em negar o passado sofrido em virtude de
um futuro, cujo o protagonismo das vítimas seja aquela extraordinária e
subversiva atitude de abandonar o passado para serem autores de suas histórias
que não se escreverá com tinta de sangue e sofrimento, mas com esperança de
uma vida mais vivida que defendida a duras penas, na semelhança da miséria e
da subalternidade. Se o tradicionalismo da extrema direita brasileira, de caráter
evangélico e proselitista, pressupõe um modelo político que estabelece seus
valores como normatização para todos, não é difícil imaginar que as minorias,
os das religiões afro-brasileiras, em muitos casos os periféricos, ficaram de fora
dessa pseudodemocracia, seletiva, exclusivista. Enfim, não se concluirá nada
enquanto o vazio da fome, o terror da violência de gênero, do racismo e da
miséria, causada pela diferença de classes, representar a fronteira da
convivialidade e da existência nas sociedades.

Referências
DUSSEL, Enrique. 5. The Invention of the Americas: The Eclipse of the “Other”
and the Myth of Modernity. New York: Continuum, 1995. In. MIGNOLO, Walter;
WALSH, Catherine. On Decoloniality: Concepts, Analytics, Praxis.
Durham/London: Duke University Press, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-
1923). São Paulo: Companhia das letras, 2011.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: M-1 edições, 2020.
MBEMBE, Achille. Política da inimizade. São Paulo: M-1 edições, 2020.

370
CRÍTICA A DITADURA MILITAR BRASILEIRA À LUZ DA
INTERPRETAÇÃO ESPINOSANA DE MARILENA CHAUÍ
Tarcísio Lage Louzada
Doutorando em Filosofia pela USP
Bolsista CAPES
tarcisio.louzada@usp.br
Resumo: O presente trabalho pretende abordar a noção de história estrutural, dando
ênfase a sua relação com a crítica da superstição espinosana tais como foram pensadas
por Marilena Chauí, sobretudo em sua tese de doutorado Introdução à leitura de
Espinosa, defendida em 1971. Partimos do pressuposto de que a noção de história
estrutural foi fundamental para Marilena tecer o motivo central daquele trabalho:
pensar o Estado autoritário a partir da crítica da superstição e a o possibilidade de
transformação daquele. Dessa forma, entendemos ser possível tangenciar alguns dos
pontos centrais da tese da autora, tendo em mente a afirmação da autora, qual
seja, “No tempo sem garantia onde se efetuam liberdade e desejo de servir, a história
se faz e, desde que não confundamos memória e hábito, o recurso ao passado é
maneira de narrar o presente.” Pretendemos com essa temática repensar a relação
entre o trabalho de história da filosofia e o tempo presente, isto é, de que modo a
leitura de um autor clássico, como Espinosa, pode nos abrir um campo de pensamento
que nos franqueie reagir criticamente a uma inquietação do presente, no caso de
Marilena em seu texto e contexto de doutorado, a violência do Estado autoritário bem
como da sociedade autoritária.
Palavras-chave: Estado autoritário; violência; história estrutural; superstição; poder
teológico-político.

O presente trabalho pretende abordar a noção de história estrutural,


dando ênfase a sua relação com a crítica da superstição espinosana tais como
foram pensadas por Marilena Chauí, em sua tese de doutorado Introdução à
leitura de Espinosa, defendida em 1971. Partimos do pressuposto de que a
noção de história estrutural foi fundamental para Marilena tecer o motivo
central daquele trabalho: pensar o Estado autoritário a partir da crítica da
superstição e a possibilidade de transformação daquele. Dessa forma,
entendemos ser possível tangenciar alguns dos pontos centrais da tese da
autora, tendo em mente a seguinte afirmação da filósofa, qual seja, “no tempo
sem garantia onde se efetuam liberdade e desejo de servir, a história se faz e,

371
desde que não confundamos memória e hábito, o recurso ao passado é
maneira de narrar o presente.”93
A obra de pensamento desenvolvida por Marilena Chauí é um exemplo
claro do vínculo entre vida e pensamento. Sua tese de doutorado é etapa
importante dessa obra que se realiza, desde a década de 1960, como esforço ao
mesmo tempo de compreensão e ação política. A escolha do tema e seu
desenvolvimento é exemplo disto. Marilena escolhe escrever sobre a superstição
nos textos políticos de Espinosa, tema que surge de uma inquietação
decorrente da experiência vivida naquele momento por ela, a vivência do
“medo em estado puro”, resultado das circunstâncias terríveis causadas pela
ditadura militar brasileira que, principalmente depois do AI-5, tornou o
ambiente político quase impossível para a esquerda, e também pela
necessidade política de contribuir para a permanência do Departamento de
filosofia da USP, que se via ameaçado por não contar com o número exigido
de professores doutores. Diante destas circunstâncias, e como resposta a elas,
Marilena escolheu realizar um trabalho de doutorado que de certa forma desse
continuidade ao seu trabalho de pensamento, que se iniciara no mestrado, e
fosse, ao mesmo tempo, uma forma de resistência que “tivesse algum sentido
para quem vive no Brasil”.94
Deste modo, Marilena realiza em seu doutorado um trabalho de história
da filosofia como resposta a inquietações urgentes de seu presente. E nisso não
há nada de arbitrário, pois nesta escolha está implicada sua maneira própria de
compreender não só a filosofia, mas também a história da filosofia. O estudo do
conceito de superstição em Espinosa permite a Marilena tratar do tema do
autoritarismo, do poder autoritário e da sociedade autoritária, e com isso não só
compreender o que disse o filósofo sobre esse tema, mas apreender o que ele
nos dá a pensar sobre nosso presente, no caso da filósofa, sobre o autoritarismo
da ditadura brasileira, e a possibilidade de transformar esse Estado autoritário.
Isso explica o porquê de se ler Espinosa naquela ocasião. E fazendo uso das

93 Marilena Chaui, “Amizade, recusa do servir” (1982). In: Contra a servidão voluntária, Belo
Horizonte,Autêntica, 2014, p. 36.
94 Cf.Entrevista, Conversas com filósofos brasileiros.

372
palavras de Merleau-Ponty, filósofo caro a Marilena, e adaptando-as ao caso,
seria a retomada e a repetição de Espinosa o “único meio de restituir-lhe sua
verdade, pensando-a de novo, quer dizer, a partir de nós”95. Se a crítica da
superstição como crítica da instituição autoritária é o motivo central das
inquietações de Espinosa, o “nó que amarra as tramas de sua doutrina”,
podemos dizer que é também o ponto de intersecção entre este filósofo clássico
e a filósofa brasileira, visto que sua obra é motivada por inquietação
semelhante. Daí que sua relação com o pensamento de Espinosa não seja de
idolatria, ela não o retoma como peça de museu, antes, sua leitura é na
verdade, “trabalho de reativação sobre a sedimentação”96, uma busca ao que
ele nos dá a pensar sobre nossa situação, pois o que ele pensou no século XVII
nos ajuda a compreender melhor nosso presente, e nesse sentido, Marilena lê
Espinosa como um clássico no sentido merleau-pontyano, tanto é que termina a
primeira parte de sua tese com a seguinte citação: “Estão aí os clássicos. Nisto os
reconhecemos: ninguém os toma ao pé-da-letra e, entretanto, os fatos novos
não estão nunca absolutamente fora de sua competência, arrancam deles
novos ecos, desvendam neles novos relevos”97. Mas é preciso lembrar que
essa conclusão a que chega a autora, de que Espinosa é um clássico em sentido
merleau-pontyano, isto é, que sua obra de pensamento é clássica por
estabelecer uma relação ambígua com o tempo (Espinosa escreveu algo
específico sobre seu presente, mas há excesso de significação no que escreveu,
de modo que ele é passado para nós e é presente ao mesmo tempo, excede a
datação, pois tem algo a dizer sobre nosso presente, e nos dá algo a pensar,
possibilitando ir além) é a conclusão deum longo debate em torno do trabalho
de história da filosofia que ocupa toda a primeira parte da tese, intitulada
“Como datar um filósofo?”.
Não pretendo aqui retomar todo o longo debate empreendido por
Marilena na primeira parte da tese na qual a autora levanta questões sobre:

95 Merleau-Ponty, O visível e o invisível, Perspectiva, 2007, p. 187.


96 Marilena Chauí, Experiência do pensamento, Martins Fontes, 2002, p. 46.
97 Merleau-Ponty. Signes – Prefácio – op. cit. pgs 16-17. Apud. Marilena Chauí. Doutorado. p.

104.
373
como datar um filósofo? Quais as dificuldades de escrever sobre ele? Como
interpretá-lo?, entre outras questões98 . Por modéstia e por entender que nosso
foco é tratar da noção de história estrutural relacionada com a superstição, nos
limitamos a dizer que o debate historiográfico era importante para Marilena
apresentar a originalidade de sua leitura de Espinosa e também marcar posição
num debate filosófico sobre a noção de estrutura nos estudos de história da
filosofia, visto que a própria autora afirmou mais tarde que “durante os anos
1960-1970, as esquerdas discutiam apaixonadamente a relação entre estrutura
e acontecimento”99, por isso, era importante marcar uma posição nesse debate,
sobretudo para uma pensadora que entendia que “estrutura é
acontecimento”100. Enquanto os filósofos estruturalistas ainda estavam presos a
uma concepção dualista da história, de modo que opunham pares como vida e
conceito, interior e exterior da obra, tempo histórico e tempo lógico, Marilena,
por sua vez, buscava a “imbricação do lógico e do empírico”101 , buscava ler
o espinosismo como um pensamento filosófico encarnado no seu tempo sem
estar plenamente determinado por ele. Em suma, ela busca um trabalho de
historiadora da filosofia que recusa o ponto de vista do kosmotheoros,
espectador situado fora do tempo e do espaço, e, pelo contrário, entende que a
força de seu trabalho está em reconhecer a historicidade imanente a ele, pois
aprendeu com o método crítico de Espinosa que a linguagem está enraizada na
história102.
Aliás, é no fluxo e refluxo da reflexão sobre a relação entre linguagem e
história em Espinosa, tendo como pano de fundo a crítica da superstição, que
Marilena irá chegar a uma nova maneira de pensar a estrutura, diferente
daquela dos estruturalistas, qual seja, o conceito de história estrutural, o que
franquia seu modo de fazer história da filosofia e de pensar no doutorado

98 Interessante notar que Marilena irá retomar essas questões em outros textos, um exemplo é
Experiência do pensamento, ensaio no qual discute as dificuldades de ler e escrever
adequadamente sobre um filósofo,no caso específico, sobre Merleau-Ponty.
99 Marilena Chauí. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. Martins Fontes, 2002. p. 255. Itálico

nosso.
100 Idem, ibidem, p. 256.
101 Marilena Chauí. Doutorado, p. 129.
102 Cf. Marilena Chauí. A linguagem na filosofia de Espinosa. p. 116.

374
possibilidades de transformação do Estado. E é interessante notar, neste ponto,
que a reflexão sobre a transformação do Estado tem como ponto de partida
uma reflexão sobre a linguagem. Isto não só em sua leitura de Espinosa, mas
também de Merleau-Ponty (não esqueçamos, veremos melhor, que a noção de
história estrutural é de inspiração merleau-pontyana), pois, se por um lado
Marilena nota que o filósofo francês percebeu a possibilidade de compreender
o sentido histórico a partir de seus estudos sobre a teoria dos signos trazidas
pela lingüística estrutural103, chegando a apreensão da historicidade imanente à
estrutura, por outro, ela também é levada por Espinosa, ao tratar do método
crítico de leitura, que tem como centro a questão da linguagem, a pensar o
sentido da história tendo em vista a crítica da superstição104. Com isso
queremos apontar um ponto que parece ser comum a Espinosa e Merleau-
Ponty: em ambos o pensamento crítico sobre a linguagem (ainda que por
motivos diferentes) nos abre uma nova maneira de compreender a historicidade
da estrutura e, conseqüentemente, a história105.
Mas porque Marilena se interessa tanto em pensar a transformação de
uma forma, ou seja, a historicidade da estrutura? Interessa porque, para ela,
Espinosa entende que o Estado é um indivíduo106 e este uma estrutura107. Por
isso, para ela se torna vital compreender com Espinosa a constituição de uma
forma de Estado, sua dinâmica interna de forças, o que coloca o problema da
forma e da sua transformação, da permanência e da mudança e,

103 “A teoria do signo, tal como a lingüística a elabora implica talvez uma teoria do sentido
histórico que ultrapassa a alternativa das coisas e das consciências. A linguagem viva é essa
concreção do espírito e da coisa, que é a dificuldade”. Merleau-Ponty, Eloge de La philosophie,
in Eloge..., op. cit., p. 63. Apud. Marilena Chauí. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. Martins
Fontes, 2002. p. 252.
104 Marilena Chauí. A linguagem na filosofia de Espinosa. p. “... mas a filosofia declara guerra aos

compromissos excusos e recoloca a história em seu devido lugar. A teoria da história, o fim de
uma Palavra pretensamente habitada desde todo o sempre pela verdade, e a crítica da
veracidade dos sinais desnudam o ressentimento e a malícia dos que temem o mundo e, em vez
de enfrentá-lo, refugiam-se em sua sacralização.”
105 No caso de Espinosa, como se sabe, seu estudo sobre a gramática da língua hebraica o leva a

pensar a questão da historicidade por ser seu objeto de estudo, a língua, um objeto histórico.
106 “Em suma: o Estado é um indivíduo: donde duas conseqüências teóricas, a história deve ser

a apreensão e a dedução das paixões do indivíduo social; a ciência política pode constituir uma
tipologia, fundadas em noções comuns, como a ética pode apresentar o “modelo da natureza
humana” – a cientificidade é a mesma.” Marilena Chauí. Doutorado. p. 204.
107 “O Estado é um indivíduo. (...) O corpo é um indivíduo – fábrica, concurso de vários

indivíduos na mesma atividade causal de preservação. É uma estrutura.” Idem, p. 215.


375
conseqüentemente, a possibilidade de pensar o surgimento do novo de
dentro de uma estrutura. Questões estas de grande interesse para alguém,
como ela, que faz do pensamento filosófico o caminho de resistência e
enfrentamento do regime militar brasileiro e busca, com devida cautela,
caminhos de transformação do autoritarismo (mais uma vez, fica evidente a
imbricação entre vida e conceito).
A compreensão de que o Estado é um indivíduo é central para entender
o problema da superstição e o recurso que a filósofa faz à noção de história
estrutural. Isto porque o Estado nasce das paixões e, assim como o indivíduo,
possui seu conatus, portanto, na sua duração há momentos de equilíbrio e
desequilíbrio. Para Espinosa, seu nascimento está intimamente ligado à
condição humana, ao conflito entre medo e esperança108. Na duração do
Estado, em sua dinâmica de configuração e reconfiguração decorrentes de suas
relações com os corpos interiores e exteriores, surge o campo afetivo da
flutuação, marcado pela instabilidade. É desse campo afetivo de flutuação, da
instabilidade, que pode emergir a superstição no interior do Estado; todavia,
não necessariamente, visto que o Estado pode conseguir se estabilizar109. Mas
há Estados que afetados pelo medo ligado a instabilidade/flutuação, acabam
“caindo” na superstição. Quer dizer, a fim de superar a instabilidade e a
incerteza, busca-se adivinhar os eventos futuros, surgindo assim a crença de
que a história seja pré- determinada pela divindade. “É a superstição que,
vivendo a transcendência dos acontecimentos, fabrica a Providência Divina”110.
Efeito dessa crença de que a história é pré-determinada, é a ideia de que
há signos nos acontecimentos que possibilitam adivinhar os eventos futuros e
se preparar para eles. Mas a interpretação desses signos não é direta, ou melhor,
não está disponível às pessoas comuns, e isso exige a figura de um intérprete
especializado. “Um domínio de competência aparece, e com ele a casta dos
intérpretes competentes: sacerdotes- teólogos”111 . Desse modo, os sacerdotes-

108 Cf. Marilena Chauí. Doutorado, p. 189.


109 Cf. Marilena Chauí. Doutorado, p. 202.
110 Marilena Chauí. Idem, p. 136.
111 Marilena Chauí. Idem, p. 176.

376
teólogos são possuidores de um saber, qual seja, da interpretação correta dos
signos, e de um poder político, pois deles dependem a possibilidade de o
governante se antecipar aos eventos históricos e superar a instabilidade. Daí
que quem detém o poder político, num Estado supersticioso, tende a se
aproximar do poder teológico; o que traduz uma potencial relação perigosa,
segundo Espinosa, em que a classe política dá à classe sacerdotal o poder
político que lhe falta e a classe sacerdotal, por sua vez, dá ao poder político sua
fundamentação religiosa112. Relação perigosa, pois ao invés de se buscar o fim
da instabilidade pode haver desproporção do uso da força, o que, ao contrário,
ocasionaria a estabilidade da superstição, sua continuação, dando origem à
tirania, em que a vida política é marcada pelo medo constante. Não é por acaso
que o estudo empreendido por Espinosa sobre essa questão tenha o título de
Tratado Teológico-Político.
No Estado supersticioso o vínculo entre poder político e teológico é tão
forte, uma vez que a estabilização do desequilíbrio alimenta a superstição e a faz
poder de manutenção dessa estrutura, que parece ser impossível transformar
essa situação, ou seja, modificar a forma do Estado. Mas o que Marilena
justamente buscou mostrar em sua tese é que a transformação do Estado é
possível, e não só pela intervenção de algo que venha do exterior, mas também
é possível desde dentro da sua própria estrutura. E aqui aparece toda a força da
noção de história estrutural, pois o problema que se colocaé o da relação entre
a forma e seu exterior e interior.
Se grande parte da tradição filosófica trata de forma dualista a relação
entre o exterior e o interior da forma, Marilena, por sua vez, busca mostrar como
em Espinosa a noção de estrutura entrelaça interior e exterior. O Estado é um
indivíduo e para perseverar, manter seu conatus, ele depende das ações
determinadas dos cidadãos em situações concretas, são suas ações que
preservam o contrato civil, que por sua vez, pressupõe a cooperação dos

112Marilena Chauí. Idem, p. 220. “Ao nível das instituições políticas, a superstição leva ao poder
a casta sacerdotal, que encontra no tirano seu porta-voz. O tirano exige a manutenção do terror
na massa – sedimenta, assim, o poderio clerical. Êste, por sua vez, alimenta a superstição. Feed-
back.”
377
indivíduos para sua manutenção. São os indivíduos que por meio de ações
determinadas criam os costumes e as instituições políticas e estas, na duração,
não são inertes, estão sujeitas a mudanças, desequilíbrios, que podem levar a
deformação do Estado. “A história é, pois, a teoria das paixões do corpo social
cujos componentes são as instituições políticas e os costumes”113 . São os
desequilíbrios e conflitos internos a estrutura do Estado, entre as partes que
compõem o todo social que podem levar a sua transformação. O cidadão está
situado dentro de uma estrutura que é retomada constantemente por ele, por
meio de suas ações historicamente determinadas, que a faz existir. Ou seja, a
estrutura do Estado não é uma ideia, nem uma lei que paira sobre os indivíduos,
mas antes, são os próprios indivíduos situados historicamente e que por meio de
ações determinadas é que fazem que haja um todo organizado. Não há
separação entre o todo e as partes, assim como numa estrutura de figura e
fundo é impossível a existência de um separado do outro. Deste modo,
segundo Marilena, pensar “a superstição esclarece o que é história”114. Pois
pensar a oscilação dentro do Estado, seus conflitos e desarmonias que coloca
em perigo sua forma atual, revela a historicidade imanente à estrutura. Agora
sim podemos retomar a afirmação merleau- pontyana que citamos no início, de
que a estrutura é acontecimento. E talvez fique mais claro o motivo pelo qual
Marilena se inspirou nos escritos de Merleau-Ponty sobre a noção de estrutura
para afirmar que “a concepção espinosana de história não é evolutiva, mas, se
me permitir o palavrão, estrutural”115. Visto que Marilena pensa na trilha aberta
por ele, que já demonstrara que:
A estrutura é acontecimento e que nela a necessidade (a totalidade
auto-organizada e auto-regulada por princípios imanentes) é
retomada pela contingência (a ação dos sujeitos históricos) por que o
mundo humano é simbólico, portanto, indeterminado, aberto ao
possível, e a ação humana quando livre, é o poder para transcender
uma situação dada de fato por uma outra que lhe confere nova
significação116.

113 Marilena Chauí. Doutorado. p. 219.


114 Marilena Chauí. Ibdem, idem.
115 Marilena Chauí. Doutorado. p. 224.
116 Marilena Chauí. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. Martins Fontes, 2002. p. 256. Itálico

nosso.
378
A filósofa defende desse modo que o reconhecimento da historicidade
imanente à estrutura aponta para a possibilidade sempre latente de produção
do novo na trama social. A ação instituinte, a busca por transcender a situação
dada (o instituído) só pode ser feita retomando as condições historicamente
disponíveis. A contingência se torna o ponto de partida para uma liberdade
concreta. Entretanto, o tirano, no Estado supersticioso, não quer reconhecer
essa dimensão histórica do Estado que revela o espaço dos conflitos, por isso o
tirano não aceita os conflitos e deseja desligar-se da duração, desligando-se dos
cidadãos (todos são vistos como possíveis “inimigos internos”117 ). Para tanto, o
tirano intensifica a violência, e nesse ponto “a violência do poder político
manifesta-se na censura da linguagem, que é, em última instância, censura do
pensamento”118 . Os poderes político e religioso operam com a linguagem a fim
de encobrir a violência. Daí que pouco tempo depois da tese de doutorado
Marilena, em A linguagem na filosofia de Espinosa, irá afirmar que “o problema
da práxis política, é, pois, um problema de linguagem”119. Por isso, para ela, o
campo de combate do filósofo para a transformação seja o da linguagem, o da
crítica da linguagem, que depois ela irá desenvolver como o estudo crítico da
ideologia. E também nessa empreitada Chauí segue aquela compreensão
merleau-pontyana de que ser fiel aos clássicos é recolocar as questões que
foram trabalhadas por eles, o que pode ser entendido no caso dela como o
recolocar do problema da crítica da linguagem iniciada por Espinosa, só que
não mais voltada para o texto bíblico, mas sim, em resposta a sua situação
concreta, direcionada para a ideologia da sociedade autoritária.
Assim, entendemos que Marilena consegue efetivamente demonstrar de
maneira brilhante em sua tese de doutorado que “o recurso ao passado é
maneira de narrar o presente” ao menos em dois sentidos: primeiro, que se
quisermos responder nossas inquietações com o presente a fim de produzir
novos sentidos, como um novo campo de pensamento, isto é, se quisermos

117 Conforme se pôde constatar, por exemplo, com a “Teoria da Segurança Nacional” durante
a ditadurabrasileira.
118 Marilena Chauí. A linguagem na filosofia de Espinosa. p. 116.
119 Marilena Chauí. Idem, p. 117.

379
ultrapassar o instituído e transfigurá-lo numa situação inédita, só é possível
retomando a tradição do que já foi pensado; e que a história é “tempo sem
garantia”, ou seja, indeterminada, aberta a criação do novo. E segundo, que
sua tese se tornou um clássico, pois excede sua data, sendo de grande
atualidade para nós brasileiros pensarmos nosso presente, tão sombrio,
marcado pela necropolítica e ameaças diárias ao estado democrático de
direitos.

Referêcias

CHAUI, Marilena. A linguagem na filosofia de Espinosa. À guisa de introdução.


Discurso, São Paulo, nº 2.
CHAUI, Marilena. A noção de estrutura em Merleau-Ponty. In: Experiência do
pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CHAUI, Marilena. Amizade, recusa do servir (1982). In: Contra a servidão
voluntária. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
CHAUI, Marilena. Introdução à leitura de Espinosa. Tese de Doutorado.
Departamento de Filosofia, FFLCH-USP, 1971.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.

380
GT 15 - RELIGIÃO, ARTE E MATERIALIDADES: NOVOS DESAFIOS E
POSSIBILIDADES DE ESTUDOS
Doutoranda Mara Bontempo Reis (UFJF)
Mestranda Viviane de Sousa Rocha (UFJF)

Ementa: Este Grupo de Trabalho (GT) tem por objetivo acolher pesquisas que
abordam a relação entre religião, arte, materialidades religiosas, ritos, espaços e
práticas devocionais, buscando produzir debates que compreendam os múltiplos
atravessamentos dessas relações. Outrossim, a proposta deste GT é dar destaque às
formas materiais e imateriais de produção de sentido e de experiência religiosa,
como também de denúncia de violação dos direitos humanos e de busca pela paz
na experiência e vivência do ser humano por meio da arte e da religião, por
exemplo. Compreende-se por materialidades religiosas, tudo que compõe a
dimensão material, ou seja, que envolve os aspectos físicos da religião, sejam eles
objetos sagrados, construções arquitetônicas, arte sacra, dentre outros. Os estudos
sobre religião material buscam compreender como as pessoas experimentam e
vivenciam as religiões a partir dos objetos e toda a sua configuração. Trazer à luz os
estudos sobre materialidade religiosa se faz necessário, tendo em vista que
a dimensão material é essencial para a construção de identidades, crenças, grupos
e comunidades religiosas (MEYER, 2019). Meyer considera que no campo das
investigações sobre materialidades religiosas, deve haver o pressuposto de que as
coisas, com os seus valores, ações e uso não são algo que se acrescenta às religiões,
mas sim algo delas indissociáveis, pois os objetos não são inertes, eles estão o
tempo todo participando, afetando e sendo afetados e desempenham um papel
importante na relação humana. Paul Tillich (2009, p. 83) expõe que: "não existe
criação cultural que não expresse a preocupação básica". Para esse autor é possível
olhar para as obras culturais, artísticas e filosóficas, e também música, literatura,
arquitetura, dança, como um protesto. Para ele, "religião é a substância da cultura e
a cultura é a forma da religião" (TILLICH, 2009, p. 88). Mesmo a cultura, a arte
secular, apresentam um olhar para o incondicional, o infinito. Ambos autores,
Meyer e Tillich, consideram a religião e arte, a cultura da humanidade, e nos
mostram que somente o ser humano é religioso e faz e admira a arte e é afetado
por ela. Assim sendo, religião e arte constroem sentidos e identidades a partir da
materialidade e do simbólico. Portanto, esse GT pretende reunir trabalhos de
pesquisadores (a) que buscam investigar as diversas articulações entre religião e
arte e suas diferentes configurações, propondo debater e apontar novos desafios e
possibilidades de estudos.

Palavras-Chave: Religião. Arte. Materialidades Religiosas. Práticas Devocionais.


Direitos Humanos.

381
SANTUÁRIO DA SERRA DA PIEDADE: A ARTE SACRA UMA
PERSPECTIVA DA LINGUAGEM DO CULTO MARIANO
Adriana Fernandes Balbi
Pós Graduada em Complementação Pedagógica (IBRA);
Pós Graduada em Ciências da Religião(IBRA);
Mestranda em Ciências da Religião PUC Minas;
Bolsista FAPEMIG.
adrianaf.balbi@gmail.com

Resumo: Esta comunicação é fruto das pesquisas iniciais do percurso da dissertação de


mestrado que visa na área de Linguagem Religiosa analisar a narrativa do culto
mariano. Desse Modo laçando um olhar sobre a peregrinação, nos levantamentos de
invocações à padroeira de Minas Gerais no Santuário da Serra da Piedade, o presente
estudo tende analisar a arte sacra na imagem da Pietá. Lentava-se a seguinte pergunta:
Qual o processo de leitura da imagem da Pietá na perspectiva da arte como uma
proximidade de representação do sagrado? Através de revisão bibliográfica de
autores que dialoguem com a temática pretende-se analisar a influência mútua da arte
com a religião. Na trajetória histórica das peregrinações e seus enigmas, ao contemplar
uma imagem o devoto torna se um artesão que retira representações do sagrado,
esculpindo a expressão simbólica da imagem de Nossa Senhora sob o titulo da
Piedade. A partir desses contextos, as relações entre arte e religião se estreitam,
permitindo compreender ambas como formas de representação da narrativa de
interpretações nas camadas de leituras do fenômeno contemplativo.
Palavras-chave: Peregrinação; Arte Sacra; Culto Mariano.

Introdução
A devoção à pessoa de Maria está presente em manifestações do
fenômeno religioso, aborda de forma direta ou indireta estruturas de
linguagem. Nosso intuito não é esgotar o assunto sobre arte sacra, mas
observar os aspectos que perpassam o entrelaçamento da arte religiosa no
movimento de peregrinação instaurado no culto mariano. Os estudos das
relações entre linguagem e religião perpassam o tempo e a história. Dentre
entre os quais a peregrinação é um sistema embrionário; para o devoto Maria
está inserida nesse processo. O Santuário da Serra da Piedade é fonte nessa
pesquisa de observação: às narrativas da linguagem cultual mariana no
percurso de peregrinação. Neste movimento, os símbolos subjetivos das artes
nos rementem a abordar a religião como narrativa do ser humano na tendência
natural de buscar o sagrado. A natureza do culto mariano, dos espaços e
práticas devocionais são demonstrações de fatos que acenam à transformação
382
destes lugares em locais especiais de devoção e culto. Pretende-se com esse
estudo, partindo da revisão bibliográfica, buscar autores que dialoguem com a
temática para analisar a influência mútua da arte com a religião. Porém, no
decorrer das investigações aqui levantadas pretende-se ir a campo como forma
de análise empírica, pois a mesma visa observar o peregrino e a narrativa de sua
experiência neste santuário mariano. Dessa forma, a luz da Linguagem Religiosa
pode expressar sua vertente mais empírica, ou seja, ir a campo na avaliação, um
estudo com o qual pode ser apreendido o fenômeno religioso, contribuindo
para o campo da Ciência da Religião, sendo este o objetivo principal deste
percurso de mestrado.

1. O Movimento de Peregrinação e seus enigmas


As peregrinações religiosas assumem particular destaque nos santuários,
enquanto marcadores simbólicos rumo ao sobrenatural no percurso das
peregrinações católicas. O movimento de peregrinação, perpassado entre
turismo e devoção, remete os espaços dos santuários a lugares intermediários,
onde religião e turismo misturam-se. No santuário mariano da Serra da Piedade,
a complexidade do percurso de peregrinação se entrelaça ao turístico religioso,
sendo um aspecto considerado no discurso do culto mariano. As peregrinações
estão presentes no cristianismo, de modo que para os católicos devoções e
visitações aos santuários marianos constituem narrativas que refletem imagem
devocional.
O fenômeno das peregrinações está presente nas religiões em geral, no
cristianismo, em especial, acena para o discipulado cristão. O aspecto
antropológico do peregrinar, do caminhar humano, usado como metáfora para
a vida, remete a uma forma de se relacionar. A ritualização do peregrinar, do
estar a caminho, manifesta-se como um componente da experiência social,
assim como suscita e reforça elementos indenitários, conduzindo a níveis de
sacralidade de espaços, de tempos e de protagonistas.
A devoção à Maria, na Igreja Católica, presente na peregrinação e seus
enigmas perpassa o desvendamento no encontro do devoto com nas

383
possibilidades de leituras em paradigmas da fé. Entretanto, o peregrino transita
entre aspectos da devoção e lazer que caminham juntos. O número de pessoas
que visitam e peregrinam influencia a economia, fomentando outra forma de
movimento entorno da figura sagrada: o turismo religioso, assim sendo:
Seria o turismo uma forma de peregrinação? Sem dúvida,
peregrinações têm muito de turismo e o turismo absorveu muito das
peregrinações. Agências de viagem organizam peregrinações e
viagens com promessas de ruptura com cotidiano, descanso, diversão,
convivência, contato com o outro, com o diferente, com uma nova
experiência, etc. Alguns desses elementos também pertencem ao
campo do sagrado e do religioso (ADAM, 2018, p. 17).

O ser humano é um ser em movimento, a caminho, está em busca de um


lugar ou algo que lhes falta. O movimento de caminhar tem caráter simbólico,
mas também caráter religioso. As peregrinações representando o sentido de
saída de lugares experienciais têm um sentido maior, amplo e complexo, que
extrapola o caminhar em si. O caminhar e a peregrinação tornam-se, assim,
metáforas da busca humana por lugares. As pessoas se colocam a caminho, seja
em peregrinações, seja no turismo, ambos atravessados pela experiência mística
do encontro.

2. Arte Sacra: aspectos da imagem da Pietá


A leitura da sacralidade, contida na imagem da Pietá da Serra da Piedade,
acena uma proximidade de representação do sagrado no percurso da
peregrinação. A linguagem da arte sacra, expressa na imagem da Pietá mineira,
está constituída no imaginário simbólico do povo católico. Trata-se de escultura
reconhecida e consagrada pela arte brasileira, a obra: “atribuída a Aleijadinho
apresenta uma beleza expressiva, como uma obra viva que através de seus
elementos simbólicos e a expressão impressa na unidade plástica da imagem
nos diz algo, transmite uma mensagem” (DIAS; KIRCHNER, 2019, p. 684). A
leitura da imagem da Pietá no caminho da Serra remete o peregrino a uma
narrativa subjetiva, pois:
Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas,
esculpidas, fotografadas, edificadas ou encenadas – atribuímos a elas
o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma
moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar

384
histórias (sejam de amor ou de ódio), conferimos à imagem imutável
uma vida infinita e inesgotável (MANGUEL, 2001, p. 24).

As primeiras formas de expressão ritual estavam associadas à produção


de imagens. Na linguagem das imagens, nas experiências, o devoto busca
abarcar a proximidade com o sagrado. Na observação da obra religiosa, no
reconhecer da experiência, a imagem dá origem à história, que emana sua
imagem. No processo de peregrinar é possível observar, na imagem da Pietá,
uma leitura devocional ou apenas a beleza estética. A mística do olhar
contemplativo interpretativo tece a experiência mediante o simbolismo da
narrativa entre aquele que cria e o observador, pois o processo de leitura da
imagem abarca um mundo de possibilidades, de modo que:
Nesta concepção, que une os dois termos das dimensões subjetiva e
objetiva da beleza na contemplação, uma não anula a outra, mas
existem e se alimentam na relação do espectador que contempla com
a obra de arte formada pelo artista. A forma da obra de arte apresenta
objetivamente sua beleza para ser contemplada, mas ao mesmo
tempo a contemplação como ápice do processo de interpretação
figura imagens a partir da imagem dada, sendo a conciliação entre a
forma dada e a imagem construída para a compreensão deste
processo (DIAS, 2018, p. 51).

Segundo Manguel (2001), no procedimento de leitura das imagens, a


linguagem de uma obra de arte se expande mediante inumeráveis camadas de
leituras. O leitor assume o papel de escultor, pois entalha essas camadas,
adentrando assim na simbologia estética na via experiencial da beleza. O
universo envolve o ser humano em mundo de símbolos. Sinais, mensagens e
alegorias emanam da contemplação artística e as imagens, assim, como as
palavras, constituem a matéria do observador. Assim sendo, a arte, com toda a
sua subjetividade, representa inúmeros aspectos do humano, indo de
abstrações individuais, desconfortos existenciais, até a busca do sentido de
experiência com o sagrado. No percurso das peregrinações católicas, praticadas
na devoção popular, é possível observar o fator social da religião, ou seja,
construtora de sentido e que se manifesta na arte, fatos históricos e culturais
diversos, sobre a dimensão ritualística da religiosidade.

385
3. Culto Mariano no Santuário da Serra da Piedade
O culto mariano, uma das manifestações da religiosidade popular mais
difundida em território mineiro, remonta ao período colonial. A devoção à Maria
teve seu início com os desbravadores do sertão, que seguiam com o pequeno
oratório à procura de ouro e permanece até os dias atuais, embora sendo o
“ouro” uma figuração da riqueza que os homens de algum modo ainda buscam.
A expressão religiosa cultual à Maria, na religiosidade popular, estrutura-se nos
aspectos, doutrinal e devocional. No Santuário da Serra da Piedade, o subir a
montanha é um percurso de invocações à padroeira mineira, que ganha
projeções na fé e nas artes.
A devoção à nossa Senhora da Piedade em Minas Gerais já estava
estabelecida no período de 1750, período que correspondia ao auge
da mineração local. Esta devoção especifica, surgida na região de
Caeté (MG), é construída no imaginário simbólico do povo daquela
região, ocorreu devido à influência da devoção mariana trazida pelos
portugueses, na qual o titulo de Nossa Senhora da Piedade se fez
presente, e pela propagação do relato de uma menina que dizia ver a
imagem de uma mulher com o filho nos braços que se assemelhavam
à imagem de Nossa Senhora da Piedade (DIAS, 2018, p. 34).

A piedade Mariana na Igreja Católica, presente na devoção popular,


entrelaça do passado ao futuro, por meio da narrativa cultual que permite
abrigar símbolos dos fenômenos religiosos. O espaço do Santuário, iniciado por
dois momentos distintos: a influência portuguesa e o relato de uma aparição
permite a observação da tríade: Arte Sacra na imagem da Pietá; a Peregrinação
e culto Mariano. Esse acontecimento histórico fundante permanece apontando
caminhos, num peregrinar como forma intrínseca do existencial humano, pois:
O caráter festivo marca, de modo particular, o catolicismo brasileiro,
em que o lazer faz parte essencial de toda festividade religiosa. Ao
mesmo tempo em que fazem ou cumprem suas promessas, os
romeiros se divertem. É o que faz da festa um evento religioso e
profano ao mesmo tempo. Ao lado das missas solenes e das procissões
mais compenetradas, não faltam barraquinhas, música, danças, fogos
de artifício e gritos dos populares (BOFF, 2014, p. 437).

A vivência do sagrado na figura de Maria, para o cristão católico assume


uma experiência singular na linguagem cultual. Para o fiel a interseção de Maria,
na proximidade com o divino está inserida na cultura como aquela que esboça
uma sólida espiritualidade de Cristã. A narrativa do culto como forma da
percepção e experiência está presente na estrutura do campo religioso, e a
386
religiosidade, na perspectiva mariana, avança à realidade devocional, pois no
conjunto de fenômenos religiosos:
O cristão é ao mesmo tempo, o oleiro e a argila na devoção. Recebe a
herança de pessoas e comunidades e molda as formas de se
relacionar com Jesus e Maria, conforme seu contexto. Cada devoção
popular a Maria tem uma história. Começou em um determinado
momento para expressar uma experiência religiosa pessoal e eclesial
(MURAD, 2016 p. 210).

O arquétipo do culto mariano para o devoto possui um qualitativo


fortemente afetivo. A mística da expressão religiosa da figura de Maria é
subjetiva, composta de ações de tempo e espaço. A estrutura do percurso das
representações de Maria, na religião cristã católica, na qual ela é venerada,
possui elementos constitutivos transcendentais. Imbuídos dessa crença o devoto
no ato de cultuá-la, expressa valores da experiência do sagrado.

Conclusão
Os aspectos da arte sacra, na perspectiva da linguagem do culto
mariano, no Santuário da Serra da Piedade, aqui analisados, possuem
expressividade na imagem da Pietá e no processo de peregrinação. As primeiras
formas de expressão ritual estavam associadas à produção de imagens. Na
sacralidade da imagem da Pietá, buscou-se tecer um comentário, partindo do
desvelamento no encontro do devoto peregrino com os paradigmas da fé
cristã. Nessa perspectiva, na conclusão dessa tríade: arte, religião e peregrinação
percebem-se um dialogo cultual. Analisamos que o movimento de peregrinação
trilha dois caminhos: devoção e turismo. Surgem em ambos os caminhos,
experiências subjetivas, mesmo observadas, não abarcam misticamente todo o
arcabouço experiencial.
A peregrinação tem sido apontada por diversos autores como uma
jornada do individuo moderno em busca do contato com o sagrado ou que em
parte é imbuído desse encontro. Desta forma, as pessoas se colocam a caminho,
seja em peregrinações, seja no turismo sendo levadas pela experiência do
encontro. Procurou-se entender a religiosidade, enquanto fator social,
antropológico, e material que se materializa nas artes nos livros sagrados, nos

387
artefatos, de modo que a análise sobre a linguagem do culto mariano, em sua
dimensão simbólica perpassa a experiência com o sagrado.
O universo religioso é histórico e diverso, perceber a religião na realidade
humana aponta à observação empírica. Para o aprofundamento da Linguagem
Religiosa na possibilidade do discurso do culto mariano, ir a campo ressalta um
processo de investigação da narrativa do culto mariano na via de peregrinação
que pode trazer novidades à pesquisa.

Referências
ADAM, Júlio Cézar. Entre peregrinação, turismo e liminaridade: a busca por
lugares. Dossiê Santuários e Turismo Religioso, Revista Horizonte, Belo
Horizonte, v. 16, n. 49, p. 66-87, jan./abr. 2018.
BOFF. Clodovis M. Mariologia Social: o significado da Virgem Maria para a
sociedade. ed. São Paulo: Paulinas, 2014.
DIAS, Michele dos Santos. A beleza em sua expressão religiosa:uma análise da
Pitá de Aleijadinho. 2018. Dissertaçao (Mestrado Ciencias da Religião) -
Pontíficia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2018.
DIAS, Michele dos Santos; KIRCHNER, Renato. Uma Pietá Brasileira: A Escultura
de Nossa Senhora da Piedade em Caeté, Minas Gerais. Revista Caminhos,
Goiânia, v. 17, n. 2, p. 669-687, maio./ago. 2019.
MANGUEL, Alberto . Lendo imagens: Uma História de amor e odio. ed. São
Paulo: Companhia das letras, 2009.
PEDROSA, Aziz José de Oliveira. A Basílica Ermida de Nossa Senhora da
Piedade: memórias de um processo de reconfiguração arquitetônica
Universidade Estadual Paulista (UNESP) – câmpus de Assis Centro de
Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) Assis, SP, v. 15, n. 1, p. 408-432,
janeiro-junho de 2019.
MURAD, Afonso Tadeu. Maria Toda de Deus e tão humana: Compêndio de
Mariologia. 1. ed. São Paulo: Paulinas: Santuário, 2016.

388
ISLÃ X CANDOMBLÉ A MATERIALIDADE DOS MALÊS COMO
LEGADO RELIGIOSO NO TERREIRO DO BOGUM, SALVADOR,
BAHIA
Rodrigo Nogueira Martins
Mestrando em Ciências da Religião pela PUC MINAS
rodrygovirtual@hotmail.com

Resumo: Esta comunicação organiza-se a partir da compreensão de que houve um


compartilhamento de saberes nas concepções sagradas entre o Islã e o Candomblé, em
especial pelos Malês, na comunidade do Terreiro do Bogum, que tem como nome
oficial: Zoogodô Bogum Malê Rundó. Sendo desenvolvida inicialmente através de uma
revisão bibliográfica sobre os Malês e o Terreiro do Bogum, tendo como ponto de
partida a Revolta dos Malês, seguida de um estudo etnográfico a ser realizado na
comunidade do Terreiro do Bogum. Tendo como foco o estudo da cultura material-
religiosa do Islã no Bogum Contemporâneo. Com o objetivo de identificar o contexto
material e imaterial do Islã e a sua produção de sentido e de experiência religiosa
oriundos do contato entre ambas as religiões nas dependências do terreiro. A
realização desta comunicação justifica-se pelo fato de que a interseção religiosa entre o
Islã e o Candomblé ainda não foi abordada pelas Ciências da Religião, menos ainda
quando se pretende buscar a compreensão da cultura-histórico-religiosa dos Malês, e
menos ainda, abrangendo como foco da pesquisa a materialidade do Islã em um
terreiro. Para um entendimento mais amplo sobre a materialidade proveniente do
contato entre o Candomblé e o Islã, se fará necessária a compressão da origem,
translado ao Brasil e religiosidade dos Malês, aliado a um resgate sobre a gênese do
Terreiro do Bogum e o seu papel na Revolta dos Malês. Por fim, esta comunicação
pretende promover não apenas o aprofundamento do estudo da materialidade
religiosa nas Ciências da Religião, como ainda aplicar seus conceitos para analisar a
partir deste ponto de partida os espaços de culto destinados às religiões de religiões de
matrizes africanas e suas construções de sentido.
Palavras-chave: Islã; Candomblé; Arte; Materialidade.

Introdução
Essa comunicação organiza-se a partir da compreensão de que
houveram corpartilhamentos de saberes nas concepções sagradas entre o Islã e
o Candomblé, em especial pelos Malês, na comunidade do Terreiro do Bogum,
que tem como nome oficial: Zoogodô Bogum Malê Rundó120.

120 Comumente conhecido como “Terreiro do Bogum”, esta nomenclatura será adotada no
transcorrer desta comunicação, tendo em vista a extensão e a complexidade fonética do nome
oficial desta comunidade.
389
A pesquisa ainda encontra-se ainda em desenvolvimento, para ser mais
preciso em fase de identificação e interpretação do legado religioso deixado
pelos Malês no Terreiro.
Serão apresentados como objetos nessa expositiva algumas
materialidades percebidas e ja interpretadas mesmo que de maneira superficial
a fim de que sejam compartilhadas com a comunidade acadêmica as
descobertas realizadas em campo.

1. O Islã
O Islã é a última das três revelações monoteístas. Segundo os muçulmanos,
“trata-se da mesma religião de Adão, preconizada por Abraão, codificada por
Moisés, revivificada por Jesus e trasmitida por Maomé121” (ABD’ALLAH, 1989,
p.21). Surgido no século VII, quando começou a ser disseminada por meio de
seu principal líder, Muhammad.
O termo Islã está intimamente ligado à revelação corânica, pois deriva do
radical árabe S-L-M, que primariamente significa paz. Sendo justamente desse
radical que frutifica um sentido secundário que significa submissão. (SOUZA,
2015). Percebemos o sentido mais amplo no que diz respeito de que a “sua
conotação total é a paz que vem quando a vida individual se submete a Deus”
(SCHUARTZ, 2001, p. 13). Ou seja, promovendo um acolhimento dos
ordenamentos corânicos, transformando-os em práticas direcionadas tanto a
sua subjetividade quanto em sua vida social.

1.1 . Os Malês
Com vistas a elucidar o termo muçurumim trabalhado por Lopes em
Bantos, Malês e Identidade Negra (2021), onde o autor os indica como sendo
um dos maiores grupos de nativos da etnia Hauçá, que habitavam o antigo

121Tradução do nome do profeta Muhammad. Tal tradução não é aceita pelos muçulmanos que
entendem que este processo pode levar a erros de sentido. Em consonância com toda a
comunidade muçulmana nesta dissertação o profeta será tratado pelo seu nome conforme
pronúncia árabe: Muhammad. Embora alguns autores utilizem a grafia Mohammed, com vistas
à uniformidade da dissertação adotaremos para esta pesquisa a grafia universal do nome do
Profeta: Muhammad. Não sendo só uma questão de uniformidade e também de uma
transliteração mais próxima ao original árabe.
390
Sudão ocidental, espalhados desde a Senegâmbia até as margens do rio Níger
em Serra Leoa, no qual foram dominados pela expansão muçulmana e
começaram a partir deste momento a receberam a doutrina de Alláh, com vistas
a sua libertação através do reconhecimento da fé islâmica.
Porém, possivelmente tal intuito não se concretizou duas frentes: a
primeira que os cativos não se converteram ao Islã, embora tenham absorvido
muitos de seus princípios e mediante a isso não alcançaram a desejada
liberdade. Em um segundo momento, ainda cativos foram importados ao Brasil,
especificamente para a cidade de Salvador chegando com conhecimentos bem
avançados sobre a doutrina pregada por Muhammad, mas, sem abandonar os
conceitos de sua religiosidade pautada na ancestralidade.
Logo, pressupõe-se que o termo Malê vem a ser árabe, islamita e
muçulmana. Portanto, o Candomblé Malê é Hauçá, recebendo assim os
fundamentos do Corão, ou seja, o livro sagrado dos árabes, tendo como
origem a antiga região do Sudão Ocidental.
Embora a pesquisa não tenha pretensões a cerca da etimologia da
palavra Malê, percebemos o que estaria por trás do termo apresentado: todo
um contexto religioso difuso acrescido a questões acerca dos conflitos na
África Ocidental, a questão do tráfico escravagista, as influências que os
cativos receberam durante o translado ao novo mundo e a continuidade deste
processo em solo brasileiro.
Podemos concluir embasado em Lopes que os “Malês” não se tratavam
de uma etnia e sim um agrupamento social pluriétnico-linguístico-religioso e
que no Brasil por iniciativa dos Bantos findou por transformar seu entido em
uma adjetivação negativa aos negros adeptos e/ou simpatizantes as leis de
Muhammad, na cidade de Salvador.

2. O Bogum e os Malês
O principal marco histórico de destaque sobre a importância do Terreiro
do Bogum é justamente o ponto de partida desta pesquisa: A Revolta dos
Malês. Ocorrida em janeiro de 1835, no qual o terreiro teve significativa

391
participação, atestada por um canto malê yorubano do século XVII, presente
em Malês os Negros Bruxos: O Candomblé de Origem Islâmica, Seus Magos e
Seus Feitiços, de Maria Helena Farelli:
Oh Ilorin, terra escura de Xangô,
No teu âmago plantarei a raiz de Alá,
e farei a guerra santa.
(Canto Malê apud FARELLI 1998, p. 17).

Percebe-se que a autora pressupõe que a Revolta dos Malês, poderia ter
tido um cunho religioso, ou seja, um Jihad, para ser mais específico uma
“pequena Jihad”, que seria o direito do muçulmano de se defender quando
atacado através da luta armada contra aqueles que infringem o ataque. Porém,
tal luta ao nível do campo doutrinário do Islã dar-se-á sob quatro aspectos: pelo
aspecto do coração; pelo aspecto da purificação espiritual através da luta contra
satanás; pelas mãos e línguas, professando palavras e difundindo
comportamentos que defendam os seus conceitos de certo, contra os errados e
pela espada, através da guerra propriamente dita.
A trama da insurgência se deu em um período anterior, como podemos
verificar em A Revolução dos Malês: Insurreições Escravas, de Décio Freitas,
quando o autor diz; “Entre os anos de 1807 e 1835 a intervalos mais ou menos
breves, uma série de insurreições escravas abalou a cidade de Salvador”
(FREITAS, 1985, p. 9). Porém, nenhum desses movimentos tinha um interesse
geral de libertação generalizada, e sim, uma libertação particular a cada pessoa
ou pequeno grupo, a fim de libertarem-se mediante a aniquilação do sistema
escravagista.
Ainda em Freitas:
Essa massa de escravos rurais nunca tentou, entretanto, libertarem-se
coletivamente por meio de uma insurreição geral. Nem se afigurava
possível uma tal insurreição. Isolados pelas imensas distâncias que
separavam um engenho do outro, não tinham como os escravos
como organizar e articular um movimento coletivo. Os seus protestos
eram, realmente, mais existenciais que políticos. (FREITAS, 1985, p. 9).

Percebe-se que as revoltas anteriores a de 1835 eram bem pontuais e


sempre relacionadas a questões individuais e políticas, com finalidade de fuga.
Logo, o Terreiro do Bogum apresenta-se como um dos possíveis pontos que
exerceriam a função de elo entre os engenhos, devido o contato entre os
392
negros adeptos do culto dos Voduns e os Malês, facilitando a troca de
informações e toda a articulação do grande movimento que ocorreria. Este
entrelaçamento acabou sendo livremente manifestado durante tal revolta que
uniu os cativos de diferentes etnias em prol de um único ideal, tendo como
background o Terreiro do Bogum, como relata Antônio Monteiro em Notas
sobre negros malês na Bahia:
O Bogum, em frente à casinha do Conselho dos Assumânios, hoje
capela dos Quinze Mistérios, era a casa bancária, ou “casa da guarda
do dinheiro”. A casa humilde, de taipa, não fazia supor a sorte de todo
o movimento e o patrimônio financeiro da organização, por isso era
rigorosamente vigiada. (MONTEIRO, 1987, p. 61).

A pouca bibliografia disponível sobre o Bogum, ressoa de forma síncrona


a importância do terreiro para as insurgências Malês, mais ainda a de 1835.
Luiz Nicolau Parés, em A formação do Candomblé: História e ritual do
Candomblé Jeje na Bahia, é mais uma obra que comprova a importante e
intrincada relação do Bogum com a Revolta dos Malês.
Bogum era o nome de uma casinha ou dependência localizada em
frente à Igreja dos Quinze Mistérios, em Santo Antônio Além do
Carmo, onde os malês escondiam barras de ouro, armas e barris de
pólvora” destinados a subsidiar as suas revoltas”. (PARÉS, 2018, p.
173).

Assim revela-se através do contato ocorrido, que possivelmente serviu


como força-motriz para um intercâmbio cultural-religioso, possibilitando a
materialização de heranças religiosas, fazendo do Terreiro do Bogum, por
associação ao Bogum das citações acima, um local notório de troca e
convivência entre membros de tradições religiosas distintas, o que
possivelmente pode ter marcado o terreiro até o tempo presente.
Monteiro segue alimentando-nos com pontuações agudas quanto à
participação do Terreiro do Bogum, que presume que o nome do terreiro jeje
do bairro do Engenho Velho da Federação, “Bogum Malê”, seja devido ao
abrigo ofertado por esta comunidade de adoradores dos voduns ter conferido
abrigo ao negro Aprígio, foragido de represálias do Conselho dos Assumânios:
Aprígio era de total confiança do Conselho, capitão responsável pelo
comando das forças no centro da cidade. Um certo dia, o Conselho foi
informado de que Aprígio fora visto em conversa com “gente do
governo”, na Ladeira da Independência. O Conselho decidiu chama-lo

393
para um interrogatório, urdindo então uma astúcia. Ele, contudo, já
prevendo que sumariamente fuzilado, antecipou sua fuga, entrando
pela mata, e atingindo então a zona então deserta do Engenho Velho
da Federação... foi avistado pelos negros jeje que aí residiam. Estes,
que não admitiam intrusos em sua área, ... Ele, que não entendia
aquele linguajar, se curva, abaixando a cabeça e levantando as mãos,
como se pedisse clemência. Os jejes foram clementes, e ele aí
permaneceu, integrando-se àquela comunidade religiosa. Com o
passar do tempo, foi pouco a pouco relatando a sua história e ficando
conhecido como “negro do Bogum”, em razão de sua procedência.
Daí por diante, o local ficou com esta denominação, que se aplica ao
único terreiro jeje existente na Bahia. (MONTEIRO, 1987, p. 61).

Diante da luz ofertada por Monteiro, podemos concluir que a partir de


então percebermos a importância que o terreiro teve, não apenas com os ideais
da revolta, mas também pelo respeito que tinha por parte dos limanos. Sendo
fundamental para que os ânimos da Mesa dos Nove se acalmassem ao ponto de
Aprígio passar a ter seu trânsito novamente reestabelecido sem receio dos
integrantes do Conselho e ainda fazendo uso da alcunha de “negro do Bogum”.
O que nos demonstra a partir de quando se instaurou a participação
muçulmana no terreiro do Bogum.
A nível de esclarecimentos, a Ladeira da Praça que foi o local de início da
fuga de Aprígio, fica aproximadamente 5,5 km do terreiro. Porém, se
colocarmos em consideração o contexto da fuga e a tensão ocasionada,
possivelmente o fugitivo, embora não conste em nenhuma referência, talvez
deva ter atravessado o Dique do Tororó a nado, que mediria aproximadamente
300 metros de largura em sua parte mais larga, e com isso, reduziria a rota para
2,5 km, fato absolutamente plausível, principalmente para um cativo
acostumado com trabalhos bem mais exigentes.

3. A Religião Material dos Malês no Zoogodô Bogum Malê Rundò


Esta pesquisa não consiste em interpretar efetivamente as ilustrações que
serão apresentadas, e sim, indicar e esclarecer marcos balisares que configuram
o legado religioso do Islã no terreiro estudado. Ou seja, através da prática de
um olhar sagrado conseguimos perceber e realizar indicações de que as
materialidades apresentadas a seguir são de fato alheias a natureza religiosa do

394
terreiro, por mais que a sua comunidade os tenham como elementos ancestrais
tradicionais de sua prática. Quanto ao ver religioso:
Ver é uma operação que se apoia em aparatos de pressupostos e
inclinações, hábitos e rotinas, associações históricas e práticas
culturais. O Olhar Sagrado [sacred gaze] é um termo que designa uma
configuração particular de ideias, atitudes e costumes que informa um
ato de ver religioso, conforme ocorre dentro de um dado ambiente
cultural e histórico. Um olhar sagrado é a maneira de ver que reveste
uma imagem, um espectador ou um ato de ver com significância
espiritual (MORGAN, 2005, p. 6).

Morgan justifica a importância da etnografia realizamos, do conhecer


bem de perto, de estar in locco onde ou diante do que se pretende pesquisar, e
pautar-se na prática de um olhar religioso a fim de que com isto fosse possível a
reunião de inúmeras materialidades que indicam presença do Islã no terreiro,
porém, temos que levar em consideração que trabalharemos com um numero
reduzidíssimo neste momento devido a limitação de laudas a serem trabalhadas
nesta comunicação.

3.1. A Materialidade através dos Artefatos: Os vestígios Malês


É importante em uma primeira explicitação sobre artefatos oriundos do
Candomblé é que os objetos não podem ser vistos meramente como coisas, ou
representações, eles são a própria divindade, o axé, a força, o segredo e o
sagrado.
O assentamento sagrado (materialização divina) que veremos a seguir é
constituído dos mais diferenciados tipos de elementos e dotados de força, de
axé, um local que se torna sacro bem como tudo o que nele esta presente, onde
há mística e que podemos em momento oportuno trabalhar sob o conceito de
agência.

395
3.1.1. O Símbolo Religioso: A meia Lua e a Estrela
Figura 1 Figura
2

Figura 1 recolhida dos arquivos do Terreiro do Bogum, realizadas por Herskovitz, 1942.
Figura 2 em: http://nfcomgeral.blogspot.com/2014/11/sabia-que-64-paises-tem-simbolos.html

Percebemos que a figura 1 capturada por Melville Herskovitz,


Antropólogo norte-americano, quando em pesquisa etnográfica pela cidade de
Salvador, realizou inúmeros registros do Bogum no século passado.
Percebemos em ambas as fotos a figura de meia-lua é estranha ao
Candomblé em geral, mais ainda ao Candomblé Jeje praticado no Bogum,
porém, bem presente na cultura muçulmana inclusive como podemos verificar
na figura 2, estando presente na bandeira da maioria dos países muçulmanos.
Atentamos ainda para a figura 1 em que temos um pote em frente e ao
centro da meia lua, como um elemento a parte. Ainda pautado nas bandeiras
dos países muçulmanos, figura 2, há realmente em sua maioria um elemento
nesta posição: uma estrela (☪).
A lua e a estrela eram marca do Império Otomano, que durou do século XI ao
XX. Como o Islã era a religião do Império, o símbolo passou a ser adotado
pelos povos muçulmanos conquistados. 1. Turquia, Tunísia, Paquistão e
outros países islâmicos têm a imagem na bandeira.
Porém, na verdade elas não têm nenhum significado venerável para a
fé islâmica. Embora o fato de que os muçulmanos seguem o calendário lunar,
ou mesmo de a lua crescente marcar o início do Ramadan possa sugerir

396
alguma relação destes símbolos com o Islam, causando confusão em pessoas
leigas.

3.2. A Materialidade Corporificada: Hábitos e Costumes


Neste subtópico Morgan nos ajudara a analisarmos algumas heranças
incorporadas, não como sentido metafísico e sim presentes no corpo como
resultado da fé e não como veículo para que a fé seja exercida. “Esta capacidade
para o comportamento coletivo é uma das razões para que as práticas corporais
coletivas e rituais sejam efetivos” (MORGAN, 2010, p. 59).

3.2.1. Salá, Salah ou Salat


Refere-se às cinco orações que cada muçulmano deve realizar
diariamente, voltado para a cidade de Meca, sendo este o segundo dos cinco
pilares do Islã. E essas cinco orações também são realizadas no terreiro nos
períodos de iniciação de neófitos.
As orações no Islã não precisam ser guiadas por uma pessoa específica e
no terreiro também não, podendo ser realizada por uma figura importante ou
não, por uma das pessoas que estão sendo iniciadas ou por qualquer um que
faça parte da comunidade do terreiro e que tenha o conhecimento para realiza-
las.
As orações por parte dos muçulmanos podem ser realizadas
coletivamente ou individuais, porém os tapetes utilizados para as orações são de
uso exclusivamente individual. No terreiro os neófitos rezam coletivamente na
Zan, uma espécie de esteira confeccionada de folha de bananeira sem
desenhos ou pinturas, para que o neófito não se distraia no momento da
oração.
Como no Islã preferencialmente o tapete de oração não deve ter
nenhum tipo de imagem, Al-Bukhari (373) e Muslim (556) demonstram a partir
de Aisha que o profeta Muhammad rezou em uma capa preta com listras e
quando este terminou mandou que levassem a capa e trouxessem uma lisa
dizendo: “Eu estava observando suas marcas enquanto rezava e temi que elas

397
me distraíssem”. A partir de então é recomendado o uso de tapetes lisos para a
realizar o Salat.
A Posição para realização das orações também é algo que apresenta
certa similaridade, porém, não adentraremos ao mérito neste momento.

3.3. A Materialidade Sensorial através de Georreferenciamento: Sensações e


Orientação Espacial
Neste subtópico será apresentado a materialidade ligada a sentimentos,
emoções, sensações e estética em consonância para a formação de uma
consciência ou memória, inseparáveis as emoções. Ainda em Morgam ilustra
bem o contexto que apresentaremos à seguir: “Todas as sociedades investem
grande energia em ensinar seus membros a sentirem de maneira similar...
Sentimentos não apenas reúnem os seres humanos, como também os reúne a
animais, a coisas, a lugares e objetos [e porque não a seres sobrenaturais]”.
(MORGAN, 2010, p. 58).

3.3.1. Meca e as Janelas


Figura 3 Figura 4

Imagens obtidas a partir do programa Google Earth em: 25 de abr de 2022.


Em análise às inúmeras fotografias realizadas por Herskovitz percebemos
que o Terreiro só possuia janelas em um dos quatro lados de seu salão principal,
salvo as janelas instaladas por reformas federais e municipais como atesta o
laudo Antropológico do Professor Ordep Serpa. Essa especificidade chamou
atenção em campo e foi através de uma despretensiosa analise através de
Georreferenciamento que podemos perceber que todas as antigas janelas
(ainda existentes) do Terreiro foram precisamente instaladas viradas para a
398
cidade muçulmana sagrada de Meca. A nível de complementação ainda temos
em outros registros os atabaques (tambores sagrados) que ficavam de frente
para as janelas como se os tocadores reportassem suas invocações sagradas a
mesma cidade. Infelizmente, neste momento não há disponibilidade de espaço
para uma analise conjunta entre os registros fotograficos de Herskovitz.

Conclusão
De maneira rápida e suscinta percebemos a significativa do legado
religioso do Islã através no Zoogodo Bogum Malê Rundo – Terreiro do Bogum,
e a demasiada riqueza que o estudo através da Religião Material deste Terreiro
nos oferta. Certamente um conteúdo mais extenso dessa pesquisa será
publicado em forma de artigo antes que seja defendido como dissertação.

Referências
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Editores, 1980.

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peregrinação, jejum e jihad. In: BARTHOLO JR., Roberto S., CAMPOS, Arminda.
Islã: o credo é a conduta. Rio de Janeiro: ISER/Imago, 1990.

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BORGES, Claudia. Sabia que 64 países têm símbolos religiosos em suas


bandeiras nacionais? Disponível em:
https://www.megacurioso.com.br/religiao/54507-sabia-que-64-paises-tem-
simbolos-religiosos-em-suas-bandeiras-nacionais.htm Acesso em: 25 out 2022.

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CAIRUS, José. Instrumentum vocale, mallams e alufás: o paradoxo islâmico da


erudição na diáspora africana no Atlântico. Topoi, Rio de Janeiro, março 2003,
p. 128-164.

FARELLI, Maria Helena. Malês os Negros Bruxos: O Candomblé de origem


islâmica, seus magos e seus feitiços. São Paulo: Madras, 1998.

FRAZIER, Edward Franklin. Republicado. In: HERSKOVITS, Melville. J. The Negro


in Bahia, Brazil: a problem in method. American Sociological Review,
Washington: American Sociological Association, v. 8, n. 4, p. 394-404, Aug.
1943.
399
FREITAS, Décio. A Revolução dos Malês: Insurreições escravas. 2ª ed. Porto
Alegre: Movimento, 1985.

HÉLDER, Fernando. A Lua Crescente e a Estrela. Discponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=VLQqzrzyU6c Acesso em: 18 de mai de
2022.

HERSKOVITS, Melville. J. The Negro family in Bahia, Brazil. American Sociological


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HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das
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LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. 4ª ed. Rev e Atual. Belo
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ORDEP, Serpa. Terreiro do Bogum – Zoogodo Bogum malê Rundo - Laudo


Antropológico. Bahia, 2010.

REIS, João José. A Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês
em 1835. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ROBINSON, Charles Henry. Dictionary oh Hausa Language. Cambridge:


Cambridge University Press, 1925.

SOUZA, Carlos Frederico Barboza. A Singularidade da Experiência Islâmica:


context histórico, revelação e concepção de Deus (parte I). Horizonte, Belo
Horizonte, v.13, n.38, p.803-828, abr/jun 2015.

400
GT 18 - RELIGIOSIDADES AFRO-AMERICANAS: CRENÇAS,
SINCRETISMOS, RITUAIS E RESISTÊNCIAS

Doutorando Eduardo Garcia Necco Peixoto Regis (UFJF)


Doutoranda Vitória Marques Bergo (UFJF)
Mestranda Tharsis Corrêa Oliveira (UFJF)

Ementa: A diáspora forçada de africanos escravizados para as Américas, através


da colonização européia, moldou as modalidades de crença nesses territórios.
Tenha sido pelo trânsito de ideais e conceitos religiosos entre as diversas
crenças africanas diante da imposição do cristianismo, pela interação com as
culturas ameríndias ou pelo surgimento de modalidades crenças próprias dos
povos das Américas, é possível destacar que o campo religioso americano tem
sido fértil e interessante para as pesquisas desenvolvidas pela ciência da
religião. Neste sentido, além de oportuno, é necessário que a discussão e que a
produção de conhecimento acerca destas religiosidades seja fomentada,
objetivando uma compreensão mais precisa do próprio campo religioso
americano atual. Compreende-se que o olhar cuidadoso para as diversas
modalidades de crenças americanas que apresentam matriz africana, bem como
o estudo comparativo das mesmas são chaves para que possamos perceber as
estruturas de crença que moldaram o cenário cultural americano. Além disso, a
difusão de trabalhos cujos temas circundam as religiosidades de matriz africana
corrobora com a proposta temática do VI CONACIR: "Religião, busca pela Paz e
Direitos Humanos". Na medida em que a intolerância religiosa contra as
religiões de matriz afro vem crescendo nos últimos anos, compreendemos a
importância da disseminação, divulgação e circulação das pesquisas científicas
que abordam tais manifestações, em suas pluralidades, convergências e
diferenças. Assim, o GT também busca oportunizar o debate proposto pelo
evento, sobre como podemos pensar a busca pela Paz em relação com o
diálogo inter-religioso. Este GT tem o objetivo então de promover a discussão
acerca de religiosidades afro-americanas, como: Candomblé, Umbanda,
Quimbanda, Tambor de Mina, Jurema, Vodou, Voodoo da Louisiana, Palo
Monte, Regla de Ocha, Maria Lionza e outras. Neste contexto, buscamos
destacar trabalhos que estejam em desenvolvimento no âmbito das pesquisas
em Ciência da Religião e das Ciências Humanas, abordando tanto questões
relativas a estas modalidades de crença em sua singularidade, quanto em
comparação com outras modalidades afro-americanas: principalmente no que
tange as suas crenças e capital simbólico formativo, derivativo, rituais, mitos e
experiências religiosas, bem como hibridismos e sínteses. Serão priorizados os
trabalhos em fase atual de desenvolvimento, cujas pesquisas estejam em curso e
que dialoguem com a área da Ciência da Religião.

Palavras-Chave: Religiosidade afro-americana; Religiosidade ameríndia;


Sincretismo;

401
CANDOMBLÉ: MEMÓRIA, RESISTÊNCIA, INOVAÇÃO
Janara Puchulate De Moraes
Mestranda em Letras (mestrado profissional - PROFLETRAS)
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
janarapuchulate@id.uff.br

Resumo: Ainda que um ser humano olhe para outro e veja um objeto, aquele que é
olhado como coisa continua sendo humano e continua possuindo cultura, costumes e
fé. É sobre a permanência e reinvenção da fé dos iorubás, que estão entre os povos
que foram trazidos forçadamente da África para o Brasil, que pretendemos dissertar. As
crenças dos iorubás que foram trazidas para o Brasil através da escravização se
transformaram, entre outras manifestações culturais, no Candomblé. O Candomblé,
então, religião muitas vezes vista como algo ruim, apesar de ter origens na fé praticada
na África, é uma religião brasileira que surgiu na Bahia, no século XIX. Não existia a
religião chamada Candomblé na África. Antes da vinda dos iorubás para o Brasil, antes
da colonização europeia na África, não havia em tal continente a necessidade de se
nomear a fé. O que havia em tal região era a religiosidade local, que, no Brasil, recebeu
uma ressignificação. Acreditamos que tal ressignificação coloca o Candomblé como
uma religião que guarda a memória dos tempos da escravidão e do período anterior a
ela. Como também faz do Candomblé uma forma de resistência, já que não se admitia
que pretos e pretas fossem pessoas, que dirá pessoas com uma forma própria de fé.
Mas para isso tudo o Candomblé também precisou da inovação para se fazer existir e
permanecer existindo num contexto desfavorável à sua existência.

Palavras-chave: Candomblé; Memória, Resistência, Religiosidade; Ressignificação.

Introdução
O texto a seguir busca apresentar a religião brasileira chamada
Candomblé sob a perspectiva de vê-la como religião que não apenas é símbolo
de fé, mas também de memória, inovação e resistência. Para isso,
apresentaremos algumas características dessa religião e buscaremos compará-
las com os aspectos mencionados. Nosso objetivo é demonstrar que, apesar da
tentativa de reificação dos povos africanos na América, tais povos defenderam
sua humanidade na diáspora. E uma das formas dessa defesa é a reelaboração
de elementos culturais africanos, como pretendemos demonstrar que
aconteceu com a criação do Candomblé.
Nosso texto é relevante diante do momento histórico em que vivemos,
nessa primeira metade do século vinte e um (mais especificamente, o primeiro
um quarto do século), em que avanços conquistados até então têm sido
questionados. De maneira a termos a sensação de estarmos vivendo um

402
período de retrocessos, o qual precisamos combater também por meio da
produção científica, à qual pretendemos nos inserir fazendo um levantamento
bibliográfico sobre o tema proposto e também apresentando nossas reflexões a
respeito do tema em questão: o Candomblé como manifestação da memória
africana, assim como símbolo da inovação e resistência dos povos afro
diaspóricos.
Trabalharemos em nosso levantamento bibliográfico com textos
inseridos na pesquisa acadêmica e também com obras artísticas para
exemplificar nossas reflexões. Passamos a seguir a uma breve explanação do
que é o Candomblé de um modo geral, mas desde já precisamos ressaltar que
essa religião é diversa em sua constituição e em suas características.

1. O que entendemos por Candomblé


De maneira bem resumida para iniciar nossas discussões sobre o assunto,
podemos afirmar que Candomblé é a religião de culto aos Orixás. Orixás são
divindades. Algumas com origem desde sempre sagrada, algumas com origens
ligadas à natureza e algumas com origem a partir de seres humanos notáveis;
muitos Orixás são descritos como antigos reis de cidades iorubás por exemplo.
O autor PJ Pereira, em sua obra ficcional Deuses de dois mundos, O livro da
traição (PEREIRA, 2014), faz uma narrativa de como seres humanos notáveis se
tornaram Orixás, a partir de pesquisas e interpretações próprias; já o autor
Reginaldo Prandi (2001) faz um compilado de várias lendas iorubás, entre elas
as que contam a transformação de seres humanos em Orixás e as que
demonstram como os Orixás ganharam suas atribuições, no livro Mitologia dos
Orixás (PRANDI, 2001). É importante ressaltar que os Orixás são vistos como os
antepassados míticos dos iorubás.
“A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família
numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os
vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado,
que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle
sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas
doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de
exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou,
ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de
sua utilização. O poder, àse, do ancestral orixá teria, após a sua morte,

403
a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus
descendentes durante um fenômeno por ele provocada.” (VERGER,
2002, p. 18).

Tanto Verger (2002) quanto Pereira (2014) falam também da


excepcionalidade dos momentos em que pessoas se tornam Orixás, em geral,
momentos de grande emoção. Verger (2002) explica que numa morte natural,
há o abandono do corpo material por uma determinada energia imaterial,
diferente do momento em que alguém se torna Orixá, que é o momento em
que o corpo material seria consumido. Já Pereira (2014), em sua obra de ficção,
descreve diferentes formas dessa transformação de corpo humano em Orixá,
deixando claro no último livro de sua trilogia Deuses de dois mundos (PEREIRA,
2014a, 2014b, 2015), que seria a obra O livro da morte (PEREIRA, 2015), que
uma das diferenças entre a condição de corpo humano e a condição de Orixá
seria o fato de os Orixás não respirarem.
Nesse mesmo livro, Pereira (2015) explica a relação entre os Orixás e o
axé, espécie de energia vital. O autor citado nos mostra, através de seus
personagens, como os Orixás precisariam de axé e que esse axé seria adquirido
através da admiração, fé e até mesmo temor dos humanos a respeito de tais
Orixás. Na mesma obra, Pereira (2015) também coloca a hipótese da
possibilidade da morte de um Orixá ao mesmo tempo que levanta a ideia de
que sempre surgiriam Orixás novos. Já Eurico Ramos, em Revendo o
Candomblé (RAMOS, 2011), afirma que os Orixás são energias. E Juana Elbein
dos Santos, em Os nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e Culto Égun na Bahia
(SANTOS, 2008), diz que
“Os òrisà são massas de movimentos lentos, serenos, de idade
imemorial. Estão dotados de um grande equilíbrio necessário para
manter a relação econômica entre o que nasce e o que morre, entre o
que é dado e o que deve ser devolvido. Por isso mesmo estão
associados à justiça e ao equilíbrio. (...) Os òrisà estão associados a
calma, a umidade, a repouso, a silêncio.” (SANTOS, 2008, p. 76).

O Candomblé, então, é a religião que cultua os Orixás buscando o favor


deles e demonstrando a eles admiração e adoração; gerando, assim, axé:
energia vital necessária tanto para os Orixás quanto para os seres humanos de
acordo com essa crença.

404
2. Candomblé como memória
Discutido o conceito de Candomblé, interessa-nos demonstrar,
bibliograficamente, como essa religião pode ser entendida como simbolismo da
memória africana em nosso território.
É importante levarmos em consideração que a memória não
necessariamente guarda tudo o que vivemos ou aprendemos exatamente da
forma como se deu; às vezes, a memória guarda “certas informações” (SILVA K;
SILVA M, 2009, p. 275), deixando outras guardadas em cantos mais profundos
da nossa mente. Além disso, a memória nos permite ou pode nos levar a
“atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como
passadas.” (SILVA K.; SILVA M., 2009, p. 275). Ou seja, a memória não é uma
cópia ou uma foto de tudo o que vivemos no passado.
De forma que nem todas as histórias dos Orixás se mantiveram após a
travessia forçada até o Brasil. Chegando ao ponto de que alguns Orixás que
eram cultuados na África deixarem de ser cultuados aqui. Além disso, temos que
lembrar que na própria África, tanto no passado, quanto no presente, houve e
há variações sobre o culto aos Orixás, principalmente variações regionais ao
longo do espaço que habitam os iorubás.
Para além das questões das lendas relacionadas aos Orixás e da maneira
como eles eram cultuados, existem características do Candomblé que podem
ser usadas como indícios de serem guardiãs de costumes iorubás. Referimo-nos
à questão linguística e à questão da posição da mulher nos terreiros.
Em relação à questão linguística, vale citar que há todo um vocabulário
iorubá que vem sobrevivendo ao longo dos séculos nos terreiros, nos locais de
culto do Candomblé. Sobre a questão feminina, levantamos a seguinte questão:
a existência de lideranças femininas no Candomblé pode ser o indício de uma
relação de gênero diferente na região conhecida como Iorubalândia do que a
relação ocidental que foi imposta na América?
A questão dessa possível diferença é trabalhada de forma extensiva no
livro A invenção das mulheres (OYEWÙMÍ, 2021) no qual percebemos que a
submissão feminina ocidental não existia na Iorubalândia antes do contato com

405
o Ocidente e que uma possível submissão feminina existe hoje na região fruto
da influência ocidental.
A relação com as plantas e a questão da culinária também podem ser
vistas como símbolos de memória dentro do contexto do Candomblé. Essas
práticas, inclusive, já se expandiram para além da religiosidade, ganhando
espaço na cultura brasileira de uma forma geral.
Nossa proposta é que a memória iorubá preservada no Candomblé
tenha colaborado pelo menos em parte para o pensamento brasileiro o que
pode ser observado em inúmeras manifestações artísticas. Uma das temáticas
abordadas nessas obras que aponta para essa direção é a relação com o tempo.
O texto Regime de historicidade iorubá apresentado na trilogia Deuses de dois
mundos (MORAES, 2021) demonstra como os iorubás viam o tempo de maneira
cíclica e como esse pensamento transparece na cultura brasileira tanto nas
religiões Candomblé e Umbanda como na vida artística.
Entre as obras artísticas que refletem esse pensamento sobre o tempo de
modo cíclico em que o passado pode interferir no presente estão a já citada
trilogia Deuses de dois mundos (PEREIRA, 2014a, 2014b, 2015), o livro Aimó
(PRANDI, 2017), o documentário AmarElo (EMICIDA, 2020) e a música Um índio
(VELOSO, 1977). Obviamente, é possível a busca por outras obras que
exemplifiquem o pensamento sobre o tempo citado, mas não nos
prolongaremos nessa lista pelo limite de espaço necessário no texto atual. Ainda
que tenhamos esse limite, é importante ressaltar novamente a característica que
diferencia o tempo cíclico iorubá de outros modos de ver o tempo, já que no
regime de historicidade iorubá o tempo não apenas acontece e se repete, mas
também há a possibilidade de interferência do passado no presente e do
presente no passado. Afinal de contas, “Exu matou um pássaro ontem com a
pedra que só jogou hoje” (EMICIDA, 2020 0:20). Frase que pode ser usada
como síntese para essa maneira de ver o tempo e que reforça nossa ideia de
Candomblé como memória do povo iorubá, já que essa frase é um ditado
popular iorubá.

406
3. Candomblé como resistência
Manter a própria fé sendo considerado uma coisa foi um ato de
resistência pelos escravizados e pelas escravizadas. Essas pessoas resistiram ao
manter viva sua humanidade e cultura e transportarem seus costumes para
outro continente, expandindo os locais de adoração de seus deuses. No caso do
povo iorubá, esses deuses eram os Orixás.
Helena Theodoro (2010) e Ynaê Lopes dos Santos (2017) demonstram
como pretos e pretas no século XIX, antes e depois da abolição, procuravam
meios de criar espaços de sociabilidade entre si, que eram também espaços de
resistência e meios de suportar tanto as dores da escravidão quanto as dores da
exclusão social que permanece após a abolição.
Ainda sobre a obra de Helena Theodoro (2010), essa autora demonstra
que foi na Bahia que esses espaços de sociabilidade se constituíram através do
Candomblé, aglutinando pessoas iorubás e recriando práticas que eram
comuns na África.
Além disso, como o Candomblé não condena outras religiões, ele
convive com o Catolicismo desde a sua criação. As duas autoras que citamos
acima mostram como pessoas pretas, ainda durante a época da escravidão e
também depois, se incluíram na religiosidade católica, algumas dessas pessoas
que haviam se convertido ao Cristianismo somente e totalmente e outras que
seguiam a fé cristã em acordo com a fé nos Orixás. Pois as duas maneiras de
crer não se excluem, sendo possível crer num Orixá e no seu correspondente
santo católico, tanto interpretando ambos como a mesma divindade ou como
apenas divindades relacionadas.
Nesse contexto, surgiram, no Brasil, diversas irmandades católicas de
pessoas pretas. Tais irmandades estavam envolvidas no contexto da fé católica,
mas também havia liberdade nelas para a fé nos Orixás e também estavam
envolvidas, durante o período da escravidão, no recolhimento de fundos para o
financiamento de alforrias e dos eventos relacionados à morte de seus
membros. Helena Theodoro (2010) mostra que, no estado da Bahia, muitas
mulheres pretas que participavam das irmandades católicas eram também as

407
mesmas mulheres que trabalharam no surgimento das primeiras casas de
Candomblé no mesmo estado. A autora chega a citar o caso de “Iyá Nassô, que
fora zeladora do culto a Xangô no palácio real de Oió (na Nigéria) e fundara o
Ilê Axé Airá Intilê, considerada a primeira casa de culto aos orixás no Brasil.”
(THEODORO, 2010, p. 73). Então, o Candomblé, além de ser um espaço
importantíssimo para as pessoas pretas, também é um espaço de síntese de
religiões, pois demonstra “a troca entre brancos, negros e outras etnias”
(THEODORO, 2010, p. 86), levando em consideração o costume desses povos e
servindo de local de encontro e ponto de harmonia entre pretos e pretas e
brancos e brancas, num país em que as diferenças raciais foram e ainda são
marcas de divisão, por mais que haja a luta por união e igualdade.

4. Candomblé como inovação


Nesse tópico, trataremos mais das mudanças que o Candomblé
apresenta em comparação à cultura iorubá de antes desse povo ser trazido para
o Brasil.
Reginaldo Prandi (2001) apresenta algumas variações nos cultos aos
Orixás, como, por exemplo, Orixá Ocô, relacionado à agricultura, o que pode
explicar o seu esquecimento já que o Candomblé se constituiu no espaço da
urbanidade brasileira. Outros Orixás fortemente ligados à natureza, receberam
um reforço sobre outros atributos e continuaram a ser adorados no Brasil, como
é o caso das três esposas de Xangô: Oiá (Iansã), Obá e Oxum, todas três,
originalmente, ligadas a rios na África. Já em relação ao mar, no Brasil, tivemos a
prevalência de Iemanjá e o esquecimento de Olocum e Ajê Xalugá. Orô e Oquê,
divindades também ligadas à natureza, também foram esquecidos no Brasil.
Orunmilá também não é muito lembrado em nosso país, talvez isso
explique as mudanças nas formas relacionadas à adivinhação no nosso
território, já que Orunmilá na África e em Cuba é o Orixá diretamente ligado à
adivinhação. Dessa forma, vemos em Reginaldo Prandi (2001) que enquanto,
na África, tanto no passado quanto no presente, e também na Cuba atual, as
adivinhações são feitas pelos babalaôs, esse título não é usual no Brasil, onde o

408
pai de santo (babalorixá) ou a mãe de santo (ialorixá) são os que conduzem a
adivinhação.
É ao redor do pai de santo ou da mãe de santo que se constitui, no
Brasil, o povo de santo. As pessoas que seguem o Candomblé se constituem,
assim, em um povo, mas não no sentido de formar ou pretender formar um
Estado. Essas pessoas se tornam um povo no sentido religioso e no aspecto em
que compartilham as mesmas crenças e se reconhecem por costumes como o
uso ou o fato de se evitar o uso de determinadas cores de roupa e também os
mesmos cuidados em relação a determinados alimentos, também o uso de
determinados adereços e marcas corporais que marcam as iniciações ocorridas
nos terreiros, espaços onde acontecem as celebrações do Candomblé e que
possuem grande valor mágico, simbólico e sentimental.
Sobre ele, Juana Elbein dos Santos diz: “Na diáspora, o espaço geográfico
da África genitora e seus conteúdos culturais foram transferidos e restituídos no
“terreiro”” (SANTOS, 2008, p. 33). E também: “o “terreiro” é um espaço onde se
organiza uma comunidade” (SANTOS, 2008, p. 37). Já Helena Theodoro, chama
os terreiros de “comunidades-terreiros” (THEODORO, 2010, p. 84). E Eurico
Ramos chama o terreiro de “ilê axé” (RAMOS, 2011, p. 41).
O terreiro, então, se coloca como uma questão central na formação do
povo de santo, pois é um ambiente de comunhão e de festa e também dos
eventos espirituais. Eurico Ramos nos conta que:
“os candomblés mais ortodoxos organizam a casa, o ebé
(=comunidade), a roça do candomblé de forma que a mesma
represente um grande corpo, que, se fosse visto de cima, apareceria
deitado sobre a terra. E os membros deste axé, que compõem o ebé,
representam o sangue (ejé) que circula por todo esse corpo. Por esse
motivo, nós sempre encontramos, do lado esquerdo de quem entra na
casa de candomblé, o Ilê Bará - a casa de Exu -, que vai representar o
pé direito desse grande corpo que está deitado. Do lado direito de
quem entra, encontramos a Casa de Ogum, que vai representar o pé
esquerdo desse grande corpo deitado.” (RAMOS, 2011, p. 41).

Essa citação nos faz pensar num ponto que poderia ser explorado como
algo em comum entre o Candomblé e o Cristianismo: o sentido de povo que
segue uma fé constituindo um único corpo; o que demonstra que se o sentido
dessas religiões é estar unido a ponto de ser um corpo, a ponto de muitos serem

409
um, não deveria haver motivo de preconceito por parte de tantas pessoas que
professam o Cristianismo. Talvez possamos levantar a hipótese que o motivo de
tantas desavenças religiosas não seja exatamente, ou não essencialmente, as
diferenças entre essas maneiras de professar a fé, ou o fato de, talvez, essas duas
formas de religião não serem compatíveis.
É muito provável que o que leve a uma perseguição tão extrema ao
Candomblé seja um pensamento de superioridade ocidental, que coloca tudo
ligado à Europa como superior a tudo que tem origem africana. Os autores Nei
Lopes e Luiz Antonio Simas no livro Filosofias Africanas (LOPES; SIMAS, 2020)
falam sobre esse pensamento em que se coloca a Europa como centro, como
“mestra” (LOPES; SIMAS, 2020, p. 15), diminuindo tudo o que não provém dela.
Para além da ressignificação dos costumes iorubá na maneira em que se
professa o Candomblé, também podemos interpretar essa religião como
inovação no modo em que ela inspira pessoas a buscar informações e a se unir
em torno de pautas em comum. Temos presenciado a busca pela aprendizagem
da língua iorubá, o lançamento de vários livros a respeito do Candomblé e
eventos que demonstram tanto a busca por conhecimento quanto por respeito
para com essa religião.
Não podemos afirmar que esse respeito já tenha sido alcançado
amplamente. Mas podemos observar em nossa sociedade atual que todas as
ações feitas ao longo de séculos já garantiram maior visibilidade ao Candomblé
e maior possibilidade de candomblecistas poderem se assumir como tal sem
medo de represálias por pertencerem a uma religião afrodescendente.
O orgulho e a consciência de ser candomblecista coincide com o
crescimento da consciência e do orgulho de ser pessoa preta, sobre isso, Edson
Lopes Cardoso diz que há uma “paixão avassaladora que parece ter se
apossado de pretos e pardos: a paixão de ser o que se é” (CARDOSO, 2022). E o
que podemos deduzir é que a inovação do Candomblé também consiste em
criar um espaço no Brasil para pessoas que foram consideradas coisas e não
tinham direito à própria fé. Nesse ponto, não há como dissociar a força do
Candomblé da força do movimento pela valorização das pessoas pretas.

410
Conclusão
Nossa hipótese é que a constituição do povo de santo e todas as ações
que se desencadeiam a partir de tal união representem a síntese da nossa ideia
do Candomblé como memória, resistência e inovação.
Memória porque o Candomblé mantém vivas inúmeras lendas iorubás e
essas lendas vão sendo repassadas no interior do povo de santo; resistência
porque essa religião surge num contexto em que quase tudo relacionado às
pessoas pretas era visto como ruim, fora que a religião oficial e a permitida era o
Cristianismo. Inovação porque o Candomblé é uma religião nova, brasileira, afro
diaspórica, que aglutina o povo preto e cria a possibilidade de pessoas de todas
as etnias se encontrarem porque nenhuma outra religiosidade ou costume
precisa ser deixado de lado para que se professe o Candomblé.
A permanência do Candomblé em meio a contextos diversos que sempre
apontam para algum tipo de perseguição ainda que em menor intensidade do
que no passado inspira o povo preto e também pessoas brancas que se
colocam como antirracistas a permanecer em luta. Luta que, inclusive, já levou a
inúmeras conquistas como a aprovação de leis relacionadas ao respeito às
religiões e à inserção da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-
brasileira na educação do Brasil. Só podemos, então, esperar que toda essa luta
expressa em memória, resistência e inovação continue, porque, com certeza,
ainda há muito pelo que lutar.

Referências
CARDOSO, Edson Lopes. Prefácio. In: Arruda e Guiné: Resistência negra no
Brasil Contemporâneo. São Paulo: Fósforo, 2022.
EMICIDA. Amarelo - É Tudo Pra Ontem. Direção: Fred Ouro Preto. Produção:
Evandro Fióti. Mundial: Laboratório Fantasma e Netflix, 2020. Disponível em:
https://www.netflix.com/title/81306298. Acesso em: 3 ago. 2021.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias africanas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020.
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos & guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro:
Universal, 2000.
411
MORAES, Janara Puchulate de. Regime de historicidade iorubá apresentado na
trilogia Deuses de dois mundos. In: TOSTES, Eduarda Guerra Tostes; FREITAS,
Júlia Machado de Souza; SOUZA, Marco Antônio Campos e. Anais Eletrônicos
da XXXVII Semana de História do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Os tribunais da história: Alcances e limites
das narrativas do tempo. Juiz de Fora, 2021. Disponível em:
https://www.ufjf.br/semanadehistoria/files/2010/02/Anais-Semana-de-Hist .
Acesso em 03 de maio de 2022.
OYEWÙMÍ, Oyèrónké. A invenção das mulheres: construindo um sentido
africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do tempo,
2021.
PEREIRA, P. J. Deuses de dois mundos: o livro da morte. São Paulo: Editora Da
BoaProsa, 2015.
PEREIRA, P. J. Deuses de dois mundos: o livro da traição. São Paulo: Editora Da
BoaProsa, 2014.
PEREIRA, P. J. Deuses de dois mundos: o livro do silêncio. São Paulo: Editora Da
BoaProsa, 2014.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
RAMOS, Eurico. Revendo o Candomblé. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o culto Égun na
Bahia. Petrópolis: Vozes, 2008.
SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil Afrodescendente. Rio de
Janeiro: Pallas, 2017.
SILVA, Kalina; SILVA, Maciel. Verbete “Memória”. In: SILVA, Kalina; SILVA, Maciel.
Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Exu. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.
THEODORO, Helena. Iansã: rainha dos ventos e das tempestades. Rio de
Janeiro: Pallas, 2010.
VELOSO, Caetano. Álbum Bicho, de 1977. PolyGram. Universal Music.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo .
Salvador: Corrupio, 2002.

412
QUANDO O SUBALTERNO FALA: A NARRATIVA DE AXÉ DE MÃE
BEATA DE YEMONJÁ
Sávio Roberto Fonseca De Freitas
Doutorando em Ciências das Religiões pela UFPB
Doutor em Letras pela UFPB
Professor de Literaturas de Língua Portuguesa da UFPB
e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB
savioroberto1978@yahoo.com.br

José Bartolomeu Dos Santos Júnior


Doutorando em Ciências das Religiões pela UFPB
Professor Estatutário da rede estadual
jbsjr@hotmail.com

Resumo: O objetivo deste estudo é desenvolver uma análise de contos de Mãe Beata
de Yemonjá e mostrar que a literatura afro-brasileira de autoria feminina cumpre uma
agenda social de reflexão sobre temas que se voltam ao universo da cultura afro-
brasileira. A coletânea de contos Caroço de dendê (2002), de Mãe Beata, apresenta a
sabedoria dos terreiros como uma possibilidade de construção de uma poética afro-
brasileira, a ficção curta de axé, que ensina o conhecimento oral dos babalorixás, das
ialorixás e dos orixás como veículo de uma educação que se pauta na lei do santo
(VALLADO, 2010), da representatividade de grupos minoritários (SOUZA, 2002, p.81) e
da mitologia dos orixás (PRANDI, 2001).

Palavras-chave: Poética afro-brasileira, Ficção curta de Axé, Mãe Beata de Yemonjá.

Primeiras colocações
Pensar os caminhos de formação de uma literatura didática afro-brasileira
significa adentrar em um mundo complexo e cada vez mais problemático,
principalmente quando o tema motivador para a discussão são as questões
religiosas de matriz africana. Discutir religiosidade em um país multicultural
como Brasil nos dá a sensação de que estamos abrindo a caixa de Pandora e
soltando vários monstros... Nós, na condição educadores e formadores de
opinião, entramos a cada dia em um labirinto e quando encontramos a saída é
só e somente só porque temos consciência de que a humildade acadêmica nos
concede o prazer de sempre aprender algo a partir do momento que os
conhecimentos literários à baila entram no ciclo do ensinar e do aprender.
Nosso objetivo aqui é propor um caminho que minimize o racismo
religioso por meio do estudo da literatura afro-brasileira no Brasil,
principalmente nas escolas de ensino regular, não querendo aqui escamotear as
ocorrências de tal ato no ensino superior, mas com o propósito de mostrar que
413
podemos lapidar mais o corpo discente das escolas regulares, sejam da rede
pública ou privada. Para isso vamos tomar como ponto de partida dois
caminhos: a Literatura Afro-brasileira e a Educação para as Relações étnico-
raciais.
Para mostrar a contribuição da lei 10.639/2003 no que diz respeito à
obrigatoriedade do conhecimento sobre a História e Cultura Afro-brasileira e
Africana nas escolas, vamos nos debruçar sobre a antologia de contos Caroço
de Dendê (2002), de Mãe Beata de Yemonjá, mostrando como a referida
escritora, através da sabedoria dos terreiros, desenvolve um discurso literário
que dá visibilidade ao candomblé no sentido de manter presente, na ficção
contemporânea de temas afro-brasileiros, a Mitologia Yorubá, principalmente
no tocante à desmistificação do universo dos orixás, minimizando uma visão
eurocêntrica preconceituosa construída por um imaginário medieval
incompatível com a riqueza da sabedoria que se assimila no exercício das
religiões de matriz africana.
Colocar o candomblé, a literatura e a educação em uma linha paralela de
pensamento, é possível por conta da Lei 10.639/2003. Pensar um segmento
literário a partir deste tripé é ainda mais audacioso porque estamos
descentralizando o discurso hegemônico eurocêntrico a partir da
territorialização de um discurso matriarcal afro-brasileiro preservado por uma
oralidade ancestral guardada a sete chaves nos terreiros das mães de santo
brasileiras. Mãe Beata representa a fusão de três segmentos de uma minoria
invisível em nosso país: mulher, negra e mãe de santo. A sabedoria dos terreiros
ensina a valorização de muitos aspectos educacionais domésticos tão
esquecidos pela contemporaneidade, como: o respeito à natureza, a educação
ambiental, a evolução espiritual, a valorização dos mais velhos, o constante
exercício do conhecimento, a educação racial, a educação de gênero, o
exercício da humanidade e de caridade, o amor ao próximo, saber o lugar do
direito e do dever; ou seja, conviver de forma sadia em meio ao caos proposto
diariamente pela modernidade. O discurso da literatura afro-brasileira vem dar
conta destas representações:

414
Os discursos de representação étnica identitária são, em geral,
construídos como consequência das carências e necessidades de
reunião que determinado grupo tem para dar resposta coletiva às
injunções de seus contatos sociais. Escritores contemporâneos têm
enfatizado que a construção de perfis identitários decorre dessa
necessidade de arregimentação de forças e interesses, o que torna esses
perfis estratégicos, relacionais e impossíveis de serem pensados fora de
contextos e injunções da economia do poder. O Brasil do final do século
XX presenciou um intenso fluxo de produção de discursos identitários
de autoria dos chamados grupos minoritários. Poemas, letras de música,
reportagens, contos, depoimentos, ilustram a crescente preocupação
com tema. (SOUZA, 2002, p. 81).

Florentina de Souza publica este artigo em uma coletânea intitulada


Poéticas Afro-brasileiras (2002). Não é inocente o título desta coletânea, se
observarmos os aspectos pontuados por esta pesquisadora: o discurso de
representação étnica, a resposta coletiva, a arregimentação de forças e
interesses, e a autoria de grupos minoritários. A necessidade de criação de um
discurso de representação étnica se faz urgente pelo fato de vozes negras não
ocuparem a posição de sujeitos de suas identidades e dos temas que as
compõe. A resposta coletiva se configura como um corporativismo militante
fortalecido pela palavra literária, palavra é poder, e a literatura afro-brasileira é
uma camada envolvida pela literatura brasileira com a responsável demanda
de registrar temas de uma agenda social discutida e fortalecida por um
movimento negro reivindicador de um lugar de fala muitas vezes negado em
função dos vários racismos impostos por uma ordem colonial de classe ainda
predominante no Brasil. Na esteira deste pensamento, a ficção curta de Mãe
Beata representa também a voz deste grupo minoritário que vê na literatura a
possibilidade de agregar os temas das sabedorias de terreiro ao exercício de
criação escrita de contos didáticos de axé, fortalecendo a camada da literatura
afro-brasileira no tocante ao tema das religiosidades de matriz africana.

1.Sobre Mãe Beata de Yemonjá


Mãe Beata de Yemonjá, nome pelo qual é conhecida Beatriz Moreira
Costa, nasceu em Salvador, Bahia, em 20 de janeiro de 1931, radicando-se em
Miguel Couto, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Ialorixá do Ilê Omi Oju Aro (Casa
das Águas dos Olhos de Oxossi), localizada no Rio de Janeiro, Mãe Beata, por

415
volta de 1980, transformou-se em umas das mais celebradas personalidades do
Candomblé no Rio de Janeiro, principalmente por manter viva na baixada
fluminense toda uma tradição candomblística preservada por uma hierarquia
de ensinamentos passada por Olga de Alaketo, mãe de santo de uma das casas
de candomblé mais famosas de Salvador, na Bahia. Seguindo o ciclo natural da
natureza, Mãe Beata se torna uma ancestral em 27 de maio de 2017, quando é
convocada a viver em mundo muito melhor que o nosso.
No ano de 1997, lançou o livro Caroço de Dendê: a sabedoria dos
terreiros, pela Pallas Editora e em 2004, Histórias que a minha avó contava, pela
Terceira Margem. Contadora de histórias, Mãe Beata não fez mais que relatar as
tradições e heranças da cultura africana. Desde sua infância foi cercada por
descendentes de ex-escravos. Foi uma das integrantes do ICAPRA (Instituto
Cultural de Apoio e Pesquisa às religiões afros), a qual visa a difusão das
heranças e tradições dos povos brasileiros de origem africana, centrando-se,
especialmente, na transmissão religiosa. Mãe Beata lutou demasiadamente por
justiça social, realizou trabalhos com pessoas que convivem com a AIDS, sendo
também conselheira do MIR (Movimento Inter-Religioso), membro do UNIPAX
(que luta pela paz), integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher.
O ato de contar histórias feito por Mãe Beata em seu terreiro é uma
forma de preservar a tradição oral de seus antepassados no sentido de passar os
conhecimentos de terreiro, do mais velho para os mais novos, obedecendo a
uma hierarquia de saber ainda muito preservada em casas de Candomblé no
Brasil. Mãe Beata é, como assinala Reginaldo Prandi (2001, p.30), um dos
significativos nomes de sacerdotisas dos cultos afro-brasileiros que contribui
para o patrimônio escrito dos mitos e ritos ensinados nos terreiros apenas “ de
boca em boca”. Como sacerdotisa de Candomblé Ketu, Mãe Beata vem dar
visibilidade a uma literatura afro-brasileira que se constrói para além de
estruturas de exclusão e de valor, mas sempre respeitando o que se chama “ Lei
do Santo”:
No candomblé e em outras religiões afro-brasileiras, tudo que se faz se
justifica pela chamada lei do santo. Essa lei não está escrita em nenhum
livro, pois o candomblé não conta com escrituras sagradas, nem faz
parte de nenhum corpo normativo sistematizado e único, podendo
416
variar nas distintas nações de candomblé, de terreiro para terreiro, de
situação para situação. Para nortear e justificar suas ações,
comportamentos e práticas rituais, o povo de santo vale-se da lei do
santo, que, apesar de seu caráter difuso e variável, está fundamentado
em rica e complexa mitologia transmitida pela oralidade de geração e
geração (VALLADO, 2010, p. 17)

Como nos mostra Armando Vallado (2010, p. 17) “a lei do santo” é uma
ordem de jurisdição proposta pelo divino e preservada pelos sacerdotes de
religiões de matriz africana. Este conhecimento divino é organizado oralmente
por uma ritualística que se modifica de terreiro para terreiro. Vale esclarecer que
cada terreiro possui uma orientação divina, estabelecida pelo orixá dono da
casa. Podemos observar este aspecto em relação ao nosso corpus de estudo:
Mãe Beata de Yemonjá. Mãe é um título dado a mulher responsável por zelar
pelo axé do terreiro. Yemonjá, neste caso, por o orixá da mãe de santo, é uma
das divindades hierarquicamente responsável pelas diretrizes e funcionamento
do terreiro. É assim que organiza um terreiro de matriza africana pela lei do
santo. Quando concordamos com Florentina de Souza (2002, p. 81) sobre a
resposta coletiva e com Armando Vallado (2010, p.17) sobre a lei do santo,
reforçamos nossa colocação de que Mãe Beata contribui para a agenda social
da literatura afro-brasileira e representa um grupo minoritário, quando publica
seus conhecimentos sacerdotais preservados pela oralidade em forma de
contos. E, para além disso, propõe uma poética afro-brasileira no sentido de
criar uma ficção didática de axé.
São características frequentes ao texto de Mãe Beata de Yemonjá:
narrativas curtas (contos); temas voltados ao universo mítico afro-brasileiro;
atualização de mitos africanos yorubás; intervenção dos deuses yorubás no
cotidiano das mulheres brasileiras de terreiro; linguagem coloquial; metáforas
do cotidiano; uso constante de provérbios; crítica social; relações de gênero
problematizando raça e classe social; condição feminina orientada pelos
arquétipos das deusas da mitologia yorubá:
Depois que os Òrìsà se instalaram em terras africanas, eles se espalharam por
diferentes regiões da Terra, merecendo culto particular e devidamente
adaptados às condições culturais de cada região. Todos estes acontecimentos
ficaram registrados em mitos, histórias e lendas, que passaram a influenciar o
comportamento futuro das pessoas que tinham estas divindades como tutelares
de sua guarda. (BENISTE, 2006, p. 11, grifos do autor).
417
Como afirma José Beniste (2006, p.11) a interferência dos orixás no
comportamento das pessoas é algo inevitável para quem vive sob a guarda dos
deuses yorubas. A adaptação dos orixás às diversas regiões em que se espalhou
é um aspecto que vamos poder observar nas estórias contadas por Mãe Beata.
Nesse sentido, a nossa análise vai contemplar três contos do livro Caroço de
Dendê (2002): O balaio de água; Iyá Mi, a mãe ancestral; e A pena de ekodidé.
Os três contos têm características em comum: os deuses africanos do panteão
yorubá intervêm positivamente no destino de mulheres brasileiras de terreiro
que sofrem com problemas do cotidiano; a voz que narra sempre aparece em
terceira pessoa e assume a performance de contadora de estórias; a
personagem feminina sempre é favorecida por sua obediência aos deuses
africanos; é frequente uma situação imaginária possível para os adeptos dos
cultos afro-brasileiros ( os deuses falam com os seus protegidos, favorecendo
suas vidas em prol do fortalecimento do axé deles na terra, entre outros
aspectos); e sempre há um conhecimento africano a ser passado seja por meio
de um provérbio ou de um parágrafo moralizante.
Um outro aspecto que não deixar de ser mencionado é o modo de narrar
de Mãe Beata de Yemojá. O poder da comunicação que se manifesta em suas
micronarrativas se dá pela forte ligação da Ialorixá com Exu, em função da
forma inusitada com a qual Beatriz Moreira da Costa veio ao mundo:
Minha mãe chama-se do Carmo, Maria do Carmo. Ela tinha muita
vontade de ter uma filha. Um dia, ela engravidou. Acontece que, num
desses dias, deu vontade nela de comer peixe de água doce. Minha
mãe estava com fome e disse “Já que não tem nada aqui, eu vou para o
rio pescar” Ela foi para o rio e, quando estava dentro d’água pescando,
abolsa estourou. Ela saiu correndo, me segurando, que eu já estava
nascendo. E eu nasci numa encruzilada. Tia Afalá, uma velha africana
que era parteira do engenho, nos levou, minha mãe e eu, para casa e
disse que ela tinha visto que eu era filha de Exu e Yemanjá. Isso foi no
dia 20 de janeiro de 1931. Assim foi meu nascimento. (YEMONJÁ, 2002,
p.11, grifos Nossos)

Observe-se que o fato narrado acima por Mãe Beata muito nos informa
sobre seu modo de contar estórias e passar ensinamentos de axé para quem
está na audiência ou na leitura do registro de suas memórias de nascimento. O
nascimento nas encruzilhadas, território de Exu, empodera a força da
418
comunicação e da oratória da Ialorixá. O estourar da bolsa de água dentro do
rio nos justifica o lado maternal da contação de estórias por parte de Mãe Beata.
A presença dos deuses mentores da Ialorixá interveem com toda certeza na
organização didática de suas micronarrativas de axé. Nós nos sentimos
acalentados e enfeitiçados pela sabedoria que emana dos mitos retextualizados
na contação de fatos contemporâneos.
Os contos escolhidos trazem estórias de mulheres protegidas por deusas
yorubás muito conhecidas nos cultos afro-brasileiros desenvolvidos no Brasil.
Yemonjá, deusa das águas salgadas, dos mares e oceanos, a grande mãe dos
orixás. Iyá Mi, a temida mãe ancestral, conhecida nos cultos afro-brasileiros
como deusa impiedosa e colérica aos que tentam ultrapassar seus desígnios.
Oxum, deusa do amor, da riqueza, da fertilidade, da vaidade, da soberania
feminina. Nesta dança de deusas, vamos mostrar como os estereótipos
marginais femininos podem ser desmistificados e pensados a partir de um olhar
decolonizado uma vez que:
As histórias do colonizado e do colonizador foram escritas do ponto de vista
masculino- as mulheres são periféricas, quando aparecem. Embora os estudos
sobre a colonização sob esse ângulo não sejam necessariamente irrelevantes
para a compreensão do que aconteceu com as nativas, devemos reconhecer
que a colonização afetou homens e mulheres de maneiras semelhantes e
diferentes. (OYĔWÙMÍ, 2021, p. 185)

Concordamos com o posicionamento da nigeriana Oyeronké Oyewumi


(2021, p.185) sobre o ponto de vista masculino colonizado. A narrativa de Mãe
Beata caminha em direção análoga ao pensamento da referida socióloga e para
mostrar como a interferência das invasões comprometeram a compreensão dos
homens e mulheres, a voz que narra nos contos da ialorixá assumem um ponto
de vista mulherista, o qual possibilita uma negociação de dilemas por parte dos
homens e das mulheres.
Tanto homens quanto mulheres estão debatendo esta questão, particularmente
no que diz respeito às mulheres Africana em seus esforços para permanecerem
autênticas em sua existência, como a priorização de suas necessidades, mesmo
que estas necessidades não sejam uma das primeiras preocupações da cultura
dominante. A presente questão tem permanecido sempre a mesma: qual é a
relação entre uma mulher Africana, a sua família, a sua comunidade, e seu
desenvolvimento na sociedade atual que enfatiza, em meio à opressão, o
sofrimento humano a morte, o empoderamento da mulher e o individualismo,
sobre os direitos a dignidade e a humanidade? (HUDSON-WEEMS, 2020, p. 37).

419
O agenciamento de discussão a que se propõe Clenora Hudson-Weems
(2020, p.37) se articula perfeitamente com os dilemas expostos nos contos de
Mãe Beata. O termo Africana womanism, traduzido por mulherismo Africana,
vai ganhar força nos estudos africanos sobre a autoria feminina por trazer uma
organização epistemológica e de hierarquia de vozes facilitadora de análises
literárias corporativas ao que propõe um aliança tardia dos gêneros em prol da
disseminação de uma política humanitarista de organização do entendimento
das diferenças de raça, classe e gênero nas academias, templos do
conhecimento ainda amaldiçoados por várias ordens de preconceito,
principalmente quando o gênero se torna um argumento falido para a
segregação da segregação, mitigando a democracia da paz, da união e do
respeito humanitário.

2.A prudência de Yemonjá


No conto Balaio de água, a personagem Tude, filha de Yemonjá, mulher
fiel, dona de casa, boa mãe para os filhos, boa filha para o seu axé, reclama da
brutalidade e da descrença de seu marido para com a vida de filha de santo.
Certo dia, Tude, possuidora de uma fé inabalável e crente que Yemonjá, como
boa mãe para as suas filhas e dominadora dos grandes oceanos, poderia livrá-la
daquela turbulência matrimonial:
“Ela era iniciada e era uma boa filha para o seu axé, mas ele não deixava
que ela cuidasse de suas obrigações na roça de candomblé. Um dia
quando estava apanhando do marido, ela disse a ele:
- Eu carrego água no cesto e você não reconhece.
- Vai apanhar mais por esta mentira, pois ninguém consegue encher um
palácio com água, não é você que vai fazer isso com sua feitiçaria. O dia
em que você conseguir isso, eu me transformo num homem bom-
respondeu o marido. (YEMONJÁ, 2002, p.33, grifos nossos).

Observamos no fragmento acima que a voz narradora mostra Tude


como uma mulher de terreiro fiel aos ritos de sua roça de candomblé, ou seja, é
uma filha de santo que está sempre presente nas obrigações, cerimônias
fechadas e festas para o público em seu terreiro; sempre renova suas
obrigações, fortalecendo sua cabeça e agradando sua mãe Yemonjá, para
quem ela pede socorro e intervenção em relação ao seu marido, o qual, nesta

420
narrativa, representa o machismo, o lugar de poder do patriarcado ainda na
família brasileira, a violência contra a mulher e a intolerância religiosa frente à
crença de Tude, logo aos cultos afro-brasileiros. A intervenção de Yemonjá neste
conto é relevante porque:
O culto aos orixás femininos não se completa sem Iemanjá, a senhora
das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela
que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais
conhecido no Brasil. (PRANDI, 2001, p.22).

Sendo Yemonjá o orixá que rege o equilíbrio emocional e a loucura, além


de dominar as grandes águas, percebemos o motivo pelo qual Tude consegue
alcançar a graça de carregar em sua cabeça um balaio de água sem que uma
gota sequer caia ao chão, fazendo com seu marido incrédulo no poder das
forças da natureza modifique sua opinião em relação ao poder dos orixás,
tornando-se um bom marido para sua esposa e não mais a impedindo de
continuar o exercício de sua fé em sua casa de candomblé. Logo, neste conto
percebemos que a voz narradora nos passa o ensinamento de que não se pode
duvidar das forças que não conhecemos, uma vez que Tude reassumiu o posto
de esposa respeitada em sua casa através de fé em sua mãe Yemonjá, ou seja, as
relações de gênero foram equilibradas pelas mãos da mãe das grandes águas.
Neste conto podemos desenvolver várias reflexões a partir desta
narrativa: família, relações de gênero, fé, obediência e respeito aos princípios
religiosos, o poder do divino, o poder da natureza das águas, a relação da
deusa Yemonjá com os mares, as turbulências familiares quando equilibradas
por uma fé, entre outros temas.

3.A sabedoria de Iyá Mi


O conto Iyá Mi, a mãe ancestral traz como entidade conhecida nos cultos
afro-brasileiros a Iyá Mi Ossorongá, orixá que representa o domínio de todo o
conhecimento, segundo Prandi (2002, p.22) “senhoras do feitiço,
representantes da ancestralidade feminina da humanidade, nossas mães
feiticeiras”. As mães ancestrais são temidas pelos sacerdotes do candomblé
porque sempre estão irritadas e dispostas a destruir, matar e persuadir para o
mal, por manter o segredo da existência humana em suas mãos:
421
Ìyàmi está sempre encolerizada e sempre pronta a desencadear sua ira
contra os seres humanos. Está sempre irritada, seja ou não maltratada,
esteja em companhia numerosa ou solitária, quer se fale bem ou mal
dela, ou que até mesmo não se fale, deixando-se assim em um
esquecimento desprovido de glória. Tudo é pretexto para que ìyàmi
sinta-se ofendida. (VERGER, 1994, p. 19, grifos do autor).

Porém são protetoras das mulheres e não são de todo mal como
proferem os sacerdotes e sacerdotisas de candomblé. No conto agora em tela, a
voz narradora nos conta a história de uma mulher que já velha teve um filho e
na hora do parto morreu. Quando chegou ao céu junto as mães ancestrais
entristeceu-se por deixar o filho na terra sem poder amamentá-lo, foi então que
Iyá Mi falou:
- Olha, nós aqui, quando saímos do mundo, chegamos aqui e temos
que esquecer tudo. Mas como você está assim, triste com seu filho, eu
vou lhe fazer virar uma coruja e você vai se assentar na cumeeira da
casa que foi sua e ficar esperando. Quando não tiver ninguém no
quarto, você vira em uma mulher e amamenta seu filho. Isto acontecerá
todos os dias até que ele fique forte e mais criado. (YEMONJÁ, 2002, p.
41, grifos nossos).

Como podemos notar no fragmento acima, a maternidade é uma


condição que dá poder à mulher, um poder que para os cultos afro-brasileiros
está além da vida e da morte, capaz até de compadecer a ira de um orixá
inconstante com a Iyá Mi. Neste conto, vemos a metamorfose da mulher em
coruja, pássaro que na sabedoria popular representa o mau agouro e o anúncio
de morte, quando rasga a noite com seu canto macabro e fúnebre, só que nesta
micronarrativa a coruja representa uma mãe ancestral que volta ao mundo dos
vivos para amamentar o filho deixado no momento de sua passagem da vida
para a morte. E assim o é para os adeptos do candomblé, quando uma coruja
pousa na cumeeira de uma coisa e aparece de súbito diante de nossos olhos
significa que a Iyá Mi está por perto e quer alguma oferenda de imediato, já
que:
As Iá Mi Oxorongá são as nossas mães primeiras, raízes
primordiais da estirpe humana, são feiticeiras. São velhas mães
feiticeiras as nossas mães ancestrais. As Iá Mi são o princípio de
tudo, do bem e do mal. São vida e morte ao mesmo tempo, são
feiticeiras. São as temidas ajés, mulheres impiedosas. (PRANDI,
2001, p. 348, grifo do autor).

422
Neste conto fica claro que o gênero privilegiado pelas temidas ancestrais
é o feminino pelo poder que a mulher tem de gestar, gerar e amamentar os
filhos que a terra receberá de volta, mantendo vivo o elo imortal entre a vida e a
morte, as duas portas comandadas pela ancestralidade africana, o espaço entre
o ser e o não ser, o saber e o não saber: o desconhecido só conhecido pelas
“mulheres já viveram tudo o que se tem para viver” (PRANDI, 2001, p.348).
Um ponto relevante deste conto é a desmistificação do mal agouro da
coruja. Nem sempre o que parece mau presságio, realmente é. Em muitas
regiões do Brasil, o canto da coruja representa o mau agouro, o anúncio de
morte de um ente querido, a chegada de uma má notícia, entre outras
possibilidades.

4.O capricho de Oxum


O conto A pena de ekodidé traz a divindade Oxum como interventora do
destino de uma filha sua. Oxum é uma das deusas nigerianas mais populares
nos cultos afro-brasileiros pelo fato de presidir o amor e a fertilidade, é dona do
ouro e da vaidade e senhora das águas doces (PRANDI, 2001, p.22). A pena de
ekodidé é um ornamento sagrado ligado à deusa Oxum por representar o
sangue menstrual e por extensão o poder feminino da procriação (LIMA, 2008,
p. 95).
No conto de Mãe Beata, a pena de ekodidé representa o poder feminino
da beleza e da sedução que Oxum concede às suas filhas para favorecê-las em
relação ao fraco e disponível coração do sexo oposto, pois a micronarrativa traz
a história de uma aldeia de mulheres virgens que sob o ensinamento das anciãs
são preparadas para casar com príncipes e se tornarem rainhas. Dentre elas, há
uma jovem considerada desprovida da beleza necessário ao pleito matrimonial,
o que a entristece e concomitantemente ao pai que não terá lucros com
generoso dote dado pelos pretendentes em disputa da mão da feia e jovem
donzela:
A menina ficou muito triste, chorou e foi deitar. Então, chegou uma
mulher muito bonita à sua cama, com uma cuia tampada na mão, e
disse:

423
- Olhe, amanhã é dia dos compradores virem. Eles vêm trazendo um
príncipe para ele mesmo escolher uma mulher. Tem aqui ossum, waji,
obi e ekodidé. Você come o obi e o resto passa no corpo. A pena de
ekodidé você coloca na testa como enfeite. Fique na janela, porém não
diga nada a seu pai, pois ele vai para a roça e não deve saber.
(YEMONJÁ, 2002, p. 43, grifos nossos).

Como se pode notar no fragmento acima, a menina em estado de sonho


sente a presença de uma mulher bonita que a instrui a se embelezar com
elementos sagrados para a ritualística do candomblé. O ossum é um pó extraído
da semente açafrão e possui cor vermelha. No candomblé, o ossum é utilizado
para pintar o corpo e o ventre em homenagem ao nascimento que se faz par o
orixá, assim como em reverência ao poder da sensualidade, da maternidade e
da fertilidade femininas. O ossum trará para a jovem donzela o realce
afrodisíaco e sedutor que lhe falta para encantar o príncipe peregrino em sua
aldeia.
O waji é um pó azul que representa o orixá Ogum, deus da guerra, da
sabedoria e do avanço tecnológico. No candomblé, o waji é passado no corpo
dos iniciados para que todas as demandas e maus agouros não os atinjam,
fazendo com que se tenha êxito em todos os obstáculos enfrentados. No caso
da jovem donzela, ganhar um marido que a faça feliz e traga prosperidade para
a sua aldeia.
O obi é um fruto sagrado que, quando mastigado e passado na pele
energiza o corpo da filha de santo, atraindo ainda a mais a prosperidade. No
caso da jovem donzela, fazendo que com o príncipe se sentisse ainda mais
atraído pelas energias positivas que a circundavam.
A pena de ekodidé representa o poder do orixá em terra, é como se a
própria Oxum estivesse diante dos olhos do povo da aldeia emanando todo o
seu poder feminino de sedução e sensualidade para o príncipe, de modo que
feitiço nenhum pudesse quebrar o encantamento ali depositado:
Todos ficaram boquiabertos e ajoelharam-se em frente à janela,
admirados com tanta beleza e com a luz que emanava da bela
donzela. O pai da menina veio chegando e o príncipe fez a
oferta de casamento. Até o pai ficou admirado com tanta
beleza. O casamento foi no outro dia e, quando ela foi dormir,
sonhou que outra vez chegava junto à sua cama a mulher, que
lhe dizia:- Olha, eu sou Oxum. Você é minha filha! – e sumiu. E a
menina tornou-se princesa. (YEMONJÁ, 2002, p.44).
424
Neste conto mais uma vez é figura feminina é protegida pelos deuses
africanos. Oxum, deusa do amor e da fertilidade, vem trazer a bonança para a
aldeia da jovem donzela que desencantada com sua beleza pressupõe um
futuro não próspero para si. Oxum, contrariando pensamento do pai da jovem
donzela, a faz única princesa da aldeia.
Este conto é oportuno para se discutir sobre preconceito racial e de
gênero. Uma discussão sobre beleza pode ser levantada em sala de aula: beleza
interior e exterior, no sentido de problematizar a beleza espiritual com a beleza
material. Muitas meninas sofrem este tipo de bullying quando não atendem ao
estereótipo da indústria cultural da beleza, por este motivo uma discussão desta
natureza pode render bons frutos.

Últimas Considerações
Claro é constatar que nos três contos aqui estudados a interferência das
divindades femininas africanas está em evidência, tamanho é o comando que as
deusas Yemonjá, Yá Mi e Oxum exercem sobre a voz narrativa que predisposta a
ser conduzida pela força feminina de naturezas cujos domínios impossíveis são
de se controlar deixa o masculino se render ao poder inevitável das deusas
caprichosas e cúmplices do sexo feminino em suas iminentes batalhas com o
sexo masculino, aqui inúteis, perante as senhoras de águas que se tornam
inóspitas frente ao pretenso poder masculino em situações cujos pares
devedores são de uma harmonia tardia que só levará ao sucesso.
Sobre a proteção de Yemonjá, Tude consegue colocar em sua cabeça um
balaio de água sem que uma gota caia sobre o chão, pelo exemplo do equilíbrio
que as águas podem legar quando suas forças não são desafiadas por causa do
mero capricho masculino de achar que sempre está no comando de todas as
coisas. O marido de Tude então se torna um bom marido e entende que o
dogma de sua esposa só traz o bem para o seu lar e sua vida.
Yá Mi em sua plena sabedoria mostra que a maternidade é uma condição
que diviniza a mulher a ponto de fazer com que a mesma ultrapasse os limites

425
entre a vida e a morte para amamentar o filho, ficando a lição de que a
maternidade deve ser respeitada e está acima do bem e do mal.
Oxum vem em socorro de uma filha que não possui os atributos da
beleza peculiares ao estereótipo deste orixá, mas ensina que a beleza feminina é
um encanto que precisa apenas ser realçado pela natureza, uma vez que a
beleza interior é algo apenas contornado pelo divino.
Dessa forma, Mãe Beata de Yemonjá contribui para a Literatura Afro-
Brasileira de autoria feminina, dando visibilidade em seus contos ao universo
mítico e sagrado das religiões afro-brasileiras contextualizado com o cotidiano
das mulheres brasileiras adeptas ao candomblé, religião em que as relações de
gênero estão subordinadas às vontades dos deuses e deusas africanas, os quais
mostram que o exercício da vida ainda é algo que humano está muito longe de
aprender com maestria, uma vez que a sabedoria trazida pelos orixás é algo que
se adquire com a maturidade espiritual e com o exercício da fé.
Os estudos subalternos possibilitam discussões mais densas sobre as
questões de religiosidades imbricadas como as questões raciais, uma vez que a
literatura pode ser um caminho para enfrentar os vários racismos brasileiros e a
sabedoria dos terreiros pode ser uma pedagogia de humanização de
conhecimentos até então só preservados pela oralidade de grupos que
permanecem minoritários em função de uma ordem política hegemônica e
eurocentrada, que insiste em engessar tantas discussões sobre raça, classe e
gênero.

Referências
BENISTE, José. Mitos Yorubás. O outro lado conhecimento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2006.
EVARISTO, Conceição. Poemas de recordação e outros movimentos. Rio de
Janeiro: Malé, 2017.
FERREIRA, Elio. América Negra e outros poemas afro-brasileiros. São Paulo:
Quilomboje, 2014.
HUDSON-WEEMS, Clenora. Mulherismo Africana. São Paulo: Editora Ananse,
2020.

426
LIMA, Luis Felipe de. Oxum: a mãe da água doce. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
OYĔWÙMÍ, Oyĕrónké. A invenção das mulheres. Construindo um sentido
africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do tempo,
2021.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros. Rio de
Janeiro, Pallas, 2002.
SOUZA, Florentina. Discursos identitários afro-brasileiros: O Ilê Ayê. In:
FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lama; FONSECA, Maria Nazareth Soares.
Poéticas Afro-brasileiras. Belo Horizonte: Maza Edições, 2002. p.81-98.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra
Regina GoulartAlmeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2010.
VALLADO, Armando. Lei do santo: poder e conflito no candomblé. Rio de
Janeiro: Pallas, 2010.
VERGER, Pierre. Grandeza e Decadência do Culto de Ìyàmi Òsòròngà (Minha
Mãe Feiticeira) entre os Yorúbà. In: MOURA, Carlos Eugenio Marcondes de. As
senhoras do pássaro da noite. São Paulo. Edusp, 1994.

427
GT 20 - TRADIÇÕES E RELIGIÕES ASIÁTICAS

Prof. Dr. Bruno do Carmo Silva


Doutorando Matheus Landau de Carvalho (UFJF)

Ementa: Há algumas décadas, é claramente perceptível uma certa ausência de


realidades asiáticas nas graduações de Letras, Filosofia e Ciências Humanas do
Ensino Superior brasileiro em geral, principalmente no âmbito do magistério, tanto
como objetos de pesquisa, quanto como referenciais metodológicos de verificação
ou reflexão que transcendem metodologias aplicadas e objetos de estudo
circunscritos apenas às matrizes greco-romana e judaico-cristã. Este aspecto é
importante para a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) pelo fato do interesse pelas
realidades asiáticas terem constituído parte fundamental de seus primeiros
momentos institucionais, pelo menos desde seu fundador formal no século XIX E.C.,
Friedrich Max Müller, estudioso de tradições religiosas da Ásia e editor – e também
tradutor de alguns volumes – da coleção Sacred Books of the East [Livros Sagrados
do Oriente], cinquenta volumes publicados em inglês pela Oxford University Press
entre 1879 e 1910, compostos, entre outros, por fontes védicas, islâmicas, budistas,
daoístas, mazdeístas e jainistas. O objetivo do GT Tradições e Religiões Asiáticas é
reunir pesquisadores/as visando estimular os estudos e o diálogo em torno da
pluralidade de tradições que se desenvolveram na Ásia como um todo, desde a
Capadócia e a Palestina até os arquipélagos filipino, japonês e indonésio. Estes
estudos podem ser compreendidos através: (1) de uma dimensão religiosa,
expressa em práticas rituais e devocionais, narrativas mitológicas, sistemas de
moralidade, projetos soteriológicos e produções artísticas; (2) de uma dimensão
filosófica, identificada na investigação dos princípios metafísicos, ontológicos,
lógicos, éticos e estéticos que caracterizam especulações de caráter cognitivo; e (3)
de uma dimensão histórica, que englobe expressões socioculturais e literárias
genuinamente asiáticas como objeto de análise de metodologias das Ciências
Humanas, como a Sociologia, a Linguística, a Psicologia, a Antropologia, a Ciência
Política, a Teologia, a Geografia, a Literatura e a História. Seja qual for a dimensão
da pesquisa, deve refletir iniciativas contemporâneas de compreensão e/ou revisão
de vários estudos e realidades orientais, com a possibilidade de incluir processos de
transplantação ou transnacionalização cultural, estudo comparado das religiões e
perspectivas de diálogo inter-religioso. Neste sentido, o presente GT é um convite
para o alargamento de horizontes teóricos e epistemológicos no intuito de apontar
para o Homo historicus, o Homo aequalis, o zoon politikon, o Homo linguisticus,
o Homo oeconomicus, o Homo geographicus, o Homo hierarchicus, o Homo
psychologicus, o Homo sociologicus e o Homo religiosus, como possibilidades
paradigmáticas do Homo sapiens sapiens capazes de transcender, no tempo e no
espaço, as matrizes lógico-racionais, linguístico-semânticas e neuro-psicológicas
oriundas do hemisfério ocidental, com vistas ao estímulo dos estudos e do diálogo
em torno da pluralidade de tradições que se desenvolveram no continente asiático.

Palavras-chave: História da Ásia; tradições religiosas asiáticas; tradições filosóficas


asiáticas;

428
MÚSICA COMO ELEMENTO DE INCULTURAÇÃO: APROXIMAÇÕES
COM O IMAGINÁRIO CRISTÃO PELA IGREJA MESSIÂNICA MUNDIAL
NO BRASIL
Breno Corrêa Magalhães
Mestre em Ciências Sociais pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
magalhaes.breno81@gmail.com

Fabiano Muniz Lima


Graduado em Música pela UNIRIO e
professor do Colégio Pedro II
prof.fabianomuniz@gmail.com

Resumo: A transplantação da Igreja Messiânica Mundial, uma Nova Religião Japonesa,


do Japão para o Brasil foi objeto de pesquisas que evidenciaram mudanças na liturgia
de culto (ANJOS, 2012) e em aspecto arquitetônicos; da construção do Solo Sagrado
(RIBEIRO, 2009), categoria nativa que denomina o espaço, sagrado para os
messiânicos, que representaria o protótipo de construção do Paraíso na Terra. O Solo
Sagrado edificado em São Paulo, às margens da represa de Guarapiranga, possui
características próprias quando comparado aos originais idealizados pelo fundador,
Mokichi Okada. Este processo de mudanças pelo qual a IMM passou ao ser inserido
em um novo contexto social é verificado também nas músicas utilizadas nos rituais.
Temos como hipótese que este foi um importante meio de inculturação da fé
messiânica no Brasil o que procuramos demonstrar neste artigo. Para tanto, além de
uma breve revisão bibliográfica sobre as já mencionadas pesquisas sobre a
transplantação da IMM, realizamos uma análise musical dos salmos do fundador. Para
tanto, comparamos os poemas no estilo haiku - composições tradicionais de três versos
com regularidade de 5, 7 e 5 sílabas métricas cada - que são entoados diariamente nos
cultos da igreja no Japão com dois hinos que compõem os cultos mensais de
agradecimento no Brasil: Hino da Luz Divina e Salmo Plano Divino. Desta forma
buscamos evidenciar que não apenas as letras, mas, sobretudo, as músicas, ganharam
acordes e arranjos que as aproximaram do estilo cristão dos hinos de congregação.

Palavras-chave: Igreja Messiânica Mundial, Inculturação Da Fé, Música.

Introdução
A Igreja Messiânica Mundial (IMM) é classificada como uma Nova Religião
Japonesa (NRJ) (MAGALHÃES, 2022, p. 290) não apenas do ponto de vista de
sua breve história, com apenas 87 anos de sua fundação em dia 1º de janeiro
de 1935122,mas, sobretudo, por características de sua doutrina e práticas que
segundo Clarke (2000, p. ;2008, p. 39) são próprias de um milenarismo

122 Disponível em: https://www.messianica.org.br/sobre-a-igreja-messianica. Acesso em 18 de


setembro de 2022.

429
reformista do mundo que vem no bojo social de transformação da sociedade a
que se propõe Novos Movimentos Religiosos (GUERRIERO, 2006, p. 75).
Do ponto de vista litúrgico sua base é xintoísta, religião autóctone do
Japão que em períodos diversos da história japonesa teve o status de religião
oficial do Estado. Quanto a sua doutrina apresenta uma apropriação de valores
diversos da cultura religiosa japonesa, Xinto e Budismo, passando por
elementos cristão e de outras NRJ que foram frequentadas pelo fundador,
Mokichi Okada (TOMITA, 2014, p. 28-30).
Está religião está presente no Brasil desde meados da década de 1950
através do trabalho proselitista iniciado por missionários, sacerdotes ou simples
fiéis, que migraram, de modo autônomo ou com apoio institucional da Sede
Geral da IMM, na quarta fase da migração laboral de japoneses para o país
(TOMITA, 2014, p. 48 -51).
Sua presença no Brasil se espraiou por todo o território nacional
rompendo as barreiras culturais da colônia nipônica ainda nas décadas de 1960
(MAGALHÃES, 2018, p. 101 - 104) tendo alcançado grande crescimento no
número de fiéis entre brasileiros nas décadas seguintes, 1970 e 1980, período
este que qualificado por Magalhães (2020, p. 45) como “a época de ouro da
Igreja”.
Sua presença no Brasil foi amplamente pesquisada, especialmente na
década de 1990 e início dos anos 2000, sob vários aspectos possíveis.
Inicialmente este interesse foi decorrente de seu expressivo crescimento fora de
seu país de origem e como marca da presença da religião e cultura japonesa no
Brasil (WATANABE, 2001; MATSUOKA, 2004, 2007). Trabalhos posteriores,
conduzidos por pesquisadores insiders, ou seja, ministros de culto religioso da
IMM que buscaram qualificação acadêmica, dedicaram atenção ao processo de
transplantação religiosa sob várias perspectivas: do cultos e procedimentos
litúrgicos (ANJOS, 2016), da concepção e construção em São Paulo do Solo
Sagrado, segundo a Messiânica protótipo do Paraíso na Terra (RIBEIRO, 2011);
das recomposições identitárias (TOMITA, 2014) e da presença desta instituição

430
no campo religioso sob a ótica da teoria da mundialização de Renato Ortiz
(RAFFO, 2010).

1. Música e religião, no ocidente e no oriente


A música faz parte do rito religioso da IMM, embora não haja no Japão o
canto congregacional como no ocidente. A música nos rituais messiânicos se
apresenta nos estilos tradicionais nipônicos que estão presentes no Xintoísmo.

1.1. Relação entre religião e música no Japão


O “shōmyō” (声明), traduzido por afirmação, declaração, ou ainda,
indicação, é uma arte de canto que veio da China no século VIII, no período
Nara (710 – 794), e consiste na técnica de composição e canto para os sutras
budistas. Esta arte chegou ao Japão através de viajantes chineses e de
missionários budistas japoneses que iam até a Ásia Continental,
“particularmente ao monastério de Yushan, para aprender as devidas técnicas
de louvor a Buda por meio do canto” (CHIARELLI, 2015, p. 34).
Um outro canal pelo qual a música se faz presente na tradição xintoísta é
por meio do “gagaku” (雅楽), termo que em português pode ser traduzido por
“música elegante, correta ou refinada” (CHIARELLI, 2015, p. 36). Esta pode ser
definida genericamente como música tradicional japonesa, tributária das
culturas chinesa e coreana:
O Japão tem uma das tradições musicais mais ricas do
mundo. A escuta dos nativos japoneses se aguçou
continuamente pela importação de músicas e
instrumentos da Península Coreana desde o século V e
da China entre os séculos VII e IX. Em 701, o Japão
estabeleceu o Gagakuryō, primeiro órgão oficial de
música, dedicado a apresentações de gagaku nos rituais
e cerimônias da corte. Muitos dos instrumentos
tradicionais usados atualmente, como biwa e koto,
foram importados como parte das orquestras de
gagaku e posteriormente adaptados à cultura japonesa
onde desenvolveram extensivamente seus próprios
repertórios.” (LEVY, 2021 apud SEIHA, 2016, p. 46).

Essa música tradicional japonesa entra no Xintoísmo através dos grandes


festivais celebrados na religião, ocasiões que movimentam verdadeiras
multidões aos templos com desfiles de alegorias coloridas nas ruas e muita
431
música. Pode-se dizer, portanto que, o “shōmyō” seria a “música litúrgica” do
Xintoísmo e o “gagaku” seria uma espécie de “música cerimonial”123, que, apesar
de sê-la, não é agregada às celebrações.

1.2. Breve comparação da musicalidade ocidental e oriental


A música japonesa, aos ouvidos ocidentais, tem sonoridades e timbres
muito peculiares. Isso se deve não apenas aos seus instrumentos e o processo
de construção destes que envolvem outros materiais e técnicas que diferem dos
que são encontrados na europa, mas, também, das escalas musicais utilizadas.
No Ocidente, usa-se basicamente duas escalas baseadas no modelo
diatônico, espaço de oito notas sendo a última a repetição da primeira num
registro mais agudo, caracterizando o intervalo de uma oitava. O espaço dessa
oitava é dividido entre intervalos de cinco tons e dois semitons, sendo padrão o
modelo da escala de do maior e o da escala de la menor.
Esses modelos, com as suas possíveis combinações de notas e
intercâmbios entre um modo (maior ou menor) e outro, são possíveis de serem
formados tomando por base qualquer uma das doze notas musicais originando
escalas nesses mesmos padrões a partir delas. A partir das notas das escalas,
também se geram acordes que se interrelacionam dando origem ao que se
chama de harmonia. Dentro das possibilidades que a harmonia abre para a
música no Ocidente está a homofonia e a polifonia124. A todas essas
possibilidades, a teoria musical ocidental chama de sistema tonal.
Já no oriente, usa-se uma infinidade de escalas e sem o temperamento
por igual125, característica primordial da música ocidental. Além disso, usam-se,

123 Optou-se, neste trabalho, chamar o gagaku de “música cerimonial” devido ao fato de esta
música estar presente não apenas nos festivais xintoístas, mas também, nas cerimônias e ritos de
Estado do Império japonês.
124 Segundo o “Dicionário Grove de Música (versão concisa)”, a homofonia vem do grego e quer

dizer “mesma sonoridade” ou literalmente, vozes ou instrumentos soando juntos. Sendo que,
originalmente é aplicado ao canto em uníssono (para o qual hoje prefere-se o termo
monofonia). Em oposição à polifonia, também derivado do grego, que significa “vozes
múltiplas” e são duas ou mais linhas melódicas independentes que soam simultaneamente se
combinando (SADIE, 1994).
125 O chamado temperamento por igual é o tratamento dado à divisão da oitava em doze

semitons iguais.
432
primordialmente, escalas de cinco notas (chamadas de pentatônicas) ao invés
das de sete usadas no ocidente. As possibilidades de intercâmbios e
combinações são mais fluídas e vão por caminhos melódicos e harmônicos mais
abertos. A relação entre as notas é menos estanque e funcional do que no
sistema tonal do ocidental, que o classifica como sistema modal126. Para além
disso, a música oriental é monofônica e heterofônica127.
Na música tradicional nipônica, existe uma variedade de possibilidades
de escalas. Na música shōmyō, há pelo menos três escalas: ryo, ritsu e hanryo
hanritso. Essas escalas têm cinco sons principais fixos e dois auxiliares que são
alterações das principais. Já na música gagaku há mais possibilidades. Usa-se
três variações da escala ryo, três da escala ritsu e mais os doze sons da escala
cromática chinesa; porém esta última, não utiliza, como já dito, o temperamento
por igual do ocidente.
Vale a pena destacar que há um ponto de contato entre as duas
tradições - Ocidental e Oriental - que é a música a serviço do texto; ou seja, a
divisão métrica da letra da música é aproximada do ritmo da fala.
Posteriormente, no Ocidente, principalmente por aproximação do universo da
música e da dança, a divisão métrica passará a ser mais rígida e regular
organizada em compassos128 regulares podendo ser, em princípio, binário (dois
tempos), ternário (três tempos) e quaternário (quatro tempos), devendo as
sílabas tônicas, preferencialmente, estar em tempo ou parte forte do compasso.
A esta observância quanto à coincidência do tempo (ou parte) forte do
compasso com a sílaba tônica de uma palavra, chama-se de prosódia.

126 O sistema modal é baseado em vários modos com uma vasta gama de possibilidades. O
modalismo está presente em várias culturas do mundo, inclusive na brasileira que usa, de
maneira muito peculiar, os sete modos gregos trazidos pelos conquistadores europeus.
127 Segundo o “Dicionário Grove de Música (versão concisa)” são variações simultâneas de uma

única melodia. Seu significado pode ir desde a referência a ínfimas discrepâncias na execução
em uníssono, até a uma escrita contrapontística complexa. Aplica-se a boa parte da música vocal
acompanhada do oriente próximo e do extremo oriente, onde um instrumento fornece uma
versão ornamentada de uma parte vocal (SADIE, 1994).
128 Segundo o “Grande Dicionário Houaiss”, compasso é a divisão da pauta musical em partes

iguais, separadas por barras (ditas barras de compasso), cada parte contendo o número de
tempos (2, 3 ou 4), indicado pelo numerador de uma fração ( fração de compasso) localizada no
início da peça musical, após a clave (COMPASSO. In: Grande Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro,
2022. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-
0/html/index.php#4. Acesso em 13/11/2022.)
433
Isto posto, sem desmerecer a riqueza do universo de aproximadamente
1500 anos de música ocidental129, podemos afirmar que, não apenas pela teoria
musical, mas por sua própria historicidade, a música japonesa de uso artístico ou
religioso é algo extremamente complexo que requer estudos mais
aprofundados com vistas a compreendermos toda a sua riqueza cultural, social
e histórica.

2. A doutrina Messiânica sobre o Belo


A música na IMM é um dos elementos constituintes da religião.
Doutrinariamente, não somente ela, mas também outras linguagens artísticas
são tidas importantes para o fundador
No Japão, as manifestações artísticas tiveram início com a arte
budista. Eram pinturas, esculturas e tecelagens mais simples. [...]
No que se refere à música, entre outros, existiam instrumentos
tais como sho, hitiriki, mokugyo e dora, e entoações obtidas por
meio da leitura dos sutras budistas. [...] A propósito, não deve
existir, ou melhor, nunca houve uma religião que desse tanta
importância à arte quanto a religião messiânica. Isto porque, o
Paraíso Terrestre - finalidade última da nossa religião -, é o
Mundo da Arte. [...] Nesse sentido, muito mais do que ser
apreciada, a arte se tornará indissociável da vida cotidiana e
amplamente desenvolvida. Em outros termos, o Paraíso
Terrestre será o Mundo da Arte. (MEISHU-SAMA, 2019, p. 82-
83).

Segundo os ensinamentos da Messiânica “o propósito final da fé é a


formação de seres humanos perfeitos” (MEISHU-SAMA, 2018, p. 60), ou seja,
cujos pensamentos, palavras e atitudes sejam reflexos da bela interior de ser
sentimentos. Este é o meio, segundo o fundador, para que a humanidade
concretize a construção do Paraíso Terrestre, ou em outros termos, o Reino dos
Céus na Terra:
O Paraíso Terrestre a que costumamos nos referir é, em termos
mais claros, o mundo do belo. Em relação ao ser humano, é o
belo dos sentimentos, ou seja, a beleza interior. Naturalmente,
suas palavras como seu comportamento devem ser belos. Isso
vem a ser o belo individual e, de sua expansão, nasce o belo

129 Pode-se dizer que, de alguma forma, o estabelecimento oficial da História da Música
Ocidental se dá na Idade Média no século IV, quando o cantochão se estabelece como o “meio
correto” de fazer música na cristandade. Essa forma de fazer música que, posteriormente no
século V, tem sua tradição registrada e a partir do século VI sistematizada com o Papa Gregório I
(590 - 604) e um dos seus sucessores, Papa Vitalino I (657 - 672).

434
social, isto é, o relacionamento entre as pessoas se torna
harmonioso. As casas, as ruas, os meios de transporte e as
praças públicas se tornam ainda mais belos. É natural que a
limpeza acompanhe o belo. Portanto, em uma escala maior,
tanto a política como a educação e as relações econômicas
devem tornar-se belas e transparentes, da mesma forma que as
relações diplomáticas entre os países (MEISHU-SAMA, 2019, p.
73-74).

3. Música como elemento de inculturação


Inculturação da fé é um conceito teológico cristão utilizado para explicar
a necessidade de adaptações na forma pela qual uma religião se propaga em
contextos culturais distintos daquele na qual esta tradição teve início. Segundo
Magalhães (2018, p. 27),
No coração das religiões, onde pulsa o cerne da mensagem salvífica
de Deus que cada uma delas revela, a tradição passa a conviver com a
diversidade especialmente quando esta instituição experimenta o
trabalho missionário de proselitismo em espaços geográficos e
culturais que não aqueles nos quais esta religiosidade nasceu.
O trabalho missionário é, neste aspecto, o que se poderia definir como
um verdadeiro laboratório da práxis religiosa, no qual podem, em
dados momentos, confrontar-se realidades culturais aparentemente
opostas: do missionário e do povo evangelizado.

Este conceito ganhou maior importância a partir do Concílio Vaticano II,


período de aggiornamento da Igreja Católica que passa a valorizar o
ecumenismo e a “riqueza que significam para a unidade católica as igrejas
particulares com suas respectivas tradições” (MIRANDA, 2001, p. 26).
Em nossa pesquisa optamos pelo uso desta categoria utilizando-a em seu
aspecto sociológico, ou seja, instrumentalizando para análise do processo de
adaptação das músicas e seu uso litúrgico na IMM. Dentre outros, encontramos
três aspectos determinantes na opção pela inculturação, a saber: [1] a categoria
dá ênfase ao papel desempenhado pelas culturas no processo de expansão
territorial de atuação das instituições religiosas; [2] quando aborda aspectos
como a experiência de Deus valoriza uma leitura em uma perspectiva
antropológica e por ser uma [3] fecunda para reflexões sobre diálogo inter-
religioso e tolerância religiosa.

435
Na liturgia de cultos da IMM no Japão, cotidiana e de datas especiais, são
entoados poemas do estilo haiku compostos pelo fundador130. Haiku são
poesias japonesas curtas cuja forma básica são três frases de 5, 7 e 5 sons cada.
A poesia japonesa não conhece a rima nem a versificação com
acentos e seu recurso principal, como a francesa, é a medida silábica.
Esta limitação não é pobreza, pois é rica em onomatopeias,
aliterações, jogos de palavras que são também combinações insólitas
de som e significado. Todo poema japonês é composto por versos de
sete e cinco sílabas; a forma clássica consiste em um poema curto –
waka ou tanka – de trinta e uma sílabas, divididos em duas estrofes: a
primeira de três versos (cinco, sete e cinco sílabas) e a segunda de dois
(ambos de sete sílabas) (PAZ apud TAVARES, 2019, p. 22).

Os versos são entoados por meio de uma melodia lenta e ritmada que
não gera qualquer efervescência coletiva na congregação (comunidade de
culto). Com a chegada da IMM no Brasil a utilização destes poemas tornou-se
gradualmente uma dificuldade, fosse no uso na língua original ou nas tentativas
de tradução que revelam desafios sejam do ponto de vista semântico da escolha
das palavras quanto de sua sonoridade fonética. Dito em outras palavras,
traduzir os poemas utilizados nos rituais implicava ajustes na composição
musical utilizada para recitação.
Um personagem central neste processo de inculturação pela música foi o
maestro Guilherme Wolf Schaia. Por sua sugestão, por exemplo, a igreja passou
a “utilizar a oração cristã, que, na época, a maioria da população compreendia.
Assim, foi introduzida, no final da década de 1960, a oração do ‘Pai Nosso’ nos
cerimoniais litúrgicos” (MAGALHÃES, 2018, p. 116).
Segundo Magalhães (2018, p. 116) outros aspectos são os salmos que no
Brasil, ganharam a entonação semelhante aos hinos cristãos. Este trabalho é
atribuído aos precursores dos corais messiânicos: Wolf Schaia responsável no
período de 1965 a 1969 e por Dalila Fernandes Alcântara responsável de 1969
a 1974 (ANJOS, 2016, p. 48).
De Schaia a IMM utiliza até hoje em seu repertório litúrgico o Hino da Luz
Divina. Já em relação ao trabalho de Dalila Alcântara a maior contribuição foi a

130 Um exemplo dos salmos entoados pode ser observado no link disponível em:
https://www.youtube.com/clip/UgkxHUXq9dv7rofS6jBP_kRlx7MZCkPrRxgK . Acesso em 11 de
novembro de 2022.

436
adaptação musical do denominado “Salmo 18 – Plano Divino” que é cantando
nos cultos mensal de gratidão nas unidades da Messiânica e no Solo Sagrado de
Guarapiranga131. Para tanto, ela fez adaptações de um texto de Meishu-Sama a
uma melodia de origem sueca, de domínio público (LUPERI, 2011, p. 28)
amplamente utilizada em cânticos de congregações cristãs no Brasil.
Tanto o “Hino da Luz Divina” como o “Salmo 18 – Plano Divino” seguem
a estrutura musical ocidental conforme explanado anteriormente: sistema tonal
e escala de oito notas no padrão diatônico. Do ponto de vista da prosódia, as
composições seguem uma métrica padrão no compasso binário (“Hino da Luz
Divina”) e no compasso quaternário (“Salmo 18” - Plano Divino). Além disso,
ambas composições estão no formato estrófico - a música alterna-se em duas
melodias diferentes que se alternam. Sendo a primeira melodia sempre
mudando de letra a cada repetição e a segunda melodia, sempre com a mesma
letra, que é chamada comumente de refrão ou de estribilho.
Notadamente, em nosso país, a presença da música nos cultos da IMM
tomou matizes das tradicionais músicas de congregação que, quando reunida,
segundo Durkheim (2008, p. 270-271), “conduz rapidamente a um grau
extraordinário de exaltação [...] e cada sentimento expresso vem ecoar, sem
resistência, em todas essas consciências largamente abertas às impressões
exteriores”. Esta efervescência coletiva, como definiu o autor, se manifesta, por
exemplo, em cantos e danças.

Conclusão
Neste artigo procuramos demonstrar parte do processo de inculturação
da IMM, ocorrido com a chegada da religião ao Brasil. Para tanto, analisamos as
adaptações que as músicas utilizadas nos cultos e rituais da Messiânica sofreram.
Inicialmente percorremos brevemente a trajetória de pesquisas realizadas
sobre a IMM até o presente. Nesta revisão bibliográfica mencionamos as
pesquisas sobre a transplantação da religião, a saber: a de Anjos (2012) que

131O Hino e salmo entoados durante o culto no Solo Sagrado de Guarapiranga pode ser
observado no link disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kPANevhmtas&t=5151s .
Acesso em 11 de novembro de 2022.

437
evidenciou as mudanças na liturgia de culto e a de Ribeiro (2009) sobre
mudanças de aspectos arquitetônicos da construção do Solo Sagrado de
Guarapiranga quando comparado aos protótipos idealizados pelo fundador no
Japão.
Apresentamos um breve histórico sobre a música e sua relação com as
religiões tradicionais do Japão: Xintoísmo e Budismo. Neste item expusemos as
diferenças, do ponto de vista da teoria musical, entre composições ocidentais e
orientais.
Por fim, nosso trabalho propôs uma comparação entre o uso dos poemas
no estilo haiku - composições tradicionais de três versos com regularidade de 5,
7 e 5 sílabas métricas cada - que são entoados diariamente nos cultos da IMM
no Japão, ao passo que no Brasil este passam por adaptações semânticas na
tradução e musicais na composição de novos arranjos e músicas para seu uso
nos cultos. Os dois casos singulares apresentados foram o Hino da Luz Divina e
o Salmo 18 - Plano Divino.
Desta forma buscamos evidenciar que não apenas as letras, mas,
sobretudo, as músicas, ganharam acordes e arranjos que as aproximaram do
estilo cristão dos hinos de congregação. Certamente este é um tema para o qual
permanece uma grande lacuna de pesquisas que conciliem, do ponto de vista
musical, uma análise técnica aliada a reconstrução histórica deste processo de
inculturação da fé Messiânica ao Brasil.

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440
UM BARCO PARA TODOS: A ABRANGÊNCIA DA PRÁTICA DE
BHAKTI-YOGA NA BHAGAVAD-GITA
Caio Cézar Busani
Mestrando em Ciência da Religião – UFJF
caiobusani@gmail.com

Resumo: A Bhagavad-Gita, que pode ser traduzida como a Canção do Senhor, é um


trecho de um dos mais extensos épicos da humanidade, o Maha Bharata, que possui
cerca de 100.000 versos (Dharma, 2016). Ela consiste no diálogo entre o príncipe-
guerreiro Arjuna e seu amigo e primo Krishna (um avatara, encarnação na Terra do
Deus Vishnu) momentos antes da batalha de Kurukshetra, onde Arjuna e seus irmãos,
os Pandavas, guerreiam pelo trono da Índia contra seus primos malignos, os Kauravas.
O diálogo acontece, pois, o príncipe se vê confuso pouco antes da grande guerra, sem
saber se o que está fazendo é correto ou não. Aqui, irei usar como fonte a versão da
Gita traduzida e comentada por Bhaktivedanta Swami Prabhupada, fundador do
popularmente conhecido Movimento Hare Krishna. Focarei a análise no capitulo 12,
intitulado “Bhakti-Yoga”, traduzido como “Serviço Devocional”. Este capítulo é
conhecido por ter como tema principal a questão da fé e da devoção em relação ao
divino (Krshna). Logo, Bhakti-yoga pode ser entendi como o caminho de (re)conexão a
Deus, através do amor. Demonstro que para Prabhupada (e toda a linhagem que ele
representa), esse amor não se estabelece simplesmente através de um sentimento, mas
sim através de práticas performáticas, que visam expressar e refinar os sentimentos
relacionais (rasa) com Krshna (Loundo, 2021). Deste modo, o serviço devocional é um
processo, um método de se aproximar de Deus, a partir de um sentimento amoroso
que é criado, mantido e desenvolvido ao se relacionar com Ele, seguindo as regras e
regulações dos mestres desta tradição. Tais regras e regulações são específicas, porem
o processo se dá de maneira abrangente e acolhedora, respeitando o tempo e a
capacidade de cada praticante. Mostro, segundo alguns versos do capítulo 12, como o
processo de bhakti busca integrar todos aqueles que querem fazer parte dele, mesmo
com determinadas limitações individuais.

Palavras-chave: Bhakti-Yoga; Hare Krishna; Devoção; Rasa; Vedanta.

Introdução
A Bhagavad-Gita, que pode ser traduzida como a Canção do Senhor, é
um trecho de um dos mais extensos épicos da humanidade, o Maha Bharata,
que possui cerca de 100.000 versos (Dharma, 2016). Ela consiste no diálogo
entre o príncipe-guerreiro Arjuna e seu amigo e primo Krishna (que também é
uma encarnação na Terra do Deus Vishnu) momentos antes da batalha de
Kurukshetra, onde Arjuna e seus irmãos, os Pandavas, guerreiam pelo trono da
Índia contra seus primos malignos, os Kauravas. O dialogo acontece, pois, o

441
príncipe se vê confuso pouco antes da grande guerra, sem saber se o que está
fazendo é correto ou não.
Ele então pede ajuda a Krishna que começa a aconselhá-lo e instrui-lo.
Este, por sua vez, vai tirando as dúvidas de Arjuna sob a luz do conhecimento
presente nas principais literaturas sagradas indianas, como os Vedas e
Upanishads, a fim de ajudá-lo em suas questões que dizem respeito não só a
batalha e a situação daquele momento, mas a problemas maiores da existência
humana, (Chandramukha Swami, 2011) a partir dos principais aspectos da
filosofia indiana, explicando sobre elementos como a alma eterna (Jivatma), a
ação e os deveres que todos possuem dentro da criação (Karma e Dharma), o
mundo material o qual habitamos (Prakriti), a natureza do Divino (Isvara) e
como se relacionar com ela se libertando do ciclo de reencarnações (Moksa).
A Bhagavad Gita foi escrita entre os séculos V e II a.C., segundo alguns
especialistas. Porém sua tradição oral se perde no tempo. (Resnick, 2015).
Devido alguns elementos do MahaBharata, é possível datar seus
acontecimentos de aproximadamente 3000 anos antes de Cristo. A compilação
e seu primeiro registro escrito, foi feito pelo sábio Vyasa Deva, uma figura
histórica do hinduísmo, responsável por escrever dentre outros historias e
tratados filosóficos, para que os mesmos não se perdessem com o tempo, e
tivessem sua versão escrita como forma de manter estas narrativas vivas.
Interessante perceber que tal atitude se deu principalmente devido ao
calendário universal hindu das Eras cósmicas, ou Yugas, que medem os
momentos que toda a criação passa, como estações universais. Com o começo
da última Era (Kali Yuga) que é responsável pela degradação e fim do nosso
mundo, os conhecimentos dos Vedas seriam perdidos e haveria a necessidade
de escrevê-los, já que os homens não mais conseguiriam decorá-los e passá-los
adiante, como era feito, seguindo a tradição oral. Embora seja importante
frisar que as linhagens e tradições indianas continuam com seu caráter de
transmissão de conhecimento oral como principal característica destas
religiosidades, porém tendo agora os textos impressos como auxilio nesta

442
transmissão. Mas a relação mestre e discípulo se mantêm, e até hoje é
incentivada e colocada como essencial.
Se tratando de uma religiosidade comentarial, ou seja, a partir dos
comentários e apontamentos de certos mestres e santos importantes da historia
da Índia a respeito dos textos e práticas sagradas, é que se formaram linhagens
de conhecimento e transmissão desta sabedoria, é necessário que eu deixe
claro qual destas linhagens estou tomando como base para a apresentação e
argumentação deste trabalho. Aqui falarei a partir da ótica do vaishanvismo
gaudiya, que tem como seu principal fundador o santo Caitanya Mahaprabhu.
No entanto, esta tradição foi popularizada no ocidente graças aos trabalhos de
Bhaktivedanta Swami Prabhupada, fundador da ISKCON, a Sociedade
Internacional para Consciência de Krishna. Ele chega em Nova York no ano de
1965, era um monge renunciante de 70 anos de idade que veio para o
Ocidente com o intuito de divulgar a filosofia védica, seguindo as ordens de seu
mestre espiritual (GOSWAMI, 2014).
Logo depois de um ano nos EUA ele funda a ISKCON, que popularmente
é chamada de Movimento Hare Krishna. Nesse período histórico temos a
efervescência da contracultura quando jovens passam a questionar a sociedade
da época e procurando por alternativas de vida, pensamento e crença
diferentes das que lhes eram apresentadas. Isso gerou uma busca da juventude
pelos conhecimentos orientais como um todo (Guerriero, 2016). Esse foi um dos
principais motivos do sucesso do Movimento Hare Krishna e da divulgação das
filosofias orientais, e consequentemente, da Bhagavad-Gita.
Swami Prabhupada escreveu diversos livros e traduções, entre eles a
“Bhagavad Gita: Como ele é” (1968). O diferencial dessa versão, é que o Swami
fez questão de colocar o texto em todos os versos com o original em sânscrito, a
tradução palavra por palavra, a tradução do verso inteiro e ainda uma
explicação em cada verso, escrito por ele. Com a disseminação e crescimento da
ISKCON, hoje o Bhagavad Gita de Prabhupada é a versão traduzida para o
maior número de idiomas do mundo, chegando à marca de 50 idiomas.

443
1.Prática e Devoção na Gita
Muitos temas e aspectos podem ser observados e analisados no texto da
Gita. Ao longo dos seus versos, Krishna e Arjuna discutem sobre diferentes
temas e varias perspectivas são levantadas, tomando obviamente como base o
pensamento metafisico daquilo que chamamos de hinduísmo, em toda a sua
pluralidade.
Para este trabalho, irei dar especial atenção ao capitulo 12, intitulado
“Bhakti-Yoga”, que é traduzido por Prabhupada como “Serviço Devocional”. Este
capitulo é conhecido por ter como tema principal a questão da fé e da devoção
em relação ao divino (Krishna). Outros autores inclusive vão traduzir bhakti
como devoção, amor ou fé (Ariera, 2016). Logo, Bhakti-yoga pode ser entendi
como o caminho de (re)conexão a Deus, através do amor. Porém é importante
frisar que para Prabhupada (e toda a linhagem que ele representa), esse amor
não se estabelece simplesmente através de um sentimento, mas sim através de
práticas performáticas, que visam expressar e refinar os sentimentos relacionais
(rasa) com Krishna (Loundo, 2021). Deste modo, o serviço devocional é um
processo, um método de se aproximar de Deus, a partir de um sentimento
amoroso que é criado, mantido e desenvolvido ao se relacionar com Ele,
seguindo as regras e regulações dos mestres desta tradição.
Este aspecto do método, a maneira pela qual os integrantes deste
processo vão alcançar seu objetivo espiritual final, é de fundamental
importância para entendermos a tradição do vaishnavismo gaudiya, e também
demais religiosidades que tem como sua origem o subcontinente indiano. Aqui,
podemos compreender melhor o que já foi dito anteriormente sobre a
importância da relação mestre e discípulo. O mestre é aquele que já viveu por
um longo tempo o processo (ou até já alcançou o objetivo final), e agora se
coloca como um professor deste método para os mais novos que chegam e
querem adentrar nestes caminhos.
Logo que pensamos em um processo, podemos dizer que alguns
requisitos são necessários para se iniciar neste caminho. Também é logico
pensar que algumas características e comportamentos são esperados daqueles

444
que estão praticando este método no nível de novatos, intermediários e os mais
avançados. Ou seja, é preciso se comportar de uma certa forma e ter certos pré-
requisitos para o inicio da prática deste método espiritual, assim como é
esperado que algumas qualidades apareçam naqueles que já estão introduzidos
nele a mais tempo.
No inicio do capitulo 12, logo no seu primeiro verso, Arjuna pergunta a
Krishna quem são os melhores entre aqueles que o adoram. Podemos dizer que
a duvida de Arjuna é justamente sobre como são aqueles que estão de fato
praticando este processo . A partir do verso 8 do capitulo, Krishna começa uma
explanação sobre como se deve chegar até ele e manter o contato, a conexão
constante. “Fixe sua mente em Mim, a Suprema Personalidade de Deus, e ocupe
toda a sua inteligência em Mim. Assim, não haverá dúvida alguma de que você
viverá sempre em Mim” (Bhagavad-Gita, c.12 v. 8).
O interessante aqui e nos versos seguintes, é que Krishna começa a
traçar, do objetivo final até os passos iniciais (da conclusão ao inicio), alguns dos
requisitos e comportamentos fundamentais para aqueles que desejam praticar
este método espiritual. Este verso 8, segundo os comentários de Srila
Prabhupada, se refere a alguém que já está em um nível mais profundo do
processo. Ao ler isso, um novato poderia até desanimar de sua prática. Mas
Krishna continua no verso seguinte: “se você não pode fixar sua mente em Mim
sem se desviar, então, siga os princípios reguladores que fazem parte da bhakti-
yoga” (verso 9).
Aqui ele começa a demonstrar como esta Yoga do serviço devocional
possui etapas, como qualquer processo. Enquanto não chega ao ponto de estar
sempre focado em Deus, como o verso 8 sugere, o praticante pode seguir as
regras do método. São esses chamados princípios reguladores, que irão
preparar o individuo como um todo (corpo, mente e alma) para compreender
os passos seguintes, e desabrochar as qualidades necessárias nele.
No entanto, ainda assim, aqueles que não se sentem aptos ou
disciplinados de alguma forma a seguir tais regulações, ainda tem uma opção
neste caminho. No verso 10, Krishna afirma que aquele que não consegue

445
seguir estas regras, pode agir por ele (karma), ou como traduziu Prabhupada,
pode trabalhar para Deus. Neste sentido, aqueles que ainda não querem (ou
não podem) seguir certas regulações, podem ajudar de forma prática a
pregação e divulgação deste serviço devocional. Desde ajudar a limpar templos,
ou fazer algum tipo de doação por exemplo, é dito que toda ação/trabalho feito
em direção a ajudar a organização dos processo práticos de bhakti-yoga é uma
forma de conexão com Deus. Como diz Prabupada no comentário do verso 10:
“Este serviço voluntário em prol da consciência de Kṛṣṇa o ajudará a elevar-se a
um estado mais sublime de amor a Deus, e nesse ponto ele se torna perfeito.”
(PRABHUPADA, p. 438, 2017).

Ainda assim, podemos imaginar que alguém, simpático a esta


religiosidade, pode não se sentir apto, ou não ter a oportunidade, nem mesmo
de colaborar a partir destas ações práticas. Ou se alguém, que não tem muito
interesse pelo processo de serviço amoroso a Deus, mas que acaba fazendo
boas ações em prol de outras pessoas, deixando de lado tendencias egoístas, e
se preocupando com os demais. Semelhantes atitudes positivas dão ao
individuo a qualificação de se aproximar do serviço devocional, mesmo que aos
poucos. Como está no verso 11: “Se, entretanto, você é incapaz de trabalhar
nesta Minha consciência, então, tente agir renunciando a todos os resultados
de seu trabalho e procure situar-se no eu”.
Por fim, no verso 12, Krishna dá uma ultima opção, para aqueles que não
se encaixam em nenhum das opções já mencionadas. Muitos podem achar que
não há possibilidade para uma pessoa avançar em direção ao objetivo final de
um processo, se este não estiver de fato inserido no processo. No entanto,
Krishna explica que mesmo a pessoa que não pratica nada que foi falado
anteriormente por Ele, pode se situar na busca por conhecimento, que
gradualmente, irá levá-lo até o objetivo final, a relação intima com Deus.
Portanto, mesmo aqueles que não estão inseridos dentro do método de bhakti,
irão, através do conhecimento, purificar suas consciências e inteligencia, ao
ponto de que, em um dado momento, se sentirão atraídos e até mesmo aptos a
praticar o método espiritual.
446
O capítulo segue com descrições daqueles que estão em um nível
avançado dentro da prática, tendo alcançado não só um comportamento
equânime frente as adversidades e mudanças da vida, como também se
mantêm constantemente conectados a Deus. Por fim, o último verso encerra
esta passagem com a seguinte mensagem que demonstra que aqueles que
verdadeiramente se dedicam a este caminhos espiritual, alcançam seu objetivo
de comunhão continua com Krishna: “Aqueles que seguem este caminho
imperecível do serviço devocional e que se ocupam com plena fé, fazendo de
Mim a meta suprema, são muitíssimo queridos por Mim” (verso 20).

Conclusão
Entendendo que a espiritualidade do movimento Hare Krishna está
pautada em uma prática constante e escalonada rumo ao objetivo espiritual
final de sua metafisica, é notável que tal método é universal, includente e pode
ser iniciado por praticamente qualquer indivíduo. Por mais que existam regras e
regulações, e qualidades esperadas daqueles que estão neste caminho,
podemos perceber, através de sua principal literatura sagrada a Bhagavad-Gita,
que o caminho de bhakti-yoga, descrito por Krishna e comentado por Srila
Prabhupada, busca abranger o maior número de pessoas que tenham algum
interesse pelo caminho espiritual, mesmo que ainda de forma seminal. É claro
que conforme o comprometimento do praticante vai se tornando cada vez mais
profundo, as exigências e cobranças também o são. Mas para aqueles que
querem começar nesta caminhada, o início é bastante amplo e até mesmo
confortável. As cobranças veem com o tempo, a dedicação conforme a vontade
do neófito. Assim, mais pessoas podem se aproximar e se sentir parte desta
religiosidade. E conforme vão se interessando e se sentindo mais aptas a
continuar, vão partindo para novas etapas, cada vez mais disciplinadas e
comprometidas, seguindo, pelo menos no primeiro momento, o seu próprio
tempo. Com isto, nota-se claramente que o processo de bhakti-yoga visa
atender o maior número de pessoas, já que todos de alguma forma estão indo
em direção ao Supremo, cada um no seu ritmo, velocidade e dedicação.

447
Bibliografia
GOSWAMI, Satsvarupa Dasa. Prabhupada: Um santo do Século XX. BBT, São
Paulo, 2014.
PRABHUPADA, Bhaktivedanta Swami. Bhagavad-Gita: Como ele é. BBT, São
Paulo, 2011.
DHARMA, Krishna. Mahabharata: versão condensada da maior epopeia do
mundo. Editora Nova Fronteira, 2016.
ARIEIRA, Gloria. Bhagavadgita: Diálogo entre Sri Krishna e Arjuna. Vudya-
Mandir, Rio de Janeiro, 2012.
SWAMI, Chandramukha. “Bhagavad-Gita para Iniciantes”. Pindamonhangaba,
Ed. BBT, 2019.
RESNICK, Howard. Guia Completo da Bhagavad-Gita: com tradução literal.
Coletivo Editorial, São Paulo, 2015
GUERRIERO, Silas. “Os componentes constitutivos da Nova Era: A formação de
um novo ethos”. Revista de Estudos da Religião, Vol. 16, Nº. 2, 2016.
LOUNDO, Dilip. “The indian aesthetics of emotions (rasa): non-duality, aesthetic
experience and the body”. Dossiê Diálogos entre Literatura, Religião e Política:
registros literários da instrumentalização do Sagrado. 2021. v. 25, n. 46.

448
ASPECTOS DA TERRA PURA: UMA ÉTICA BASEADA NO
OUTRO PODER
Fernando Rodrigues de Souza
Discente do Mestrado em Ciências da Religião
da Universidade Federal de Sergipe
fernandordesouza@yahoo.com

Resumo: O presente artigo analisa os aspectos éticos do Budismo da Terra Pura e seu
enfoque no conceito de "outro poder". A pesquisa se justifica na necessidade de se
compreender o ethos amidista e suas implicações diante dos paradigmas da
modernidade. Para isso, foi empregado o procedimento técnico de pesquisa
bibliográfica, desenvolvido a partir de material já publicado, como livros, artigos e
revistas acadêmicas. A pesquisa concluiu que a ética do Budismo da Terra Pura,
baseada no conceito de "outro poder", representado na figura do Buda Amida, possui
um processo soteriológico que a difere de todas as demais tradições budistas, que por
sua vez, focalizam esse processo como parte da iniciativa e ações do adepto (poder
próprio). Isso faz com que o Budismo da Terra Pura esteja ornado de um escopo ético
diferente das demais tradições, que culmina em uma atitude ética dos fieis que não é
realizada como parte de um processo em direção à salvação, mas como consequência.

Palavras-chave: Budismo; Ética; Terra Pura; Filosofia.

Introdução
Diante dos grandes avanços oriundos da sociedade globalizada, guiada
pelo modelo econômico capitalista e explorador, temos como resultado
alterações climáticas globais, extinções massivas de espécies, escassez aguda de
água doce e outros recursos naturais, crescente insegurança alimentar, o
empobrecimento e a devastação econômica, o aumento das disparidades entre
ricos e pobres, a instabilidade política e a alienação, um número crescente de
estados fracassados, o monstro dos ambientes geneticamente modificados e
das transformações tecnológicas sem precedentes (THIELE, 2014).
Segundo Harvey (2019), "no Japão, o budismo chegou oficialmente no
ano 538 E.C., através de embaixadores coreanos que levavam consigo uma
imagem de Buda, textos sagrados e um grupo de monges" (HARVEY, 2019, p.
251). O período inicial do budismo em solo japonês, também chamado “Período
Nara” viu a introdução das seis grandes escolas chinesas em seu território: Ritsu
(Vinaya), Jojitsu (Satyasiddhi), Kusha (Abhidharma) Sanron (Madhyamika),
Hosso (Yogachara) e Kegon (Huayan) (POWERS, 2000).

449
O Período Heian 平安時代 (794-1185) foi marcado pelo estabelecimento
das escolas Tendai e Shingon. Tais tradições, assim como as anteriores, tinham
como característica um forte apelo monástico, voltado para as práticas
conforme os códigos do vinaya. Por sua vez, no Período Kamakura (1185-1333)
鎌倉時代 novas escolas surgiram no Japão, uma delas foi a Verdadeira Escola
da Terra Pura 浄土真宗, Jodo Shinshu, fundada por Shinran Shonin (1173-
1263), discípulo de Honen Shonin fundador da Jodo Shu. Essa escola é marcada
por características extremamente singulares que a difere das demais tradições
do budismo. (YOSHINORI, 2007)
A interpretação de Shinran Shonin sobre a mensagem de seu mestre
Honen, tornou-a mais simples e ao mesmo tempo radical. Para ele, as pessoas
deveriam desistir de qualquer tentativa desesperada de ter "poder próprio" (Jap.
jiriki) para realizar sua salvação, devendo assim confiar totalmente esse dever
salvífico em prol do poder redentor do Buda Amida (HARVEY, 2019). Essa
perspectiva soteriológica do budismo da Terra Pura, somada ao conceito Ainsa
(Skt. Ahimsâ), que segundo Ferreira em seu Novo Dicionário da Língua
Portuguesa (1986) trata-se de um preceito religioso presente em todas as
tradições budistas e que consiste em não cometer violência contra outros seres
(FERREIRA, 1986, p. 71), fazendo com que muitos observadores da religião,
budistas e não budistas, considerem que esse elevado grau de paz seja a marca
da tradição (TANAKA, 2020). Por outro lado, isso faz com que o budismo
apresente-se em muitos aspectos como uma religião apática e distante dos
problemas éticos que assolam a sociedade na modernidade.

1. A ética Mahayana e o caminho da Terra Pura


O budismo tem como uma de suas características doutrinárias a extinção
da insatisfação e do sofrimento da humanidade. Para isso, seu fundador
Siddharta Gautama (c. 484-404 AEC) após alcançar o despertar, ensinou
durante quarenta e cinco anos em várias regiões da Índia diversas formas sobre
como realizar esse processo. A tradição do budismo Mahayana, que teve seu

450
surgimento entre 150 AEC e 100 EC, afirma que existem 84.000 ensinamentos
sobre como alcançar esse despertar. (WILLIAMS, 2009, pp. 21-44)
Segundo Buswell (2003) o pensamento do despertar é também um
conceito fundamental na especulação ética Mahayana, assim podemos inferir
que de certa forma, bodhicitta é uma abreviação para o instinto de empatia e o
cultivo da compaixão como fundamentos para o envolvimento budista com o
samsara. (BUSWELL, 2003, p. 56) Ele sintetiza dimensões importantes da
intencionalidade, como atitude em relação aos outros e atitudes em relação a si
mesmo, bem como a intenção como a direção na qual o comportamento
transformador se move. (BUSWELL, 2003, p. 56)
Independente da tradição do budismo, os praticantes sempre buscam
orientação nas "três joias": a) o Buda como mestre; b) o dharma como
ensinamento; e c) a Sangha como a comunidade transmissora do dhama. É
através dessas três jóias que os budistas recebem recursos ricos em pensamento
ético, especialmente baseados nos textos que comunicam o dharma. (BUSWELL,
2003)
As três principais divisões dos diversos cânones budistas (tripitaka)
contêm materiais éticos. O Vinaya é responsável por fornecer o conjunto de
regras morais e comportamentais para budistas ordenados; os Sutras contêm
ensinamentos sobre moral e reflexões éticas, e o Abhidarma explora a
psicologia da moralidade. (BUSWELL, 2003, p. 261)
Além da literatura canônica, numerosos comentários e tratados de
escolas budistas contêm reflexões éticas. Os ensinamentos éticos das escrituras
podem ser confirmados pela própria reflexão. (BUSWELL, 2003, p. 261)
Outro aspecto bastante central e amplamente considerado como o
fundamento da ética e da salvação budista no budismo Mahayana é a ideia de
mérito (Jap. kudoku), descrito como a virtude cármica adquirida através de
ações morais e rituais. (BUSWELL, 2003, p. 532). De acordo com Buswell (2003),
Conforme indicado pelo termo meritocracia, a virtude é o resultado
deliberado da consideração e conduta humana. Embora a escola Jodo
Shinshu rejeite a eficácia dos atos meritórios, a grande maioria das
comunidades budistas afirma os efeitos soteriológicos das boas ações.
(BUSWELL, 2003, p. 532).

451
Dentro da tradição da Terra Pura o despertar é alcançado não pelos
esforços realizados pelos praticantes, mas sim pelos méritos acumulados pelo
Buda Amida, conforme relatado nos ensinamentos proferidos pelo Buda
Shakyamuni nos sutras da Terra Pura: O Sutra do Buda da Vida Infinita ou Sutra
Maior, o Sutra Visualização do Buda da Vida Infinita ou Sutra da Contemplação
e o Sutra do Buda Amitayus ou Sutra Menor.
De acordo com as narrativas, Amida é uma entidade capaz de promover
o renascimento em sua Terra Pura, para que seus devotos, aqueles que
desenvolvem fé em seu voto salvífico, possam desenvolver as qualidades
necessárias para a salvação final. É através da misericórdia de Amida, do qual
seu poder externo (tariki) transforma o adepto desde que ele estabeleça uma
relação devocional com esse Buda (USARSKI, 2017). Essa prática se dá a partir
de diversas formas de entonação e ritmos de repetição da frase Namu Amida
Butsu (南無阿弥陀仏). O Namu Amida Butsu é corriqueiramente chamado de
Nembutsu, que é a recitação do nome sagrado, o Myogo. (TADA, 2017, p. 123)

2. Breve Histórico do Budismo da Terra Pura


As origens de um Budismo da Terra Pura remontam à China, no início do
século V, tendo posteriormente chegado ao Japão no século IX, quando a
devoção a Amida tornou-se um elemento do Budismo Tendai. Entretanto, é
somente no século XII que é estabelecida pelo monge Honen Shonin (1133-
1212) uma instituição separada da Terra Pura, tendo como principal prática
religiosa a devoção a Amida, através da recitação do nembutsu, uma expressão
de fé que se refere à prática de recordação do Buda, reconhecendo o refúgio
do fiel em Amida (IRONS, 2008).
O culto devocional a Amida foi encontrado por Honen na sede do
budismo Tendai, no Monte Hiei. Ele decidiu escolher um único elemento do
corpo de doutrina Tendai, os ensinamentos da Terra Pura, como o caminho
para a libertação. É com Hōnen e, mais tarde, Shinran, que as correntes mais
fideístas do Budismo da Terra Pura surgem e posteriormente se espalharam pelo
Japão, relegando para segundo plano as práticas da tradição meditativa ligadas

452
aos ensinamentos da Terra Pura e até mesmo as descartando completamente
(MARTÍ OROVAL, 2013, p. 269).
Após esse contato com a doutrina da recitação do Nembutsu, ele deixou
o Monte Hiei no ano de 1175 e iniciou a pregação dessa abordagem de
maneira mais exclusiva. Com pouco tempo, Honen ganhou muitos seguidores,
mas como consequência entrou em conflito com o governo como resultado do
debate sobre a extensão do poder do nembutsu para anular uma vida de
extrema imoralidade (MARTÍ OROVAL, 2013, p. 267).
Após a morte de Honen Shonin, em 29 de fevereiro de 1212, uma série
de ideias foram debatidas na comunidade Jodo Shu. O desenvolvimento mais
notável ocorreu quando um dos alunos de Honen, Shinran Shonin, deixou a
ordem dos monges e se casou. Ele desenvolveu uma orientação leiga do
Budismo da Terra Pura que eventualmente eclipsou sua organização-mãe
(MARTÍ OROVAL, 2013, p. 267).
Shinran Shonin, inspirado pelo conteúdo dos três sutras da Terra Pura,
enfatizou a centralidade de shinjin (Mente Esclarecida ou Coração Confiante),
frequentemente traduzido como fé verdadeira ou confiança. Ele também
afirmava que naqueles tempos, descritos como a era da decadência do Dharma,
o devoto não possuía nada verdadeiro ou absoluto. Como consequência dessa
condição, a liberação espiritual só ocorreria quando o devoto percebesse suas
inadequações e se rendesse ao absoluto Outro Poder (tariki) do Buda Amida.
Segundo Irons (2008),
a eficácia compassiva do Buda Amida é o único poder que confere
salvação. Mesmo shinjin a condição primordial para o nascimento na
Terra Pura, é uma dádiva, e a expressão sincera do Nembutsu é uma
invocação de gratidão e alegria pela compaixão de Amida. (IRONS,
2008, p. 267).

Segundo Martí Oroval (2013), "numa época em que o caminho da


santidade (聖道門 shōdō mon) estava além do alcance do ser humano, a fé
passou a ser considerada o único caminho possível para a salvação" (MARTÍ
OROVAL, 2013, p. 270), e conclui afirmando que "esse caminho depende do
poder da Alteridade (他力 tariki), ou seja, toda liberação ocorre graças à

453
intervenção do Buda Amida, cuja compaixão atinge todos os seres." (MARTÍ
OROVAL, p. 272).
Hōnen enfatiza o estado psicológico de paz espiritual (安心 anjin) no
qual aquele que aspira ser salvo por Amida deve se encontrar. A
redenção consistiria em um processo que começaria com a
consciência de nossa natureza espiritual limitada, acompanhada de
uma fé sincera no poder que o Buda Amida possui para nos fazer
renascer na Terra Pura. Após a morte e o renascimento naquela Terra,
graças às práticas espirituais ali realizadas, despertaríamos para a
"grande compaixão" e retornaríamos ao mundo do sofrimento
transformados em seres iluminados para ajudar aqueles que ali
habitam (回向発願心 eko hotsugan-shin) (MARTÍ OROVAL, 2013, p.
273, tradução nossa).

Para Shinran Shonin, o nascimento na Terra Pura é o caminho mais


propício para a realização final da iluminação ou nirvana, principalmente para
aqueles que eram incapazes de realizar práticas de disciplinas monásticas e
ascéticas. Posteriormente, Kakunyo (1270-1351), neto de Shinran, e seu
sucessor de 10ª geração, Rennyo (1415-1499), esclareceram e articularam suas
ideias em um vernáculo convincente (IRONS, 2008). Os esforços de Rennyo
conquistaram muitos devotos e transformaram a escola Jodo Shinshu de um
movimento periférico em uma poderosa escola budista, uma posição que ainda
mantém. (IRONS, 2008, p. 267)

2.1. A Ética do Verdadeiro Ensinamento da Terra Pura


Para Shinran, a existência ética não é destinada à conquista de méritos,
mas sim um meio pelo qual a compaixão do Buda se torna real no mundo.
Entretanto, o fundador da tradição do Verdadeiro Ensinamento da Terra Pura,
possuía uma abordagem crítica para a religião de sua época (YOSHINORI, 2007,
pp. 238-241).
Conforme Yoshinori (2007) no Verdadeiro Ensinamento da Terra Pura:
O próprio Shinran era muito sensível a questões de justiça. Ele
também percebia a distribuição desigual da justiça e afirmava num
verso que, quando um rico vai à corte, é como jogar uma pedra na
água, enquanto, para um pobre, é como jogar água sobre uma pedra.
(...) Criticava o clero e as instituições budistas por sua submissão ao
Estado e por promover as práticas mágicas populares. (YOSHINORI,
2007, p. 241).

454
Shinran rejeitou a confiança nas práticas religiosas populares, bem como
nas preces e nas adivinhações como finalidade para se alcançar efeitos mágicos,
entretanto, por possuir uma visão mais centrada na espiritualidade dava mais
atenção à vida religiosa neste mundo, de modo que, mantinha-se insistindo
com seus seguidores em que respeitassem as outras fés; em que fossem
benevolentes com os adversários; em que dissessem o nembutsu pelo bem-estar
da sociedade e em que não obstruíssem a difusão do darma pela ação
antissocial (YOSHINORI, 2007, p. 241).
Podemos observar que apesar de possuir uma visão crítica em relação à
forma que o clero e as instituições budistas se valiam do uso de práticas
mágicas, observadas como sendo uma forma de paganismo, Shinran defendia a
liberdade de crença e o respeito à religiosidade das outras pessoas. Esse
pensamento norteia o budismo da Terra Pura, seu posicionamento na
modernidade e engajamento na sociedade, em especial na sua participação no
diálogo inter-religioso, bastante presente no ocidente.
Outro aspecto ético em Shinran que pode ser mencionado, se dá por sua
abordagem que envolvia uma relação igualitária com seus seguidores. Ele foi
um grande crítico da maneira como as questões religiosas eram conduzidas.
Com uma ética baseada no Outro-Poder (Jap. tariki), que consiste no voto
salvífico do Buda Amida, Shinran não via qualquer sentido no cumprimento de
disciplinas religiosas ou esforços meritocráticos, pois acreditava ser impossível de
salvar a si mesmo. Com isso, foi o primeiro monge de grande notoriedade a
quebrar os votos de celibato, além de publicamente não se apresentar como
monge e nem como leigo, mas apenas como um "tolo tonsurado". (KIKUMURA,
2014)
O budismo japonês pode ser dividido em dois grupos: jiriki e tariki, ou
“auto-poder” e “outro-poder”. A Escola do Auto-poder, da qual a maior parte
das denominações estão inseridas, ensina a doutrina da salvação individual,
segundo a qual a pureza moral e a iluminação são as condições necessárias da
emancipação; por outro lado, a Escola do Outro-Poder ensina uma confiança

455
absoluta na graça do Buda Amida (DAISETZ TEITARO SUZUKI; JAFFE, 2015, p.
131).
Alguns estudiosos do budismo da Terra Pura comparam o amor do Buda
Amida pelos seres como sendo o de uma mãe por seu filho. Essa condição é
exposta da seguinte forma:
Assim como a criança não faz julgamentos, os seguidores do tariki
devem estar livres de pensamentos de auto-afirmação (jiriki); Assim
como a criança não sabe nada sobre impurezas, os seguidores do
tariki nunca devem ter atenção aos maus pensamentos e más ações;
Assim como a criança não sabe nada de purezas, os seguidores do
tariki devem estar inconscientes de quaisquer bons pensamentos que
possam acalentar; Assim como a criança não deseja cortejar o favor
especial de sua mãe fazendo suas oferendas, os devotos tariki devem
estar livres da ideia de serem recompensados por algo dado; Assim
como a criança não vai atrás de qualquer outra pessoa além de sua
própria mãe, os devotos tariki não devem correr atrás de outros Budas
ou Bodhisattvas além do próprio Amida. (...) Eles não devem ter
medos, nem dúvidas, quanto ao amor infinito de Amida, o Buda
Único, cujos votos são não abandonar nenhum ser em seu abraço.
Uma vez abraçado em sua luz, nenhum ser precisa alimentar a ideia
de ser abandonado por ele. (DAISETZ TEITARO SUZUKI; JAFFE, 2015,
p. 132, tradução nossa).

Segundo Harvey (2019) de acordo com a compreensão de Shinran


Shonin sobre o aspecto da universalidade do Voto salvífico do Buda Amida, o
acesso à religiosidade não depende de aspectos acidentais da vida, como a
posição social, o gênero, as capacidades físicas ou intelectuais, ou mesmo as
conquistas morais e espirituais:
a abordagem de Shinran envolvia uma relação igualitária com seus
seguidores, embora eles o tivessem em altíssima conta como seu
mestre. Tinha autoridade sem ser autoritário. Rejeitava o uso de
práticas mágicas como meio de se obter benefícios e segurança na
vida, embora simpatizasse com as pessoas que sentiam necessidade
de tais métodos. Tentava libertar as pessoas da exploração e dos
medos religiosos. Confortava os que sentiam profundamente sua
fraqueza espiritual, observando que foi para essas pessoas que o Buda
fez seus votos com compaixão incondicional. (HARVEY, 2019, p. 242).

Então, é com base no voto universal do Buda Amida que o budista


adepto à doutrina da Terra Pura irá pautar suas ações, sejam elas engajadas
socialmente ou religiosamente. O voto chamado "universal" consiste em um
dentre os 48 votos realizados pelo Buda Amida. Gonçalves (2019) nos aponta
uma divisão dos votos em três grupos: a) Os votos relativos à realização do
próprio Buda Amida (votos 12, 13 e 17); b) Os votos relativos à Terra Pura (votos

456
31 e 32); c) Os votos relativos à realização dos seres viventes (os demais 43
votos). O voto número 18 é o que garante a Salvação pela fé e pelo Nembutsu a
todos os seres. É por possuir essa característica que ele é considerado universal
(GONÇALVES, 2019).
Com a morte de Shinran Shonin, a doutrina da Terra Pura passou por
divisões, de modo que nos anos subsequentes muitos devotos passaram a não
viver segundo os caminhos éticos ensinados pela tradição, sob a afirmação de
que eram incapazes de mudar a sua natureza. Esse pensamento, oriundo da
incorreta compreensão sobre a ética da Terra Pura fez com que Rennyo,
designado como o "Restaurador do Shinshu", estabelecesse regras (okite) para
restringir as tendências antissociais ou o mal admitido (antinomianismo),
resultante da compreensão equivocada do lugar da vida ética nos
ensinamentos de Shinran, da libertação pelo Outro-Poder por meio
exclusivamente da fé/confiança (YOSHINORI, 2007, p. 243).
Segundo Yoshinori (2007), com o estabelecimento das novas regras:
Rennyo deu à ética uma definição mais clara ao distinguir entre o nível
de buppo (buda-darma), isto é, a dimensão espiritual da fé e do
nascimento na Terra Pura, e obo (darma real), a dimensão secular e
mundana dos requisitos éticos confucianos promovidos pelo clã, pela
família e pelo governo (YOSHINORI, 2007, p. 244).

Então, é através da fé religiosa que os devotos do Jodo Shinshu aspiram


ao nascimento na Terra Pura e possuem a devida confiança no poder do voto
salvífico do Buda Amida, o Outro-Poder, de forma que motivados pelo
sentimento de gratidão e alegria por esse poder transcendental norteiam sua
ética, e por isso, na sociedade cumprem as leis e os princípios das relações
humanas que são transmitidos por meio da cultura (YOSHINORI, 2007).

Considerações finais
Diante do exposto, constatou-se que o budismo da Terra Pura como
tradição oriunda do veículo Mahayana, recebe influência do ideal do
Bodhisattva, que consiste em um caminho de profunda benevolência e amor
por todos, de modo que motivados por esse ideal, os praticantes buscam
libertar os seres sencientes de seus grilhões e auxiliá-los no caminho da

457
iluminação. Entretanto, diferentemente das práticas religiosas realizadas por
adeptos da maioria das escolas desse veículo, apontadas pelos praticantes do
budismo da Terra Pura como sendo práticas de poder-próprio, pois consistem
em um esforço e iniciativa que partem do próprio praticante em busca da
iluminação e consequentemente de uma melhora comportamental, moral e
ética, na tradição da Terra Pura a ética se dá por consequência da ação do
Outro-Poder, Buda Amida, na vida do fiel.
Para os adeptos dessa tradição, suas imperfeições o impedem de
conseguirem a iluminação por conta própria, consequentemente consideram-se
incapazes e maus, porém, a ação transcendental da graça redentora de Amida
atua como fator de mudança no aspecto ético e moral de cada fiel. A ação
transcendental da graça redentora de Amida atua como fator de mudança no
aspecto ético e moral de cada fiel. Essa mudança atesta e confirma a atuação do
voto salvífico de Amida, e sendo motivados por essa atitude, tornam-se pessoas
mais éticas, atuando com a mente em estado de ideal do Bodhisattva. Essa
mudança no ethos do budista adepto do ensino da Terra Pura, faz com que ele
possa posicionar-se diante dos diversos paradigmas e questões da sociedade
moderna, lidando com questões políticas e sociais com benevolência e empatia
para com todos os seres sencientes, da mesma forma que as demais tradições
budistas que trabalham com a ideia de um progressivo caminho de
aperfeiçoamento ético. Partindo desses pressupostos, pode-se pensar em como
o Jodo Shinshu pode localizar-se em relações com as outras experiências
religiosas e os diversos setores da sociedade civil, atuando como um budismo
engajado, do qual não busca a experiência da Terra Pura somente como um
estado transcendental, mas como algo que pode ser experienciado no aqui e
no agora.

Referências
BUSWELL, R. E. Encyclopedia of Buddhism. New York: Macmillan Reference Usa,
Cop, 2003.
DAISETZ TEITARO SUZUKI; JAFFE, R. M. Selected works of D.T. Suzuki - Volume
II: Pure land. Oakland, California: University Of California Press, 2015.
458
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. ed. rev. e
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GONÇALVES, R. M. Notas do Shoshinge: Considerações Sobre o Poema da
Verdadeira Fé. São Paulo. Oficina de Traduções Kumarajiva, 2019.
HARVEY, Peter. A Tradição do Budismo: História, Filosofia, Literatura,
Ensinamentos e Práticas. São Paulo. Cultrix, 2019.
IRONS, E. A. Encyclopedia of Buddhism. New York: Facts On File, 2008.
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2014.
OROVAL, B. M. Budismo, religión y filosofía durante el periodo Meiji . Un estudio
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POWERS, John. Japanese Buddhism. A Concise Encyclopedia of Buddhism. 1.
Oxford: Oneworld Publications. pp. 103–107, 2000.
TADA, E. Paul Tillich em diálogo com o Budismo Amidista Japonês: novas
questões. Correlatio (Online), v. 16, pp. 115-135, 2017.
TANAKA, Kenneth K. Oceano: Uma Introdução ao Budismo Jodo Shinshu. 1ª.
Ed. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2020.
THIELE, Leslie Paul. Indra’s Net and the Midas Touch – Living Sustainably in a
Connected World. Cambridge, Massachusetts, London: MIT Press, 2011.
WILLIAMS, Paul. Mahayana buddhism: the doctrinal foundations. 2nd Ed. New
York: Routledge, 2009.
YOSHINORI, Takeuchi (Org.). A Espiritualidade Budista II. São Paulo: Perspectiva,
2007.

459
PRESSUPOSTOS DA FILOSOFIA MADHYAMAKA E OS DESAFIOS DO
SEU ESTUDO NA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÊA
Luciana Fernandes Marques
Doutora em Psicologia,
Mestre em Psicologia Social e da Personalidade
Professora da Faculdade de Educação, UFRGS
luciana.marques@ufrgs.br

Resumo: O silenciamento sobre as filosofias asiáticas no meio acadêmico é evidente


para quem se interessa por esses temas. Ele se faz sentir desde a sua ausência nos
currículos até a inexistência de prateleiras em bibliotecas universitárias destinadas aos
temas. Entretanto, a população brasileira está repleta de “orientalismos” seja nas
práticas integrativas e complementares do SUS, nas religiosidades asiáticas de
imigração ou de conversão ou nos livros de auto-ajuda. Junte-se a isso o argumento de
valorização de culturas locais marginalizadas como as indígenas e quilombolas que
carregam ancestralidade e saberes tradicionais, a pergunta sempre é “por que importar
conhecimento se aqui temos o nosso?”. A tradição filosófica indiana conhecida como
Filosofia do Caminho do Meio ou Madhyamaka é uma filosofia dialética de base lógica
e racional que remonta séc II dC e questiona barreiras construídas em torno de
conceitos que definem a realidade. Esta é uma pesquisa documental que visa localizar
os principais pressupostos da filosofia Mahdyamaka e os desafios do seu estudo na
realidade contemporêa brasileira bem como localizar qual o interesse nessa filosofia
pelo público nacional; também visa fomentar a transcendência dos limites
ocidental/oriental, os limites étnico-raciais e temporais que aparentemente nos
separam dessa tradição.

Palavras-chave: Filosofia Budista; Caminho do Meio; Madhyamaka.

Introdução
O silenciamento sobre as filosofias asiáticas no meio acadêmico é
evidente para quem se interessa por esses temas (assim como sobre a filosofia
africana e a latino-americana como bem aponta Gontijo, 2021). Ele se faz sentir
desde a sua ausência nos currículos da graduação e da pós-graduação até a
inexistência de títulos nas prateleiras em bibliotecas universitárias. Geralmente
não há disciplinas de filosofia oriental ou asiática nas graduações e apenas
alguns poucos grupos de pesquisa podem ser encontrados em todo os Brasil.
Entretanto, fora dos muros acadêmicos, a população brasileira está
repleta de “orientalismos” (ver um estudo aprofundado sobre o termo em Said,
2007). Termos como Buda ou carma já foram incorporados à língua portuguesa
sem estranhamento. Práticas como meditação e mindfulness circulam nos

460
espaços de saúde igualmente sem estranhamento. As práticas integrativas e
complementares do SUS incluíram entre suas práticas a meditação, o yoga, o
ayurveda, a medicina chinesa e outras de origem asiática. Alguns orientalismos
também podem ser observados nas religiosidades asiáticas de imigração ou de
conversão, bem como em livros de auto-ajuda. Muitos acabam se inserindo na
cultura brasileira (assim como em outras) numa versão simplificada quando não
adulterada do que ainda se encontra nos povos de origem.
Somando a essa dificuldade, quando o pesquisador/extensionista
universitário se interessa pelas culturas asiáticas, não raras vezes, se defronta
com o argumento de seus pares de que deveria haver valorização de culturas
locais marginalizadas como as indígenas e quilombolas que carregam
ancestralidade e saberes tradicionais em vez de buscar fora. A pergunta que se
repete é “por que importar conhecimento se aqui temos o nosso?”.
A busca de estudar a tradição filosófica indiana conhecida como Filosofia
do Caminho do Meio ou Madhyamaka se deparou com alguns desses desafios
mas igualmente encontrou mais motivos para perseverar. Justamente o que
mais parece faltar nos usos cotidianos de práticas orientais é um
aprofundamento das filosofias de base dessas práticas, seus fundamentos e
visões globais contextualizadas. Da mesma forma, o estudo da filosofia
Madhyamaka pode nos ajudar a desenredar parte desse emaranhado de
antagonismos e polaridades presentes na sociedade, na universidade e na
política brasileira (sobre a dinâmica do antagonismo no contexto da política
brasileira, ver Coelho, 2021). É provável que a filosofia Madhyamaka seja uma
visão que nos enriqueça e estimule na direção da transcendência de vários
limites auto-impostos, dos limites ocidental/oriental, dos limites étnicos,
geográficos e temporais que aparentemente nos separam dessa tradição.
Este ensaio é parte de uma pesquisa documental maior (publicada em
Marques, 2019a, 2019b, 2021a, 2021b) que neste trabalho visa localizar os
principais pressupostos da filosofia Madhyamaka e os desafios do seu estudo na
realidade contemporânea brasileira bem como explorar qual o interesse nessa
filosofia pelo público nacional.

461
1. Desenvolvimento
1.1. Escola filosófica do Caminho do Meio ou Madhyamaka
A Escola filosófica do Caminho do Meio ou Madhyamaka é uma filosofia
dialética de base lógica e racional que remonta século II EC e questiona
barreiras construídas em torno de conceitos que definem a realidade.
Popularmente conhecida como filosofia da vacuidade, a Escola filosófica do
Caminho do Meio ou Madhyamaka está atrelada à Filosofia Indiana, a seu
fundador Nagarjuna e à Universidade Nalanda. O termo “vacuidade” constitui o
conceito central da filosofia do Budismo Mādhyamaka, enquanto os pensadores
chineses tendem a empregar os termos “não-ser”, “ser-e-não-ser” (youwu 有無),
ou variações derivadas desses (GIACOIA et al., 2015). Ela surge há cerca de dois
mil anos principalmente na literatura do Prajñāpāramitā (Perfeita sabedoria).
Khyentse (2003) refere que essa filosofia serve para estabelecer a visão
no caminho. Através da lógica e da análise crítica e dialética ela visa excrutinar a
forma como percebemos a realidade. Um dos interesses deste estudo é
conhecer uma das visões que subjaz práticas orientais como meditação,
mindfulness (atenção plena) e outras variações. Essa práticas são consumidas
no Brasil majoritariamente como técnicas que visam bem-estar e saúde. Mas nos
seus contextos de origem (neste caso, na Índia e outros países por onde se
espalhou nos últimos 2500 anos) essas “técnicas” eram parte de um amplo
sistema filosófico e só faziam sentido se movidas pela visão concebida por eles.
Esses sistemas, o período pós-meditação é tão importante quanto o da
meditação. E o que será exercitado na prática é justamente a visão que essa
filosofia carrega. Daí a importância de conhecer as bases filosóficas dessas
práticas e não apenas contentar-se com a sua aplicação superficial para alívio
temporário. As bases filosóficas unidas às práticas meditativas (e outras)
encaminha para a transformação da nossa visão levando a uma maior
transcendência dos sofrimentos ocasionais. Mas apenas a aplicação das técnicas
sem seus fundamentos podem levar a um tecnicismo e a uma simplificação de
um sistema que poderia nos dar respostas existenciais mais profundas.
462
1.2. Universidade Nalanda
A escola filosófica do Caminho do Meio ou Madhyamaka se desenvolveu
ao longo da história da antiga universidade Nalanda. Nalanda foi
provavelmente uma das primeiras universidades do mundo tendo sido fundada
em torno do século II EC na Índia. Ela floresceu como um centro de estudos
budistas acadêmicos e possuiu uma vasta biblioteca que guiava acadêmicos e
praticantes budistas nos estudos. Conforme Sivaraksa (2011), Nalanda chegou a
ter em torno de 10.000 monges vindos de toda as partes da Ásia que lá
estudavam lógica, medicina, matemática e budismo. A comunidade também
contava com aproximadamente 2.000 professores vindos de todos os lugares
do planeta para viver e estudar no lugar.
Localizada em Bihar, Índia, conforme escavações realizadas no local, ela
tinha stupas, templos, hostels, salões de meditação e auditórios. Sua
organização era a de uma cidade e contava com grande prosperidade e
visitantes ilustres que faziam desse lugar um centro de peregrinação e
celebração universitária. Muitos filósofos mahayana viveram lá, como
Nagarjuna. Ela existiu até o século XII mas grande parte do seu conhecimento
permaneceu preservado na língua tibetana conhecido como “Tradição de
Nalanda” e caracterizado por uma abordagem não apenas por meio da fé, da
devoção, mas também pela indagação crítica (DALAI LAMA, 2015), o que hoje
superaria a antinomia razão e fé - que provavelmente se criou depois dela.
É comum se ouvir que Nalanda foi uma universidade monástica e
contemporaneamente talvez seja difícil entender como ser monge e erudito se
misturavam num mesmo ambiente já que nos tempos modernos ciência e
religião não conversam. Mas a fé no budismo é baseada na razão conforme
livro homônimo de Dalai Lama (2015). O Dalai Lama, líder político e espiritual
do Tibete, é uma figura conhecida mundialmente por ter sido agraciado com o
Prêmio Nobel da Paz em 1989 na sua abordagem pacifista de lidar com a
invasão chinesa no Tibete. Assim como ele, muitos são os monges
extremamente eruditos e conhecedores profundos da filosofia e da prática

463
budista que, segundo eles, deve ser indissociável. O aprendizado na tradição
Nalanda requer estudo racional, lógica, prática meditativa e debate. O debate,
como método, objetiva a averiguação de pontos obscuros de compreensão que
se tornam evidentes em conversações entre estudiosos. Dessa forma, pode-se
dizer que ela oferece um sistema de aprendizagem próprio.

1.3. Análise lógica na correção perceptiva do eu


Conforme Dalai Lama (2001, p. 11) “a análise lógica ocupa um lugar
muito importante no estudo das escrituras budistas”. Isso pode ajudar a explicar
a vertente filosófica do budismo. Na minha modesta opinião, se poderia entrar
no tema por essas duas portas: pela filosofia e pela religião sendo que na
experiência de alguém que se diga praticante budista ambas podem conviver
harmoniosamente e com contradições mínimas. Outro aspecto que pode
elucidar o por quê de considerar a Escola Madhyamaka uma escola filosófica e
não religiosa é o de que há um lugar central da problemática soteriológica no
empreendimento filosófico na Índia em geral (LOUNDO, 2021), e no budismo
em particular, no qual a escola Madhyamaka é parte.
Na tradição indiana esse é um ponto fulcral tanto nas tradições teístas
quanto nas não teístas: o sofrimento está ligado à cognição e é aí que filosofia e
religião se encontram. Loundo (2018) explica que a filosofia é consagrada nas
tradições indianas como dimensão excelsa da religião, como reflexão racional e
dimensão profunda da religião. Através dela se elimina a ignorância que é a
causa do sofrimento. Todas as tradições da Índia vão postular que a causa do
sofrimento é a ignorância. O autor pergunta: e por que temos ignorância?
Porque tendemos a ver as coisas como elas não são. A causa última do
sofrimento nesses sistemas é a ignorância.
A Filosofia do Caminho do Meio busca eliminar a ignorância. Mas de qual
ignorância estamos falando? Segundo o Dalai Lama (2001, p. 29), "Ignorância
nesse contexto não significa mera estupidez, mas sim a ignorância que é uma
concepção errônea da verdadeira existência. É uma mente inadequada ou que

464
erradamente tem uma concepção errônea do seu objeto" pois não possui uma
base válida de sustentação.
É necessária uma correção perceptiva do Eu, como explana Loundo
(2018):
O sofrimento está ligado a um problema de cognição. O sofrimento
tem como causa última a ignorância que é uma disposição
praticamente espontânea a existência. Coloca-se em todas as coisas
algo que não lhes pertence. E é na constituição falseada das coisas que
nasce o desejo por elas. E o desejo por elas, nesse sentido, é algo
irrealizável porque você não deseja coisas, você deseja fantasias sobre
as coisas. Nesse sentido, é necessária uma correção da perceptiva do eu
(s/p).

Essa correção perceptiva passa por uma investigação dos constituintes


do que chamamos Eu. Já que o Eu não é um bloco homegêneo mas um
processo em movimento composto de muitas coisas, ele carece de uma
existência inerente. Os filósofos madhyamika (seguidores da Filosofia
Madhyamaka) caracterizam essa falta de existência inerente como a “ausência
de Eu” e concordam que obter insight sobre essa ausência de eu abre o
caminho para se reverter o ciclo de sofrimento (DALAI LAMA, 2015) já que o
apego ao Eu é fonte de sofrimento.

Considerações finais
Neste brevíssimo ensaio objetivou-se enfatizar a importância do estudo
das bases filosóficas de muitos orientalismos presentes na cultura brasileira. Isso
visaria tanto suprir a lacuna da ausência das filosofias asiáticas no meio
educacional e acadêmico quanto dar visibilidade à profundidade e
complexidade desses sistemas filosóficos que em muito diferem dos tecnicismos
adotados em vários campos no contexto brasileiro. Esse esforço não invalida
nem compete com o estudo dos saberes dos povos originários presentes no
Brasil.
No caso da Filosofia Madhyamaka agrega-se um estudo que visa ir além
dos extremos, da polaridade eu-outro, bom-ruim, nós-eles e etc. Ela mostra isso
através do conceito de vacuidade ou de falta de existência intrínseca do eu e
dos objetos que surgem de forma interdependente. Essa filosofia foi cultivada

465
na Índia mas permaneceu preservada no Tibete e foi espalhada pelo mundo na
diáspora por ocasião da invasão da China ao Tibete em 1959.
Hoje temos acesso a esses saberes e eles surpreendem por
permanecerem relevantes. Apesar de ser uma filosofia presente no budismo
como religião, ela possui um habitus lógico e baseada na razão. Através da
lógica demonstra como isso que chamamos de Eu é uma composição de
variados elementos não possuindo uma existência independente. Ao
enfraquecer a crença no “Eu” visa enfraquecer o apego decorrente ao “Meu”
corrigindo uma visão equivocada de si e dos fenômenos. Essa análise visa
reverter o ciclo de sofrimento ocasionado pela visão incorreta da realidade que
se apega aos opostos.
Esse parece ser um caminho a ser desenvovido individualmente embora
acompanhado de intercâmbio grupal. Para além da busca individualista de
livrar-se do sofrimento essa filosofia embasa a busca para a liberação do
sofrimento de todos os seres sencientes, já que trata-se de uma filosofia do
veículo Mahayana.

Referências
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“combates” à corrupção. Passagens: Revista Internacional de História Política e
Cultura Jurídica, p. 469-490, 2021.
DALAI LAMA. O caminho do meio: Fé baseada na razão. Global Editora e
Distribuidora Ltda, 2015.
DALAI LAMA. Os estágios da meditação. Rocco, 2001.
GIACOIA Jr., Osvaldo; MATSUMARU, Hisao; KOPF, Gereon; MONTEIRO,
Joaquim Antônio Bernardes Carneiro; FLORENTINO NETO, Antonio; FERRARO,
Giuseppe; LOUNDO, Dilip; MICHELAZZO, José Carlos; ZAVALA, Agustín Jacinto;
OHASHI, Ryosuke. Budismo e Filosofia em Debate. Editora Phi, 2015.
GONTIJO, Pedro E. Posfácio: o ensino de filosofia no Brasil e alguns de seus
desafios. Kalagatos, v. 18, n. 2, p. 234-251, 2021.
KHYENTSE, Jamyang (2003). Introduction to the middle way. Khyentse
Foundation, disponível em 5 de setembro de 2022 no website mediante
solicitação: https://siddharthasintent.org/publications/introduction-to-the-
middle-way/

466
LOUNDO, Dilip. Os Upanisads e o projeto soteriológico da Escola Vedanta.
PARALELLUS Revista de Estudos de Religião-UNICAP, v. 12, n. 29, p. 167-180,
2021.
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https://www.youtube.com/watch?v=Y6ON_y9gRC0&t=2189s , 2018.
MARQUES, Luciana F. et al. Desafios e oportunidades do budismo no Brasil:
relato de um simpósio com tradutores/acadêmicos budistas. Debates do NER, v.
21, n. 40, p. 367-390, 2021a.
MARQUES, Luciana Fernandes. Aprendendo sobre educação com a filosofia
Madhyamaka. PARALELLUS Revista de Estudos de Religião-UNICAP, v. 12, n. 30,
p. 369-382, 2021b.
MARQUES, Luciana Fernandes. Os processos de ensino-aprendizagem na
filosofia Madhyamika. Anais da ReACT-Reunião de Antropologia da Ciência e
Tecnologia, v. 4, n. 4, 2019a.
MARQUES, Luciana Fernandes. Assimilação não religiosa do budismo no Brasil:
em prol de uma espiritualidade laica? Anais da XIII Reunião de Antropologia do
Mercosul, 2019b.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora
Companhia das Letras, 2007.
SIVARAKSA, Sulak. The wisdom of sustainability: Buddhist economics for the
21st century. Souvenir Press, 2011.
WANCHOO I. L., KUMAR A., BHATTACHARJEE T., AGGARWAL, N. Social
Science Success Book for Class 6. Goyal Brothers Prakashan, New Delhi, 2018.

467
USOS DE KANANA (BOSQUE) NA ESPIRITUALIDADE HINDU
SEGUNDO O ARAYAKAA, DO RAMAYAA DE VALMIKI
Matheus Landau de Carvalho
matheuslandau@gmail.com

Resumo: O Rāmāyaṇa de Vālmīki é uma extensa narrativa das tradições hindus, um


épico sobre as vicissitudes pelas quais passou Rāma durante seu percurso neste mundo
enquanto um avatāra de Viṣṇu. Um dos objetivos doutrinários do Rāmāyaṇa de Vālmīki
é uma exposição propedêutica dos preceitos do dharma hindu, um conjunto de
deveres éticos e ritualísticos com vistas à obtenção de objetos transcendentes de
fruição numa outra vida, que pode ser um paraíso (svarga) propriamente dito ou um
renascimento numa condição humana superior segundo as doutrinas do karma e do
saṃsāra. O terceiro dos sete livros (kāṇḍas) que compõem o Rāmāyaṇa de Vālmīki é o
Araṇyakāṇḍa, o kāṇḍa das florestas e das matas, no qual é possível identificar
nitidamente vários perfis humanos de eminente conhecimento védico segundo as
diretrizes do dharma hindu, cuja santidade está intimamente vinculada à mata indiana.
A partir da análise dos usos semânticos que o Araṇyakāṇḍa faz de um dos termos
sânscritos que designam a floresta, o bosque indiano, i.e. kānana, o objetivo desta
Comunicação é apresentar as maneiras pelas quais a espiritualidade hindu circunscrita
ao dharma acontece na natureza. Por natureza compreender-se-á todos aqueles
elementos naturais e formas de vida que prescindem de qualquer cálculo ou
intervenção humana para existirem como tais.

Palavras-chave: Rāmāyaṇa de Vālmīki, kānana (bosque), dharma hindu.

Introdução
As tradições religiosas hindus se destacam no cenário religioso mundial
por constituírem um dos mais antigos e dinâmicos conjuntos de tradições
religiosas da humanidade ainda existentes. A seguir sugere-se uma definição de
um ponto de vista técnico formal sobre o que é o Hinduísmo enquanto uma
destas grandes tradições religiosas do planeta:
Os termos “hinduísmo” e “hindu” começaram a ser usados pelos
islamitas que habitavam a região da Pérsia como designações
religiosas que diferenciassem os muçulmanos aquém do rio Indo (em
sânscrito sindhu, lit. “mar”, “oceano”) dos não-muçulmanos que
habitavam além do mesmo rio. Após o estabelecimento soberano dos
muçulmanos sobre grande parte do subcontinente indiano, os
britânicos se apropriaram, a partir do século XVIII, destes termos como
denominadores comuns para se referir a vários segmentos religiosos
distintos entre si então presentes na região, contribuindo para sua
divulgação e uso amplamente estabelecidos (Rodrigues, 2006, p. 4).
Por Hinduísmo compreende-se um conjunto de expressões culturais
singulares que tendem a se adequar às diversidades regionais,
históricas, individuais e comunitárias oriundas do subcontinente
indiano, segundo uma pluralidade de tradições com suas
comunidades de praticantes, seus sistemas de atos, seus conjuntos de

468
doutrinas e seus processos de sedimentação de experiências,
revelando uma flexibilidade e uma abertura acostumada à
coexistência de opostos nas esferas ritualística [...] e mística.
(CARVALHO, 2017, p. 234, n. 3).

1. Aspectos estruturais do Rāmāyaṇa de Vālmīki


O Rāmāyaṇa de Vālmīki é uma expressão cultural narrativa das tradições
hindus. No contexto semântico do termo sânscrito composto Rāmāyaṇa, Rāma1
é um dos avatāras de Viṣṇu, uma divindade védica (deva), e o herói
protagonista da narrativa, ao passo que ayaṇa pode designar tanto o ato de
prosseguir, mover-se, andar, assim como o próprio caminho, o percurso, a
estrada em si (cf. APTE, 1970, p. 48c; MONIER-WILLIAMS, 1899, 84b). Portanto, a
expressão Rāmāyaṇa compreende as vicissitudes pelas quais passou Rāma
durante seu percurso neste mundo enquanto um avatāra de Viṣṇu.
Desde as primeiras iniciativas europeias de tradução e edição crítica do
Rāmāyaṇa de Vālmīki, há, num primeiro momento, um consenso de que ele foi
registrado por escrito na forma de épico, pelo menos, em duas recensões
textuais diferentes entre si, i.e. a recensão do sul (meridional), de Bengala,
também conhecida como de Calcutá (também denominada de Gaudana ou de
Gauḍa); e a do norte (setentrional), de Benares (Vārāṇasī), conhecida como a
dos Comentadores (Commentatores), denominada de boreal, vulgata ou do
noroeste, (GOLDMAN, 2007, p. 96) (cf. SCHLEGEL, 1829, p. XXII; GORRESIO,
1843, p. XXXVII; MONIER-WILLIAMS, 1863, p. 15; GRIFFITH, 1895, p. vi;
BROCKINGTON, 1985, p. 60; FLOOD, 1996, p. 107; GOLDMAN, 2007, p. 5).
Várias tentativas de datar o período de composição do Rāmāyaṇa de
Vālmīki já ocorreram. O início de sua composição foi sugerido por Monier-

1 O nome de Rāma teria sido a última palavra pronunciada por Mohandas K. Gandhi logo antes
de ser assassinado a tiros em 30 de janeiro de 1948. Em 1992, grupos de seguidores de Rāma
derrubaram uma mesquita em Ayodhyā, principal cenário do Rāmāyaṇa de Vālmīki, onde se
localiza o suposto lugar de nascimento de Rāma, pressionando o Governo da Índia a permitir a
reconstrução de um templo hindu no mesmo local. Encenações teatrais da estória do
Rāmāyaṇa, conhecidas como Rāmlīlā, são anualmente realizadas em aldeias e cidades por toda
a Índia em setembro ou outubro. Em muitas partes da Índia, as festividades do Dīpāvalī
celebram o baile oferecido por Rāma ao assumir seu trono em Ayodhyā após seus quatorze
anos de exílio segundo o Rāmāyaṇa de Vālmīki.
469
Williams (1863, p. 3) e Brockington (1985, p. 329) em torno do século V A.E.C.;
por Rodrigues (2006, p. 137) em 400 A.E.C., quando teria começado a tomar
forma; por Nooten (Buck, 1976, p. xix) no ano 200 A.E.C.; e para Flood (1996, p.
107), o(s) texto(s), certamente, já estava(m) em circulação no primeiro século
E.C. O término de sua composição já foi sugerido por Nooten (BUCK,1976, p.
xix) em 200 E.C.; por Rodrigues (2006, p. 137) em torno de 400 E.C.; e por
Brockington (1985, p. 329) em meados do século XII E.C.
Para as expectativas confessionais hindus, não há dúvidas de que a
composição e o registro por escrito em sânscrito do épico como um todo não
foi um esforço coletivo intergeracional, abrangendo vários espaços e tempos
diferentes entre si, mas, pelo contrário, teria sido obra somente do brāhmaṇa
eremita (tapasvin) hindu Vālmīki. Como é possível observar no Uttarakāṇḍa, o
último dos sete livros (kāṇḍas) do Rāmāyaṇa,
Aqui termina o mais proeminente dos contos, conhecido como
Rāmāyaṇa, junto com seu epílogo. Foi composto por Vālmīki e é
venerado por Brahmā.2

O Rāmāyaṇa de Vālmīki, independentemente da recensão, possui sete


kāṇḍas3 com número de cantos (sargas) e extensões diferentes entre si, dispostos na
seguinte sequência:
Bālakāṇḍa (do sânscrito bāla, “criança”, “jovem”), o kāṇḍa da infância de
Rāma;
Ayodhyākāṇḍa, o kāṇḍa da cidade de Ayodhyā, capital do reino de
Kosala;
Araṇyakāṇḍa (araṇya = floresta) – doravante ArKā –, o kāṇḍa das florestas
e das matas;
Kiṣkindhākāṇḍa, o kāṇḍa da cidade de Kiṣkindhā, território dos habitantes
da mata (os vānaras);

2 Na saṃhitā consta: “etāvadetadākhyānaṃ sottaraṃ brahmapūjitam / rāmāyaṇamitiṃ khyātaṃ


mukhyaṃ vālmīkinā kṛtam” (UtKā CXI,1. In: MUDHOLAKARA, 1983, p. ३०८०).
3 Kāṇḍa é uma palavra sânscrita que pode designar, entre outros, uma seção, um capítulo, uma
porção ou a divisão de uma obra (cf. APTE, 1970, p. 142b; MONIER-WILLIAMS, 1899, p. 269b;
WILSON, 1819, p. 175b).
470
Sundarakāṇḍa (do sânscrito sundara, “belo”, “encantador”), o kāṇḍa da
beleza ou do encantamento4;
Yuddhakāṇḍa (do sânscrito yuddha, “guerra”, “batalha”, “luta”, “combate”,
“disputa”, “contenda”), o kāṇḍa da guerra (em Laṅkā);
Uttarakāṇḍa (uttara = último), o último kāṇḍa do Rāmāyaṇa.

2. O dharma hindu e o Rāmāyaṇa de Vālmīki


Um dos objetivos doutrinários e estilísticos do Rāmāyaṇa de Vālmīki é
justamente uma exposição propedêutica, pedagógica dos preceitos do dharma
hindu, seu tema por excelência. Segundo as tradições hindus, dharma referia-se,
inicialmente, ao estabelecimento pelos deuses da ordem cósmica ao se separar
(vi-dhṛ-) e consequentemente sustentar (dhṛ) o céu e a terra (HORSCH, 2010, p.
19). Ao propor a recorrência dos atos cosmogônicos dos devas nas cerimônias
rituais, autoridades religiosas hindus, ao longo do tempo, transpuseram o
conceito de dharma para as dimensões ética, social, familiar e ritual, nas quais
representa uma adequação da ação comportamental cujo pressuposto
pragmático é o desejo individual pela obtenção de objetos transcendentes de
fruição numa outra vida, que pode ser um paraíso (svarga) propriamente dito
ou um renascimento numa condição humana superior. Estas concepções
cósmicas, morais e ritualísticas tornaram-se leis gerais a cujas verdades eternas
todo hindu deveria se conformar enquanto participante deste mesmo cosmos
sustentado e ordenado pelo dharma. Esta fruição transcendente futura, a
posteriori, fundamenta-se na doutrina da transmigração da alma (saṃsāra),

4 A conotação pretendida com a escolha do termo sundara como título do quinto kāṇḍa é
intrigante, pelo menos para um leitor moderno do épico. A palavra sânscrita sundara significa
“encantador”, “fascinante”, “belo”, “agradável”, “excelente” (APTE, 1970, p. 608c; MONIER-
WILLIAMS, 1899, p. 1227c; WILSON, 1819, p. 998a). Uma série de argumentos já foram
levantados para tentar explicar a opção por esta palavra para designar o título do quinto
kāṇḍa, seja pela arte poética supostamente incomum do kāṇḍa, pela riqueza de sua descrição
poética, pela associação da palavra Sunda com alguns locais específicos, por uma possível
tendência de adjetivação de protagonistas, pela auspiciosidade pressuposta sobre o mesmo
kāṇḍa, ou pelo conjunto de fatores – sua poética, sua temática, o momento em que se localiza
na trama do épico como um todo, sua maneira de caracterização dos personagens – que
teriam contribuído para tal decisão (cf. GOLDMAN; GOLDMAN, 2007, pp. 75-78). Ao que
parece, “No atual estado do conhecimento, parece-nos impossível especificar qualquer
explicação incontestável para o nome do Sundarakāṇḍa.” (Idem, p. 78, itálico do autor).
471
baseada num ciclo de repetidos nascimentos e mortes de um ser, numa
pluralidade de estágios transmigratórios que se interrelacionam através de um
princípio de causa e efeito (karma) fundado em ações produzidas em existências
anteriores pelo indivíduo, que também podem produzir consequências para
existências vindouras de sua respectiva alma. A própria natureza é utilizada
como ilustração desta dinâmica soteriológica no Araṇyakāṇḍa:
Inevitavelmente, com o passar do tempo, o indivíduo colhe o fruto
amargo de sua atitude vil, assim como as árvores florescem com o
passar das estações.5

Dentro dos objetivos doutrinários encerrados pelo dharma, o Rāmāyaṇa


de Vālmīki acaba englobando uma série de temas culturais, como os modos de
vida familiar e ritualístico da sociedade hindu, a geografia do subcontinente
indiano, a gastronomia indiana, narrativas religiosas das tradições hindus, o
poder político e sua consequente administração pública, intrigas palacianas,
modos de vida renunciantes, a arte militar, concepções hindus de tempo, assim
como a natureza.
Quanto às balizas conceituais acerca da definição categórica do que aqui
se entenderá por natureza, serão considerados aqui, preferencialmente, todos
aqueles elementos naturais e formas de vida que prescindem de qualquer
cálculo ou intervenção humana para existirem como tais, seja na esfera animal,
na esfera vegetal ou na esfera mineral. Ainda que relações de interação
empírica de mútua interferência entre ser humano e natureza estejam
envolvidas nas abordagens circunscritas às relações entre cultura hindu e
natureza, esta última será encarada aqui como tal a partir do momento em que
não dependeu irrevogavelmente da existência humana para se manifestar sob
suas várias formas de vida, ainda que as mesmas formas possam ser percebidas
por nossa espécie, seja do ponto de vista lógico-racional, seja da perspectiva
linguístico-semântica, seja pelo viés neuro-psicológico.

5 Na saṃhitā consta: “avaśyaṃ labhate kartā phalaṃ pāpasya karmaṇaḥ / ghoraṃ paryāgate kāle
drumaḥ puṣpamivārtavam” (ArKā XXVIII,8. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script.
Disponível em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6
de junho de 2015).
472
3. Usos de kānana (bosque) no Rāmāyaṇa de Vālmīki
Há três termos no sânscrito para designar a mata, a floresta, os bosques
que se afastam do contexto urbano, socialmente calculado da cidade (pura) e
da aldeia (grāma) indianas: vana, araṇya e kānana. Na presente comunicação,
serão abordadas as maneiras pelas quais kānana se relaciona com a
espiritualidade hindu segundo o Araṇyakāṇḍa do Rāmāyaṇa de Vālmīki. No
sânscrito, o termo kānana designa uma floresta, um bosque (às vezes em
conexão com vana), algo que subentenda uma refração ao cotidiano da aldeia
ou da cidade hindu – daí, por exemplo, o termo kānanāgni como “fogo
selvagem” (cf. APTE, 1970, p. 142c) –, ou até mesmo um lar, uma casa, algo que
denote um abrigo, um refúgio (cf. APTE, 1970, p. 142c; MONIER-WILLIAMS,
1899, p. 270b; WILSON, 1819, p. 177a).
Das três palavras sânscritas que designam a mata, a floresta, os bosques
no Araṇyakāṇḍa, kānana é a que menos se encontra numa ligação nítida e
direta com a espiritualidade hindu. Em três oportunidades, ela é associada com
circunstâncias benfazejas no exílio do reino de Kosala experimentado por Rāma,
Sītā e Lakṣmaṇa. No sexto sarga, os três se dirigem para o eremitério (ashram)
de Sutīkṣṇa, onde são muito bem recebidos e reverenciados pelo tāpasa, que
lhes permite passar a noite até que deixem o local em busca de um abrigo
permanente. Kānana parece remeter a um estágio de profundidade na mata
que conclui o processo de refração à civilização socialmente calculada da cidade
(pura) e da aldeia (grāma) indianas, na qual o dharma do chefe de família
(gṛhyadharma) é mais proeminente, dando lugar aos modi vivendi do eremita
da floresta (vānaprasthin) e do asceta renunciante (parivrājaka). Em duas
passagens deste sarga (VI,3.13), kānana é situado no caminho em direção a um
objetivo religioso, seja de ortopraxia, como um eremitério (ashram) – momento
no qual se aproxima de seu sentido de um abrigo, um refúgio –, ou de uma
condição existencial de bem-aventurança, como um devaloka. As referências
estritamente religiosas ainda são vagas e distantes:

473
[Rāma Lakṣmaṇa], proeminentes entre os Ikṣvākus, se dirigiram, junto
com Sītā, para um bosque (kānana) densamente arborizado com
diferentes tipos de árvores.6
Eu espero conquistar aqueles mundos (lokas) para mim, grande sábio
(mahāmuni). O que eu preciso agora, entretanto, é que você me
recomende um lugar para habitar nestes bosques (kānanas).7

No sarga LX, kānana remete não apenas à saudade da vivência de


afetividades conjugais outrora compartilhadas, mas também ao reforço de laços
matrimoniais segundo as diretrizes do dharma hindu8:
Eu reconheço estas flores aqui; Lakṣmaṇa, eu as dei a [Sītā] nos
bosques (kānanas), e ela os entrelaçou em seus cabelos.9

Por duas vezes no Araṇyakāṇḍa, kānana é associado às adversidades do


adharma. No quinquagésimo nono sarga, kānana é, novamente, apenas um
local de passagem, não de objetivo final, locus de uma mata densa e profunda
e, mais uma vez, remete a uma noção de afastamento, aqui o rapto de Sītā, mais
uma entre várias manifestações de adharma praticado por Rāvaṇa, vilão da
estória, posteriormente derrotado por Rāma em nome do restabelecimento do
arranjo cósmico dhármico, que permitisse aos praticantes hindus, enfim, a
vivência de suas ortodoxias e ortopraxias védicas. Ao retornar para o eremitério
(ashram) onde habitavam, Rāma pergunta a Lakṣmaṇa “Onde está [Sītā],
Lakṣmaṇa? Onde ela poderia ter ido? Alguém levou minha amada embora, ou a

6 Na saṃhitā consta: “tatastadikśvākuvarau satataṃ vividhairdrumaiḥ / kānanaṃ tau viviśatuḥ


sītayā saha rāghavau” (ArKā VI,3. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível
em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6 de junho de
2015).
7 Na saṃhitā consta: “ahamevāhariṣyāmi svayaṃ lokānmahāmune / āvāsaṃ tvahamicchāmi

pradiṣṭamiha kānane” (ArKā VI,13. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível
em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6 de junho de
2015).
8 Como registra o Bālakāṇḍa: “Vossa majestade, esta união no dharma (dharmasambandhaḥ) de

Sītā e Ūrmilā com Rāma e Lakṣmaṇa é altamente apropriada, ainda mais por causa da perfeição
de suas belezas.” (Na saṃhitā consta: “sadṛśo dharmasambandhaḥ sadṛśo rūpasampadā /
rāmalakṣmaṇayo rājansītā cormilayā saha” BāKā LXXI,3. In: VALMIKI’S RAMAYANA in
Devanagari script. Disponível em:
<http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 2 de junho de
2015).
9 Na saṃhitā consta: “abhijānāmi puṣpāṇi tānīmāmīha lakṣmaṇa / apinaddhāni vaidehyā mayā

dattāni kānane” (ArKā LX,17. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível em:
<http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6 de junho de
2015).
474
devorou, [Lakṣmaṇa]?”10. Na tentativa de tranquilizar seu irmão, Lakṣmaṇa lhe
pede para se acalmar, dizendo que
[Sītā] ama perambular pelos bosques (kānanas) e está encantada com
a floresta (vana). Ela provavelmente foi para a floresta (vana) ou
desceu até o lago florido de lótus11.

Além disso, já no sarga LXIII, kānana é identificado com a mata profunda


onde representantes do adharma, criaturas demoníacas conhecidas como
rākṣasas, vagueiam e assombram quem passa. No entanto, trata-se aqui de um
equívoco advindo de uma precipitação na percepção do que jazia à beira da
morte, i.e. Jaṭāyus, rei dos abutres. Pleno de fúria pelo rapto de sua esposa,
Rāma diz a Lakṣmaṇa:
Trata-se simplesmente de um rākṣasa que vagueia pelos bosques
(kānanas) disfarçado de abutre. E ali ele se senta à vontade, após
devorar [Sītā] de olhos grandes. Eu quero matá-lo com meus dardos,
meus terríveis dardos certeiros de pontas flamejantes.12

Com efeito, Jaṭāyus é uma das mais salientes expressões do dharma


hindu no Rāmāyaṇa de Vālmīki. Em seu diálogo com Rāvaṇa, na tentativa de
derrubá-lo para libertar Sītā da abdução em curso, Jaṭāyus acaba incorporando
não apenas a exortação da obediência ao dharma hindu, mas também a
censura à refração de suas diretrizes éticas:
Rāvaṇa de dez cabeças, eu sou Jaṭāyus, o poderoso rei dos abutres,
que se mantém no antigo caminho do dharma e confia na verdade.13
Como poderia um rei que se mantém no caminho do dharma macular
a esposa de outro homem, ainda mais a esposa de um rei, que é

10 Na saṃhitā consta: “kva nu lakṣmaṇa vaidehī kaṃ vā deśamito gatā / kenāhṛtā vā saumitre
bhakṣitā kena vā priyā” (ArKā LIX,3. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível
em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6 de junho
de 2015).
11 Na saṃhitā consta: “priyakānanasañcārā vanonmattā ca maithilī / sā vanaṃ vā praviṣṭā

syānnalinīṃ vā supuṣpitām” (ArKā LIX,14. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script.


Disponível em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6
de junho de 2015).
12 Na saṃhitā consta: “gṛghrarūpamidaṃ vyaktaṃ rakṣo bhramati kānanam / bhakṣayitvā

viśālākṣīmāste sītāṃ yathāsukham / enaṃ vadhiṣye dīptāgrairghorerbāṇairajihmagaiḥ” (ArKā


LXIII,11. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível em:
<http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6 de junho de
2015).
13 Na saṃhitā consta: “daśagrīvasthito dharme purāṇe satyasaṃśrayaḥ / jaṭāyurnāma nāmnāhaṃ

gṛdhrarājo mahābalaḥ” (ArKā XLVIII,3. In: VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script.


Disponível em: <http://sanskritdocuments.org/mirrors/ramayana/valmiki.htm>. Acesso em: 6
de junho de 2015).
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inviolável acima de tudo? É algo desprezível, poderoso Rāvaṇa,
macular a esposa de alguém. Tire esta ideia de sua cabeça.14

Conclusão
Kānana, no Araṇyakāṇḍa, não é um locus privilegiado para o dharma,
nem de suas vivências ritualísticas védicas, nem de suas buscas existenciais
transmigracionais, permanecendo como um lugar onde essas realidades
acontecem mais por acaso do que por qualquer cálculo religioso ou fruição
espiritual que lhe seja pressuposto. Tão pouco sua frequência é estritamente
determinada por qualquer perfil pré-estabelecido, sendo apenas passagem – ou
possível residência fixa – tanto para eremitas hindus, quanto para rākṣasas,
podendo despertar diferentes expectativas quanto à natureza de quem o
habite. Ao que tudo indica, parece haver uma proporção entre a profundidade
da mata indiana simbolizada nestes bosques (kānana) e a incerteza na vivência
de religiosidades dhármicas hindus.

Referências
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14 Na saṃhitā consta: “kathaṃ rājā sthito dharma paradārānparāmṛśet / rakṣaṇīyā viśeṣeṇa


rājadārā mahābalaḥ / nivartaya matiṃ nīcāṃ paradārābhimarśanam” (ArKā XLVIII,6. In:
VALMIKI’S RAMAYANA in Devanagari script. Disponível em:
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