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Mario Ferreira Monte Apontamentos de DIREITO PENAL I Fundamentos Teoria da Lei Penal Braga 2020-21 Plano Parte 1 Fundamentos do Direito Penal T- Nogies 1. Direito penal 2. Crime 2.1, Nogio formal 2.2. _ Noeéio material 3. Bem juridico(-penal) 3.1. Nogo, sentido e aleance 3.2. Dignidade penal, necessidade de pena, efic Constituigao 4. Sango juridico-penal 4.1. Nogao ¢ principios 42. Apena 4.3, A medida de seguranga cia penal ¢ relagdio com a TI - Legitimagio, Fungies do Direito Penal e Finalidades das Reagdes Juridico- criminals 1. Legitimagao do diseito penal 2. Fungdes do direito penal 2.2. Fungdo de protegio subsididria de bens juridicos 2.3 Funglio de ressocializagio do agente do crime 2.4.Efeito dissuasor 2.5.Consequéncias funcionais: restaurago da par. juridica e da paz social 2.6 Deve o direito penal funcionalizar-se a protegao das vitimas? 2.6.1, O problema da necessidade de tutela das vitimas 2.62. A via da tipificagdo penal, sem desvirtuar 0 critério do bem juridico 2.63. A via da reparagio penal, sem desvirtuar a funcao preventivo- integradora do dircito penal 2.7.Deve o direito penal tutelar deveres? 2.7.1. Dalesdo de deveres pressuposta na lesdio de bens jutidicos ¢ da hipotese de protecio exclusiva de deveres 2.7.2. A relevancia das normas impositivas ou proibitivas de comportamentos no direito penal secundirio 2.73. Posi¢ao adoptada 3. Realizagao finalistica do direito penal através das sangdes 3.1 Finalidades das penas 3.1.1. Teorias absolutas 3.1.2. Teorias relativas 3.1.2.1.Teorias preventivo-integradoras 3.1.3. Posigdo adoptada 3.1.4. Novas tendéncias 3.1.4.1.0 neo-retribucionismo 3.1.4.2.As propostas restaurativas de pendor retributivo e as propostas preventivo-reparadoras 3.2.Finalidades das medidas de seguranga 3.3.A solugdo do Cédigo Penal portugues III - Sistema Global de Justiga Penal 1. Introdueao 2. Ciéncia conjunta do direito penal 3. Os ramos do direito penal 3.1.Esbogo 3.2 Direito penal de justiga (Cédigo Penal) 3.3 Direito penal secundario (legislacdo extravagante) 3.4 Direito processual penal 3.5.Direito de execugdo de penas ¢ medidas de seguranga 3.6 Dircitos especiais: dircito penal militar eda marinha mercante 3.7 Direito penal supranacional 3.7.1. O dircito penal internacional 3.72. O “direito penal” curopeu (da Unido Europeia ¢ do Conselho da Europa) 3.7.2.LA pretensao de um direito penal de tipo curopeu 3.72.20 direito penal da Unido Furopeia 3.7.2.3.A inspiraggo penal do Conselho da Europa 4. O sistema global e a realizagao da justiga penal 4.1.Nota introdutéria 4.2.A realizagdo integral da justiga penal Modelos alternativos ou complementares de justia com relevancia para 0 mbito penal 5.1.Nota introdutéria 5.2 Justica comutativa, geral ou legal, protetiva ¢ distributiva 5.3.A justica restaurativa como complementar ou alternativa da justi 53.1. Nota introdutéria 5.32. Caracteristicas da justiga restaurativa 5.3.3. Objetivos ¢ funedes da justica restaurativa 5.3.4. Problemas da justiga restaurativa 5.3.5. Posic&o adoptada 5.4., justica penal negociada (Plea bargaining) ¢ a negociagao da pena 5.4.1. Nota introdutéria 5.42. O sistema norte-americano da barganha 5.43. A experiéncia alema dos acordos sobre sentencas penais (Verstandigung zwischen Gericht und Verfahrensbeteiligten) 5.44, A negociagdo da penal em jeito de colaborago premiada © sua implicagdes no direito penal 5.45. Os espagos de negociagao em Portugal e a auséncia de uma justiga penal negociada IV - Diteito Sancionatério Pablico € Delimitagao do Diteito Penal 1. Direito sancionatério publico 2. Direito das contraordenagies 2.1. Origem e evolugao 2.2. Distinedo entre 0 ilicito contraordenacional e o ilicito penal 2.2.1. Critério distintivos 2.2.2. Posigéo adoptada 2.2.3. Consequéncias priticas do critério proposto 2.3. Diferengas entre o direito das contraordenagies e o direito penal na sangdo e no processo 2.3.1. As sangdes contraordenacionais 2.3.2. Especificidades processuais contraordenacionais e subsidiariedade do processo penal 2.4. Autonomia do direito das contraordenagbes e subsidiariedade do direito penal 2.5, Alusao ao ilicito administrativo stricto sensu Direito diseiplinar Direito tutelar de menores 4.1. A Lei tutelar educativa 4.2. A Lei de protecdo de criangas ¢ jovens em perigo 5. Sangées processuais 6. Penas privadas, de conformidade (Compliance) ¢ medidas de regulagao Bw V- Historia, Fontes ¢ Prineipios do Dircito Penal Portugués 1. Breve resenha historica do dircito penal portugués 1.1.Da resolugio privada dos conflitos penais até d tentativa de resgate, pelo poder instituido, da tutela penal 1.2.As Ordenacoes ¢ 0 fortalecimento do poder punitive do estado 1.3.A influgncia iluminista ¢ 2 codificagao penal moderna 1.4.0 direito penal contempordneo humanista e democritico 2. Fontes do direito penal 2.1.0 direito positivo 2.1.1, Constituigo da Republica Portuguesa 2.12. Cédigo Penal 2.1.3. Leis extravagantes 2.14. Leis especiais 2.1.5. Leis supranacionais 2.2.A jurisprudéncia 2.3.A doutrina 2.4.0 dircito costumeiro internacional (prineipios gerais de dircito intemacional ‘comummente reconhevido) 3. Principios do direito penal Parte II Teoria da Lei Penal I- 0 Principio da Legalidade Criminal Enunciado Origem e desenvolvimento Fundamentos, fungdes e validade Sentido e aleance 4.1. A kei penal deve ser prévia, escrita, estrta, certa e parlamentar 4.2. Excegies ao principio da legalidade criminal: o direito penal internacional 5. Implicagdes normativas do principio da legalidade criminal aeRO 5.1. 0 facto tem de estar descrito na lei (egalidade e tipicidade) 5.2. O principio da legalidade nas medidas de seguranga 5.3. A proibigao da analogia incriminadora. © problema da interpretagiio extensiva ou de qualquer interpretacdo incriminadora II- Eficacia Temporal da Lei Penal principio: vigéncia para o futuro ¢ irretroatividade in malam partem A excegio: retroatividade da lei penal nos casos mais favoriveis Ambito do principio e da excegao Implicagdes normativas da eficacia e sucessao temporal das leis penais. 4.1. vigéneia da lei penal “no momento da pratica do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem” 4.2. Os processos de descriminalizagzo 4.2.1. O problema em geral 4.22. Problemas coneretos a) 0 problema da alteracio de pressupostos de que depende a ilicitude de um facto, sem a sua eliminagao do mimero de infragées b) © problema da sucesso de leis sancionatéria (penais ¢ contraordenacionais) ©) O problema da alteragao da base da ilicitude (bem juridico), sem eliminagdo do facto do mimero de infracaes 4.3. As leis temporarias (disting40 com leis intermédias) 4.4. Os processos de despenalizagao 4.4.1. A despenalizagéo ou redugéio de pena 4.42. 0 regime concretamente mais favorivel ao agente 4.4.3. Situagdes especiais de determinagao do regime aplicavel 5. O momento da pratica do facto 5.1. O eritério: 0 momento da realizago da conduta 5.2. 0 fundamento do eritério 5.3. Concretizagao da determinagao do momento da pritica do facto em situagdes especiais ¢ implicagdes praticas Bee Ill- Eficacia Espacial da Lei Penal 1. O principio da territorialidade e sua extensao (pavilhdo) 2. Excegdes ao principio da territorialidade 2.1. Enunciado 2.2.0 principio da convencionalidade 2.3. 0 principio da defesa dos interesses nacionais 2.4. O principio da nacionalidade 2.5. 0 principio da universalidade 2.6. O principio da administra¢ao supletiva da justica ou da lei penal 3. Aprofundamentos dos principios de extraterritorialidade (restrigdes a aplicagao da lei penal nacional) 3.1, Enunciado 3.2. A aplicagio da lei penal estrangeira por tribunais portugueses 4.A extradigdo, o mandado de detengdo europeu e a cooperagdo com o tribunal Penal Internacional 4.1. A extradigao 4.2. 0 mandado de detengao europeu 4.3. A relevancia do Estatuto do tribunal Penal Intemacional enquanto instrumento de cooperacao internacional que vincula Portugal 5. O lugar da pritica do facto 5.1. 0 critério: o lugar de realizagdo da conduta ¢ 0 da produgo do resultado 5.2. 0 fundamento do critério 5.3. implicagdes normativas e praticas do critério 5.4. O lugar da pritica do facto nos crimes tentados IV- Eficacia Pessoal da Lei Penal 1. O principio 2. As excegies 2.1. As imunidades dos chefes de Estado estrangeiros 2.2. As imunidades diplomaticas 2.3. As excegdes apliciveis aos titulares de cargos politicos 2.4. As excecies decorrentes do exereicio de faneao jurisdicional 3. 0 direito penal de jovens adultos Parte I Fundamentos do Direito Penal Parte | Fundamentos do Direito Penal NOCOES 1. Direito penal 0 dircito penal ¢ o conjunto das normas juridicas que definem 0s factos tipicos ¢ ilicitos — incluindo os pressupostos ¢ 0 imbito da sua relevncia — ¢ respetivas consequéncias juridicas — as penas, em fungio da culpa, e as medidas de seguranga, que supdem a perigosidade': Ha quem prefira chamar direito criminal, Fm geral, uma e outra denominagdes referem-se & ‘mesma realidade. © direito penal tem o sev radical etimol6gico na pena, a0 passo que o direita criminal encontra 0 seu fundamento mais préximo na nogio de crime. Q primeiro tem a desvantagem de, na sua formulagio ~ que no no seu conieiido ~, desatender as medides de seguranga, © segundo, parecendo tecnicamente mais abrangente, acaba por nio se adcquar aos factos puniveis com medidas de seguranca, uma ve7 que 0 pressuposto do crime € a cuipa e esta falta nos comportamentos nio “criminais” a que se aplicariam aquelas medidas. A verdade & que © Tegislador, por veres, nfo leva em conta este tipo de distinggo, Por exemplo, no Cadign de Processo Penal (CPP), crime é 0 conjunto de pressupostos de que depende a aplicagdo ao agente de ‘uma pena ou de uma medida de seguranca, F normal, nos paises de tradicao eurc-continental ou de inspiragio frunco-germinica encontrar denominagées como “Strafiecht”, “Droit pénal”, “Dereche penal”, “Dirito penale”, correspondentes a de direito penal, ¢ expresses como “Strafgesetzbucl “Code Pénal’, “Codigo Penal”, “Codice Penale”, sinénimos de Cédigo Penal, ou ainda expressdes como Tribunal penal ou Justiga penal: ¢ nos paises de tradigéo anglo-americana é normal usarem- se conceitos como “Criminal Law”, “Criminal Act” ou “Criminal Justice” e “Criminal Court” a que corresponderiam expressdes como direito criminal, Lei/Cédigo criminal, Justiga criminal ¢ Tribunal criminal, Certamente que encontrariamos ra7ies histéricas e de ontra natureza que explicariam estas opgdes. E muito provavelmente porque uma e outra expresses tém sido usadas indistintamente, vindo a ser irrelevante adotar um ou outro designativo, © direito penal ¢ um ramo de direito piblico, Pressupde uma relagdo juridica entre Fstado ¢ cidadao, F3 0 Fstado que ¢ detentor do direito de punir (Jus puniendi), que administra a justiga penal e que aplica as sangées criminais no interesse © em nome da sociedade. Trata-se de um sentido subjetivo de direito penal. No sentido objetivo esta o conjunto de normas juridicas que 0 Estado produz com vista a definir 0s factos tipicos € ilicitos ¢ respetivas sangdes (Jus Paenale) . Assim sendo, nfo ha espaco para uma justiga penal privada. Ainda que os comportamentos de natureza criminal possam ser realizados por cidadaos contra outros cidadaos, em regra, quando se verifica um crime, é 0 Estado que assume a resolucao do problema. Os interesses em causa sao relevantes para toda a sociedade, ¢ ndio apenas para os principais intervenientes. Naturalmente que ha espago para o consenso, para o acordo, para a desisténcia, mas so solugdes de diversio penal que, & uma, estdo previstas no direito penal e, & outra, ndo sucedem a margem do Estado, ‘mas sob sua tutela, mais ou menos presente. " Nao disante desta no¢io, veja-se Figueiredo Dias, 2007: 3, Germano Marques da SiLva, 2010: 30 e Faris Costa, 2015: 3, entre outros. este sentido, Figueiredo Dias, 2007: 6, Apontamentos de Direito Penal Mario Monte Ha ainda a possibilidade de distinguir direito penal em sentido formal e em sentido material’, Naquele primeiro sentido teriamos as normas que regulam os pressupostos, as consequéncias das condutas, cominadas com uma pena ou medida de seguranga. Como sempre ensinou Roxin, «o direito penal em sentido formal é definido pelas suas sangdes»*, Neste sentido, sé integraria 0 direito penal o que fosse passivel de uma pena ou medida de seguranga. Ao passo que, em sentido material, olhamos para o objeto dessas normas, ou seja, a matéria de justiga penal. Ambas se complementam: o direito penal trata as condutas sancionadas com uma pena ou uma medida de seguranga, quanto aos seus pressupostos e consequéncias; que, por sua vez, tem como objeto a matéria que é de natureza penal, ou seja, de justiga penal”. Daqui resulta, por exemplo, que havendo um direito penal material, ha ramos que Ihe sao préximos que com ele se nfo confundem. Por exemplo, o direito processual penal, que se diferencia por nda ser materialmente penal, mas por ser um ramo de direito (penal) adjetivo, rectius, direito processual. O mesmo diriamos, por exemplo, do direito de execugao das penas ¢ medidas de execugao. E um modo de ver as coisas. Porém, cremos que esta distingdo faz mais sentido no que diz respeito ao crime. E talvez, a partir da distingdo entre 0 conccito formal ¢ material de crime, se possa entio compreender melhor 0 dircito penal nas suas dimensies formal ¢ material. F isso que faremos de seguida, num olhar pelas trés categorias sobre as quais se funda o direito penal: o crime (em sentido amplo), a sangfo (pena ¢ medida de seguranga) € 9 bem juridico. Crime e sangdo estio intimamente ligados, como jé vimos. E estéio-no porque cada conduta contém a violago de um bem juridico que tem dignidade penal e, na sua protegdo, nao dispensa a pena. Razao pela qual comegaremos pela nogdo de crime ~ aqui tratando 0 estado de perigosidade ~, indo depois i de bem juridico e, finalmente, a sancdo (pena e medida de seguranca) 2. Crime 2.1, Nogdo formal Formalmente, 0 crime vem 2 ser o facto humano, voluntirio, tipico, ilicito e culposo declarado como tal numa lei penal, a que corresponde uma sangio penal; quando o facto néo é culposo e lhe corresponde uma medida de seguranga, trata-se de um estado de perigo: f lade" ‘0 crime (ou 0 estado de perigosidade), para o dircito penal, nio é uma realidade meramente fenomenoldgica, sengo juridicamente relevante. Por isso, s6 pode ser um facto legalmente estabelecido, Nessa medida, s6 pode ser um comportamento humano que realize um tipo legal ¢ que, por isso, quando culposamente, pode ser punido com uma pena ou, quando tenha na sua base um estado de perigosidade, pode ser saneionado com uma medida de seguranga. Em sentido formal, s6 possuem relevancia juridico-penal os factos que estiverem tipificados e sejam susceptiveis de uma pena ou medida de seguranga. > Cf RoxNiGeeco, 2020 “ E continua a ensinar, agora na comparshia de Luis Greco (ef: RoxiwGneco, 21 * RoxiniGREco, 2020 © Em idéntico sentido, Germano Marques da SILVA, 2010: 31 e Terese BELEZA, 1984: 21, referindo-se a esta nogao também como esiratural 02) Parte | Fundamentos do Direito Penal © Codigo Penal (CP) nao oferece uma definigao de crime. Nem tinha de 0 fazer. Mas, no artigo 1°, n." |, 20 referiro principio da legalidade, alude ao crime como sendo «o facto descrito ¢ declarado pessivel de pena por lei anterior 2o momento da sua priticay. Curiosamente, © CPP, no artigo 1°, n° 1, alinea a), vem a ser mais assertivo, na medida em que considera «”Crime” © conjunto de pressupestos de que depende a aplicagio ao agente de uma pena ou de uma medida de seguranga criminsisy, Em ambos os casos trata-se de uma definigio formal sem referéncia 2 tum conteiido ou fundamento material. Esse conteiido deve scr, tanto quanto possivel, deasificado Eo que deve procurar fazer-se de seguida. Antes de passarmos a nogio material, apenas uma questo de preciso conceptual. Nao raras vezes 0 termo crime é usado para abranger tanto o facto criminoso culposo (crime em sentido préprio) como o estado de perigosidade. Trata-se de uma utilizagaio corrente e ampla, Embora técnico-juridicamente ndo seja correta, uma vez que 0 termo crime pressupde a realizagao do facto culposo, ¢ portanto nao se confunde com © estado de perigosidade, a verdade & que para efeitos de exposigio, também aqui, em geral, utilizaremos a expresso em sentido amplo, para abranger as duas realidades. ¢ apenas para facilitar a exposigdo. Sempre que todavia for necessério, faremos a distingdo terminologica que se impée. 2.2.Noao material Materialmente, 0 facto eriminoso é todo 0 comportamento humano ético- juridicamente relevante ou emergente de um estado de perigosidade que ofende bens juridicos dignos e carentes de tutela penal’, S6 assim poderd ser tipico, ilicito ¢ culposo/perigoso. Fstamos de acordo com Germano Marques da Silva quando diz que a consideraao do crime come «um facto humano voluntirio que lesa ou poe em perigo de lesto bens juridicos protegidos pela ordom juridica» ¢ «insuficients para a dogmética ponal», porque carsce de outras tres: «@ tipicidade, a ilicitude ¢ a culpabilidadey. Mas recebe estas trés notas fundamentais apenss 0 [acto ue substancialmente ofender bens juridicos dignos e necessitados de tutela penal Um facto no seri tpificado se aio for ilicito. E para o ser deve ofender bens juridicos dignos e necessitados de tutela penal, Nuns casos, essa ofensa traduz uma vontade que deve ser ético- juridicamente valorada, deve ser culposo, ao paso que, em outros casos, 0 comportamento provém e um estado de petigosidade, deve ser perigoso. Mas o que nfo podemas excluir é que o conteiida material do facto criminoso € dado pela ofensa a bens juridicos dignos e carentes de tutela penal. Sé este tipo de comportamento € que pode aceder a categoria de facto pico, ilicito © culposo (ou perigaso). F, portanto, o micleo do contetiéo material do conceito de crime & a ofensa a bens juridicos com dignidade e necessidade penal Na definigdo material que de modo abreviado aqui deixamos vai implicita a adesdio a uma perspetiva do direito penal segundo a qual este tem como principal fungio a protegao subsididria de bens juridicos. Podia ser outra a sua fungi, ¢ logo materialmente outra a nogo de crime ou de estado de perigosidade. Por exemplo, a tutela de verdadeiros deveres, nomeadamente o dever de cooperagio do cidadio com ” im idéttico sentido, mas partindo da fungio do diteito penal ~ a «tutela de bens juridicos» -, para aleancar «o elemento constitutivo mais relevante do conceito material de crime», vai Figueiredo DIAS, 2007: 123 es, Germano Marques da Sita, 2012: 12. 10 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte 0 Estado ¢ 0 Direito. Mas, como veremos adiante’, estas propostas levantam sérias reserves. Para melhor se compreender esta nogio, convém saber que no foi sempre este 0 entendimento, Na historia mais recente", num primeito momento, o positivismo legalista preseindia de um ccontetido material de crime e apostava numa nogio meramente formal, no sentido correspondente a0 que hoje formalmente se designa por crime: todo o comportamento que fosse como tal ‘considerado pela lei, A dificuldade em considerar.como-tal um determinado comportamento ter’ provocado, a partir da célebre obra Dei Delitti e Dele Pene, de Cesare Beccaria, em 1764", « procurade um conteido material de crime Assim, o posttivismo considerow uma nogio que encontrasse na sociedade alguma relevancia fe, mais do que isso, o fundamento para a qualificagdo juridica que constituiria 0 contetido da norma penal, Numa primeira fase, esse fundamento foi encontrado no dircito natural, como algo ‘que, independentemente do lugar e do tempo, fosse comummente considerado danoso para 0 Homem e para a sociedade. Os esforgos realizados por Autores como Garofalo, Durkheim e Von Lia viriam ¢ chemar a atengdo para a uecessidlade de se deteminar um eonteio para a nogo de crime como algo que de algim modo prejudicaria o Homem, na medida em que afetaria 2 “ordenagdo social” e, porlanto, que emergisse da consciéncia coletiva, Foi, por assim dizer, um esforgo para encontrar um fundamento sociolégico para a propria ‘qualificagio juridico-penal. Fundamento que, ora se topou ma ideia de ofensividade, na doutrina ‘europeia continental, ora na ideia de danosidade social ~ o “principio do dano” (na expresso de John Stuart Mill)-, no mundo anglo-americano. E muito relevante este esforgo, porcue ele constitai a base de uma legitimagio metajuridica do crime. Quando se cniica esta concegao sociologica de enime, apontando-se-Ihe defeitos como “a imprecisao”. nfo pode esquecer-se que ela continua a ser itil no esforea de legitimagao do direita pperal. 0 direito penal, sendo um sistema de normas juriicas, nao € mais do que o reduto juridica ‘de uma determinada conceydo social da vida. Que, no entanto, o conteido matcrial de crime nao pode dispensar uma certa densificacao ético-juridica € algo que o debate subsequente que se travou viria, com inteira rucio, a demonstrar. Por isso, ja no séculp passado apastou-se numa concesio moral, rectus, ético-social, de crime. A “violagio de deveres ético-sociais elementares ou fundamentais™, seria, para Awores ‘como Welzel, o contetido material de crime E evidente que o direito penal, com as suas penas, censum élico-juridicamente comporiamentos eriminosos (deixando, por ora, de lado os estados de perigosidade). Frxiste por‘anto, um fundamento ético na sua intervengo. No entanto, se 0 conteiido material de crime se ficasse por uma concegan ético-social, facilmente atiraria o direito penal para uma fungao de tutela moral. Ver-se-é adiante que nio pode confundir-se a Fungo do direito penal com a tutela da moral. £, aliés, curios notar, como 0 faz Figueiredo Dias!, que tenha sido Sio Tomés de Aquino, Doator da Igreja e eximio cultor da moral cristf, quem advertin para a perigo de legislador se deixar seduzir pela tentagio de proteger, com o direito penal, as infragSes da “moral object © que fazia falta era densificar juridicamente 0 conteiido material de erime que, como comega a perceber-se, ndo poderi desligar-se da propria fungao do direito penal. Por isso, surgiu uma petspetiva racional que, enunciando a fungio do discito penal como sendo a de tutela subsigidrie de bens juridicos com dignidade penal, acabou por circunserever 0 contetdo material do crime & nogio de bem juridico-penal. Em Portugal, foi esta concegae teleolégico-funcional e racional que, nos nossos dias, acabou por conferir ao crime um conteiido material, numa dupla feigio: a teleolégico-funcional, segundo ‘a qual o conteiido material de crime deveria ser «imposto ou permitido pela propria fungdo que a0 direito penal se adscrevesse no sistema juridico-penaby; a racional, segundo a qual, aquela nogao ®NoCap I, ponto 26 "" Para maiores desenvolvimentos, Figueiredo Di4S, 2007: 106 e5s., «quem seguimes de peto " Existeversdo portuguesa: Cesare BECCARIA, Dos Delits e das Penas, Trad. de Faria Costa ¢ Rev. de Primola ‘VinctaNo, Lisboa: Fundagdo Calosute Gulbenkian, 1938, "© expresso ¢ de Figueiredo D1AS, 2007: IL, aludindo todavia aos ensinameatos de WELZ "Figueiredo Dias, 2007 113 1 Parte | Fundamentos do Direito Penal deveria «resultar da fungéo atribuida ao direito penal de tutela subsidiéria (ou de ultima ratio) de bens juridicos dotados de dignidade penal (de “bens juridico-penais")» Naturalmente que esta nogio nio afasta dois problemas: um, o da dificil definigio material de bem juridico; outro, o da definigao da fungio do direito penal. Ao primeito, dedicaremos espago de soguida!”, ao segundo, referirnos-emos quando trstarmos © tema das fangées do dircito penal". Algumas consequéncias devem ser extraidas desta concegao material de crime"”, Em primeiro lugar, a relevancia ética nfo se confunde com a tutela de virtudes ou interesses morais, uma vez que se trata de proteger bens juridicos — por isso é que se diz “relevaneia ético-juridica”. © contetido material de crime, podendo coincidir com a promogao de virtudes humanas, a elas se nao reconduz porque sempre careceri de um recorte juridico que resulta de uma opgao demoeratica. Um exemplo pode ajudar: no Cédigo Penal de 1886, no artigo 401.°, previa-se o crime de adultério; hoje, essa situagfo, ainda que social ou moralmente possa ser censuravel, néo é tutelada criminalmente. Naquela mesma linha ¢ em segundo lugar, também nfo integra 0 contetido material de crime a defesa de propostas ou conviecdes meramente ideolégicas'®. Nao sc confunde isto com a moral, mas sabemos que na historia nao é estranha a utilizagao do direito penal ao servico de pretensées exclusivamente ideoldgicas. A. titulo exemplificativo, nio podemos deixar de lembrar 0 direito penal do TIT Reich, onde ideologia nacional-socialista colonizava toda a dogmatica juridica, com todas as implicagdes priticas que so conhecidas, Fssa, por ndo ser a fungdo do direito penal, nao pode fundamentar o contetdo material de crime. A proteao de bens juridicos implica um esforgo de identificagao, em cada comportamento humano censurivel, de um verdadeiro interesse juridico comum, ¢ nfo de uma ideia, de uma conviegio, ou até de um interesse que corresponda a uma agenda ideoldgica. Em terceiro lugar, também nio sero tuteladas pelo direito penal (estadual), por muito televantes que sejam, fungdes confessionais, corporativas ow particulares, que nao tenham uma relevaneia geral. Um exemplo pode igualmente ilustrar: no Cédigo Penal de 1886, no artigo 136° (¢ seguintes), previam-se os crimes cometidos por abusos de fungdes religiosas. Tais comportamentos, que consistiam na utilizagao de fungGes religiosas para algum fim temporal, ainda que tivessem relevancia para 0 ministério eclesidstico, nao podiam continuar a ser tuteladas pelo direito penal (cstadual), como no so; 0 que nfo significa que ao direito canénico nfo possa ser reservada competéncia para punir tais factos. Dito isto, convém sublinhar que os factos cometidos no seio de uma instituigdo religiosa ou de algum modo corporativa, que sejam relevantes para a sociedade em geral, ¢ obvio que serio punidos criminalmente. $6 nao 0 serio os factos que, relevando para o ambito funcional da instituigdo, ndo tenham qualquer importéncia para o direito penal estadual, porque ~ ¢ aqui esté 0 punctum crucis ~ 0 direito penal tutela bens juridicos dignos e carentes de tutela penal, mas no fungdes particulares, confessionais ou corporativas, por muita relevancia que tenham essas fungdes para as respetivas instituigdes. Problema interessante que a este propdsito se deve colocar é 0 de saber se os crimes militares devem considerar-se abrangidos por esta limitagdo. Naturalmente que a resposta € «Figueiredo DIAS, 2007: 113 ¢8 "= No ponto 4 6 No Cap. Mt, ponto2. "” Referem-se a elas Figueiredo Dias, 2007: 123 ss. (na sends de ROXIN). Apenas acrescentamos duss que, em ‘igor, esto implicitas nas restantes, mas que devem ser enftizacas e, portanto,autonomizadas "De «proposizdes (ow imposigdes de fins) meramente ideologicas», como refere Fisucredo Dias, 2007: 125, 12 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte negativa. Os crimes militares tém relevo estadual (geral), ainda que sejam especiais, Na verdade, nao séo excepcionais; séo especiais, Em quarto lugar, na relevancia ética esti a pedra-de-toque para, nos casos em que estejam em causa bens juridicos, mas que ndo exista ressondncia ético-juridica das condutas que esto na base do ilicito penal, ndo dever ser o direito penal a intervir. Ver-se-d que, em geral e de acordo com o critério hé muito enunciado — que todavia comega agora a sofer alguma erosto —, comportamentos humanos que ofendam bens juridicos destinados a uma certa ordenagio social, mas cuja ofensa nio implique relevancia ética, deverdo ser tutelados, por exemplo, pelo dircito das contraordenagdes"”, Problema aqui é que o direito das contraordenagdes pode assumir a tutela de verdadeiros bens juridicos com dignidade penal, aos quais, porém, a desnecessidade de uma pena os atira para fora do direito penal. Como € dbvio, a desnecessidade da pena ndo é indiferente a considerag3o da infrag3o como nao criminal. E, portanto, com todas as implicagées, essas infragdes devem ser tratadas ‘como aquilo que sao: contraordenagées. Finalmente, © conteiido material de crime nao pode incluir a tutela de meros deveres. Os deveres juridicos podem em muitos casos estar ligados a protesao de bens juridicos, como amplamente sucede no chamado direito penal secundario”. Mas uma coisa é 0 cumprimento de deveres funcionais, outra coisa é saber sc 0 seu incumprimento gera @ violagio de bens juridico-penais. Nem sempre a violagdo de deveres pressupde ou implica a ofensa de bens juridicos; ¢, mesmo que isso suceda, ao incumprimento de deveres, com autonomia, devem corresponder reacdes juridicas préprias, de tipo disciplinar, que se nfo confundem com as reacdes criminais. Para a exclusiva tutela de deveres funcionais estarao outros ramos do dircito, como é 0 caso do direito disciplinar’’. Ao dizer isto, também devemos acrescentar que, ultimamente, comega a discutir-se a fundamentagio de alguns tipos legais de crime que, mais do que a defesa de um bem juridico, parecem apostar na tutela de deveres (ndo necessanamente funcionats e, portanto, no confundivets com 0 ilicito disciplinar), Mas sobre esta questéio remetemos para 0 ponto seguinte”, 3. Bem juridico(-penal) 3.1. Nocio, sentido e aleance De um modo simples, bem juridico-penal é a expressio de um interesse juridicamente relevante para a convivéncia comunitiria/social, num determinado momento ¢ espago, digno de protegio penal e carente dessa tutela”. Varias refragdes explicam esta nogao. Trata-se de um interesse valioso; no um qualquer interesse, mas aquele que € indispensavel para a vida em sociedade, aquele sem o respeito pelo qual a © Adiante,no Cap. LV, dedicaremos o ponto2. a este ramo do Dist ® giante, no Cap. HI, dedicaremos 0 ponto 33. a esta parte do drei penal 2! aiante, no Cap. IV, dediearemas um ponio 3.1 este ram do Diet. ® E para o ponto 2.6, doCap. Il kim sentido n8o muito diferente dest vee-se Figueiredo DIAS, 2007: 114, e Faria Costa, 2015: 169. Também no muito diferente do que hi cerca cinco lstos (Mirio Monte, 1996: 227) ecrevemos: «Os ens juridics hie de se, assim, os valores ou interesses que, ligados ao Homem enquanto ser sociivel, tomam possivel 4 convivéncin social © de cuja violagdo resularé 4 impossitilidade de uma tal comvivéncian. Mas agora, como & natural, com maior objetividade do que a que, porventura por uma cena nevessidade de ligar a nogo a uma referéneisantropocéntrica, nos ata para uma cetasubjeividade. De comur, asia prestimosa e indspensavel relagio com a convivéncia 13 Parte | Fundamentos do Direito Penal convivéncia se torna insuportivel. O proprio termo “interesse” (“inter essere” = estar entre) remete para uma dimensio intersubjetiva. Por isso, independentemente do modo como cle se possa manifestar — individual, supra-individual, difuso, coletivo, como um prius ou um posterius, com maior ou menor referéneia antropoldgica ~, hi de sempre dirigirse, em dltimo termo, a garantir a vida em sociedade, meio indispensavel para a realizaco plena da pessoa humana Quando se diz que ele se destina a convivencia, pensamos nas plirimas dimensdes que essa convivéncia pressupée: cultural, social, econdmica, pessoal, ete. Por isso, poder-se-ia dizer que o bem juridico € aquele que é comunitariamente relevant, E, deste modo, tal bem ¢ comunitariamente tio relevante que, apés um processo de selecdo, acaba por ser juridicamente promovido © protegido: a uma, vem a ter dignidade penal; & outra, vem a necessitar da pena na sua protego penal. ‘Atendendo a que se trata de um interesse valioso, o bem juridico tende a adquirir alguma estabilidade, alguma perenidade. Mas nao esta imune ao devir histérico. Naturalmente que tem necessariamente um caracter contingente ou, melhor, uma dimensio espacio-temporalmente condicionada. Para tempos ¢ espagos diferentes, os bens juridicos podem ser distintos. sta nogdo assumidamente simples ro esconde todo um processo evolutivo™ que conduriu 2 nogdes mais elaboradas e que, de algum modo, encontram algum paralelisme com a nog material de crime Tendo comegado no inicio do Séc. XIX, expressio do jusnaturalismo penal, a entender-se 0 crime como lesio de um direito™, sc., uma lesio juridica, teré sido com Tohann Rimbanm, em 1834, que se caminhou decididamente para uma nogao material de hem juridico, enquanto interesse fundamental do individuo na sociedade, destacando-ss aqui os interesses individuais. Por agai se afirmava uma nocio liberal e individualista de bem juridico, a que nao seria alheia a concecéo de Feuerbach, segundo a qual o crime seria uma lesio de um direilo subjetivo, com evidente subordinago do conteido material de crime & ideia de Tiberdade do individuo, Mas Timbaum teve © mérito de destocar o foc do crime da lesio de um direito subjetivo para a lesto de um bem juridico, ainda que de cariz individual. ‘A Karl Binding caberia © aprofundamento da natureza juridica do bem a proteger, mas de ume tal forma que ndo passou de uma proposta eminentemente juridico-positiva, Para 0 Avtor, bem juridico seria simplesmente algo que & norma determinasse como tal, independeatemente das rmotivagdes que estivessem na bate das escolhas do legisladr. Pelo que o crime seria a desobediéneia formal & norma juridica, enquanto lesdo do bem juridice. O mérito desta cone estava no facto de Binding apelar a importancia do bem juridico enquanto tal, ou seja, ndo seria quer interesse que teria protecio penal, mas apenas aqueles que tivessem. aos olhos da islador, relevancia jutidica para essa tutcld”. Esta concesSo formalista viria a ceder lugar a uma 1 de cunho politico-criminal, encabegada por Franz von Lise, Fste Autor, pretendeu de algum modo afastar 0 poder absoluto do Estado e dar um sentido material & nogio de bem juridico, um ppouco & semelhanga do que se passava com a nogdo de crime. Conotou-o ent3o com o interesse Vital, enquanto «interesses do individuo ou de comunidade»”. Ainda que © bem juridico 0 fosse em fungdo de ums norma que o protegesse, 0 Auior dstinguia o ordenamento juridico dos interesses da vida, e s6 nestes, s6 na vida em sociedade, encontrava fundamento pare a incriminagdo penal. Por isso, 86 ascenderia & categoria de bem juridico © interesse que fosse vital. De um modo geral vigorava sempre uma concegio, ja tributéria de Birnbaum, assumidamente liberal, que afirmava 0 bem juridico como categoria individual Anda que 0s Autores neokantianos viessem a aprofundar no sentido de que o bem juridico seria 6 fim reconhecido pelo legislador na norma penal, com fundamento no mundo espiritual e subjetivo % Para maiores desenvolvimentos, entre outs, Figuecedo DIAS, 2007: 114e ss; Mario MONTE, 1996: 71 es 2 Bustos RawIRE7, 1984 49 ess % Birnbaum, 1834: 149 e ss. Concordando que foi BRNBALM quem pela primeira vez enunciow a nogio de bem iuriico, sto Costa ANDEADE, 199: SI, Figueiredo Dias, 2007: 115, ¢ Fania Cosr,2015: 165, entre ours 2° Cf. Costa AXDRADE, 1991: 56 €s.,e Mario MoNTE, 1996: 272 2 BUSTOS RAMIREZ, 1984: 53. ® Laser, 1908°6. 14 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte Gos valores culturais, ¢ portanto, sem grandes desenvolvimentos dogmaticos, « verdade é que # discussio que se gerou a partir dai, com 3 nacional-socialistas, levou a que estes apontassem ne necessidade da superagdo daquela concepgao liberal e individualist, que considerevam ultrapasseda, porque contriria ao “espirito do povo”™. O apelo a consideragdo de um fundamento coletivo, social, nfo foi em vio, Pela mao de Welzel surgiria uma visio proxima do interesse social, ou seja, 0 bem juridico seria ‘um «bem vital do grupo [comunidade] ou do individuo que, pelo seu significado social, & protegido juridicamenten"!. A soma dos hens juridicos seria a ordem social, fim siltimo das normas juridicas Ha aqui subjacente uma perspetiva ético-social de bem juridico, porquanto cortesponderia a uma ‘ungao do direito penal que seria esta: «protecao dos valores ético-sociais elementares do sentir (de igo), e 6 depois incluindo nele, a protegio de bens juridices individuaisy?. E, por isso categoricamerte, para Welzel, bem juridico é «todo o estado social desejado que o direito quer assegurar contra lesOes». Hi agui de algum modo um resgate da doutrine de Binding, na medida em que a norma é que seria relevante, mas, com ela, os deveres ético-sociais passariam a ter importincia, como criterio para as escolbas do legislador. Esta posigdo & da maior importéncia para © direito penal, porque verdadeiramente é cla que levanta o problema éa legitimagdo das escolhas do legislador ¢, com isso, da legitimagdo do proprio direito penal. Mas também ¢ verdade que uma tal concep¢ao nao resctvia o problema da definicio do bem juridico, porquanto, embora ligada 2 uma cert necessidade de proteger os valores ético-sociais, indispensiveis & convivéncia, no deixava de convocar a tutela de interesses morais, o que poderia gerar confusio com a fungi que 20 direito penal devemos reconhecer e que nao passa pela tutela da virtude ou da moral” De resto, & bom que se saiha também que a nogio passou por momentos de algum esfalecimento ou, pelo menos, esva7iamento, Tera sido com o final da segunda guerra mundial, ¢ todas as sequelas que © conilito havia deixado, que se sentiu a necessidade de relancar importancia da definicio do bem juridico, e consequentemente da dogmitica do direito penal Surgiram correntes socioligicas, que buscaram o seu conteido no sistema social ou simplesmente va ideia de danosidade social. Vieram as correntes constincionais, que, preocupadas com & necessidade de se limitar 0 poder estatal de intervengdo penal, apostaram na legitimagio consfitucional do bem juridico e, portanto, reconduzindo 0 seu conteido a0 que a Constituigac eterminesse, sobrande para o legishador ordinério o poder de claborar as normas penais de acordo com os comandos constitucionais. De permeio, houve quem chegasse a ver 0 bem juridico como mera formula interpretativa do tipo legal de crime. Fra, no fundo, a redugao do bem juridico a uma fango puramente hermenéutica, que acabou por ser duramente eriticada por vivios Autores, entre (os quais Figueiredo Dias, por considerar que uma tal formula conduziria 0 bem juridico a0 «seu esvaziamento de conteido € a sua transformagdo rum conceito legal-formal que rada adianta lace & ‘ormala conhecida (e respeitivel) da intempretagao teleoldgica da norman A venlade & que as correntes sociolégicas © consitucionais tém dominado o debate juriico- penal em tomo da definigao de bem juridico, Fm Portugal, por exemplo, € maioritariamente seguida a concepetio telcologico-funcional ¢ racional, da qual resulla que 0 bem juridico seria «a expressiio ée um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutengao ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socigimente rcievante € por isso juridicamente 1 valiosoy. Por aqui se vé que hi como que uma inspiragio das correntes constitucionais, mas sem se deixar de atender & relevineia do sistema social Qualquer que seja a nogio de bem juridico a adotar, ela sempre enfrentard alguns problemas. Isso assim sucede porque a sua definigio encerra duas dificuldades distintas mas complementares: a do proprio contetido material de bem juridico e a da sua base legitimadora. ‘Tém razo os Autores que entendem que a resposta a este tipo de problemas se encontra na chamada danosidade social ~ a ofensa 20 bem juridico constituiria acima © Para mais desenvolvimentes, vejt-se Miro Monte, 1996: 273. » WeLZEl, 1956: Ses ® Ino, 1956:5 ® Nesse sentido, em tom ertico, Figueiredo Dias, 2007: 112, Figueiredo Dias, 2007: 116 °F a posigho de Figueiredo Dias, 2007: 114, quem explica que aquetaconcepeto teleoligico-funcional eracional leva pressuposta uma orientagdo politico-crimiral e «nesta medida, inta-sisematico relativamente ao sistema social e, mais conerctamente, ao sistema juridico-consttucional» 1s Parte | Fundamentos do Direito Penal de tudo um dano social, de que, de alguma forma, 0 harm principle (principio do dano) tipicamente anglo-saxdnico é paradigmatico. Como nos parece indiscutivel que qualquer solugio ha de encontrar na Constituigio © seu fundamento juridico — a Lei fundamental seria o lastro da ilicitude penal, porquanto ai estariam os bens juridicos em poténcia, escritos ou pressupostos, Porventura, © nico obstéculo que esta posigdo encontraria & o da fundamentagdo dos crimes intemacicnais. Se, por exemplo, formos an Fstatuto do Tribunal Penal Intemacional (FTP!) verificamos que sio ali protegidos os «crimes mais graves que afectam comunidade intemacional xno seu conjunto». Se & certo que esses erimes, de algum modo, também esto previstos nas Constituigdes do Fstados que ratificaram o FTPI, a verdade é que a sua previsio neste instrumento Juridico internacional no depende da previa fundamentagio constitucional ou da inclusio desses tinos nos direitos intemnos dos Fstados. F, portanio, esto acima do que nossa dizer cada Constituigdo estadual. Mais importante, no entanto, & que esses crimes jé foram perseguidos pela comunidade internacional quando nao havia Fstaruto Intemacional. © que significa que deveriam ser protegidos por violarem interesses comumente reconhecidos, embora nio positivades. Parece portanto haver aqui um desapego do critério da fundamentagao constitucional do bem juriico, Mas € um desepego aparente. Tal situagdo nde deita por tera a ideia segundo a qual o bem juridivo deve encontrar a. sua referencia axialégico-juridica ma Constituigdo, Apenas significa que, no plano internacional, os bens juridicos devem ser comummente reconhecides e, a partir de um certo momento, assumidos pela lei internacional, ocupando esta, mutatis muandis, a base legitimadora que as Constituigdes forecem ao legislador ordinario nacional Dizer isto, contudo, ¢ insuficiente. Naturalmente que uma fundamentacio social, ético-social, atende claramente as necessidades da sociedade ¢ aponta para uma fungio do dircito penal que nos parece muito acertada: garantir a convivéneia, a vida em soviedade. Mas, pergunta-sc: cm que consiste cssa fundameatagao social, ético-social? Qual 0 seu contetido? Poderia o legislador ordinario recortar esses bens ¢ claborar o tipo legal de crime sem uma referéneia axiolégico-normativa confidvel, democraticamente legitimada’ Se os bens juridicos sao interesses relevantes para toda a comunidade, teré de haver um proeesso para os identificar ¢ os Iegitimar em nome da comunidade. E esse proceso s6 pode ser o da selegdo democritica, sc., através do Parlamento. $6 a Constituigao pode ser o Jogos seguro para servir de base a intervengao juridico-penal Que a Constituigdo deva ser a referéncia axiologico-normativa do bem juridico capaz de gerar o tipo legal de crime ¢ as regras gerais que o enformam, é algo que parece indiscutivel, Que a Constituigo seja o fundamento onto-antropolégico para essa definigdio, é algo que também parece discutivel, porque se trata de uma visi Tedutora € até formalista, No fundo, seria uma posigdo eminentemente juridico- positiva, em que a norma juridica fundante seria a Lei fundamental. $6 que a pergunta que tem inquictado a doutrina penal continuaria a colocar-se: qual o conteiido do bem juridico que a Constituigdio deve adotar? Onde o vai buscar? fundamento iltimo dos bens juridicos esta fora da Constituigao, esti no pulsar da vida em sociedade. © problema esta em fazer 0 seu recorte axiologico e, depois, a sua redugdo juridico-constitucional. © bem juridico, potencialmente, no é mais do que uma categoria metaconstitucional, porque & sobretudo expressiio humano-cultural da vida em sociedade, expresso da realizagdo da pessoa humana na relagdo com os outros, expresso de um patriménio cultural coletivo. E o interesse, rectius, © conjunto de interesses que, num dado momento e num dado lugar, a cansciéneia coletiva assume como indispensavel a vida em sociedade e que o legislador constituinte, de um lado, € © legislador ordindrio, do outro, devem procurar, por um proceso democratico, 16 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte sistematizar, promover e proteger. Verdadeiramente, ganha a forma de bem juridico quando a Constituigdo de algum modo 0 enuncia. Neste sentido, acompanhamos Figueiredo Dias quando diz que «um bem juridico politico-criminalmente tutelivel existe ali - e s6 ali - onde se encontre reflectido num valor juridico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total ¢ que, deste modo, se pode afirmar que “preexiste” ao ordenamento juridico- 8 3.2. Dignidade penal, necessidade de pena, eficacia penal e relago com a Constituigao, Chegados a conclusio de que a Constituicgo materializa juridicamente os interesses que preexistem ao ordenamento juridico-constitucional ¢ que devem ser protegidos pelo ordenamento juridico infraconstitucional, importa saber sc o ditcito penal deve proteger sempre ¢ de igual modo todos esses interesses ¢ se pode tutelar ‘outros interesses que nao estejam expressamente protegidos no texto constitucional. Numa palavra, importa saber qual a relagdo que se estabelece entre Constituigdo ¢ direito penal, na definigdo e proteydo dos bens juridicos. So os critérios da dignidade penal (Sirafwiirdigheit) c da caréncia de tutela penal (Strafbediirftigkeit) que nos ajudam a responder a esta questdo"”. Em geral, a doutsina entende que a Constituigao deve ser uma referéncia axiolgico-normativa do direito penal, ou seja, 0 bem juridico-penal acaba por encontrar uma referéneia, expressa ou implicita, na ordem constitucional (tanto nos direitos e deveres fundameniais como nos direitos e deveres ligados & ordenagio social, politica e econémica™’, Contudo nao ha uma obrigagio de facere, ou seja, 0 legiskador infraconstitucional nao esta obrigado a criminalizar todos os factos que ofendam interesses constitucionalmente promovidos — «ido existem imposigdes juridico-constitucionais implicitas de criminalizagio»®”. Naturalmente que, para esta perspetiva, sempre que o legislador constituinte aponte expressamente uma obrigag’o de criminalizar, o legislador infraconstitucional esti obrigado a fazé-lo, sob pena de inconstitucionalidade por omissa0"”, Portanto, nem tudo o que esta previsto na Constituicdo necesita de prote¢do penal. Até pode merecer, porque seri dificil negar dignidade penal a um interesse que 2 Constituiggo consagra como relevante. Mas pode no necessitar de uma pena para que a protecao se efetive. Dito de outro modo, o critério da dignidade penal proclama que o interesse merece ser tutelado pelo direito penal. E, por aqui, facilmente chegariamos a conclusdo de que todos os interesses previstos no texto constitucional merecem protegdo penal Porém, pode no ser necesséria uma pena para assegurar essa protegdo. Uma pena pode até ser ineficaz. Donde, ao critério da dignidade penal vem a somar-se 0 da necessidade de pena, aliado ao da eficécia da intervencio do direito penal. Se Figueiredo Dias, 2007: 120, ~ para mais desenvolvimentos, ente nés, Costa ANDRADE, 1992: 173 ess. 3 Nese sentido concordam Figueireda DIAS, 2007: 120 ¢ 129 (de moda inequiveco) ¢ Faria Costs, 2015: 61 (pelo menos no sentido de que «numa éptica estritamente formal a Consttuigio & sempre legitimadora do ‘ordeaamento infra-constitucional que o dieito penal representa») » Figueiredo Dias, 2007: 129, * Aponta como imposigio expressa de eriminalizagao da CRP, Fana Costa, 117,n.°3 (erimes de responsabilidade dos ttulares dos cargos politica). 1015: 116, ao referi-se a0 artigo 17 Parte | Fundamentos do Direito Penal para proteger determinado bem juridico se chega 4 conelusio de que uma pena comporta maiores custos axiologicos que beneficios e até chega a ser ineficaz, entdo, deve tentar-se um meio menos oneroso do ponto de vista axioldgico ¢ porventura mais eficaz do ponto de vista politico-criminal. E aqui que entram em jogo solugies proximas do direito penal, dentro do direito sancionatério, como 0 caso do direito das contraordenacdes, entre outros, Portanto, devendo o direito penal proteger os bens juridicos a par constitucional, nao esta obrigado a protege-los sempre e do mesmo modo. E sera que o direito penal pode proteger interesses que no estejam expressamente previstos na Constituigao? A resposta deve ser positiva, O texto constitucional tem tendéncia a uma certa estabilidade. E contudo a realidade é dinémica. Nao pode rever-se a Constituigiio sempre que surja um interesse valioso que merega ascender & categoria de bem juridico-constitucionalmente relevante. E evidente que, nesse caso, 0 direito penal nao deve recuar na protegao desse interesse, sc essa protegdio for necessaria. Quer isto dizer que o direito penal pode proteger bens juridicos que nao encontrem na Constituicio escrita uma formulacao expressa, mas que de algum modo nela encontrem reflexo"", ou scja uma referéneia ao menos implicita a esse bem juridico F certo que hé quem” va mais longe € entenda que «em caso algum o legislador ordinario podera ultrapassar os limites que a imposicao constitucional consagra». O fundamento estaria_no artigo 29°, n° 1, da CRP, ao enunciar o principio constitucional da legalidade criminal ~ que analisarcmos adiante™. Tratar-se-ia aqui de uma “norma de proibigdo constitucional de penalizagao", uma “norma de garantia*> Em termos te6ricos esta formulagio faz todo o sentido ¢ deve ser sublinhada. Na pritica, contudo, ela ndo serd mais do que a concretizagao do principio da legalidade, segundo © qual um facto ndo pode ser punido se nao estiver previsto como crime antes de ser cometide. Mas uma coneretizagio que no implica uma proibigio de criminalizagao para além do texto expresso da Constituigéio, desde que essa incriminagio encontre uma referéncia ao menos implicita naquele texto, atendendo, como ja se disse, a dindmica da realidade c 4 tendencial perenidade ¢ estabilidade da Constituigao. do texto mente que, nestes casos, 0 legislador infaconstitucional deve respeiter os limite & eriminalizagao condos n0 artigo 18° da CRP. Esta norma, como explica Faria Costa, 2015: 119, se € veo que implica proibigao de restrifao de direitos, liberdades e garantias contéria aquela norma, também contempla esta possbilidade quando «necessirio para salvaguaréar outros diteios ox interesses constitucionalmente protegklos» E, por iss, cam respeite por este limit, o legsladorinfraconstitucional, pela dindmica da vida, alo pode deixat de proteger bens juriicos quando estes eneonirem no texto constitucional, pelo menos, reflexo respite aque limite © Faria Costa, 2015: 116 ® pow 117. Ne It Parte, Capitulo 1 “Faria Costa, 2015: 117 18 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte 4. Sango juridico-penal 4.1, Nogao e principios A sangio juridico-penal 6 a consequéncia ou a reagio juridica dos factos de natureza criminal (culposos ou perigosos) Em regra, a.um crime ou a.um facio cometido em estado de perigosidade, por forga da lei, corresponde uma consequéncia juridico-penal. A relevancia ético-juridica de um comportamento criminoso implica um conhecimento, por parte do seu agente, da ilicitude do facto e uma vontade mais ou menos assumida de o realizar. Por isso, a pena vem a ser uma censura ético-juridica desse comportamento, Quando, porém, faltam condigdes para essa censura ético-juridica mas, ainda assim, pela gravidade do comportamento ¢ pela perigosidade do agente, se torna indispensivel sancionar 0 facto, aplicam-se medidas de seguranca Resulta daqui que o direito penal portugués, adotando um sistema tendencialmente monista de sangSes penais — por norma, a cada facto, ou se aplica uma pena ou s¢ aplica uma medida de seguranca — faz corresponder a um comportamento criminalmente punivel uma sangao juridico-penal. Convém desde ja esclarecer — sem prejuizo de maior aprofundamento que faremos adiante*” — que, apesar de o sistema ser tendencialmente monista (monismo pratico) no que tange 4 aplicagao de uma sangfo a um facto (cm regra, a cada facto aplica-se uma sangdo, seja a pena, seja a medida de seguranga), afastando-se assim o sistema do “duplo binario”, como existem dois tipos de consequéncias juridicas que polarizam o sistema penal, podemos dizer que na sua concepgao o sistema é dualista, porque prevé dois tipos de conscquéncias que se aplicam, em regra, de modo alternative excludente: penas € medidas de seguranga, Nao hé aqui paradoxo. © sistema é tendencialmente monista, em sentido estrito, no que se refere a aplicagio de uma sangdo a um facto; € duahsta, em sentido amplo, no que respeita a opgio sistémica de sancionar os factos culposos com penas ¢ 03 estados de perigosidade com medidas de seguranga®® As sangies penais regem-se por alguns prineipios que caracterizam o sistema penal ‘enquanto programa juridico-constitucional””. Desde logo, o principio da legalidade e, como expresszo e concretizagao deste, © da tipieidade: nenhuma pena pode ser aplicada sem que esteja como tal prevista na lei (art. 29° da CRP) Relevante ¢ também o prineipio da reserva da jurisdigao estadual do direito de punir (Jus puniendi): as sangdes penais s6 podem ser aplicadas mediante um processo (de natureza criminal) ¢ uma decisdo de uma entidade judicidria. Isto ¢ assim, entre outras raz6es, porque as sangées penais implicam a restri¢ao de direitos fundamentais, pelo que tal limitagdo s6 pode ser feita nos casos previstos na lei (art. 18° da CRP), s¢., dentro dos limites legais e por quem tem competéneia para isso, que no caso é uma entidade judicidria. As hipéteses excecionais de consenso ou mediagio earecem sempre da aplicagao ou homologa¢ao por uma entidade judicidria Em sent i © No ponto 33. “ Neste sentido, ao mesmo tempo que concordimos com Figueiredo Dias, 199% $4, referindo-se so sistema tendencialmente mnista de aplicaedo de sang8es, oncordamos com Conde MONTERO, 2013.5, quando se refere 0 sistema duslista (em sentido amplo) de concepgde de sangtes. Este aparcate paradexo & explicado de modo claro por Conde MoNTEIRO, 2013: 11 ess. para maiores desenvolvimentos, Maria Joto ANTUNES, 2013: 16 ess. Igualmente, Figueiredo DIAS, s8.,¢ Conde MONTEIRO, 2013: 10. ntico, Germano Marques de SILVA, 2010: 85. 1993: 10¢ 19 Parte | Fundamentos do Direito Penal Depois da afirmagao da legalidade, da tipicidade ¢ da reserva da jurisdigao estadual das sangdes penais, é fundamental sublinhar 0 principio da humanizacao das sangGes penais. Este principio atravessa todo 0 programa constitucional. Desde 0 facto de ndo se admitir pena de morte ou pena de prisio perpétua, até ao ndio menor comando constitucional da dignidade da pessoa humana, qualquer sangdo penal, seja na sua aplivagio, seja na sua execugdo, hd de nortear-se pela humanizacao do sistema penal, sendo, portanto, proibidas quaisquer penas ou efeitos das penas que atentem contra a dignidade da pessoa humana c/ou que, nomeadamente, cumpram fins estranhos ao programa politico criminal de feigo constitucional ou juridico-penal. Intimamente ligado com a fungao do direito penal esta o que costuma designar-se por principio da congruéncia axiolégica entre a ordem juridico-constitucional ¢ a ordem legal dos bens juridicos protegidos pelo direito penal: daqui resulta a intervencao subsididria do direito penal e a adscrigdo de finalidades preventivas as anges juridico-penais, Em seguide, © principio da proibicdo de excesso ou principio da culpa (ou proporcionalidade em sentido estrito), para as penas, c da proporcionalidade, para as medidas de seguranga: as ponas nao podem, cm caso algum, ser aplicadas se néo houver culpa ¢ nunca podem ultrapassar a medida da culpa; as medidas de seguranga tém de ser proporcionais a gravidade do facto c & perigosidade do agente Como o Estado tem 0 monop6lio de jurisdigao penal, também tem « responsabilidade pelo cumprimento das finalidades das sangSes penais. A finalidade de ressocializayao, especialmente nos casos de pena de prisio ou de aplicagdo de uma medida de seguranga, depende da ajuda que o Estado esta obtigado a conceder para viabilizar a ressocializagao do agente, Costuma, por isso, apontar-se o principio da sociabilidade: ao Estado incumbe o dever de proporcionar as condigSes necessérias para a reintegragdo social do agente. Claro que esta tarefa também pode ser realizada pela sociedade civil; mas é o Estado que tem o dever de a garantir. Finalmente, mas nao menos importante, é o principio do menor custo axiolégico possivel, que, entre outras dimensdes, se manifesta na preferéncia pelas sangdes pemis nao detentivas em relagao as detentivas, mas também, quando isso se colocar. pelas que menos sacrificio axiologico implique, em relagdo as mais onerosas. A cntidade julgadora, tendo a possibilidade disso, deve sempre aplicar a sangdo que. comportando menores custos, cumpra eficazmente as finalidades que Ihe estao reservadas. 4.2. A pena As penas aplicam-se a imputaveis que, tendo agido culposamente ~ com dolo ou negligéncia —, realizem uma ago ou uma omissio que seja legalmente punivel. ‘As penas atribuem-se fungoes, finalidades ¢ efeitos Funcionalmente, a pena ¢ uma reagiio juridica ao facto criminoso. Ela é a censura ético-juridiea, expressa mediante a restrigfio. de liberdades ou direitos, de um comportamento ético-juridicamente censuravel e portanto penalmente tipico. Por ser assim, no tem de ser um mal que se paga por outto mal realizado, nem a contrapartida na exata medida do que se fez. Ainda que a culpa seja pressuposto © limite da pena, esta nfo tem de ser expressa na exata medida daquela, Outras exigéncias, de natureza preventiva, e outras circunstincias, ligadas ao facto, ao agente e a vitima, podem fundamentar uma medida da pena diversa da medida da culpa. Isto 20 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte € assim porque a fungaio reprovadora do comportamento podem ligar-se finalidades positivas das penas. Teleologicamente, as penas, cm Portugal, so preventivas, promovendo ¢ protegendo os bens juridicos, e ressocializadoras do agente do crime. Rejeitou-se qualquer outro modelo que passasse, por exemplo, pela retribuigo. Adiante™”, este ponto serd desenvolvido, E, portanto, os efeitos acabam por ser uma sintese da fungao e das finalidades: sao dissuasores, na medida em que aquela reprovagao desmotivara a prética de futuros crimes; so. preventivos, porque previnem a ofensa de bens juridicos; e so reintegradores, na medida em que contribuem para a ressocializagao do agente. Nao ha qualquer contradicao entre funcao, finalidades ¢ efeitos das penas, A pena é uma reagiio juridica que reprova o comportamento — por isso é uma censura juridica -, que previne o crime, protegendo os bens juridicos ofendides e inscritos na lei c, portanto, revalidando a norma juridica violada ¢ reintegrando as pessoas envolvidas, ¢ que tem um efeito dissuasor, decorrente do carater preventive das penas. que pode dizer-se & que esta aqui subjacente uma opgiio politica que sc liga a nogio de Estado de Dircito democratico ¢ que promove o principio da dignidade da pessoa humana. Por um lado, o Estado nfo é nem pode ser um Estado justiceiro; ¢. por outro lado, no exercicio do dircito de punir, o Estado tem a obrigaeao de respeitar © promover a dignidade da pessoa humana, Destarte, as penas sfo diversas, em grade parte para atender gravidade do facto, mas também as exigéncias de prevengio (geval e especial). Diversidade que se reflete quer na sua classificagao — principais, acessérias ¢ de substituigao -, quer na tipologia = prisao, multa, trabalho em favor da comunidade, dissolugao, ete. No dircito penal portugués, as penas sao principais quando estdio expressamente previstas no tipo legal de crime, sendo o que sucede, para as pessoas singulares, com a prisdo ea multa e, para as pessoas coletivas ou equiparadas, com a multa e a dissolugao. As penas de substituigo sio aquclas que sio aplicadas om lugar da pena principal. Por forea dos principios anteriormente enunciados, nomesdamente, 0 da humanizagio do sistema penal ¢ 0 do menor custo axiologico possivel, as penas de substituigdo podem, no caso conereto, realizar com a mesma eficdcia as finalidades da pena principal, mas sem os custos axiol6gicos que estas comportariam, As penas acessérias dependem sempre da aplicagao, ao facto, de uma pena principal ou de uma pena de substituigdo e consistem, basicamente, na proibigdo do exercicio de determinados direitos ou profissdes. Nao se confundem com efeitos acessorios das penas, nem com 0 efeito geral juridico-penal das penas‘'. As penas acessérias sfio também consequéncias juridicas do crime, mas em regime de acumulacZo com a pena principal. Quer isto dizer que a pena acesséria nao se aplicaria se nao fosse aplicada a pena principal. Para isso, 0 Cédigo Penal (artigos 65." seguintes) exige a verificagdo de certos requisitos: desde logo, os pressupostos auténomos da pena acesséria; a valoragdo dos critérios gerais de determinagao das penas; e a graduagaio no ambito de uma moldura auténoma fixada na lei. Isto quer dizer que, embora a aplicagao de uma pena acessdria dependa de uma pena principal, cla tem um regime de aplicagdo auténomo. Os efeitos das penas, por sua vez, sdo efeitos automidticos que derivam das penas principais. Convém, no entanto, esclarecer que o Cédigo Penal portugués estabelece a proibigio da perda de direitos civis, profissionais € politicos como efeito necessario € © No Capitulo I, desta | Part 5 Neste sentido, claramente, Figueiredo DIAS, 1993: 98 24 Parte | Fundamentos do Direito Penal automatico das penas (art. 65°, n° 1, do CP). Por isso, sempre que em causa esteja a aplicacio de um efeito da pena, € necessario verificar se ndo havera violacdo deste principio, sob pena de tal efeito se revelar ilegal e inconstitucional Em Portugal, é possivel fazer-se uma sistematizagio das penas a partir do Cédigo Penal ~ sem tender, portanto, & legislaglo especial -, da qual resuliariao seguinte quadro, Penas principais: prisdo (art. 41.°e ss.) e multa (art. 47 e ss.), para as pessoas singulares; mults (47 ss, 90° A, n° 1, € 90." B), ¢ dissolugio (90.° A, n 1, € 90." F), para as pessoas coletivas € entidades equiparadas Penas de substituigdo: substituig2o da pena de pristo por multa cu outra sango nao privativa da liberdade (art. 43°, n® 1) ou por pena de proinigao do exercicio de profissao, Fungo ou atividades, piblicas ow privadas (art 43%, n 3); regime de permanéneia aa habitagio (art. 44°, 2 1) substituigio da multa por trabalho (art. 48°), suspensio da execugio da pena de prisdo (art. 50° ¢ ss); presiago de trabalho a favor da comunidade (art. 58°) e admoestacio (art, 60°), para as pessoas singulares; ¢ ailmoestagio (art. 90.° - C); eaugo de boa conduta (art. 90° ~ D); vigilincia judiciria (art. 90. F), para as pessoas coletivas e entidades equiparadas, Penas acessbrias: proibigao do exercicio de fungdo (art, 66.9), suspensio do exercicio de fungao (art. 67%: proibieao de conduzir veiculos com motor (art 69°); declaragao de_indignidade sucesséria (art. 69° ~ A); proibigio do exercicio de fungdes por crimes contra a autodeterminagio sexual ea liderdade sexual (att. 69.° - B), proibigio de confianga de menores ¢ inibigao de responsabilidades parentais (art. 69.°- C); proibigio de contacto com a vitima e de uso e porte de armas (art 152°, n°.4) 4.3.4 medida de seguranca As medidas de seguranga também sdo sangGes penais, mas, em regra, aplicam-se a inimputavcis, em razio de anomalia psiquica que afete o agente para a pritica do Tespetivo facto, ou, excecionalmente, a imputiveis que, pelos factos ilicitos tipicos, se revelem especial ou relevantemente perigosas ¢, em todo 0 caso, necessitados dessa medida, Numa palavra, aplicam-se normalmente a factos resultantes de estados de perigosidade. Importa sublinkar ~ apesar do que jé antecipimos anteriormente™ — que niio seria errado afirmar que o sistema portugues é dualista se com isso se pretendesse dizer que as infragdes criminais em geral o sistema prevé a possibilidade de aplicagdo de penas ou medidas de seguranga, Mas quando se pretende dizer que a cada facto ilicito-tipico praticado pelo mesmo agente sé se pode aplicar uma pena ou uma medida de seguranga, sendo que, em regra, aquela se aplica aos factos culposos € esta aos estados de perigosidade, 0 que estamos a dizer é que o sistema é monista. Neste sentido, «pena e medida de seguranga tm os seus campos de aplicagio a priori ¢ diferentemente definidos, de tal modo que nao existe sobreposicao entre eles»”’. Nem mesmo nos casos de concurso de crimes, em que o agente comete um crime suscetivel de pena ¢ outro suscetivel de medida de seguranga, se pode falar de acumulagao de pena ¢ medida de seguranga, uma vez que cada sangao se aplica ao respetivo facto, garantindo-se, portanto, o monismo do sistema. Por isso, costuma dizer-se que o sistema penal portugués ¢ tendencialmente monista porque, em regra, aos factos culposos, aplicam-se penas e, aos factos resultantes de estados de perigosidade, aplicam-se medidas de seguranga — sobretudo quando em causa esto medidas de seguranga detentivas. Mas, na verdade, acaba por ser monista priitico, porque em alguns casos ha uma conjugagao de penas e medidas de seguranga, Vejamos, ® Supra, ponto 3.1 ® Figueiredo Dias, 2007: 100, 22 Apontamentos de Direito Penal Mario Monte Em regra, tal como estabelece o artigo 91.” determina, «{q]uem tiver praticado facto ilicito tipico e for considerado inimputavel, nos termos do artigo 20°, € mandado intemar (...)». Ou seja, aos inimputéveis que pratiquem um facto ilicito tipico aplicam-se medidas de seguranga. S6 que existem excecdes. Desde logo, a um imputivel € possivel aplicar uma pena e uma medida de seguranca nao privativa de liberdade, por um mesmo facto: de acordo com 0 artigo 100.” do CP quem for condenado por determinados crimes, pode ser aplicada a medida de seguranga que consiste na interdicdo de atividades. E, nos termos do artigo 101.° do CP, quem for condenado por crime praticado na condugio de um veiculo com motor ou com ela relacionado, ou em determinadas circunstancias, pode ser aplicada a medida de seguranga de cassagio do titulo ¢ interdigfio da concessao do titulo de conduco de veiculo com motor, Trata-se, portanto, de situacdes em que a0 mesmo facto se aplica uma pena ¢ uma medida de seguranga (néo privativa de seguranga)”* ‘Depois, temos a pena relativamente indeterminada, que é uma solugio mista de pena ¢ medida de seguranga, aplicavel a imputaveis para casos de relevante perigosidade. Os artigos §3.° a 90.° do CP preveem que se possa aplicar uma medida de seguranga a um imputivel: «Quem praticar crime doloso a que devesse aplicar-se concretamente prisdo efectiva por mais de 2 anos e iver cometido anteriormente dois ou mais crimes dolosos, a cada um dos quais tenha sido ou seja aplicada pristio efectiva também por mais de 2 anos, € punido com uma pena relativamente indeterminada, sempre que a avaliagio conjunta dos factos praticados ¢ da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinagao para o crime, que no momento da condenagao ainda persistay. Ela é um “misto de pena ¢ de medida de seguranga”, € ndio uma “pena da culpa”, porque sera pena até ao limite da pena que caberia em concreto ao facto, e medida de seguranga quanto a parte restante devido perigosidade do agente Finalmente, temos as situagdes de coneurso de crimes que sao punidos com pena e medida de seguranca privativa de liberdade. Nestes casos prevé o ordenamento juridico portugués uma solugdo de vieariato na execugao das duas sangdes, ou de “intercomunicabilidade”® entre medidas de seguranca privativas de liberdade © penas’’, Tal como como decorre do artigo 99.° do CP, executa-se em primeiro Iugar a medida de seguranga e, depois, a pena, descontando-se nesta a medida de seguranca, Esta é a solugio mais favoravel a socializagao do agente. O que também comprova a maior vocarao ressocializadora da medida de seguranca em relagdo @ pena, senéo num plano juridico-tedrico, pelo menos no plano da execugao pratica. O sistema prevé também um vieariato na condenagiio. E 0 que decorre da situagdo prevista no artigo 20°. n° 2, do CP”, > No ordenamento juridico portugués encontramos, como metidas de seguranca nfo privatvas da liberdade, 2 intertiedo de atividades (art. 100° do CP), a cassaed0 do titulo e interdicdo da concessto do titulo de conducto de veiculo com motor (at. 101° do CP) e aplicagdo de tearas de conduta (at. 102" do CP), Prescindindo nesta sede de maiores aprofurdamentos, surge inegivel a proximidade destas medidas de seguranga com algumas pens acessirias, nomeadamente com a proiigio de conéuzir veiulos com moter (ant. 69° do CP). Contud, no ppodemos dlvidar que as penas © as medidas de seguranga representam consequenciasjuridicas da pritica de factos iliitos-tipicos que no se devem confindir. Para o que nos ocupa, as medidas de seguranca nao privativas da liberdade encentran-se ancoradas na perigesidade do agente, enquanto que as peras acessias 120 prescindem ‘nea da determinasio e ponderagio da culpa do agente 5 Figueiredo Dias, 2007; 105, referindo-se rticamente a Eduardo CoRR, quanto hipotese de pena ée culpa 5 O terme, apropriado,é utilizado por Conde MONTE, 2013, 110. 5 Nesse sentido, Maria Jo80 ANTUNES, 2013: 106¢ s. ® Figueiredo DIAS, 2007; 103 es, Taipa CARVALHO, 2003 a 12 e Pinto de ALBUQUERQUE, 2015: 274 Pinto de ALBUQUERQUE, 2015: 274, e Maria Jofo ANTUNES, 1993: 124 23 Parte | Fundamentos do Direito Penal Por tudo isto, falar em monismo puro é impossivel. Falar-se em sistema dualista, também € forgado, porque a regra no deixa de ser a do monismo. Mais correto sera falar-se de um sistema tendencialmente monista, ou monista pritico (monista na base, admitindo solugdes dualistas). Como ficou inteligivel, as medidas de seguranga podem ser detentivas (intermamento) ou ndo detentivas (interdigo de atividades, cassagdo de titulo e interdigao da concessdo de titulo de condugao de veiculo com motor, regras de conduta). ‘As medidas de seguranga no so, em todo o caso, instrumentos de caricter administrativo ou medidas cautelares e de policia ou de coagto (processual). Sio sempre sangdes penais. Sabemos que a detengao, prevista nos artigos 254° e seguintes do CPP, é uma medida cautelar e ée policia com fins exelusivamente processuais. As medidas de coago, previsias nos artigos 196.° e seguintes do CPP, sio igualmente medidas processuais de natureza cautelar No sko de natureza administrativa Ainda que cumpram necessidades proprias da administragio da justiga, sd0 processuais. Ndo se confundem com as medidas de seguranga. Estas sio consequeéncias juridicas ue s6 podem ser apiicadas como rea¢do a um facto tipico ¢ ilicito realizado em estado de perigosidade, sob decisio de um juiz. Fora destas trés hipdteses nio existem outras que configurem privagao de liberdade ou restrigio de direitos em resultado da pratica de um facto ou da suspeiga0 éa sun pritica. Se o dizemos, ¢ ndo 36 para evitar confusbes, mas também porque nem sempre estes conceitos se divisam claramente definidos. Fxemplo do que acabamos de dizer € 0 caso linseher Alemanha, dcvidido pelo Teibunal Luropeu dos Diseito do Homem, no acéuldo de 4 de dezembre de 2018", apés decisio estranha dos tribunais e das entidades alemés, em que o problema chegou & ser analisado nas duas perspetivas, Por um lado, tratava-se de aplicagao da medida de detengso ou de prisdo preventiva ao arguido; por outo, saber se a retroatividade da lei exa possivel, em fungie Ge se estar perante uma medida de cardter aéministrativo, ou nao, por se tratar de uma verdadeira sangio penal. Independentemente do deslecho do caso, & visivel, pelos votos de vencido, que problema passou por se saher se se estava perante uma verdadeira medida de segurangs — € nfo apenas perante uma medida processual ox administrativa — a qual néo podia aplicarse a retroatividade da lei penal (sc, nao podia aplicar-se uma medida de seguranga a factos passados) Uma iltima palavra para referir que aos menores de 16 anos, também inimputaveis, nao se Ihes aplica medidas de seguranca (c, tio-pouco, penas). Nos termos da Lei Tutelar Educativa (Lei n.° 4/2015, de 15 de janciro), aos menores com idade compreendida entre 12 16 anos, por um facto qualificado pela lei como crime, aplicam-se as medidas tutelares educativas. Estas medidas «visam a educagao do menor para o direito, € @ sua insergdo, de forma digna e responsavel, na vida em comunidad» (art. 2.° da LTE), subordinam-se ao principio da legalidade, ¢ vao desde a admoestagao até ao intemamento em centro educativo (art. 4.° LTR). © Sobre 0 case, vej-se TEDH, Grande Chanbre, lnscher ¢, Alemanka, Acérdto de-4 de decembro de 2018, in bttps://gde.ministeriopublic.pt/paginatedh-grande-chambre-ilascher-c-alemanha-acordao-de-4-de-dezzmbro-de- 2018, consultado em 24 de dezembro de 2029, ¢ TEDH, cas llnseherv. Germany [GC - 1021/12 and 2705/14, in tip:/hudoc echrcoeint/eng?i=002-12240, consultado em 17 de dezembro 2020, 24 I LEGITIMAGAO, FUNGOES DO DIREITO PENAL E FINALIDADES DAS REAGGOES JURiDICO-CRIMINAIS 1. Legitimagao do direito penal Se dissemos que o bem juridico é a expresstio de um interesse juridicamente relevante para a convivéncia comunitéria/social, num determinado momento € espago, ¢ se € funpao do dircito penal proteger o bem juridico, entio o fundamento onto- antropelégico do direito penal sé pode ser a livre realizagio da pessoa humana, enquanto tal ¢ na sua relagio com os demais, uma vez que tal realizagao se projeta na vida em sociedade. Existe portanto um “prius” axiomatico de matriz onto- antropelégica que enforma todo 0 dirvito penal. Ao procurar caraterizar funcionalmente o diteito penal, é importante nio esquecer que se trata de um ramo do direito axiologicamente fundado, embora nunca ideologicamente orientado, Nao no sentido de auséncia de expressio politica — porque © direito penal sempre pressupde escolhas, opgdes que io também de natureza politics, desde logo de politica-criminal —, mas no de que nao deve ser instrumentalizado pela “politica em geral” Nessa medida, podemos dizer que o dircito penal ¢ direito da liberdade, na medida em que a limitagdo que faz de diteitos, liberdades e garantias decorre do estritamente necessario para a preservaedo da liberdade de todos. Liberdade que é fundamental para a vida em sociedade. Fé direito humanista que contribui para a realizagdo da pessoa, promovendo-a, na medida em que protege os bens juridicos cssenciais 4 sua livre realizagdo, bem como a sua reintegragao quando viola aqueles bens, Por isso, o dircito penal orienta-se para a realizagdo da pessoa humana, da personalidade de cada um — sendo a personalidade prévia ao sistema juridico — e da vida em comunidade O direito penal portugués, sendo tributirio de um ideério liberal, focado na tutela dos interesses individuais, tem vindo a evoluir e, acentuando a sua feigao humanista assume hoje uma voeagio personalista, orientada promogio da pessoa humana, holisticamente considerada, e nao apenas do individuo enquanto tal. Por isso, os bens juridicos, embora possam ter titulares individuais, so relevantes porque Sio ou esto ligados pessoa humana enquanto parte da comunidade que integra. E sendo para esta realizagio que ele se orienta, podemos dizer que o direito penal € plurifuncional, Apontamentos de Direito Penal Mario Monte 2. Fungées do direito penal 2.1. Opcdio metodolégica: funcaio ou func E comum apontar a proteydo subsididria de bens juridicos como a fungdo por exceléncia do direito penal. Nao sem que, de seguida, se realce a importéncia da ressocializagao como tarefa ¢, as vezes, fungio consequente ou secundaria do dircito penal, De alguma forma, compreende-se que esta fungdo de ressocializagdo esteja pressuposta jé naquela primeira. De facto, poderiamos simplesmente afirmar que 0 direito penal obedece a uma dnica fungio: a proteydo subsidiaria de bens juridicos. Até podiamos dizer, com Jakobs', que essa fungiio principal ou manifesta do direito penal se cumpre por via das suas funcdes latentes, ou seja, através dos fins das penas. Entendemos, no entanto, que seria redutora uma perspetiva que nao autonomize a fungo de ressocializagdo do agente ao lado ou para além da protegao dos bens juridicos. Mais: ela arriscar-se-ia a redundar ou a reduzir-se a um ftio ¢ exangue normativismo legalista. Um normativismo ineapaz de reeeber e proteger 0 referente onto-antropolégico que deve sempre guiar o direito penal. Um normativismo preocupado unicamente com a estabilizagao mecénica das normas — enquanto instrumentos tutelares dos bens juridicos — e, como corolario necessdrio, incapa. de ressocializar o agente. E que, infclizmente, a pritica demonstra cxatamente esta A uma clara € as vezes obstinada preocupago pela protegdo de bens juridicos nao corresponde, pelo menos na execugao das sangdes, uma real c efetiva Tessocializagao do agente, Nao sucedera isto porque se toma esta tarefa pressuposta na protegio de bens juridicos? O reconhecimento das duas fungdes do direito penal, lado-e-lado, apresenta-se como a perspetiva a adotar no ambito de um Estado de Direito em sentido material. F, se ndo por mais, pelo menos por trés ra7Ges substanciais. ‘Desde logo, porque a protegdo de bens juridicos e a ressocializagio do agente surgem como fungées codeterminadas e, até, interdependentes, no exato sentido de que nao deve haver verdadeira protegdo de bens juridicos sem ressocializagao do agente e, por sua vez, esta no sera vidvel ~ ou pelo menos nao seria suficiente ~ de modo completamente apartada da protegao de bens juridicos. Depois, porque ocorre igualmente uma codeterminac&o entre fungdes ¢ finalidades, na medida em que as finalidades das penas surgem simultaneamente como decorréncia e substrate das fungdes do direito penal. Seria estranho que o direito penal prosseguisse determinadas finalidades com as penas ¢ estas néo fossem a prossecugao natural das suas fungdes. Levado a certos extremos, as fungdes poderiam ser de proteciio de bens juridicos e de ressocializagao do agente ~ que implicaria uma dimensio assumidamente preventiva — ¢ todavia os fins das penas, ao invés de realizarem essa fungdo preventiva, poderiam estranhamente apostar na retribuigao. O que nao faria qualquer sentido, Seria uma contradictio in terminis. Finalmente, porque a divisio, rectins, a autonomizacz0 das duas fungdes ~ protegio subsidiaria de bens juridicos e ressocializagio do agente — apresenta como objetivo colocar em evidéneia a dimensio humanista ou, dito de modo diverso, a vocagaio humanizante do direito penal. No exato sentido de que a protegao de bens juridicos no deve ser estranha a ressocializagio do agente, esta nao deve ser feita sem aquela, mas também nao serd mera consequéncia daquela, " Jaxons, 2000: 50 % Parte | Fundamentos do Direito Penal 2.2. Fungao de protecdo subsidiaria de bens juridicos O direito penal — tendo aqui como referéncia o portugués — tem, em primeiro lugar, uma fungio subsididria de protecdo e promogio de bens juridicos dignos ¢ carentes dessa tutela. Esta fungao, embora principal, é sempre subsididria, porquanto a sua atuagao decorre sob o signo da intervengio penal minima. O dircito penal é a ultima ratio na protecdo de bens juridicos: podendo ser dispensada a sua intervencdo, o direito penal nao deve atuar. E isto simplesmente porque, embora cumpra uma fungdo essencial na sociedade, nao deixa de implicar a restrigio de direitos, liberdades e garantias — embora, sem que constitua um paradoxo, ¢ pela observancia dos direitos fundamentais que deve pautar a sua atuacdo. ‘Mas é A tutela de bens juridicos, protegidos na norma penal, que deve orientar-se. E fa-lo cm dois tempos: antes da prética do facto, como preventivo-dissuasor (preventivo na finalidade, dissuasor no efeito); depois da pritiea do facto, como preventive-reativo-dissuasor (porque aqui, a sang, embora preventiva, no pode deixar de constituir uma repressdo do facto, enquanto censura juridico-penal, ao que se liga um efeito dissuasor). Naquele primeiro momento, o direito penal, através da norma juridica, afirma a importancia dos bens jurfdicos nela protegidos, ¢ nessa medida faz a sua promogio ¢ previne a sua violagio; depois do facto, 0 dircito penal. através da aplicagio da norma ao caso concreto, revalida a norma tutelar € com isso reafirma a importaneia do bem juridico Por isso, numa sintese entre norma € bem juridico, pode dizer-se que o direito penal realiza uma funcfio preventiva de gestéo das expectativas comunitérias na protegio juridico-penal dos bens juridicos essenciais a convivéncia e livre desenvolvimento da personalidade de cada individuo e deste enquanto membro de uma comunidade, projetadas na norma juridica, sancionando, quando frustradas essas expectativas, os factos que contrariem as normas juridico-penais. 2.3. Fungao de ressocializacio do agente do crime Nao menos importante, ainda que claramente densificadora daquela primeira, mas assumindo-se de contornos claramente auténomos, o dircito penal tem uma fungiio de ressocializacio do agente do crime. Se o direito penal busca a livre realizagao da pessoa humana, garantindo-lhe a preservagao das condigdes dessa realizagao, entdo nao basta a protegdo ¢ promogao dessas condigées, projetadas nos bens juridicos, mas importa exercer uma agiio nos destinatirios da sua realizacdo: as pessoas. Dir-se-4 que estas so, desde logo, todos. Certo que «o direito penal ndo quer fazer dos homens sibios, artistas, herdis ou santos»”. Mas, «para respeitar aquele minimo que a vida em sociedade impden*, todos so convocades a uma conformagio dos comportamentos de acordo com o dircito. Isso & 0 que 0 direito penal faz, realizando aquela primeira fung%o de prevengao geral Porém, nao menos importante, vem a ser 0 autor do crime. Uma vez realizado um facto criminoso, para la das exigéneias de protegao dos bens juridicos, impoe-se a ressocializagao do agente do crime, B, nesta fungdo ressocializadora, também se afirma aquela primeira fungio preventiva, de tipo integradora: o agente que se reintegra socialmente, em principio — espera-se! — nao voltard a reincidir. Como dizia Eduardo CoRRE:A, 1971: 329. Toe, ibidem n Apontamentos de Direito Penal Mario Monte Pese embora o facto de a realidade demonstrar muitas vezes 0 contrario desta premissa, a verdade @ que 0 direito penal ndo pode deixar de se orientar a uma ressocializagdio daqucles que cometem crime, por duas razdes: porque a protegiio de bens juridicos o requer, porque o direito penal tem como fundamento onto- antropolégico a livre relizagdo da pessoa humana, Uma e outra dimensoes no podem realizar-se sem apoio na reintegragdo social daqueles que cometem crimes Resta saber se nesse esforgo de ressocislizacio do agente do crime, nio caberia também um esforgo no sentido de restaurar os interesses da vitima. Que a vitima deve benefiviar dos efeitos da aplicagao das normas juridico-penais aos autores dos crimes é elgo que parece evidente. Um direito penal totalmente indiferente a este objetivo corre o risco de se desumanizar. Porém, 0 modo como se pode aiender as vilimas sem desatender a reintegragio do agente e sem perder de vista a protegaio os bens juridicos, & algo que merece ponderaco [veremos adiante* em que moldes). 2.4, Efeito dissuasor ‘As fungdes de protegdo subsidiaria de bens juridicos ¢ de ressocializagao do agente do crime emergem daquele fundamento humanista e personalista de realizagio da pessoa humana, Uma confianga na pessoa humana impde a sua promogao através dos bens juridicos que a cercam e da sua reintegragao na sociedade. Por isso, as fungdes que até agora apontimos sido incompativeis com uma fungio negativa, de tipo ameagadora. O direito penal nao tem como fungao ameacar, semear medo ou terror. Tem uma fungdo positiva que consiste em promover, proteger e exaltar a liberdade € todos os valores jushumanistas Mas no modo como atua, nao tera um efeito dissuasor? Nio se questionando que a fungao do direito penal seja preventiva, nfo andaremos onge da verdade se dissermos que a norma penal tem um efeito comunicativo que se traduz na dissuasio° cxpressa na ameaca de uma pena a um comportamento ¢ que se conerctiza na aplicagao da pena. E este eftito dissuasor, nfo se confundindo com a fungGo do dircito penal, néo é com cla incompativel. Como afirma Taipa de Carvalho’, «a dissuasio (“intimidaco”) do condenado ¢ conatural 4 pena, ¢ constitui uma fungao da pena, que em nada ¢ incompativel com a referida fungao positiva de ressocializacao. E que nao se trata de intimidar por intimidar, mas sim de dissuasdo (.)». F assim seri sobretudo se dele se der conta enquanto instrumento de resolugaio de coneretos casos da vide. O que no pode é confundir-se fungao ¢ finalidade com efeito, A funcdo ¢ as finalidades so preventivo-positivas (visando a livre tealizagio da pessoa humana, almejam a promogao dos bens juridivos e a ressocializagdo do agente). Mas, como 0 direito penal existe através de normas juridicas e se realiza nos casos concretos, se aquelas preveem sangdes penais para os comportamentos, 0 efeito comunicativo dessas normas € da sua conereta aplicagio € necessariamente de dissuasio de potenciais agentes do crime. 4 No pons 2.6 5 Como refere Costa PINTO, 1998: : «aa reaidade as normas pena tém uma preteasto de fiedcia dissuascra da praca de crimes (eft de prevendo gral) independentemente da sia eancretaaplieag)> Taipa de CARVALHO, 2003: 325, 2% Parte | Fundamentos do Direito Penal Consequéncias funcionai restauragao da paz juridica e da paz social A primeira ¢ mais relevante consequéncia da atuagio do dircito penal & 0 restabelecimento da paz juridica. Isto sucede sobretudo com a aplicagdo das normas juridicas aos casos coneretos, O que se pretende & que as normas penais cumpram a sua fungiio de prevengdo ao ponto de ndo serem praticados crimes. Seria o estado ideal de paz juridica, Mas, como isto nao € possivel, torna-se inevitavel a aplicagao das normas penais. Esta tarefa, 20 mesmo tempo que reafirma a confianga da comunidade no Direito, restabelece a paz juridica quebrada com o crime. Auiores como Roxin, nde tém dividas em considerar a prevengao geral de integragdo como sendo a restauracdo da paz. juridica’. F, como refere Costa Andrade’, «/aj ameaca, aplicagio ¢ execugdo da pena sé pode ter como finalidade a reafirmagio ¢ estabilizagao contrafictica da validade das normas, o restabelecimento da paz juridica e da conflanga nas normas, bent como (re)socializagao do condenadon. Destarte, o direito penal também deve restabelecer a paz social © dircito penal protege bens juridicos que sfio essenciais 4 convivéneia (social), sob ameaga de penas. Por isso, os bens juridicos acabam por ter dignidade penal ¢ necessidade de uma pena na sua tutela porque so indispensaveis 4 convivéncia pacifica, condigao para a livre realizagao da pessoa humana, De modo que a violag: das normas juridico-penais, para além do conflito juridico-penal, encerra um conflito social (de nature7a interpessoal, ainda que as veres de natureza impessoal), A realizaedo funcional do dircito penal deveria ter estas duas consequéncias: 0 restabelecimento da paz juridica e, na medida do possivel, o restabelecimento da paz social. S6 assim podcria dizer-se que 0 dircito penal cumpre plenamente a sua voeagiio funcional problema é que nem sempre, com a aplicagdo das normas penais, se alcanga a paz social. Se um processo termina com uma dispensa de pena, com uma pena suspensa, sem ditvida que se restabelece a paz. juridica, porque se aplica a solugao provista na norma, mediante processo adequado. Mas nio significa que se tenha restabelecido 2 paz social. Sobretudo nos crimes interpessoais, 0 conflito existente entre autor © vitima ¢ com consequéneias comunitarias dificilmente se encontra superado se, na maior parte dos casos, 9 direito penal se ndo orientar a pacificag social. Quer dizer, se a soluedo juridica encontrada nio potenciar a pacificagdo do conti. Pode dizer-se que isso nao & problema do Direito: a este cabe garantir a paz juridica, Mas isso nao é verdade, particularmente no caso do direito penal. S6 u reconciliagao, a paz. social, através de uma efetiva compensagao do facto — pena, quando muito, teria um efeito limitado ec, em alguns casos, simbélico ~ permitiria o restabelecimento da paz. social. Isso passaria pela participagao da vitima na resoluggo do conflito, realidade que esta longe de se veriticar. © que dizemos é inteiramente valido nos crimes interpessoais. Mas nao sera exagerado se dissermos que isto também é verdade naqueles casos em que nao existem vitimas individuzis, mas um conjunto indetermindvel de vitimas ou vitimas difusas ou, como por vezes se costuma dizer, “crimes sem vitimas”. Nestes casos, & evidente que a paz juridica alcangada pela aplicagdo da norma juridica ndo é indiferente 4 paz social que 0 dircito penal deve preconizar cm termos comunitarios. Roxin, 1991: 22, diz que, quarto a «prevencio geral de inlegrardo, ou seja, 2 restauragdo da paz juridica, ‘ncumbe reparagdo uma tarefa que nem as penas nem as medidas podem cumprir de igual medo». * Costa ANDRADE, 1992: 179 itilico do Autor) 2» Apontamentos de Direito Penal Mario Monte Mas, sem davida que ¢ no grosso da criminalidade interpessoal que esse esforgo pode e deve ser feito. E, para isso, mister se torna que a vitima tenha um papel relevante na resolugio do conflito penal. £0 que se impée verificar de seguida 2.6. O direito penal deve orientar-se a protegao das vitimas? 2.6.1. O problema da necessidade de tutela das vitimas Ja vimos que o dircito penal, no cumprimento da sua fungdo, dirige-se. essencialmente, a acautelar interesses da comunidade (prevengio geral) ¢ do autor do crime (preveneao especial). O Estado, no exercicio da fungdo jurisdicional penal estabelece uma relacdo com o agente do crime, com vista a satisfagdo das expectativas comunitarias ¢ do proprio agente. Estabelece-se assim uma relacao triangular Estado-arguido-comunidade, Aquele cumpre a sua fung3o punitiva; arguido, em caso de culpa ou de perigesidede, satisfaz as exigéncias de prevengio, beneficiando igualmente destas exigéncias, sobretudo no processo de tessocializayao; e aa sangio reforga ou (re)estabiliza as expectativas comunitirias na vigéncia da norma violada, beneficiando a comunidade igualmente com o cumprimento da pena € sua finalidade preventiva, © desafio que se tem vindo a colocar mais recentemente & 0 de saber em que situagao fica a vitima, O direito penal protege adequadamente as vitimas, protege os seus interesses? A resposta imediata seria parcialmente negativa: o dircito penal sé reflexamente tutela os interesses das vitimas. Varios so os sinais que permitem chegar a esta conclusio, Em primeizo lugar, os tipos legais de crime, em geral, orientam-se a protegaio de bens juridicos, independentemente dos seus titulares; cm segundo, normalmente as sang6es penais ndo contemplam uma dimensao reparadora do dano; em tereeiro, 0 direito penal, a apontar as finalidades das penas ¢ das medidas de seguranga (no artigo 40° do CP, que mais adiante estudaremos), no refere qualquer finalidade dirigida a tutela das vitimas coneretas; em quarto lugar, porque a funcao principal que apontimos dirige-se 4 comunidade no seu todo ~ aqui cabendo as potenciais vitimas ¢ ndo propriamente as vitimas coneretas — ¢ a funedo complementar de ressocializagao dirige-se ao arguido, finalmente, a vitima nao tem um papel relevante na resolucao do conflito penal. A vitima s6 reflexamente beneficia do cumprimento daquelas fungdes € finalidades € 36 marginalmente participa no proceso penal. Na medida em que se revalida a norma juridica e se aplica uma pena, desferindo- se um juizo de censura ético-juridica, ou a uma medida de seguranga, acautelando-se maiores efeitos de um estado de perigosidade, naturalmente que a vitima também beneficia do exercicio do Jus puniendi. E até com processo de ressocializagao do arguido, a vitima de algum modo acaba por beneficiar. Mas nio sera exagerado afirmar que isto s6 aconteve como reflexo e nunca como (principal) fungao. istara isto correto? Para um sistema que coloque todas as suas expectativas no restabelecimento da paz, juridica, podemos dizer que sim. E até podemos dizer mais: que uma fungio de tutela da vitima seria, em alguns casos, incompativel com as funcdes que o diteito penal preconiza. Por uma razdo simples: as expectativas da vitima, necessariamente subjetivas, podem nao coincidir com as expectativas gerais da comunidade. Parte | Fundamentos do Direito Penal Aparentemente, a opgao por uma fungio preventiva, geral e especial, de contetido positive, dificilmente se harmonizaria com uma satisfacAo plena das necessidades da vitima. Seri isto de sufragar? Roxin diz-nos? que, com ¢ aplicagio de uma pena o que se passa € que se «altera em nada, na realidade, o prejuizo da vitima, Uma auténtica compensago do facto, um restabelecimenta. da situagio originaria, s6 se pode conseguir quando o dano tenha sido remediado e os efeitos Imaterisis do facto tenham sido eliminados mediante uma reconciliaga0> Entendemos que a fungdo preventiva do direito penal ndo & incompativel com a defesa dos direitos da vitimas, Hé duas vias possiveis para uma maior tutela penal das vitimas: a da tipificagao penal, sem desvirtuar 0 critério do bem juridico — de contornos mais dificeis de aceitar e aplicar; a da reparagao penal, sem abandonar @ fung3o preventivo-integradora do direito penal — claramente mais realista. F isso que veremos agora de modo assumidamente breve. 2.6.2. A via da tipificagao penal, sem desvirtuar critério do bem juridico Uma via sadical para proteger os interesses da vitima seria a da tipificagao funcionalizada a esse objetivo. Nao propriamente a defesa de bens juridicos, mas a defesa da propria vitima. Em vez de se pretender, com 0 tipo, 2 protego de bens juridicos independentemente do titular, arrancar-se-ia para a concegdo do tipo em fungao da vitima. A vitimologia tem aqui jogado um papel importante. Porém, ha que © dizer, essa via pode ser mcompativel com o critério da bem juridico, dircito ponal nio pode ser funcionalizado protegao da vitima, desatendendo ao critério do bem juridico, sob pena de se descaraterizar, de perder objetividade, de resvalar para um “dircito penal do agente” ou da vitima, perdendo 0 esteio do facto, ¢ de comprometer o principio da igualdade que deve nortear a intervengo penal Imaginemos que relativamente a cada facto, em vez de clharmos para 0 bem juridico, passamos a atender apenas as necessidades das potereiais vitimas. Basta pensar na diversidade de possiveis vitimas para logo chegarmos & conclusio de que 0 tipo legal de crime seria algo muito estranho, Haveria tantos tipos de homicidio quantos os tipos de vitimas? Atualmente, no homiciaio doloso temos o tipo bisico e os tipos especiais (privilegiado, qualificado, a pedido da vitima). Estes tipos, todas, tm como bem juriico a vida A diferenca entre eles esti essencialmente na culpa nuns casos so qualificados, porque so realizados com especial censurabilidade ou perversidade; noutros sto privilegiados, porque a culpa ¢ reduzida. Se atendéssemes exclusivamente & vitima para construir 0 tipo, seguramente que 0 resultado seria muito diferente, com riscos evidentes, desde logo, para a eventual violagio do principio da igualdade (por que rardo determinadas vitimas seria tidas em conta e outras no?) Mas, pergunta-se: deve entdo o direito penal ser indiferente as necessidades de protegao especial de certo tipo de vitimas em determinados crimes? ‘A resposta é naturalmente negativa. O direito penal deve atender, tanto quanto Dossivel, as especiais exigéncias de protegao das vitimas, sobretudo as mais vulneriveis, ou sempre que crime for cometido em fungio de certo tipo de vitima, respeitando em todo o caso o critério do bem juridico. O exemplo pode ser encontrado no homicidio qualificado. No artigo 132°, n° 2, al. f), do CP, 0 crime de homicidio seré qualificado quando cometido por alguém * Roxin, 2002:9. a

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