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SG Aplews @ oe D phone 5 ce Na scold Ses, pee ee (cor Coals Rodolfo: Vi pitiseas on Fe Udedide Scie oe one Pe enalind poe Sle pepaea te ste . oo + dy vey Fealanjm i ae . he td, tor aly sean da pee | chee sd 5 ke tepeci dade ap: © doy ebm grin pare o adeple cas’ sor ce ee ea ae NM hse Go dar Bey dole ote ats ta AE cm pel 9, WY daw malse gee Co BED ry ias enw 10% Pe ion abeQe os ean we cies ney ej 2 ote ane ane } eet Ant , eres pitques de bu iin Mids. Sang, wily sae tees byes 12 eb salaves gas Ae ao pas Be ro tage Vive Ensaios de Antropologia Velagicanto aibards Qe ft ede aw heeke WU FDP uk Jaen ode tena dy Baw coh ad oeh od Soya da one cred be, Arete pry Mi rocer beans wos codignn ptvacr bras Ain 09 farcdls Cobar oe. ee Gage et dare em “ Coss Ce Glew toaedos ken abrtfcs at sgatian So bce de SB bene tang oh voters dex, fart Pn ere Be Mad Bo a : ‘ wae diye scaleas's drveda wat daeds Bar gue Segoe ‘ dn wt pele eb bape tree wat be tage bine ap bets BD Beri py as tnt ae tli potas es J Be ang ¥ ip Pai to Ensaios de Antropologia ® uery UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Reitor Antonio Celso Alves Pereira Vice-reitora _ Nilcéa Freire EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Elon Lages Lima Getd Bornheim Tvo Barbieri (Presidente) Jorge Zahar Leandro Konder Pedro Luiz Pereira de Souza Luis Rodolfo Vilhena Ensaios de Antropologia dD uer] Rio de Janeiro 1997 Copyright © 1997 by EAUERJ Todos os direitos desta edig&o reservados & Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E proibida a duplicagio ou reprodugdo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer meios, sem a autorizagao expressa da Editora, F EAUERJ Fditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua Sio Francisco Xavier 524 - bloco F - sala T-126 - Maracana CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ (021) 587-7788 / 587-7789 Fax: (021) 284-5088 Organizacéo dos textos Celso Castro, Hermano Vianna e Walter Sinder Copy-desk — Cleonice Berardinelli Produgdéo Renato Casimuiro Projeto Gréfico e Diagramagéo _Rosania Rolins Revisdo Francisco Inacio Bastos, Tone Aratijo Ferreira e Jeaneth Medciros Capa Heloisa Fortes Apoio Administrative Maria Fétima de Mattos CATALOGAGAO NA FONTE UERWSISBI/SERPROT viii Vilhena, Luis Rodolfo. Ensaios de antropologia / Luis Rodolfo Vilhena - Rio de Janeizo : BAUERS, 1997 168p. ISBN 85-85881-34-8 1, Antropologia. I. Titulo, cebu 572 ‘A epigiae fi copisa por Luis Rodolfo Vithena de: Paemas de Alvaro de Campos, edigo de Cleonice Berardinelli, Imprensa Nacional - Casa da Mocda. Lisboa, 1990, p. 352. Ver os contes ale’ » fund... , E st as conser noe 4 ote funcly ? Ab, que bile a sapechere | Tales, a Supubiey va a t3smcla Ee mols Qu a Superiore vols que Toole E> mois en tude woot ate a face do memeber, so ted todas of fous Bsa prepeto. awa rd rubeer. Nerove de Coup > Sumario Apresentagio ‘A Ligio do Amigo ‘Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Moderno.... © Popular Visto das Margens: Cultura Popular ¢ Folelore ‘em van Gennep ¢ Bakhtin Leitura ¢ Praticas Leitoras em Sociedade... A Babel da Crenga: © Campo Religioso Carioca em Joao do Rio .. Africa na Tradigio das Ciéncias Sociais no Brasil... Apresentacio Ao ler o conjunte de escritos de Lufs Rodolfo Vilhena publicados nesta coletinea, é dificil a0 pensarmos no modo como sua vida € seu projeto intelectual foram violentamente interrompidos. Ficamos pensando a que luga- res seus estudos o,levariam, O trabalho intelectual, no entanto, assim como a pr6pria vida, é milltiplo polimorfo, conduzindo a mais que um sentido, a mais que uma ditecio. Nestes ensaios, onde a minticia, a competéncia e a vivacidade do pensa- mento de Rodolfo abrem novas possibilidades em campos jé muito estuda- dos, podemos atestar no apenas a fecundidade de suas idéias mas, principal- mente, 0 valor de suas articulagGes para as teflexdes atuais em diferentes dominios das ciéncias humanas ¢ sociais. Transitando entre andlises da culeura popular, repensando as fronteiras entre o popular e o erudito (além do na- cional e 0 global), testando novas estratégias de analise para a producio das idéias, cada ensaio aqui presente vai, progressivamente, mapeando um campo especifico do conhecimento antropolégico contemporineo. HA em seus eseritos muitas indicagdes de caminhos que poderiam ser trilhados e, se nfio vamos mais poder acompanhar as escolhas que Rodolfo faria, a leitura destes ensaios podera nos servit como um guia, incitando-nos a seguir as tilhas que suspeitamos entrever seja em seus argumentos, seja em cada articulagio conceitual, desenvolvidos sempre de forma extremamente logica © muita vezes inesperada, Esta ¢ a razio desta publicaczo. Nosso prin- cipal objetivo é fazer circular suas idéias, para que clas se transformem em incitagdes ae nosso pensamento e aos nossos projetos individuais. ‘Tomamos a idéia de “incitagio” de empréstimo a um dos ensaios aqui reunidos, justamente quando Rodolfo comenta, em tom de concordancia, algumas opinides de Matcel Proust, um de seus esctitores prefcridos, Segundo Proust, nos “belos livros”, “aquilo que para o autor se poderia intitalar ‘Con- clusées’, 0 leitor 6 sempre levado a classificar como ‘Incitagées’.” Isso porque “‘nossa sabedoria comeca onde a do autor termina’, uma vez que ‘gostatia- mos que cle nos desse respostas, quando tudo 0 que pode fazer é dat-nos desejos’.” Nao importa, entio, se nfo houve tempo para conclusdes. Com a publicagio deste livro homenageamos um amigo quetido, que soube mais do que ninguém fazer do trabalho intelectual um instrumento de atticulagao entre a sensibilidade proustiana e sua inseparavel companheira — a busca do saber. Organizar este livro de Rodolfo também é, para nds, uma forma de homenagear Ana, sua mulher, pois os dois sempre estario juntos em nossa memétia. Com a leitura destes Ensaior de Antropohgia, os desejos de conhecimento de Rodolfo se encontram com nossos prdprios desejos, ¢ ganham nova intensidade ¢ novas perspectivas. Certamente novos estudos serio incitados por este livro. O projeto intelectual de Rodolfo ganharé assim continuidade e vida longa. Celso Castro, Hermano Vianna, Valter Sinder Rio de Jancia, setembro de 1997. Nota sobre a Edicgo Os textos Sinais dos tabalhos aqui reunidos, inclusive os que jé haviam sido publicados, foram estabelecidos a partit da identificagio, nos papéis ¢ arquives deixados por Rodolfo, das verses © modificagdes mais recentes. Em seguida, sua avé, Cleonice Berardinelli, fez uma revisio final, « exempio do que fez 05 outyos dois livros de Rodolfo. Agradecemos muito a ela ¢ também a Karina Kuschnir, pelo empenbo com que nos auxiliaram durante todo esse proceso. 10 A Ligio do Amigo Em abril de 1989, um pequeno grupo de concursados iniclava seu con- vivio no Departamento de Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UER|). O DPCIS, como foi avs poucos ficando conhecido, vivia naquela época um proceso de renovacio ¢ ampliagio de seus quadros, € nds que ali ingressévamos, soubemos desde logo, pelo Prof. Ivo Barbieri, reitor & época, que 2 UERJ estava investindo seriamente na reorientacao de seu projeto pedagdgico em direcdo a uma experiéncia reconhecida pela exceléncia académica. O esforco geral da univetsidade repercutia fortemente no Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas onde se abriga o Departamento de Ciéncias Sociais. Entre os novos concursados de 1989, um se destacou muito rapidamente, tornando-se, em pouco tempo, uma unanimidade cara entre os mais segmen- tados grupos e facgdes, os mais extravagantes temperamentos pessoais, uma divetsidade muito prépria do ambiente universititio que acabavamos de in- tegrar. Era o jovem antropéloge Luis Rodolfo da Paixio Vilhena. Educado, aligs, impressionantemente cortés, bem-hamorado, calmo nos gestos ¢ nas argumentacées, de uma cutiosidade intelectual e humana pouco comum 20s jovens dos vinte € poucos anos, Rodolfo surpreendia-nos a todos em nossa convivéncia totineita pela forma como combinava espontaneamente cordia- lidade e firmeza, gentileza e sinceridade, seriedade ¢ bom humor, compromis- so € delicadeza, prudéncia ¢ rapidez decis6ria, e sobretudo, erudicio ¢ simpli- cidade, E todos nés aprendemos com ele que essas combinagées so possi- veis, apesar de reconhecermos imediatamente depois que nio sio universais, € muito menos extensivas a todos os que as querem para si... Os oito anos em que permaneceu no departamento, Rodolfo conseguiu se fazet conhecido em todas as esferas da universidade, ¢ nao por interesse, carteirismo ou ambicio pessoal por cargos, mas pela simples contingéncia de jamais haver se furtado a cooperar em qualquer dos projetos que o departa- mento propunha ou era chamado a responder. Como foi facil ditigit um da ANPOCS, a Associacio Brasileira de Antropologia ¢ a Universidade Veiga de Almeida, A EdUERJ empenhou-se em sua répida ¢ cuidada edigio, que ficou a cargo de Celso Castro, Hermano Vianna e Valter Sinder. Cleonice Berardinelli ¢ Karina Kuschnir ajudaram na busca e na apresentacio fiel dos textos prolongando em cada gesto a presenga do eto ¢ do amigo de quem nao querem se afastar. A pedagogia afetiva de Mario de Andrade foi traduzida por Carlos Drummond no titulo que o poeta mineiro deu a publicagio das cartas que recebeu do missivista amoroso ¢ compulsive. A Lipo de Amigo me parecea a imagem mais préxima do que os amigos e alunos do Departamento de Ciéncias Sociais da UERJ guardam como mensagem e exemplo de vida do jovem escritor Luis Rodolfo da Paixio Vilhena. Helena Bomeny 13 Thomas Mann e a Ambigiiidade do Moderno* A atte tem sido definida pela sua capacidade nica de expressar contra digdes, ambigiiidades ¢ paradoxos, coisas que em outros contextos nao fariam sentido ou seriam inexprimiveis, 0 que torna a explicagio de sua eficacia inexplicével a nao ser através da propria arte, Assim o inefavel, o inexprimivel € 0 oculto poderiam ser ditos, expressados ¢ revelados através da arte. No pélo oposto se encontratia o discurso cientifico € o filoséfico, nos quais a clareza © 2 l6gica setiam os valores maximos. Para Octavio Paz, a diferenga entre estas duas formas, no dominio da escticura, encontta-se no fato de que, nestas viktimas, “as palavras aspitam a se constituir em significado inequivoco” (PAZ, 1982:25), enquanto a poesia exploraria em toda a sua radicalidade a polissemia das palavras. Ao invés de scr degradada a mero utensilio, a palavra reconquista, ma linguagem poética, sua verdadeira narureza. Mas, para Paz, secuperar sua natureza representa, 20 mesmo tempo, transcendé-la: “Sem deixar de ser linguagem — e sentido e transmissio de sentido — 0 poema é algo que esté mais além da linguagem. Mas isso que esté mais além da linguagem 86 pode set consegnido através da linguagem” (p. 27). O livro de Octavio Pax acima citado, O Arco ea Lira, acaba por set um exemplo de como a definigio da poesia enquanto experiéncia estética, nos termos de nossa cultura, necesita, por vezes, de formas préximas da propria poesia, plenas de ambigiiidades paradoxos, Entretanto, além da discussio acerca da caracterizagio da arte, uma vez que 0 autor define a poesia como 0 elemento que permite distinguir arte ¢ utensilio (cf. p. 24), um dos temas secundarios de O Arm ¢ a Lirk é a natureza da modernidade, em que ele se aproxima mais da antropologia e das ciéncias sociais, aprofundando-se mais em Os Fithos do Barro, B evidente que Paz sc intetessa principalmente pelas repercussées artisticas da modernidade e que isto explica em parte seu Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Modemo interesse em aptoximar-se do discurso cientifico; potém, ¢ principalmente, quando se sabe que tais aproximagdes no sio raras em sua obra, pode-se dizer que outra motivacao do poeta mexicano foi o carter ambiguo e pa- radoxal que 2 definigao deste tema possui. Pata Paz, esta ambigiiidade se inicia na prépria denominagio que cle da a seu objeto de preocupacées: a tradicio moderna, especialmente na literatura, Em sua historia, a literatura sempre teve os seus “modernos”, ow sea, ctia- dotes que se definiam como inovadores dentro de uma dada tradicio, sem que pot isso 2 negassem inteiramente. A tradi¢io que a modernidade inaugura deixa de ser um elo de ligagio do presente com o passado, que legitima o primeiro e Ihe da sentido, ao estabelecer a critica como 0 Gnico elemento que Ihe confere unidade, tornando-se, pois, uma tradigio da ruptura com © pas- sado. A critica é para as artes modernas, “simultaneamente, 0 principio inte- lectual que as justifica ¢ as nega, seu alimento ¢ seu veneno” (PAZ, 1984:18). E. na mesma ditecio que o socidlogo norte-americano Daniel Bell aponta quando cita as palavras de Ieving Howe: “A modernidade”, ele escreve, “con- siste em uma revolta contra © estilo prevalecente, sma firia obstinada contra a orden oficia?’. Mas justamente esta condigio, como Howe indica, cria um dilema. “O modernismo deve sempre lutar mas nunca triunfar inteiramente, € entio, apés um periodo, deve lutar de maneita a nao triunfar” (BELL, 1976:46)? Desta forma, 0 modernismo aparece como uma novidade historica, E evidente que nio foi ele que inventou a contradigio e a ruptura. Segundo Georg Simmel, a hist6ria da cultura pode ser representada ateavés da contra- digo entre a “vida” ¢ a “forma”. A expressio ctiativa da vida do espirito s6 se dé na medida em que ela assume detetminadas formas que, portanto, moldam seu contetido, Por outro lado, esta forma sé existe na medida em que € capaz de se manifesta: nestas ctiacdes. Isto ndo impede que as formas adquiram uma autonomia relative, dando uma configuragio propria & vida cultutal de uma época ou de uma sociedade especificas. Para Simmel, nestes ptocessos nos quais as formas transcendem os contetidos singulares por ela exptessos, “elas adquirem identidades fixas, uma légica e leis proprias” (1971:375). Como Simmel procura esclarecer, este esquema € extremamente amplo, uma vez que da a cultura uma definigo igualmente ampla,* podendo descre- ver, pot exemplo, a mudanca de um modo de produgio, que é tevolucionado no momento em que suas formas se encontram defasadas em relagio as necessidades ¢ potencialidades da economia existente. No entanto, os exem- plos escolhidos por Simmel para ilustrar a definicio especifica que a moder- nidade adota em relagio & oposicio vida/forma so extraidos da arte e da 16 ‘Thomas Mann ¢ a Ambigiiidade do Moderno filosofia. Nestas, assim como na cultura moderna em geral, uma nova fase deste conflito emerge, na qual a vida nio se opde mais a uma forma envelhecida, mas luta “contra 2 forma como tal, contra o principio da forma” {p. 377), Para ilustear este processo, Simmel examina o movimento artistico alemio que melhor o reflete no momento em que cle escteve (1918) — 0 Expressionismo — cujo objetivo € 0 de que “as emogées interiores do artista sejam manifestadas em seu crabalho exatamente como ele as expetimenta” (p. 381). Desta forma, qualquer padrio externo ¢ objetivo a0 qual o artista seja obrigado a se sujeitar é rejeitado, ja que ele poderia falsificar a autenticidade de sua expressie. No dominio da filosofia, os exemplos citados sio os do Pragmatismo, pata o qual qualquer forma ¢ uma invengdo arbitrétia cuja legitimidade reside apenas no seu cardter Udi para a vida, ¢ a “filosofia da vida”, dentro da qual 0 pr6prio Simmel se situa,‘ € cujos precursores seriam Schopenhauet ¢ Nietzsche. Estes movimentos intelectuais refletem, segundo Simmel, os anseios da juventude de seu tempo pela imediata ¢ itrestrita expressio do seff © uma “ampla busca de originalidade” (p. 384). Embora a valorizacio da ruptura jé possa, na verdade, ser encontrada em momentos anteriores (Paz localiza as origens da tradicio moderna no romantismo), 0 modetnismo da primeira metade do século XX, que se inicla no fim da vida de Simmel, representa a radicalizacio deste principio. Ele se expressa no movimento das vanguardas artisticas que, segundo Paz, embora abram “novos caminhos, os artistas per- cotrem-nos com tal pressa que no demoram a chegat a0 fim ¢ tropecam em um muro” (1984:145-6). Neste sentido, 0 modernismo nao foi apenas mais um estilo de época oa literatura, mas um momento de ptoliferacio de estilos, quando as escolas ¢ os “ismos” se multiplicaram, durando, por vezes, menos que uma geracio e niio rato se sucedendo na trajetéria de um tinico criador. ‘A cxacerbacio do patadoxo constituinte da modernidade teve © cfeito, com perdio do ineviravel trocadilho, paradoxal de, 20 invés de multiplicar, amortecet os impactos da ruptura. Ja na segunda metade do século 0 impulso renovador da arte moderna se encontrava exaurido, Para Octavio Paz, “a negagio deixou de ser criadora” {p. 190). Daniel Bell concorda com sua avaliagio quanto a perda do seu impacto estético, mas acredita que o impulso do modernismo continua vivo, passando a atingir outros dominios, Na sua visio, o pos-modernismo representaria no 0 esgotamento do culto da trans- gressio que caractetiza 0 comportamento moderno, mas sua disseminagio: “O que é mais impecssionante a respeito do pds-modernismo € que o que antes era mantido como esotérico € agora proclamado como ideologia, ¢ o que antes eta a propriedade de uma aristocracia do espitito é agora transfor- mado na proptiedade democratica da massa” (1976:52). 17 ‘Thomas Mana ¢ a Ambigiidade do Moderne Esta disseminacio termina por set, ao mesmo tempo, uma vitéria ¢ uma derrota do modernismo, como aliés uid 0 que ele produz. No momento em que so comsagtados, seus valores perdem sua eficicia, uma vex que esca residia exatamente na sua excepcionalidade. O comportamento hererodoxo dos artistas de vanguatda, que sempre foram potencialmente alvo de estigmatizacio, passa a ser divulgado ¢ promovido através dos meios de comunicagio de massa ¢ reptoduride pela moda, correndo o risco de trans- formar em paradigma o que jé foi desvio.* Este quadro leva Bell a propor am modelo alternative pata a interpretagho da sociedade contemporines, mais adequado 4 feigio contraditéria apresentada pela tealidade que ele pre- tende explicar. Discordando dos modelos funcionalistas tradicionais, que véem as sociedades como totalidades mais ou menos integradas ¢ onginicas, cle acredita que, no caso contemporaneo, estamos diante de uma disjuncéo entre os «és dominios (reals) sociais, que seriam o teeno-econdmico, 0 politic € 0 cultural’ Um dos principais conflitos desta relacio disjunta € a dissonancia entre uma cconomia que se baseia exescentemente na racionalizacio, buroctatizagio e disciplina, ¢ a predomingncia, no mundo cultural, de visdes de mundo associadas a0 hedonismo © A busca de plena expressio do sef. A opgito metodolégica escolhida por Bell, no entanto, corre 0 risco de, a0 atribuir as contradigd sociedade 4 existéncia de dominios abso- latamente separados, petder as articulacdes que porventura existam entre estes dois processos. Tado se passa como se, involuntariamente, ele justificasse de forma inconsciente os esteredtipos sobre a impossibilidade de a ciéncia dar conta de tenlidades paradoxais, limitando-se a conscatar sua existéncia, Uma das qualidades da obra de Simmel reside em — sem tecait nas formulacées do funcionalismo” nem negara especificidade do conhecimento artistico — permitir articular este processo. Sua temédtiea se aproxima da de Bell quando cle define a dissonineia da vida moderna como o excessivo erescimento do que ele chama de “cultura objetiva”’ (1971:234). Traduzindo estes dois termos da terminologia simmeliana, ele acredita que a divisto do trabalho ¢ 0 desen- volvimento da tecnologia atingiram na modernidade um grau excessivamente alto pata que possam ser acompanhados pelo auto-aperteicoamento do. self Aparentemente, Simmel inverte aqui os termos da equagio de Belk: parece que nfo € 0 hedonismo que ameaca a economia capitalist, mas 0 racionalismo burocratico desta «iltima que entrava o desenvolvimento do individuo. Mas este desenvolvimento também é, segundo Simmel, um dos ceacos da modernidade, Portanto, no modelo simmeliano, ambas as férmulas das a0 mesmo tempo. Outro teago original desta obra é 0 de, dentro do conjunto de modelos da modernidade que clegem a emergéncia da crenga no valor do individuo da no: io vali- 18 Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Moderne como um de seus tracos principais, enfatizar que esta valotizagio nfo se dé necessariamente da mesma forma. Dai a diferenciagio que ele estabelece entre dois tipos gerais: o individualismo quantitativo, onde hé énfase na igualdade entre 08 individuos, ¢ 6 qualitative, no qual ela recai na sua originalidade. Para Simmel, os ideais de igualdade e Jiberdade que cada um destes tipos, respec- tivamente, expeessa, se identificavam no século XVIII, mas entram em choque no século seguinte, com o desenvolvimento da contradi¢o entre igualdade social ¢ liberdade econémica. Em seu famoso testo sobre as relacdes entre a metrdpole ¢ a vida mental, Simmel relaciona esta emergéncia nao apenas 4 convivéncia do individuo com uma maior variedade de outros individuos ¢ estilos de vida, mas cambém exposigio a novos tipos ¢ ritmos de experigncias sensotiais, Estas experiéncias, tais como as tem o habitante da grande cidade, so infinitamente mais dife- renciadas ¢ imprevisiveis do que aquelas a que o homem antigo estava acos~ tumado. O tempo e 0 espago tornam-se mais diferenciados. Daniel Bell de- nomina este proceso de “revolugiio na sensibilidade”. As experiéncias formais da literatura moderna, que modificam as formas tradicionais da narrativ como, por exemplo, 2 desctigio do “flaxo de consciéncia”, buscam expressar esta nova tealidade através de sua énfase na “imediaticidade, no impacto, na sensacio ¢ na sensibilidade” (BELL, 1976:87-90). O homem moderno molda ‘© seu ambiente externo a partir de sua nova concepgio de tempo, na medida em que, por representar a modernidade uma aceleragio do tempo histérico, ela implica um processo de fusio deste cempo. Para Paz, no modernismo, todos os tempos € espacos confluem em um aqui € agora (1984:23). Os modernos meios de transporte ¢ os meios de comunicagao de massa trans- formam em uma realidade concreta a concepcio estilistica do moderaismo, que por sua vez busca expressé-la artisticamente ‘A experimentacdo de sensagdes ftagmentadas e estilos de vide diversi cados leva o homem metropolitano a opor uma barreita de impessoalidade “as ameacadotas correntes ¢ discrepincias de seu meio ambiente que 0 desentaizatiam” (SIMMBL, 1971:236). Desta forma, ele adota uma indiferen- ca intelectuslizada diante daquilo que o cerca, procedendo de forma andloga 4 economia monetiria, que faz com que todos os objetivos se tornem intercambiaveis através de relacdes de valor numéricas, e a divisio macemitica que os relégios impéem ao tempo, tornando-o homogéneo (fF. p. 238). No entanto, Simmel no acredita que 4 objetividade ¢ a indisting2o dominem de forma exclusiva a vide urbana, Para ele, “os mesmos fatores que, na exatidao € na previsio minuciosa da forme de vida, fundirany-se numa escrucara de alta impessoalidade, civeram, por outro Ido, uma influéncia numa direcio alta- mente pessoal” (p. 329) iy Thomas Mann ¢ a Ambigilidade do Moderne. A expresso mais tipica deste tipo de personalidade é a adocio da atitude “blasée?, O individuo passa a assumi-la, a0 percebet o seu eu como o tinico ponto fixo diante da diversidade que o cerca. Assim, “é precisamente através da alternfncia de sensacdes, de pensamentos ¢ de atividades que 2 petsonali- dade identifica-se” (p. 291). Os mesmos elementos que contribuem para a objetividade da vida moderna que oprime a singularidade podem, igualmente, possibilitar o desenvolvimento do seif. Esta relacko teciproca ¢ ambigua pro- duzida pela metrdpole é expressa por Simmel ao afirmar que: A axrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva encontra-se na raiz do édio amargo com © qual os ptegadores do mais extremo individualism se ditigitam, nas pegadas de Nietzsche, contra a metsopole. Mas também a explicacio do porqué, de fato, cles sio to passionalmente amados nas metrdpoles ¢ realmente aparecem para os seus moradores como os salvadores de seus anseios insatisfeitos (p. 338). Portanto, é a propria vida moderna e urbana que produz aquelas “vidas auténomas” marcadas por impulso ¢ tracos caractetizados por Simmel como “itracionais, instintivos, soberanos”, ¢ aqui cle se refere mais uma vez a0 exemplo de Nietzsche, cuja “existéncia no esquematizada” (p. 328-9) as co- loca em choque com o intelectualismo da metrépole. A histria da criagéo attistica conhece um processo andlogo que se dé paralelamente & fragmentagio da vida moderna. Até o romantismo, os artistas necessitavam do consércio de mecenas € patronos que tinbam uma influéncia decisiva na determinac&o da legitimidade de suas criagdes. Como mostra Pierre Bourdieu, artistas como Poppe ¢ Shakespeare, entre outros, achavam absolutamente naturais as interferéncias de seus patrocinadores na sua arte (cf. 1968:106-7). Na medida em que, conjuntamente com a revolucio industrial, se cfia um mercado de consumidores culturais, a liberdade do artista em telagio a seu pliblico torna-se um valor cada vez mais disseminado, Este mercado permite o surgimento de um campo intelectual auténomo, com instancias especificas de legitimagio e consagraglo, como criticos, zcademias, prémios ctc. A esteutura deste campo serve de mediagio entre o criador e a massa anénima de consumidores. Bourdieu procura mostrar como o campo se organiza de forma homdloga 20 modelo de Weber sobre 0 campo reli- gioso, com seus ortodoxes ¢ heterodoxos, seus sacerdotes e profetas. Finquan- to, no caso dos primeitos, a legitimidade decorre das instituigdes como ins- tancias consagradoras das obras artisticas, os outros dois reivindicam uma 20 ‘Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Moderno “qutoridade pessoal”, baseada na sua condi¢io de criadores originais (p. 134). Mais uma ver temos aqui a modernidade criando a oposigio entre a objeri- vidade da burocracia académica ¢ artistica, a subjetividade do catisma do criador, oposigio esta que, segundo Bourdicu, constitui oda a dinamica deste campo. Embora 0 artigo de Bourdieu represente um esforgo consistente no sentido de relativizat a idéia de artista absolutamente independente, que se exptessa de forma radical na ideologia da arte pela arte, ele proprio reconhece a eficicia desta ideologia como elemento constituinte da autodefinigio da identidade do artista. Fste texto demonstra de forma definitiva a importincia de se incluir, no conjunto de decerminantes histéricos, socioldgicos ¢ psicolé- gicos habituais, a varidvel da estrutura do campo intelectual no conjunto de determinacées que delimitam 0 campo de possibilidades dentro do qual sio elaborados os projetos ctiadorcs da modernidade. Este actéscimo é apenas mais uma ilustragao da fragmentacio da sociedade na qual o indi- viduo interage. Portanto, o projeto criador, como qualquer ptojeto no mundo moderno, constitui, nas palavras de Gilberto Velho, “uma tentativa consciente de dar sentido ou uma coeréncia a essa expetiéncia fragmentada” (1981:31), na qual a valorizacio da emogio ¢ a da escolha individual so varidveis fundamentais. Esta é a conjuntara que permite a emergéncia de um nove modelo de artista, produto tipico do modernismo: o artista de vanguarda. Sua obra busca se legitimar através de sua originalidade, definindo-se como o produto de uma subjetividade que se opde as formas jé estabeleciclas, Isto Ihe valeré, como provivel conseqiiéncia, a incompreensao de seus contemporincos. No entanto, € 0 preco que paga em seu esforgo para revolucionar ¢ acelerar o progresso das formas artisticas, Bell reconhece nele tragos semelhantes aos do “ontrepreneu®” capitalista, mas a racionalidade erigida pela sociedade que este iltimo consttéi produz um agudo antagonismo entre estes dois personagens © socidlogo americano encoatra em Baudelaire um tepresentante exemplat do édio nutrido pelo artista moderno contra o burgués, que se expressa na sua sentenga: “ser um homem til sempte pareceu para mim como algo inteiramente indecente” (cf. BELL, 1976:17}. Baudelaire € também 0 modelo de Walter Benjamin para a definicao do artista moderno. Na interpretagio que este faz das contraditorias comadas de posicao do poeta francés, que, pot exemplo, facilmente mudava sua opiniio sobre a teoria da arte pela arte, Benjamin as explica attibuindo-2zs 20 baixo nivel de sua consciéncia politica, que era definida apenas pelo protesto ¢ a revolta contra a ordem estabe- lecida. Estas atitudes seriam caracteristicas de sua “metafisica do provoca- dor” (1985:45-6}. Esta posicio negativa primordial constituiria a explicacio 21 ‘Thomas Mana e a Ambigilidade do Moderno de varias tomadas de posicio de Baudelaire, como o seu demonismo ou o clogio do carter herdico do proletariado moderno. Pottanto, 0 projeto criador do attista moderne tipico, tal qual o defino aqui, tem como pano de fundo a oposigéo entre o externo, o objetivo eo burgués, ¢ © interno, o subjetivo ¢ o artistico. Ele pretende, como afirma Simmel definindo o seu conceito de vida, “expressar apenas a si mesmo; assim, quebra qualquer forma que seria superposta a ela por outta realidade qualquer” (1971:393). Usando a terminologia do romantismo, o artista busca romper a oposicio vida/arte. A obra artistica representaria uma reicigio da primeira, tal qual ela se apresenta, eur tentativa de transformé-la pelo poder da arte. © leitor deve ter notado que « significado ¢ a posigéo da palavra wid se invertem quando se compara a oposicio simmeliana e a romantica. Nesta uiltima, ela significa 0 cotidiano mediocre da vida burguesa ¢, como tal, se associa A idéia de forma e 4 cultura objetiva racional que, por sua vez, se opée ao crindor artistico € & vida, no seu sentido metafisico, utilizado por Simmel. Tentando, portanto, deixar clara a comparagio das citacdes: a vida esta para a forma, em Simmel, assim como a arte esti para a vida, na concepgio romantica. Octavio Paz, apesar de sua simpatia pelo romantismo e suas propostas, acredita que a histéria da arte nos leva a aceitar como itteconcilidvel essa oposigio (1984:144). Simmel, antes dele, j4 afirmava que 0 conflito entre vida © arte € insoliivel, uma vez que a vida nao pode se eapressar sem tomar uma forma, Sua posigao, que, como vimos, se insere na Filosofia da vida, € resig- nar-se diante do provavel fracasso do modernismo em abolir a forma en- quanto tal, afirmando que é um preconceito filisteu acteditar que “conflitos © problemas so concebidos meramente para que sejam solucionados” (1971:393), Se aceitarmos esta correspondéncia entre a oposicéo romiatica conceitos simmelianos de vida ¢ arte, esta impossibilidade de sua transcendéncia pode ser interpretada como uma decoréncia do fato de que, neste par conceitual, como nos demais que identifiquei na obra de Simmel, cada polo se define por sua oposigdo 20 conteitio. A tensdo que existe entre eles nao se anula mesmo nas vitias rentativas de conciliago ¢ de combinacao que podem ser tealizadas ¢ que participam da complexidade ¢ da fragmentagio da vida moderna. Quando comenta a convivéncia das duas formas de individualismo na metrépole modemna, Simmel se refere & existéncia aio apenas de conilito: mas também de “tentativas de unificagdo” entre os tipos quantitative © qua- liativo, uma vez que as mesmas condigdes particulares “se revelaram pata nds como a ocasido € 0 estimulo para o desenvolvimento de ambas” (p, 399). Por outro lado, assim como a vida s6 pode expressar-se através das formas, este autor reconhece que “obviamente nio pode existit cultura subjetiva sem cul- 22 ‘Thomas Mana ¢ a Ambigitiéade do Moderno tura objetiva” (p. 234), pois € a partir dos elementos da ditima que a primeira se elabora. Em suma, 0 modelo teérico que Simmel constrdi pata interpretar a modernidade nio pode ‘ser visto como um conjunto de dicotomias mecé- nicas e estiticas. Na verdade, ele dé margem ao reconbecimento de configu- races singulates, ja que a producio de singularidades € um trago marcante da sociedade moderna, Da mesma forma, o leitor deve relativizer a desericio um pouco simplificada que fiz da concepgio paradigmatica do artista moderno, ja que meu objetivo neste texto € dela me utilizar pata que possamos com- preender a obra de um artista que ocupa uma posi¢io peculiar dentro desta formula, Lm outro caso que poderia ilustrar a idéia de que as antinomias que definem a atte moderna podem conhecer esforcos de conciliaglo € 0 da io de “artista cngajado”, particularmente nas formulacSes de inspitagic marxista, Este modelo tejeitaria a ordem social em que vive artista, que se totmatia 0 portavox de uma nova fase histérica a partir de uma oprao subjetiva, a sua “tomada de consciéneia”. Esta, porém, muitas vezes sabordi- na-se A avaliagio objetiva do movimento hist6rico, pensada a partir das “leis da histéria”, ¢ implica uma identificacto com um setor aptimido daquela sociedade, 0 proletariado. Ampliando-se esta interptetacio, poder-se-ia dizer que, dependendo dos elementos através dos quais cada artista moderno define a sua rejeigao a vida burguesa, eles podem, conseqiientemente, implicar a identifieacio com um determinado setor social contraposto Aquela ordem, como, por exemplo, 0 povo (que pode ser definido das mais diversas ma- nciras), os camponeses, 0 jovens, 0s individuos marginalizados, 05 loucos ete Muitas vezes pode ser percebido este tipo de identificagio, que serve de comtraponto & solidao do attista de vanguarda, no ea representagio explicita da sua identidade de artista, mas mam sentimento vago de nostalgia, Exemplar a este respeito € uma histéria sobre Gustave Flaubert, que fascinava Franz Kafka, segundo nos conta scu bidgrafo ¢ amigo Max Brod. O préprio Thomas Mann, sintomaticamente, irf comentar esse episddio na introdacto gne escteveu 4 edico norte-americana de O Carte. Conta-se que 0 eseritor francés, que, nas palavras de Mana, “em uma orgia de ascerismo, havis saeti- ficado toda a sua vida 20 idolo niilista da dttéraéure? (1975:242), ceria afirmado, apés uma estada no campo ¢ profundamente comovide com a simplicidade da vida dos camponeses: “Lis sont dans fe wat” (cf, BROD, 1986:155}. Na obra do proprio Kafka, este ambigilidade se revela nitidamente, 0 que leva Brod a attibuit-lhe © desejo de conciliar duas atitades opostas © contraditétias: “2 nostalgia da solidao ¢ a vontade de viver em comunidade” (p. 151) A seguir, procuratei mostrar como a obra de ‘Thomas Mann constitui-se, em grande patte, numa reflexio sobre as relacdes de repulsio ¢ atcagio que 23 ‘Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Modemo o artista tem em relaclo 4 sociedade & qual pertence. Descendente de uma linhagem de tradicionais comerciantes do norte da Alemanha ¢ profundamen- te influenciado pela cultura alema, este autor iré experimentar, apesar de uma certa aproximacio com 0 socialismo e do seu exilio durante o perfodo nazista, a impossibilidade de desvencilhar-se de suas origens. Buscando identificar em sua obra os principios a partir dos quais cle clabora a sua representacdo do artista moderno, procurarei refletit sobre as respostas singulares que este es- critor encontra para os paradoxos da modesnidade. I Jean Fougére afirma que os primeiros personagens dos romances ¢ no- velas de Thomas Mann podem ser divididos em duas grandes categorias, 2 dos artistas e 2 dos burgueses (1949:9). © conilito entre esses dois tipos reflere as tclagdes hostis entre a arte moderna ¢ a sociedade que a citcunda e, ao fazé- lo, a obra de Mann repete um tema comum a seu rempo. Porém, sua origi- nalidade se revela quando percebemos que ele nao se limita a encarnar em diferentes personagens estes dois prineipios conflitantes: a partir de Tonio Kréger, escrito em 1903, 0 personagem-titalo inaugura uma galeria de protagonistas da ficgio manniana cuja marca é 2 sua divisio interna entre a arte e a vida Sua histéria tem um forte canho aurobiografico ¢, se desprezarmos pe- quenos detalhes da trama, representa a continuagio da vida de Hanno Buddenbrook, iltimo representante da familia cuja decadéncia constitai o tema de Os Baddenbrooks, o primeito romance de Mann. No final deste iivto, este personagem morte, marcando o fim da linhagem e de sea impétio comercial. A teajetdria deste ultimo repete a da “JS. Mann, atacadistas de ceteais, comissitios © agentes maritimos”, tiquidada segundo ordens expressas do testamento do Senador Johann Heinrich Mann, cético a respeito das pos- sibilidades de seus filhos continuarem sua administracio devido 2 rejei¢io que Heintich ¢ Thomas nutriam em relag’o ao mundo dos negécios. Mais tarde, seus dois filhos se torneriam dois dos mais importantes romancistas da Ale- manha em sua época. Embora nao possamos dividir os personagens de Os Buddenbrooks entre esses dois grupos, pode-se dizer que ha um continuo que vai desde os austeros € teligiosos fundadores da firma acé os personagens da fase decadente da familia, culminando 10 menino Hanno, amante da arte. Na medida em que © prestigio da familia vai sendo acumulado, ele passa a pesar nos ombros de 24 ‘Thomas Mann ¢ a Ambigtidade do Moderna seus membros, ptincipalmente sobre os de seu pai, o Senador Thomas Buddenbrook. Este prestigio, ao mesmo tempo que € conquista do passado de prospetidade da firma, impede que o Senador possa enfrentar com a mesma firmeza o futuro, sentindo dificuldades em fazer frente ao dinamismo € 4 competitividade do capitalismo alemao do final do século. Segundo Simmel, a pobreza constituitia uma “solugio hist6rica Gnica” pata a “equaclo entre a cotalidade ¢ 0 individuo” (1971:213), Nela, € através do poder criativo do individuo que a substincia objetiva, transmitida de geragio em getagio, ganha vida, existindo uma interdependéncia entre os dois polos, individuo ¢ totalidade (cf. p. 209). A “decadéncia de uma familia”, & qual © subtitulo do primeiro romance de Mann faz referéncia, é explicada através das dificuldades que os Buddenbrooks encontram para aliar o actimulo de encargos e de obrigacdes que acompanham a aquisicio dos signos de status 2 ousadia nos negécios que caracterizava seus primeiros tempos, O audacioso patriarca da familia, o velho Johann, inicia a fortuna atravessando © sul da Alemanha numa eactuagem de duas parelhas para comprar trigo para 0 exér- cito prussiano. Entretanto, quando aparentemente o prestigio da familia atinge © Apice, com a aquisigio de uma luxuosa casa por seu neto Thomas, que é também cleito Senador, este é assaltado por pensamentos sombrios que se expressam cm um diélogo com sua irma Tony: Nos tiltimos dias, muitas vezes, pensei num provérbio turco que li em alguma pare: “Quando a casa esta terminada chega a morte”, Ora, nao precisa ser exatamente 2 morte, mas a marcha retrograda... a decadéncia... 0 comeco do fim... [J ‘io coisas superficiais. [...j Sei que, muitas veves, os sinais extetiores, visiveis € palpiveis da sorte € do éxito s6 aparecem quando, na verdade, tudo esté decaindo. Esses sinais exteriores precisam do tempo para chegar, assim como a luz de uma estrela 14 em cima, da qual nao sabemos se ja nio est apagada quando seu brilho eseé mais chro (p. 410). © verdadcira Scnador Mann teve cinco filhos, mas a decepgo do Sena- dor Buddenbrook com seu tinico filho no foi menor. No fim de sua vida, apés varios insucessos financeiros, procura inutilmente preparar seu herdeiro para suceder-Ihe na empresa, embora ele prdptio jé nao manifeste 0 menor entusiasmo em cumprit sua rotina ritualistica e vazia, conduzindo os negocios com uma cautela excessiva, Hanno, menino frigil ¢ sensivel, percebe, por um lado, 0 esforco € © softimento que causa a seu pai a representagio do papel 25 Thomas Mann e a Ambigitdade do Modetno de chefe da familia, papel que eta destinado a ele no futuro, € sofre com os formalismos ¢ tigores da disciplina prussiana de sue escola; por outro lado, cle sé encontra praveres na sua paixio pela musica, que compartilha com sua mie. A contemplacio da atte ¢ o seu cotidiano se colocam para Hanno como momentos antitéticos e itreconciliaveis, e, cada vex que ele se deliciava assis- tindo a uma dpeta, perccbia o quio dolorose é a beleva, Ble a via como um momento de harmonia fugidio, que “nos mergulha profundamente em ver- gonha e desesperanca cheia de saudade, devorando-nos, 20 mesmo tempo, a coragem ¢ a capacidade para a existéncia vulgar” {p. 651). A morte de Hanno e de seu pai, que encerram © romance, assume, por motivos diferentes em cada caso, um aspecto bbertador para os dois personagens. Fete desfecho parece ser caracteristica daquilo que Fougére chama de “época wagneriana” da obra de Mann, que, na opiniio do primeiro, dura até 1924, quando ¢ publicado 4 Montarka Mdyica. Tendo como ponto de partida a filosofia pessimista de Schopenhauer, Mann teria construido a primeira parte de sua obra nao 36 sobre a oposigio entre vida ¢ arte, mas também sobre a identificacto desta tkkima com a morte. Os protagonistas de seus romances ¢ novelas viveriam constantemente 2 “sédvetion de la mor?”, cajo caso tipico & © protagonista de 4 Morte ev Vereza (publicado originalmente em 1908), artista enfeitigado pela beleza de um frigil © doentio jovem polonés, que o eva a abtacar a morte nesta cidade infestada pela célera, No entanto, paralelamente a esta posicao metafisica, ha. um plano bisté- rico no qual os personagens de Mann se encontram, Este autor afitma que, em toda 2 sua vida, nfo narrow “outza coisa que uma Gnica histéria: a historia de desaburguesamento, para chegar a ser no um ‘bourgeni? ow um marxista, fe sim um artista que chega a atte disposto a deixar 0 ninho e empreender seu yéo em dirccdo & ironia e 4 liberdade” (1975:48).” A valorizagao da burguesia alema no texto citado, que ¢ um diseurso lide em sua cidade natal, pode ter sido um produto das circunstincias. No entanto, se acompanhatmos a trajetétia de Tonio Kréger, a descri¢io mais complera do prodato dessa decadéncia, percebemos a ambigitidade que este artista cxperimenta em relago a sua origem, sentimentos tio diferentes dos de Hanno Buddenbrook. Tonio é, de certa forma, 0 produto da mistura de influéncias burguesas € attisticas, entre as quais ele se divide internamente. A oposicio se expressa inicialmente através das diferengas entre seus pais. Ele é filho do Consul Krdger, cambém dono de uma tradicional firma comercial e homem respei- tado de uma cidade do norte da Alemanha. Jé sua “linda mie de cabelos negtos”, Consuelo, “morena ¢ ardente”, era “diferente das outras damas da cidade, porque 0 pai de Tonio ha tempos 2 trouxera de um lugar que ficava 26 Thomis Mann e < Ambigiidide do Moderno la embaixo no mapa” (19842:126}. Aparentemente, a personalidade de Tonio, que ele definia como “negligente, desobediente, me preacupando com coisas em que ninguém pensa, sem poder nem querer ser diferente” (p. 127), estava mais présima da de sua mie, com quem compartilhava o amor pela atte." Desta forma, os “boletins deplordveis” que cle trazia para casa pouco a incomodavam. Seu pai, pelo contritio, sentia-se extremamente preocupado com 0 futuro do filho. No entanto, apesar de ‘Tonio confessar nao querer nem poder ser diferente do que era, a atitade do pai sempre the parecia mais digna € responsayel; afinal, como cle Ihe dizia, “nfo somos ciganos num cartocéo verde, mas gente decente, Consul Kréger” (p. 126). ‘Tonio sente-se, durante toda a sua infincia, um estranho, uma pessoa que vivia em conflito com os professores, que lia livros que ninguém lia, que tinha a mania de escrever versos, Nao interpretava, entretanto, esta particularidade como um signo de superioridade em relagdo aos outros; pelo contrério, preocupava-se com isso: Também no era raro pensat: mas por que sou tho esquisito, vivo em conflito com todo mundo, em desavenga com os ptofessores, como um esttanho entre outros jovens? Othe sé para eles, os bons alunos ¢ aqueles que se afertam 2 uma sdlida mediocridade. Eles nao acham os professores tidiculos, nio fazem versos © s6 pensam coisas que todo mundo pensa © que se pode dizer em voz alta. Como devem sentit-se em ordem € de acotdo com todos! Isso deve ser bom... Mas 0 que se passa comigo ¢ quando isso vai acabat? (p. 126-7) Os dois primeitos capitulos do liveo sto dedicados a descrigio de sua dificil relagao com seus dois amores juvenis: o belo Hans Hansen, que “era um excelente aluno ¢, além disso, étimo companheiro que montava a cavalo, tazia gindstica, nadava como um herdi e gozava da estima de todos” (p. 127) loura Ingeborg Helm, que fazia qualquer um se sentir “esmagado pelo seu excesso de segutanca € distingio” (p. 137), Nos dois casos, eram amores impos- siveis, motivados pelo fato de cada um deles encarnar 0 oposto de “Tonio, a respeitabilidade e a distinco que seu pai possuia e que cle se sentia incapaz de alcangar. Enquanto Hans se mosttava insensivel ao entusiasmo de ‘Tonio por Schiller, pois s6 se interessava por livros que tinham figuras, 0 pobte Tonio se atcapalhava todo na aula de danga, perturbado pela presenga da loura ¢ alegre Inge, “que certamente o desprezava por escrever poesia” (p. 143} Nio devemos por isso concluir que cle no fosse desejado por algumas de suas colegas. Ele bem sabia que a desajeitada Magdalena Vernehen o ea 27 Thomas Maan ea Ambigiidade do Modemo admirava por aquilo que ele era, ¢ por isso tentava tepetidamente aproxima- Ges que cram rechacadas por Tonio, O acesso a Magdalena era facil ¢ ela Ihe correspondia, Apesar disso, ptefetiu 0 contato com Inge, no qual ela, mesmo quando estava sentada a seu lado parecia-he distance, estranha e incomprcensivel, e no entanto [Tonio] era feliz. Pois felicidade, dizia a si mesmo, nfo é ser amado; isto ¢ algo mesclado de nojo que $6 satisfaz a vaidade. Felicidade € amar ¢ talvez obter pequenas, falsas aproximacdes com 0 ser ama- do (p. 143). A morte de Thomas Buddenbrook precedeu a de seu filho, momento em que © autobiogrifico deu lugar @ livre crinclo neste primeiro romance. Ja a vida de Tonio segue de mais perto a do proprio Mann. A grande modificacio € 0 destino seguido por sua mie apés a morte do marido. No romance, ela se casa com um mtisico italiano € parte para a Itdlia." Assim como ocorrera com ‘Thomas ¢ Heintich Mana, Tonio se sente livre para se dedicar 2 arte, passando 2 desprezar sua cidade natal ¢ encarando “com escarnio aquele modo de vida tosco ¢ mesquinho que por tanto tempo © mantivera cativo”. No entanto, o abandono da vida burguesa e 2 dedicagio ao “poder do espitito ¢ da palavra” nao the trouxeram paz, pois o artista deve buscar a clarividéncia, “a esséncia do mundo ¢ 0 fandamento tltimo que se oculta por tris das palavras € acdes, Mas 0 que ele viu foi: ridiculo ¢ miséria — miséria € ridiculo”. Tonio via assim aumentat o abismo que o separava do “circulo de inggnuos”. Para Mann, a arte representa 0 conhecimento e, nas palavtas de ‘Tonio, “o conhecimento da alma levaria infalivelmente 4 melancolia, se © entretenimento com a busca da expressio nao nos mantivesse despettos © alegres” (p. 152). Em principio, a busca da expressio artistica significou para ele a rejeicio completa dos modelos de vide de sua cidade natal, merguihando numa vida boémia ¢ destegrada, embora em parte a detes- tase; afinal, “no mascera em um carrogao verde”. Por fim, ao receber os primeiros reconhecimentos por sua obra, ¢ percebendo 0 quanto a arte deve levar ao afastamento da vida, decide dedicar-se integtalmente a ela, com ascetismo e disciplina. Hj um Tonio Krdger maduro que desenvolve o importante didlogo com uma amiga, a pintora Lisaweta Lwanowna, descrito no quarto capitulo, que constitui, provavelmente, 0 nucleo do livto. Nele, Tonio desabafa suas divides sobte a identidade do artista c, em meio a essas ddvidas, vai se desenhando a original teorfa manniana sobre a posicéo do artista diante da contradigio romantica entre vida e arte. A forma pela qual ela fora colocada 28 Thomas Mann ¢ 2 Ambigiidade do Moderno no capitulo anterior coincidia com os modelos que, como vimos, informavam a arte moderna. Se € 0 conhecimento que distingue o artista do mundo que © cerca, a rejeigio que este Gltimo nutte por ele poderia ser interpretada como sinal de incompreensio e ignorincia. Para Tonio, no entanto, este nio ¢ 0 nico motivo: a “atitude fria ¢ exigente” requerida pela postura critica que o artista deve assumir em relacio ao humano “pressupde um certo empobre- cimento € despojamento humano” (p. 155). Se a literatura no se constitui para ele numa profissio, mas numa maldicio (cf. p. 156}, isto nfo se deveria simplesmente ao fato de ele possuit um conhecimento superior ¢ set, portan- to, incompreendido, Na verdade, todo conhecimento implicaria uma nausea, a mesma que tetia atingido Hamlet. Ela deve-se nfo s6 20 afastamento que © artista é obrigado a impor-se em relacio ao grupo em que vive, no intuito de adquirir uma posigio de objetividade, mas também ao fato de que o conhecimento que brota dessa operacio empobrece a realidade que o artista quer retratar. A espontancidade, o sentimento, a dinimica que a vida oferece seria congelada pelo artista, que a expressaria com a precisio que ela nao possui. Tonio, portanto, afirma: ‘Veja, © literato no fundo nfo entende que a vida possa con- tinuar sem constrangimento, mesmo depois de ter sido expri- mida e “resolvida”. Mas, veja bem, despeito de toda reden- cio pela literatura, ela prossegue pecando imperturbavelmente, ja que coda acto é pecado aos olhos do espitito (p. 152). Esta critica & natureza da representagio artistica permite a ‘Tonio concor- dar com a estigmatizagio do artiste pelo burgués: No fundo da minha alma cultivo contra todo tipo de artista toda desconfianga que cada um dos meus antepassados na- quela cidade estrcita l em cima teria manifestado com relagio a qualquer saltimbanco ow artista ambulante que Ihe batesse & porta (p, 155). © desconforto de Tonio com sua posigio de artista, que o obriga 2 assumir uma atitude irénica em relagio ao “normal, ao decente, 20 amével”, Ihe desperta um “anseio nostilgico da inocéncia, da simplicidade, da vida ¢ de um pouco de amizade, dedicagio, confianca ¢ felicidade humana” (p. 163). Ao usar essas expressdes, Mann mostra que sua definicio critica da criagio artis- tica soma-se a uma identificaco pessoal com a ingenuidade eo frescor da “comunidade de ingénuos” da qual certamente faziam parte Ingeborg ¢ Hans. 29 Thomas Mana ¢ a Ambigiidade do Mederno Na viagem que se segue a esse didlogo, para um balneario dinamarqués, Tonio pensa reencontrar em dois jovens que se hospedam em seu hotel, seus antigos amores. Nela o esctitor se reencontra consigo mesmo, € conclui que “se existe algo capaz de fazer de um literato um poeta, € esse amor burgués por tudo que é humano, vivo © comun” (p. 211) Pudemos ver que Tonio Kriger jA define a necessidade de se vencer @ “<éduotion de la mor’, afirmando a fecundidade da opsio do artista em nio escolher de forma exclusiva nentum dos patos da oposicio roméntica entre aarte ¢ a vida. Fsta obte o faz, € verdade, a partir de recordacées sentimentais do autor, sem ainda atingir a dimensao filoséfica de A Monfanha Magica. Neste fivro, através dos personagens que dispatam a influéncia do protagonista deste Bildeagsroman, o jovem Hans Castorp, dramatiza-se a busca de uma conciliacio entre a8 tendéncias tacionalistas ¢ burguesas do Jiterato Settembrini ¢ as ten- déncias métbidas e artisticas do jesuita Naphta ¢ da russa Clawdia Chauchet, por quem Flans se apaixona. Embora esta mediacdo surja com 0 conceito de Jumaro, corporificado no personagem Mynheer Peetperkotn, sua verdadeisa natureza ¢, ptineipalmente, suas verdadcias implicacdes para a criacko artistice ainda no sio expostas claramente, Embora 4 Montara Mdgiea renha mere- cido maior atengio dz maioria dos comentadores de Mann, que neste liveo véem © marco de uma nova fase de obra deste autor, creo que é no seu Ultimo grande romance, Dewior Fausto, que se pode encontrar a sua reflesio sobre © artista moderno pienamente amadurecida © mancendo uma continui- dade com suas obras de juventude Tl Um dos problemas na anilise da obra de Thomas Mann € a dificuldade para se determinarem os limites do modelo de artista ptesente em grande parte de suas obras. Qual setia sua validade? Seria um modelo estritamsente histdrico que se refetitia apenas aos artistas alemaes, produtos da decadéncia da burguesia deste pais no fim do século passado? Ou seria um modelo que definiria a esséncie de toda a atividade artistica? Seria um modelo ideal gue Mann cré que deva scr perseguido por codos os artistas? Ou apenas pelos artistas contemporineos? Ou ainda apenas um modelo pessoal de Mann que, om ditima andlise, seria seu, mas também dos antecessores aos quais se filia? ‘As respostas positivas @ estas perguntas estariam, parcialmente, corretas, possuindo validade em niveis distintos, Em ultima andlise, corresponderia a 3o Thomas Maine a Anibigiiidade do Moderne: forma pela qual Mann se define e justifica sua posicio na sociedade ¢ no momento historico em que vive. Nesse sentido, quase toda sua obra seria autobiogrifica, No entanto, aquele que, ao faiar de si mesmo, & capaz de estar expressando involuntariamente a verdade de outras pessoas, mesmo desco- ahecidas, pode ser catacterizado como uma pessoa representativa, e esta é, nas palavras de Mann, “a sorte austera dos psincipes © poeras” (1975:15). Da mesma forma que A Montanta Mégica ¢ Tonio Kriger wratam das mesmas questées em niveis diferentes, os protagonistas das varias obras deste autor retratam 0 artista segundo o modelo que procurci aqui definir, explorando diferentes teacos do seu caréter ambiguo: desde o seu lado mitico em José! na quadrilogia bablica José © sens Irmdas, até 0 seu lado de farsante, no irénico Folive Krull. No aspecto formal, sua obra expressa uma certa ambigiiidade. Por um lado, ela se preocupou em retratar os dilemas do artista moderno. Por outro, seu estilo permaneceu, em linhas gerais, fiel aos cinones do romance tradici- onal, tal como fora estabelecido pelo rcalismo do século XIX. F. curioso evocar a resposta que Tonio Kréger di a Lisaweta, quando esta ironiza sua posicio de “maldito”, contrastando-a com seus trajes burgueses ¢ conserva- dores: “— Ora, deixe-me em paz com minhas roupas |..]. Como artistas ja somos aventureiros demais por dentro. Pelo menos pot fora devemos vestit- nos bem, que dizbo! F. nos comporter como gente decente...” {1984a:153) Fste trecho soa quase como uma justificativa do seu “conservadorismo formal”. [4 que toda arte € falsificacio, © sempre repres io do real, nio ha necessidade do artista buscar grandes inovagées formais para obter ou um afastamento do real, ou, pelo contrario, uma aprosimacio maior Quanto A participacio politica e o interesse pelos problemes sociais, sua biogeafia também apresenta contrastes. Absolutamente desinteressado da po- licica até a Primeira Guerra Mundial, Thomas apdia decisivamente a patti- cipacio da Alemanha nesta, entrando em choque com seu itmao, para se acrepender depois ¢ justificar suas posigdes em um imenso volume incitulado Reflextes de um Apolitica. No entanto, a partir do inicio da Republica de Weimar, cle comeca a assumir uma millitincia crescente, que iti gradualmente aumentar até que ele se torne um dos principais inimigos do estado nazista, o que o lev 20 exilio. Para muitos, tal mudanga representa um amadurecimento e um reconhecimento maior das questées que afligiam o mundo capitalista. Mais do que qualquer outro, Doxtor Fausto € 0 liveo que reflere a maior preocupacio histética e politica em sua oba, reptesentando um testemunho, no calor do momento, da tragédia que se abateu sobrea Alemanha com 2 ascensiio € derrocada do nazismo. Ao mesmo tempo, a0 nartar a biografia ficticia de um miisico alemao chamado Adrian Levericiihn, surgem com toda nta uma transgre: Br Thomis Mana ¢ a Ambiglidade do Mode:no sua fotga as questées enfrentadas pelo artista moderno, principalmente quanto as dualidades que Simmel associa a modetidade. No entanto, mais importante que aquilo que o livto procura narrar, 2 histétia de Leverkizhn ¢ a da Alemanha, é a forma pela qual o autot costura © tomance de mancita a telacionar os varios planos em que ele se desentola. © narrador € um companheito de infancia de Leverkiihn, Serenus Zeitblom, um filélogo humanista ¢ racionalista que resolve fazer a biografia de seu amigo. Enquanto narra a danacio do protagonista, que, repetindo © lendario Fausto, vende sua alma 20 diabo, Zeitblom comenta 2 desttuicio do estado naz dos personagens que servem de pano de fundo a histéria de Leverkihn ilustram a desagregacio da socicdade alema. Antes de entrasmos mais profundamente no comeiido do livro, gostaria de fazer referéncia a alguns elementos que nos permitem ter uma idéia mais ptecist de seu telacionamento com o conjunto da obra manniana, Um ele- mento-chave é 2 concepcio apresentada nesta obra sobre a personalidade do povo alemio, que possui varias analogias com 0 modelo de artista que venho discutindo. Fim outros livros, isto se expressa, inclusive, geograficamente. Em Tonio Kriger hé uma oposigio norte/sul. © pai ¢ a cidade natal de Tonio sio do norte, enquanto sua mie provém do sul. Foi na Italia que Tonio se entre- gou 4 vida boémia e foi num balnedrio dinamarqués que ele reenconttou as lembrangas de sua infincia burguesa. Portanto, na geografia sentimental de Mann, a Alemanha ocupa um lugar central catre a austetidade do Mar do Norte ¢ a sensualidade do Mediterrineo. Ji em 4 Montanba Magica, onde 0 autor assume um tom mais filos6fico, aparece uma oposi¢Zo entre culturas antitéticas: de um lado o tacionalismo progressista do Ocidente, de outro o misticismo conservador do Oriente, representada, como vimos, pelo italiano Settembrini pela russa Clawdia Chauchat. © primeiro jf exprimia ai suas preocupagées com as conseqiiéneias da indecisto alem& em tomar partido nesta oposi¢ao entre culturas, que para o literato italiano equivalia & disputa da luz contra as trevas. Dirigindo-se a Hans, ele afitma: a, que ocorre enquanto escreve o livro, Ao mesmo tempo, os conflitos — Caro amigo! Sera necessirio tomar decisdes, decisdes de importancia inestimavel para a felicidade e o futuro da Europa, e elas caberao a seu pais, Situado entre o Oeste € © Leste, teré de escolher, tera de declarar definitiva © cons- cientemente pot uma ou por outras das esferas que lhe disputam a natureza. |..] O senhor ¢ o seu pais guardam um siléncio cheio de reserva, um siléncio cuja falta de trans- paréncia no permite avaliar a profundidade. [...] Isso é peti- 32 Thomas Mana ¢ a Ambigiiidade do Moderno goso, meu amigo. A lingua é a propria civilizagio. |..] Mas 0 mutismo isola (1980:575). Neste trecho, ji se encontram alguns elementos importantes sobte 2 ané- lise do catiter do povo alemio, que teaparecem em Doutor Fassin. A presenca destes dois elementos cm sua cultura seria vista por alguns como um privilégio, 6 de tealizar uma sintese de que nenhuma outra seria capaz, como demonstam as observages de um dos colegas de Adrian na faculdade, Deutschlin.™ Leverkiihn, a0 entanto, manifesta ceticismo quanto 4 fecundidade desta com- binacio, como demonstra este didlogo com Zeitblom, aarrado pelo limo: — Os alemies [..] pensam em duas diregdes ¢ fazem com- binagdes ilicitas. Sempre querem ter uma coisa € outta, que- rem ter tudo. Sao capazes de produzir temerariamente antitéticos ptinefpios do pensamento e da existéncia, através de grandes personalidades, mas, em seguida, embaralham- nos, empregando férmulas de uns no sentido de outros, eti- ando uma confusio total e pensando que seja possivel con- ciliar a liberdade © 2 nobreza, o idealismo ¢ a infantilidade natural. Mas, segundo todas as probabilidades, isto nio ¢ possivel. —— Ora, eles redinem em si ambas as alternativas — repliquei — do contritio nio as poderiam ter produzido através destes génios. Um povo tico! — Um povo confuse — insistia cle — ¢ desconcertante para © resto do mundo (p. 114) Seria importante reter, unindo estas duas citagdes, elementos que nos podem ajudae na definicio da problemitica da relagao entre individuo ¢ sociedade na cultura alemi, cal qual ela se expressa na obra de Mann. Esta cultura valotiza 0 individu, mas de uma forma orgulhosa ¢ altiva, que leva a0 isolamento, do qual o proprio Adtian nko escapa,"’ Embora a convivéncia destes ptincipios antitéticos seja geradora de confusio no plana coletivo, cle é capaz de, a nivel individual, gerar sinteses ticas através de grandes persona- lidades."® Portanto, a cultura alemé valoriza a originalidade de cada individuo e sua capacidade de se distinguic do grupo; © que vai ao encontro das obser- vagdes de Simmel de que, enquanto © liberalismo inglés € © racionalismo francés expressam basicamente o individualismo quantitativo, “o individualis- mo que é baseado na singulatidade qualitativa e na imutabilidade é mais uma pteacupacio do espirito alemio” (1975:225). Além disso, 0 povo alemao se 33 ‘Thomas Mann ¢ a Ambiglidade do Maderno percebe enquanco um individuo, um ser que possui uma otiginalidade © uma unidade; 0 que vai 20 encontro das reflesdes de Louis Dumont, que afirma que 2 ideologia da Alemanha constréi um individualismo original que, ao se combinar com aspectos da Jégica holistica, concebe a nagio, enquanto ex- pressiio desse povo, como um individuo (1970:33-5). ‘Além da identidade alema, outro tema presente em toda a obra de Mann € que recebe um tratamento privilegiado em Destor Fausto € a rmisica. Pode- riamos falar da ligagio sentimental que o autor tem com ela e que pode ser percebida através das descricdes das infincies de Hanne e Tonio. Ha também indimeras relagdes entre a musica € 0 estilo dos textos de Mann, onde apare- © uso de seéimotivs, numa cem a repetisio ¢ © desenvolvimento de tema: composicio literéria que busca ser, nas palavras do escritor, “extremamente ajustada, onde, falando-se em terminologia musical, ‘nenhuma nota é livre’, e todos os elementos se inter-telacionam” (citado em HAMILTON, 1985:505). Como se vé, 0 tema das celagdes do autor com 2 arte musical daria um ensaio inteiro, mas procurarei apenas esbocar alguns elementos, mostrando sua rela- gio com o nosso tema no momento. Se procuramos investigar a forma como esta arte é caracterizada nos seus livros, podemos perceber como ela € particularmente adequada para ilustrar a ambigtiidade da arte e do artista, Para Settembrini, a mtisica parecia-lhe politicamente suspeita, por representar “tudo que existe de semi-atticulado, de duvidoso, de irresponsavel, de indiferente”, Para o seu racionalismo iluminista, a ambigiiidade da misica se deve ao fato dela poder, por um lado, despertar, e ai reside seu carter moral, mas, por outro, poder também exercer uma influéncia diabélica, entorpecendo “a atividade € © progress” (1981:130-1), Valorizando-a pelos mesmos motivos que levaram Settembrini a condend-le, Leverkiihn tem uma opiniio semelhante no inicio de seu estudo autodidata da harmonia musical: descreve-a como “a ambigilidade organizada como siste- ma” (1984b:52). E a dindmica encre sua icresponsabilidade ¢ sua organizagio, entre sua espontaneidade € sua rigidez, ou, nos termos de Simmel, entre a vida e a forma contida na miisica que determina a sua evolugio histética, na qual Leverkiihn se encontra inserido € na qual pretende intervir. Para seu professor, Kretzschmar, Beethoven epresentava um momento 4ureo da linguagem musical, que até seu advento vivia dentro da antitese entre a “subjetividade harménica ¢ a objetividade polifonica”. Enquanto o periodo médio da obra beethoveniana se caracteriza por um subjetivismo que se debatie conera a linguagem musical herdada de seus antecedentes, ela s6 atinge a maturidade ao conseguir “deixar a expressio pessoal consumir todos os elementos conven cionais, decorativos, dos quais a milsica abundava, ¢ infundi-los na dindmica 34 Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Moderno subjetiva”. A ruptura aleangada por Beethoven no desenvolvimento dessa linguagem deve-se 4 sua capacidade de estabelecer uma nova relagio entre “o subjetivo © 0 convencional”, uma “telagio determinada pelo transpasse”” (p, 72). Ele se constitui, portanto, em mais um exemplo da capacidade da per- sonalidade artistica, — que, segundo Kretzschmar, “é 0 produto ¢ instrumento da época, na qual fatores subjetives e objetivos ligam-se” (p. 181) —, de impulsionar 0 progresso. Mas a personalidade criadora, por definigio, caracteriza-se por uma ori- ginalidade que Ihe permite realizar novas sinteses. Assim, o incentivo do pro- fessor convence Leverkihn da sua capacidade de dar uma nova tesposta 20s impasses do desenvolvimento da misica. No entanto, como nio poderia deixar de ser, o aluno toma uma direcio oposta 4 do mestre. Enquanto este liltimo acredita ainda na fecundidade da técnica instrumental ¢ da composicio harménica da musica desenvolvidas depois de Beethoven,” Leverkiihn encara © “hipertrofiado aparelho sonoro das orquestras pos-roménticas” (p. 201) como um peso a set domesticado ¢ reduzido a um papel secunditio, O desenvolvimento da teoria dodecafénica, que € exposto no capitulo XVITI do livro, é a resposta encontrada por ele para a nova dicotomia entte a expresso subjetiva ¢ as convencécs estabelecidas pela jinguagem musical de seu tempo. O imenso desenvolvimento da linguagem musical tornou a composi¢io “por demais difici?”, transformando as obras dos artistas em “solucbes de rebus técnicos”. Portanto, por um lado, o desenvolvimento da cultura objetiva musical tornou a obra de arte “num jogo ¢ numa fraude” (p. 323-4). Por outro, a Gnica forma de nio se deixar dominar pela técnica artificial € a parddia, que eleva “o jogo a segunda poténcia, brincando com as formas das quais, como no se ignora, a vida desapareceu” (p. 327). Leverkihn, enquanto um verda- deiro artista, toma a sia missio de superar esse impasse em nome da “cons- ciéncia da arte”, que “quer cessar de ser aparéncia ¢ jogo © cornar-se conhe- cimento” (p. 243). Para superar esse impasse viciado, a revolugio dodecafénica alia a0 im- pulso revolucionitio “a restauragio € o impulso arcaizante” (p. 255). Tratar- se-ia de seguit contrario do desenvolvimento subjetivista desencadcado na misica por Beethoven. Reconhecendo que breve chegaré o momento em que a liberdade “nio agéentaré a si mesma”, ele propde 2 volta da organizagio € do tigor, em busca de uma nova ingenuidade musical, © sisterna dedecafénico expressa esta necessidade com a instauragio da “integragio completa de todas as dimensdes musicais, na sua indiferenga miicua, devido a uma organizacio perfeita” (p. 256). Como muitas vezes € sugerido no livro, 0 totalitarismo nacional-socialista ¢ sua busca de reconquista da “pureza original” da nacio alema é uma expresso perversa desta mesma necessidade. 35 “Thomas Mann ¢ a Ambigiidide do Moderno Estas idéias vio lentamente amadurecendo em Leverkithn, durante suas conversas com Zeitblom. Mas 0 momento decisive no qual resolve pé-las em pratica € 0 dialogo que empreende com o diabo. Vitima de constantes e terriveis enxaquecas, numa de suas crises ele acredita ter visto o deménio e com ele estabelecido um pacto pelo qual venderia sua alma para que pudesse viver o suficiente para amadurecer sua obra antes que a sifilis que contraita o marasse. Como condi¢do para tal, o music deveria esfriar seu coracde e nao amar ninguém, Sua vida, antecipando o destino infernal que o aguardava, seria dividida entre periodos de extremo vigor criativo e outros de lancinantes dores de cabega, reproduzindo a alternancia infinita entre o extremo calor € © extremo frie que caracteriza a vida no inferno, segundo explica seu governante O misantropo Leverkiihn no se incomoda, a principio, com a primeira exigéncia; mas os fins tragicos das duas tnicas pessoas que conseguem desper- tar © seu amor, 0 violinista Rudi Schwerdefeger € 0 seu sobrinho, © pequeno Nepomuke, fevam-no a uma crise que culmina na composiglo de sua obsa- prima, intitulada 41 Lamentagdes do Doxtor Fausto, e no subseqiiente colapso netvoso que 0 conduy a loucura. Sio evidentes os paralelos entre a culpa do compositor ¢ a da Alemanha A atitude de contrigio altiva, adotada pelo personagem no seu fim — a mesma de Caim, “que andava convicto que seu pecado era demasiado grande para que jamais fosse perdoado”, ¢ na qual a petda de “qualquer esperanca de graga é 0 genuino caminho teolégico” para levar o homem “A salva- cao” (p. 334) — é uma definicao dada por Mann da unica atitude possivel para © povo alemao naquele momento, No entanto, no podemos perder de vista a distingio que procurei ressaltar entre o nivel individual ¢ o coletivo na obra manniana. Este personagem, inclusive na descrigio do desenvolvimento da sua doenga, é inspirado em Nietzsche, cujas idéias Mann sempre procurou distinguir das do nazismo.'* © coracio frio e 0 afastameato dos homens comuns so requisitos da identidade do artista, © 2 atracio para com o demoniaco ¢ a morte é resultado de sua condi- gio.” No seu tédio e frieza, afirma seu professor Kretzschmar, reside a “personalidade supra-individual” de Leverkiihn, ao “expressar 0 sentimen- to coletivo de desgaste histotico e esgotamento dos recursos artisticos” (p. 181). Sua doenga, sofrimento e danagéo sao conseqiéncias de sua ousadia em tentar veneer o impasse da arte modetna, pois, como cle confessa, “quem convidar 0 Diabo @ sua casa, para superar o impasse ¢ irromper pata fora, comprometer sua alma ¢ tomard a carga da culpa dos tempos sobre a prdépria nuca, de modo que acabaré condenado” (p. 673). Como xeconhece préprio Diabo, em seu didlogo com o mtsico, sua doenga teri conseqiiéncias salutares: 36 Thomas Mann ¢ a Ambigiiidade do Moderno Tu serés um lider, imptimirés o ritmo a marcha que conduz ao futuro; tex nome sera adorado pela rapaziada, que, gracas a sua loucura, jé no se precisaré enlouquecer. A base de tua Joucura, os jovens hio de nutrir em plena sade, no intimo deles seras sadio (p. 329). A calpa de Leverkiihn nio € a mesma do nazismo, Este tiltimo, segundo Zeitblom, foi apenas a realizacio distorcida, alocritica, aviltade de mentali- dades ¢ filosofias cujo cardter auténtico cumpre sempre reco- aheces, € que © cristio, © bumanista constatam, ndo sem certo susto, nos tracos de nossos grandes homens, nas encarnagdes mais imponentes da germanidade (p. 649). Como vimos, Thomas Mann representa 0 artista como aquele que tem os dons da representatividade ¢ da busca do conhecimento, pelos quais cle, tespectivamente, expressa os conflitos de sua época, 20 mesmo tempo que se distancia dela. Embora o distanciamento do artista implique frieza, a sua personalidade também € caracterizada pela paixio de modelar a forma, a “busca de expresso” que afastava a melancolia de Tonio Kréger. Este “espirito critico-poético”, exptessio da paradoxal personalidade do artista, misto de frieza e de paixdo, é, segundo Mann, manifestado plenamente na obra de Nietzsche, que ele classifica como um “filésofo lirico do conhe- cimento” (1975:23). O carter trégico do protagonista de Door Fausto no reside na sua relacio com o deménio ¢ a conseqiiente puni¢ao, mas sim ma sua incapacidade de se entregar inteiramente ao satanismo que Ihe exige sua condicao de artista, como demonstra o seu arrependimento final Leverkihn € capaz de perceber o valor do humano ¢ do amor, a0 que almejava Hans Castorp ao final d’4 Montanha Magica. Ele 0 exptessa na sua fascinacio pelo simpatico e engragado sobrinho Nepomuke ¢ por Schwerdrfeger. A propria relacio que Ihe legou a doenga que, por fim, o Ievou a loucura, foi motivada pela busca de “abettura de caminho”, de libertagao do isolamento a que a condigo do artista conduz. Nas conversas entre Leverkiihn ¢ Zeitblom, sempre estava presente este tema, “cujo pro- blema”, afirma este ultimo, “cuja possibilidade paradoxal discutfamos, sempre que se ponderava ¢ examinava o destino da arte, sua situacio ¢ sua hora” (p. 653). Esta mesma busca ¢ identificada pelo narrador no impulso que levou a Alemanha a Primeira Guerra, quando se sentia isolada no contexto europeu.” Thomas Mann ¢ a Ambigiiidade do Moderno A conseqiiéncia da tentativa do artista em conciliar © espitito critico e pottico é um softimento eriative, que Ihe permite produzir um conhecimento que nio leva esterilidade, uma vez que recusa os extremos ¢ busca expressar 2 totalidade, Porque conhecer, para Thomas Mann, implica estar suficiente- mente préximo pata perceber os aspectos subjetivos da realidade ¢ suficien- temente longe para retraté-la, ao invés de vivé-la, A missio do artista, de ser represenrativo, interdita-the a felicidade®” Nietzsche, por exemplo, 20 negar a morte € 0 romantismo presentes em Wagner, que ele “amou t2o profunda- mente”, teria conseguido, segundo Mann, uma vitéria sobre si mesmo. O aspecto paradoxal desta negacio é que “um triunfo sobre si mesmo se asse- melha quase sempre a uma traigho de si mesmo” (1975:152).* Mesmo assim cle aceita a sua missio porque: “Para um auténtico artista com sua alma, pata o artista de oficio e paixao, 0 sofrimento do conhecimento ¢ 0 da cringao trazem, repito, uma satisfacio moral que o eleva muito acima das suscepubi- lidades e escindalos do mundo” (1975:25) Iv Creio que, a partir dos dois segmentos anteriores, podemos relativizar modelo aprescntado no inicio deste texto. Hé uma interagio complexa entre © paradigma do attista moderno, cuja identidade pode ser definida por uma atitude inicial de negagao do passado, ¢ 0 caso particular de Thomas Mann Neste tiltimo, a paradigmétiea tensio vida/arte € constitutiva do seu modelo, © que nio impede, porém, uma tomada de posicio original perante ela. Varios dos elementos de sua formulagio pessoal jd se encontram potencial- mente no modelo geral: a “séduction de la mor?” como contrapartida da negacio da vida, a valosizagio do sofrimento como ligado 4 missio paradoxal da arte moderna, que implica sempre uma diviso interna etc. E neste sentido que foi possivel a Mann aplicar sua defini¢io pessoal a outros artistas modemos, assim como sua obra, profundamente pessoal, foi capaz de refletiz, em parte, sua época ¢ de atingir leitores de todo o mundo. E evidente que esta interacio complexa entre os elementos individuais e coletivos no inaplica a possibilidade de se fazer todo tipo de aproximacio. Aplicada @ alguns criadores, como Niewsche e Goethe, nao por acaso refeténcias fandamentais pata a definicgo da identidade de Mann, ela se mostra mais adequada: ja outros artistas mal se prestam a comparacées.”® A originalidade deste autor reside em swa centativa de superar 0 abismo 38 Thomas Mana ¢ @ Ambigiidade do Modem que a concepsio moderna instaura entre vida ¢ arte. Mas ele parte do pres- suposto de que tal abismo existe. Vivendo e refletindo esta contradigio em sua obra, tenta conciliar sua condigo de artista com a identificagio que sente com a vida, com a sociedade em que vive ¢ com a tealidade que retrata. Ele opera, portanto, uma espécie de duplicagao desta ambigiiidade constitutive, No en- tanto, embora esta operagio almeje uma conciliagao, a0 invés da eterna negagio do modetnismo, ela a produz de forma extremamente preciria, por ser duplamente ambigua. Ainda que no inicio deste trabalho tenhamos verificado 0 caréter histérico da definigio que chamei de paradigmatica da arte moderna, este autor nio apresenta sua elaboragio deste modelo como apenas © produto de um de- terminado periodo hist6rico. Como ele mostra em Tonio Kriger, suas iléias partem de uma teoria do conhecimento segundo a qual “o dom do estilo, da forma ¢ da expressio [..] pressupée um certo empobrecimento ¢ despojamento humano” (1984a:151). Esta coacepeao provavelmente decorre das suas duas grandes influéncias filosdficas: Schopenhauer ¢ Nietzsche. Do primciro, ele adoton a dicotomia entre os conceitos de vontade e de representagao a idéia de “estado estético”, no qual, segundo Mann, “a vontade |.) se encontra eclipsada para sempre pelo conhecimento, derrotada ¢ aniquilada” (1979:193). Por outro lado, a visio de mundo pessimista de Schopenhauct € contrabalancada pela revalotizagao da yontade em prejulzo do intelecto que 0 escritor eacon- traria em Nietzsche (cf. p. 245). Se bem que este iiltimo repudie em sua obra maduta 0 romantismo mérbido de Wagner ¢ Schopenhauer, vimos como Mann procura sempre enfatizar a continuidade entre Nistzsche ¢ estes, que foram suas primeiras influéncias, Além disso, um dos tragos comuns entre estes fildsofos, que é particularmente importante para Thomas Mann, é a sua valotizacio da arte como uma forma superior de conhecimento. Tudo isto vai de encontro as interpretagées de um dos principais comentadotes da obra manniana, Georg Lukécs, que, procurando contrapé-lo As concepgdes anistdticas que cle associa A “vanguarda artistica’”, classifica o escritor alem&o como o principal representante do que ele chama de “tealismo ctitico”. Lukes esforga-se pata distinguir Mann daquela primeira corrente, que ele associa & decadéncia do periodo imperialista do capitalismo, Embora nao caiba neste momento uma andlise detalhada das idéias deste importante t06- rico da estética marxista, algumas de suas interpretacdes possuem implicagdes importantes para o que venho discutindo aqui. Segundo Lukics, em Doutor Fausto, “o préprio diabo € forsado a admitit que Goethe, para escrever scus livros, prescindia perfeitamente da sua ajuda” (1969:125). Como se pode verificar no didlogo reproduzido na Nota 19, a ajuda diabolica justifica-se pela secularizago da época em que Leverktihn vive. 39 Thomas Mann ¢ a Ambigiidade do Modemo Assim, para 0 fildsofo hiingaro, haveria um visivel “progress” de Tonio Krier até o ltimo grande romance de Mann, pois neste se encontraria plenamente reconhecido o catéter histérico da associaglo entre a arte € as poténcias demoniacas, Em ultima andlise, Lukécs acredita que o esctitor alemio teria deixado implicita a crenca na possibilidade de um novo tipo de sociedade, socialismo, em que as dicotomias que definem sua descricdo de criagdo artis tica seriam reconciliadas. Entretanto, examinando as posi¢des de Thomas Mann sobre o autor que Lukées cita em seu exemplo, podemos ver que a sua representagio do artista rem um tipo de historicidade distinta daquela que o fildsofo hiingaro supée, pois nio deixa de compottar um substrato intemporal. Varias caracteristicas do personagem Leverkidhn sio, de fato, histéricas e datadas, como, por exem- plo, o estado de estagnacio que ele cncontra no desenvolvimento da masica ¢ a definicio do dodecafonismo como sua solugio. Para encontré-la, cle depende de sua ligacio com o deménio, 0 que pode ser visto como a expresso simbdlica da misantropia da personalidade atormentada do ma- estro, elementos necessirios para que ele se tornasse, como percebeu seu professor Kretzschmar, representative do seu tempo. Vimos, anteriormente, que a busca da representatividade constitui, para Thomas Mann, um dos tracos definidores do artista. Este € © fator que o obtiga a espelhar, de certa forma, 0 seu periodo histérico. Porém, também notamos que, pata Mana, para cepresentar sua sociedade, o attista tem que dela afastar-se, adotando a atitude de ironia ¢ objetividade que, segundo este escritor, caractetizatia o “estado estético” (cf. 1979:192). Embora Goethe nao tenha precisado afastar-se do mundo no mesmo gtau de Leverkiihn, ‘Thomas Mann, num romance publicado em 1939, colocava na boca do secretirio de Goethe © seguinte comentario acerca do escritor: “— Uma vez me disse na carruagem: ‘A ironia’, disse, ‘€ 0 gro de sal que permite que se desfrute do que se pde A mesa|..] Medite a seahora sobre © que significa: nao se pode desfrutar de nada sem uma soma de ironia, id est, de niilismo” (1984c:75) A leitura cuidadosa deste romance nos mostratia como também na inter- pretagio manniana da personalidade de Goethe reaparecem os tragos que temos identificado no retrato que Mann formula do artista, Um tema cons- tante em sue obra € que teaparece mais intensamente neste livro é a questio de como a maldicio do artista atinge aqueles que o cercam. Na realidade, Goethe 86 aparece no antepeniiltimo dos nove capitules do romance c toda a nartativa é apresentada do ponto de vista dos que com ele conviveram. Assim, sobressaem as suas criticas em telagéo a indiferenca do esctitor, par- ticularmente em relago a seu secretétio, Riemer, que renunciou a sua carreita para servi-lo, e a Catlota, transformada em personagem de Werther, mas que 40 ‘Thomas Mann ¢ a Ambigilidade do Moderno desde sua separacio munca havia sido procarada pelo antigo apaixonado. Num dos principais momentos do romance, Goethe, com um misto de ironia € cinismo, cita um ditado chinés, segundo 0 qual “o grande homem é uma calamidade publica” (1984e:349). Esta tematica certamente provém da propria experiéncia pessoal de Mann. Virias vezes ele conseguiu ateait a ira de amigos e parentes nos quais se teria inspirado para criar varios de seus personagens. Este foi o caso de seu tio Friederich, irmao mais novo de seu pai, ¢ do teatrologo Gehardt Hauptmann, caricaturados com a habitual objetividade irénica de sua pena através dos petsonagens Christian Buddenbrook e Mynheer Peeperkorn (cf. HAMILTON, 1985:224 e 303-6). As proprias relacdes de Mann com a sua cidade natal, Liibeck, retratada no seu primeiro romance, tornaram-se muito tensas logo apés a publicacio do livto. A personalidade ftia ¢ exigente do escritor difi- cultava sua relagio com os familiares; seu fitho Klaus, também escritor, morrew a0s 43 anos, apés uma segunda tentativa de suicidio. Numa de suas cartas, 0 préprio Mann reconhece 0 quanto sua “préptia existéncia, desde o principio, langava uma sombra sobre ele” (citado em HAMILTON, 1985:513).” Porém, é no seu engajamento politico que procurarei demonstrat a coe- réncia entre a sua representagio do artista ¢ a sua biografia. Subjacente as ruptras apontadas pela maioria dos seus comentadores, que estabelecem 4 Montanha Mégica como 0 marco de uma mudanga em suas posigdes politicas, ha nesta obra, em verdade, uma coeréncia profunda com seus primeiros esctitos. Concluirei este trabalho procurando mostrar como os dois momen- tos do seu posicionamento politico correspondem, na verdade, as etapas do proceso pelo qual, segundo j4 afirmara em Tonio Kréger, 0 artista procura conciliar os pélos antitéticos cuja tenséo caracteriza sua ctiagio. No inicio de sua carreira, Thomas estabelece uma relagio tensa com © irmio Heintich. Enquanto ele foi consagrado logo em seu primeito romance, 2 obra do irmao sempre foi considerada ousada, tanto no seu aspecto estilistico quando na sua temética, Quando tinhe treze anos, Victor, o itm&o mais novo dos dois, percebia que a maiotia dos pais de seus amigos nio sabia que atitude tomar perante ele: se 0 honravam por set o itmyio do autor de Or Buddenbroaks, ow se desconfiavam dele como parente prdximo do escritor de A Duguesa de Assy (cf. HAMILTON, 1985:123). 41 ‘Thomas Mann e a Ambigiiidade do Moderno © que provavelmente representava © pomo da discérdia entre os dois imaos era a forma pela qual cada um deles se relacionava com a cultura alema, como se perceberd clacamente no momento em que se desencadeia a Primeita Guctta Mundial, Ja vimos como o cariter do povo alemao € um tema importante na obra de Thomas, que the attibuia a busca de antitéticos, caracteristica da personalidade artistica. Sé nos seus titimos livros, ele desen- volve a diferenciacio entre a expressio individual ¢ coletiva destas tendéncias, influenciado que estava pelo nazismo. No entanto, em sua juventude, ele se sentia totalmente identificado com o espirito alemao. Dai sua rejeigo a demo- cracia € 4 politica “a qual se opée a idéia apolinea, aristoctitica, de cultura”, produto do espitito alemao (1975:189}. Pelo contratio, Heinrich possuia gran- de admiragie pela cultura francesa, € seus esctitos eram um retrato cruel ¢ ctitico da sociedade alema ¢ seas valores. O que mais Ihe desagradava na vida de Thomas era seu lento processo de aburguesamento, através da sua unio com: a filha de uma tradicional familia ales abastada. Devido as especificidades da cultura alemi, as posicdes se invertem: Heintich, 0 contestador, eta defen- sor do progresso, da democracia e do racionalismo; seu irmio, 0 conformista, defendia posigdes roménticas e esteticistas. ‘A ligacio sentimental de Thomas com seu pais fez com: que ele reagisse imediatamente Primeita Gueera, demonstrando seu entusiasmo com aquilo que The parecia ser 0 combate da Kultur contra a civilizacio, com seu tacionalismo estéril ¢ sua democracia mediocrizante. A realidade cruel da guerra totnou, no catanto, impossivel para cle qualquer romantizagio da te- alidade politica. As decepcdes neste campo se somaram a uma terrivel polé- mica com seu itméo, que se tornou o principal ider do movimento pacitista, culminande com © rompimento pessoal entre ambos. Confrontado com a desagregacio da nacio alema, Thomas afirma, numa carta a um amigo, da- tada de 1916, justificando seu desespeto: Tudo se resume no fato de que nfo somos uma nagio Somos alguma coisa como a quintesséneia da Buropa, de modo que estamos sujcitos aos choques das contradicdes es- pirituais européias, sem que tenhamos uma sintese nacional. Nao existe solidatiedade alema, nem unidade definitiva (citado em HAMILTON, 1985:258) Em meio a estas reflexdes, Thomas Mann escreve uma extensa enume- racio de suas posicdes sobre a guerra, buscando justifica-las, as Reflescder de xn Apolttice, Em dos temas centrais do livro é a incapacidade alemi pata a democracia, Mas o livto era para ele sobretudo um autoquestionamento.® 42 ‘Thomas Mann e a Ambigiidsde do Modemno Mesmo que na obra nfo se apresentem mudangas de opiniio significativas, escrevé-la fepresentou uma experiéncia intensa para Thomas, que, desde 1915, se esforgou para conchui-la, sé 0 fazendo apds a. guerra. O esforco exigido por suas investigages se deve principalmente ao fato de que, como afirmou alhures, “ninguém permanece eternamente o que € quando conhece” (cf HAMILTON, 1985:261). A busca do conhecimento do problema alemio permitiuJhe um afastamento deste, ¢ é sintomitica a referéncia acima a0 carter europeu do problema alemio, como também o é © cosmopolitismo de seu romance seguinte, A Montanba Mégica. Muito se tem dito sobre esta “segunda fase” da vida de Thomas Mann, que se inicia com a publicagio deste romance, Creio que suas transformagdes representam mais do que uma conversio as idéias do irmao, como insinua Hamilton (p. 275), ou o reconhecimento da presente atualidade da questio do socialismo, como julga Lukaes (1969:114). Thomas, a semelhanca de Simmel, acteditava que a oposi¢do fundamental de nosso tempo é entre a valori- zagio da liberdade ¢ a da iguaidade, que se identificariam, respectivamente, com a sociedade alema, e a francesa e a inglesa, Para contrastar com o totalitarismo ascendente na Europa, ele propde um socialismo que englobe “a totalidade do humano”, conciliando estas duas crengas. Antes de fazé-lo, Thomas Mann propée a critica do cariter mérbido da cultura romantica € conservadora alemi ¢ sua aproximacio a ideologia socialista, esta “in- vengiio de um socidlogo judeu educado na Europa ocidental que foi sempte julgado como maldito pelos devotos da cultura germanica”. Por- tanto, o ideal que Thomas alimenta para a sociedade alem apés a Primeira Guetra Mundial € 0 de “um pacto entre Grécia ¢ Moscow”, que se rea- lizaria “no dia em que Karl Marx lesse Priedrich Héldetlin”, Ele termina © ensaio de onde extrai estas afirmagées, ao qual prega a aproximacio entre a Kuiur © 0 socialismo, reafirmando que “o conhecimento unilateral petmanccesd estésil” (1975:204-5). S6 a sua grande ligacio afetiva com a nacio alema pode explicar 0 fato de Thomas permanecer, nas palavras de seu amigo René Schickele, “irreme- diavelmente otimista” sobre as possibilidades de reversio do processo de tomada do poder pelos nazistas, ele que sempre chamara a atengio sobre © carater antidemocratico do povo alemao (cf. HAMILTON, 1985:387). Apds a consolidacio deste regime, a rencio de Mann foi violenta. Meso a0 fim da guerra, quando 2 nagao alema se encontrava destrocada © a necessidade de reintegri-la 4 convivéncia das nagdes democraticas levava © discurso dos exilados alemies a tornar-se moderado, ele nic deixava de afirmar a culpa de seu povo. Heinrich Mann explica 0 radicalismo de seu itmao afismando que: 43 Thomas Mann ¢ a Ambigilidade do Moderno Hoje meu irmao é aquele que foi mais profundamente atin- gido. Sua patria desapontou mais a ele do que 4 maioria das pessoas. O que a Alemanha desde entio fez de si— ou como se petmitiu ser vista: inimiga da razo, do pensamento, inimiga do que é humano, um anitema —, tudo isso 0 afetou pesso- almente, mais porque veio a acontecer com retardo, Sentiu-se traido... Acreditava que a Alemanha estivesse eticamente salva- guardada — dai a sua ita que no aceita compromisso (citado em HAMILTON, 1985:455). Para Heinrich, que sempre fore um ctitico acido da sociedade alema, 2 situacio de estar na oposigao nao eta nova. Mais do que isso, entre os dois irmZos permanecia uma diferenga: a forma pela qual cles encaravam o seu engajamento politico. E bem representativo da personalidade de Heinrich o episédio 0 qual ele se recusou a aceitar o conselho de seu editor francés, de mudar o titulo de um de seus livros de critica a0 nazismo para Pourguoi Pai quitté ? Alemagne, Como comenta Hamilton, parecia-lhe absurdo utilizar esse titulo, uma vez que “sua polémica nfo era uma simples reago pessoal 20 nazismo, era uma objegio suscitada pelos sentimentos de humanidade” (p. 398). Pata Thomas, ao contririo, todas as questdes referentes 3 Alemanha, mesmo as politicas, eram pessoais. O apego ao seu pais ptoduzira inicialmente um conformismo temperado com avaliagdes rominticas sobre a tealidade alema, No entanto, ele foi obtigado a vencer a si mesmo, a distanciar-se de sua terra e seus valores, sem que fosse capaz de afastar-se inteiramente dela. ‘As acusagées de traigio que recebeu, mesmo depois da guetta, o feriram mais do que a qualquer outro exilado alemo, uma vez que sentia que, embora no da forma como seus acusadores supunham, isto eta verdade. Ao realizar a dolorosa “traicio de si mesmo”, Thomas Mann procurava repetir as grandes personalidades definidoras da identidade alema, 20 mesmo tempo que se wansformava numa delas. ‘Ao abandonat 0 apoliticismo € 0 romantismo que adquirira sob a influ- éncia de Schopenhauer ¢ Niewsche, ele, na verdade, se afastava do contetido de suas idéias, mas aproximava-se do exemplo de suas vidas. Lukics vé 0 respeito que Mann continuava a nutrir em sua segunda fase por estes filésofos como a sobrevivéncia de idéias antigas que, entretanto, corresponderiam “2 uma atitude agora ultrapassada” (1969:128). Nesta fase, o escritor elogia Schopenhauer por sua reagio contra o intelectualismo e 0 racionalismo clés- sicos, incapazes de valorizar o papel dos instintos (cf. 1969:221), enquanto insiste que a defesa que Nietzsche faz do “instinto contra a razo ¢ a 44

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