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Segredos

Secrets
Sheila Holland

Sophia: Uma sensualidade inconsciente, uma deliciosa inocência que os homens


cobiçam.
Stonor: O marido, num casamento de interesses que ela rejeita, mas ao qual se submete
docemente.
Wolfe: O amante, com quem vive uma paixão alucinante, um segredo de amor que jamais
poderá ser revelado!
Desafiando o rígido código moral da Inglaterra vitoriana, Sophia envolve-se num perigoso
jogo de sedução. Numa afronta às convenções, ama dois homens diferentes como a água
e o fogo. Wolfe e Stonor, irmãos e inimigos que se odeiam com a mesma fúria com que a
desejam e que não hesitarão diante de nada para conquistar o amor dessa mulher!

Disponibilização: Bee,
Digitalização: Marina
Revisão: Andrea Dinar
Clássicos da Literatura Romântica
Título original: Secrets
Copyright: Sheila Holland
Publicado originalmente em 1980 pela Worldwide Romance, Toronto, Canadá.
Tradução: Dulce de Andrade
Copyright para a língua portuguesa: 1988
Editora Nova Cultural Ltda - São Paulo - Brasil e
impressa na Cia Lithographica Ypiranga

Parte Um

Capítulo I

Sozinho, com as mãos nos bolsos da calça, o homem passeava o olhar pelos pares que
dançavam, com um sorriso leve e irônico. Um observador atento teria notado a tensão nele,
uma violência controlada mas perigosa, traída pelo modo como movimentava a cabeça.
Elegante, reservado, hostil, ele caminhava entre os outros convidados como um animal em
território inóspito, os olhos constantemente à procura de um desafio.

Sophia não era a única a observá-lo disfarçadamente. O rosto bonito e moreno atraía
muitos olhares femininos. Discretos, quase furtivos, esses olhares o seguiam por trás dos
leques, que eram movimentados com maior rapidez se ele os retribuía.

— Ele me arrepia inteirinha! — Sophia ouviu uma garota sussurrar para a amiga.

— Então, não olhe para ele! — A outra garota corou, quando o rapaz fixou os
estranhos olhos azul-esverdeados nela. — Mamãe pode notar e me levar para casa.

O diálogo divertiu Sophia. Seria o rapaz tão perigoso? Ele dava a impressão de ser
insolente, como se estivesse desafiando os presentes a censurá-lo, mas nem mesmo a mãe
mais cautelosa podia temer um simples olhar, durante um baile!

Sophia perdeu-o de vista quando foi tirada para dançar por um mocinho de ar
cerimonioso, mas logo o viu de novo, ainda sozinho e com aquela expressão de divertida
zombaria. Os cabelos pretos e espessos cobriam-lhe a cabeça num estilo atraente e casual,
emoldurando-lhe o rosto inteligente, onde as linhas severas do queixo contrastavam com a
beleza dos olhos, rodeados por cílios longos e escuros.

Enquanto Sophia o fitava, ele a encarou. Mesmo seguindo os passos de seu par, ela
percebeu algo naquele olhar direto, que atravessou sua máscara social e atingiu o âmago
de sua personalidade. Sentiu-se nua, como se os olhos estranhos e perspicazes tivessem o
poder de ler sua mente, transmitindo-lhe uma imagem completa de si mesma, não apenas
física, mas também de seus pensamentos, desejos e emoções.

Isso a enfureceu e amedrontou. Instintivamente, para fugir daqueles olhos


alarmantes, virou a cabeça com um movimento brusco. Um riso suave veio do lugar onde
ele estava, e o sangue subiu-lhe ao rosto.

Sentindo-a enrijecer em seus braços, seu companheiro fitou-a e depois olhou em


torno, fechando a fisionomia ao deparar com o rapaz.

— Mas que sujeitinho insolente! Não sei como James Whitley permite que ele
compareça a uma reunião como esta! É um verdadeiro absurdo!

— E por que ele não deveria estar aqui?

Sob o olhar curioso de Sophia, seu par percebeu que havia falado demais e gaguejou,
de forma incoerente:

— Desculpe, srta. Sophia. Eu... fui indiscreto.

— Sobre o quê?

Maliciosa, ela estava se divertindo com a expressão infeliz de seu par. Ele era um
comerciante da cidade, com uma careca incipiente e os olhos opacos, que pareciam só
adquirir vida quando expressavam hostilidade. Correndo o olhar aflito em torno,
comentou, apressado:

— Olhe como a srta. Elizabeth está bonita, esta noite!

— É verdade. — Sophia concordou, certa de que não conseguiria tirar nada dele.

De repente, ela viu tia Maria olhando por cima da cabeça dos outros pares, com uma
expressão gelada no rosto. Virando-se, notou que a tia olhava para o rapaz de cabelos
negros que, aparentemente à vontade, continuava a observar os outros convidados,
recostado numa cadeira.

Quem seria ele? Por que parecia não ser bem vindo? E por que estava ali, se ninguém
o queria?

— Está gostando de sua visita a Londres? — ouviu seu par perguntar.

— Muito! — respondeu polidamente.


— É uma longa viagem, de Somerset até aqui.

— É, sim.

Mas que aborrecido ele era! A música não terminaria nunca? Não conseguiria
escapar dele?

Tia Maria era quase uma estranha para Sophia, pois, quando se casara, vinte anos
atrás, fora considerada morta pela família. Atualmente, o que mais enfurecia os Stonor era
o fato de o marido de Maria Whitley ter se tornado tão rico, a ponto de forçá-los a
lamentar sua atitude.

Maria Stonor conhecera e se casara com James Whitley durante sua terceira
temporada social em Londres, quando sua esperança de arranjar um bom partido
praticamente chegara ao fim. James era um comerciante de sedas de Spitalfields, no lado
leste de Londres, e fora a única chance que Maria Stonor tivera de se casar por dinheiro. O
fato de trabalhar no comércio não pesara muito nas considerações dela. Conhecera-o por
acaso, na casa de uma amiga rica, o que a levara a atribuir a James uma posição social que
ele não tinha. Quando descobrira a verdade, percebera que, com algum encorajamento, ele
acabaria por pedi-la em casamento. Passar o resto de sua vida como uma solteirona, na
propriedade rural da família, parecia-lhe insuportável, por isso ela o aceitara. Em
conseqüência, os Stonor, que eram uma família antiga e aristocrática, de pouco dinheiro
mas muito orgulho, tinham-na expulsado de seu seio.

A casa da família, Queen's Stonor, era uma das grandes construções da Inglaterra, tão
linda que fascinava a todos que a viam. Apesar de estar começando a mostrar sinais da
passagem do tempo, ainda não perdera seu encanto mágico. Os Stonor a possuíam desde
que fora construída e eram apaixonados por ela. Cresciam achando que a vida era curta,
mas Queen's Stonor era eterna. Desde que se casara, Maria Stonor se arrependia de tê-la
deixado.

Durante aqueles anos, no entanto, a fortuna de James Whitley só fizera aumentar. Ele
era um homem astuto e duro. Construíra uma bela casa na cidade, no estilo mais moderno
e admirado. Sua mulher e filhos sempre estavam muito bem vestidos, e naquela noite
Maria usava jóias capazes de cegar com seu brilho.

Sophia só estava ali por causa da decadência de Queen's Stonor. A família não tinha
mais herdeiros do sexo masculino, a não ser por Stonor Whitley, o filho mais velho de
Maria, e Edward Stonor fora forçado a passar pela humilhante atitude de aproximar-se da
irmã e pôr fim ao afastamento entre eles.

Maria se mostrara até mesmo ansiosa para colaborar, e depois de uma longa troca de
cartas, ficara decidido que Sophia iria a Londres, visitar a tia e conhecer os primos.
Ninguém tentara esconder o que havia por trás daquela visita. Tanto Edward quanto
Maria tinham esperança de que Sophia se casasse com Stonor Whitley, o herdeiro da casa.
Era uma idéia tão conveniente e sensata, que eles nem deram atenção ao preconceito
existente contra casamentos de primos em primeiro grau.

Sophia ainda era muito jovem para se casar, embora casamentos precoces fossem
comuns em 1870. Aos dezesseis anos, ela possuía os olhos azuis e brilhantes dos Stonor,
sobrancelhas escuras e cabelos pretos, que nunca pareciam estar no lugar certo,
especialmente depois de uma louca corrida a cavalo nos campos molhados pelas chuvas
de outono. Vestidos sujos de lama e saiotes rasgados raramente a preocupavam. Sendo
filha de Edward Stonor, um homem vigoroso e fanático por cavalos, Sophia crescera em
uma sela, adorando as horas que passava com ele ao ar livre. Eram a delicadeza e a
meiguice de seu rosto que lhe davam beleza, mas seus sorrisos e olhares traíam a natureza
apaixonada que herdara do pai.

A mãe morrera quando Sophia era ainda muito jovem, e todo o seu afeto fora
dedicado ao pai e à casa. Edward Stonor levava-a a todos os lugares aonde ia. Ela era a
queridinha dos arrendatários de terras da propriedade, uma criaturinha sorridente e
amável durante a infância, que se tornara uma garota incrivelmente amigável, como
costuma acontecer com todos os que são rodeados de amor e cuidados, desde que nascem.

Sophia achou uma delícia entrar pela primeira vez em uma costureira e encomendar
vários vestidos para durante o dia, trajes de gala para os bailes e uma nova roupa de
montaria. Maria Stonor Whitley mandara o dinheiro para essas despesas, pois Sophia
tinha que estar vestida de acordo com sua posição social. Assim, as malas que fizera para ir
a Londres estavam superlotadas de saiotes enfeitados de rendas, camisolas maravilhosas,
luvas, meias, sapatos e vestidos.

A viagem até Londres foi outra delícia, pois Sophia nunca havia andado de trem. Na
companhia de um vizinho que também ia a Londres, ela se sentou junto à janela,
admirando a paisagem, que ficava para trás numa rapidez alarmante. O barulho, o cheiro
da fumaça e o sacolejar do vagão acabaram lhe dando uma dor de cabeça, mas não
diminuíram seu entusiasmo. Sua facilidade para se divertir era grande e foi passando de
prazer em prazer com a simplicidade de uma criança.

Sophia não chegou a notar os olhares de alguns dos homens que encontrou durante a
viagem. As roupas novas haviam aumentado sua atração, realçando as curvas
arredondadas de seu corpo esbelto, as feições animadas, a pele macia, os olhos vivazes e a
boca generosa e rosada. Ela não tinha a menor noção disso, mas sua natureza passional
estava escrita no rosto.
Era sua primeira visita a Londres. Espantada com o tamanho, o barulho e a atmosfera
enevoada, ela passou por ruas mal calçadas, estreitas e escuras, antes de chegar a uma
praça elegante e moderna. Acostumada à beleza suave de Queen's Stonor, fitou a casa de
tijolos vermelhos dos tios com curiosidade, mas sem admiração.

Londres era uma capital poderosa, e até mesmo os olhos inocentes de Sophia podiam
ver isso. Vitória ocupava o trono há trinta anos, e durante esse tempo o desenvolvimento
industrial mudara muita coisa. Devido aos novos empregos nas fábricas, os campos
estavam vazios, e as ruas das cidades cheias. Os portos se animavam com os gritos dos
doqueiros, carregando os navios que partiam para terras longínquas. O comércio era a
vida da nação e, para proteger os comerciantes, o exército inglês atravessava os mares
patrulhados por navios ingleses, reforçando o domínio inglês no mundo. Em 1870, a maior
parte do mapa-múndi era pintada de vermelho, indicando as possessões da Inglaterra em
outros países.

A não ser por revoltas sem importância e o humilhante episódio da guerra da


Criméia, a Inglaterra estivera em paz durante o reinado de Vitória, e sua prosperidade
refletia esse fato. Os responsáveis por tanta riqueza eram homens como James Whitley,
comerciantes que compravam e vendiam, investindo com inteligência e barganhando com
astúcia.

A casa nova e no estilo da moda refletia o sucesso de James Whitley. Sophia olhou os
degraus de mármore, que iam dar à porta da frente, e ergueu o queixo num gesto de
desafio, como sempre fazia antes de tentar um salto difícil com seu cavalo. Sua primeira
impressão da família da tia foi de um grupo extremamente formal, reunido numa elegante
saleta de estar. O mordomo anunciou seu nome e todos os rostos se voltaram para ela,
exibindo uma semelhança bastante grande.

— Bem vinda à nossa casa, Sophia — dissera a tia, avançando em sua direção com as
mãos estendidas e um ruge-ruge de seda negra.

Sophia esqueceu-se de sua ansiedade e, com o rosto iluminado por um charme


inconsciente, beijou a tia. Em seguida voltou-se para o resto da família.

— Este é Stonor, minha querida — tia Maria apresentou, num tom que a fez corar.
Mas ela estendeu a mão para o primo e sorriu.

Os dois rapazes, Stonor e Grey, eram quase da mesma idade e bastante parecidos:
claros, de cabelos castanho-aloirados e olhos cinzentos, frios e sérios. Stonor estava com
dezenove anos, mas era muito seguro de si e tinha maneiras que o faziam parecer mais
maduro. Ele segurou a mão da prima e a estudou com a mesma atenção com que ela o
examinava. Divertida por saber que ele devia estar pensando, como ela, que um dia
poderiam ser marido e mulher, Sophia não contivera um sorriso.
— Você e seu irmão são tão parecidos! Acho que nunca serei capaz de distinguir um
do outro!

Stonor sorriu, mas depois ela descobriu que Grey tinha uma grande cicatriz na
bochecha esquerda. Mais tarde, aprenderia também que aquela cicatriz era o sinal físico da
instabilidade emocional de Grey. Quando ele estava zangado, a cicatriz parecia contorcer-
se como se tivesse vida própria.

A menina, Elizabeth, era loira e pequena, com os olhos azuis dos Stonor. Tinha uma
figura rechonchuda e fez beicinho ao beijar Sophia, como que ressentida da beleza da
prima. Quando a conhecesse melhor, Sophia veria que ela costumava assumir poses que
achava que seriam admiradas. Raramente, no entanto, o brilho ávido de seus olhos azuis a
traía.

Aquela noite Sophia também foi apresentada a James Whitley. Achou-o polido mas
distante. Ele era um homem baixo e atarracado, com cabelos e olhos iguais aos dos filhos.
Depois de lhe dirigir alguns comentários frios, ele desapareceu, deixando a família
contrariada e fazendo-a imaginar que ainda se ressentia com os Stonor, pelos vinte anos de
distanciamento impostos a sua esposa.

Fosse qual fosse o motivo da partida de James Whitley, ele causou à família uma boa
dose de tensão. Sophia a notou no mesmo momento e agora a via repetida no rosto de
Maria Whitley, que seguia com o olhar o rapaz de cabelos escuros.

De repente, a música chegou ao fim e seu par afastou-se um passo. Ela sorriu e fez
uma reverência antes de apoiar a mão no seu braço, para que ele a levasse à cadeira onde
estivera sentada, do outro lado do salão.

— Posso lhe trazer um copo de limonada, srta. Stonor? — ouviu-o perguntar com
toda formalidade, ao se sentar.

Sophia agradeceu, começando a achar que não conseguiria livrar-se dele tão cedo.
Quando ficou sozinha, pôs-se a observar o salão, grata por aqueles momentos de descanso.
De repente, seus olhos subiram por um par de sapatos de noite, passando por uma calça
escura, enfeitada nas laterais com fitas estreitas, um colete creme, onde brilhava uma
corrente de ouro, e foram dar no rosto moreno do rapaz que atraíra sua atenção, quando
estavam dançando.

— Então, você é a prima — ele disse.

Um estranho excitamento assolou-a. A voz dele era tão original quanto a aparência:
fria, dura e charmosa. Mostrava que seu dono tinha muita consciência da própria
personalidade, sendo mais controlado e seguro de si que a maioria dos rapazes de sua
idade.
— Eu sou Sophia Stonor. Ainda não fomos apresentados, fomos?

Ela sabia que não, mas as regras da sociedade mandavam que perguntasse.

— Quer dizer que você não sabe quem eu sou? Notei que me observava e pensei que
soubesse. Eu sou Wolfe Whitley.

— Então você é parente de tio James!

Um sorriso iluminou o rosto de Sophia, dando-lhe aquela beleza instantânea, que


nem ela notava que possuía. Estava certa de saber por que ele não era bem vindo ali. Tia
Maria devia ter raiva dos parentes do marido.

— Podemos dizer que sim. — Ele a fitou, com mais atenção.

— Quer dizer que somos mais ou menos primos? — Ainda sorrindo, Sophia indicou
a cadeira a seu lado. Mostraria a tia Maria que ficava feliz em conhecer os parentes de tio
James. — Sente-se comigo. Estou morrendo de medo de que aquele sujeito volte e me mate
de tédio!

O riso dele espalhou-se pelo ar.

— Não gosta de Bingham?

— É esse o nome dele? Você não o acha aborrecido?

— Demais. Mas você tem mesmo certeza de que é uma Stonor?

Duas covinhas apareceram no rosto dela.

— Você não deve julgar todos nós pela tia Maria!

Ele riu novamente.

— Eu não esperava alguém como você.

— Foi o que Stonor disse. — O sorriso dele desapareceu.

— Foi?

— Conte-me alguma coisa da família Whitley. Eles são boa gente?

Wolfe lançou-lhe um olhar incrédulo.

— Não é a mim que você deve perguntar. A minha opinião está longe de ser
imparcial.

— Não duvido, já que você é um Whitley. Mas eu sou uma pessoa de mente aberta.

Ele tornou a rir, mostrando os dentes muito brancos.

— Eu a vi chegar.

— Pois eu não o vi. Você mora aqui perto?


— Você desceu da carruagem e olhou para a casa com a expressão de maior rebeldia
que já vi.

— Eu estava odiando o que viria em seguida. Cheguei até a desejar que ainda
estivesse em casa.

— Ah, sim, Queen's Stonor! — Os lábios dele se curvaram com ironia. — Nós todos
ouvimos falar muito da sua casa.

— Queen's Stonor não é uma casa que alguém possa esquecer. Foi difícil deixá-la! —
Sophia confessou num tom apaixonado, com o sangue colorindo-lhe o rosto.

— Sua tia vem falando dessa casa desde o dia em que a deixou, como uma Eva
expulsa do Paraíso! — ele contou com uma repentina crueldade, os olhos brilhando de
desprezo.

Sophia percebeu que ele não gostava de sua tia, e a lealdade familiar levou-a a reagir.

— Você não falaria assim, se já tivesse visto Queen's Stonor. É uma casa linda! Tem
gente que viaja quilômetros, só para vê-la. É um desses lugares que têm tanta
personalidade, que impressiona todos que o conhecem.

— Não são só lugares que são assim — Wolfe comentou, observando-a com uma
estranha expressão. — Existem pessoas desse tipo, também.

— É verdade... — Sophia respondeu, pensando que ele era uma delas.

Por um instante permaneceram em silêncio, fitando um ao outro. Naqueles


momentos Sophia só teve consciência dele, completamente alheia ao efeito causado nos
outros convidados pelo fato de estarem juntos. A atenção de todos estava fixa neles.

Wolfe Whitley devia ser um ou dois anos mais velho que Sophia. E bem mais alto que
ela, com um corpo esbelto e musculoso, mas ambos exibiam uma leve semelhança, do jeito
que estavam, sentados lado a lado, com as cabeças de cabelos escuros juntas, fitando-se
com a curiosidade natural de dois jovens que se encontram pela primeira vez. Era uma
semelhança vinda não das feições, mas da saúde, auto-confiança e energia vibrante, que os
distinguiam.

Um silêncio repentino caiu sobre o salão. Sophia ergueu os olhos, surpresa, quando a
tia aproximou-se e agarrou-a pelo braço, forçando-a a se levantar. Nesse momento os
músicos iniciaram outra valsa e vários pares puseram-se a dançar. Mas, sob o disfarce de
seus sorrisos fixos, seguiam com os olhos a cena no canto do salão. Sussurros voavam de
um lado para o outro.

— Você não pode ficar parada, minha querida — tia Maria declarou, numa voz
falsamente alegre. — Olhe, aí vem Stonor! Ele está louco para dançar com você.
Sem muita gentileza, ela empurrou Sophia para Stonor, que a tomou pela cintura e,
com uma expressão indefinível, levou-a para a pista.

Estranhando tudo aquilo, Sophia manteve-se alerta ao que aconteceu em seguida.


James Whitley juntou-se à esposa e uma conversa tensa começou entre eles, embora suas
vozes não se elevassem e tia Maria mantivesse um sorriso fixo nos lábios. Por trás deles,
ignorado por ambos mas atento ao que se passava, Wolfe Whitley continuava a exibir
aquela pose estranha, mista de poder e arrogância. O que o casal dizia parecia não afetá-lo
em nada, a não ser como algo divertido.

Levantando os olhos para Stonor, Sophia descobriu que ele a observava com uma
expressão impassível. Muitos deviam achá-lo bonito, com aquele nariz reto e boca bem
feita, mas ela não gostava dos modos reticentes e cortesia enigmática que Stonor
demonstrava. Uma natureza aberta e afetuosa como a sua respondia mais prontamente ao
charme descontraído de Wolfe Whitley.

— Está gostando da festa? — Stonor perguntou, em seu tom frio.

— Muito! Gosto muito de música e dança.

— Você se diverte com facilidade, ao que parece.

Era como se Stonor a estivesse acusando de alguma coisa, e Sophia sentiu uma
estranha repulsa por ele. Já percebera que Stonor era dado a fazer declarações enigmáticas,
que sempre escondiam uma crítica. Fitando-lhe os olhos claros, frios e inexpressivos, teve
vontade de fazê-lo perder a pose. Provavelmente conseguiria isso com perguntas sobre
Wolfe Whitley, já que mãe dele ficara tão perturbada com a presença do rapaz. Mas achou
que ele a reduziria a nada com um simples olhar e não teve coragem. Já o vira fazer isso
com um criado e não tinha a menor vontade de sentir-lhe o peso da língua. Portanto, fez-
lhe a pergunta que a vinha intrigando, desde sua chegada.

— É evidente que você se chama Stonor por causa da nossa família, mas por que seu
irmão se chama Grey? É um nome tão estranho!

— O nome é em homenagem ao primo de minha mãe, Lorde Grey of Strybourne.

— Ele é nosso parente?! Eu não sabia.

— Mas que estranho! Minha mãe sempre fala dele para nós.

Por algum motivo, sua ignorância daquele parentesco divertiu-o. Mas ela não gostava
do jeito que Stonor tinha de sorrir, pois a perturbava. O rosto dele escondia pensamentos
que, tinha certeza, não gostaria de conhecer.
— Você é uma pessoa muito interessante, Sophia — ele disse de repente, observando-
a com aqueles olhos frios e tão inteligentes. — Completamente diferente do que eu
esperava.

— O que é que você esperava?

— Alguém parecida com minha mãe, provavelmente. Mas você não se parece em
nada com ela.

— Sinto muito — replicou Sophia, mal se dando ao trabalho de esconder o quanto


estava aborrecida.

— Pois eu, não.

O modo como Stonor disse isso fez o sangue subir a seu rosto. Ela baixou os olhos,
louca para a música chegar ao fim e se livrar dos braços dele. No entanto, Stonor dançava
muito bem. Fora mesmo o melhor par que tivera, aquela noite. Pena que antipatizasse
tanto com ele.

— No que você está pensando? — ouviu-o perguntar.

— Em nada — respondeu, fitando-o por entre os longos cílios.

— A sua cintura é tão fina! — Ele apertou-lhe a cintura. — Não deixe de sorrir,
Sophia. Gosto de vê-la sorrir.

Sophia nunca se sentira tão sem vontade de sorrir, como naquele momento.

Maria apertou os dedos e falou num tom baixo, esforçando-se para manter o sorriso
nos lábios, devido aos olhares curiosos lançados em sua direção.

— Por quanto tempo ainda vou ter que agüentar isto? Não basta que eu seja
humilhada em minha própria casa, diante de meus criados? Você tem que mostrar minha
vergonha a todos?

— Não exagere, Maria — James Whitley replicou, num tom cansado.

— Exagerar?! Como pode dizer isso? Eu o avisei do que aconteceria, se me obrigasse


a deixá-lo participar desta reunião! Ele sempre foi atrevido, mas esta noite passou dos
limites. Imagine, aproximar-se da minha sobrinha, a filha do meu irmão, e aproveitar-se da
inocência dela para transformá-la em motivo de zombaria! Ele sabia do falatório que isso ia
despertar e fez de propósito. Não adianta você querer negar! Olhe para a cara dos nossos
convidados. Todos eles estão loucos para sair daqui e espalhar a história pela cidade
inteira. Todos sabem quem é ele!

Por cima da cabeça da esposa, James Whitley olhou para o filho, que chamara de
Wolfe em homenagem ao soldado inglês que tanto admirava. Wolfe, o herói de Quebec,
que morrera na hora exata da vitória. Sob seu exterior quieto, James Whitley nutria um
amor forte pelo filho bastardo.

James não se identificava com os dois filhos legítimos, nascidos de uma mulher que
se vendera em matrimônio, por livre e espontânea vontade, e, no entanto, ressentira-se de
ter que honrar sua parte. Maria sempre se portara como se o toque dele a sujasse,
mantendo-se rígida e fria na cama e fazendo-o ter a impressão de que o ato sexual era um
crime vergonhoso.

Stonor e Grey podiam ser, fisicamente, cópias fiéis do pai, mas James os repudiava,
emocionalmente. Em espírito, eles tinham saído à mãe, e ele nunca conseguia olhá-los sem
se lembrar de coisas que preferia esquecer.

Durante os cinco primeiros meses de seu casamento, estivera apaixonado pela


esposa. Levara algum tempo para perceber a realidade e chegar à conclusão de que ela
jamais mudaria. A repulsa física que ela sentia por ele matara seu amor, levando-o a
satisfazer seu desejo em outros lugares. Maria mostrara um alívio quase patético quando o
marido deixara de procurá-la, mas mudara de atitude drasticamente, ao descobrir que ele
tinha uma amante.

Por seu filho ilegítimo, nascido de um amor compartilhado, James sentia o que nunca
fora capaz de sentir pelos outros filhos. James Whitley, o homem de negócios duro e
implacável, era completamente vulnerável em relação a Wolfe.

— E o que é que ele estava dizendo a ela? — Mas , continuou, com acidez. — Se ele
lhe disse a verdade, a coitadinha deve estar terrivelmente chocada!

— Ela me deu a impressão de estar bem contente, na companhia de Wolfe — James


replicou, asperamente.

Notara, com prazer, o sorriso de Sophia para Wolfe. Sua intenção sempre fora não
gostar dela, pois os Stonor nunca lhe tinham feito nada, a não ser mal. Mas tudo mudara,
quando a vira sorrindo para o filho. Normalmente, Wolfe andava pela casa como um cão
vadio, sem receber nenhum sorriso, a não ser que fosse do tipo ofensivo.

Maria estava muda de raiva. Queria falar mas tinha medo de se descontrolar, se
abrisse a boca. Aprendera a ser discreta pelo método mais difícil. No entanto, fitando o
marido, não pôde deixar de manifestar, no olhar, o ódio que sentia.

James estremeceu. Não era agradável ser alvo daquele tipo de emoção. Há muito
tempo ele e Maria viviam separados, como estranhos e inimigos sob o mesmo teto, mas em
público ela sempre fizera questão de ostentar uma expressão polida e sorridente.

— Eu quero que ele vá embora agora mesmo! — Maria exigiu. — Ele está arruinando
a festa de aniversário da sua filha.
James hesitou, mas depois assentiu com um gesto de cabeça. Mesmo não tendo
grande amor pela filha, era forçado a reconhecer que a menina tinha o direito de se divertir
na própria festa. Quanto a Wolfe, sabia que ele se aproximara de Sophia Stonor de
propósito, pensando em causar barulho. Ficara surpreso quando o filho lhe pedira para
comparecer à festa de Elizabeth, mas, como sempre, cedera. Wolfe sempre fora capaz de
conseguir dele tudo que queria.

No fundo, James Whitley sabia por que concordara com o pedido do filho. Durante
anos, usara Wolfe como uma arma contra Maria, sentindo grande satisfação em forçá-la a
reconhecer a existência de seu filho ilegítimo. Era como se quisesse puni-la por tê-lo
rejeitado, no início de seu casamento.

Afastando-se da esposa, James juntou-se a Wolfe.

— Você tem que ir embora — disse abruptamente.

Wolfe sorriu daquela forma atraente e irônica, que o caracterizava.

— Ela encheu os seus ouvidos, meu pai?

Era típico dele tratar o pai deste modo mais cerimonioso, como se soubesse
instintivamente que James preferia assim. E, de fato, James sentia um enorme prazer em
ouvi-lo dizer "meu pai". Apesar de jovem, Wolfe já adquirira um grande conhecimento da
natureza humana e conhecia o pai melhor do que ele pensava.

— Você veio disposto a criar confusão! — acusou James e fitou o filho com um ar
compreensivo.

— Vim?

— Se você fosse mais novo, eu lhe daria uma surra de chicote!

— O senhor nunca me bateu, em toda a minha vida.

— Pois devia ter batido! Teria lhe feito bem.

— Eu teria odiado o senhor.

— Eu sei.

James suspirou. O rosto do rapaz expressava uma força, uma energia que ele
reconhecia e respeitava. Havia em Wolfe uma arrogância inata, um espírito feroz que
jamais poderia ser domado. Sabendo disso, ele adotara a política de fazer todas as
vontades do filho, o que tornara o relacionamento de ambos muito feliz.

— Você tem que ir embora, Wolfe. Gostaria que não me tivesse feito de tolo e pedido
para comparecer à festa de Elizabeth. Se Maria não estivesse tão ansiosa para ver a
sobrinha casada com Stonor, na certa não teria concordado. É verdade que ela queria me
conservar de bom humor, mas mesmo assim me surpreendi quando ela disse que sim. Até
eu descobrir por quê. — James fitou o filho nos olhos. — No entanto, o que mais me
surpreendeu foi você querer vir. Posso saber o motivo?

— Eu a vi chegar — Wolfe explicou, procurando Sophia com o olhar.

— Minha mulher e o pai dela pretendem casar essa moça com Stonor. Não ponha
idéias disparatadas na sua cabeça.

— Não acha que ela é linda, meu pai?

Wolfe acompanhou Sophia com os olhos azul-esverdeados, enquanto ela volteava


pelo salão ao som de uma valsa. O prazer da garota com a dança era evidente e emergia
num riso vivo e excitado, que morreu abruptamente quando ela o olhou.

James Whitley, por sua vez, não tirava os olhos do filho. Cheio de ansiedade, viu o
rapaz dirigir-se à porta com um andar insolente e despreocupado, indiferente à
curiosidade de que era alvo, e sair sem um olhar para trás.

Sophia estava ficando cada vez mais cansada. Em Queen's Stonor todos dormiam
cedo e levantavam cedo. Seus olhos fixaram-se nas velas que iluminavam o ambiente.
Nunca vira tantas. A casa dos Whitley tinha lâmpadas modernas para o uso diário, mas
naquela noite tia Maria preferira as velas, que eram mais românticas. Elas estavam quase
no fim, agora, e suas chamas bruxuleavam enquanto os convidados partiam.

Elizabeth, ao lado da mãe, corada pelo excitamento e pelas danças, beijava as


mulheres e estendia a mão, para que os homens a beijassem. Quando Sophia se
aproximou, abraçou-a pela cintura e sussurrou:

— Gostei tanto da festa! Você gostou dele? Dançou comigo duas vezes. Mamãe viu e
fez cara de quem não estava gostando, mas eu nem liguei!

Sophia sorriu. Não prestara atenção aos pares da prima, pois estava muito ocupada
com os seus, mas se lembrava vagamente de um rapaz agradável, vestido de marrom, que
vira fitando Elizabeth com ar de encantamento.

— Você está falando de Tom Lister?

— Isso mesmo — Elizabeth concordou.

Sophia não pôde deixar de pensar como era estranha a vida. Cada uma das pessoas
que estivera ali devia estar com uma impressão totalmente diferente da festa. De sua parte,
ela sempre se lembraria dessa noite como aquela em que um rapaz moreno e atraente lhe
dissera: "Então, você é a prima". Elizabeth, no entanto, guardaria aquela como a noite em
que dançara duas vezes com Tom Lister.
— É um rapaz muito simpático — comentou, vendo que a prima esperava que
dissesse alguma coisa.

— Se é!

— A sua mãe não gosta dele?

— Mamãe acha que ele não está a minha altura e quer que eu espere. Mas se eu fizer
o que ela quer, na certa vou acabar como uma solteirona velha e azeda!

Sophia fitou-a, divertida.

— Não sei por quê, mas duvido muito!

Elizabeth riu.

— Eu também!

A casa já estava vazia, e as duas subiram a escada abraçadas, tontas de sono. Um dos
criados apagou as velas e abriu as janelas, para que o ar noturno entrasse. Maria esperou a
filha e a sobrinha desaparecerem no fim da escada, depois virou-se para o marido.

— Amanhã, Maria — ele disse, sem rodeios. — Pelo amor de Deus, deixe para
amanhã! Agora, eu vou para a cama.

— A cama dela, é claro!

— Quando é que eu fui desejado na sua?

— Eu sou sua esposa!

Ele riu, amargo.

— Deus do céu, você acha que isso é justificativa? Eu não sou um cachorrinho de
estimação, sou um homem. Se você me nega afeto, tenho que procurar em outro lugar.

— Afeto!? — Foi a vez de Maria rir, com o rosto contorcido de ódio. — É assim que o
chama?

— É o que eu recebo lá fora — James respondeu, subitamente calmo. — E você


deveria ser grata a ela. Foi quem tornou minha vida possível, nesta casa. Se ela não
estivesse aqui, eu teria ido embora há tempo. Você sabe disso, senão não teria suportado
sua presença todos estes anos!

— Depois desta noite, os dois têm que deixar esta casa!

— Maria, minha querida, você deve estar muito cansada para fazer uma exigência tão
ridícula. — Os olhos dele refletiam uma mistura de pena e divertimento. — Porque ou eles
ficam aqui, ou eu saio com eles. Se não quer viver na mesma casa que nós, você tem uma
alternativa. Não está sempre falando no seu lar ancestral? Pois volte para lá! Seu irmão,
sem dúvida, terá prazer em recebê-la.

A ironia desta frase a atingiu.

— Você sabe muito bem que meu irmão...

— Está à beira da falência? — James sorriu friamente. — Isso mesmo, Maria. E é por
isso que a filha dele está aqui. Você quer que ela se case com Stonor, não é? Ela é a isca para
o meu dinheiro. Eu sei que você sempre sonhou em ver seu filho como dono de Queen's
Stonor. Não vou fingir que gosto dele, mas não pretendo prejudicá-lo em nada: ele terá o
meu dinheiro. Stonor herdará a propriedade de sua família de qualquer jeito, mas
precisará do meu dinheiro para trazer-lhe a vida de volta. Era isso que você queria, não
era, Maria? O meu consentimento. Porque o meu dinheiro posso deixar para quem eu
quiser!

Maria retribuiu-lhe o olhar, muito pálida. James sempre fora implacável em seu
relacionamento, e aquela era uma possibilidade que ela sempre temera.

— Você não vai cortar nossos filhos do seu testamento, não é?

— Eu reconheço minha obrigação para com eles, minha querida. Se se mostrarem


obedientes e cumpridores de seus deveres, seus filhos terão o suficiente para as
necessidades deles. — O sorriso mooteu nos lábios de James. — Mas eles têm que ser
obedientes, minha querida. A mim!

James abandonara os filhos nas mãos dela, praticamente desde que nasceram. Nunca
fizera a menor tentativa para conquistá-los ou mostrara afeto por eles. Abertamente, quase
num desafio, todo o seu amor fora dirigido ao outro garoto.

Maria viu o marido afastar-se, trêmula de ódio. Sabia que ele continuava a puni-la
por sua frieza. Ele era um homem que devolvia o que recebia e tinha ótima memória.
Nisso, Wolfe Whitley saíra ao pai! Um garoto estranho e orgulhoso, sempre retribuía, com
juros, o que lhe faziam.

Num extremo do primeiro andar, James tomou uma escada pequena, que levava a
uma suíte totalmente isolada do resto da casa. Abrindo a porta, observou por um instante
a mulher sentada a uma penteadeira, escovando os cabelos com o braço erguido numa
pose graciosa. Ela usava apenas um saiote de rendas, que deixava seus seios
completamente expostos.

— James! — Vendo-o pelo espelho, a mulher sorriu.


James aproximou-se, fechando a porta. Os traços de sofrimento eram evidentes em
seu rosto, e ela girou o corpo, abraçando-o e fazendo com que se inclinasse, até suas bocas
se tocarem.

— O que foi que aconteceu? — ela perguntou mais tarde, quando já estavam na cama,
aquecidos pelo fogo que crepitava na lareira.

— Hum?

James não queria falar. Ela acalmara suas emoções e ele não queria abordar um
assunto que só o enfurecia, sem o menor propósito.

— Onde está Wolfe? Pensei que viesse me ver depois da festa, mas acho que ele saiu
de novo. Você precisa pôr um fim nisso, James. Ele pode acabar em encrenca. Sei que vocês
dois não gostam de tocar nesse assunto na minha frente, mas... para onde Wolfe vai, nessas
excursões noturnas?

James sorriu com ironia.

— Acredite em mim, você não gostaria de saber.

Ela suspirou.

— Ele se divertiu na festa?

— A seu modo, divertiu-se, sim. Mas fez o que não devia. A mulher, que se chamava
Lucy, ergueu-se num dos cotovelos, assustada.

— Não me diga que ele brigou de novo com Grey!

— Pior que isso. Ele deu muita atenção à sobrinha de minha esposa, quando sabe
muito bem que a garota está destinada a Stonor. Naturalmente, a mocinha não sabia quem
era ele, e Wolfe aproveitou-se disso.

— Houve uma cena?

— Quase. Stonor agiu depressa, impedindo que o pior acontecesse, mas todos
perceberam e Maria ficou furiosa. — James levou a mão ao busto nu de Lucy, acariciando-
lhe a pele morna. — Para uma mulher da sua idade você é linda, minha querida!

— O que foi que Wolfe fez, depois disso?

— Deu-me umas respostas atrevidas, riu e foi embora. Ele é bem frio, para um garoto
de dezoito anos. Estava mais no controle de si mesmo do que eu! Aposto que foi à procura
de mulheres mais acessíveis, quando saiu.

Lucy indignou-se.

— E você não o deteve?! Ele pode pegar uma dessas doenças horríveis, com essas
mulheres!
— Acha que eu conseguiria? — James lançou-lhe um olhar de resignação. — Em todo
caso, prefiro saber o que ele está fazendo. Não gosto desses devassos disfarçados. Acho
que Stonor tem queda para os mesmos prazeres que Wolfe, mas esconde muito bem.

— Stonor me dá medo. Ele é dissimulado, frio e rancoroso. Sempre que me vê, me


olha de um jeito que me dá a impressão de ter recebido uma cusparada no rosto.

James não respondeu. Um ar de cansaço surgiu em seu rosto. Seus sentimentos pelo
filho mais velho eram complexos, mais confusos que os que tinha pela esposa. Stonor era
um mistério. Não o entendia e não gostava dele. O modo como o tratara, durante a
infância, prejudicara muito seu relacionamento. Agora, relacionavam-se com polidez, mas
sob o gelo moviam-se águas escuras. O Stonor atual o intrigava e assustava.

Vendo-lhe o ar cansado, Lucy encheu-se de remorso.

— Querido — murmurou, abraçando-o —, esqueça-se deles!

A madeira estalou no fogo, e as sombras dançaram no teto. Com a cabeça apoiada no


regaço de Lucy, James adormeceu.

Num beco estreito que ia dar no Tâmisa, Wolfe Whitley remexia nos bolsos da calça,
xingando.

— Maldita prostituta! Me deixou limpo. E olhe que eu tinha bastante dinheiro,


quando me encontrei com ela. — Riu, de repente, jogando a cabeça morena para trás. —
Que o diabo carregue todas as mulheres! Ela me deu o que eu precisava, por isso que faça
bom proveito do dinheiro.

Ele tropeçou quando um rato passou correndo por cima de seu pé, escorregou numa
pilha mal cheirosa de comida e bateu a cabeça na porta de um armazém. A dor livrou-o
temporariamente do estupor da bebida e ele tornou a xingar, esfregando o ponto
machucado.

Por um momento Wolfe continuou onde estava, apoiado na parede do armazém,


lutando contra a dor e uma onda de enjôo. Depois, o som de gritos e passos rápidos
atingiu sua mente entorpecida. Ele olhou para o rio e, à luz do luar, viu dois ou três
homens lutando. De repente, um grito estrangulado cortou o ar, seguido pelo barulho de
um corpo caindo na água. Os homens que restavam sobre o cais imobilizaram-se por um
instante, contemplando o rio, mas logo em seguida puseram-se a correr, fugindo do local.

Quando o barulho dos passos deles sumiu na distância, Wolfe também começou a
correr, mas em direção ao rio. Chegou à margem e viu uma figura que lutava cegamente
contra a correnteza. Sem hesitar, tirou os sapatos e o casaco e pulou na água. A correnteza
puxava com força, e só por ser um bom nadador conseguiu alcançar o homem. Mas o
sujeito estava em pânico e teve que tirar-lhe a consciência com um murro, antes de rebocá-
lo até os degraus apodrecidos de madeira que desciam do cais.

Não foi fácil, mas afinal deitou o homem na margem, de costas, e tentou fazê-lo
vomitar a água que engolira. Depois de alguns segundos de tensão, o sujeito pôs tudo para
fora. Logo em seguida, Wolfe ajudou-o a se levantar.

— Você é um sujeito bem grande — comentou, quando o homem apoiou-se nele.

— Você também não é pequeno — o outro respondeu, num tom enrouquecido. —


Minha nossa, estou fraco como um bebê!

— O Black Dog fica perto daqui. Uma boa caneca de cerveja vai lhe devolver a força.

— Mas não no Black Dog! Não tenho a menor vontade de voltar para dentro do rio.

— Que tal o Turk's Head, então? — Wolfe sugeriu.

Em silêncio eles atravessaram um labirinto de ruas escuras e estreitas, impregnadas


pelo mau. cheiro do rio e de madeira podre. Estavam no coração das docas de Londres,
onde vagavam homens de todas as partes do mundo, com todos os vícios possíveis.
Ratcliffe Highway era um caminho que seguia a margem norte do Tâmisa, onde
desembocavam dezenas de ruas da região mais pobre da cidade.

Há um século a situação ali era bem pior, mas ultimamente o governo vinha
limpando o suprimento de água da cidade num esforço para livrar seus habitantes das
epidemias constantes de cólera e febre tifóide. Ainda que de má vontade, os pais estavam
sendo obrigados a mandar os filhos para a escola, pois passara a ser ilegal empregar
crianças em idade escolar. As reformas eram vagarosas, impostas a duras penas e nem
sempre bem-sucedidas, mas tinham começado.

Naturalmente, ainda era possível encontrar crianças prostitutas naquelas ruas, ser
esfaqueado num beco e beber gim barato até morrer. A pobreza era um incentivo
poderoso. Era melhor ser corrupto que morrer de fome, e homens desesperados jamais
tiveram escrúpulos.

Whitley fora para lá porque sua natureza o levava a procura das ruas estreitas e
perigosas. Ele gostava daquilo e, se sobrevivera, fora por também ser perigoso. Aquilo era
uma selva, mas ele era um animal selvagem da pior espécie, pois sabia o que queria. Não
tinha ilusões e sentia prazer em se arriscar.

O Turk's Head era uma taverna velha e malconservada. Ainda estava com as luzes
acesas quando eles chegaram, apesar da noite estar no fim. Vários homens berravam uma
canção atrevida, mas calaram-se assim que os viram. Então, alguém gritou:

— Ei, é Black Strap Smith! Foi nadar, Black Strap?


O riso sacudiu o ambiente, mas morreu quando o homem ensopado os fitou,
mostrando os dentes enegrecidos num rosnado que lhe dava um ar bastante desagradável.

— Vou ficar com o salão lá em cima, Rummy — ele comunicou com aspereza ao
barman. — O fogo está aceso? Se não está, acenda. — Virou-se para Wolfe. — Vamos tomar
um trago, meu amigo.

— Está bem, obrigado — Wolfe concordou, depois de uma ligeira hesitação.

Eles subiram a escada, observados pelos freqüentadores do bar. Só quando


desapareceram de vista, a conversa recomeçou.

O salão superior cheirava a corda, tabaco e alcatrão. Com movimento ágil do braço
gordo, o barman tirou da mesa todas as canecas vazias que lá estavam.

— Traga uma garrafa de Jamaica — Black Strap lhe disse.

Wolfe ficou impressionado com a servilidade do barman. Obviamente, Black Strap


não era homem que valesse a pena contrariar. Por que, então, fora jogado no rio? E por
quem? Inimigos que o tinham apanhado desprevinido? No ano de 1870, muitos homens
daquelas ruas sujas acabavam no rio. O puritanismo e a respeitabilidade da sociedade
vitoriana terminavam onde começavam os cortiços.

O rum chegou e Black Strap aqueceu-o sobre o fogo, usando o pegador de metal
próprio para isso, depois serviu-o em duas canecas de estanho.

— Ao seu braço direito! — brindou, em agradecimento a Wolfe. — Qual é o seu


nome, meu rapaz?

— Wolfe.

— Wolfe, hein? E como é que você ganha a vida? Ou tem uma mulher que faz isso
por você? Aposto que um rosto como o seu atrai muitas delas.

Wolfe era sabido demais para responder a esta pergunta. Aprendera cedo o quanto
era necessário ser discreto. Por isso sorriu apenas, com um brilho audacioso no olhar, e o
outro deu-lhe um tapa no joelho, gargalhando gostosamente.

— Ah, seu cachorrão! Onde é que você mora?

— Aqui perto — Wolfe disse, de modo vago.

— Está bem, guarde seus segredos. Mas eu gosto de seu jeito, rapaz. Se algum dia
precisar de ajuda, pode me procurar. Eu estou sempre aqui, mas, se não estiver, Rummy
sabe onde me encontrar.

— Obrigado, não vou me esquecer.


Wolfe estendeu a mão para Black Strap, que a princípio o fitou, surpreso. Mas depois,
com um sorriso divertido, cuspiu na própria mão e apertou os dedos de Wolfe, quase os
quebrando com sua força colossal.

— Preciso ir — Wolfe disse, um pouco mais tarde.

Black Strap tentou persuadi-lo a ficar, mas, depois de uma animada despedida, Wolfe
saiu para a noite escura. Caminhando pelas ruas enlameadas, evitando as poças de água e
sujeira, ele assobiava baixinho, indiferente ao fato de ainda estar molhado e com as roupas
úmidas. Fora uma noite cheia de acontecimentos.

Capítulo II

Na manhã seguinte ao baile, Sophia acordou mais tarde que de costume, apesar do
barulho do tráfico londrino. Corada, cheia de indolência, espreguiçou-se sob os lençóis de
linho, pensando no que acontecera na noite anterior. Fora atordoante, fascinante e
misterioso.

Olhando para o passado, percebeu que a tensão na casa dos Whitley já existia muito
antes do baile. Desde sua chegada, notara a infelicidade dos tios sob a máscara de cortesia
com que se tratavam, e sentira-se perturbada, principalmente porque fora para Londres
com o objetivo expresso de casar-se com Stonor.

Um arrepio percorreu-a ao lembrar-se disso. Mas a imagen de Stonor, em sua mente,


logo foi substituída por outra: a de Wolfe Whitley. Ele sim, era fascinante!

Com um salto brusco e um sorriso malicioso no rosto, pulou da cama e apertou a


campainha, chamando a criada que partilhava com Elizabeth. Já percebera que a tia ficaria
profundamente chocada, se soubesse que não tinha uma criada em Queen's Stonor. Maria
vivera lá quando os criados se acotovelavam pelos cômodos e não acreditaria nas
mudanças trazidas pelos anos. Os dias de riqueza da família Stonor tinham se acabado.
Atualmente, eles eram obrigados a se contentar com o mínino possível.

Sophia esperou com impaciência que a criada chegasse. Os hábitos de grandes


senhores em que tia Maria insistia contrariavam seu temperamento impulsivo e
independente, mas ela prometera ao pai fazer o possível para agradar. Por isso, mesmo
sabendo que poderia vestir-se na metade do tempo, deixou que a criada se encarregasse de
tudo.
— Minha tia e minha prima já desceram? — perguntou depois, observando seu
reflexo no espelho.

— Ah, não, senhorita! — A mulher respondeu, num tom de voz que acusava Sophia
de cometer uma grave falta social, levantando-se antes do esperado. — Depois de uma
festa, elas nunca se levantam antes do meio-dia.

Disfarçando uma careta, Sophia deixou o quarto. Usava um vestido listrado de verde
e branco, com laços pretos nos ombros e mangas fofas. A moda exigia que a barra fosse
mais comprida atrás do que na frente, o que fazia com que seu andar tivesse um ligeiro
gingado.

Depois de tomar o café da manhã na sala de jantar, servido cerimoniosamente por


um mordomo altivo, que deu um jeito de fazê-la sentir-se inconveniente levantando-se
antes dos outros membros da família, Sophia voltou para o primeiro andar. Como não
tinha nada a fazer, pôs-se a vagar pelos corredores da casa, examinando a decoração e os
móveis. Era tudo tão novo e bem conservado! Não tinha a beleza de Queen's Stonor, mas
exalava um ar de riqueza.

No fim de um corredor, que não se lembrava de ter visto, Sophia subiu um lance de
escadas e estacou, surpresa, ao se ver frente a frente com Wolfe.

Os olhos dele brilharam, inspecionando o corpo jovem e bem-feito, depois fixaram-se


no rosto bonito.

— Ora, ora! Como é que veio parar aqui, srta. Sophia?

— Você vive nesta casa, então? Pensei que fosse um convidado — ela disse em sua
maneira direta, corada e com os olhos brilhantes pelo excitamento de vê-lo.

Os lábios de Wolfe se crisparam.

— Já vi que você ainda não sabe qual é a minha posição nesta casa.

— Ontem à noite — ela sorriu —, percebi que há algum mistério em relação a isso.

Erguendo-lhe o queixo, Wolfe fitou-a como se quisesse memorizar cada detalhe de


seu rosto.

— E eles querem casá-la com Stonor — murmurou, como que para si mesmo.

Sophia corou ainda mais e, para disfarçar seu embaraço, perguntou:

— Você não quer falar de si mesmo?

Ele fez um gesto de indiferença, soltando-a.

— Por que não? Você logo vai ficar sabendo de tudo, e prefiro que seja por meu
intermédio.
Wolfe sentou-se no topo da escada, esticando as pernas diante de si. Sophia imitou-o
sem hesitar, espremendo o corpo junto ao dele. Wolfe fitou-a, agudamente consciente
daquela proximidade, e notou que ela agia com a inocência de uma criança.

— E então? O que tem para me dizer?

— Eu sou o filho natural de James Whitley.

Sophia arregalou os olhos azuis, brilhantes como safira. Nunca pensara que pudesse
ser isso. Wolfe esperou por sua reação, com uma expressão ressabiada no olhar.

— Deve ser bem desagradável para minha tia — ela disse, afinal.

Wolfe começou a rir, e Sophia olhou-o, indignada.

— Eu sei que você vê tudo de um ângulo diferente, mas ela não deve gostar nada
disso!

Parando de rir, ele inclinou-se para o seu lado e rosnou:

— Sua menininha tola! Já pensou no inferno que tem sido a vida de meu pai, nesta
casa? Casado com uma mulher que o despreza e evita qualquer contato físico com ele? Ele
ama minha mãe e deve a ela toda a felicidade que já teve! Se não fosse pela presença dela
nesta casa, já teria ido embora há muito tempo.

— Ela mora aqui?!

— Minha mãe e eu temos um apartamento deste lado da casa. Em respeito à


sociedade, ela passa por governanta, mas até os criados sabem da verdade. A esposa de
meu pai finge que minha mãe é invisível ao passar por ela. Seus primos fazem o mesmo, e,
quando eu era mais jovem, costumavam me provocar. Principalmente Grey, que sempre
me dirigia uma série de palavrões, se nos encontrávamos. Acho que aquela cicatriz se
contrai todas as vezes que ele pensa em mim!

— Cicatriz?

— Não notou? Fui eu que fiz.

— Oh, mas por quê?!

O rosto moreno de Wolfe contorceu-se.

— Grey chamou minha mãe de um nome que não vou repetir, e eu avancei nele. Ele
caiu e cortou o rosto na beirada da mesa.

— Você apanhou por isso?

— Eu nunca levei uma surra, em toda a minha vida — Wolfe informou, com
satisfação. — A mãe dele avançou em mim, gritando, e começou a me bater, mas meu pai
me tirou de lá. Grey me odeia, porque eu o marquei para o resto da vida. Agora, ele pensa
duas vezes antes de se meter comigo.

— Coitado do Grey! — Sophia comentou, com um traço divertido na voz.

Seus olhares se encontraram e o sorriso se manifestou. Ela também não gostava de


Grey. Depois de um instante, Wolfe que a observava, pegou sua mão num gesto que a
surpreendeu.

— Está chocada, Sophia? O fato de eu ser um filho natural não lhe causa repulsa?

Sophia dirigiu-lhe um sorriso malicioso, sem retirar a mão.

— Não. Desde que mamãe morreu, meu pai tem uma mulher na vila. Ela tem três
filhos, dois meninos e uma menina. Não sei se são todos do meu pai, mas a menor, Nan, é.
Ela possui os olhos dos Stonor, brilhantes e azuis. Gosto muito dela. No último Natal, eu
lhe dei todas as minhas bonecas.

Wolf apertou-lhe os dedos, os olhos fixos em seu rosto sorridente.

— Pensei que você fosse ficar horrorizada. Uma senhorita de boa família, criada com
todos os cuidados, deveria fugir correndo ao ouvir a verdade sobre o meu nascimento.

— Acho que foi por isso que minha tia não me disse nada.

— Ela tem outros motivos, também.

Sophia tentou ficar séria, mas não conseguiu. Afinal a tia não era mulher de inspirar
um grande afeto.

— No fundo é tudo muito chocante. Será que meu pai sabe?

— Duvido que Maria tenha lhe contado. Ela não sente nenhum orgulho disso!

— O que é natural. Mas se não liga para o marido, também não deve ligar para o fato
de ele ter outra mulher.

Wolfe rompeu numa gargalhada. Quando conseguiu se dominar, inclinou-se para a


frente e beijou-a na boca. Sophia afastou-se, depressa.

— Há quanto tempo você mora aqui?

— Desde que me conheço por gente — Wolfe respondeu, sorrindo de um jeito


estranho, sem tirar os olhos dela. — Stonor, Grey e eu crescemos juntos.

O sorriso morreu nos lábios de Sophia, ao ouvir o nome de Stonor.

— Você também brigava com Stonor?

— Stonor jamais se rebaixaria a brigar comigo. Ele é do tipo que odeia secretamente,
mas é o mais perigoso dos dois.
— Ele me amedronta, também — Sophia revelou, sem querer, e Wolfe inclinou-se
novamente à procura de sua boca.

— Eu não disse que Stonor me amedronta — murmurou, roçando os lábios nos dela.
— E se ele tiver o atrevimento de amedrontar você, corto-lhe a garganta.

Sophia riu, mas neste momento Wolfe deslizou a mão para sua nuca, pondo-se a
acariciá-la de um jeito que lhe deu um forte prazer. Fechou os olhos, concentrando-se
apenas naquela sensação deliciosa e nos lábios que brincavam com os seus. Ainda incerta
do que acontecia, entreabriu os lábios e o beijo transformou-se numa carícia de intensa
paixão.

Tremendo de excitação concentrou-se na mão que descia por seu corpo, despertando
uma sensibilidade intensa em todos os pontos que tocava. Mesmo assim, a necessidade de
fugir daquela situação assolou-a. Não porque achasse as carícias dele desagradáveis, mas
porque era a primeira vez que um homem a tocava e estava gostando demais.

— Não, Wolfe — pediu, ofegante, empurrando-o para longe de si.

Com relutância ele se afastou, respirando fundo e seus olhares se encontraram.

— Não quero que sinta medo de mim, Sophia.

— Não foi por isso — ela respondeu, honesta como sempre. E viu os olhos dele
adquirirem uma expressão tão ardente, que achou difícil enfrentá-los.

— Quero que você conheça minha mãe, agora. Se ficarmos aqui, não posso prometer
não beijá-la de novo.

Ainda corada e trêmula, Sophia sorriu.

— Então, talvez seja mesmo melhor sairmos daqui. Wolfe tocou-lhe o rosto quente
com a ponta do indicador.

— Você é a criatura mais linda que já vi. Foi uma sorte tremenda que tenha se
levantado antes dos outros e resolvido explorar a casa.

— Eu sempre acordo cedo. E esta manhã estava excitada, com a esperança de ver você
de novo.

Wolfe fitou-a com atenção.

— Você é sempre tão honesta, Sophia?

Ela corou.

— Eu não devia ter dito isso, não é? Papai está sempre me dizendo que sou franca
demais. Deve ser porque sempre passei muito tempo com ele e nunca escondemos nada
um do outro. Nós dizemos o que pensamos e o resto que se dane!
Uma gargalhada gostosa escapou dos lábios de Wolfe.

— Você também fala de um jeito que nenhuma senhorita bem-educada deveria!

— Falo? Foi um deslize. Papai vive xingando, e no fim eu acabei pegando o costume,
também. Isso o choca?

— De jeito nenhum! Nada que você possa fazer ou dizer será capaz de me chocar,
Sophia.

— Nada, Wolfe?

Eles se olharam com seriedade, e Wolfe sorriu.

— Nada, Sophia.

Indicando uma porta no fim do corredor, que dava para a escada em que estavam, ele
se levantou e foi abri-la, segurando-a para que Sophia entrasse. Ela olhou o cômodo com
curiosidade. Era completamente diferente do resto da casa, e tinha uma atmosfera de paz
que parecia emanar da mulher sentada junto a uma gaiola, onde um canário cantava.
Sophia examinou-a, recebendo uma impressão de beleza e serenidade. Comparando-a com
tia Maria, quem poderia culpar James Whitley por preferi-la?

A mulher retribuiu seu olhar, com uma expressão de surpresa no rosto ainda liso.
Tomando-lhe a mão, Wolfe adiantou-se alguns passos e a apresentou, como se estivesse
anunciando algo importantíssimo:

— Mamãe, esta é Sophia.

Por um instante os três permaneceram absolutamente imóveis. Depois Sophia,


impulsiva como sempre, fez uma ligeira reverência e estendeu a mão.

— Muito prazer, minha senhora. Estou feliz por conhecer a mãe de Wolfe.

— Bom dia, senhorita — a outra respondeu, ressabiada. Estava tão acostumada a ser
tratada com frieza e grosseria naquela casa, que não conseguia acreditar que um membro
da família Stonor pudesse ser amigável com ela.

Wolfe observou a mãe com um ar feliz. Logo ela também perceberia que o sorriso de
Sophia era sincero, a expressão de uma natureza afetuosa, que ele começava a achar cada
vez mais irresistível.

Sophia olhou em torno, examinando o cômodo ensolarado.

— Que bonita é a sua casa! Faz com que eu me lembre da minha.

— Faz? — Lucy ergueu os olhos para o filho, plenamente convencida de que Sophia
não era sincera.
— Como é que isso pode fazê-la lembrar-se de Queen's Stonor? — Wolfe perguntou
de imediato, com uma expressão sombria no olhar. Enraivecia-o pensar que ela mentira,
que todas aquelas reações amigáveis e impulsivas tinham sido mero fingimento.

Sophia riu.

— Já vi que você andou escutando minha tia! Ela se lembra da casa como era,
antigamente. Naquela época, minha família tinha dinheiro. Agora, Queen's Stonor é mais
modesta e aconchegante, mas muito melhor, na minha opinião.

O amor iluminava o rosto de Sophia, enquanto ela falava de seu lar, e Wolfe, que a
fitava, de repente passou a exibir a mesma expressão no olhar. Lucy notou a reação do
filho e foi tomada de assalto por uma preocupação intensa.

— Sua tia nos dá uma idéia bem diferente de Queen's Stonor — Wolfe comentou,
divertido.

— Bem, todos nós amamos o lugar em que nascemos. Quando eu era pequena,
achava que o mundo começava e acabava em Queen's Stonor. Vocês não imaginam minha
surpresa quando saí do parque que rodeia a casa e descobri que o mundo continuava, lá
fora.

— Foi ótimo você ter saído, Sophia. Senão, nunca teríamos nos conhecido!

— Ah, teríamos, sim. De algum modo, acabaríamos por nos conhecer.

O canário abriu o bico e soltou um trinado, atraindo a atenção de Sophia.

— Ele é lindo, minha senhora, mas acho triste conservar um pássaro numa gaiola.
Uma vez, um garoto lá da aldeia prendeu um tordo. Sabe que ele acabou morrendo, sem
nunca mais cantar?

Sophia continuou a olhar para o canário por um instante, depois voltou-se para ele,
sorrindo.

— Você vai adorar Queen's Stonor quando a conhecer, Wolfe.

— Acho difícil eu chegar a conhecê-la — disse Wolfe e franziu a testa, observando-a


com um ar estranhamente sombrio.

— Mas você precisa. Eu quero que a conheça. Aquela casa é especial. Todas as
pessoas que lá viveram, antes de nós, às vezes parecem estar presentes. É uma casa feliz.
Não sei se entende o que quero dizer... É como se todos estivessem fora de vista, mas
pudessem ser vistos se entrássemos bem depressa num cômodo ou num corredor. Casas
muito antigas têm uma magia especial. Nelas, tudo pode acontecer.
Wolfe fechou a fisionomia ante a nota de emoção na voz dela. Estava com ciúmes mas
ao mesmo tempo excitado com a idéia de que, se Sophia gostava de uma casa daquele
modo, na certa arderia de amor quando se apaixonasse por um homem.

— Se isso vale para todas as casas, não quero nem pensar no que essa vai ser, para os
que vierem depois de nós! — comentou ele com cinismo.

— Wolfe! — a mãe censurou-o.

— Ora, vamos, mamãe, não seja hipócrita.

Vendo a expressão magoada de Lucy, Sophia teve pena e resolveu mudar de assunto.

— Wolfe é um nome tão diferente! Como foi que o escolheu minha senhora?

— Meu pai me deu esse nome, em homenagem ao General Wolfe — Wolfe replicou,
antes que a mãe pudesse abrir a boca. — Já leu sobre ele nos livros de história, Sophia?
Alguns dos outros generais queixaram-se ao rei de que Wolfe estava louco, e o rei
respondeu que, se ele estava, sua esperança era de que mordesse todos os outros generais.

Sophia, que nunca ouvira esta história antes, riu.

— Pois é um nome que lhe cai bem. Você lembra um lobo, uma criatura selvagem que
é capaz de morder, quando provocada.

Semicerrando os olhos, Wolfe aproximou-se, falando num tom de voz íntimo, como
se estivessem sozinhos.

— Tente, Sophia. Me provoque.

— Se quer saber, acho que você não precisa de nenhuma provocação.

— De nenhuma — confirmou ele .aproximando-se ainda mais. Sophia sentiu que ele
a beijaria, se continuasse onde estava. Corando, afastou-se alguns passos. Wolfe riu de sua
atitude e, por cima do ombro, ela retribuiu o riso.

Alarmada, Lucy olhou de um para o outro. Nunca vira o filho olhar para ninguém do
modo como olhava para aquela garota. E havia também o comportamento dele na festa, na
noite anterior. O que estaria pretendendo? Seria possível que estivesse tentando se colocar
entre Stonor e a futura noiva?

Wolfe amadurecera mais depressa que os outros garotos de sua idade. Há anos
tomava suas próprias decisões, levando uma vida da qual ela não tinha a menor idéia. Às
vezes, ele a assustava. Parecia possuído pelo demônio, e, apesar de sua juventude, era um
homem com desejos poderosos e uma arrogância extrema. Ela se culpava por isso.
Trouxera o menino para uma casa dividida, onde ele crescera como um animalzinho
selvagem, odiado pelo filhos legítimos do pai, nunca se sentindo querido e sempre
consciente da hostilidade com que o encaravam.

Por vontade do próprio Wolfe, nunca fora capaz de interferir na vida dele. Desde
cedo ele tomara seu caminho, ignorando queixas e pedidos. E ela já agradecera a Deus pela
força de caráter do filho. Para uma natureza mais fraca, a vida teria sido insuportável
naquela casa. Agora, no entanto, gostaria que ele não fosse tão decidido. Um
relacionamento com Sophia Stonor só poderia prejudicar a todos. As sementes do ódio
tinham sido plantadas há muito tempo, e Wolfe poderia precipitar uma colheita violenta.

— Foi muita gentileza sua me visitar — disse à garota, com cerimônia. — Mas sua tia
já deve estar a sua procura.

— É verdade, preciso ir. Mas espero vê-la de novo, qualquer dia desses.

Lucy suspirou. Sua esperança era de nunca mais ver Sophia. Qualquer coisa que
representasse perigo para Wolfe a perturbava. Sendo uma mãe amorosa, sentia que aquela
garota era uma ameaça à segurança de seu filho.

— Vou acompanhá-la até lá embaixo — Wolfe ofereceu-se, abrindo a porta.

Lucy ficou sozinha, com uma expressão sombria no olhar. Antes de conhecer James
Whitley, sua vida fora muito dura. Ele lhe dera conforto, felicidade e amor, mas tudo tinha
um preço, e ela tivera uma educação profundamente religiosa. Por isso, temia a fúria de
Deus, que um dia poderia exigir que pagasse o pecado que cometera ao tornar-se amante
de James. No fundo de seu coração, pressentia uma tragédia.

Na escada, Sophia despediu-se de Wolfe.

— Gostei muito de sua mãe. Ela é linda. Bem diferente de você — brincou.

Ele sorriu, mostrando os dentes muito brancos.

— Quer dizer que você não me acha bonito?

— Nem um pouquinho.

Tomando-lhe a mão, Wolfe examinou-lhe o formato com atenção.

— Quando nos veremos de novo?

— Que tal amanhã?

— A que horas?

— Eu acordo de madrugada.

— Deus do céu! — Wolfe fez uma careta. Normalmente, ia para a cama de


madrugada. — Às sete está bem? Podemos nos encontrar aqui mesmo. Estaremos seguros,
pois os criados nunca vêm para este lado. E já sei o que vamos fazer: vou levá-la para ver
as ruas de Londres, antes da cidade acordar! Tudo fica completamente diferente.

Sophia sabia que Stonor e Grey costumavam sair para o trabalho com o pai, de
manhã cedo, só voltando ao anoitecer. Durante o dia, era forçada a passar a maior parte do
tempo com a tia e a prima, e, entre as duas, preferia tia Maria.

Maria, apesar de não simpatizar facilmente com as pessoas, gostara de Sophia desde
o início. Provavelmente por Sophia ser uma Stonor e, como ela, vir de uma casa que
figurava em seus sonhos como um paraíso perdido. Para Maria, era uma felicidade ter
alguém com quem pudesse falar de sua paixão. Além do mais, havia outro fator
influenciando seu relacionamento com a sobrinha: a filha a desprezava e não fazia segredo
disso. Sophia, ao contrário, tinha pena da tia e a tratava com delicadeza, o que a fazia
voltar-se para a garota como uma flor se volta para o sol.

Além de Tom Lister, o único interesse de Elizabeth parecia ser fazer compras. Passava
horas andando pelas ruas comerciais de Londres, comparando preços e tecidos,
comprando uma coisa aqui e outra acolá. Sophia já notara que a prima tinha tino para o
comércio, sendo capaz de pechinchar com grande eficiência. Mas nunca lhe dissera isso,
pois sabia que Elizabeth se sentiria ofendida.

Aquela noite, depois do jantar, tia Maria deu um jeito de sair da sala com Elizabeth e
Grey, deixando Sophia e Stonor sozinhos. Sophia viu-os partir com uma expressão
apreensiva no rosto.

— Como fez para se divertir hoje, Sophia? — Stonor lhe perguntou, fitando-a com
seus olhos frios.

— Conversei com sua mãe...

— Sobre Queen's Stonor?

Mais uma vez Stonor usou aquele tom seco e irônico, que ela começava a associar a
ele.

— Isso mesmo! — Sophia ergueu a cabeça, num gesto de desafio, e o olhar dele fixou-
se em seus cabelos escuros.

— Você deve amar muito a sua casa.

— Amo, sim.

Ela achava difícil conversar com o primo. Stonor tinha um gênio completamente
diferente do seu, franco e aberto. Observando sua inquietude, Stonor pediu:

— Quer tocar alguma coisa para mim?


Sophia levantou-se de imediato, traindo sua ansiedade para afastar-se dele. Stonor
seguiu-a e apoiou-se no piano, enquanto ela dava início a uma valsa alegre. Mas a
lembrança de Wolfe logo intrometeu-se em seus pensamentos, e a música criada por seus
dedos mudou para uma melodia romântica é sonhadora. Sem querer, com um leve sorriso
nos lábios, tocou com grande profundidade de sentimentos. Uma vez, ergueu os olhos e
deu com os de Stonor fixos em seu rosto. Não havia neles a menor expressão.

Alegando cansaço, Sophia foi cedo para a cama. Dormiu quase que de imediato e
acordou no dia seguinte com a luz da aurora. Vestindo-se rapidamente, saiu para o
corredor e deparou com Wolfe. Nenhum deles escondeu o prazer que sentia, em se rever.
O tempo custara a passar, desde que haviam se despedido.

Por uma porta lateral, Wolfe levou-a para as ruas silenciosas de Londres.
Caminharam desde a praça elegante diante da casa dos Whitley até as aléias sujas e
estreitas que davam no rio. Sophia não conteve o entusiasmo ao ver um dos novos navios a
vapor, mas horrorizou-se ao notar a velha maltrapilha que procurava algo no fundo de um
esgoto, com água até a cintura.

— O que é que ela está fazendo?!

— Está procurando moedas e outras coisas de valor — Wolfe respondeu com


indiferença. — De vez em quando, elas vêm com a água do esgoto.

Sophia estremeceu.

— Coitada! Será que não há outra coisa que ela possa fazer?

— Se houvesse, ela não estaria aqui. Mas neste ano da graça de 1870, as mulheres
velhas têm que agarrar o que podem. — Seus olhos brilharam de raiva. — Todos nós temos
que agarrar o que podemos, Sophia. São os fortes que sobrevivem. Os fracos são arrasados.
— Vendo-a estremecer novamente, ele acrescentou com uma certa tristeza: — Eu não devia
ter trazido você para cá...

— Mas eu gostei de vir! Gostei de ver aquela mulher. Pobre coitada...

Sophia enfiou a mão na bolsa e tirou um punhado de moedas.

Estava a ponto de chamar a mulher, quando Wolfe segurou-lhe o pulso e sacudiu a


cabeça.

— Guarde seu dinheiro — disse com aspereza.

— Wolfe! É tão pouco, e eu tenho tanto!

Wolfe tirou uma moeda do própio bolso e jogou-a para o ar. Os olhos da velha
seguiram com avidez o arco descrito pela moeda até vê-la cair na lama. Movendo-se com
rapidez, ajoelhou-se para pegá-la, enquanto Wolfe segurava o braço de Sophia e tirava-a
dali, sem um olhar para trás.

De volta para casa, eles passaram por uma feira de rua onde Wolfe comprou uma
maçã para Sophia. Ela viu, pelo modo como o feirante brincou com ele, que o rapaz era
bem conhecido naquelas ruas.

— Guarde bem esse moço de noite, madame — o homem ainda gritou, quando iam
se afastando. — Senão ele é capaz de pegar alguma coisa, com aquelas moças de Ratcliffe.

O pessoal das outras barracas riu, e Sophia olhou para Wolfe.

— Não entendi nada...

Uma expressão divertida surgiu no rosto dele.

— Qualquer dia desses, vamos dar uma olhada naquela rua. Aí, você vai entender.

Ela fitou-o, meio insegura, mas logo riu.

— Acho que você é meio depravado, Wolfe!

— E isso a choca?

— Terrivelmente!

— Mentirosa! — Tomando-lhe a mão, beijou-a na palma quente e macia.

— Eu gostaria de ser homem — Sophia comentou, pensativa. — Os homens são tão


livres. E como se divertem!

Wolfe jogou a cabeça para trás, explodindo numa gargalhada.

— Pois eu estou muito contente por você não ser, meu bem. Juntos, podemos nos
divertir mais como somos. Acredite em mim!

Ao entrar novamente em casa, Sophia quase foi vista com Wolfe por Stonor, que
descia para o café da manhã, com a expressão fechada de sempre.

— Você está muito corada, Sophia — ele comentou, quando a viu na sala de refeições,
dez minutos depois. — Está se sentindo bem?

— Muito bem, obrigada — ela replicou, revelando sua felicidade no brilho dos olhos.

Por sugestão de tia Maria, aquela noite Stonor levou-a para jantar num restaurante.
Eles estavam saindo, quando Wolfe entrou em casa. Stonor virou o rosto para o lado,
ignorando o meio-irmão, mas Sophia dirigiu-lhe um sorriso discreto, adorando vê-lo. Ao
passarem um pelo outro, Wolfe roçou-lhe a mão numa carícia íntima, cuja lembrança ela
ainda levava consigo, ao entrar com Stonor na carruagem da família.
Da porta, Wolfe observou-os acomodarem-se na carruagem, antes de saírem. Stonor,
por sua vez, observava a expressão feliz de Sophia ao retribuir o olhar de Wolfe. Irritado,
ele virou a cabeça de cabelos claros e encarou o meio-irmão. Wolfe enfrentou-o,
estreitando os olhos. Quando a carruagem partiu, Stonor ainda o fitava, com o rosto
fechado numa expressão dura e fria.

Durante o jantar, Stonor fez muitas perguntas a Sophia sobre Queen's Stonor e seu
pai. Ouviu com atenção as respostas, mas mesmo assim achou difícil ser tão franca quanto
era com Wolfe. Stonor tinha algo que a assustava e mantinha a distância. Seu olhar parecia
atravessá-la, mas nunca revelava nada de pessoal. Parecia haver uma parede entre os dois,
que Stonor jamais permitiria que ultrapassasse, e isso aumentava a hostilidade que sentia
por ele.

Na manhã seguinte, Sophia encontrou-se de novo com Wolfe. Juntos, eles


perambularam pelas ruas de Londres, passando por um policial que os fitou desconfiado,
até Wolfe sorrir para ele. Aí, sorriu também e disse:

— Bom dia, senhor. Levantou cedo, hein? Ou está voltando para casa tarde?

A alegria do policial contagiou Sophia, que também sorriu. Quando ele se afastou,
com seus passos pesados, Wolfe fez aquela expressão calorosa que só mostrava quando se
dirigia a ela, segurou-lhe a mão e apertou-a de leve.

Eles conversaram livremente, passando de um assunto para o outro, sem nada


esconder a respeito de si mesmos, pois não sentiam necessidade de se autoprotegerem,
quando estavam juntos. Vendo Wolfe conversar com outras pessoas, Sophia notou não só o
charme que ele exibia, como também uma certa rudeza. Ele tinha a personalidade mais
complexa que já vira, mas ela nunca se sentira tão à vontade com alguém. Até o amor pelo
pai, que sempre fora o ponto máximo de sua vida, começava a passar para o segundo
plano.

A Londres de Wolfe era muito diferente da Londres de Stonor e Elizabeth. Wolfe


amava a vida e a alegria das ruas do cais, onde as pessoas eram pobres e trabalhavam
duramente, em meio ao barulho, palavras de encorajamento, cantos e comentários
picantes, feitos aos gritos.

Naquela noite, Stonor levou-a para ouvir música na casa de uns amigos, tratando-a
com seu jeito frio de sempre, os dedos mal lhe tocando o cotovelo, enquanto caminhavam
lado a lado. Sentada entre aquelas mulheres elegantes e bem-educadas, Sophia lembrou-se
das pessoas que vira pela manhã e sufocou um sorriso. Em torno dela, a conversa era sobre
criados, chapéus e o preço do peixe. Sentia-se tão aborrecida, que teve dificuldade em
reprimir um bocejo.
Stonor levou-a cedo para casa. Quando desciam da carruagem, Wolfe saiu pela porta
da frente. Sophia olhou-o de esguelha, com um sorriso malicioso nos lábios, certa de que
ele esperara que chegassem para sair. De propósito, deixou cair as luvas e Wolfe inclinou-
se para pegá-las, devolvendo-as com uma ligeira reverência.

— Obrigada — ela disse baixinho, encostando a mão na dele por um instante.

Stonor aproximou-se, mais pálido do que nunca, e Wolfe lançou-lhe aquele olhar
duro e perspicaz, tão característico de sua personalidade quanto o sorriso charmoso.

"Stonor está estranho", Sophia pensou, com um medo repentino de que ele tivesse
descoberto seu relacionamento secreto com Wolfe. Estivera brincando com fogo ao sorrir
para Wolfe daquele modo, mas não pensara que Stonor pudesse notar seus modos.

Os dois rapazes fitaram-se como cães preparando-se para uma briga, numa
hostilidade silenciosa e com um brilho sombrio no olhar. O silêncio entre eles se estendeu
por alguns segundos. Depois Wolfe afastou-se, balançando a bengala no ar, e Sophia
dirigiu-se à casa, com Stonor seguindo-a a poucos passos de distância.

Capítulo III

Dois dias depois, Elizabeth levou Sophia para conhecer a Torre de Londres.

— O caminho para a Torre não é muito bonito — ela comentou, quando se dirigiam
para lá. — Passa por um monte de cortiços. Tom acha que já está na hora de termos outro
incêndio como aquele que queimou Londres, anos atrás. — Seus olhos adquiriram um
brilho estranho, como se achasse a idéia excitante. — Seria uma coisa boa de se ver.

Vendo o cocheiro lançar um olhar de raiva para a prima, Sophia replicou:

— Mas não seria bom para as pessoas que vivem aqui.

— Ah, os pobres sempre acham outro buraco onde se esconder. Existem tantos deles!
A culpa é desses radicais, que vivem falando em melhorar as condições do povo. Esses
sujeitos se esquecem de que ninguém pediu para essa gente vir morar aqui. Eles podiam ir
para outro lugar. Se continuam aqui, é porque gostam de viver como porcos num
chiqueiro.

— Acha mesmo que eles gostam de viver assim? Você gostaria, Elizabeth?

Elizabeth riu.

— Claro que não! Eu não agüentaria essa sujeira nem por um minuto.
Sophia não duvidou disso. Debaixo daquele ar bonito e feminino, Elizabeth era uma
mulher dura, capaz de lutar com unhas e dentes pelo que queria.

— Com a sua beleza, Elizabeth, tenho certeza de que logo estaria vivendo em
conforto — concedeu.

Os ombros do cocheiro sacudiram-se num riso silencioso, e Elizabeth endireitou o


corpo, corada de raiva. Mas logo em seguida levou a mão à boca, abafando o riso.

— Sophia, seu comentário não foi próprio de uma dama!

— Mas foi próprio de uma pessoa que pensa — Sophia retrucou, sem se arrepender.

Passando pelas ruas estreitas que iam dar no rio, elas viram gaivotas mergulhando na
água, atrás dos pedaços de peixe que as peixeiras lançavam fora. Junto à margem,
garotinhos esfarrapados arrastavam-se de joelhos, vasculhando o fundo do rio. — Eles
ganham a vida vendendo as garrafas que encontram na água — Elizabeth explicou.

— Coitadinhos! — exclamou Sophia, com os lábios trêmulos.

Por baixo da sujeira, as crianças eram pálidas e magras, e algumas não deviam ter
mais que seis anos de idade. Em Somerset, ela nunca vira tanta pobreza. Lá, as pessoas
eram limpas e sadias, com uma ocupação certa e um lugar na sociedade. Cultivavam
hortas, tinham galinhas e, às vezes, até mesmo um porco. Sua alimentação podia não ser
variada mas era boa, com ovos, queijo e leite todos os dias, e carne fresca pelo menos uma
vez por semana. As crianças de Londres, no entanto, não deviam ver carne nem uma vez
por ano!

O cocheiro levou o chicote ao chapéu preto, quando Elizabeth mandou que as


deixasse na Torre e voltasse dentro de duas horas.

Sophia não conteve um arrepio, ao fitar a velha fortaleza de pedras cinza. E foi com
uma estranha sensação que cruzou a ponte elevadiça sobre o fosso seco, pois as paredes
escuras e frias evocavam a atmosfera que circundava Stonor.

— Sendo uma moça do campo, você deve achar Stonor muito diferente dos homens
que conhece — Elizabeth comentou, de repente.

— Muito — Sophia confessou com sinceridade, sem acrescentar que ele também a
confundia e perturbava.

Pelos gramados bem cuidados da fortaleza, corvos passeavam sob o olhar


benevolente dos guardas vestidos de vermelho, com botões dourados.

— Eu me dei ao trabalho de decorar algumas coisas sobre este lugar — disse


Elizabeth, com ar aborrecido. — Esta é a White Tower, onde a rainha Elizabeth ficou presa
com outras pessoas bem pouco interessantes, das quais esqueci os nomes.
Sophia riu.

— Não se preocupe por minha causa, prima. Eu só quero dar uma olhada.

— Esse negócio de história é tão aborrecido, não é? — comentou Elizabeth, aliviada.

Elas chegaram à margem verdejante do rio, onde uma fileira de antigos canhões
apontava para o outro lado do Tâmisa, como que à espera de uma invasão a qualquer
momento. Sophia, cujos pés doíam, sentou-se num banco para descansar. Logo depois,
surpreendeu Tom Lister caminhando naquela direção.

— Prometa que não vai contar a mamãe que vimos Tom Lister, Sophia — Elizabeth
pediu, de imediato.

— Não sou uma linguaruda, prima.

— Eu sabia que podia contar com você! Não é sempre que consigo sair sozinha, e
quando Tom vai nos visitar, mamãe não sai da sala nem por um segundo.

— Bem que eu me admirei da sua boa vontade em me trazer até aqui — brincou
Sophia, sorrindo.

Elizabeth retribuiu o sorriso, com os olhos brilhantes de excitação.

— Você não se importa, não é? Mamãe é muito mais condescendente com você e
Stonor.

Tom Lister juntou-se a elas, e Elizabeth fitou-o com malícia.

— Mas que coincidência encontrarmos você aqui! — Sophia exclamou, fazendo o


rapaz corar.

De imediato, Elizabeth interferiu.

— Vamos dar uma caminhada?

— Eu não vou — recusou Sophia. — Meus pés doem demais. Mas o senhor pode
levar Elizabeth para ver o resto da Torre, sr. Lister. Eu espero aqui.

Tom fingiu hesitar, mas depois os dois se afastaram e Sophia ficou só, observando o
cenário. O rio serpenteava como uma cobra entre as docas e os bancos de areia, e gaivotas
gritavam no ar. De repente, uma figura esbelta sentou-se ao seu lado e ela se virou, dando
com o rosto moreno de Wolfe.

— Wolfe?! O que é que você está fazendo aqui? Alguém pode nos ver.

— O cocheiro me disse onde vocês estavam. Eu vi Tom Lister sair com Elizabeth.
Aquela vagabunda! Eu gostaria que ele acordasse e visse o que realmente há por baixo
daqueles lindos olhos azuis, mas o coitado está cego. Quando ele descobrir a verdade, já
será tarde.
— Você não devia ter vindo, Wolfe. Será ruim, se nos virem juntos!

— Será mesmo — ele concordou, sem ligar. Com um suspiro, Sophia voltou a fitar o
rio. Eram seus encontros secretos com Wolfe que tornavam aquela visita a Londres
suportável, mas ela não podia fechar os olhos à realidade.

— Você sabe que devo me casar com Stonor — murmurou.

Wolfe endireitou o corpo.

— Lembra-se do que me disse sobre não conservar pássaros em gaiolas? Se você se


casar com ele, estará se fechando numa gaiola da qual nunca poderá escapar.

— Não é tão simples assim. Meu pai está arruinado. Eu tenho que me casar com
Stonor.

— Mas ele herdará a casa de qualquer maneira.

— Só que ele não a ama como eu. Queen's Stonor precisa de dinheiro, mas também
precisa de amor.

Os olhos de Wolfe brilharam, zangados.

— Você se venderia por uma casa?

Sophia mordeu o lábio.

— Você não entende... Stonor foi escolhido para mim, pelo meu pai, Queen's Stonor
está morrendo e eu tenho que salvá-la. É a vontade de meu pai, que eu amo tanto, assim
como a Queen's Stonor.

— E eu? — Wolfe perguntou, num tom baixo e rude.

Fitando-lhe o rosto amargo, Sophia descobriu uma força e uma determinação que
nunca vira antes e que a assustaram.

Wolfe inclinou-se e prendeu-a nos braços. Separou brutalmente seus lábios, forçando-
a a se submeter sem nada da gentileza com que a tratara das outras vezes. Só quando ela
parou de lutar, acalmou-se e deslizou as mãos por seus braços, tomou-lhe os seios num
gesto de silenciosa possessão.

Sophia começou a ceder e ele gemeu, roçando a boca por seu pescoço.

— Você não deve pensar em Stonor, Sophia. Você é minha. Encontraremos uma saída,
eu juro! Vou falar com meu pai, fazer com que ele lhe dê algum dinheiro para que
possamos nos casar logo. Logo — repetiu, acariciando-a apaixonadamente. — Não vou
conseguir esperar muito!

Vozes soaram à distância, e Wolfe levantou-se de um salto, desaparecendo em poucos


segundos. Momentos depois, Elizabeth e Tom surgiram.
— Chegamos, Sophia! — Elizabeth exclamou, com um sorriso falso e açucarado. —
Ah, como estou contente por você estar aqui! Eu sempre quis ter uma irmã.

Tom olhou-a com adoração, sem duvidar de nenhuma palavra, e Sophia sentiu pena
dele.

No dia seguinte, depois do jantar, tia Maria e Sophia sentaram-se na sala de estar,
conversando sobre Queen's Stonor.

— Ah, os bailes que costumávamos dar naquela época! — lembrou tia Maria. — Os
cômodos eram iluminados com centenas de velas, e metade do condado comparecia.

"Não é de admirar que o dinheiro tenha sumido", pensou Sophia, enquanto a tia
falava das visitas que fizera a Bath, uma elegante estação termal.

— Sua avó uma vez dançou com o Duque de Wellington, Sophia!

Sophia disfarçou um sorriso. Ouvira seu pai contar esta história, em meio a risos,
depois de beber um pouco. Segundo ele, o duque fizera uma proposta indecente a sua avó,
que recusara polidamente.

— Isso foi o que minha mãe contou ao meu pai — Edward Stonor dissera, sorrindo.
— Mas não duvido que ela tenha respondido polidamente. Afinal de contas, foi um
grande elogio. O duque era muito cotado entre as mulheres. Segundo se diz, ele venceu
tantas batalhas no quarto quanto no campo.

Sophia baixou os olhos para esconder seu riso, enquanto a tia continuava a falar do
duque com entusiasmo.

— Um grande homem, Sophia. Ele se colocou entre a Inglaterra e a derrota e


conseguiu vencer.

Seria possível que o duque também tivesse vencido com sua avó? Sophia ergueu os
olhos para a tia, que lhe sorriu com afeto.

— É bom ver o seu rostinho bonito e sorridente por aqui, Sophia. Esta casa nunca foi
feliz, mas você está mudando tudo.

Nesse momento, Stonor entrou e tia Maria disse depressa:

— Stonor já lhe mostrou as samambaias da estufa? São muito raras e bonitas. —


Voltou-se para o filho: — Leve Sophia para vê-las, meu querido.

Stonor concordou, com o rosto inexpressivo. Corada e confusa, Sophia não teve
escolha, a não ser acompanhá-lo. Fechando a porta da estufa atrás de si, ele surpreendeu o
olhar tenso com que ela o fitava.
— Não podemos deixar escapar o ar quente, senão as plantas morrem — explicou ele
com frieza.

Sophia pôs-se a caminhar pela construção de teto de vidro, contemplando sem


interesse as plantas que lá estavam. O cheiro de folhas e terra chegou-lhe às narinas.
Recostado na porta, com os braços cruzados diante do peito, Stonor a observava com os
estranhos olhos claros. Em suas roupas escuras, parecia distante e inatingível.

Cheia de nervosismo, Sophia virou-se para ele e comentou:

— São plantas muito interessantes, primo.

De imediato, o rosto frio e bonito assumiu um ar irônico.

— Você sabe que não viemos até aqui para admirar as plantas, Sophia.

Ela deu-lhe as costas depressa, trêmula. Stonor aproximou-se até ficar a um passo.
Sentindo-lhe a proximidade, ela arrepiou-se da cabeça aos pés.

— Minha mãe espera que saiamos daqui formalmente comprometidos.

Sem perceber o que fazia, ela ergueu a mão e passou-a pela superfície de uma folha.

— Quer que eu lhe faça uma declaração formal, Sophia?

Sophia pensou em Wolfe, e seu corpo foi tomado por um espasmo de tristeza tão
forte, que ela quase gritou. Mas logo lembrou-se do pai. Ele a mandara a Londres para se
casar com Stonor. Queria que a casa ficasse com alguém que a amasse e, mais tarde,
passasse para um herdeiro com o sangue dos Stonor. Essa era sua maior esperança e único
consolo, pois sabia que o nome Stonor morreria quando ele morresse.

— Diga alguma coisa, Sophia — Stonor pediu com uma aspereza repentina. — Isso
não pode ser uma surpresa para você. Afinal, veio para cá sabendo o que esperavam de
nós.

Relutante, ela se virou, endireitando o corpo naquele gesto inconsciente de desafio,


que era uma de suas características.

— Você me surpreendeu, fazendo o pedido tão cedo. Nós mal nos conhecemos,
Stonor. Não pode me dar mais algum tempo?

— Para quê? Esta não é uma união por amor, Sophia. Seu pai a mandou a Londres
para se casar comigo.

Com o rosto ardendo de raiva, ela o fitou. Aquele jeito de falar, frio e preciso, feria
seu amor-próprio. Podia não gostar de Stonor, mas não queria ser tratada como uma peça
de mercadoria que ele estava disposto a comprar, embora sem o menor entusiasmo.
— Você podia fingir um pouco mais de interesse por mim, Stonor?! — jogou-lhe na
cara.

Ele ergueu as sobrancelhas, com ar irônico.

— Ficou desapontada com a minha honestidade, Sophia? Engraçado, pensei que você
também tivesse uma queda pela sinceridade. Mas se é como minha irmã e prefere que a
verdade venha disfarçada, não me importo de cooperar e fazer o papel de amante
ardoroso.

Sem lhe dar tempo para reagir, Stonor segurou-a entre as mãos fortes e inclinou o
rosto frio e bonito em direção ao dela.

Sophia gelou, enjoada e enraivecida. Tentando livrar-se, jogou a cabeça para trás e
empurrou-o com as mãos.

— Não me toque!

Fitando-a, viu os olhos claros e frios iluminarem-se de raiva. Ele tornou a puxá-la
para junto de si, agarrando sua cabeça e enterrando os polegares em seus cabelos. Sem
piedade, forçou os lábios frios sobre os seus, esmagando-os de encontro aos dentes de tal
modo, que ela sentiu sangrar a gengiva.

Desesperada, pôs-se a lutar com mais intensidade, atingindo-o com os punhos


fechados e chutando-lhe os tornozelos. Mas, em vez de fazê-lo desistir, verificou,
horrorizada, que só estava conseguindo excitá-lo ainda mais. Descendo as mãos para suas
costas, Stonor inclinou-a para trás até fazê-la compreender que cairia, se continuasse a
lutar. Forçando-a então a entreabrir os lábios, introduziu a língua em sua boca, numa
invasão que a apavorou.

Meio desfalecida sob aquele ataque, Sophia cambaleou, obrigando-o a apoiá-la de


encontro ao corpo rijo e esbelto. Sua cabeça caiu para trás, e ele aproveitou-se disso para
deslizar a boca por seu pescoço exposto.

Ela estava completamente tonta, com o corpo trêmulo de medo e repulsa. Em meio à
névoa que ameaçava engolfá-la, percebeu que Stonor acariciava seus seios e com a boca
explorava seu rosto. Respirava depressa e o coração batia tão forte quanto o seu.

— Stonor! — tia Maria exclamou, num tom ao mesmo tempo de censura e satisfação.
— Meu querido, nem um casal de noivos toma essa liberdade!

Stonor enrijeceu e endireitou o corpo, largando Sophia. Cambaleante, os olhos cheios


de lágrimas, ela levou a mão trêmula à boca machucada.
— Olhe, só, você assustou a menina! — Tia Maria abraçou-a, sinceramente
preocupada. — Venha, minha filha, você precisa se deitar. Está tão pálida! Stonor, estou
muito aborrecida com você!

De pé entre os vasos de samambaia, com os olhos brilhantes e o rosto muito corado,


ele viu a mãe afastar-se com Sophia, que chorava baixinho.

No quarto, tia Maria ajudou-a a deitar-se e sentou-se a seu lado, esfregando-lhe as


mãos geladas.

— Pronto, pronto, não precisa ficar assim! Eu sei que foi um choque. Também senti o
mesmo. Você não tem mãe, e eu devia tê-la avisado. A culpa foi minha. Os homens são uns
brutos insensíveis... Até Stonor, apesar de ser meu filho! — Os lábios dela se crisparam de
desgosto. — As mulheres têm que suportar essas coisas, Sophia. Temos que cumprir nosso
dever. Foi a mesma coisa, para mim. Tão nojento e assustador! — Interrompeu-se por um
momento, cheia de amargura. — Minha noite de núpcias foi horrível. Acredite em mim, eu
sei o que você sentiu, agora há pouco.

Sophia virou-se de bruços e chorou desconsoladamente. Cheia de simpatia, a tia


acariciou-lhe os cabelos e os ombros trêmulos.

Nada poderia ter comovido tanto Maria Whitley, quanto aquela reação da sobrinha.
Seu afeto por Sophia fortificou-se, pois ela viu na garota o mesmo choque e desgosto que
sentira em sua noite de núpcias, ao ser possuída por um homem que não entendia sua
completa ignorância dos fatos da vida. Na época, muito educada para gritar, permanecera
deitada, trêmula de horror, enquanto o marido usava seu corpo sem compreender a dor
que lhe causava. Nunca havia se recuperado dos momentos horríveis. Desde aquela noite,
passara a encarar James Whitley como um animal bruto e insensível.

— Tente entender Stonor, minha querida — pediu à sobrinha, com gentileza. — Os


homens merecem pena. Têm uma natureza mais animalesca que a nossa.

Quando afinal ficou sozinha, Sophia tirou as roupas e examinou-se no espelho da


penteadeira. As marcas da boca e das mãos de Stonor eram claramente visíveis em seu
corpo, e ela estremeceu.

"Deus do céu", pensou, "não vou suportar!"

Nunca achara atraente a delicadeza fria e normal de Stonor, mas aqueles momentos
nos braços dele tinham-lhe mostrado um homem que a apavorava. Não aceitava a idéia de
passar o resto da vida com um marido cujas carícias lhe causavam repulsa.

"O que vou fazer?", perguntou-se, desesperada.


Mas não tinha outra escolha, pois seu pai queria que se casasse com Stonor. Quando
viera para Londres, no entanto, jamais pensara que pudesse acabar odiando o homem que
a família escolhera para ela.

Wolfe falara com muita certeza em conseguir que o pai os sustentasse, mas Stonor
também era filho de James Whitley, e legítimo. Seria possível que houvesse esperança para
eles, desse ponto de vista?

Sophia passou a noite inteira virando e revirando na cama. Quando desceu para o
café da manhã, estacou, gelada, à porta da sala de refeições. Da mesa, Stonor fitava-a com
seus olhos frios e claros. Não havia mais ninguém ali.

De repente, erguendo o queixo, Sophia caminhou até a mesa e sentou-se. Não queria
que ele visse o quanto estava amedrontada, por isso forçou-se a comer o que a criada lhe
serviu.

— Pode ir, Lucy — Stonor mandou, abruptamente.

A criada fez uma reverência e saiu, sem disfarçar a curiosidade. Todos sabiam que
Sophia viera a Londres para se casar com Stonor.

Depois de alguns momentos de um silêncio tenso, Stonor disse, numa voz


estranhamente rouca:

— Eu quero lhe pedir desculpas, Sophia. Ontem à noite, perdi a cabeça.

Ela continuou como estava, fitando a mesa, com a garganta seca de medo. Logo
depois, ouviu-o soltar uma exclamação rude e baixa e empurrar a cadeira para trás. Cheia
de tensão, apertando a colher que segurava até os dedos ficarem brancos, esperou que ele
desse a volta à mesa. Sentia-se mal, como se estivesse a ponto de vomitar.

Stonor segurou-lhe o queixo, forçando-a a levantar a cabeça e encará-lo.

— Olhe para mim — ordenou, baixinho.

— Será que vou ter que gritar por socorro, antes que você me deixe em paz? —
Sophia perguntou, com amargura.

Ele aspirou o ar e soltou-o de modo ruidoso. Nesse momento tia Maria apareceu na
sala silenciosa, o que o fez virar-se, indo até a janela.

Notando a palidez de Sophia e o jeito do filho, tia Maria indagou:

— Não quer visitar Kew Gardens hoje, Sophia? O tempo está ótimo e o passeio é
muito agradável.

— Quero sim, tia — Sophia aceitou de imediato, pensando em como seria bom passar
um dia inteiro longe de Stonor e da atmosfera pesada daquela casa.
— A carruagem estará na porta dentro de dez minutos. Vá colocar um chapéu, minha
filha.

Sophia saiu correndo e colocou um lindo chapéu verde, enfeitado com flores e fitas
brancas. De volta ao hall, beijou a tia com afeto e desceu correndo os degraus da escada
que dava para a rua. Mas parou bruscamente, com o rosto pálido de medo, ao ver que
Stonor a esperava, sozinho, na carruagem.

Notando sua presença, Stonor desceu e segurou-a pelo cotovelo. Tia Maria observou-
os com atenção, e o cocheiro virou-se para fitá-los, pressentindo alguma coisa. Os frios
olhos cinzentos pousaram no rosto de Sophia. Depois de uma ligeira hesitação, ela aceitou
a ajuda para entrar na carruagem.

Durante algum tempo eles permaneceram em silêncio, os olhos fixos nas ruas
estreitas e movimentadas. Depois Stonor começou a falar dos lugares que atravessavam,
citando trechos da história da cidade e apontando casas de amigos. As ruas estreitas
cederam lugar a avenidas mais largas, e estas, a estradas rurais.

Sophia podia sentir a curiosidade do cocheiro. Ele era amigo de Wolfe e,


provavelmente, contaria ao rapaz tudo que ouvisse. Talvez Stonor também soubesse disso,
pois estava tendo o cuidado de só falar em trivialidades.

Em Kew, eles encontraram os jardins silenciosos e meio vazios. Stonor deu ordem ao
cocheiro para tomar alguma coisa numa taverna próxima, enquanto os cavalos
descansavam, e pôs-se a caminhar com Sophia, segurando-lhe o braço de leve.

Olhando para a figura esbelta e ereta a seu lado, Sophia achou difícil acreditar que ele
fosse o mesmo homem que tanto a assustara, na noite anterior. O rapaz de voz fria e
expressão enigmática voltara...

Os Jardins Botânicos de Kew eram muito bem cuidados, mas Sophia, embora parasse
e olhasse para tudo que Stonor indicava, não via nada. Afinal, ele se deteve diante de um
banco.

— Vamos nos sentar um pouco? Você deve estar cansada. Ela sentou-se com
relutância, mantendo os olhos baixos e brincando nervosamente com as luvas. Stonor
recostou-se, esticou as pernas diante de si e fitou-a.

— Até agora, você mal falou comigo, Sophia.

Sophia continuou em silêncio, e ele perguntou num tom estranho que ela não soube
interpretar:

— Eu a assustei tanto assim?

O sangue subiu-lhe ao rosto. Torceu as luvas entre os dedos e confirmou:


— Assustou...

Stonor inclinou-se para a frente e colocou uma das mãos sobre seus dedos. De
imediato ela se encolheu, assustada, e ele disse algo que lhe pareceu um palavrão. Mas
logo em seguida prometeu, num tom gentil:

— Eu lhe dou minha palavra de que não vou mais assustá-la. — Fez uma pausa,
depois prosseguiu: — Mas podemos falar sobre o que aconteceu? Eu sei que você é muito
jovem é foi criada de um modo fechado.

— Sua mãe disse... — Sophia começou, mas ele a interrompeu com um gesto brusco e
amargo.

— Não dê ouvidos a minha mãe, Sophia.

— Ela é muito boa!

Um riso frio escapou dos lábios dele.

— Eu não gostaria que encarasse esses assuntos como a minha mãe, Sophia. Sei o que
ela pensa, porque a ouvi conversando com minha irmã muitas vezes. Mas você não é como
elas. Não se deixe levar pela opinião de minha mãe, Sophia!

Sophia fitou as mãos. Não tinha o mesmo ponto de vista de tia Maria sobre aquelas
coisas mas não queria dizer, com medo de provocar outra demonstração de paixão da
parte de Stonor.

— Você tem a mente forte e aberta, Sophia, sem nada da hipocrisia e da estupidez da
minha irmã. Na noite da festa eu a observei dançando, e a sua alegria e divertimento eram
mais brilhantes que a luz das velas. Se não tomar cuidado, minha mãe abafará isso em
você. Não ouça o que ela diz, Sophia! Em vez disso, confie no seu próprio instinto.

Fascinada, Sophia ergueu os olhos para Stonor. Ele falava com franqueza, num tom
firme e frio, e ela reagiu favoravelmente a isso. Mesmo assim, censurou:

— Você não devia falar assim da sua mãe.

O rosto dele se crispou.

— Ah, Sophia, está prestando atenção no que diz? Está repetindo uma hipocrisia
social e sabe disso.

— Eu nunca diria uma palavra contra o meu pai! — ela continuou, zangada.

— Talvez não haja nada a dizer.

De repente ela riu, e seu rosto se iluminou.

— Não há mesmo. Papai é um amor.


— É? — Um sorriso estranho surgiu nos lábios de Stonor. — Você deve ter saído a ele,
então.

Sophia corou diante do elogio, e, num gesto rápido, Stonor levou suas mãos à boca,
beijando-as de leve, fazendo-a estremecer.

— Ainda está com medo de mim, Sophia? Quer que eu lhe dê minha palavra de
honra de que não vou mais me descontrolar, quando estivermos sozinhos? Pois eu lhe
darei, se em troca você prometer que não se deixará influenciar pelo ódio que minha mãe
tem pelos homens.

Ela baixou os olhos.

— Prometo — disse, sabendo que era uma promessa fácil de cumprir.

Por entre os cílios escuros, fitou-o disfarçadamente e viu que ele a observava de um
jeito estranho. Ainda segurava suas mãos e as beijou de novo, deslizando a boca até seus
pulsos e empurrando os punhos do vestido, para torná-la mais consciente da intimidade
da carícia.

— Assim é mais do seu gosto, Sophia? — Stonor perguntou, examinando-a com fria
especulação.

Incapaz de outra coisa, Sophia retribuiu o olhar, lamentando não poder dizer que
achava a carícia repulsiva. Os lábios masculinos continuaram a brincar com suas mãos,
beijando cada um de seus dedos e entreabrindo-se para que pudesse sentir-lhes a umidade
interna.

— Vai se casar comigo, Sophia?

Ela gelou.

— Dê-me tempo, Stonor, por favor! Não exija uma resposta agora.

Um sorriso quase alegre surgiu nos lábios dele.

— Está bem, mas não me faça esperar demais.

— Prometo que não.

— Ah, Sophia, de vez em quando você é tão submissa e meiga! É incrível a sua
feminilidade! Quando minha mãe assume esse tipo de atitude, causa repulsa porque é
tudo fingimento. Com você, no entanto, dá para se ver que a meiguice é verdadeira.

A expressão dos olhos dele fez com que ela se levantasse e afastasse depressa. Mas
Stonor a seguiu, alcançando-a sob uma limeira.
— Não vou machucar você, Sophia — disse, depois de fitá-la em silêncio por alguns
segundos. E inclinou a cabeça, beijando-a nos lábios como a beijara nas mãos, com
sensibilidade e delicadeza.

Sophia continuou como estava, esperando a sensação de horror que tivera na noite
anterior, mas aquele beijo era muito gentil para assustá-la.

— Diga-me agora que eu a assustei, Sophia — murmurou ele, rindo, com o rosto
corado e os olhos brilhantes. — Esse beijo não lhe causou medo nem repulsa, não é?

Honestamente, ela não poderia dizer que causara.

— Não está na hora de irmos, Stonor? — procurou desconversar, com as faces


rosadas. — Já é tarde.

— Ainda não. Primeiro, eu quero que você me diga a verdade. Sempre vivi com
mentiras, e de você eu quero a verdade. Agora e durante o resto de nossas vidas. O que foi
que sentiu com esse beijo? Acredita, como a minha mãe, que o que acontece entre um
homem e uma mulher é feio e repulsivo?

— Não — Sophia sussurrou depois de um momento, com o rosto em fogo e sem


coragem de enfrentar o olhar dele.

Stonor obrigou-a a ergueu o queixo e fitá-lo. Ela arregalou os olhos, sem saber o que
pensar.

— Eu quero ter certeza a seu respeito — ele prosseguiu, num tom áspero. — Acha
que desejo um casamento como o de meu pai? Com uma esposa que se entrega por dever,
quando deveria ser por prazer? Já passou por essa sua cabecinha inocente que os homens
só procuram fora de casa o que não têm em casa?

— Como o seu pai fez? — Sophia perguntou sem pensar.

— Isso mesmo, como o meu pai fez.

— No entanto, você odeia Wolfe. Por acaso ele tem culpa de que sua mãe tenha
afugentado seu pai de sua vida?

Stonor gelou. Com os olhos claros, examinou as faces dela, muito coradas.

— Wolfe? Você usou o nome dele com muita facilidade! O que foi que ele lhe disse,
na noite da festa?

Sophia desviou o olhar, confusa e sabendo que havia se traído.

— Olhe para mim! Você o viu depois daquela noite, não é? Quantas vezes? Onde? O
que aconteceu entre vocês, para que o trate com tanta familiaridade?

Vendo que não poderia confessar a verdade, ela balbuciou:


— Eu... eu o encontrei uma ou duas vezes, na escada. Ele... ele me contou quem é.

Stonor não afastava dela o olhar impiedoso.

— O filho bastardo de meu pai não tinha o direito de falar com você. E você não tinha
nada que ouvi-lo!

Sophia ergueu o queixo com rebeldia, em seu gesto mais característico.

— Eu gosto dele!

Não trairia Wolfe mentindo a esse respeito. Stonor tentou ler seus pensamentos.

— Gosta? Gosta mesmo, Sophia? — Riu com amargura. — Mas isto ficou evidente na
festa, não é? Pensa que sou cego? Pensa que não vi o modo como se olharam, desde o
início? Ah, meu meio-irmão bastardo é um sujeito atraente! Desde que teve idade para sair
sozinho, anda atrás de mulheres. Aprendeu a lidar com o sexo nas vielas que vão dar em
Ratcliffe Highway. Sabe onde isso fica, Sophia? Já ouviu falar nesse lugar? Foi lá que meu
pai encontrou a mãe dele. É onde as prostitutas caçam homens e depois se submetem a
eles, escoradas nas paredes dos becos mais escuros.

— Não vou continuar ouvindo isso! — Sophia gritou, zangada. — Não sei como tem
coragem de chamar sua mãe de doente. Se ela é doente, o que é que você é, então?

— Eu não sou doente. Já lhe disse que entre nós só haverá a verdade, e a verdade
sobre o bastardo de meu pai é que ele nasceu de uma prostituta e aprendeu a conhecer o
sexo com mulheres como ela. Se você deixar, ele a tratará como uma prostituta, Sophia.

— Como você fez, ontem à noite?

Stonor corou. Depois, respirou fundo e admitiu, num tom baixo:

— Isso mesmo, como eu fiz. Pensa que não senti sua reação, quando tentei beijá-la?
Se você não tivesse se esquivado daquele modo, as coisas teriam sido diferentes. Um
homem pode enlouquecer, quando é tratado assim. Se eu fiz aquilo, foi porque estava
zangado e magoado. Com Wolfe será de propósito.

Sophia não acreditou. Wolfe sempre fora delicado com ela, mesmo nos momentos de
maior paixão. Aqueles olhos azul-esverdeados continham calor, ao contrário dos olhos
pálidos de Stonor.

— Por que Wolfe haveria de fazer uma coisa dessas de propósito? — perguntou, com
desdém.

Stonor sacudiu-a, perdendo a frieza.


— Porque ele me odeia, sua tola! Por que acha que ele se deu ao trabalho de ir àquela
festa e conhecê-la? Wolfe quer me magoar, se puder. Como fez com Grey, só que as
cicatrizes que ele quer deixar em mim não são físicas.

"Wolfe me quer para si", Sophia pensou, lembrando-se do olhar, do sorriso e da


paixão dele.

Stonor viu um sorriso misterioso e sensual surgir nos lábios dela e apertou os
maxilares.

— Quantas vezes você o viu? Quando o encontrou? Será que vamos ter que vigiá-la
como uma criança levada, Sophia? Pensei que estivesse na companhia de um de nós, o dia
inteiro. Como foi que conseguiu se encontrar com ele?

— Eu já lhe disse, nós nos encontramos na escada. — Nervosa, ela temia a ameaça
que sentira na voz dele. — Foi naquela manhã depois da festa, quando todos estavam
dormindo. Eu não sabia que Wolfe morava na sua casa, até ele me dizer.

— Pois você não vai vê-lo de novo. Seu pai a mandou a Londres para se casar comigo,
e é isso que você vai fazer. Dentro de três dias, anunciaremos nosso noivado.

— E se eu não quiser?

— Você não vai me rejeitar.

— Não pode me obrigar a casar com você!

— Você é menor de idade, Sophia, e se casará com quem seu pai decidir. Na verdade,
você não tem escolha e nós dois sabemos disso. Outra coisa: fique longe do bastardo ou
serei obrigado a falar com ele.

Perturbada pela ameaça velada, Sophia surpreendeu nos olhos dele um brilho
determinado, que lhe mostrou que ele não estava brincando.

Capítulo IV

Dias depois, Sophia e Elizabeth foram fazer compras, alegando que Sophia precisava
de luvas. Mas a verdade era que Tom Lister tinha marcado um encontro com Elizabeth,
diante de uma das lojas da Regent Street. Sob aquela fachada de pura meiguice, Sophia
descobrira que a prima tinha uma determinação férrea, principalmente quando se tratava
de conseguir o que queria. E uma das coisas que ela mais detestava era a vigilância
constante da mãe.
— Como é que Tom e eu podemos conversar com mamãe ouvindo tudo que
dizemos? — ela perguntara a Sophia.

Sophia sorrira, imaginando se era mesmo de conversar com Tom que Elizabeth
gostava. Depois de um daqueles encontros secretos, notara que a prima vinha com as faces
rosadas e Tom, com o pescoço completamente vermelho. Na sua opinião, Elizabeth era
dona de uma intensa sensualidade, que a mãe, com toda certeza, jamais aprovaria.

Quanto mais Sophia conhecia tia Maria, mais se conscientizava da repulsa com que
ela encarava o relacionamento entre um homem e uma mulher. Ela estava ansiosa para
casar a filha, mas ficaria horrorizada se soubesse que Elizabeth correspondia a Tom com
outro sentimento que não era, de modo algum, uma resignada submissão.

Por outro lado, a reação que Sophia tivera em relação a Stonor convencera-a de que a
mocinha partilhava as mesmas idéias que ela, o que as aproximara ainda mais. Quando
falava de Queen's, tia Maria sentia-se em liberdade para voltar ao mundo de sua infância,
certa de que Sophia entendia tudo, sem que precisasse lhe explicar nada. Para ela, essa
liberdade de vagar num paraíso ilusório foi se tornando cada vez mais preciosa.

— Quando você e Stonor forem reformar o salão de baile, têm que pintá-lo em tons
de azul e ouro — tia Maria disse uma vez, com os olhos brilhando. — Era assim que ele
costumava ser, minha querida. E os estábulos...

— Os estábulos estão em perfeita ordem — Sophia a interrompeu, rindo.

— Ah, Edward é um verdadeiro Stonor! Os cavalos sempre vêm em primeiro lugar.


Uma das coisas de que mais senti falta, em Londres, foi da temporada de caça.

De imediato, o rosto de Sophia se iluminou. Ali estava uma coisa que entendia e com
a qual podia concordar.

— Duvido que eu consiga viver em Londres. Sentiria muita falta do cheiro dos
estábulos.

Por um instante tia Maria hesitou, chocada pela franqueza do comentário, mas
depois abriu-se.

— É isso mesmo, minha querida. Não há nada como os estábulos dos Stonor. Ah,
como você é feliz, Sophia! Stonor a manterá em Queen's Stonor, para sempre.

Sophia foi assaltada por uma sensação estranha. Era aquilo mesmo que queria?
Antes, sua vida era totalmente devotada ao pai e a seu lar, mas Wolfe mudara tudo. Em
voz alta, no entanto, limitou-se a dizer:
— A senhora irá nos visitar, tia Maria, e nas caçadas de inverno, quando estivermos
voltando para casa, veremos as luzes de Queen's Stonor por entre as árvores e saberemos
que as lareiras estão acesas e os criados ocupados, na cozinha.

Durante toda a sua infância ela tivera dias como esse, em que voltava para casa ao
pôr-do-sol, na companhia do pai, cansada mas feliz, depois de horas na sela.

— Minha querida! — tia Maria exclamou, os olhos brilhando como se estivessem


cheios de lágrimas.

Embora nem sempre visse as coisas como a tia, Sophia foi se apegando cada vez mais
a ela, à medida que os dias passavam. Maria Whitley era uma mulher devota aos filhos e
ao lar. Apesar de se mostrar fria e rígida na presença do marido, longe dele era outra
pessoa. Se tinham uma casa elegante e criados eficientes, era devido a ela. Ela criara um
belo lar para os filhos, e o marido não podia se queixar do modo como eram tratados seus
amigos. Maria era toda delicadeza e cortesia ao recebê-los, mesmo na companhia dele.

James Whitley raramente ficava com a família após o jantar. Ele ainda mantinha uma
farsa polida com Sophia, desculpando-se com a alegação de que tinha trabalho a fazer.
Maria o fitava com frieza mas nada dizia. Ela ainda não falara da mulher que se encerrava
lá em cima para Sophia. Se não fosse por Wolfe, a jovem provavelmente jamais saberia.

Uma vez, quando tia Maria lhe falava com uma expressão animada e os olhos
brilhantes, Sophia surpreendeu James Withley a fitar a esposa de um jeito estranho, que o
tornava curiosamente parecido com Stonor. Sua impressão foi de que ele lamentava
alguma coisa, naquele momento.

Mais tarde, conversando com Wolfe, James Whitley comentou:

— Aquela menina, a Sophia, exerce um afeto estranho sobre minha mulher. Nunca vi
Maria tão animada, desde que nos casamos. Elas falam daquela maldita casa, o dia inteiro.
Maria remoçou anos, desde que a garota chegou.

— Bem que ela precisava — Wolfe retrucou com indiferença, imaginando se aquele
não seria o momento certo para falar de Sophia ao pai.

— Maria também era delicada, de ossatura pequena, como um passarinho. —


Interrompeu-se de repente, com um brilho de raiva no olhar. — Droga! Por que eu tinha
que me lembrar disso agora? Não tem sentido! O que passou, passou, e está acabado!

Wolfe fitou-o com curiosidade. Seria possível que seu pai tivesse amado aquela
mulher dura e fria, lá em baixo? Como se casara com ela, provavelmente sim. Devia ter
sido um choque e tanto, descobrir a natureza verdadeira da esposa. Ainda bem que, nisso,
Sophia não se parecia em nada com a tia.
Com o coração batendo forte, Wolfe tentou falar de Sophia ao pai, mas James Whitley
havia adquirido um ar taciturno, e ele achou melhor deixar para outra hora.

Diante da janela, James Whitley brincava com as moedas no bolso, rememorando o


choque que sentira ao ver Maria sorrir daquele jeito para a sobrinha. Por um segundo, ela
assumiu o mesmo aspecto que tinha quando se conheceram. Ele se apaixonara à primeira
vista e mal pudera acreditar em sua sorte ao conquistar uma moça tão bonita, tão bem-
educada e de tão boa família.

Estava de tal modo impressionado com ela, que tivera que beber para ir procurá-la,
em sua noite de núpcias. Perdera a cabeça em alguns minutos, deixando-se guiar
cegamente pelo desejo. Seu casamento terminara no momento em que a forçara a aceitá-lo.
Na época, pensara que Maria mudaria à medida que se acostumasse ao ato sexual, mas
isso não acontecera. Ela.continuara a aceitar suas atenções com o corpo trêmulo e frio, o
que o magoara e enraivecera. Aos poucos, fora deixando de procurá-la porque não
suportava a expressão de pavor que sempre via no rosto dela, nessas ocasiões.

Durante anos, eles tinham vivido juntos e, ao mesmo tempo, separados. Na maior
parte do tempo ele a odiava e desprezava. De vez em quando, no entanto, zangava-se
porque percebia que esse ódio não era tão profundo quanto gostaria. Os sentimentos que
tanto lutara para matar haviam submergido, mas ocasionalmente vinham à tona, o que ele
achava insuportável.

Descendo para pegar algo em seu escritório, James encontrou Stonor lá, folheando
um livro. O rapaz fitou-o com aquela expressão fria e formal, que ele nunca conseguira
derrubar. Stonor era bem filho da mãe que tinha.

— O senhor parece cansado, papai — Stonor comentou, surpreendendo-o. — Está se


sentindo bem?

— Muito bem. — James hesitou por um instante, depois perguntou: — E o seu


casamento? Já está resolvido?

— Está, sim — Stonor respondeu com firmeza. — Eu estive pensando em abrir uma
nova filial em Bristol, quando me casar. Posso morar em Queen's Stonor e dirigir tudo de
lá. Grey pode ficar em Londres.

— Está bem, faça o que preferir.

Stonor zangou-se com a indiferença da resposta, apesar de já saber que o pai só ligava
para o filho bastardo. Muitas vezes, quando criança, tivera vontade de gritar "Papai!" e
fazer o pai olhar para ele, vendo-o realmente. Em algumas ocasiões, chegara a correr-lhe ao
encontro quando ele voltava do trabalho, mas invariavelmente era desprezado em favor da
mulher e da criança que esperavam lá em cima. Stonor aprendera cedo a odiar.
Ele entendia muito bem a necessidade que levara seu pai a procurar amor fora do
casamento e não o culpava por isso, mas jamais o perdoaria por tê-lo deixado de lado,
voltando-se para o filho daquela mulher. Ao se afastar da esposa, James Whitley afastara-
se também dos filhos, e fora nisso que errara, na opinião de Stonor.

Stonor saiu do escritório sem dirigir outra palavra ao pai, e James mal notou sua
saída.

Caminhando pela rua comercial ao lado de Elizabeth, Sophia pensava em Stonor.


Aquela noite, teria que lhe dar sua resposta. Mas qual?

— Você é tão paciente com mamãe, Sophia — Elizabeth comentou. — Não sei como
agüenta!

— Eu gosto muito dela.

Falar dos dias de caçada com tia Maria fora uma delícia, mas a fizera ver com maior
exatidão o quanto tudo mudara, desde a juventude da tia.

Criada por Edward Stonor num mundo bem mais tolerante, numa casa confortável
mas em decadência, com pouco dinheiro e sem ambição social, Sophia não ligava para as
convenções sociais que Maria achava tão importantes. Não se escandalizara com o fato de
James Whitley ter uma mulher e um filho bastardo no andar de cima, porque muitas vezes
ouvira o pai e os amigos comentarem coisas como essa, depois de beberem um pouco.
Crescera numa atmosfera totalmente livre de restrições, o que lhe dera uma atitude
corajosa e despreocupada em relação à vida.

Impulsiva e afetuosa, Sophia aprendera a esconder sua verdadeira natureza e pontos


de vista para não magoar a tia. Se Maria queria vê-la como uma tímida mocinha de boa
família, não tinha nada contra, embora de vez em quando se aborrecesse com as restrições
que tal farsa exigia dela.

Elizabeth também não gostava das restrições impostas pela mãe e ressentia-se de ter
que fazer muitas coisas às escondidas. No momento, era Tom Lister que queria,
provavelmente porque ele surgira quando ela tomara consciência de uma sensualidade,
que ele fora capaz de despertar. Três meses atrás uma coisa dessas jamais entraria na
cabeça de Sophia, mas agora ela sabia exatamente como a prima se sentia.

O desejo fora uma emoção desconhecida para Sophia, até Wolfe entrar em sua vida.
Seguindo Elizabeth ela vira a prima sorrir para Tom, mostrando o desejo que sentia por ele
em cada gesto e em cada palavra.

Sob o tecido engomado de suas roupas, o corpo de Sophia reagia. Desde que
conhecera Wolfe, vinha sendo atormentada por emoções sensuais, contra as quais não
tinha a menor defesa.
Naquela primeira noite, quando ele praticamente a despira com o olhar, provocara
em seu íntimo uma estranha reação química. Curiosamente, não fora através das carícias
dele que tomara consciência de seus sentimentos, mas através das de Stonor. Se Stonor
nunca a tivesse beijado como beijara, falando francamente das necessidades de um homem
e de uma mulher, poderia não ter entendido o que ocorria entre ela e Wolfe.

Absolutamente franco, Stonor a tratara como se estivessem no mesmo pé de


igualdade. Tia Maria ficaria chocada com isso, mas ela gostara. Sua natureza repudiava as
mentiras, a hipocrisia e a frieza disfarçada. Franca, impulsiva e afetuosa, ela valorizava
essas qualidades nos outros. Sentira-se lisonjeada, quando o primo lhe falara com tanta
franqueza. E, pela primeira vez, vira nele algo que era capaz de admirar. Depois disso,
relembrando o que acontecera na estufa, podia até esquecer-se da repulsa que sentira por
ele.

Stonor tinha razão quando dizia que a mãe fora a culpada por seu pai procurar
consolo fora de casa. Ele dissera que não queria nada além da verdade entre os dois, e pela
primeira vez ela o vira como realmente era, um rapaz que crescera rodeado de ódio,
hipocrisia e frieza, e que queria construir uma vida totalmente diferente para si.

A evolução de seu afeto por Wolfe fora cortada pela honestidade de Stonor. Antes,
teria sido fácil voltar-se para Wolfe, mas agora ela entendia melhor suas emoções.
Observando Elizabeth e Tom, via que eles eram vítimas de uma necessidade humana
completamente fora do alcance da razão. Elizabeth atingira um estágio em que precisava
se casar, para realizar seu destino de mulher. A natureza e a sociedade exigiam isso dela.

Sophia entendera tudo isso, por causa da liberdade em que fora criada. Sua mente
não sofrera as restrições impostas pela sociedade vitoriana às moças de sua geração.
Embora sendo intensamente feminina, ela crescera em meio a homens, ouvindo-os falar
como se não estivesse presente. Quando os rendeiros visitavam Edward Stonor, falavam de
colheitas, carneiros e do cruzamento de uma égua com um garanhão. Eram coisas naturais
em seu mundo, e ela as ouvira de seu canto, muitas vezes sem entender nada. Mas, nos
últimos tempos, essas conversas afloravam a sua mente, e ela sabia o que estava lhe
acontecendo.

Seu pai a mandara a Londres para se casar com Stonor e um dia ser dona da casa da
família, que no futuro passaria a seus filhos. Ela amava profundamente o pai e Queen's
Stonor, mas achava-se dividida. Teria que escolher entre satisfazer sua natureza ou viver
com a consciência tranqüila?

Tinha vontade de casar-se com Wolfe, apesar de tudo em contrário. Eles eram iguais
em muitas coisas. Quando estava com ele, sentia-se tão à vontade quanto se estivesse
sozinha. Sendo homem, ele tinha uma mentalidade mais crua e estava anos a sua frente,
em experiência. Stonor sem dúvida dissera a verdade, quando acusara o meio-irmão de ter
aprendido a lidar com mulheres entre as prostitutas de Ratcliffe Highway. O próprio Wolfe
praticamente lhe dissera a mesma coisa, mas ela não o desprezava por isso. Sentia-se
curiosa e até mesmo meio fascinada pelo mundo que ele lhe mostrara, em seus passeios
secretos. E aquela estranha afinidade entre ambos persistia. Eles estavam em contato num
nível completamente à parte do entendimento mental. Seus corpos pareciam se falar, seus
olhos enviavam mensagens silenciosas, e essa conspiração secreta entre eles lhe
proporcionava uma excitante satisfação.

Stonor fora honesto com ela; dissera que colocava a honestidade acima de tudo. E se
lhe contasse, com toda franqueza, o que sentia? Ele ainda a forçaria a casar-se com ele? Ou
deixaria que se casasse com Wolfe?

Mesmo enquanto essa idéia lhe passava pela mente, Sophia já sabia a resposta. O
ódio de Stonor por Wolfe, e o de Wolfe por ele eram claros como cristal.

— Volte à terra, Sophia! — Elizabeth disse de repente, ao seu lado. — Está na hora de
irmos para casa.

— Tom já foi? Nem notei!

— Sabe que você é a minha prima favorita?

Rindo, as duas entraram na carruagem. Depois de alguns momentos, Sophia


perguntou:

— Por que Tom não a pede logo em casamento e acaba com esses encontros
clandestinos?

— Ele já me pediu, mas eu ainda não estou pronta para aceitar.

Ouvindo essa resposta, Sophia achou que Elizabeth estava se divertindo com o
namoro e que aquele segredo aumentava o prazer que sentia. Uma coisa que era bem
capaz de entender, pois também gostava de seu segredo com Wolfe. Era uma delícia ter
algo a partilhar que o resto do mundo ignorava.

Seu sorriso morreu, quando se lembrou de que, há vários dias, não se encontrava
com Wolfe. Levantara-se de madrugada todas as manhãs, na esperança de vê-lo, mas
invariavelmente encontrara uma criada limpando a escada que levava à parte superior da
casa. Não sabia ao certo, mas tinha uma forte desconfiança de que a moça seguia ordens de
Stonor.

Naquela noite, depois do jantar, Sophia soube que passaria algum tempo a sós com
Stonor. Elizabeth e tia Maria iam ao teatro, com Tom Lister.
— Podem ficar na sala de estar — disse Maria, advertindo o filho, com o olhar, para
que não assustasse Sophia novamente. — Você pode tocar piano para ele, minha filha.

Quando todos se foram, Stonor sentou-se ao lado dela no sofá, apoiando o braço no
encosto e virando-se para fitá-la. De um salto, Sophia se levantou.

— Quer que eu toque para você?

Mas ele a segurou pela mão, quando já se dirigia ao piano.

— Sente-se, Sophia.

— Sua mãe disse...

— Sente-se.

Infeliz, ela obedeceu.

— Você sabe o que quero ouvi-la dizer.

Sophia baixou os olhos, ajeitando a saia com dedos nervosos.

— Ainda é muito cedo, Stonor.

— Eu quero a minha resposta — ele insistiu, sem se alterar em nada.

— Como posso decidir, tão depressa, uma coisa que vai afetar o resto da minha vida?

— Você sabe que não tem nenhuma decisão a tomar. Já decidiram por nós, sem nos
dar a menor chance de opinar.

Sophia sentiu a esperança nascer em seu íntimo.

— Stonor, eu sou mulher e tenho que me submeter à vontade de meu pai, mas você é
homem. Você é livre e pode me rejeitar. Eles não podem obrigá-lo a se casar comigo!

Por um instante o rosto frio e bonito permaneceu inexpressivo. Depois, Stonor sorriu
de leve.

— Mas eu não quero rejeitar você, Sophia. Esse casamento me agrada. — E a fitou
como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas não conseguisse. Afinal, disse apenas: —
Admito que cheguei mesmo a pensar em rejeitar esse casamento, antes da sua chegada.
Meu pai não teria insistido, e eu posso me dar ao luxo de ignorar minha mãe. Mas depois
mudei de idéia.

A esperança morreu, e Sophia baixou a cabeça, mordendo o lábio.

— Quando nós conversamos, em Kew, você disse queria a verdade entre nós.

— E quero.

— Pois a verdade é que eu acho que não podemos ser felizes juntos.
Ansiosa, esperou pela reação dele. Depois de um longo silêncio, ouviu-o perguntar:

— Por quê?

A voz era calma, mas ela sentiu a tensão por trás. Só não sabia que motivos ele tinha
para estar tenso.

— Eu... — começou, torcendo as mãos e procurando uma desculpa que não parecesse
cruel. — Eu não estou apaixonada por você, Stonor...

— Eu não lhe pedi para se apaixonar por mim, só para se casar comigo.

— Mas quando nós conversamos em Kew, você... — Sophia interrompeu-se, muito


corada, incapaz de terminar.

— Eu a tomei nos braços de forma sensual? — havia um traço de divertimento na voz


dele. — Será possível que você seja tão inocente, Sophia, a ponto de achar que o sexo
sempre caminha de mãos dadas com o. amor?

— Se é para ter algum significado, sim. — Fitou-o com os olhos azuis enormes no
rosto corado, e os lábios dele se crisparam.

— Você não achou ruim, quando eu a acariciei em Kew. Pelo menos, foi o que me
disse. No entanto, você mesma acaba de me dizer que não está apaixonada por mim.

Ela não pôde negar, pois realmente nada achara de revoltante naqueles beijos
sensíveis e delicados.

Stonor deslizou a mão pelo sofá, levantando-lhe os cabelos que caíam pelos ombros e
acariciando-lhe a nuca, com um leve e estranho sorriso nos lábios.

— Você gostou. Pensa que não percebi? Você não se afastou de mim com repulsa,
como fez aquela noite, na estufa. Não se preocupe com sentimentos agora, Sophia. Dê
tempo a você mesma. Eu posso esperar.

Ela também não estava achando ruim a carícia em sua nuca. Na verdade, o roçar
vagaroso dos dedos dele fazia com que tivesse vontade de arquear o corpo, como uma
gata. E o murmúrio da voz masculina exercia o mesmo efeito: a tranqüilizava.

— Há mulheres com rostos lindos e corações frios — ouviu-o comentar. — Minha


irmã é uma delas. Minha mãe não é bonita, mas é fria. Você, no entanto, é uma mulher
apaixonada. Está escrito no seu rosto, no modo como se move e reage a tudo. Mais cedo ou
mais tarde, você terá que satisfazer as exigências de seu corpo.

— Mas não com você!

O rosto de Stonor mudou. Ele tirou as mãos de seus cabelos, o corpo tenso como
corda de violino.
— Com quem, então, Sophia?

Sophia olhou para o outro lado, trêmula, incapaz de responder, só então percebendo
o que dissera. De imediato Stonor agarrou-a pelo queixo, forçando-a a encará-lo.

— Com quem? — repetiu, num tom violento.

Ela o fitou, sem responder.

— Esteve se encontrando com o bastardo de meu pai?

— Não. — Sophia negou, em voz fraca.

Por um instante, ele a examinou com atenção.

— Há outro homem, então? Alguém que conheceu em Somerset?

— Não, Stonor! — Sua negativa mostrava ansiedade. Sabia, agora, que não poderia
lhe falar de Wolfe. Ele jamais a libertaria daquela promessa de casamento.

Stonor era perigoso. Poderia prejudicar Wolfe, se ela continuasse insistindo.

— Deus a ajude se estiver mentindo para mim, Sophia. Se bem que o fato de você
gostar de outro não faz a menor diferença. Você vai se casar comigo. E se esquecerá desse
sujeito, seja ele quem for.

De repente, ela se zangou.

— Você disse que quer a verdade, mas não pretende me dar escolha! Como tem
coragem de me pedir para partilhar meus pensamentos com você!? Você partilha os seus
comigo? Nós somos iguais ou não, Stonor? Você diz que não tenho escolha a não ser
aceitar esse casamento e me tornar uma coisa sua, algo que lhe pertencerá legalmente, e
ainda quer exigir que eu lhe entregue não só meu corpo, como também minha alma! Você
sabe que pode me forçar a aceitar esse casamento, porque amo meu pai e quero agradá-lo.
Mas uma coisa você não pode fazer, Stonor: me obrigar a partilhar os pensamentos com
você!

Stonor fora ficando cada vez mais pálido, à medida que ela falava.

— Pelo menos você admite que não tem escolha — murmurou afinal, quando o
silêncio caiu entre eles.

Sophia baixou a cabeça, esgotada física e mentalmente. Podia tentar escapar, mas
sabia que era bobagem.

— Nossos pais trataram este casamento por razões que não tem nada a ver conosco
— Stonor continuou. — Vamos nos casar pelo bem de Queen's Stonor.

— É...
— Conseguimos nos entender, então.

— E isso é tudo que jamais haverá entre nós — ela exclamou, cheia de rebeldia.

— Ah, Sophia! — De repente, ele se tornou irônico. — Você está querendo se enganar,
se pensa assim.

— Não estou, não! Nós não temos nada em comum, Stonor.

— É inútil falar nisso, agora. Temos anos à nossa frente.

Stonor sorriu, aparentemente feliz com a idéia. Mas mudou de expressão ao ver
Sophia estremecer, desgostosa.

— Não me olhe assim! Eu já lhe disse que não vou suportar isso. Você não tem
motivos para me olhar como se eu fosse um monstro!

— Dê-me mais algum tempo, Stonor — ela pediu, com ar implorante. — Seis meses,
pelo menos...

— Três. Nem um dia a mais.

Sophia suspirou. Era melhor do que nada. O relógio sobre a lareira tocou e ela ergueu
a cabeça, imaginando quantas noites de sua vida passaria sentada ao lado de Stonor,
consciente da amarga passagem do tempo. Ele, ao contrário, parecia gostar da idéia dos
anos que tinham pela frente, presos num casamento sem amor.

— Está na hora de você ir para a cama — disse ele de repente, pondo-se em pé. —
Minha mãe me fez prometer que você iria se deitar cedo.

Sophia saiu dali quase correndo, incapaz de esconder daqueles olhos irônicos o alívio
que sentia.

Mas não pôde dormir por longo tempo. Infeliz, fitando o escuro, ouviu os relógios
baterem todas as horas. Quando a escuridão se tingiu de cinza, percebeu que o dia se
aproximava. Há muito, todos tinham ido para a cama. Ouvira tia Maria e Elizabeth rirem
baixinho, a caminho dos respectivos quartos, e estremecera de medo com os passos lentos
de Stonor.

Os passarinhos já cantavam na praça lá embaixo, quando a porta de seu quarto


rangeu. Alarmada, ela não conteve uma exclamação de surpresa ao ver a cabeça de Wolfe
aparecer.

— Você não pode entrar aqui, Wolfe! — sussurrou, sentando-se na cama.

Ele estava em roupas de noite, com uma capa sobre os ombros, a gravata desfeita e os
cabelos despenteados. Uma expressão alegre e plena de selvageria refletia-se nos estranhos
olhos azul-esverdeados.
Sophia viu-o aproximar-se com passos inseguros e percebeu que ele estivera
bebendo. O cheiro de brandy e cigarros chegava até ela. Uma expressão de censura e
divertimento apareceu em seu rosto.

— Vá embora, Wolfe — sussurrou, sorrindo com ar tolerante. — Passou a noite fora,


de novo? — Muitas vezes seu pai fora lhe desejar boa noite com o mesmo cheiro, depois de
algumas horas na companhia dos amigos. — Você não tem noção do que está fazendo!

Wolfe sentou-se pesadamente na cama e as molas rangeram, fazendo-a arrepiar-se de


medo.

— Psiu!

Ela prestou atenção, mas não ouviu nenhum barulho no resto da casa.

— Faz três dias que você não vai ao meu encontro. Por quê? Eu fiquei à sua espera.

— Não pude. Havia sempre alguém na escada.

Wolfe tirou a capa e jogou-a no chão, fitando-a com olhos de bêbado.

— Você tentou? Tentou, Sophia? Você tem passado as noites com Stonor, não é? E os
dias também. Ele deve ter aproveitado ao máximo as chances que teve. Mas você não se
esqueceu de que prometeu casar comigo, não é? Você não prometeu nada a ele, prometeu?

— Eu tive que prometer, Wolfe!

— Teve!? — Ele arrancou a gravata como se o estivesse sufocando e jogou-a sobre a


cama. — Você não vai casar com ele, Sophia. Não vou deixar. Ele a prenderia num
relacionamento sem vida, como a mãe dele fez com o meu pai. Não vou deixar que isso
aconteça com você. Seria um pecado!

— Eu não quero me casar com Stonor e até lhe disse isso, mas não posso desobedecer
a meu pai.

m sorriso divertido surgiu nos lábios de Wolfe.

— Você disse isso a Stonor?! E o que foi que ele respondeu?

— Que se casa comigo, mesmo assim. Segundo ele, é uma relação que lhe convém!

— Não duvido!

Wolfe continuava a sorrir, mas uma nova expressão, que ela não foi capaz de
entender, surgira em seu rosto.

— Você acha que Stonor é como a mãe, incapaz de amar? Estou quase me
convencendo de que é assim. Ele resolveu se casar e decidiu que eu sirvo, mas tem tanto
interesse por mim quanto por uma peça de mobília.
— Ele é um sujeito frio. Eu o conheço melhor do que ninguém no mundo, Sophia.
Fizemos um estudo especial, um do outro. O ódio pode ser um laço tão forte quanto o
amor. Sempre fui capaz de perceber os sentimentos de Stonor, e ele sabe disso. — Um
brilho peculiar apareceu nos olhos de Wolfe. — Quando éramos crianças, ele morria de
ciúmes de mim. Papai costumava me levar a todo lugar aonde ia. Aos sábados, era sempre
ao jogo de cricket. Stonor nunca ia junto, mas às vezes ficava olhando pela janela quando
saíamos, e eu me virava para vê-lo. Acho que se tivesse tido oportunidade, Stonor teria
enterrado uma faca nas minhas costas.

O ar divertido de Wolfe chocou Sophia.

— Ah, não, Wolfe! Coitado do Stonor... Você sabe que isso deve tê-lo magoado muito!

Wolfe fechou a fisionomia, como se não quisesse que ela ficasse ao lado de Stonor,
nem por um segundo.

— Mas que droga, pare de falar! Não foi para isso que eu vim até aqui.

Sophia deu um gritinho de protesto quando ele a empurrou de encontro aos


travesseiros. Mas logo em seguida seus lábios se encontraram e ela se esqueceu de tudo,
entregue à paixão que renascera em seu íntimo.

As mãos quentes e duras de Wolfe afastaram a coberta e começaram a se mover sobre


ela, moldando seu corpo como se fossem mãos de um escultor. Ela o enlaçou pelo pescoço,
e seus lábios colaram-se aos dele com ardor.

De repente, Wolfe sentou-se de novo e levou as mãos à camisa, pondo-se a mexer nos
botões. O bom senso voltou a dominar Sophia, quando ela percebeu sua intenção. De um
salto escapou pelo outro lado da cama, e Wolfe, já com a camisa aberta, lançou-se atrás
dela, alcançando-a quando tentava abrir a porta.

— Não, Wolfe! — Sophia gritou, lutando para escapar.

Os corpos oscilaram, juntos. Os lábios de Wolfe desceram sobre os seus e ela sentiu o
calor da pele masculina através da camisola, quando ele a puxou para junto de si.
Enfraquecendo, jogou a cabeça para trás e apoiou-se nos ombros dele, para receber o beijo.
Seus corações batiam junto, acelerados.

Um gemido de prazer escapou da boca de Sophia. Nem percebeu quando Wolfe


começou a levantar sua camisola. Ele ainda a beijava, explorava sua boca de tal forma, que
perdera a percepção de tudo, menos dele.

De repente, a luz de uma vela caiu sobre eles e um grito histérico de mulher ressoou
pelo ambiente.
Arrancada de sua concentração, Sophia deixou os braços de Wolfe e virou-se,
trêmula, para dar com tia Maria na porta, de olhos esgazeados, gritando como uma louca.

Por um instante nem Wolfe, nem Sophia se moveram, paralisados pela surpresa. Os
gritos histéricos enchiam a casa, e a seus ouvidos chegou o som de portas batendo e passos
correndo. De repente Stonor apareceu, em roupas de dormir e despenteado pelo sono. Ao
ver Wolfe semidespido, ao lado de Sophia, seu rosto virou uma máscara de pedra.

No momento seguinte James Whitley surgiu à porta. Seu olhar foi de Wolfe para
Sophia, e depois para a esposa.

Maria ainda soltava sons histéricos de raiva e desgosto. Numa reação instantânea,
Stonor foi até ela e atingiu-a no rosto, com a palma da mão aberta. Os gritos morreram de
imediato e, com um soluço, ela começou a chorar.

Elizabeth, com os cabelos em papelotes e o rosto coberto de creme, estava atrás do


pai, contemplando-os com uma expressão em que se misturavam a surpresa, a malícia e a
lascívia.

Os criados desciam correndo de seus quartos distantes, no sótão. Virando-se para a


irmã, Stonor ordenou com frieza:

— Volte para a cama, Elizabeth. — Empurrou então a mãe para dentro do quarto de
Sophia, fitou o pai com o olhar frio de sempre e anunciou: — Vou mandar os criados de
volta para a cama.

James Whitley entrou no quarto e fechou a porta atrás de si. Ao lado de Wolfe, com
os braços cruzados sobre o peito, Sophia tremia.

De imediato Maria voltou-se para o marido e disse, com a boca movendo-se


convulsivamente:

— Esse animal! A culpa é sua! Ele é um criminoso!

Antes que James pudesse responder, a porta abriu-se e Stonor entrou. Ao vê-lo,
Sophia encolheu-se, cheia de culpa e medo. Mentira para ele sobre seus encontros com
Wolfe, e agora Stonor sabia disso. Os olhos dele, gelados, fixaram-se em seu rosto.

De imediato Wolfe aproximou-se dela, como que pensando em protegê-la. Sorria com
ar bêbado e zombeteiro para Stonor, que o fitava de um jeito tão inexpressivo, como se
nada o afetasse naquela cena, a não ser a possibilidade de um escândalo. Ele estivera no
quarto e se trocara, e agora exibia a sombria formalidade de suas roupas de trabalho.
James Whitley voltou-se para Wolfe.

— O que é que você veio fazer aqui?

Antes que o rapaz pudesse abrir a boca, Maria explodiu:


— O que é que você acha? Não é evidente? Você sabe como ele é. Sempre soube! Ele
nunca fez segredo de suas atitudes repulsivas!

— Fique quieta, Maria!

— Desta vez não, James! Fiquei quieta muito tempo, para poupar meus filhos da dor
de saber que tipo de pai eles têm...

— Você nunca os poupou de nada! Você nunca poupou nenhum de nós. Fique quieta
e deixe Wolfe falar!

— E você vai ouvir tudo que ele disser, não é? O seu querido, o seu precioso
bastardo! Você sempre ouve o que ele tem a dizer, mas nunca deu uma grama de atenção a
seus filhos legítimos!

Stonor abraçou a mãe pelos ombros.

— A senhora não deve se aborrecer, mamãe. Fique calma.

— Como é que eu posso!?

Tenso, James olhou para Wolfe.

— O que é que você veio fazer aqui?

— Podemos conversar em particular? Eu não tenho nada a esconder, meu pai. Jamais
faria mal a Sophia. Olhe para ela, se não acredita no que digo. Ela parece ter medo de
mim?

James fitou-a, e Sophia sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. Stonor também a fitava.
Podia sentir o olhar dele sobre seu corpo, como se quisesse matá-la.

James ergueu as sobrancelhas para Wolfe, numa pergunta silenciosa, mas ele nada
manifestou.

Maria, porém, olhava para a sobrinha, que abaixou a cabeça, sentindo o rubor de seu
rosto aumentar.

— Eu a ouvi gritar — Maria protestou. — Eu a ouvi lutando com ele. Quando entrei,
ela tentava fugir, enquanto esse bêbado puxava sua camisola...

— Não houve luta — Wolfe disse ao pai, ignorando Maria. — Pelo amor de Deus,
meu pai, eu a amo! — Sorriu com todo charme que possuía e garantiu: — É sério. Eu a
amo.

— Ele está mentindo! — Maria acusou. — Esta criança é tão inocente que quase
desmaiou quando Stonor encostou um dedo nela! Ele estava tentando violentar esta
menina, James, e ela estava apavorada. Graças a Deus, eu cheguei em tempo! — Maria
prosseguiu.
— Chegou, Sophia? Minha mãe chegou em tempo?

A pergunta de Stonor atingiu-os como pedrinhas de gelo. Sophia tremia de medo e


vergonha. Com a cabeça abaixada levou as mãos ao rosto. Wolfe riu, insolente.

As mãos de Stonor voaram para a garganta de Wolfe. A rapidez do gesto pegou a


todos desprevenidos. Maria gritou, enquanto James pulava para diante, com o rosto
congestionado.

— Stonor, pelo amor de Deus! — ele quase implorou ao filho, tentando fazê-lo soltar
o meio-irmão. — Espere até saber de tudo!

Mas as mãos de Stonor eram como garras em torno do pescoço de Wolfe, que já
respirava com dificuldade e se debatia numa agonia mortal, arranhando o meio-irmão
para fazê-lo diminuir a pressão com que o dominava. Chutou várias vezes, com força, mas
não foi capaz de livrar-se de Stonor.

— Você vai matá-lo! — James exclamou, ofegante.

Com os olhos fixos um no outro, os dois rapazes pareciam inconscientes de tudo, a


não ser do próprio ódio. Stonor mantinha Wolfe de encontro à parede, impedindo-o de se
mover. Com o rosto roxo, ele respirava cada vez com mais dificuldade.

James ergueu a mão na direção dos dois, com um soluço escapando dos lábios,
depois desabou sobre o chão.

— Wolfe — murmurou enquanto caía.

Consternado, Stonor soltou o meio-irmão. Completamente pálido, ajoelhou-se junto


ao pai, que respirava com um som sibilante e assustador.

— O que é que ele tem? — Maria quis saber. — O que foi que aconteceu, Stonor?

"Tio James está morrendo", pensou Sophia.

— Mande um criado chamar o médico, mamãe — Stonor disse, abrindo a camisa do


pai e inclinando a cabeça para ouvir-lhe o coração.

Uma espuma branca apareceu no canto da boca de James, escorrendo-lhe pelo


queixo. Maria continuou onde estava por mais um segundo, depois saiu correndo.

Wolfe ajoelhou-se do outro lado do pai, tomando-lhe o pulso.

— Um ataque do coração — diagnosticou.

— E bem forte — Stonor completou, por entre os dentes cerrados. — Ele está
morrendo.

Uma palidez mortal encobriu o rosto de Wolfe e lágrimas começaram a escorrer de


seus olhos.
— Meu pai! — chamou, acariciando o rosto amado. — Sou eu, Wolfe!

O som sibilante mudou para um rouco ofegar. James abriu as pálpebras e todos
viram seus olhos rolarem, enquanto os lábios entreabertos se moviam. Wolfe levou a mão
que segurava aos lábios, molhando com lágrimas os dedos inertes. Quando a respiração
angustiante do pai cessou, um grito desesperado escapou-lhe dos lábios:

— Não, meu pai. Não!

Stonor inclinou-se e fechou as pálpebras pálidas. Levantando-se, olhou para o meio-


irmão, que continuava ajoelhado ao lado do pai, segurando-lhe a mão. Seu rosto crispou-se
de uma forma estranha, mas logo voltou à habitual inexpressividade.

— Quanto a você — disse com clareza —, pode pegar a vagabunda da sua mãe e sair
da minha casa.

Por um instante Wolfe não se moveu! Depois, soltou a mão do pai devagarinho e
levantou-se, virando-se para Stonor com um olhar cauteloso.

— Você acha que é dono de tudo agora, não é?

— Eu sei que sou.

— Como? — Um sorriso zombeteiro surgiu nos lábios de Wolfe. — É melhor esperar


pela leitura do testamento, Stonor.

— O testamento está no cofre. Tudo ficou para mim, a não ser por uma doação para
Elizabeth, e outra para Grey.

O rosto de Wolfe espelhou seu choque e incredulidade.

— Deve haver outro testamento em algum lugar. Tem que haver!

— Isso o atingiu, não é? — Stonor riu friamente. — Eu não duvido que ele
pretendesse mudar o testamento, mas a verdade é que nunca mudou.

— Ou você destruiu o novo? Você seria bem capaz disso!

— Não seja tolo — Stonor retrucou com desprezo. — Meu pai preferia você, mas não
era idiota a ponto de achar que poderia burlar as cortes de justiça e deserdar os herdeiros
legítimos. Nenhum juiz levaria em consideração um testamento desses, e ele sabia que eu
era o herdeiro legal de tudo. Ele não fez mais que cumprir a lei. Não duvido que tivesse a
intenção de lhe deixar uma soma qualquer em dinheiro, mas não deixou, não é?
Provavelmente nunca esperou morrer tão cedo.

Sophia ouvia incrédula, com expressão chocada.

— Como é que vocês podem discutir assim, quando ele mal acabou de morrer?! Não
dá para esperar? O pai de vocês está morto! Isso não é mais importante?!
Stonor voltou o rosto frio para ela, com uma expressão determinada no olhar.

— Wolfe não vai passar nem mais uma noite sob o meu teto. Quero ele e a mãe fora
daqui, antes do anoitecer. Acha que vou permitir que acompanhem meu pai à sepultura,
junto conosco? Eles não têm mais direitos. Agora, os direitos são nossos. Aquela mulher
usurpou o lugar de minha mãe durante anos, mas isso acabou.

— Nós vamos embora — disse Wolfe com aspereza. — Fique com a casa e o dinheiro.
Sophia tem razão, que diferença isso faz? Nós o tivemos enquanto ele era vivo. O que
restou dele não significa mais nada.

Com um olhar de menosprezo, Stonor abriu a porta do quarto. Wolfe estendeu a mão
para Sophia.

— Venha comigo, querida. Não pode se casar com ele. Lembre-se, pássaros
engaiolados nunca cantam. Vista-se e venha comigo e minha mãe. Eu tomarei conta de
você.

Após fechar a porta, Stonor, voltou-se para ela. Sophia fitava Wolfe com o rosto muito
pálido, mordendo o lábio.

— Se você for com ele, partirá o coração de seu pai. E também nunca mais poderá
voltar para casa.

— Você não quer ser feliz, Sophia? — Wolfe perguntou. — Se ficar com. ele, jamais
poderá ser feliz.

— Não me fale nisso agora, Wolfe — Sophia pediu desesperada. — Tio James acaba
de morrer, e eu não consigo pensar direito. Não é hora para isso.

— É a única hora — Wolfe retrucou. — Se você não decidir agora, ele a prenderá e
não deixará mais que vá embora.

Os lábios de Stonor mal se moveram, quando ele falou:

— Tem razão, eu não vou deixar.

— Acha que eu precisava que me dissesse? — indagou Wolfe.

Por um instante os dois rapazes se encararam. Em algum lugar da casa, tia Maria
chorava. A porta se abriu e Elizabeth entrou correndo, ainda lambuzada de creme.

— O que foi que aconteceu? Mamãe disse... Papai!

Ela tentou se jogar sobre o pai, no chão, mas Stonor empurrou-a novamente para a
porta.

— Vá consolar mamãe. Coloque-a na cama. Fique com ela.

— Mas papai... Ele...?


— Ele está morto.

Com um grito, Elizabeth levou a mão à boca.

— Vá ver mamãe — Stonor repetiu. — Ela precisa de você. E tente ser boa, Elizabeth.
Tente ser boa, pelo amor de Deus.

Elizabeth recuou, sem tirar os olhos do pai. Com a expressão fria de sempre, Stonor
procurou Sophia com o olhar.

— Você mal o conhece, Sophia — disse. — Que tipo de vida acha que ele pode lhe
dar? Sem dinheiro e um lar, como poderá tomar conta de você? Você o atrapalharia, seria
um peso na vida dele. Ambos são muito jovens para saberem o que estão fazendo. Além
disso, há o seu pai. Ele jamais a perdoaria. Ele quer que se case comigo, quer vê-la como
dona da Queen's Stonor, antes de morrer. Você nunca mais verá o seu pai, se for com
Wolfe.

— Não dê atenção a ele, ouça o que eu digo! —Wolfe gritou, cheio de raiva e
amargura. — Nada disso importa. Nada!

Sophia estremeceu ao ver o sofrimento nos olhos de Wolfe. Moveu-se


involuntariamente, e ele a abraçou num gesto protetor, puxando-a de encontro a si e
acariciando-lhe os cabelos. Como uma criança em sua camisola branca, com os cabelos
escuros caindo sobre o peito dele, Sophia permaneceu onde estava, sentindo-se sã e salva.
Pertencia aos braços de Wolfe. Eles eram seu lar.

Mas as coisas não eram tão simples. Stonor a fizera ver que Wolfe não tinha para
onde ir, não tinha para onde levá-la. Ele não possuía mais lar nem dinheiro. Seria um peso
para ele. E para abrir seu caminho no mundo, ele precisaria estar livre de todo e qualquer
peso. Ambos ainda eram tão jovens!

Ergueu o rosto brilhando de lágrimas, e não precisou dizer nada para que ele
entendesse.

— Sinto muito, Wolfe...

Wolfe beijou-a de leve, na testa, depois olhou para Stonor, por cima de sua cabeça.

— Você pode se casar com ela, mas ela sempre será minha. Ela me ama. E sempre me
amará. Isso você não pode mudar, Stonor. Não é possível que consiga viver com ela,
sabendo disso. Deixe-a ir, pelo amor de Deus!

— Não — foi a resposta áspera de Stonor. Adiantando-se um passo, ele tirou Sophia
dos braços de Wolfe, prendendo-a a seu lado com mãos de ferro. Wolfe fitou-o com ódio,
depois virou-se e saiu do quarto, enquanto Sophia chorava baixinho, com o corpo
sacudido pelos soluços.
Capítulo V

O Turk's Head estava superlotado quando Wolfe chegou, chamando a atenção por
suas roupas caras e seu ar de segurança. Ele sabia que entrar naquele lugar sozinho era
perigoso, pois muitos dos homens presentes o considerariam um alvo tentador. O dono do
bar ia de um lado para o outro, recolhendo canecas vazias e xingando quem o atrapalhava
em seu trabalho.

— Rummy!

A voz autoritária de Wolfe atingiu todos os cantos e o silêncio caiu sobre o ambiente.

— O que é? — indagou Rummy, com ar hostil.

— Black Strap.

A expressão dos presentes mudou. Um homem assobiou baixinho, enquanto um leve


sorriso aparecia no rosto de Rummy.

— Eu já vi você com ele, não é? Ele está lá em cima, com uma mulher. Pode ser que
não goste de ser interrompido.

— Quem sabe? Talvez esteja precisando de ajuda — Wolfe disse, gravemente.

— Pois experimente me ajudar! — Black Strap falou, atrás dele. Wolfe virou-se,
sorrindo. Black Strap estava no alto da escada, descalço e com o peito nu.

Wolfe foi até ele, e Black Strap saudou-o com um tapa nas costas, rindo.

— Já estava pensando que nunca mais nos veríamos, moleque! Venha conhecer Moll.

Wolfe seguiu-o até um quarto de teto baixo, onde, sobre uma cama suja e desfeita,
estava uma garota rechonchuda, com os cabelos loiros caídos sobre os ombros nus e a saia
levantada até o meio das coxas. Sem tentar se arrumar, ela se pôs a estudar Wolfe, que não
lhe lançou mais que um olhar rápido e desinteressado.

— O que é que eu posso fazer por você? — Black Strap perguntou, cocando o peito e
de repente prendendo uma pulga entre o polegar e o indicador. — Essas malditas estão em
toda parte! — comentou, matando o inseto e limpando a mão na calça.

— Pode me apresentar a sua amiga...

— Você veio atrás de saia, é? Pois seja bem vindo. Moll é da Casa. Este é Wolfe, Moll.
O nome combina com ele, não acha? Gostaria de deitar com ele?
Moll correu os olhos pelo corpo de Wolfe, sem replicar. Wolfe sorriu para ela, depois
virou-se para Black Strap.

— Mande a moça para fora. Estou aqui a negócios.

— Fora! — Black Strap disse à garota, com um brilho especulativo no olhar.

Fechando a cara, ela rolou para fora da cama e caminhou até a porta. Passou por
Wolfe, fitando-o com inimizade, e ele retribuiu dando-lhe um tapa forte mas indulgente no
traseiro.

— Depois, querida! — prometeu, com ar provocador.

Os olhos da garota brilharam de raiva, mas ela não se deteve. Black Strap sentou-se
numa cadeira, com os pés sobre a cama, e indicou a Wolfe que fizesse o mesmo.

— Você falou em negócios?

Wolfe foi até a porta e abriu-a bruscamente. Uma bofetada ressoou no ar, seguida
pelo som de um corpo rolando pela escada. Um riso estrondoso elevou-se do bar, quando
a garota aterrisou sobre o chão molhado do salão.

— Não gosto de pessoas que escutam atrás das portas — declarou Wolfe. Com uma
cadeira, abriu a porta o suficiente para que pudesse ver quem se aproximava, depois
sentou-se e olhou para Black Strap, que sorria com prazer. — Amanhã à noite, o Armazém
Whitley estará cheio de rum e açúcar. Um navio chegou hoje das Antilhas e está
descarregando. É claro que haverá gente guardando as portas, mas um deles é meu amigo.

Black Strap foi até um armário, pegou uma garrafa e duas canecas e encheu-as de
brandy.

— O que acha? — Wolfe perguntou, aceitando uma das canecas.

— Ao crime! — Black Strap brindou, com um sorriso.

— Ao crime!

Horas depois, deitado sobre a cama suja, Wolfe acariciava as coxas entreabertas da
garota loira, beijando-lhe os seios nus. De olhos fechados, ela gemia baixinho, e ele a
tomou distraidamente, quase com ternura. Então pensou em Sophia nos braços de Stonor,
e a garota sob seu corpo gritou, alarmada com a selvageria de seus movimentos. Quando
terminou, deixou-se cair sobre ela. Nem chegara a ouvir os gritos de prazer da garota.

— Ah, Wolfe! — ela gemeu, sem acreditar em sua boa sorte. — Wolfe!

Wolfe ergueu a cabeça e olhou-a, com um pouco de pena. Debaixo da sujeira, ela até
que não era feia, e o modo como reagia a suas carícias mostrava que estava mais
acostumada a tratar com homens rudes e sem consideração.
— Foi bom, Moll? — perguntou, com aquele charme que usava quando queria.

— Maravilhoso! Não vou cobrar nada, Wolfe. E se Rummy me bater, não tem
importância.

— Você pertence a Rummy, então? — Ele pensou no homem velho, gordo e de cara
manchada, lá embaixo, e fez uma careta. Moll não devia ter mais que vinte anos.

— Ele não é tão ruim assim. Só fica com metade do que eu ganho. E me dá casa e
comida.

— Se ele bater em você, eu corto-lhe a garganta — Wolfe declarou.

Os olhos dela brilharam.

— Não quer que eu trabalhe para você? Posso ganhar o bastante para nós dois. Você
nunca teria que pegar no pesado, se não quisesse.

— É uma oferta tentadora, Moll, mas eu tenho outros planos para o futuro. Em todo
caso, obrigado.

A garota não disfarçou a decepção.

— Mas você volta, não é? Não vou cobrar nada.

— Claro — Wolfe respondeu, com um sorriso bondoso, começando a se vestir.

— Foi bom para você também, Wolfe?

Percebendo a nota de nervosismo na voz de Moll, como se ela estivesse com medo de
que sua resposta fosse não, Wolfe inclinou-se e beijou-a na boca. Ela retribuiu com ardor.

— Era do que eu mais precisava, Moll — disse, junto aos lábios dela. E ouviu-a
suspirar de prazer.

No pequeno quarto de pensão, Wolfe andava de um lado para o outro, enquanto a


mãe o contemplava, muito pálida e abatida.

— Estive com o advogado — disse, de repente. — Anos atrás, meu pai fez um
testamento deixando tudo para Stonor, com algumas doações para Elizabeth e Grey. Para
nós, ele não deixou nada. Não duvido que tivesse intenção de fazer outro testamento, mas
nunca o fez.

Lucy não se moveu, como se não tivesse ouvido.

— Mãe, a senhora entendeu? Ele não deixou nada para nós! — Uma onda de raiva o
assaltou ao notar a infelicidade da mãe. — Como é que ele pôde fazer isso com você?!

Lucy reagiu afinal, dizendo com lábios trêmulos:


— Que importância tem isso? Ele morreu. É a única coisa em que consigo pensar,
neste momento.

— Mas nós estamos vivos! Precisamos continuar vivendo e não temos dinheiro, mãe!
Fora a roupa do corpo, nós não temos absolutamente nada! Será que não dá para a senhora
entender?

— Cale-se, Wolfe! — Lucy ergueu-se. — Não vê que eu não me importo?

Enraivecido, ele esteve pronto a dizer algo áspero. Mas depois mudou de idéia e,
num tom mais gentil, perguntou:

— O que a senhora pretende fazer? Para onde vai?

Ela riu de um jeito estranho.

— Para o rio, talvez.

— Não diga uma coisa dessas!

— Para mim, a vida acabou. James se foi, e o melhor seria eu ir também.

— A senhora ainda é moça. Como pode falar assim?!

— Meu filho, você nunca se perguntou o quanto me custava viver como vivi?
Sacrifiquei minha reputação por James. Eu venho de uma boa família, séria e religiosa.
Arrisquei a minha alma, sendo amante de James. Não foi fácil fazer o que ele queria, mas
eu o amava. Agora que ele está morto, não tenho mais motivos para viver.

— E eu, mãe?

Fitando o rosto magoado do filho, Lucy mudou.

— Ah, Wolfe! — Estendeu as mãos, e ele se ajoelhou junto a sua cadeira, apoiando a
cabeça em seu colo.

Mais tarde, Wolfe perguntou à mãe:

— O seu irmão mora em Bristol, não é?

— Josiah? Mora sim, mas ele não quer me ver de jeito nenhum. Ele é um Wesleyan,
Wolfe, e me julga uma mulher perdida, capaz de contaminar a casa dele.

— Vocês não se vêem há quase vinte anos. Pode ser que ele tenha mudado.

— Josiah sempre foi firme em suas convicções. Ele jamais mudaria, meu filho.

Wolfe sorriu.

— Estou com vontade de dar uma chegada a Bristol, mãe. Venha comigo. Podemos
procurar tio Josiah e ver como ele está. Afinal, vocês são parentes de sangue, e ele não
pode ser tão ruim!
— Por que você quer ir a Bristol? — Lucy estava assustada. — Por que, Wolfe? .

— De lá, pode-se tomar um navio para a América.

— Nós não temos dinheiro para a passagem.

— Mas vamos ter.

Ele falou com tanta frieza e determinação, que a preocupou. Lucy temia o gênio do
filho. Desde que tinham saído da casa dos Whitley, com apenas a roupa que possuíam,
viviam um pesadelo. Stonor mandara dois criados supervisionar sua partida, para que não
levassem nada de valor. As jóias que James lhe dera haviam ficado para trás. Só lhes
permitiram conservar as roupas de vestir e o canário.

Maria Whitley a olhara com ódio, enquanto ela descia a escada, já pronta para partir.

— Queime todos os móveis lá de cima — ordenara a um criado. — E as roupas


também.

Um médico estava no hall, com Stonor, e Lucy o ouvira dizer:

— Eu não poderia ter feito nada, mesmo que estivesse aqui, na hora do ataque. Foi
uma morte rápida, quase sem dor, meu filho. Um instante e estava tudo acabado.

Wolfe não se detivera ao passar por Stonor, mas Lucy vira o ódio lampejar entre os
dois. Na hora, Wolfe só lhe dissera que James tinha morrido de um ataque cardíaco, mas
no dia seguinte ela arrancara dele a história completa. Sua premonição de uma tragédia se
revelara verdadeira: a paixão de Wolfe pela garota causara a morte de James.

Agora, olhando para o filho, Lucy não podia deixar de desejar que a garota jamais
tivesse aparecido em Londres. Quanto a Wolfe, por que estaria ele planejando ir a Bristol?
Teria algo a ver com a moça? Queen's Stonor ficava a poucos quilômetros de Bristol. Era
difícil acreditar em coincidências, mas era ainda mais difícil fazer perguntas a Wolfe.

Lucy Hunt era uma mulher simples, de natureza afetuosa e um corpo magnífico. Fora
a combinação disso que atraia James e o mantivera fiel a ela, durante todos aqueles anos.
Lucy fora criada com muita severidade, sob a religião ameaçadora e o Deus vingativo de
seu pai. Moça, fugira para Londres e se empregara como doméstica. Conhecera então
James Whitley, por quem se apaixonara. Sem muita dificuldade, ele a seduzira e
convencera a ir morar na casa dele. No início, ela se apavorara com o ódio de Maria, mas
James a protegera, obrigando a esposa a deixá-la em paz, com a ameaça de abandonar a
família, se tudo não corresse como queria.

Embora levasse uma vida estranha, Lucy conseguira transformar o pequeno


apartamento num lar para James e Wolfe. Ela era uma criatura meiga e bondosa, nascida
para ser mãe e esposa, que ansiava por uma posição respeitada. As circunstâncias nas
quais vivera com James Whitley eram completamente contrárias a seu caráter.

— A América é tão longe! —disse para o filho. — Seria melhor você arranjar um
emprego na cidade, Wolfe. Tenho certeza de que um dos amigos de seu pai poderia lhe
arranjar uma colocação numa boa firma. Você é bom em contabilidade.

— E levar uma vida de escravo? De jeito nenhum, minha mãe! Tenho outros planos
em mente.

Sentada na sala de estar, vestida de negro, Sophia olhava para as mãos. Tia Maria
passara o dia inteiro na cama, pálida e calada, como se o funeral do dia anterior tivesse
esgotado por completo sua energia.

Stonor cuidara de tudo. Um fileira de carruagens seguira o carro funerário, puxado


por quatro cavalos negros, enfeitados com plumas negras. James Whitley tivera um funeral
magnífico, muito concorrido. Naturalmente, as mulheres da família vestiram-se de preto
da cabeça aos pés, e Sophia guiara tia Maria o tempo todo, pois Elizabeth logo se cansara
disso.

No momento, Elizabeth se encontrava com Tom Lister na estufa, sussurrando


segredos. Grey estava ali, diante da lareira, mais pálido e magro do que nunca, olhando
para os sapatos polidos. Ele não gostava de ficar em casa e se aborrecia com o.fato de a
morte do pai obrigá-lo a fazer o que não queria. Sophia pouco sabia dele, a não ser que
tinha um temperamento violento e odiava Wolfe quase tanto quanto Stonor.

De repente, Grey ergueu a cabeça e disse ao irmão:

— A menos que você tenha algo em contrário, eu gostaria de ficar com o apartamento
lá de cima para mim.

Stonor, que estivera absorto em pensamentos, fitou-o.

— O quê?

— O apartamento lá de cima. Agora que está vazio, o que pretende fazer com ele? Se
não se importa, eu gostaria de me instalar lá. Poderia entrar e sair, sem ter mamãe
controlando todos os meus passos. .

— Está bem. Mas pelo amor de Deus, Grey, não vá fazer papel de tolo, agora que
papai não está mais aqui para vigiar você.

— Não comece! — Grey advertiu, a cicatriz lívida ressaltando-se em seu rosto branco.

— Eu não vou continuar pagando as suas dívidas, como papai fazia.

— Eu tenho o meu dinheiro.


— Só que, quando ele acabar, não vai encontrar mais na fonte de onde ele veio!

— Essa divisão foi muito injusta. A troco de quê você merece mais do que eu? Só
existe um ano de diferença entre nós, e eu trabalho tão duro quanto você.

As sobrancelhas de Stonor ergueram-se, ironicamente.

— É? E quando é que você faz todo esse trabalho? Não é no escritório, porque lá você
quase não aparece.

— Eu reconheço que não sou um escravo do trabalho, como você, que vive com o
nariz enfiado naqueles livros, mas eu faço a minha parte.

— É bom que faça, mesmo. Não quero vê-lo fugindo a toda hora do trabalho, como
fazia com papai. Se quer continuar visitando suas amiguinhas, terá que ser fora do seu
horário e às suas custas.

— Meu Deus, não há sangue em suas veias, Stonor — Grey comentou, com desgosto.
— Você não é um homem, é uma maquina de ganhar dinheiro. Guarde seus sermões para
você mesmo, porque não vou deixar que dirija minha vida. Agora que papai se foi, estou
livre disso tudo. — Com passos rápidos, ele saiu da sala, batendo a porta atrás de si.

Sophia ouvira tudo sem se importar e sem realmente compreender. Na verdade, nem
tinha consciência de que Stonor estava sentado diante dela, muito tenso num terno preto e
camisa branca. Só quando o relógio sobre a lareira deu horas, ela saiu de sua abstração.

Stonor levantou-se, e Sophia sentiu-lhe o olhar em sua cabeça abaixada. Muito rígida,
ouviu-o caminhar até a porta que dava para a estufa e fechá-la. Olhou para as mãos,
engolindo em seco, quando ele voltou para junto dela, mas não ergueu os olhos.

— Como vou estar de luto durante seis meses, nosso casamento está adiado. Minha
mãe não gostaria que desprezássemos as convenções sociais, e eu quero dar a ela tempo
para se acostumar com a morte de meu pai. Por isso resolvi que é melhor você voltar para
Queen's Stonor.

Surpresa e aliviada, Sophia o fitou. De imediato uma expressão de ironia tomou


conta do rosto masculino.

— Você parece cansada. Não quer ir dormir?

Sophia levantou-se depressa, e ele cruzou a sala para abrir a porta. Sem erguer o
olhar, ela avançou para lá.

— Sophia! — Stonor chamou baixinho, quando passava por ele.


Ela parou, trêmula, à espera. Colocando a mão sob seu queixo, ele sentiu seu
movimento de recuo, mas mesmo assim obrigou-a a fitá-lo. Uma onda de apreensão
dominou-a. Não o olhara o dia inteiro.

— Todas as noites, quando nos despedirmos, você me dará um beijo.

Sophia umedeceu os lábios com a língua, e o olhar frio de Stonor acompanhou seu
movimento. No momento seguinte os lábios dele cobriram os seus com tanta avidez, que
sentiu-lhes o gosto na língua. Ofegante, tentou fechar a boca, e de imediato ele se afastou.

— Boa noite, Sophia.

Tremendo, nervosa com a intimidade que fora obrigada a suportar, ela fugiu para o
hall e subiu as escadas. A mistura de frieza e sensualidade em Stonor era apavorante.
Desde a partida de Wolfe estava vivendo num estado de choque, mal tomando
conhecimento do que acontecia em torno de si. Se conseguira manter uma aparência de
calma e dignidade, fora unicamente devido ao fato da tia precisar dela.

Mas não podia mais suportar e, assim que chegou ao quarto, jogou-se sobre a cama, o
corpo sacudido por soluços descontrolados de infelicidade. Toda a mágoa viera à tona.

De repente, sentiu alguém pousar a mão em seus cabelos e enrijeceu, apavorada com
a idéia de Stonor estar ali.

— Minha pobre menina! — exclamou tia Maria, sentando-se na beirada da cama. —


Eu ouvi você chorando. Pobrezinha, deve estar sendo horrível! Mas não chore assim, que
acaba doente.

Sophia cobriu o rosto, gemendo:

— Oh, Deus, como é que eu vou agüentar? O que é que eu vou fazer?

Tia Maria pôs-se a acariciar-lhe os cabelos.

— Tire tudo da sua cabeça, tente esquecer-se do que aconteceu. Graças a Deus
cheguei antes que aquele animal tivesse tempo de prejudicá-la. Quando penso naquelas
mãos imundas em você... Ah, eu sei o que você sentiu e agradeço a Deus ter chegado
naquela hora. Se eu não tivesse ouvido nada...!

— Coitado do tio James! Foi por minha culpa que ele morreu. Desde que o tio
morrera, Sophia vinha sendo atormentada por essa idéia.

— James sofreu a conseqüência dos próprios pecados — tia Maria corrigiu-a, com
uma expressão tão dura quanto a de Stonor. — Deus fulminou-o. Está escrito na Bíblia que
seremos punidos pelos nossos pecados. E aquele garoto era o pecado de James.

— Não! — Sophia exclamou, soluçando mais alto.


— Não deve se sentir culpada de nada. Ninguém nessa casa a culpa, minha querida.
Você é uma criança inocente, e aquele animal tentou se aproveitar disso.

Sophia continuou soluçando, enquanto a tia acariciava seus cabelos. Nenhuma delas
entendia a outra.

Wolfe caminhava pela Ratcliffe Highway, indiferente aos convites das prostitutas, aos
olhares curiosos dos marinheiros e aos xingamentos dos bêbados que nele esbarravam. À
noite podia-se comprar qualquer coisa ali, desde um par de sapatos até uma mulher. A
polícia nunca aparecia na região depois do anoitecer, a não ser aos pares. Era muito
perigoso caminhar sozinho por aquelas ruas.

Uma menina, com o rosto muito pintado, agarrou-se à perna de Wolfe, murmurando
um convite automático, quando ele passou pela porta de uma loja. Ali, crianças podiam
ser compradas como bonecas. Mas Wolfe, apesar de se divertir sempre naquela região,
jamais gostara de ver as meninas prostitutas em seus postos, procurando fregueses. Nas
partes mais seletas de Londres, havia casas especiais para os homens ricos que preferiam
crianças, mas ali os piores vícios estavam sempre à vista de todos.

Num beco escuro, Black Strap e alguns homens esperavam, com os rostos pintados de
negro, para não serem reconhecidos. Todos carregavam facas e revólveres.

— As carroças já estão no lugar combinado — Black Strap comunicou, assim que


Wolfe apareceu. — Se tudo correr conforme o planejado, já estaremos longe, quando os
guardas chegarem. Jackie dirige uma carroça, e Monkey a outra. O resto se espalha,
quando o trabalho terminar, e depois vai atrás de mim, no Turk's Head.

— Não vai ter problema com o sujeito que esta montando guarda dentro do
armazém? — Monkey perguntou.

— Nenhum — garantiu Wolfe. — Eu o conheço há anos. Podemos confiar nele.

Monkey, um homenzinho pequeno, de pernas arqueadas, deu de ombros.

— Está bem, só espero que não esteja enganado, Wolfe. Porque, se você está mentindo
para nós, vai receber o que merece, meu caro. Disso, não há a menor dúvida!

Wolfe avançou um passo, cheio de hostilidade, mas Black Strap interferiu, sorrindo.

— Calma, garotos. Nada de brigas. Temos trabalho a fazer. Em silêncio, atentos ao


menor barulho, eles atravessaram as ruas escuras e estreitas. O Armazém Whitley ficava
um pouco acima do rio, e suas enormes portas tinham duas vezes a altura de um homem.
Mas Wolfe procurou uma porta lateral, menor, e bateu três vezes. Depois de um instante,
responderam lá de dentro, com mais três batidas. Wolfe replicou com uma única batida, e
a porta abriu-se.
Amarrando uma mordaça no homem que os deixara entrar, Wolfe sussurrou:

— Espero que isso não doa muito, Joe. — E atingiu-o na cabeça com a coronha do
revólver.

O homem desmaiou e Wolfe arranjou-o no chão, para dar a impressão de que caíra.
Os outros espalharam-se pelo local escuro, sem fazer barulho, pois tinham meias sobre as
botas. Um a um, os guardas foram sendo atacados e derrubados. De repente, no entanto,
houve um clarão e um estampido ensurdecedor ressoou pelo ambiente.

— Deus do céu! — murmurou Black Strap.

Imóvel, um dos componentes do grupo olhava para o guarda caído a seus pés,
coberto de sangue.

— Eu não tive culpa! Ele agarrou meu revólver e, na luta, o maldito disparou!

— Cale a boca! — ordenou Black Strap. — Está feito e acabou. Não há nada que
possamos fazer. Vamos em frente com o trabalho. '

— Alguém pode ter ouvido — disse Monkey, apreensivo.

— Andando, vamos!

Eles trabalharam depressa, levando para as carroças os sacos de açúcar e os toneis de


rum. Os cavalos moviam-se, inquietos, batendo os cascos envoltos em pano nas pedras da
rua. Do rio escuro, lá embaixo, vinha o som dos rebocadores puxando navios.

Wolfe ajudava os outros, excitado pelo cheiro de perigo. Seus olhos brilhavam,
quando disse sorrindo a Black Strap:

— Terminado!

— Vamos embora — Black Strap ordenou ao grupo.

Chicoteados, os cavalos começaram a se mover. Wolfe sentiu a alegria nascer em seu


peito, ao olhar para o nome Whitley, pintado sobre a porta do armazém.

— Tiramos quase tudo — exclamou, triunfante. — A perda vai ser grande. Um


pagamento por conta, Stonor.

O grupo começou a se espalhar pela escuridão. De repente, do canto da rua, uma voz
gritou:

— Parem ou nós atiramos!

— Droga!

Wolfe abaixou-se quando viu o clarão da arma, mas um segundo depois sentiu a dor
aguda e ardente em seu braço. Correndo mais, com as feições tensas pelo sofrimento,
enveredou pela rua mais próxima. Era um beco sem saída, fechado por uma sólida parede,
mas ele não teve dificuldades em pular para o jardim atrás dela e depois para a outra
ruazinha.

No entanto, a polícia o seguiu. Ofegante, com os pulmões doendo pelo esforço, Wolfe
não conteve um palavrão, ao bater o braço ferido num moirão de pedra, usado para
amarrar cavalos. As ruas pareciam não ter fim, e, ao virar uma esquina, ele se chocou com
um casal que se beijava. Mas logo estava correndo de novo, indiferente aos palavrões de
que era alvo.

Usando a mão direita para apoiar o braço ferido, Wolfe pôs-se a rir enquanto corria.
Quando entrou na rua do Turk's Head, seu coração parecia prestes a explodir. Uma escada
externa levava diretamente ao quarto acima do bar, e ele subiu por ela, jogando-se de
encontro à porta, que se abriu de imediato.

Moll fitou-o por cima do corpo de um marinheiro.

— Desculpem a interrupção — disse Wolfe com ironia, um segundo antes de cair ao


chão. Quando abriu os olhos, Moll cortava a manga de suas roupas com uma faca. — Sinto
ter arruinado sua noite de trabalho!

— Fique quieto, isso sim!

— Seu freguês se zangou?

— Ele conseguiu o que queria. — Ela examinou a massa de sangue e tecido. — Minha
nossa! O que foi que aconteceu?

Black Strap entrou abruptamente, vermelho e sem fôlego.

— É grave? — perguntou, preocupado. Wolfe sorriu, negando com um gesto de


cabeça.

— É um ferimento superficial. As carroças conseguiram escapar?

— Todos nós escapamos. Você foi o único que saiu ferido. — Vendo Wolfe
empalidecer ainda mais, Black Strap foi até o armário e voltou com uma garrafa de brandy.
— Tome um gole disso aqui.

— Está querendo me embebedar, antes de tirar a bala do meu braço?

— Beba logo, seu bobo!

Wolfe tomou um gole e tentou parar, mas Black Strap agarrou-o pelo queixo e
obrigou-o a beber mais.
— Maldito! — exclamou Wolfe, engasgando e tossindo. — Não havia necessidade
disso. Vá em frente, então! — Ergueu os olhos para o teto, começando a rir. — Malditos
sejam todos eles!

Tirando a faca do cinto, Black Strap aqueceu-a sobre a chama de uma vela enquanto
Wolfe ria, murmurando coisas sem sentido. Moll ajoelhou-se ao lado dele, segurando-o
pelos ombros.

— Ele pode se mexer, quando você for tirar a bala — explicou.

Black Strap começou a trabalhar. A garota estremeceu, mas se manteve firme, os


olhos apaixonados fixos em Wolfe. Muito corado, ele continuava a murmurar coisas sem
sentido. Ao inclinar-se para beijá-lo, ela o ouviu gemer:

— Sophia!

Algumas horas depois, Wolfe acordou. Da cama imunda ele fitou o rosto ansioso de
Moll, sem reconhecê-lo. Depois, um sorriso surgiu em seus lábios e ele olhou para o
curativo no braço.

— A bala saiu?

Ela cobriu-o melhor.

— Você tem que ficar quieto.

— Tenho? — Com um leve sorriso, ele a examinou. — Venha cá, Moll. Sou um
homem doente e preciso de conforto.

— Você está muito doente, Wolfe. Black Strap disse que era para você dormir.

— Não há sono melhor do que o que vem, depois do que vou fazer com você — ele
replicou, zombeteiro.

— Agora não dá Wolfe! Deixe para quando ficar melhor.

— Venha cá, Moll. Estou precisando tanto de carinho! Isso, seja uma boa menina!

Relutante, ela se deitou junto dele.

— Fique quieto, que eu faço tudo.

— Tudo?! Minha nossa!

— Você ainda está bêbado.

— Não tanto quanto eu gostaria — Wolfe disse, num tom sombrio.

— Não é possível que você queira beber mais. — Ela o acariciou, cheia de adoração.
— Ah, Wolfe, você é o homem mais bonito que já vi! Sou capaz de fazer qualquer coisa por
você. Eu te amo! Fique quietinho, que eu cuido de tudo. É só você me dizer o que quer.
Wolfe sentiu uma ponta de pena. Acariciando lhe os sujos cabelos loiros, beijou-a no
rosto, como se fosse uma criança.

— Moll, querida — sussurrou.

E ela sorriu como se ele tivesse dito que a amava.

De cabeça baixa, Sophia empurrava a comida de um lado para o outro do prato,


enquanto Elizabeth consumia com apetite o reforçado café da manhã de costume. Grey
saíra antes das duas descerem, mas o lugar de Stonor ainda não fora tocado. Tia Maria
pedira o café na cama, como vinha fazendo desde a morte do marido.

De repente Stonor entrou, e Elizabeth ergueu os olhos para ele, limpando a boca com
um guardanapo.

— Você está atrasado, Stonor.

— Estive fora. O chá ainda está quente? — Sentando-se, ele testou a temperatura do
bule, depois tocou a sineta, chamando a copeira. — Mais chá, Joan.

— Onde é que você esteve? — Elizabeth quis saber.

— Assaltaram o armazém, esta noite.

— Minha nossa! E os ladrões foram pegos?

Stonor olhou para Sophia, ao mesmo tempo em que passava manteiga numa torrada,
com movimentos precisos e estudados.

— Eles mataram um dos guardas e nocautearam os outros. Depois escaparam com a


mercadoria.

— Foi muito? O armazém não recebeu um carregamento novo, antes de ontem?

— Um carregamento de açúcar e rum — Stonor replicou, os olhos fixos na cabeça


abaixada de Sophia. — Quem estava por trás do roubo sabia exatamente o que procurar e
como entrar no armazém. Foi uma operação muito bem planejada, obviamente com
cooperação interna. Alguém os deixou entrar lá.

— Quem? — Elizabeth perguntou. — É preciso descobrir e castigar essa pessoa.

— Sem dúvida.

Um brilho interesseiro surgiu nos olhos de Elizabeth.

— Quanto é que nós perdemos, Stonor? Foi muito?

— E difícil calcular com certeza, mas não foi pouco.

— Estava no seguro?

— Claro que sim!


Com um suspiro de alívio, Elizabeth levantou-se.

— Vou contar à mamãe.

— Não, Elizabeth — disse Stonor abruptamente. — Deixe-a em paz, ela já tem muita
coisa com que se preocupar.

Elizabeth hesitou, depois deu de ombros.

— Está bem.

Stonor voltou-se para Sophia, assim que ficaram a sós. Ainda sem fitá-lo, ela se
ergueu e caminhou para a porta. Mas a voz dele, fria como gelo, deteve-a antes que saísse.

— Não está interessada no roubo, Sophia? Pois deveria estar. Alguns detalhes são
fascinantes.

Ela percebeu o toque de malícia na voz dele. Não ergueu os olhos, mas ouviu-o com
mais atenção.

— Só um sujeito do bando não se deu ao trabalho de pintar o rosto de preto, para não
ser reconhecido. A polícia notou que ele usava roupas muitas boas para um ladrão
comum. Também notou a altura dele, a cor dos cabelos, o relógio com corrente de ouro...

Sophia empalideceu. Num gesto rápido, Stonor estendeu a mão por cima da mesa e
agarrou seu pulso, apertando-o com crueldade. Ela ergueu a cabeça, em pânico. Não
agüentava ficar no mesmo cômodo que ele. Tinha a impressão de que ia sufocar.

— Você ouviu o que eu disse, Sophia?

— Ouvi.

— Pois ainda há mais.

Sophia apertou os lábios, para disfarçar o quanto tremiam, mas seu olhar traiu o
medo que sentia.

— Os policiais estavam armados:..

A agonia refletia-se em seu rosto. Respirou devagarinho, tentando se controlar,


consciente dos olhos de Stonor, atentos a cada mudança de expressão sua.

— ... e atiraram nele — Stonor disse afinal, deliberadamente. Levantou-se, dando a


volta à mesa com passos rápidos, como se já antecipasse o que ia acontecer.

Alcançou-a exatamente quando ela desabava no chão, tomando-a nos braços e


levando-a para o quarto. Colocou-a sobre a cama, soltou-lhe o vestido e, com um lenço
embebido na água do jarro sobre a cômoda, umedeceu-lhe a testa.
Quando Sophia se mexeu, Stonor recuou. Vagarosamente, ela entreabriu as pálpebras
e fitou-o.

— O seu amante está morto — disse Stonor, assim que viu que ela havia recuperado a
consciência. — Foi alvejado na rua, como um cachorro louco, depois de assaltar nosso
armazém. Um fim merecido. Se eu fosse minha mãe, diria que a mão de Deus o alcançou.
Mas não vou amolar você com esse tipo de coisa, Sophia. Só lamento que não tenha sido
minha, a mão que puxou aquele gatilho.

Sophia não se moveu nem falou, continuando a fitá-lo como se fosse surda.

— Nada de lágrimas, Sophia? Não vai chorar pelo homem que amou? — zombou
Stonor. Mas sua expressão era completamente fria.

Sophia continuou como estava, com o rosto completamente inexpressivo, chocada


demais para chorar. Sentia um vazio absoluto na mente, como se tivesse perdido a
capacidade de pensar e sentir. A notícia de que Wolfe estava morto penetrava em seu
cérebro, mas ela se recusava a aceitar a realidade. Se aceitasse, provavelmente
enlouqueceria.

— Chore, sua vagabundazinha! — Stonor disse num tom áspero, inclinando-se para a
frente e dando-lhe um tapa forte no rosto. — Deixe-me ver você chorar por ele.

Quando ela não mostrou o menor sinal de dor ou compreensão, Stonor lhe bateu de
novo, com tanta força que jogou a cabeça dela para trás.

— Agora diga-me a verdade, Sophia: ele a possuiu? Quantas vezes ele esteve em seu
quarto, à noite? Era lá que vocês se encontravam? Fale, Sophia! Eu quero a verdade! Ele já
era seu amante, naquela noite em que minha mãe os encontrou?

A expressão vaga dos olhos azuis não se alterou. Nenhuma pergunta conseguiu
provocar uma resposta. Stonor fazia uma pausa depois de cada pergunta, à espera de uma
resposta que não vinha. Ele respirava como se estivesse se afogando e sofresse com cada
movimento de seu tórax. Quando viu que ela não ia mesmo reagir, ergueu-a nos braços
com um gemido abafado.

— Ah, sua vadiazinha! — exclamou num tom amargo, encostando o rosto nos seus
cabelos e embalando-a como se fosse um bebê.

Capítulo VI
A farmácia ficava numa rua estreita e mal iluminada. Wolfe acionou o sininho sobre a
porta, e esperou que alguém viesse atendê-lo. O farmacêutico, um homem pequeno,
encurvado e de rosto pálido, não demorou a aparecer.

— Em que posso servi-lo, meu senhor?

— O senhor é Josiah Hunt? — Wolfe perguntou, olhando-o com atenção.

— Sou, sim.

Wolfe deu um passo para o lado e Lucy avançou, lentamente. Estava vestida de preto
e tinha os cabelos loiros escondidos por um chapéu severo, da mesma cor.

— Não me reconhece, Josiah? — ela perguntou, com olhar implorante e uma


pontinha de esperança na voz.

— Saia da minha farmácia!

— Josiah!

— Como se atreve a vir aqui?!

— Eu sou sua irmã — Lucy murmurou, estendendo para ele a mão trêmula. —
Josiah, eu...

— Eu não tenho irmã! Tive uma, mas ela se tornou uma prostituta e perdeu o direito
de conviver com os eleitos.

Josiah falava por entre dentes, com as narinas fremindo, e Lucy encolheu-se. Tomado
por um súbito acesso de raiva, Wolfe avançou e agarrou o tio pelo pescoço, levantando-o
do chão.

— Não, Wolfe! — Lucy gritou, segurando-lhe o braço. — Eu lhe disse que seria assim!
É melhor irmos embora. Não há sentido em falar com ele.

Wolfe não deu a impressão de ouvi-la. Desde a morte do pai, vinha tendo acessos de
raiva cada vez mais freqüentes e fortes. Ele sacudiu o tio como se fosse um rato, e o velho
gritou:

— Você não me amedronta! Eu sou um dos eleitos. Percebendo um movimento na


cortina que separava a farmácia do resto da casa, Wolfe se dominou. Com um gesto de frio
desdém, atirou o velho para longe de si e seguiu a mãe para fora.

Tossindo, com as mãos no pescoço, Josiah Hunt deixou-se cair sobre o balcão. De
imediato a cortina que dava para os fundos abriu-se e uma garota correu para ele.

Enquanto ela ajudava o pai, um rapaz, usando um terno barato, deu a volta à
farmácia e saiu atrás de Wolfe e Lucy.
Tossindo, com o rosto contorcido pela raiva, Josiah Hunt encarou a filha, que se
encolheu de medo. Ele era terrível quando se descontrolava.

— Se eu não estiver aqui e aquela... aquela mulher e o rapaz que a acompanhava


voltarem, não os deixe passar da porta, Eliza. Eles não são dignos de falar com gente
decente. São pecadores!

— Está bem, papai — a garota concordou, docemente. Apesar das roupas feias e dos
cabelos presos num coque severo, ela exibia uma beleza delicada, com o olhar meigo
espelhando uma enorme fragilidade interior.

Josiah empurrou-a para longe de si, dirigindo-se à parte dos fundos.

— Cuide da loja, que eu vou lá para dentro.

Eliza obedeceu, aliviada, e Josiah prosseguiu em seu caminho, murmurando


baixinho:

— Vagabunda... Vagabunda...

O som de passos correndo pela rua, seguindo-os, alertou Wolfe. Ele girou nos
calcanhares, protegendo a mãe com o corpo, pronto para lutar. Nas ruas de Londres
aprendera cedo a se defender dos ladrões.

O rapaz que se aproximava diminuiu o passo, erguendo as mãos para mostrar que
não trazia armas nem pretendia lhes fazer mal. Wolfe fitou-o, curioso, notando-lhe a
pobreza das roupas e a aparência limpa e respeitável.

— Ouvi o que meu pai disse, na farmácia. — O rapaz, de pálidos olhos azuis,
constituição forte e queixo determinado, virou-se para Lucy e fez uma leve reverência. —
A senhora deve ser minha tia Lucy. Quando meu pai não estava perto, minha mãe
costumava nos falar da senhora. Ela teria gostado de vê-la, se estivesse viva.

— Nan morreu, então?! — Lucy exclamou, penalizada.

— Há quatro anos. — As feições do rapaz endureceram. — Ela morreu porque meu


pai se recusou a pagar um médico, medicando-a ele mesmo. Se ela tivesse consultado um,
provavelmente ainda estaria viva, mas ele não deixou. Não adiantou nem eu me oferecer
para pagar a conta.

— Que pena! Eu gostava tanto da sua mãe...

— Ela também gostava da senhora. .

— Você deve ser Luther, então. Ainda me lembro do dia em que você nasceu. Eu não
tinha nem a sua idade.
— Mamãe me contou que a senhora ficou com ela, quando eu estava para nascer.
Meu pai não quis pagar uma parteira, alegando que o nascimento é um ato de Deus e não
precisa de ajuda humana. — As feições de Luther encheram-se de amargura. — Ele disse a
mesma coisa quando ela deu à luz a última criança. O parto durou dois dias, e o bebê
morreu antes de nascer. Mamãe quase morreu também, mas eu chamei o médico a tempo.
Meu pai me deu uma surra por isso, e nunca me perdoou por tê-lo desobedecido.

— Ele queria que Nan morresse? — Wolfe perguntou, chocado.

Um sorriso amargo surgiu nos lábios de Luther.

— Não, ele só não queria que eu interferisse com a vontade de Deus. E, se minha mãe
morresse, teria sido pela vontade de Deus.

— Por que você continua com ele? Eu já teria matado esse louco, se estivesse no seu
lugar!

— Fico porque ele está para morrer — Luther explicou, com os olhos brilhantes. —
Eu quero estar lá, na hora em que ele morrer.

Lucy colocou a mão sobre o braço do sobrinho, suspirando.

— Ah, você é um bom menino, Luther!

Wolfe, no entanto, fitou o primo com mais atenção e sorriu, do jeito que costumava
fazer quando estava excitado.

— Você vai gostar de vê-lo morrer, não é?

— Wolfe! — Lucy censurou-o, horrorizada.

Luther mostrou os dentes, num sorriso cruel.

— Vou me ajoelhar ao lado da cama e ficar repetindo que ele foi amaldiçoado por
toda a eternidade. Será uma morte longa e dolorosa! Acho que ele sabe que ela está
chegando. Eu rezo para que seja do pior tipo possível, e que eu esteja lá para ver.

Wolfe estendeu a mão.

— Primo, é um prazer conhecê-lo!

Chocada, Lucy viu os dois rapazes trocarem um forte aperto de mão.

— Vocês vão precisar de alojamento — disse Luther. — Sei de um lugar onde podem
se acomodar. Não é um palácio, mas é limpo e barato. Pretendem ficar muito tempo por
aqui?

— Nós estamos hospedados no Star, mas será bom arranjarmos um lugar mais
barato, enquanto minha mãe decide o que fazer. Estou pensando em ir para a América.
Luther lançou um olhar para a tia, antes de perguntar baixinho ao primo:

— São só vocês dois, então?

— Só. Meu pai faleceu e nós ficamos sem lar e sem dinheiro. Ela não está querendo ir
comigo para a América, e eu não posso partir enquanto não arranjar um bom lugar para
deixá-la.

— Olhe, eu tenho que ir, antes que meu pai sinta a minha falta. Mas amanhã cedo
vou atrás de vocês, no Star. As pessoas que podem hospedá-los são irlandesas e católicas.
— Luther examinou o rosto do primo, mas não percebeu hostilidade nele. — Meu pai os
detesta, é claro. Ele odeia a Igreja Romana e é capaz de me matar se souber que os visito.

— Se é gente honesta, não me interessa que religião tenham — Wolfe replicou.

— Pensamos do mesmo modo, então. Mas agora eu tenho que ir. Até amanhã, primo.

O rapaz se afastou apressado, e Lucy disse:

— Estou tão cansada, Wolfe! Gostaria de me deitar um pouco. Preocupado, Wolfe


passou o braço pelos ombros dela.

— Não fique assim, mãe. Eu não vou partir, enquanto não souber que a senhora está
em boas mãos.

— De quem, Wolfe? Você é tudo que me resta no mundo. Se você partir, minha vida
se vai com você.

Wolfe dirigiu-lhe um olhar tenso e sombrio, cheio de frustração.

— Não vou deixar a senhora sozinha, minha mãe — repetiu, tentando disfarçar o que
sentia.

A Star era uma pensão suja, cheia de marinheiros e rudes homens barbados, que não
tiraram os olhos de Lucy enquanto eles subiam as escadas.

— Por que viemos para esta pensão, Wolfe?

— Não temos muito dinheiro para gastar com alojamento — explicou ele, pela
centésima vez. — Deite-se, minha mãe, e durma um pouco.

— O que é que você vai fazer? — E Lucy ergueu para ele os olhos ansiosos.

— Dar uma volta por Bristol. Mas não vou demorar. Tranque a porta depois que eu
sair.

Ao ficar sozinha, Lucy deitou-se na cama pouco limpa. Com lágrimas escorrendo
pelo rosto, abandonou-se à mágoa e à ansiedade que a perseguiam desde a morte de
James.
Enquanto isso, Wolfe caminhava pelas ruas estreitas e superlotadas em direção ao
porto, passando por bêbados, homens encostados em paredes e mulheres à porta de lojas.
Sua figura destacava-se em meio àquela escória devido a seu ar feroz e roupas finas,
embora já tivesse perdido boa parte de sua aparência refinada, desde que fora expulso da
casa dos Whitley. O sofrimento e o desejo de vingança tinham endurecido suas feições, e
todos que o viam eram obrigados a reconhecer um oponente perigoso, capaz de qualquer
coisa para obter o que queria. Ele sempre fora implacável e sem escrúpulos, mas agora isso
aparecia em sua expressão.

Entrando num bar pequeno e sujo, junto ao porto, Wolfe trocou algumas palavras
com o garçom. O homem apontou com o polegar para um cômodo nos fundos, e ele foi
para lá. Todos os clientes o fitaram, desconfiados como ratos acuados, tentando ler sua
expressão.

— Black Strap me disse que encontraria amigos aqui — Wolfe falou, pronto para
reagir rapidamente, se a acolhida não fosse amigável.

O silêncio envolveu o ambiente. Os homens se entreolharam. Então um deles, com as


calças largas e a camisa de jersey típica dos marinheiros, cuspiu no chão e disse:

— Os amigos de Black Strap são bem-vindos aqui.

— Tomem um copo de rum comigo, amigos. — Puxando uma cadeira, Wolfe sentou-
se.

— Nós tomaríamos rum até com o próprio diabo, se ele pagasse — garantiu um dos
homens. — Eu sou Link. E você?

— Wolfe. E sou capaz de morder. — Wolfe mostrou os dentes, num sorriso sem
hostilidade.

— Londres ficou muito quente para o seu gosto, Wolfe? — Link perguntou, quando o
rum foi servido.

— Me deu vontade de conhecer a América. Preciso de um lugar num navio.

— Já navegou antes?

— Não, mas sou capaz de pôr a mão em qualquer coisa. Link sorriu, exibindo uma
fileira de dentes amarelados.

— Principalmente se não for sua, hein?

— Ou se for a de uma mulher — Wolfe replicou, retribuindo o sorriso.


Na manhã seguinte Luther foi buscar Lucy e Wolfe. Nas ruas estreitas, o cheiro de sal
e peixe, os gritos das gaivotas, as filas intermináveis de lojinhas e os marinheiros
encostados às paredes davam uma boa idéia do que era a vida naquela cidade.

A imigração para a América diminuíra muito nos últimos anos, mas tabuletas
afixadas às portas dos escritórios de navegação ainda anunciavam partidas para os Estados
Unidos, dando o nome dos navios, do capitão e o preço da passagem. Com a luta dos
reformadores por melhores salários e condições de vida para os trabalhadores braçais,
viver na Inglaterra ia se tornando cada vez mais fácil. Tornara-se mais fácil encontrar
emprego, o pão estava mais barato, os salários mais altos, e a terrível fome de 1850
começava a se apagar da memória de todos.

Luther parou junto à escada estreita, de poucos degraus, que levava a uma porta
escura, onde bateu com forca. Uma garota pálida e magra, com um vestido sujo e cabelos
despenteados, veio atender.

— Bom dia, Maveen — Luther cumprimentou. — Seu pai já está de pé?

— Ainda não — ela respondeu num tom apático, com aquele sotaque irlandês que
lembrava chuva caindo. — Você precisava falar com ele?

— Eu lhe trouxe hóspedes. Esta é a minha tia Lucy, e o filho dela, Wolfe. Acha que
pode acomodá-los?

— Pode ser...

— Bem, é melhor eu entrar e falar com o seu pai.

A garota fixou os olhos castanhos em Lucy, reparando nas roupas e na limpeza dela.

— Esta casa não é para uma mulher como ela.

Wolfe enrijeceu. Percebendo sua reação, Luther segurou-o pelo braço e meneou a
cabeça, voltando-se então para a garota.

— A senhora não lhe dará trabalho, Maveen.

— Ela é muito fina para um lugar como esse, e eu não quero encrenca. Eu faço o que
posso.

Vendo que a menina só tinha medo de que Lucy a menosprezasse, Wolfe relaxou.
Lucy respirou fundo antes de entrar no hall pequeno e sujo, cheirando a ranço.

— Quem faz o trabalho da casa? — ela perguntou à garota.

— Eu, quando posso.

Lucy examinou-a de alto a baixo, notando a ossatura pequena, a pele pálida, o ar


desanimado e a fragilidade intensa, que são consequências de uma saúde ruim.
— Sem ajuda? Quantos anos você tem?

— Quinze.

— Quinze?! E onde está a sua mãe?

— Morreu, há cinco anos.

— E você vem cuidando de tudo, há cinco anos?

Maveen fez um gesto vago.

— Acho que sim.

— E nunca teve ninguém para ajudá-la?

— Como é que eu ia pagar alguém?

Da escada estreita que levava ao andar de cima veio o som de alguém que tropeçava.
Uma garrafa vazia desceu rolando, até parar junto deles. Um homem imundo apareceu,
cambaleando e fitando-os como se não tivesse certeza de vê-los. No entanto, por baixo do
inchaço causado pela bebida, suas feições não eram desagradáveis.

— Quem está aí? — ele perguntou, agarrando-se ao corrimão.

— Luther.

— Luther? Entre e seja bem vindo! Maveen, mande buscar mais uma cerveja.

— Pelo visto, o senhor já tomou mais do que devia — Lucy comentou, num tom
firme. — Alguns minutos debaixo da bomba de água não lhe fariam mal.

O homem ficou tão surpreso, que soltou o corrimão e jogou-se para a frente para vê-
la. Com isso, escorregou e despencou pela escada, indo parar no último degrau.

— Isso é que é jeito de descer! — exclamou com um riso áspero, sentando-se no chão.

— Pai, o senhor quer me envergonhar? — Maveen gemeu, olhando assustada para


Lucy.

Inclinando-se, Lucy forçou o homem a se levantar. Ele olhou-a com ar zangado.

— Mulher, saia desta casa! Isto não é lugar para uma dama. Wolfe agarrou-o com
mãos de aço.

— A senhora disse a bomba de água, minha mãe?

Sorrindo, Luther ajudou-o a levar o irlandês para fora, sob o olhar alarmado da
garota.

— O que é que eles vão fazer com o meu pai?


— Dar-lhe um banho. E nós vamos dar uma olhada na casa. Lucy adiantou-se,
pisando sobre o chão sujo, seguida por Maveen.

— Eu faço o que posso — a garota repetiu, ressentida. — Canso logo, e ainda tenho a
minha tosse.

Lucy notara mesmo a tosse da menina.

— Faz tempo que você tem essa tosse?

— Desde que me lembro por gente.

— E você mora só com o seu pai aqui, Maveen?

— Tem o Patrick, também. — O rostinho da menina se iluminou.

— Quem é o Patrick?

— Meu irmão. Ele sai de manhã para trabalhar, mas volta ao anoitecer.

Luther e Wolfe não tardaram a voltar com o dono da casa. A água fria o acordara
melhor, e ele foi capaz de fazer uma pequena reverência diante de Lucy.

— Desculpe meus modos de agora há pouco, madame. Sou Jack Duffey, a seu dispor.

— Sr. Duffey, estou procurando alojamento. Sua casa não está limpa e sua filha não
está bem. Se eu cuidar da sua casa e da saúde da sua filha, pode me dar comida e
alojamento de graça?

O homem voltou-se para Luther, surpreso.

— Comida e alojamento de graça, hein! Ela é dura nos negócios! Mas o que uma
mulher dessas haveria de querer numa casa como a minha? Posso estar bêbado, mas sei
reconhecer uma dama, quando vejo uma.

— Não tenho dinheiro e preciso de um lugar para viver — disse Lucy. — O senhor,
por sua vez, precisa de uma governanta. Estaríamos prestando um favor, um ao outro.

Ele sorriu.

— Está bem, trato feito!

Wolfe estava adorando a cena. Era a primeira vez que Lucy mostrava algum ânimo,
desde que James morrera. O desafio representado pela casa imunda, a garota doente e o
pai bêbado tinham dado a ela novo interesse pela vida. Lucy era o tipo de pessoa que
precisava se sentir necessária.

— Você tem um avental limpo? — perguntou a Maveen.

— A senhora vai limpar a casa agora?!


— "Não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje". Sr. Duffey, vamos precisar de
água. Muita água!

— E onde é que vou conseguir isso?

— Na bomba. Pode encher os baldes e trazer para eu esquentar na chaleira. O senhor


tem uma chaleira, não tem?

Wolfe caminhou para a porta, e Lucy ergueu os olhos para ele.

— Tenho negócios a tratar, mãe. Mas eu volto logo. Ela empalideceu.

— Prometa que não vai se aproximar daquela garota, Wolfe — sussurrou, de modo a
que os outros não a ouvissem. — Prometa!

— Não vou prometer o que não posso cumprir.

— Ah, Wolfe! Se Stonor ficar sabendo, é capaz de matar você. Wolfe sorriu.

— Stonor está em Londres, e eu estou aqui.

Lucy viu-o sair, cheia de preocupação. Depois, com um suspiro, foi para a cozinha e
começou a trabalhar. Logo o vapor de água fervente espalhava-se pelo ar, e Maveen,
enrodilhada numa cadeira, a observava dando início à limpeza das paredes e do chão.

Wolfe puxou as rédeas do cavalo e fitou, espantado, Queen's Stonor. Escutara muita
coisa sobre a casa, mas nada o preparara para o que via naquele momento. Queen's Stonor
tinha uma beleza única, dada em parte pelo cenário em volta, e em parte pela passagem
dos séculos. Fora construída em estilo Tudor, no alto de uma colina, com enormes
chaminés vermelhas, em meio a um bosque de carvalhos. Aqui e ali as paredes achavam-se
cobertas de hera, o que a fazia parecer tão viva e individual quanto um ser vivente. Até
mesmo o leve traço de decadência só fizera aumentar-lhe a beleza.

Aquela era a casa pela qual Sophia estava pronta a se sacrificar tanto. Ele gostaria de
tocar fogo nas paredes e vê-las queimar até só restar pó. Viera pronto para odiar a casa, e o
que mais o enraivecia era ver o quanto era linda, mesmo para seus olhos hostis.

Coaduzindo o cavalo para um agrupamento de árvores que o impediriam de ser


visto, Wolfe avançou mais alguns metros e parou para observar o disco vermelho do sol
desaparecendo atrás da casa, numa cena magnífica. O cheiro de madeira queimando, em
algum fogão, chegou-lhe às narinas, e ele pensou na casa do pai em Londres, rodeada por
aquelas ruas estreitas e sujas. Não era de admirar que Maria Whitley vivesse sonhando
com Queen's Stonor.

O tropel de cavalos galopando atraiu sua atenção. Virando-se, ele reconheceu a figura
esbelta de Sophia, cavalgando ao lado de um senhor de meia-idade. Por um instante seus
olhos fixaram-se nela, brilhantes de desejo. Mas logo voltou-os para o homem que a
acompanhava.

Desarrumado, com roupas enlameadas e de bom corte, que já tinham visto melhores
dias, o companheiro de Sophia tinha os ombros encurvados e cabelos ralos. Sua postura
cansada mostrava que passara boa parte do dia na sela, mas de repente ele e Sophia
ergueram a cabeça para olhar a casa, e uma expressão de amor coloriu-lhe as feições.

Wolfe apeou-se do cavalo, amarrou-o no galho de uma árvore e, movendo-se em


silêncio, procurou os estábulos da casa. Protegido por uma parede e pelas sombras, pôde
observar Sophia e o pai desmontarem.

Um cavalariço apareceu para pegar os cavalos. Edward Stonor pôs-se a caminhar em


direção à casa, mas Sophia ficou para trás, acariciando os animais. Quando o cavalariço os
levou embora, voltou-se para acompanhar o pai.

Wolfe adiantou-se, e seus passos, nas pedras do pátio, atraíram a atenção dela.
Sophia virou-se e respirou fundo, tomada pela surpresa. Ele então voltou para as sombras
e esperou, com o coração disparado.

No minuto seguinte ela apareceu correndo, procurando por ele. Parou assim que o
viu, e, completamente imóveis, eles se fitaram. Quando se moveram, foi ao mesmo tempo,
com os corpos se tocando, as mãos se acariciando, e os lábios se encontrando numa
explosão tão apaixonada e violenta, que lhes causou mais dor que prazer.

Afinal Wolfe deslizou os lábios pelo rosto de Sophia, beijando-lhe o pescoço e


sentindo as artérias que lhe davam vida pulsar aceleradamente.

— Wolfe! Deus do céu, Stonor me disse que você estava morto.

Wolfe imobilizou-se, abraçando-a com mais força. Sentira a agonia de Sophia como se
fosse sua.

— Passei todo esse tempo pensando que você estava morto! — ela exclamou,
agoniada.

— Minha querida! — De novo, ele a beijou.

— Por que ele mentiu para mim?

— No amor e na guerra vale tudo. E isso que vivemos é as duas coisas, minha
querida — Wolfe disse, com ar irônico. — Stonor, sem dúvida, gostaria que eu estivesse
morto. Deus do céu, como ele deve ter torcido para aquele tiro me matar!

— Então você foi baleado? Quer dizer que era mesmo você, no armazém?!
— Eu só peguei de volta o que era meu. Também sou filho de James Whitley, e todos
sabiam que ele pretendia me deixar alguma coisa. Pelo que sei, ele pode ter deixado um
novo testamento, que Stonor destruiu. Stonor é bem capaz de uma coisa dessas.

— Mas você poderia ter morrido!

— Foi um ferimento leve, que já sarou. Mal restou uma cicatriz.

Sophia enrijeceu, ouvindo passos.

— Devem estar procurando por mim. Preciso ir, Wolfe.

— Temos que nos encontrar de novo!

— É muito perigoso, Wolfe. Alguém pode nos ver.

— De noite, não. Vou ficar a sua espera no bosque, a noite inteira. Não me
decepcione, querida.

Wolfe beijou-a com ardor, mas ela se desvencilhou e fugiu correndo. Ele a seguiu com
os olhos, respirando fundo. A lua, pálida e brilhante, já se erguia por trás das nuvens, que
cobriam o horizonte. O berro dos carneiros balindo chegou-lhe aos ouvidos, mas muito
mais alto era o bater de seu próprio coração, enquanto esperava que Sophia voltasse para
ele.

Capítulo VII

Edward Stonor recostou-se na cadeira, observando a filha, sentada do outro lado da


mesa. Ela mal falara durante a refeição, embora isso não fosse raro, desde que voltara de
Londres. A visita parecia tê-la deprimido, o que o fazia refletir com mais cuidado sobre a
conveniência daquele casamento com Stonor. Depois que fora para Londres, Sophia se
tornara praticamente uma estranha para ele. Agora mesmo, estava imersa em pensamentos
que lançavam uma nova luz sobre suas feições, transformando-lhe o rosto numa máscara
adulta, que o distanciava dela

Sophia se sentira mal durante a cavalgada daquele dia. Ele notara que ela estava
muito corada e distraída, e rezava para que aquilo não fosse um sinal de doença.

— Ainda está se sentindo mal, Sophia?

Ela ergueu a cabeça, fitando-o como se estivesse surpresa de vê-lo ali.

— Eu estou muito cansada, papai.


— Então é melhor você ir se deitar mais cedo, meu bem.

— É mesmo — Sophia concordou, levantando-se da mesa.

— Teve notícias de Stonor, ultimamente?

Ela baixou as pálpebras, tentando fugir ao olhar atento do pai.

— Stonor tem andado muito ocupado, desde a morte do pai.

— Essa falta de notícias a aborrece, minha filha?

— Não.

Por um instante Edward achou que detectara um traço de ironia na voz dela, mas
logo abandonou essa idéia. Sophia era muito franca e sincera para esse tipo de sentimento.

— Você está contente com esse casamento, querida? Eu concordei com ele, pensando
no seu bem. Você não seria feliz longe de Queen's Stonor, não é? Aqui é o seu lugar.
Quando eu morrer, quero que seja sabendo que você e seus filhos continuarão aqui.

— Eu sei, papai. — Sophia ergueu os olhos para o pai. — Não se preocupe, que
Stonor e eu nos entendemos muito bem.

Ela o deixou mais tranqüilo, bebendo um cálice de vinho do porto. Notara a


preocupação dele desde que, triste e desanimada, voltara de Londres. Só aquela noite,
sabendo que Wolfe estava vivo, sentira-se capaz de mentir para ele. A mágoa causada pelo
desaparecimento de Wolfe fora muito grande, para que tivesse condições de esconder sua
infelicidade do pai. Indiferente a tudo, passara os dias cavalgando na chuva e no vento,
sem se importar com o fato de estar molhada ou com frio.

Em seu quarto, tirou as roupas e colocou a camisola, tremendo da cabeça aos pés.
Não podia ir ao encontro de Wolfe. Seria muita loucura. Sabia que estava ficando resfriada.
Sentira frio e calor o dia inteiro, e tivera a mente enevoada. Mesmo assim, foi até a janela e
olhou para o bosque, consciente da presença dele, certa de que ele a observava.

Seu corpo ardia de desejo. Banhando o rosto em água fria, tentou recuperar a calma.
Logo em seguida, apagou a vela e deitou-se. Lá fora uma coruja piou, fazendo com que se
arrepiasse da cabeça aos pés. Wolfe estava no bosque, a sua espera. O som distante de asas
batendo chegou a seus ouvidos, seguido pelo grito de um animalzinho sendo capturado
por enormes garras. Seu coração apertou-se, angustiado. Quando Stonor a fitava, era assim
que se sentia: uma criatura desamparada, presa numa armadilha, à espera de que ele a
consumisse.

No entanto, se fosse ao encontro de Wolfe, que vida poderiam ter? Ele precisava abrir
seu caminho num mundo hostil e ela só o atrapalharia.
O desejo a estava deixando louca. Rolou de um lado para o outro, tentando dormir,
mas o fogo da paixão em seu ventre ameaçava devorá-la e a mantinha acordada,
estimulando-a a ir ao encontro dele.

Deus do céu, o que devia fazer?

No bosque, Wolfe movia-se de um lado para o outro, os olhos fitos na casa. O vento
fazia as nuvens escuras avançarem lentamente pelo céu, cobrindo e descobrindo a lua,
cujos raios se tornavam visíveis de tempos em tempos, dando a tudo um brilho prateado.
A alguns passos, o cavalo pastava em silêncio.

Quente, dolorida e agoniada, Sophia deslizou para fora da cama e caminhou até a
janela, fitando a escuridão. Um raio de luar mostrou-lhe Wolfe consumido de desejo. Seu
corpo estremeceu, tomado pela mesma paixão. Num ímpeto, pegou um manto, enrolou-o
em torno de si e saiu devagarinho do quarto.

Pela porta dos fundos, alcançou os estábulos. Os cavalos moviam-se, inquietos, nas
baias, e o vento soprava pedaços de palha de um lado para o outro do pátio. Ignorando o
frio e as pedras duras sob os pés descalços, ela se pôs a correr, ansiosa para encontrar-se
com ele.

Wolfe não viu a figura esbelta que corria de sombra em sombra. A grama macia
abafava o som de passos, e Sophia já estava a meio metro de distância quando ele,
sentindo-lhe a presença, girou nos calcanhares.

Cheia de dignidade, ela parou diante dele como uma criança à espera de punição,
resignada e submissa. O vento soprava para trás seus cabelos soltos e o manto, deixando à
mostra sua camisola branca.

Wolfe ergueu as mãos lentamente e tocou-lhe o rosto.

— Você veio!

— Wolfe!

Ela pronunciou-lhe o nome como se isso explicasse tudo, como se o simples fato de
tê-lo a seu lado transformasse o resto do mundo em sombra. Levantando-a nos braços,
Wolfe carregou-a para junto de um dos carvalhos, depositando-a sobre a grama úmida.
Sophia começou a tremer, mas ele mal notou.

Seus lábios se encontraram com a pressa do desejo que os guiava. Segurando o rosto
de Sophia entre as mãos, Wolfe a beijava como que para aumentar ainda mais o sentimento
profundo e sensual que os unia.

— Faz tanto tempo! — ele murmurou, com voz rouca.


Sophia não se lembrava mais da morte do pai dele, de sua própria sensação de culpa,
da promessa que fizera a Stonor ou de todas as outras razões que tinha para não estar ali.
Só sabia que flutuava no ar, com a mente completamente vazia de tudo, a não ser de
paixão.

Ambos haviam esperado por aquele momento a vida inteira. No entanto, na hora de
vivê-lo, relutavam em aproximar-se um do outro. Eram como dois corredores que, depois
de darem o máximo de si durante toda a corrida, não podiam fazer mais que rastejar em
direção à vitória. Suas carícias eram um prolongamento deliberado do momento que
viviam. Fitando-se nos olhos, eles se tocavam com movimentos leves, sem pressa, embora
em seu íntimo a paixão crescesse cada vez mais.

Wolfe cobriu de beijos cada centímetro de pele macia, desde o queixo até o colo.
Enquanto isso, com os olhos bem abertos, olhando sem ver as nuvens escuras que corriam
pelo céu, ela acariciava os cabelos dele, macios e espessos.

Ele beijou-lhe a orelha, tomado pela necessidade de tocar, sentir o gosto e conhecer
cada parte do corpo dela. Nunca experimentara um desejo tão profundo por outra mulher.
Suas aventuras na Ratcliffe Highway não tinham sido mais que a busca de um alívio físico.
Muito diferente daquele momento, quando seu coração, sua mente e seu corpo o incitavam
a possuir Sophia, pois nunca mais viveria um prazer como aquele.

Com a ponta da língua, ele acariciou as pálpebras de Sophia, brincando com os


longos cílios e excitando-se com a sensação causada por aquele contato. Mas logo seus
lábios voltaram aos dela, e a troca sensual, profunda e entorpecedora recomeçou, com as
línguas se tocando e as respirações se misturando, como se suas vidas estivessem se
fundindo numa só.

Movendo as mãos, Wolfe abriu a camisola de Sophia, procurando o corpo macio e


quente sob o tecido branco. A pele dela era como seda, e ele traçou cada curva dos ombros
femininos com a ponta dos dedos, descendo aos poucos, adiando propositadamente o
momento em que tocaria os seios pequenos e eretos.

De olhos fechados, correspondendo totalmente às carícias de Wolfe, Sophia pôs-se a


respirar de um modo mais rápido e superficial. Desabotoando-lhe a camisa, ela encostou a
palma das mãos no peito viril, acariciando-o com a mesma volúpia com que ele a
acariciava.

De repente, Wolfe envolveu-lhe ambos os seios com as mãos, friccionando os


mamilos pequenos e rijos. Com um grito abafado ela arqueou o corpo para cima e ele
saboreou com alegria a sensação de tê-la excitado tanto. Então, devagar, quando ela já
tremia com a doçura da antecipação, inclinou a cabeça e envolveu-lhe um dos mamilos
com a boca, fazendo-a gritar de prazer.
Sophia movia o corpo, gemendo, sem ligar para mais nada, consciente apenas da
presença de Wolfe e da sensualidade das carícias dele. Tomada por uma onda infinita de
desejo, agarrou-o pelos cabelos e puxou-o de encontro a si.

Wolfe deslizou as mãos por baixo da camisola, moldando-lhe o corpo e explorando


todos os contornos. Fora de si, Sophia murmurava seu nome sem parar. Ele já a despira
por completo, e o ar da noite banhava-lhe a pele, nua, fazendo-a tremer.

Sem tirar os olhos dela, Wolfe começou a se livrar das próprias roupas.

Sophia olhou para o céu. Sentia-se gelada, apesar de estar profundamente corada, e a
grama úmida, de encontro a seu corpo nu, parecia aumentar sua febre. Parara de pensar,
muito tempo atrás. A lembrança de Stonor desaparecera de sua mente, como se ele nunca
tivesse existido. Deixara de analisar as coisas em função do futuro que sacrificaria, da
mágoa que causaria ao pai e da casa que perderia. Só tinha importância a força vital que a
guiava. Já era capaz de sentir a aproximação da mais alta expressão do amor, e, num
contentamento absoluto, esperava que Wolfe a conduzisse ao ponto final do ato que
praticavam.

O instante da posse foi violento. Sem fazer concessões à inocência de Sophia, Wolfe
não lhe proporcionou uma iniciação gentil.

Caindo sobre ela, invadiu-lhe o corpo com um movimento forte e brusco. Sophia
gritou, arqueando os quadris num gesto de defesa, mas ele a silenciou com a boca, sem
mais se movimentar, como se sua pressa tivesse se acabado, no momento em que
conseguira fundir o corpo ao dela.

Devagar, com habilidade, sabendo que a dor da invasão acabara com o prazer de
Sophia, Wolfe recomeçou a acariciá-la, até que, aos poucos, a viu relaxar. Pequenos
gemidos escapavam dos lábios febris, e a pressão das coxas masculinas sobre as femininas
aumentou.

— Faça como eu, querida — Wolfe sussurrou. — Mexa-se comigo.

Inexperiente, trêmula, ansiosa, Sophia começou a reagir aos ensinamentos de Wolfe,


que continuava a acariciá-la com sensualidade. Ela correspondeu a cada movimento com
uma excitação cada vez maior, explorando-lhe o corpo rijo e fazendo-o gemer de prazer.
De repente, o mundo parecia colorido a fogo. Gemidos escapavam de seus lábios e seus
movimentos e a respiração eram cada vez mais rápidos. Wolfe, porém, desacelerou os
movimentos, silenciando sua exclamação de protesto com um beijo.

— Devagar, minha querida. Devagar...


Wolfe queria que tudo fosse perfeito, e a pressa só encurtaria o fio do prazer. A
sensação tinha que se tornar tão intensa, a ponto de terem a impressão de que estavam
morrendo. Pelo resto de suas vidas, aquela noite tinha que estar em sua memória.

Ele sabia que o risco da separação ainda existia. A vida era incerta. Mas, acontecesse
o que acontecesse, teriam aquela noite. E ela tinha que ser o ponto alto de suas existências.

Sophia mexeu-se, relutante diante daquela desaceleração em seu ato de amor. Sua
impressão era de que se aproximava vagarosamente da beirada de um penhasco, pronta a
se jogar no ar, enquanto Wolfe à puxava para trás. Tão grande fora a desaceleração
provocada por ele que ela agora gemia com cada movimento. A espiral de tensão em seu
corpo chegava a um ponto insuportável e sua cabeça caiu para trás, os lábios entreabertos
num longo gemido. Estava completamente diferente, irreconhecível com aquela expressão
selvagem e primitiva, que transformava suas feições numa máscara de desejo. A menina
cedera lugar à mulher.

Wolfe ergueu os olhos para a casa, como que chamando-a para testemunhar o que
fizera. A silhueta escura, desenhada de encontro ao céu noturno, parecia fazer parte de seu
ato de amor.

Então, deliberadamente, ele escalou mais um ponto na ascensão do prazer e permitiu


que tudo explodisse. Juntos, eles caíram no abismo infindável do êxtase, suas vozes
expressando, num soluço, uma satisfação que era quase uma agonia.

Wolfe permaneceu totalmente imóvel junto a Sophia, ouvindo-lhe a respiração.


Sentia-se lânguido e totalmente descontraído. Conseguira o que viera procurar. Movendo-
se um pouco, apoiou o rosto sobre os seios femininos, suspirando de contentamento.

Sophia recomeçou a tremer. A grama molhada esfriava sua pele nua. Wolfe, no
entanto, parecia imune ao ar noturno. Cheia de ternura, ela acariciou-lhe os cabelos,
deslizando a mão até encontrar-lhe a nuca.

— Tenho que ir embora, antes que amanheça — sussurrou.

— Ainda não — explicou Wolfe. Não queria pôr fim a sua noite de triunfo.

De novo Sophia estremeceu.

— Não posso ser vista.

— Você está gelada! — Ansioso, ele sentou-se. — Por que não me disse? — Tornando
a vesti-la, Wolfe recolocou as próprias roupas e abraçou-a, passando seu pesado manto em
torno de ambos. — Antes de você ir, precisamos conversar.

— Eu amo você, Wolfe.

Sophia encostou-se nele, que a abraçou com mais força.


— É sobre isso que temos que conversar, minha querida. Não posso mais deixá-la
para trás. Precisamos nos casar e seguir para a América juntos. Meu dinheiro dá para duas
passagens. Não posso lhe prometer uma vida segura, mas teremos um lar e estaremos
juntos. E é isso que importa, não acha?

Wolfe fitou-a, ansioso, incerto de qual seria a resposta dela. Mas Sophia aconchegou-
se melhor a ele, murmurando apenas:

— Wolfe, querido!

— Você vai comigo?

— Vou.

— Está ciente de que terá que deixar seu pai e Queen's Stonor, talvez para sempre?

— Estou.

Um suspiro de felicidade escapou dos lábios dele.

— Não posso levá-la agora. Seria impossível você viajar de camisola, meu amor.

Ela riu.

— É.

— O melhor é eu arrumar nossas passagens, depois vir buscá-la. Podemos nos casar
um pouco antes de tomar o navio.

— Quanto tempo isso vai levar, Wolfe?

— Não sei ao certo. Uma ou duas semanas.

— Tanto assim?!

— Tem medo que seu pai descubra? Ou Stonor?

Falar em Stonor aumentou a sensação de mal-estar de Sophia

— Stonor não vai gostar.

Wolfe não conteve um sorriso.

— Não. Mas graças a Deus a América é muito grande e ele levará anos para nos
encontrar, se resolver nos seguir.

Sophia fitou-o, chocada.

— Você acha que ele pode nos seguir? Não é possível! Stonor não viajaria tanto, só
para se vingar.

— Ele iria ao próprio inferno, se fosse preciso. Não sabe por que, Sophia?

— Stonor odeia você.


— É verdade, ele me odeia — Wolfe admitiu, crispando os lábios. — E o que ele sente
agora será pouco em comparação com o que vai sentir, quando souber que consegui você!

— Stonor me amedronta. Ele é um homem estranho. Quando me disse que você


estava morto, acho que foi com prazer. Ele quis me fazer chorar. Chegou a me bater, mas
depois comportou-se de um jeito estranho, abraçando-me quase com ternura, como se me
amasse em vez de me odiar. Não consigo entendê-lo. Eu o acho frio e cruel, mas às vezes
tenho a impressão de não saber nada sobre ele.

Wolfe tinha o rosto voltado para o outro lado, e ela não viu o brilho cruel em seus
olhos, nem a expressão de intenso prazer.

— Você não gosta dele, não é, minha querida? Pois deixe que ele nos odeie? Que
importância tem?

— Acho Stonor tão injusto, odiando você só porque são meio-irmãos. Eu lhe disse
isso.

— E o que foi que ele respondeu? — Wolfe perguntou com curiosidade, ainda
sorrindo.

— Ficou zangado. Ah, leve-me embora logo, Wolfe! Eu não agüentaria ter que me
casar com ele. Eu pertenço a você, não a Stonor.

Wolfe inclinou a cabeça e beijou-a, usando os lábios para fazer renascer nela a
sensação de prazer. Estremecendo, esquecida do alvorecer que se aproximava, Sophia
enlaçou-o pelo pescoço. Quando ele se afastou, ela queimava de desejo.

— Você está tão quente, minha querida. — Levando a mão ao rosto de sua amada,
Wolfe franziu a testa. — É melhor entrar, agora. Eu volto daqui a duas noites. Enquanto
isso, não se preocupe com nada. O que aconteceu entre nós é um sacramento tão grande
quanto o casamento, Sophia.

— Claro que sim, meu querido. De agora em diante, eu sou sua esposa.

Os primeiros raios de sol coloriam o céu, e os pássaros voavam de árvore em árvore,


saudando o novo dia. Com um último olhar de ternura para Wolfe, Sophia virou-se e
correu para casa.

Cansado e satisfeito consigo mesmo, Wolfe cavalgou de volta a Bristol. Conseguira


mais do que esperava, e estava em paz com o mundo. Dentro de poucas semanas, ele e
Sophia estariam no mar, a caminho da América. Uma vez lá, desapareceriam no vasto con-
tinente, e Stonor jamais os encontraria.

Sua consciência doeu-lhe um pouco, quando se lembrou de que deixaria a mãe


sozinha, mas ele sentia que não tinha escolha. Aquela era sua única chance de tirar Sophia
de Stonor e precisava aproveitá-la. Um sorriso surgiu em seus lábios ao imaginar a
expressão de Stonor, quando descobrisse que Sophia fugira com ele.

Ah, se ele pudesse ser uma mosca na parede, para ver tudo! Ah, se pudesse ouvir o
grito de Stonor, se pudesse ver-lhe o rosto, quando ficasse sabendo da novidade! Stonor na
certa jamais saberia o que era pior: se o fato de ter perdido Sophia, ou o fato de saber que
ele, Wolfe a possuía!

Capítulo VIII

Naquele manhã, Sophia tomou o café com as faces coradas e a cabeça baixa. Cada vez
que se lembrava do que acontecera na noite anterior sentia o corpo quente, mas obrigava-
se a continuar fingindo que comia. Parecia-lhe incrível que o pai não notasse qualquer
mudança nela, não percebesse em suas feições o que Wolfe lhe fizera. Passara de menina a
mulher, e não era possível que isso não se manifestasse de alguma forma.

Edward Stonor pensava em outras coisas. Logo eles estariam cavalgando pelos
campos, com o capim alto batendo em suas botas, o cheiro de madeira queimada chegando
a suas narinas e todas as visões familiares da propriedade a sua frente. Ele era um homem
que gostava de rotina e só queria passar o resto de sua vida daquele modo.

"Estou ficando velho", pensou, sem tristeza. "Só espero não estar mais aqui, quando
Stonor começar a colocar sua marca em minha casa."

Há pouco ele recebera uma carta, onde o sobrinho lhe comunicava o que pretendia
fazer para trazer de volta a vida da casa. Stonor parecia tomar como certo que ele lhe seria
grato por reformar e redecorar os cômodos decadentes.

No entanto, ele se sentira ofendido. "Quem Stonor pensa que é? Eu ainda não estou
na cova", zangara-se, amassando a carta. Mas depois reconhecera que o rapaz só estava
fazendo o que ele mesmo faria, se pudesse: tomando Queen's Stonor a seu cuidado e
dando-lhe nova vida.

O processo de decadência e negligência sofrido pela casa teria um fim, e, com o


dinheiro de Stonor, tudo voltaria a florescer.

Olhando para a filha, do outro lado da mesa, Edward notou, subitamente, seu estado
febril.

— Filha, você está doente! — exclamou, levantando-se.


Ela o fitou, com ar distraído, os pensamentos ainda presos a Wolfe. Tinha a impressão
de estar flutuando no ar.

— Eu estou bem, papai.

Dando a volta à mesa, Edward tocou-lhe a testa.

— Deus do céu, Sophia! Você está mesmo doente. Por que não ficou na cama? —
Chamou aos gritos pela governanta, a sra. Buffell, que veio ofegando. — Mande alguém
buscar o médico!

— Eu estou perfeitamente bem, papai. É só um resfriado.

O rosto de Edward oscilava diante de Sophia. De repente, tudo escureceu e ela caiu
para a frente.

Um dos cavalariços foi à vila buscar o Dr. West. Junto à cama, com os dedos no pulso
de Sophia, o doutor meneou a cabeça.

— Pode ser só um resfriado, mas a febre está muito alta. Talvez seja o começo de algo
pior.

— O quê? Não comece a me dizer besteiras, Ben. Eu quero a verdade.

O médico conhecia Edward desde criança e não tentou fugir à verdade.

— Por enquanto é difícil dizer qualquer coisa. Pode ser tudo ou nada. Ela é jovem, e
os jovens muitas vezes têm dessas febres. Conheci uma criança que estava às portas da
morte, num dia, e no outro corria pelo quintal.

Edward olhou para o rosto vermelho da filha, que murmurava, por entre os lábios
secos, palavras incoerentes.

— O que é que ela está falando sobre lobos? — O médico inclinou-se para ouvir
melhor.

— Será que é um pesadelo?

— Algum livro que ela leu, na certa. — Endireitou o corpo. — Ânimo, Edward!
Sophia vai se recuperar. Mas por enquanto temos que tomar todo cuidado. Numa febre
dessas, o coração é que está em maior perigo. Ela tem que ficar em repouso absoluto.

Wolfe sentou-se na sala impecavelmente limpa, observando a mãe remendar uma


camisa poída, de modo a fazê-la parecer menos usada. A alguns passos, Jack Duffey,
barbeado e sóbrio, fingia ler o jornal.

— A senhora é uma maravilha, madame — disse de repente, sem agüentar mais. —


Pensei que essa camisa só servisse para pano de chão.
— O senhor não pode se dar ao luxo de jogar fora roupas ainda usáveis, sr. Duffey —
Lucy respondeu.

— Realmente, não.

Wolfe já notara que Jack Duffey admirava sua mãe. Isso não o surpreendera, pois
sabia que Lucy era muito atraente, como mulher. O que não sabia ao certo era o que ela
pensava a respeito do irlandês. Além de ser reservada, a morte do marido ainda era muito
recente, para que tivesse vontade de encontrar outro homem.

Era um alívio para Wolfe saber que deixaria a mãe entre amigos, quando fosse para a
América. Ela não ficaria ao desamparo, longe dele. Além dos Duffey, teria Luther.

Apesar do pouco tempo de convívio, Wolfe era forçado a reconhecer a integridade do


primo. Luther tinha firmes opiniões políticas, que extravasava no desejo de transformar o
mundo num lugar onde todos os homens fossem iguais e tivessem a mesma oportunidade.
O que não era estranho, pois toda a Inglaterra começava a pensar assim. A geração criada à
sombra de uma igreja severa voltava-se ansiosamente para o socialismo. As reformas
educacionais tinham dado a todos a chance de aprender a ler e a escrever, e eles
devoravam os livros como crianças famintas, descobrindo idéias que antes estavam fora de
seu alcance, devido às circunstâncias.

Os sonhos de Luther baseavam-se na formação religiosa fanática de sua infância,


ministrada pelo pai. Wolfe o escutava e dava a impressão de concordar, mas ele queria o
mundo livre só para que pudesse realizar as próprias ambições. Luther não tinha uma
compreensão real do caráter do primo, mas Wolfe o via com muita clareza.

Lançando um olhar para a janela, Wolfe se levantou.

— Tenho que ir.

— Não faça isso, Wolfe — Lucy pediu, num tom triste.

— Eu preciso, minha mãe.

Lucy sabia para onde o filho ia. Ele nunca lhe dissera nada, mas ela sabia. E foi com
uma expressão infeliz no rosto pálido que o viu sair.

A noite caiu rapidamente. Enormes mariposas voavam entre as árvores, no bosque de


Queen's Stonor. Parando o cavalo sob a cobertura de uns galhos baixos, Wolfe fitou a casa
com o coração batendo acelerado. Amava, e a impaciência com que esperava pela
escuridão era um sinal da paixão profunda que tinha por Sophia. Uma paixão que tomara
conta de seu ser, crescendo diariamente, alimentando-se de si mesma, dominando a
mente, o coração e o corpo.
Wolfe fizera planos de seduzir Sophia, antes que ela voltasse para Londres. Imaginar
a raiva de Stonor, diante do roubo da noiva, divertira-o muito. A única coisa que não
planejara fora se envolver emocionalmente com ela. Mas no momento em que a vira,
sentira algo mudar em seu íntimo. Na noite da festa, achara-a deliciosa. No dia seguinte,
percebera que estava se apaixonando. Agora, estava tão apaixonado que nem sabia como
conseguira viver, antes de se encontrarem.

Sophia era seu espelho, seu reflexo, seu outro eu. O feminino de seu masculino, sua
companheira, o sentido de sua existência.

Ele nunca se julgara um romântico. Sempre tivera uma visão completamente


diferente de si mesmo, tratando as mulheres com cínico menosprezo, sob um sorriso
charmoso. Mas tudo isso acabara. Sophia era necessária em sua vida e ele moveria céus e
terra para tirá-la de Stonor.

Inclinando-se na sela, Wolfe observava a casa de testa franzida. Sophia estava


demorando. Achara que ela estaria tão ansiosa quanto ele por aquele encontro, e não podia
deixar de sentir-se estranhamente magoado.

De repente, um homem a cavalo saiu do pátio dos estábulos, e Wolfe foi assaltado por
um pressentimento. O cavaleiro sumiu na distância, e ele continuou à espera. Gente veio
da vila, desaparecendo nos estábulos. A casa se iluminou, as cortinas foram abertas e,
pelas janelas, ele viu os recém-chegados subirem as escadas, carregando velas. Um deles
levava também uma maleta preta.

Wolfe gelou. Um médico? Àquela hora?! O brilho das velas apareceu no quarto de
Sophia. Oh, não! Ela estava doente! Mas do quê?

Lembrando-se da pressa com que o primeiro homem cavalgara em direção à vila, ele
percebeu que não era algo simples. Sophia devia estar muito doente para que seu pai
mandasse buscar um médico, no meio da noite.

Wolfe não conseguiu mais ficar sentado na sela. Desmontando, começou a andar de
um lado para o outro, sob as árvores. A noite foi passando, mas as luzes não se apagaram
na casa. A aurora chegou, colorindo o céu de laranja, e ele viu o médico sair, cavalgando
devagar, com os ombros caídos.

Wolfe montou e deu um jeito de chegar aos portões de Queen's Stonor antes do
homem. Esperou na estrada, fingindo que ajustava os estribos. Quando o médico apareceu,
cumprimentou-o e perguntou se estava no caminho certo para Bristol.

Examinando-o com desconfiança, o médico concordou.

— O senhor se levantou cedo — Wolfe comentou, casualmente.


— Estive em pé a noite inteira. Uma paciente... Eu sou médico.

— Espero que sua paciente esteja melhor.

O doutor suspirou, cansado.

— Ela está muito doente. Eu fiz o que pude, o resto vai depender da resistência dela.
Se o coração agüentar, pode ser que ela se recupere.

— O que é que ela tem? — Wolfe já não estava mais conseguindo manter um ar de
polida indiferença.

— Pegou, um resfriado e está com febre muito alta. Pobre menina! Na certa andou
cavalgando na chuva, e agora está pagando caro por isso.

Wolfe estremeceu. Murmurando alguma coisa incoerente, despediu-se e foi embora,


mal sabendo o que fazia. Seria aquela doença uma conseqüência de seu ato de amor?
Infeliz, lamentou não poder fazer o relógio voltar atrás. Se pelo menos não a tivesse
convencido a sair e ir ao seu encontro!

"E se ela morrer?", pensou de repente, empalidecendo.

Mas isso não podia acontecer! A vida não era tão cruel. Ele não conseguiria agüentar,
se Sophia morresse.

Encontrando uma hospedaria tranqüila, na vila, Wolfe hospedou-se para passar o


resto da noite. No dia seguinte, depois que o sol se pôs, voltou para Queen's Stonor e
esperou a noite toda, observando a casa. Através da escuridão, ele projetou sua força de
vontade, para obrigar Sophia a continuar vivendo.

Com a luz da aurora, o bosque assumiu uma estranha tranqüilidade. A casa captou
os primeiros raios de sol, devolvendo-os com redobrada intensidade. As chaminés
começaram a soltar fumaça. Um cavalariço atravessou o pátio dos estábulos, e os cavalos se
agitaram nas baias, relinchando.

Wolfe, com os olhos vermelhos pela falta de sono, virou-se na direção do cavalo.
Tinha que ir embora, antes que alguém o visse. De repente, o som de uma carruagem
chegando rompeu o silêncio. Da sombra das árvores, ele fitou o veículo e sentiu o coração
pesar, ao reconhecer o rosto de Stonor numa das janelas.

A carruagem parou diante da casa. Stonor desceu, dirigindo-se à porta da frente, que
já se abrira para recebê-lo.

"Ele deve ter sido chamado", pensou Wolfe. "Na certa tomou um trem até Bristol e
alugou uma carruagem. Por Deus, como ele andou depressa!"
Uma fúria homicida invadiu-o. Chegara tão perto do que desejava, e agora perdia
tudo devido à própria falta de cuidado. Se não tivesse feito amor com Sophia naquela
noite, ela não estaria doente. Agora Stonor chegara e faria tudo para que ele não tivesse
uma segunda chance.

Pálido e amargurado, Wolfe deixou o bosque de carvalhos e cavalgou para Bristol.

Edward Stonor entrou no hall para cumprimentar o sobrinho, sem disfarçar a


surpresa.

— Meu caro rapaz! Então você é Stonor. Não esperava que viesse até aqui. Foi muita
gentileza sua...

— Como está ela?

— Viva. Cheguei a pensar que fôssemos perdê-la, mas ela agüentou. — Edward
examinou o sobrinho com curiosidade, notando o rosto bonito, mas de feições frias e
controladas. — Quer se lavar e comer alguma coisa, antes de ir vê-la?

— Quero vê-la agora.

Edward ia discutir, mas desistiu ao ver a expressão dos frios olhos cinzentos.

— Está bem. — Subindo a escada, ele disse por cima do ombro: — É preciso fazer o
possível para não excitá-la. O médico ainda teme que a tensão seja demais para o. coração
dela.

— O coração?!

— É. Mesmo que ela consiga se recuperar, as conseqüências podem ser graves. Mas o
médico lhe explicará tudo isso.

Edward entrou no quarto da filha, seguido por Stonor. Uma enfermeira estava
sentada junto à cama, e as pesadas cortinas encontravam-se fechadas, para impedir a
passagem da luz.

Stonor caminhou diretamente para a cama, os olhos fixos no que podia ver de Sophia.
A enfermeira levantou-se com uma reverência, mas ele mal a olhou.

Os cabelos escuros de Sophia espalhavam-se pelo travesseiro. Com o rosto quente e


corado pela febre, ela murmurava algo incoerente, de vez em quando umedecendo os
lábios secos e rachados com a língua.

Stonor inclinou-se para a frente, tocando-lhe o rosto com a ponta dos dedos.

— Wolfe, Wolfe — ela gemeu.

Stonor gelou. Então, endireitando o corpo, virou-se para a enfermeira.

— Quanto tempo esta febre vai durar?


— O médico não sabe ao certo, senhor. Ela está muito doente.

— Isso dá para ver — Stonor replicou, com aspereza.

— Vamos tomar o café, meu rapaz — sugeriu. — Você parece cansado. É uma longa
viagem, de Londres até aqui. Eu não esperava que viesse. Só lhe escrevi, porque achei que
devia saber.

Na mesa, diante do café da manhã que mal tocara, Stonor perguntou:

— Como foi que ela ficou doente?

— West não sabe ao certo, mas acha que ela pegou um resfriado, que atingiu os
pulmões. Houve uma hora em que ela não conseguia respirar. Foi o pior momento.

Stonor não mostrou nenhuma reação.

Edward, que o observava, sentiu uma onda de antipatia invadi-lo. No entanto, estava
intrigado com o fato de o rapaz ter vindo tão prontamente. Poderia entender, se ele
estivesse apaixonado por Sophia, mas, olhando para aquele rosto frio, era impossível
acreditar que Stonor tivesse algum sentimento por ela.

Minha mãe chegará daqui a alguns dias — disse Stonor.

— É muita gentileza de Maria. Não havia necessidade disso.

— Ela gosta muito de Sophia.

— Fico contente em saber. Sophia também gosta dela. Stonor fitou-o com tanta frieza,
que Edward desviou o olhar.

— Quando Sophia se recuperar, pretendo me casar com ela e levá-la para o sul da
França, para uma longa lua-de-mel. Depois de uma doença tão grave, é melhor evitar o
inverno inglês.

Edward não escondeu a surpresa.

— Acho que, no momento, não dá para falar em casamento.

— Eu disse quando ela se recuperar.

— Sophia vai precisar de um longo período de descanso, quando se recuperar.

— Ela pode descansar na França.

Edward abriu a boca para protestar, mas fechou-a ao notar o olhar do sobrinho.
Estava achando difícil se relacionar com o rapaz. Para uma pessoa tão jovem, ele parecia
ser bastante duro e firme em suas idéias.
Aquela tarde, depois de visitar Sophia, o médico juntou-se a Edward e Stonor na
biblioteca. Edward apresentou o sobrinho com um ar rude, que mostrou a Ben West que
ele não apreciava o rapaz.

— Seu tio já lhe falou do estado de saúde de Sophia?

— Ele só me disse que ela esteve muito doente e ainda não está fora de perigo. Há
mais alguma coisa?

— Muita coisa. Para Sophia, eu diria que um casamento está fora de questão.

Stonor enrijeceu.

— Por quê?

— Ela está com o coração fraco. Se viver, não deverá se casar, pois é muito provável
que um parto lhe seja fatal.

O silêncio envolveu o ambiente. Stonor caminhou até a janela e, de costas para os


outros dois, perguntou:

— Isso é uma suposição ou uma certeza?

— Na medicina, tudo é suposição. Mas já vi esse tipo de febre, antes, e sei o que
causa ao coração. Ela está lutando para viver, e é essa luta que a está enfraquecendo.

— Se ela se recuperar, o coração também não se fortalecerá?

— Um coração é como uma máquina, meu. rapaz. Se o fazemos trabalhar demais, ele
nunca mais volta a ser o que era antes.

Stonor fitou as árvores lá fora, que se moviam ao sabor do vento.

— Ela não deve se casar nunca — Edward murmurou, cobrindo o rosto com as mãos.

Devagar, muito ereto, Stonor virou-se.

— Isso não muda nada. Nós ainda podemos nos casar.

— Deus do céu, meu rapaz! — exclamou o médico. — Não entendeu o que eu disse?
Você porá a vida dela em risco! Se ela engravidar, pode morrer ao dar à luz.

— Eu entendi muito bem — Stonor replicou, sem expressão. — Não vou engravidá-
la.

O médico fitou-o por um instante, crispando os lábios.

— Ou você é um tolo, ou é um santo. Se está pensando em usufruir dos seus direitos


de marido e ao mesmo tempo dar um jeito de evitar uma gravidez, é melhor mudar de
idéia. Se houvesse um jeito de fazer isso, eu seria o primeiro a usá-lo. Nenhum método dá
certo, eu lhe garanto. Tenho cinco filhos para provar. — Ele fez uma ligeira pausa, depois
continuou: — Mas se o que pretende é não consumar o casamento... Sei que não é da
minha alçada, mas o meu conselho é que pense bem, antes de tomar uma decisão. Um
casamento assim pode ser muito amargo.

— Está fora de questão — disse Edward Stonor. — Não vou arriscar a vida de minha
filha por nada.

— Nem eu — afirmou Stonor. — Mas vou me casar com ela.

Sem falar, ele saiu e fechou a porta atrás de si. Edward e o médico se entreolharam.

— Ele é um homem frio, hein?

— Não vou deixar que ele se case com a minha filha! Ele não tem sangue nas veias!

— Levando em consideração o estado de Sophia, isso pode ser uma vantagem. Duro
seria se ele estivesse loucamente apaixonado por ela.

Entrando no quarto de Sophia, Stonor disse à enfermeira:

— Eu fico com ela por uma hora. A senhora deve estar precisando de um descanso.

Assim que a enfermeira saiu, Stonor sentou-se na beirada da cama e,


cuidadosamente, como se estivesse lidando com uma criança, tomou Sophia nos braços.
Ajeitando-a de encontro a si, fitou-lhe o rosto corado e os cabelos embaraçados. Vendo
uma escova sobre a mesinha de cabeceira, pegou-a e começou a escovar os longos fios. O
movimento suave pareceu acalmar Sophia, que deixou de se mover, inquieta.
Mergulhando então o lenço na jarra de água junto à cama, ele umedeceu o rosto dela, com
toda delicadeza.

Sophia suspirou, contente, como se aquele corpo junto ao seu a reconfortasse.


Timidamente, Stonor passou os dedos acariciantes pelas faces rosadas, traçando o
contorno da boca feminina e a forma do nariz.

— Wolfe — Sophia sussurrou, de repente.

Stonor enrijeceu. Fitando-a com os olhos semicerrados, recolocou-a na cama, arranjou


os lençóis com precisão e saiu, sem olhar para trás.

Naquela noite, a febre de Sophia piorou. O suor escorria em bicas por seu corpo. A
enfermeira secou-a todas as vezes que foi necessário, trocando suas roupas e as da cama
constantemente. Preocupado, o médico não deixou o quarto dela.

Stonor acordou com os passos apressados dos criados e foi para lá, permanecendo ao
pé da cama enquanto Sophia se virava de um lado para o outro, murmurando palavras
ininteligíveis.
— A temperatura está caindo — o médico disse a certa altura, quando o rosto da
moça já brilhava de suor. — É o ponto crítico. Se o coração agüentar, ela sobreviverá.

Por várias horas, Stonor continuou onde estava. Quando foi para a cama, Sophia
dormia e a crise passara. Ele deu ordens para que ninguém lhe dissesse que estava na casa.

— Não quero que nada a perturbe — disse a Edward. — Quando ela estiver melhor,
eu a verei.

Sophia recuperou-se lentamente. Por alguns dias não teve consciência de nada, a não
ser da própria fraqueza. Uma semana já se havia passado, quando se lembrou de Wolfe.

O que estaria ele pensando? Saberia de sua doença? O que estaria acontecendo?
Precisava saber!

A preocupação quase a adoeceu de novo. No fim, acabou pedindo à enfermeira para


escrever uma carta a um amigo. A mulher concordou, e ela rabiscou algumas linhas para
Wolfe.

— Por favor, mande esta carta agora mesmo — pediu com nervosismo, ao terminar.
— Mas não deixe que meu pai a veja.

Lendo o nome no envelope, a enfermeira sorriu para si mesma.

Stonor estava na biblioteca, verificando os livros contábeis da propriedade. Muitos


arrendatários deviam a Edward Stonor, e quase todas as benfeitorias precisavam de
reparos. Recuperar tudo seria um trabalho duro.

A enfermeira bateu e entrou, fazendo uma leve reverência. Stonor fitou-a, apertando
os maxilares.

— A srta. Sophia pediu-me para lhe entregar isso, senhor. Ele olhou para o envelope,
franzindo a testa.

— A senhora lhe contou que estou aqui? Eu não tinha dado ordens para não lhe
dizerem nada a meu respeito?

— Ela me pediu para enviar a carta para o senhor, em Bristol. Não sabe que o senhor
está aqui.

Stonor continuou sentado, absolutamente imóvel. Depois, com um gesto brusco,


pegou a carta.

— Está bem, pode ir.

Sozinho, ele verificou o endereço, abriu o envelope e leu rapidamente as poucas


linhas. Seus dedos fecharam-se com força sobre o papel, transformando-o numa bola. Por
alguns minutos, permaneceu absolutamente imóvel. Então, abriu a folha, alisou-a e leu
tudo de novo.

Sophia estava recostada nos travesseiros, de olhos fechados. Sentia-se mole e fraca,
incapaz de pensar com clareza. Um movimento no quarto atraiu sua atenção. Abriu os
olhos e olhou para a porta, levando um choque ao ver Stonor.

Muito sério, ele entrou, e ela se encolheu, pálida e trêmula. Stonor tirou a carta do
bolso e colocou-a sobre o cobertor, o que a fez empalidecer ainda mais.

— Então, ele está vivo — disse Stonor, com os lábios quase cerrados. — E você esteve
se encontrando com ele. Creio que posso imaginar a natureza desses encontros.

Sophia ergueu os olhos para ele. Stonor parecia estar à espera de uma resposta, e
como ela não dissesse um não, falou com frieza:

— Pois bem, isso acabou. Você vai se casar comigo, assim que tiver condições.

— Não! Eu vou me casar com Wolfe.

— Acha que ele vai querer uma esposa que jamais poderá tocar? A sua doença a
deixou com o coração fraco. O homem que se casar com você terá que escolher entre matá-
la, com uma gravidez, ou viver com uma esposa que não poderá ter.

O choque emudeceu-a por um instante. Mas logo depois, pálida e magoada, ela
gritou:

— É mentira!

— Pergunte ao seu médico. Ele me avisou das conseqüências, caso levemos avante
este casamento.

— Não!

— Sim — Stonor afirmou, como se estivesse gostando de dar aquela notícia a ela. —
Você conhece meu meio-irmão. Acha que ele poderia ser feliz casado com você, nessas
condições? E você, Sophia? Suportaria vê-lo procurar alívio nos braços de outra mulher?
Você sabe que é isso que Wolfe faria. Ele nunca viu atração no celibato. Pode amá-la agora,
mas, com o tempo, acabará por odiá-la.

— Pare!

— Como é que você se sentiria, Sophia, quando ele saísse à procura de outras
mulheres? Não se sentiria agoniada, torturada noite e dia pelo ciúme?

Sophia enterrou o rosto no travesseiro, chorando, os dedos magros torcendo a fronha.


Durante alguns minutos, Stonor observou-a sem a menor expressão. Depois, sentou-se na
cama e virou-a de frente para ele, enxugando-lhe as faces com um toque delicado.
— Nós nos casaremos assim que você puder viajar. Vou levá-la para a França. Lá,
você vai recuperar sua saúde.

— Por que você insiste em se casar comigo?! Eu não entendo!

— Não há nada para entender. Eu resolvi que você seria minha esposa e não
pretendo mudar de idéia.

Ela o fitou, com os olhos faiscantes de raiva.

— Está pensando em me engravidar e matar?

Stonor apertou os lábios e, depois de uma pausa, disse num tom gelado:

— Não seja criança, Sophia.

— Então você vai ter que procurar prazer fora do casamento!

— Isso por acaso a incomoda? Se eu fosse meu meio-irmão, você ficaria louca de
ciúme. Mas eu posso ter uma dúzia de amantes, que você nem ligará.

Sophia examinou-o, incapaz de entender.

— Você é teimoso como uma mula, Stonor. Acho que jamais o entenderei.

— Realmente, duvido que consiga.

— Como você pode me querer para esposa, sabendo que amo Wolfe? Cada vez que
me olhar, vai se lembrar de que ele foi meu amante.

O rosto de Stonor contraiu-se e, por um instante, seu olhar fugiu ao dela. Mas logo
ele voltou a encará-la.

— Depois de hoje, nunca mais pronunciaremos o nome de Wolfe.

— E quanto a filhos, Stonor? Nunca poderei lhe dar um, e você precisa de um
herdeiro.

— Tenho um irmão e uma irmã. Com o tempo, imagino que eles me darão um
herdeiro... Eu costumo encarar os fatos, Sophia, e a aconselho a fazer o mesmo.

Ela lhe lançou um olhar longo, infeliz, e suspirou.

— Estou de mãos e pés atados, não é, Stonor? Eu não tenho escolha.

— Nenhuma.

— Que tipo de casamento será o nosso? Que tipo de vida poderemos ter, juntos? —
Sophia perguntou, desanimada.

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Stonor não respondeu, limitando-se a olhá-la fixamente. Seu rosto estava
completamente inexpressivo.

— Você terá que aprender a viver com isso — disse depois de alguns instantes,
virando-se para sair do quarto.

Capítulo IX

Escondido no bosque de carvalhos, Wolfe observava Queen's Stonor. Conseguira ter


notícias de Sophia na aldeia, onde a doença dela e a insistência de Stonor em levar avante o
casamento era do conhecimento de todos. Chocado, depois de muito pensar, ele chegara à
conclusão de que tinha que vê-la. Nem que precisasse forçar sua entrada na casa, tinha que
vê-la!

Um tropel distante chamou sua atenção, tornando-o alerta. Dois homens à cavalo
saíram do pátio e dirigiram-se ao campo, aumentando a velocidade à medida que se
distanciavam da casa.

"Stonor", pensou Wolfe, com um sorriso tenso nos lábios. Não podia ver-lhe o rosto,
mas reconheceria em qualquer lugar aquela figura alta e magra.

Quando os dois homens desapareceram de vista, Wolfe cavalgou em direção à porta


da frente, assumindo uma expressão de extrema polidez, para esconder o excitamento
febril que o dominava.

A criada que abriu a porta fitou-o com um ar curioso, interessado.

— Bom dia, senhor.

Wolfe passou por ela, com toda calma.

— Vim ver a srta. Stonor — anunciou, com o tom seguro de quem é esperado. — Meu
nome é Whitley. Meu irmão ainda está aqui?

— Está sim, mas acaba de sair para um passeio a cavalo. Não deve demorar, no
entanto. Quer esperar por ele na biblioteca?

Tirando o manto, Wolfe passou-o à criada.

— Prefiro fazer uma visita à srta. Sophia, enquanto ele não vem.

— Acho que ela ainda não está recebendo visitas, senhor.


— Em todo caso, pergunte-lhe se me receberá. — E Wolfe sorriu com todo o charme
de que era capaz, tentando convencê-la.

— Está bem.

Cerrando os dentes de impaciência, Wolfe observou a garota guardar seu manto num
armário do hall. Tinha a boca seca de ansiedade, quando ela começou a subir a escada.
Mentalmente, tentava fazê-la andar mais depressa. Não tinha tempo a perder. Stonor
poderia voltar a qualquer momento.

Aproximando-se da escada, olhou para cima. A criada estava levando séculos! O que
estaria fazendo? Sua mão fechou-se com força sobre o corrimão. Subiu alguns degraus e
parou. Oh. Por que a garota não voltava?

No quarto, a criada olhava incerta para a patroa, que dormia. Apesar de corado, o
rosto dela tinha uma expressão tão tranqüila que não dava para pensar em perturbá-la.
Com um suspiro, girou nos calcanhares.

Quando viu a criada no topo da escada, Wolfe pôs-se a subir, ansioso e apressado.

— Ah, senhor, ela está dormindo! — disse a criada, bloqueando-Ihe o caminho.

Ele quase teve um acesso de raiva. Seus olhos faiscaram, assustadores, mas, antes que
pudesse dizer qualquer coisa, outra voz ressoou no hall, fazendo-o virar-se e olhar para
baixo.

— Eu cuido disso, Beth.

Com um gesto de cabeça, a criadinha desapareceu. Os dois rapazes se fitaram. A


mente de Wolfe trabalhava apressada. Deduzindo o que ele pensava, Stonor sorriu com
frieza.

— Nem pense em ir até lá. Eu não o deixaria alcançar a porta.

— Não? E como me impediria? — Wolfe rosnou, cheio de ódio.

Stonor tirou a mão do bolso, e algo metálico refletiu a luz que entrava pelas janelas!

— Eu estava a sua espera. Sabia que viria.

— Você não usaria isso! — Num gesto arrogante de divertimento, Wolfe jogou a
cabeça para trás. '

— Claro que usaria. — Com um sorriso, Stonor engatilhou o revólver. — Você tem
um minuto para sair por aquela porta.

Por um instante Wolfe não se moveu, calculando suas chances. Depois ergueu a
cabeça e enfrentou os olhos frios de Stonor, anunciando com um rugido:

— Eu voltarei. Não conseguirá me manter longe dela para sempre!


— Veremos.

Wolfe pôs-se a descer a escada, tentando ganhar tempo.

— Ela não pode partilhar sua cama, não é, Stonor? Eles me contaram, na vila. Você
jamais poderá possuí-la. Isso deve ser um grande alívio para ela. Pelo menos, não terá que
agüentar o seu...

A frase foi interrompida bruscamente, quando Stonor levantou o revólver. Wolfe caiu
para trás, com um longo corte no rosto. Com os punhos apertados e os olhos faiscantes, ele
quis avançar no outro, mas desistiu por causa do revólver.

Stonor abriu a porta da rua.

— Vou ter que mandar jogarem você para fora?

Devagar, enxugando o sangue do rosto, Wolfe saiu da casa.

— Se voltar, será recebido a bala. Vou dizer a todos os que trabalham nesta casa que
você é um criminoso perigoso, que deve ser morto sem piedade.

— Vá para o inferno!

Observado por Stonor, Wolfe montou em seu cavalo e tomou a estrada da vila.

Lucy assustou-se, quando Wolfe lhe disse que partiria de imediato para a América.

— Você não pode me deixar aqui, meu filho!

— Luther tomará conta da senhora.

Ele não contara à mãe como conseguira o ferimento no rosto, mas ela o conhecia o
bastante para saber que algo tinha dado muito errado nos planos dele.

— Não vá, Wolfe! A América é tão longe! Nunca mais nos veremos!

— Não se preocupe, eu volto.

— Os passageiros morrem como moscas, nesses barcos. Você pode arrumar um


emprego aqui mesmo!

— Nós já discutimos esse assunto, minha mãe. Eu não agüento mais a Inglaterra! Não
aguento a pobreza e esse pessoal de mentalidade estreita, que quer sempre arrancar tudo
de nós. — Ele fez uma pausa, depois acrescentou: — Mas eu volto, minha mãe. Eu lhe
prometo que volto!

Capítulo X
Uma vez na França, era de se esperar que Sophia aos poucos se descontraísse, na
presença de Stonor. No entanto, a cada dia ela se tornava mais quieta e distante. Stonor
nada dizia, limitando-se a observá-la com aqueles irônicos olhos cinzentos.

Sophia começara a aprender francês, porque isso lhe dava uma desculpa para se
concentrar nos livros e ignorar o marido. Ele trabalhava nos papéis que o irmão lhe
mandava da Inglaterra. Embora nominalmente Grey estivesse no comando dos negócios,
era no contador-chefe que Stonor confiava para dirigir a firma, enquanto estivesse fora.

Dois meses depois de sua chegada à França, ele e Sophia conversavam após o jantar,
quando de repente ela desmaiou. Estupefato, Stonor segurou-a e chamou um criado.

— Vá buscar um médico — ordenou. — Um médico! Un docteur...

O homem saiu correndo e ele a levou para o quarto, colocando-a sobre a cama e
friccionando-lhe as mãos frias. Logo Sophia abriu os olhos, fitando-o sem ver.

— Você está sentindo alguma dor?

O tom de voz era ansioso, mas ele não obteve nenhuma resposta.

— Sophia, você está sentindo alguma dor?

O médico, um francês baixo e pomposo, entrou nesse momento e mandou que Stonor
saísse do quarto.

— M'sieur, s'il vous plaêt!

Stonor obedeceu, a contragosto. No corredor, pôs-se a andar de um lado para o outro,


tão tenso que, quando o médico apareceu, fitou-o sem nada indagar.

Com a testa franzida e um ar desgostoso, o médico chamou o mordomo da casa, que


falava inglês e poderia traduzir suas palavras.

O mordomo ouviu o doutor com atenção, depois traduziu:

— M'sieur le docteur está aborrecido, senhor. Ao que parece, madame está enceinte.

Os lábios de Stonor embranqueceram.

— O quê?!

— O Doutor pensou que o senhor estivesse a par do perigo que isso representa — o
criado continuou.

O medico rompeu a falar novamente, gesticulando muito. Stonor não teve dúvida de
que estava sendo acusado, com zanga e desdém, de ter colocado a vida de Sophia em risco.
A tradução do criado confirmou sua impressão.
— M'sieur le docteur não pode lhe dar nenhuma esperança de que madame
sobreviverá ao período de gravidez, quanto mais ao parto.

Com o rosto parecendo esculpido em granito, Stonor virou-se e desapareceu em seu


próprio quarto. O criado seguiu-o com o olhar, depois comentou com o médico:

— Ele é um homem e ela é uma mulher muito bonita. O que mais se poderia esperar?

— Mas ele foi avisado. Ela pode morrer! — Tentando esconder a indignação, o
médico voltou para junto de Sophia. — Já dei a notícia a seu marido, madame. Ele ficou
um pouco perturbado, mas logo virá vê-la.

— O que foi que ele disse?

Sophia estava morta de medo da reação de Stonor. Já sabia há algumas semanas que
estava grávida, e seus dias vinham sendo cada vez mais tensos.

— Nada disse — o médico respondeu, com um gesto de repulsa. Não entendia


homens com o temperamento de Stonor. — Mas o importante, agora, é pensar na sua
saúde. Dê hoje em diante, quero que fique na cama e descanse muito. Suas relações
maritais com seu marido não devem continuar, em hipótese alguma. Se quer dar à luz em
segurança, precisa me obedecer. Seu marido não deve mais tocá-la.

Sophia fitou-o com um ar assustado, que ele interpretou erradamente.

— Eu vou falar com seu marido a esse respeito, para que não haja mais enganos.
Também vou lhe receitar um tônico e quero que se alimente exatamente como eu
prescrever. É de leite, carne, ovos e frutas que vai precisar. Nada de doces, para não
engordar. Além disso, não poderá mais ficar sozinha. Uma criada deve estar sempre com a
senhora.

Quando o médico saiu, Sophia estremeceu. Pobre Stonor! Acusado de um ato do qual
não tinha a menor culpa. O médico havia dito que ele ficara "perturbado", mas essa era
uma descrição muito vaga. O que faria ele? O que diria, quando aparecesse para vê-la?

Esperava uma reação violenta da parte dele, e por isso passara as últimas semanas
consumindo-se de medo. Mas não por si mesma. Vinha convivendo com a idéia de morte
desde que soubera de seu problema cardíaco, e quase chegara a se alegrar com essa
possibilidade. Agora, no entanto, queria viver pelo bem de seu filho, o filho de Wolfe.
Queria sentir o bebê nos braços, vê-lo abrir os olhos. Tinha certeza de que seria um
menino.

Sorrindo gentilmente, a criada aproximou-se da cama e entregou a Sophia um copo


de leite.

— Beba, madame. É pelo bem do bebê.


Sophia sorriu, sentindo-se mais leve de repente, e a criada fitou-a penalizada. Ela era
tão jovem, pálida e delicada para estar grávida!

Stonor apareceu pouco depois, e a criada lançou-lhe um olhar feroz, de zanga.


Ignorando-a, ele se encaminhou para a cama e fitou Sophia com seu olhar impassível.
Fosse qual fosse a reação dele àquela gravidez, não estava demonstrando nada.

Sophia encarou-o com esforço. As feições frias não lhe deram o menor indício do que
ele pensava. Tremendo da cabeça aos pés, ela torceu as mãos. Stonor baixou os olhos para
elas e cobriu-as com a própria mão, impedindo os movimentos agitados.

— Não tenha medo, Sophia — falou, com calma.

— Mas... A criança... é de Wolfe.

O rosto dele contraiu-se.

— Pensa que eu não sei? — Depois de um momento de silêncio, Stonor disse num
tom inexpressivo: — Nunca mais vamos nos referir a essa criança como de Wolfe. De hoje
em diante, ela é minha. Eu vou aceitar, criar e tratar essa criança como se fosse minha, se
você jurar que vai tirar Wolfe Whitley da cabeça.

Sophia fitou-o, os olhos azuis tão arregalados de surpresa, que faziam seu rosto
parecer uma máscara.

— Pense no que eu lhe ofereço, Sophia. O filho de Wolfe herdará Queen's Stonor, e eu
não farei, nada para contestar os direitos dele. Mas só se você me der sua palavra de que
nunca mais pensará em Wolfe Whitley. Ele será esquecido por completo, e você nunca dirá
a ninguém que essa criança não é minha. — Stonor respirou fundo. — Principalmente a
Wolfe. Você nunca lhe contará que essa criança é dele.

Sophia continuava incrédula. Por que estaria fazendo aquilo?

— E então? Trato feito?

— Eu não entendo — ela murmurou, olhando-o nos olhos e vendo apenas uma
determinação implacável.

— Você não tem que entender nada. — De repente, ele se irritou. — Você só tem que
dizer sim. Dê-me sua palavra agora, Sophia. Essa criança é minha, não de Wolfe.

Inclinando-se, Stonor colocou a mão sobre a barriga dela, levemente arredondada.


Sophia sobressaltou-se, e ele repetiu por entre os dentes cerrados:

— Essa criança é minha.

Sophia não conseguia desviar os olhos. Como se estivesse sendo obrigada por uma
força mental, ouviu-se murmurar:
— Essa criança é sua.

Stonor lançou um olhar à barriga onde ele colocara a mão. Endireitando o corpo, saiu
do quarto sem dizer mais nada, deixando-a em meio a um silêncio atônito.

A gravidez de Sophia foi longa e cansativa. À medida que seu corpo frágil aumentava
de tamanho, Stonor passava mais tempo com ela, sob o olhar hostil dos criados franceses.
Sentado junto à cama, lia para ela os jornais e revistas que chegavam da Inglaterra ou
falava dos lugares que visitara no dia anterior. Todos os dias ele saía a cavalo pela
redondeza, trazendo-lhe na volta flores, esboços de velhas igrejas ou lendas do folclore
local.

— Quando eu era criança — Stonor lhe contou uma vez sorrindo, depois de falar do
orgulho que os habitantes da região mostravam ter de sua raça —, um vendedor de
cebolas ia sempre bater à nossa porta. Ele tinha uma aparência tão estranha, com as résteas
de cebola dependuradas no pescoço! Muitas vezes eu tive vontade de saber de que país ele
vinha. Nunca imaginei que fosse daqui.

Sophia lembrou-se de Wolfe caçoando do ciúme de Stonor, quando o pai o levava aos
jogos de cricket, deixando o filho mais velho para trás. O que teria tal infância causado em
Stonor?

Ele lia para ela as cartas de tia Maria, cheias de detalhes da vida de Londres, queixas
dos criados e notícias do casamento de Elizabeth e Tom. Elizabeth reclamara ao saber que
o irmão e a cunhada não iriam à Inglaterra para seu casamento, mas sua irritação
desaparecera ao receber o generoso presente de Stonor.

— Tom é um tolo — comentou Stonor, depois de ver a lista de presentes recebidos


pelo casal. — Minha irmã é muito parecida com minha mãe, para fazê-lo feliz.

— Com outro homem, talvez sua mãe tivesse sido feliz. Você tem que reconhecer que
ela sempre foi boa mãe, Stonor.

— É verdade.

— Eu gosto muito dela. Mais do que da sua irmã. Elizabeth tem um modo rude de
que não gosto.

— Ela é uma ordinariazinha.

Sophia riu, e ele a observou com uma intensidade desconcertante.

— Se você planta uma árvore entre pedras, não deve se surpreender se ela cresce
torta — Stonor disse abruptamente. — Elizabeth e Grey foram deformados pelo ambiente
em que cresceram.

— Você cresceu com eles, Stonor.


— Portanto, também fui deformado, não é?

Nervosa, ela ajeitou as cobertas.

— Não sei... Não sei ao certo por que eu disse isso.

— Seu pai a ama. Ele demonstra esse amor, sempre que vocês estão juntos. Apesar de
desejar o nosso casamento, ele desistiu da idéia, assim que soube da sua doença. Duvido
que possa entender o que é ter um pai que nem o vê, que passa por você como se não
houvesse ninguém ali, enquanto vai à procura de outro filho. — A voz de Stonor tornou-se
áspera. — Eu não seria humano, se não me ressentisse disso.

Emocionada, Sophia estendeu-lhe a mão.

— Pobre Stonor!

Stonor sobressaltou-se, depois fechou a mão sobre a dela.

— Quando eu fiz cinco anos, ganhei de presente um desses cavalos de madeira. Era
enfeitado com sinos e fitas vermelhas, e quando eu andava nele, os sinos tilintavam.
Durante algumas semanas eu brinquei com ele, todos os dias. Então, uma tarde, eu o
deixei no hall, enquanto ia tomar chá. Quando voltei, encontrei-o quebrado. Wolfe o tinha
levado para a rua e deixado que uma carroça passasse sobre ele.

Tantos anos tinham se passado desde que aquilo acontecera, mas mesmo assim
Sophia percebeu a zanga e a amargura na voz dele.

— Eu poderia lhe contar mais uma dúzia de histórias, todas com o mesmo fim. Tudo
que eu tinha, Wolfe tomava. Tudo que eu amava, ele roubava. E fazia tudo de propósito.

— Não!

Uma expressão irônica surgiu no rosto de Stonor.

— Ele destrói, rouba e cobiça tudo que é meu. Uma guerra foi declarada entre nós,
desde que ele e a mãe entraram em nossa casa. Grey se ressente de eu ser o mais velho,
mas não me odeia. Já Wolfe me odeia e está sempre procurando um jeito de me ferir.

— Acho que você está enganado a respeito dele, Stonor — Sophia murmurou,
lembrando-se de que Wolfe lhe dissera exatamente o contrário.

— Não, Sophia, você é que está.

Ela franziu a testa, perturbada. Por mais que desejasse, não poderia negar que o que
Stonor dissera a respeito de Wolfe era verdade.

Desviando o olhar para sua barriga avantajada, Stonor disse de repente:

— Mas vamos deixar esse assunto de lado. Nunca teremos a mesma opinião sobre
Wolfe. Além disso, o máximo que podemos fazer é tentar aparar os golpes dele.
Esta frase aborreceu e intrigou Sophia. Mais tarde, sozinha, ela rememorou o brilho
dos olhos de Stonor ao dizê-lo. O que estaria ele insinuando?

Passou-lhe pela mente que, insistindo em casar-se com ela e ao aceitar a criança como
sua, de certo modo Stonor estava combatendo Wolfe. Podia-se dizer que Wolfe vencera a
primeira batalha entre eles, travada para conquistá-la. Ele a possuíra e conseguira
engravidá-la. A maioria dos homens a teria repudiado com raiva ao descobrir isso, mas
Stonor tomara uma atitude estranha. Teria sido para reverter a vitória de Wolfe,
transformando-a em derrota? Wolfe na certa encararia assim seu casamento,
principalmente quando ouvisse que dera à luz uma criança, aparentemente de Stonor.
Além disso, passaria a acreditar que ela aceitara o marido em todos os sentidos.

Essa idéia perturbou-a ainda mais. Se seu raciocínio era certo, Stonor a estava usando
como uma arma, no duelo contra o meio-irmão. E ela não queria ser usada contra Wolfe.
Fazia com que se sentisse desleal.

Por outro lado, Stonor não poderia tratá-la melhor. Ele era o mais indulgente dos
maridos, sempre dando um jeito de satisfazer seus menores desejos. Trazia-lhe flores,
mandava a cozinheira preparar seus pratos favoritos e estava sempre por perto. Um dos
presentes surpresa que lhe trouxera era um velho bandolim, que ela aprendera a tocar de
ouvido. Ele gostava de se sentar e ouvi-la tocar as canções que os criados cantarolavam
para ela, até que pegasse a melodia.

Aos poucos, essa convivência começou a alterar o relacionamento entre eles. Se a


princípio Sophia sentia-se pouco à vontade na presença de Stonor, logo passou a recebê-lo
com um sorriso radiante, que provocava em resposta um sorriso hesitante.

— Estou tão aborrecida, Stonor! — ela costumava exclamar. — Leia qualquer coisa
para mim.

Stonor então pegava um romance e punha-se a ler, enquanto Sophia remexia-se


inquieta na cama, cansada de seu repouso e louca para sentir o sol que brilhava lá fora.

Stonor havia adquirido o hábito de levantar-se cedo e sair a pé pelos campos. Um dia,
ele parou para ver um pastor fazer o parto de uma ovelha. As mãos calosas foram
extremamente gentis ao penetrar no corpo do animal, para facilitar o nascimento, mas
Stonor não conteve um tremor. De repente, ele disse:

— Minha esposa está esperando uma criança.

O pastor, um homem grisalho de mais ou menos sessenta anos, sorriu.

— No meu tempo, ajudei minha mulher dar à luz oito crianças vivas, senhor.

— É mesmo?!
O homem riu.

— Nós morávamos muito longe da vila, para chamar a parteira em tempo. De


qualquer maneira, ela não passava de uma velha bêbada. — Ele ergueu os olhos para
Stonor. — Não deixe essa gente mexer com a sua esposa, m'sieur. Ela e a criança podem
morrer. Por aqui muita mulher já foi se encontrar com o Criador, por causa dessas parteiras
bêbadas.

— Eu pretendo chamar o médico.

— É um bom homem. O senhor pode confiar nele. Quanto a mim, sempre preferi
confiar nas minhas mãos. Uma ovelha ou uma mulher, qual é a diferença?

Stonor acostumou-se a ir conversar com o velho pastor. Uma vez, ajudou-o a segurar
uma ovelha que dava a cria. No final, quando o pastor puxou para fora a criaturinha, seus
sapatos e calças ficaram respingados de sangue. Cheio de curiosidade, ele continuou a
olhar, vendo o modo como a ovelha lambia o recém-nascido. Depois, bombardeou o velho
com perguntas a respeito.

— Se ela confiar no senhor, tudo irá bem. Ela não deve lutar contra a dor, deve se
deixar levar pelos acontecimentos. Vai gastar menos energia, assim. Se lutar, o coração é
que vai sofrer. Da primeira vez, o pior inimigo é o medo. Sem saber o que virá, elas ficam
cegas de medo. Ajude-a a vencer o medo, e o senhor terá uma chance.

Stonor ouviu-o com atenção, voltando inúmeras vezes para falar do mesmo assunto.

— Assim o senhor vai acabar virando uma parteira — o velho brincou certa ocasião,
surpreso e divertido com aquela insistência.

— Minha esposa é delicada. Vai precisar de toda ajuda que puder obter.

Stonor recostou-se num barranco, com o sol batendo no rosto. A ansiedade dos
últimos meses causara uma série de rugas em torno de seus olhos e boca, dando-lhe um ar
vulnerável, que muitas vezes o traía. Sua mente estava toda focalizada no acontecimento
que se aproximava. Seus olhos ardiam incessantemente, injetados de sangue pela falta de
sono, e ele agora evitava olhar para Sophia.

Ela estava pesada, não só de corpo como de alma. Também sofrera uma mudança de
personalidade, passando a gostar de ficar na cama, imóvel, observando o cenário lá fora
pela janela, com as mãos cruzadas sobre a barriga, como que protegendo a criança que
carregava.

Stonor sentia que ela também esperava o nascimento com a sensação de estar se
aproximando de um clímax. Não sabia se tinha medo ou esperava tudo fatalisticamente,
certa de que morreria, mas com a esperança de que a criança nascesse bem. Com medo da
resposta, ele jamais lhe perguntou.

A primavera cedeu lugar ao verão, e as tardes quentes chegaram. O calor parecia


penetrar em todo lugar, desgastando as forças de Sophia e dando a Stonor uma aparência
sadia e bronzeada. Ele conseguia enganar a todos, dando a impressão de se sentir calmo e
seguro a respeito do parto da esposa. As longas caminhadas pelos campos tinham
transformado suas feições pálidas numa máscara bronzeada, alargando seus ombros,
expandindo seu tórax e fortalecendo seus braços e pernas.

As criadas, que costumavam cuspir de lado quando falavam dele, passaram a fitá-lo
com interesse. Ele percebeu, mas não lhes deu o menor sinal de encorajamento. Não tocava
uma mulher há mais de um ano e estava ciente de que isso era uma fonte de irritação
constante, mas não desejava procurar alívio com uma das criadas.

Stonor e Sophia tinham combinado não comunicar a gravidez dela ao pai, pois isso só
iria alarmá-lo.

— Nós lhe escreveremos quando a criança nascer — Stonor disse um dia, sem
acrescentar que preferia esperar para ver se ela sobreviveria.

Sophia olhou para fora.

— Se... se eu morrer, quero que tome conta do meu filho. Você me promete, Stonor?

— Prometo.

Mas foi uma promessa que não a tranqüilizou. A idéia de deixar nas mãos de Stonor
o filho de Wolfe não lhe agradava. Na sua opinião, a vida da criança seria miserável.
Sophia não entendia Stonor, mas sabia que ele era dono de uma determinação tão
inexorável que lhe dava medo.

Querendo amolecê-lo, pegou-lhe a mão e colocou-a sobre o ventre distendido.

— Sinta o bebê chutar, Stonor!

Ele pressionou a pele, e o leve movimento sob sua palma aumentou. De repente
sorriu, mudando de expressão.

— Ele está cheio de energia. Isso não a machuca, Sophia?

— Não, mas dá uma sensação estranha.

Depois de um ligeiro silêncio, Stonor disse:

— Você não deve pensar em morrer, Sophia. Deve pensar apenas em viver. Pelo bem
desta criança, se não pelo seu.

— Você teve uma infância infeliz, Stonor. Não faça a do meu filho igual...
— Você estará aqui para garantir que eu não faça. Você vai viver, Sophia. — Ergueu a
mão para tocá-ia no rosto. — Você vai viver!

Sophia suspirou. Tivera esperança de arrancar dele uma promessa que apagasse de
sua mente cansada a necessidade de lutar pela vida, mas Stonor recusara-se
terminantemente a satisfazê-la.

Uma noite de junho, Stonor estava na cama, com o corpo atormentado por emoções
que não podia suprimir, quando ouviu um grito de dor vindo do quarto de Sophia. Correu
para lá, e encontrou tudo abafado e às escuras, com as venezianas abaixadas.

A criada dormia em sua cadeira junto à cama, e ele aproximou-se de Sophia. Ela
estava de olhos fechados, com os cabelos espalhados sobre o travesseiro e as mãos sob as
costas. Teria tido um pesadelo? Enquanto ele a observava, ela arqueou o corpo, deixando
escapar outro grito abafado.

Stonor agarrou a criada, sacudindo-a sem a menor delicadeza.

— Vá buscar o médico — ordenou, quando ela abriu os olhos, assustada. — Acho que
sua patroa vai dar à luz.

A garota olhou para Sophia, que agora os fitava, muito pálida, mordendo o lábio
inferior, que já começava a sangrar. Sem nada dizer, a moça correu para a porta.

Sentando-se na beirada da cama, Stonor ajudou Sophia a fazer o mesmo. Ela gemeu,
enrijecendo quando outra contração veio, e ele apoiou-a no próprio corpo, massageando-
lhe gentilmente as costas.

— Olhe, Sophia, você tem que respirar como eu, fundo e devagar.

Amedrontada e sem entender direito, ela obedeceu. Outra dor veio, atingindo-a nas
costas, pressionando-a de uma forma insuportável, e ela lutou contra aquilo, respirando
depressa e de forma superficial.

— Assim, não. Devagar, Sophia. Respire devagar.

Vendo-o respirar de um jeito profundo e regular, Sophia relaxou e pôs-se a imitá-lo.


Acomodando-a sobre a cama novamente, Stonor foi até as janelas e abriu-as. Uma brisa
fresca atingiu o rosto pálido e suado de Sophia. Sussurrando palavras doces, Stonor
banhou-lhe a testa e as faces com água fria.

— Relaxe, não tente lutar contra a dor. Precisa aceitá-la, deixar que ela a conduza.
Não lute contra ela. Respire profunda e calmamente, como se estivesse bocejando. Receba
a dor passivamente, Sophia.

Sophia prendeu a respiração por um segundo, com os olhos presos nos dele. Depois,
obedeceu-o. Stonor sentiu o corpo descontrair-se em suas mãos. Logo, veio outra
contração. Ele continuou a falar, acalmando-a e insistindo para que fizesse como mandava.
A criada surgiu na porta, ofegante.

— M'sieur, o médico está numa fazenda, a quatro quilômetros daqui. Mandei buscá-
lo, mas, enquanto isso, trouxe a parteira.

Stonor, muito pálido, olhou furioso para a criatura gorda e suja que entrava no
quarto. Ela cheirava a vinho e tropeçou ao se aproximar, mal conseguindo cumprimentá-
lo.

— Tire essa velha bêbada daqui! — ele mandou por entre dentes, mal conseguindo
dominar a raiva e o medo.

Incrédula, a criada exclamou:

— Mas, m'sieur, alguém precisa fazer o parto de madame. Stonor levantou-se furioso,
e empurrou as duas mulheres para fora do quarto. Trancando a porta, voltou para junto da
cama, onde Sophia gemia agoniada, com o suor escorrendo pelo rosto.

— Você vai me matar e matar o meu filho — ela gritou, tentando se levantar.

Mas ele a impediu, empurrando-a de volta a cama.

— Fique quieta, Sophia! Não tenha medo, não vou deixar você morrer.

Em desespero, ela lutou para se libertar das mãos dele. Do outro lado da porta, os
criados se comprimiam, murmurando. Uns queriam arrombar a porta, outros achavam
que o perigoso inglês não devia ser desafiado.

Forçando Sophia a estender-se na cama, Stonor jogou longe os travesseiros.

— Você precisa poupar sua energia para depois, Sophia, e para isso tem que aprender
a se deixar levar pela dor. Confie em mim e agarre minhas mãos, que eu suportarei sua dor
o máximo que puder.

Embora soluçando, com os olhos fitos nos dele, Sophia sentiu que uma estranha
segurança começava a invadi-la. A vontade de Stonor, dura como ferro, fria como aço,
estava dominando a sua. Suas mãos agarraram-se às dele, enquanto sua respiração
tornava-se mais profunda e lenta.

— Me agarre com força, Sophia, que eu suportarei a sua dor. Sinta as vibrações
passando de suas mãos para as minhas. Não tire os olhos de mim, Sophia. Acredite em
mim, quando digo que não deixarei que sofra.

Sophia acreditou. E começou a sentir uma pulsação estranha e rítmica em seu corpo,
no lugar onde a dor estivera antes. Stonor continuava a falar baixinho, acalmando-a,
tranqüilizando-a, aumentando sua confiança. O barulho do relógio sobre a cômoda e a voz
dele acabaram se fundindo em seus ouvidos, enquanto a dor diminuía cada vez mais, até
atingir um ponto que ela conseguia suportar sem opor resistência. De repente Sophia
assustada fez um movimento brusco.

— Ah...

— O que foi? O que foi, Sophia?

Da escada veio o ruído dos passos do médico chegando. Ele encontrou o corredor
cheio de criados, que ouviam junto à porta com uma expressão tensa e excitada.

— Abram a porta — ordenou.

— Está trancada — disse um dos criados. — O inglês nos botou para fora do quarto e
está matando a criança.

O médico bateu na porta com violência, gritando:

— Deixe-me entrar, m 'sieurl Quer matar sua mulher e a criança? Mas Stonor não
ouvia nada.

— Mais força, Sophia — dizia. — Só mais uma vez! Já estou vendo a cabeça dele. Sei
que está cansada, mas precisa tentar mais uma vez.

— Não posso! — ela gemeu. Estava molhada de suor e quase sem energia.

O rosto de Stonor endureceu. Suando muito, ele a forçou a dobrar mais as pernas e
mandou:

— Você tem que fazer força. Só mais uma vez, Sophia.

Sophia respirou fundo, tremendo da cabeça aos pés. Ele percebeu a agonia que estava
lhe causando aquele último esforço e estremeceu, mas logo em seguida soltou-a para
segurar o bebê, que deslizava para fora do corpo exausto da mãe.

Com um longo suspiro, Sophia fechou os olhos. Stonor ficou apavorado com sua
palidez de morte. Atrás dele ouviu o som de algo atingindo a porta e a madeira rachando:
os criados forçavam a entrada no quarto.

— Saiam! — ordenou cheio de fúria, virando-se para eles com o bebê nas mãos.

O médico contemplou-o, atônito, mas colocou os criados para fora, fechando a porta
rachada. Enquanto isso, Stonor inclinou-se sobre.o corpo inerte de Sophia. Sua impressão
era de que os lábios dela mal se moviam.

O médico aproximou-se para assumir o controle do resto do parto. Quando cortou o


cordão umbelical, um pouco de sangue respingou as roupas e o rosto de Stonor. Ele não se
abalou. Ainda segurando o bebê, inclinou-se mais sobre Sophia.

— Abra os olhos, Sophia!


Branca como um lençol, ela não se mexeu nem deu sinal de tê-lo ouvido.
Aproximando os lábios de um dos ouvidos dela, Stonor insistiu, baixinho:

— É o filho de Wolfe, Sophia. Você não pode morrer e deixar o filho de Wolfe!

Devagarinho, Sophia abriu os olhos, fitando-o com um profundo cansaço.

— É o seu filho, Sophia. Não quer segurá-lo? — O rosto dele assumiu uma expressão
de amarga ironia. — Olhe para esses cabelos escuros... iguais aos de Wolfe!

Ela abaixou os olhos, então, e pegou o corpinho nu e escorregadio, segurando-o


possessivamente junto a si. Stonor deixou as mãos sujas de sangue caírem ao longo do
corpo. O bebê mexeu-se, soltando um grito frágil, enquanto um sorriso de cansaço surgia
nos lábios femininos.

— Vou dar a ele o nome de Daniel — disse Sophia, recuperando um pouco da cor.

— Daniel — Stonor repetiu, começando a sentir as conseqüências da enorme tensão


que suportara, enquanto lutava pela vida dela.

De imediato o médico aproximou-se, tocando-lhe o braço.

— O senhor fez maravilhas, mas agora deve ir descansar. Mande as criadas virem me
ajudar a cuidar de sua mulher. Para o senhor, eu prescrevo uma garrafa de brandy e um
bom sono.

Com um último olhar para Sophia, Stonor dirigiu-se à porta. As criadas recuaram,
assustadas com sua aparência abatida e ensangüentada.

— Vão ajudar o doutor — ele lhes disse. — E alguém me traga uma garrafa de brandy
e um copo.

Em seu quarto, Stonor caiu sobre a cama e cobriu os olhos com as mãos trêmulas. Do
quarto de Sophia vinha o vagido fraco da criança. Ele virou a cabeça para ouvir melhor, e
um longo suspiro escapou de seus lábios.

Capítulo XI

À luz pálida da aurora, Stonor voltou ao quarto de Sophia. Ela dormia, muito corada,
e ele tomou-lhe o pulso, com medo de uma nova febre. Mas as batidas eram normais, e ele
levou a mão pequena aos lábios, beijando-a suavemente.
Sophia abriu os olhos nesse momento, mas, ao perceber que ele não sabia que estava
acordada, fechou-os depressa. Sentia-se estranhamente embaraçada. A intimidade que
tinham partilhado durante suas horas de parto deixava-a nervosa e pouco à vontade na
presença dele.

Soltando-lhe a mão sobre a cama, Stonor aproximou-se do berço. Seu rosto mais
parecia uma máscara fria e inexpressiva, quando estendeu as mãos para o bebê. Sophia
observava-o por entre os cílios, com o coração apertado.

Firmemente embrulhado, o bebê mexeu a cabecinha, fazendo pequenos sons. Stonor


encostou o dedo no rostinho e a boquinha rosada voltou-se avidamente, numa procura
instintiva de alimento. Sophia viu o rosto do marido iluminar-se, quando o bebê pôs-se a
sugar o dedo. Um sorriso apareceu nos lábios frios, e ela ouviu-o murmurar:

— Alô, Daniel.

Seu instinto de mulher lhe disse, então, que Stonor não representava uma ameaça
para o bebê. Ela captou a nota de ternura e posse, na voz dele, e lembrou-se do modo como
ele havia segurado o menino nas mãos ensagüentadas, na noite anterior, enquanto tentava
convencê-la a viver pelo bem do filho.

Stonor insistira que a criança era dele, no entanto, para salvar sua vida, invocara o
nome de Wolfe. Seria possível que o tivesse julgado mal? Apoiara-se nele durante suas
horas de agonia, e ele não desmerecera sua confiança. Que tipo de homem era Stonor,
afinal? Um inimigo mortal de Wolfe, certo, mas... e quanto a ela? E quanto à criança, o filho
de Wolfe? Poderia confiar nele?

Voltando-se, Stonor surpreendeu seu olhar. O sangue subiu-lhe ao rosto, como se


estivesse embaraçado por ter sido visto mostrando ternura para com a criança. Com um
sorriso, aproximou-se da cama e colocou Daniel nos braços de Sophia.

Ela comparou os cabelos escuros e finos na cabecinha do filho, como os de Wolfe.


Mas os olhos que retribuíram seu olhar eram tão azuis quanto os seus.

— Ele tem os cabelos e os olhos iguais aos seus — Stonor comentou. — É a sua cara.

O bebê virou a cabeça, movimentando avidamente a boquinha.

— Ele está com fome! — Sophia exclamou, rindo.

— Temos que arranjar uma ama de leite para ele.

— Não, eu vou amamentá-lo.

— Vai acabar com a sua saúde. Você ainda não está boa.
— Claro que estou, Stonor. — Ela ergueu os olhos sorridentes para ele, mas quando o
bebê se agitou em seus braços, voltou a lhe dar atenção. Vagarosamente, pôs-se a
desabotoar a camisola.

Stonor enrijeceu. Os seios de Sophia estavam muito maiores, com as veias aparecendo
sob a pele clara e os mamilos mais escuros, devido à alteração de pigmentação própria da
gravidez. Tomando um deles entre os dedos, ela o apertou, para que o leite saísse, e
colocou-o na boquinha do bebê.

A respiração de Stonor acelerou-se e, com um olhar fixo, ele observou a criança sugar
ansiosamente, enquanto batia uma das mãozinhas no seio da mãe. Ela ergueu a cabeça,
rindo, mas corou ao perceber o modo como ele fitava seus seios nus. Quando seus olhares
se encontraram, porém, o rosto dele tornou-se inexpressivo.

— Quando vocês dois estiverem em condições de viajar, vamos embora para Queen's
Stonor — Stonor disse, num tom frio e firme. — Seu pai terá um choque, por isso acho
melhor não lhe contarmos nada, por enquanto. Depois, nós lhe diremos que ele é
prematuro. Como Daniel é pequeno, todos acreditarão.

— Você é tão bom, Stonor! — Sophia exclamou, num impulso. — Nem sei como lhe
agradecer. Eu lhe devo minha vida. Estava com tanto medo, ontem à noite... Foi você que
me deu forças.

— Eu não podia deixá-la nas mãos de uma velha bêbada.

— Ainda assim, você realizou um verdadeiro milagre, e eu quero lhe agradecer.

Stonor, que se sentara na beira da cama, ia se levantar, mas Sophia segurou-o pelo
braço. Inclinando-se para frente, encostou os lábios nos dele. Num movimento abrupto, ele
agarrou-a pelo pescoço, puxando-a para junto de si e movendo os lábios de encontro aos
dela com avidez.

Lembrando-se do conforto e da força que Stonor lhe dera na noite anterior, Sophia
cedeu sem resistência. Momentos depois, ele interrompeu o beijo e fitou o bebê, que ainda
mamava. Seu rosto corado abriu-se num sorriso.

— Será que ele está conseguindo mamar alguma coisa, Sophia? Ela estava tão corada
e abalada quanto ele ao dizer:

— Acho que não, mas parece estar gostando disso.

— Todas as vezes que eu olhar para Daniel, vou me lembrar de que foram minhas
mãos que o trouxeram ao mundo. Nunca mais me esquecerei daquele momento. Eu não
sabia que um nascimento era uma coisa tão extraordinária! E me sinto como se tivesse lhe
dado a vida.
— De certo modo, foi o que aconteceu. Eu teria morrido sem você, Stonor. Daniel é
tão seu filho quanto meu.

Seus olhares se encontraram, e ela viu que os dele brilhavam.

— Eu lhe disse que ele seria e falei sério. Daniel é nosso filho. Nosso.

Emocionada, Sophia estendeu a mão para Stonor, que a tomou entre as suas.

— Você também o amará, Stonor?

— Como se fosse meu.

O silêncio caiu entre os dois. Momentos depois, ela não agüentou e interrompeu-o,
perguntando:

— Como foi que você soube o que fazer? Sua atitude foi tão segura, tão confiante!
Você nunca tinha feito um parto, tinha?

Stonor sorriu, como que aliviado pela mudança de assunto.

— Eu conheci um pastor.

— Um pastor?! Como assim?

— Eu o vi ajudando ovelhas a dar cria, e falei com ele a esse respeito. Ele fez todos os
partos de sua mulher. — O sorriso de Stonor ampliou-se. — Minha intenção era ajudar
você no que pudesse, enquanto o médico fazia o parto, mas no fim eu acabei fazendo tudo.

— Você é incrível, Stonor! — Pela primeira vez, Sophia experimentava alguma


ternura pelo marido. — Quer dizer que você fez tudo aquilo, depois de ver um pastor
ajudar umas ovelhas?

— Eu aprendo depressa.

— O que foi a minha sorte! — Sophia riu, e ele juntou-se a ela.

— O pastor me disse que não há diferença entre uma mulher e uma ovelha.

— Não diga!

Sophia riu ainda mais, e, com o movimento que fez, o bebê deixou escapar o seio.
Irritado, gritou, e ela o mudou gentilmente para o outro seio. Stonor seguia a cena com um
olhar abertamente fascinado.

— Stonor, sua mãe não deve saber nunca que você fez o meu parto. Ela ficaria
chocadíssima!

A expressão dele endureceu:

— Minha mãe é uma mulher de mentalidade estreita e atrasada. Não se deixe


influenciar por suas opiniões.
Sophia lembrou-se novamente daqueles momentos de agonia na noite anterior,
quando Stornor abrira e dobrara suas pernas para trás, a fim de trazer Daniel ao mundo. O
sangue subiu-lhe ao rosto. Bem podia imaginar o horror e desgosto de tia Maria. Ela
mesma achava difícil acreditar naquilo. Sempre vira Stonor como um homem frio e
normal, no entanto nem Wolfe chegara a conhecê-la de forma tão íntima. Na noite anterior,
ela passara por um processo violento e natural, e Stonor, frio, confiante e determinado,
ajudara-a a superar tudo. Um laço muito forte formara-se entre eles, naqueles momentos.
Juntos, tinham encarado e derrotado a morte. Poucos casais podiam dizer o mesmo.

A criada entrou no quarto, mas deteve-se ao vê-los. Stonor fez um gesto seco de
cabeça.

— Sua patroa está com fome. Traga nosso café para cá. Comeremos juntos.

A moça fez uma reverência e saiu. Depois da noite anterior, a criadagem havia
mudado de opinião a respeito de Stonor. O médico não poupara elogios a ele, dizendo que
não poderia ter feito melhor. Ao ver o inglês com a criança nas mãos ensangüentadas,
forçando a mulher de volta à vida e à consciência, o francês passara a admirá-lo, dando aos
criados uma nova visão dele.

Stonor e Sophia comeram croissants com leite, depois que o bebê voltou para o berço.
Ela comeu com apetite, os cabelos negros caindo-lhe pelos ombros, com o corpo livre de
seu fardo mas mostrando um novo arredondamento que só lhe aumentava o encanto.

Observando-a comer, Stonor riu.

— Isso é que é fome, hein?

— Eu seria capaz de comer um cavalo!

O médico logo chegou e deu-lhes os parabéns pelo filho.

— Mas o senhor precisa arranjar uma ama de leite. Sua esposa não deve amamentar a
criança.

Stonor virou-se para Sophia.

— O doutor tem razão, Sophia. Será muito cansativo, para você.

— Mas eu quero amamentá-lo, Stonor!

— Que criaturinha teimosa! — Ele se enterneceu, apesar do tom de censura. — Está


bem, vamos tentar. Mas você tem que me prometer que deixará uma ama de leite ajudá-la,
se sentir que não está agüentando.

— Prometo — disse ela, feliz.


Quando o médico se foi, Sophia recostou-se nos travesseiros e Stonor pôs-se a ler, em
voz alta, sua pilha de cartas vindas da Inglaterra. Ela perdeu o interesse no meio de uma
carta de Elizabeth, que citava item por item os móveis que comprara para sua nova casa.

Stonor parou de ler, ao perceber que ela não ouvia, e pegou-a fazendo caretas para o
bebê, que a observava com seus enormes olhos azuis.

Sophia tinha um sorriso travesso nos lábios ao falar:

— Desculpe, mas é que Elizabeth me aborrece tanto com essas listas do que tem.

— Ela sempre foi assim. Mesmo em criança, era muito possessiva. As bonecas mais
bonitas, as roupas de boneca mais luxuosas, tudo tinha quer ser dela.

— E agora ela vai pôr o coitado do Tom em sua casa de bonecas!

— Deus o ajude!

Sophia olhou para o bebê, fazendo sons incoerentes com a boca. Inclinando-se,
Stonor pegou o menino e colocou-o no colo dela.

— Pronto — disse, num tom divertido. — Já que quer brincar com ele, pode brincar.

— Não vou aborrecer você, Stonor?

— Não. Eu gosto de vê-la com Daniel nos braços. Minha mãe nunca foi de
demonstrar afeto. Acho que ela não gostava de ser tocada. Costumava afastar o rosto,
quando um de nós ia beijá-la.

O sorriso morreu nos lábios de Sophia.

— Você foi muito infeliz quando criança, Stonor?

— Eu não vivia em nenhum paraíso.

Ela olhou para Daniel, tocando-lhe os cabelos de leve.

— Uma mãe que se afastava quando ia ser beijada e um pai que o ignorava... Não é de
admirar que você tenha ficado assim!

— Daniel não vai sofrer como eu.

— Não, nós dois vamos amá-lo. — Sophia estendeu o bebê para ele. — Mostre a
Daniel que você o ama, Stonor.

Um ar alarmado surgiu no rosto de Stonor, mas ele segurou o bebê junto a si,
beijando-lhe o rostinho rosado. Sophia não conteve o riso, ao ver o nervosismo com que
segurava o corpinho frágil e vulnerável.

Quinze dias depois, Sophia recebeu permissão para descer e aproveitar o ar quente
de verão. Envolta num penhoar de seda, que realçava suas curvas recentemente
adquiridas, ela se acomodou numa espreguiçadeira junto à janela, de onde podia observar
os pássaros voando sobre o jardim.

Stonor sentou-se a seu lado, lendo um jornal inglês. De vez em quando levantava a
cabeça para admirar seu ar feliz e descontraído. Ela acabara de amamentar Daniel lá em
cima, e seu rosto ainda mostrava a ternura causada por esse prazer físico.

De repente, Stonor estendeu a mão para uma fruteira e ofereceu-lhe um pêssego


dourado. Sophia aceitou-o, sorrindo.

— Quer que eu descasque para você.

— Não, eu gosto da pele, é como comer um ratinho peludo.

Stonor riu.

— Mas que comparação horrível!

Sob o olhar sorridente do marido, ela mordeu o pêssego com prazer.

— Você faz tudo com tanto gosto! Nunca encontrei uma pessoa que tivesse tanta vida
quanto você — disse ele, encantado. — Sabe que sua pele está parecendo a de um pêssego?
Você está começando a ganhar cor e peso. Está muito bem!

— Eu estou é ficando gorda!

Stonor deslizou o olhar por seu corpo, examinando os seios arredondados sob o
penhoar de seda.

Nesse momento uma das criadas apareceu, para dar um recado do médico. Ele se
desculpava por só poder vir mais tarde para a visita diária, devido a uma consulta urgente.
A criada fez uma reverência antes de sair, e nesse instante Sophia surpreendeu o olhar que
ela lançou a Stonor. Um olhar cheio de admiração, que reafirmava o convite feito pelos
lábios vermelhos. O rosto frio e bonito de Stonor não deu sinal de que ele tivesse notado, e
a garota saiu, balançando o corpo sensual.

Sophia abaixou a cabeça, pondo-se a observar Stonor disfarçadamente, enquanto


comia a fruta. Pela primeira vez, passou-lhe pela cabeça que ele podia estar se satisfazendo
com uma das criadas da casa. Algumas delas eram bem bonitas.

Seus olhos azuis puseram-se a estudá-lo com novo interesse. Ele mudara bastante
durante aqueles meses. A pele havia adquirido um tom bronzeado, os ombros tinham se
alargado e o tórax estava mais forte, dando-lhe um ar bem mais atraente. Daquele jeito,
nem as feições duras e frias poderiam impedi-lo de ser desejado pelas mulheres. Talvez até
mesmo as fascinasse. Muitas delas provavelmente se sentiriam tentadas a mudar a
expressão dos frios olhos cinzentos, acabando com a reserva de seu dono.
Seria possível que uma delas já tivesse conseguido? Lembrando-se do modo como
Stonor a obrigava a curvar-se à vontade dele durante o nascimento de Daniel, Sophia
concluiu que ele devia ser um amante do tipo dominador.

Tentou concentrar-se no pêssego que comia. Afinal de contas, nada tinha a ver com a
vida sexual de Stonor. Ele tinha todo o direito de possuir a mulher que quisesse, e ela não
poderia interferir.

No entanto, daquele momento em diante Sophia não pôde mais deixar de notar o
modo como as criadas olhavam e sorriam para Stonor, quando ele lhes falava. Ela mesma
passou a reparar nos movimentos do corpo ágil e forte, quando ele ia de um lado para o
outro.

Essa sua mudança de atitude começou a alterar o relacionamento dos dois. Sophia se
acostumara a amamentar Daniel na frente de Stonor, sem dar importância ao que fazia,
mas, alguns dias depois, quando ele entrou no quarto durante uma dessas sessões, ela
corou, sobressaltada.

Stonor franziu a testa.

— O que foi?

— Nada — ela murmurou, baixando os olhos. Sentando-se na cama, ele a fez encará-
lo.

— Não minta para mim, Sophia.

— É só que... Olhe, como nós vamos para casa logo, talvez fosse melhor você não
entrar no meu quarto quando estou amamentando Daniel.

Stonor praguejou baixinho, alarmando-a com sua veemência.

— Você não vai me deixar de fora da sua vida, Sophia. Pensei que tínhamos feito um
trato. Não se lembra mais de que fiz o seu parto? Não quero segredos entre nós. Já vi você
amamentando Daniel uma dúzia de vezes. Pouco me importa o puritanismo de mulheres
como a minha mãe! Vamos levar nossa vida ao nosso jeito. Esqueça-se dos códigos de
comportamento das mulheres que se dizem decentes. Eu gosto de ver Daniel mamando
em você. — Ele a sacudiu de leve, acrescentando com firmeza: — Entendeu o que eu disse?

Sophia concordou em silêncio, surpresa com a zanga de Stonor. De imediato ele


acariciou com ternura seu rosto.

— Eu sinto prazer em ver Daniel se alimentando em seu seio. — Stonor afastou


Daniel de sua fonte de alimento.
Sophia olhou para baixo, surpresa e confusa. Mas não protestou, pois não sabia o que
ele pretendia fazer. Stonor passou a cabecinha de Daniel para o lado contrário. Então
alisou várias vezes o mamilo enrijecido, até introduzi-lo na boquinha ansiosa do bebê.

Com o rosto em brasa, Sophia sentia-se incapaz de fitá-lo. Enquanto o bebê mamava,
Stonor continuou a tocar seu seio, acariciando a pele macia de um modo sensual, como se
desejasse partilhar o prazer da criança.

Uma estranha excitação nasceu e começou a crescer em Sophia. De repente ela


percebeu, chocada, que Stonor despertara novos instintos em seu íntimo.

— Eu tive uma ama de leite quando era bebê — ouviu-o contar. — Minha mãe achou
repugnante o processo de amamentação.

Sophia não conseguiu responder. Daniel continuava a sugar ansiosamente, enquanto


as mãos de Stonor passavam devagarinho pela pele delicada de seus seios.

— Eu invejo Daniel. Ele parece tão feliz, mamando em você! — Stonor ergueu a
cabeça, e seus olhares se encontraram.

Inclinando-se para a frente, ele a beijou. De imediato os lábios dela se entreabriram,


entregando-se. Stonor continuava tocando seus seios, acariciando-a, e ela fechou os olhos,
atônita com o prazer que sentia.

De repente, alguém bateu na porta. Stonor afastou-se com um sobressalto, e muito


corado, com a respiração alterada, foi atender. Sophia ouviu-o dizer alguma coisa a um
dos criados e sair, fechando a porta atrás de si. Recostou-se nos travesseiros. Seu coração
batia acelerado, diante do que acontecera. Embora seu relacionamento com Stonor
estivesse muito melhor, nunca pensara que pudesse reagir daquele modo às carícias dele.
Já lhe passara pela cabeça que talvez pudessem partilhar um tranqüilo companheirismo,
mas nunca algo mais íntimo. Também nunca pensara que Stonor desejasse intimidade. A
atitude dele em relação a ela sempre fora fria ou do tipo fraternal, jamais sensual.

Veio-lhe à mente, então, o que acontecera na noite em que ele a pedira em casamento
pela primeira vez, na estufa da casa de Londres. Já quase se esquecera daquela violência.
Aos poucos, fora se acostumando à presença de Stonor em sua vida, em seu quarto. Agora,
não sabia mais o que pensar.

Como pudera se esquecer da sensualidade que ele lhe mostrara, tanto tempo atrás?
Sua gravidez apagara aquela lembrança, enchendo-a com outras imagens dele: Stonor
lendo para ela, falando rispidamente com os criados, rindo bem-humorado quando a
ouvia errar uma nota no bandolim. Ele se tornara uma parte muito importante de sua
vida!
No dia seguinte, o médico convenceu Sophia a deixar que uma ama de leite
amamentasse Daniel durante a noite, para que ela tivesse algumas horas de descanso
ininterruptas. E assim, o berço de Daniel foi removido para outro quarto.

Stonor apareceu para dar boa-noite a Sophia, depois que a criada saiu. Encontrou-a
deitada de lado, com os cabelos soltos sobre os ombros e um ar de tristeza.

— O que foi que aconteceu? — ele quis saber, sentando-se na cama.

— Eu gostaria de não ter concordado em que aquela mulher amamentasse Daniel!

— Foi a decisão mais sensata — garantiu Stonor, brincando com os cabelos dela.

— É, mas agora meus seios estão doídos de tanto leite! — Sophia replicou, petulante.

Um curioso silêncio envolveu-os. Stonor introduziu a mão sob os cabelos escuros,


pondo-se a acariciar-lhe a nuca.

— Isso passa — disse, afinal.

Suspirando, ela levou a mão aos seios quentes e duros.

— É, acho que passa. — Deitou-se de costas, fechando os olhos. — Boa noite, Stonor.

Ele não se moveu, a não ser para deslizar a mão de sua nuca para o colarinho da
camisola. Um botão saiu da casa, e ela abriu os olhos.

— Stonor! — protestou, num murmúrio rouco.

Mas ele não se deteve. Abriu a camisola, expondo os seios ingurgitados e doloridos.

O coração de Sophia batia violentamente e ela não se mexia nem falava.

Vagarosamente, Stonor inclinou a cabeça para o seio. De leve, acariciou o círculo


marrom que rodeava o mamilo. Seu rosto tinha uma expressão tensa e atenta quando um
suspiro escapou-lhe dos lábios. Então, sua boca fechou-se em torno do mamilo.

Sophia foi tomada por uma sensação atordoante de puro prazer. Jogou a cabeça para
trás, respirando ofegante. Stonor descansava a cabeça em seu seio e o sugava com firmeza
como o fazia Daniel. Instintivamente, sentindo o leite fluir, ela ergueu a mão e pôs-se a
acariciar os cabelos dele, segurando-o junto a si. Deixara de pensar, completamente
entregue ao intenso prazer sexual que experimentava.

As mãos de Stonor moviam-se acariciantes sobre seu corpo, tocando as pernas


quentes e moles, os quadris arredondados, as coxas. Logo, ele puxou a camisola para cima,
pondo-se a acariciar-lhe a pele nua.

O outro seio de Sophia doía, com a pressão do leite aumentando à medida que
Stonor esvaziava o primeiro. Segurando-o pelos cabelos, ela afastou-o de si.
Stonor fitou-a, os olhos flamejantes e os lábios entreabertos manchados de leite.
Atordoada, os olhos semicerrados, ela o empurrou em direção ao outro seio.

Gemidos de prazer escaparam de sua garganta, enquanto seu corpo movia-se de


encontro ao dele. Em chamas, atormentada pelo desejo, tentou aproximar-se ainda mais.

— Stonor...

Num gesto brusco, Stonor soltou-a e endireitou o corpo. Seus olhares se encontraram
e por um momento Sophia não o reconheceu. O rosto dele parecia outro. Não havia a
frieza costumeira. Os olhos cinzentos, brilhantes, febris, revelavam uma paixão profunda.

— Boa noite, Sophia.

Stonor se levantou, mas ela o agarrou pelo braço, forçando-o a se virar.

— Fique — pediu num sussurro.

Os olhos dele faiscaram, cheios de desejo.

— Ah, Deus, se eu tivesse coragem! Mas não posso, e você sabe disso. Poderia pagar
com a vida, se eu a engravidasse!

Soltando-se, Stonor saiu depresa do quarto. Sophia ficou sobre a cama, soluçando,
sofrendo intensamente pelo desejo frustrado, que não tinha condições de acalmar. Era
muito inocente para enveredar pelos caminhos ocultos da sensualidade. Stonor a deixara
nervosa, excitada, ciente de que teria feito qualquer coisa para que ele ficasse e levasse o
ato sexual ao clímax natural.

Sophia adormeceu com dificuldade e acordou revendo a imagem de Stonor sugando


seus seios. Seu coração disparou, e o sangue subiu-lhe ao rosto.

Stonor entrou no quarto quando ela amamentava Daniel. Não conseguiu encará-lo.
Corada e pouco à vontade, pôs-se a acariciar os cabelos escuros do bebê, procurando
disfarçar seus sentimentos.

Ele sentou-se na beirada da cama, observando-a. Em vão Sophia tentou encontrar


algo a dizer. Quando, afinal, criou coragem para lançar-lhe um rápido olhar, viu que ele
sorria, irônico.

— Não precisa me olhar assim, Sophia. Não tenho intenção de suceder Daniel, esta
manhã.

.— Oh! — a exclamação de raiva foi espontânea. Com os olhos faiscando, ela sentiu
que corava ainda mais.

— Eu devia estar um pouco "alto", ontem. Não vai acontecer de novo.

A frustração invadiu-a. Baixando os olhos, murmurou com aspereza:


— Tenho certeza de que uma das criadas ficará feliz em satisfazê-lo.

Os olhos cinzentos se estreitaram, especulativos.

— Concorda, então, que eu procure uma delas?

Sophia mordeu o lábio, com o rosto em fogo.

— Pensa que eu não vi o modo como elas olham para você?

Segurando-a pelo queixo, Stonor forçou-a a fitá-lo.

— Como é que elas me olham? — perguntou baixinho.

— Você sabe muito bem!

— Mostre-me.

O coração de Sophia batia tão forte, que ela mal conseguiu respirar. Seus olhos
estavam presos aos de Stonor, que agora faiscavam, entorpecendo-a da cabeça aos pés.

— Não me diga que passou todos esses meses dormindo sozinho! — acusou afinal,
surpresa com a própria reação. Não era possível que estivesse com ciúmes dele!

— Você se importaria, se a resposta fosse não?

— Eu pouco me importo com o que você faz! — ela retrucou asperamente, sabendo
que mentia.

Irritado, Stonor levantou-se.

— Muito obrigado pela permissão. Qual das criadas você me recomenda?

— Como se atreve a falar comigo assim?! Pouco me importa o que você faz, desde
que não venha atrás de mim para se divertir! — disse Sophia, cega de raiva.

— Pois olhe, ontem à noite eu tive a impressão de que você também estava se
divertindo, e muito!

— Saia do meu quarto!

— Está se guardando para o meu querido meio-irmão, Sophia? — Stonor perguntou,


com uma ira inesperada. — É isso? Ontem à noite você me implorou para ficar, mas depois
teve tempo de pensar melhor, não foi? Por acaso está achando que traiu o amor puro e
nobre que tem por ele? Ainda não entrou nessa sua cabeça estúpida que Wolfe deve ter
passado o ano inteiro numa dúzia de camas diferentes, sem se lembrar de você uma única
vez?

Ela empalideceu.

— Vá embora, Stonor — murmurou com raiva. — Eu odeio ouvir você mencionar o


nome dele.
Após fitá-la como se a quisesse matar, ele girou nos calcanhares e saiu rapidamente
do quarto.

Durante um dia e uma noite, Sophia não o viu. Os olhares maliciosos dos criados
eram um indício de que ele fora atrás de uma mulher. Sophia sentiu raiva de si mesma por
estar com ciúmes. Tentou se concentrar em Daniel, mas sua mente estava às voltas com
imagens de Stonor fazendo amor com outra mulher.

Ele voltou na noite seguinte, quando ela se sentava para jantar. Depois de
cumprimentá-la com um gesto seco de cabeça, acomodou-se na cadeira oposta.

Os criados apressaram-se em servi-lo, e Sophia fingiu estar absorvida em sua própria


refeição. No entanto, suas mãos tremiam e a toda hora seus olhos o procuravam, se bem
que disfarçadamente,

Stonor usava um elegante terno marrom, e exibia nas feições a antiga frieza. Sophia
sentiu uma excitação traidora crescer em seu íntimo, enquanto o observava morder o
pãozinho, movimentando a boca de um jeito sensual.

Teria ele estado com uma mulher? Tentou adivinhar, olhando-o com atenção, mas
não conseguiu.

Logo depois eles passaram à sala de estar e sentaram-se no sofá. Lançando-lhe um


olhar seco, Stonor comentou:

— Como você parece decidida a não perguntar a razão da minha ausência, vou ter
que lhe dizer de livre e espontânea vontade.

—Eu não quero saber! — exclamou Sophia, zangada.

Os lábios dele curvaram-se num sorriso zombeteiro.

— Por que é que você está tão zangada, Sophia?

— Eu não estou zangada!

— Será que vamos ter que passar o resto de nossas vidas assim? Pensei que
estivéssemos começando a nos entender. Você mudou, desde que Daniel nasceu.

— Ah, desculpe, Stonor! — Sophia estava mesmo arrependida. Ele salvara sua vida e
era com raiva que o pagava.

— Eu perdi a cabeça, Sophia. Pensa que acho fácil viver como vivemos? Você é uma
mulher extremamente desejável, e eu não seria humano se não notasse isso.

— Desculpe, Stonor! Vamos esquecer o que aconteceu. A culpa foi tão minha quanto
sua. — Impulsivamente estendeu as mãos para ele, e Stonor pegou-as.
— Eu nunca deveria ter tocado em você. Esse tipo de coisa não pode nos trazer nada,
a não ser tensão. E não é isso que eu quero.

— Nem eu.

— Nós podemos ser felizes, Sophia.

— Podemos, sim. — Inclinando-se, ela o beijou no rosto. — Vamos começar tudo de


novo, Stonor?

Ele concordou.

— Agora, já sabemos o que temos que evitar. E talvez seja melhor mesmo eu não ir a
seu quarto, quando estiver amamentando Daniel.

Sophia desviou o folhar.

— Onde é que você esteve, ontem?

— Providenciando nossa viagem de volta à Inglaterra. Já ficamos muito tempo fora, e


eu preciso voltar ao trabalho. Só Deus sabe o que vou encontrar, quando chegar lá.

Sophia sentiu um aperto no coração, apesar de desejar muito rever a Inglaterra e


Queen's Stonor. Aprendera a amar a França, pois sabia que sempre se lembraria do país
onde nascera Daniel.

Capítulo XII

O verão estava no auge, quando Stonor e Sophia chegaram a Queen's Stonor. A


grama do parque que rodeava a casa, queimada pelo calor intenso, brilhava sob as arvores.
Botões de ouro floresciam aqui e ali, mostrando as pétalas aveludadas por entre os talos
verdes. Papoulas, vermelhas como sangue, moviam-se tremulantemente ao sabor do vento.
Com as janelas refletindo a luz do sol, a casa parecia dar-lhes boas-vindas.

Sophia dependurou-se à janela da carruagem, olhando encantada para tudo. Do


banco oposto, Stonor observava-a por entre as pálpebras semicerradas.

Ela estava ciente de seu olhar. Durante as últimas semanas, fora se tornando cada vez
mais consciente da promessa sensual implícita na boca firme e no corpo forte de Stonor.
Polido e discreto, ele participava de sua vida à distância, e era detestável deixar-se abalar
tanto pela presença dele.
Pensara muito em Stonor, nos últimos tempos, e chegara à conclusão de que ele se
casara com ela por pura teimosia. Era dono de uma vontade firme e implacável. Quando
decidia alguma coisa, nada o fazia mudar de planos, nem Wolfe Whitley, nem a própria
morte. E por isso era-lhe grata.

Durante a gravidez, acostumara-se de tal modo à idéia de que ia morrer, que passara
a encarar esse destino com resignação. O repouso na cama também a tornara levemente
deprimida, privando-a da vontade de viver. No entanto, quando tomara o filho de Wolfe
nos braços, sentira-se renascer. Naquele momento, percebera que devia a vida a Stonor.

A força de vontade dele era extraordinária e assustadora. Colocado diante do fato de


que nunca poderiam viver uma relação normal, ele insistira em levar avante os planos
feitos anteriormente. A gravidez da esposa não o afastara da meta traçada, e até a
possibilidade da morte não fizera mais que dar a ele um novo inimigo a ser vencido.

Stonor era um homem incrível, e Sophia, com um arrepio de excitação, não ignorava
que seria extraordinário ter alguém como ele sob seu domínio.

Ela estava começando a entender a causa daquele rígido autocontrole que o marido
mantinha sobre si mesmo. Ainda durante a infância, ele aprendera a esconder os
sentimentos, a viver sozinho e a resistir à mágoa, o que criara uma barreira de frieza em
torno dele. Mas agora ela sabia que, por baixo disso, havia um homem inteiramente
diferente.

Conhecer a sensualidade de Stonor fora um choque. Naturalmente, tivera indícios


dela antes: o modo brutal como ele a acariciava na estufa, os beijos gentis em Kew. Na
época, sentira horror e repulsa, mas agora a idéia lhe era atraente. O que acontecera, para
causar uma mudança tão grande em seus sentimentos?

A carruagem parou diante da porta principal de Queen's Stonor. Stonor desceu,


estendendo a mão para ajudar Sophia, que mal continha a impaciência. Durante sua
ausência, o pessoal que ele contratara estivera ocupado, reparando paredes, telhados e
cercas; entregando novos tapetes, móveis e cortinas, e decorando tudo de acordo com o
gosto dele. Mais criados tinham sido contratados em Londres.

Stonor percorreu com o frio olhar a fachada da casa, notando as mudanças externas.
O trabalho fora bem feito, e ele estava satisfeito.

Edward Stonor não tardou a aparecer, correndo, com os braços estendidos para a
filha e um sorriso de alegria nos lábios. A garota pálida e fraca de quem se despedira, um
ano atrás, não mais existia. Sophia estava linda, morena como uma cigana, com os olhos
azuis brilhando intensamente e o corpo mais arredondado e feminino.
— Bem-vindos, vocês dois! — Edward Stonor exclamou, abraçando a filha e depois
virando-se para trocar um aperto de mão. com o genro. — Pensei que não fossem mais
voltar! A França é assim tão linda?

— É maravilhosa, papai!

— O ar de lá lhe fez muito bem, minha filha.

— Ela está com ótima aparência, não acha? — E Stonor sorriu, satisfeito.

— Estou mesmo? — Sophia deu uma volta como uma criança, a saia flutuando no ar.

— Pelo que vejo, o casamento lhe fez bem. — O sorriso de Edward alargou-se ainda
mais.

Stonor fitou-a nos olhos, e Sophia sentiu-se enrubescer. Nesse momento, no entanto,
Dorcas, a babá, saiu da carruagem com Daniel nos braços.

Edward não pôde esconder a surpresa. O bebê chorava, aborrecido com a interrupção
de seu sono, e Stonor via o rosto do sogro registrar incredulidade, espanto e, afinal, zanga.

— Uma criança?! — Edward encarou Stonor, cheio de hostilidade. — De Sophia? E


depois de tudo que o médico lhe disse?!

— Papai, querido, não fique zangado com Stonor! A culpa não é dele, é minha.

Edward virou-se para a filha, pasmo, e Stonor disfarçou um sorriso. Sabia, tão bem
quanto o sogro, que uma criança só seria concebida por eles devido à fraqueza masculina.
Sophia jamais conseguiria convencê-lo de que era culpada de alguma coisa, além de uma
dócil submissão.

— Eu não tenho desculpa, senhor — Stonor falou, avisando Sophia com um olhar
para que não dissesse mais nada. — Lamento que tenha acontecido, mas Sophia e o
menino estão vivos, e eu lhe prometo que não haverá outra criança.

— Você arriscou a vida dela, seu maldito! — Edward explodiu com violência,
esquecendo-se de tudo, menos da antipatia que sempre sentira pelo sobrinho.

— Acredite em mim, senhor: eu seria o mais feliz dos homens, se isso pudesse ter
sido diferente.

Notando a ironia escondida naquelas palavras, Sophia fitou-o com tristeza.

— Você me deu sua palavra, seu moleque! — Edward parecia a ponto de ter um
ataque.

— Não, papai! — Segurando o braço do pai, Sophia tentou se colocar entre os dois.

— Ela poderia ter morrido!


Ciente de que isso provavelmente teria acontecido, se não fosse por Stonor, Sophia
fitou Edward com ar implorante.

— Por favor, papai, não brigue com Stonor! O senhor está estragando nosso primeiro
dia em casa. Diga que nos perdoa... Por favor!

Ainda zangado, Edward examinou o rosto infeliz da filha, depois lançou um olhar
feroz para o genro.

— Bem, o que importa é que tudo deu certo. Mas não deve acontecer de novo!

— Pensa que eu não sei? — Stonor replicou num tom áspero, virando-se para entrar
na casa.

Dorcas aproximou-se, e Sophia tomou o bebê nos braços. Sufocado em meio a rendas
e laços, ele tinha uma expressão aborrecida no rostinho rosado. De imediato Edward
amoleceu.

— Stonor disse que é um menino, não?

— Sim. Este é Daniel, papai.

Sob os olhos dos dois, o bebê bocejou, depois manifestou sua irritação com um
gritinho. Edward tomou-o nos braços e ergueu-o em direção ao céu azul de verão, rindo
abertamente.

— Daniel! — disse, deliciado. — A vida é cheia de surpresas, mas esta é uma que eu
não esperava. É um menino bonito, Sophia. Por que o chamou de Daniel? Não é um nome
de família.

— Eu gosto — Sophia murmurou. E com os olhos em Stonor, que já entrava na casa,


acrescentou: — Ele é Daniel Stonor Whitley.

Stonor estacou como se tivesse levado um tiro, depois virou-se lentamente. Ela o
enfrentou com um sorriso dócil, mas ele não o retribuiu, fitando-a como se quisesse ler-lhe
a mente.

Sophia acrescentara o nome dele num impulso de momento, levada pelo remorso de
vê-lo ser culpado pelo nascimento de Daniel, quando nada tinha a ver com aquilo.
Instintivamente descobrira o melhor modo de agradá-lo, de agradecer-lhe por suportar, em
silêncio, a acusação lançada por seu pai.

Ela lhe devia tanto e podia dar-lhe tão-pouco... Sem ele, jamais teria agüentado o
parto longo e doloroso de Daniel. Stonor não tivera nada a ver com a concepção do
menino, no entanto o aceitara com o afeto de um pai verdadeiro. Acrescentar o nome dele
ao de Daniel era o mínimo que podia fazer.
Edward Stonor suspirou, sorrindo.

— Não posso dizer que não estou contente com a idéia de que o menino leve o meu
nome. Mais tarde, ele pode acrescentar um hífen. Muita gente faz isso, e Stonor-Whitley
fica um sobrenome bem bonito.

Sophia riu.

— Tem tanta importância assim o sobrenome dele, papai? Ele é meu filho.

— Realmente. — Mais uma vez, o rosto de Edward assumiu uma expressão sombria.
— Estou surpreso com o fato de Stonor ter corrido o risco, mas não há dúvida de que é
uma alegria ter o menino.

Só quando já estava em seu quarto Sophia percebeu que, dando a Daniel o nome de
Stonor, transferira para o marido direitos que deviam ter sido de Wolfe. Mas, a não ser pela
concepção, Daniel era filho de Stonor em tudo. Fora realmente ótimo ter seguido aquele
impulso momentâneo. Stonor era tão bom para ela! A maioria dos homens a teria jogado
na rua ao descobrir sua gravidez, marcando-a como uma mulher ordinária.para o resto da
vida. Mas ele, não.

Sophia olhou em torno de si. Stonor transformara o quarto modesto de sua infância
num elegante boudoir, com espelhos de cristal, enfeites finos e tapetes espessos. Cheia de
prazer, inclinou-se para inalar de perto o perfume de um vaso de flores. Puxando então
uma rosa vermelha, enfiou-a nos cabelos, rindo para seu reflexo no espelho. As pétalas
escarlate davam um toque mágico a seu rosto, realçando a perfeição de sua pele.

Ela deixara Stonor e Edward lá embaixo, saboreando um cálice de vinho do porto


após o jantar. Embora estivesse fazendo o possível para ser agradável, seu pai ainda estava
um pouco ressentido com as modificações feitas na casa. Naturalmente, ele queria que
Queen's Stonor voltasse ao antigo esplendor, só que mais tarde. No momento, preferia a
casa decadente, gasta e aconchegante que conhecera a vida toda. Sophia deixara os dois
em meio a uma discussão acirrada sobre a reforma, certa de quem seria o vencedor. Vivera
tanto tempo com Stonor, que o sabia capaz de vencer qualquer discussão em que se
empenhasse.

Fechando os olhos, ela se pôs a girar pelo quarto, cantarolando baixinho uma valsa
alegre e romântica, que aprendera na França. A felicidade da volta para casa dera a seus
lábios e ao rosto um novo colorido. Seus cabelos voavam, acompanhados pelo movimento
ondulante do penhoar e da camisola.

Sophia não ouviu a porta abrir nem percebeu que estava sendo observada. De olhos
fechados, ela girava de forma atordoante, rindo sem parar. De repente, sentiu-se presa
entre dois braços fortes e conduzida em novos volteios. Stonor!
Fazia meses que não dançava. Rindo para ele, seguiu-o nos passos rodopiantes, os
pés voando no chão, o corpo balançando no ritmo da música imaginária. À medida que
volteavam, foi se tornando consciente da pressão das coxas dele de encontro às suas e, para
sua vergonha, sentiu suas emoções se alterarem.

Stonor estacou, e ela lançou-lhe um olhar submisso e tímido. Então, a inclinou para
trás, e antes que tivesse tempo de pensar, beijou-a.

Ao primeiro toque, seu corpo já ardia em chamas, numa reação espontânea e


descontraída, que não pôde impedir nem definir. Entreabriu os lábios com ansiedade, e ele
a beijou profundamente, apertando-a de encontro a si e acariciando-lhe o corpo.

Numa explosão sensual, Stonor introduziu a língua em sua boca, procurando cada
recanto. Ela não fugiu à intimidade. Movendo o corpo convidativamente, colou-se a ele
como se quisesse provocá-lo. Perdida em meio a uma onda de sensualidade, não tinha
consciência de nada, a não ser do desejo de seu corpo.

De repente, Stonor interrompeu o beijo, com o rosto intensamente corado.

— Não, Sophia — murmurou. — Não podemos.

Erguendo as mãos, soltou os braços dela, que o tinham enlaçado pelo pescoço, e
empurrou-a para longe de si. Era evidente que se sentia profundamente tentado e lutava
contra si mesmo.

— Vou para Londres amanhã — comunicou num tom rouco, dando-lhe as costas. —
Não sei quando volto, mas você ficará bem aqui, não é?

— Vou sentir a sua falta.

Stonor não se moveu. Depois de um longo silêncio, disse bruscamente:

— Você quer alguma coisa de Londres? Há alguma coisa de que precise?

"Você", Sophia pensou de repente. "Eu preciso de você".

Mas Stonor tinha razão. Não podiam se dar ao luxo de permitir que os novos
sentimentos entre eles florescessem num amor verdadeiro. Lutando contra sensações que a
perturbavam e preocupavam, ela murmurou:

— Obrigada, Stonor, mas eu tenho tudo de que preciso.

Stonor fez um leve gesto de cabeça e, quando se voltou, seu rosto já reassumira a
máscara fria e inexpressiva.

— Boa noite, Sophia — disse, caminhando para a porta. Com o coração pesado de
tristeza, ela o viu sair do quarto.
Capítulo XIII

Sentada à mesa do almoço, Maria Whitley contemplava a própria sombra sobre a


toalha de damasco.

— Mais aspargos, senhora? — perguntou a criada que a servia, inclinando-se para


que ela visse os aspargos sobre a bandeja de prata.

Maria balançou a cabeça, recusando. Não tinha mais apetite ultimamente. A casa
vazia a oprimia, e ela sentia saudade de James. Jamais pensara que pudesse chegar a isso,
mas, depois de passada a raiva que sempre dedicara ao marido, começara a sentir falta
dele.

Para onde a vida os conduzira? Os anos de separação, quando as crianças cresciam


numa casa em pé de guerra, tinham sido tão cheios! Sempre parecia haver gente em todos
os cantos, e inúmeras vezes ela ansiara por um pouco de solidão. Agora, tinha solidão em
abundância, mas como isso pesava sobre seus ombros...

Seu prato foi retirado e a sobremesa servida. Distraída, Maria pegou a colher e pôs-se
a mexer na gelatina colorida.

Tudo acabara tão de repente! Com a morte de James começara a desagregação da


família, e ela acabara sozinha naquela casa. Stonor e Sophia tinham ido para a França, e só
Deus sabia quando voltariam. Elizabeth casara-se e não tinha mais tempo para a mãe.
Semanas atrás, ela lhe comunicara que estava grávida, mas acabara com a alegria que a
idéia de ser avó lhe trouxera ao dizer:

— A culpa é de Tom! Eu não queria ter filhos tão cedo. Tenho muito o que fazer, para
perder tempo inchada como uma abóbora!

Grey mudara-se para o apartamento que aquela mulher e o filho tinham ocupado.
Maria adquirira o costume de ir até lá secretamente, quando ele saía, e percorrer os
cômodos onde vivera a amante do marido. A princípio só sentira amargura, mas aos
poucos passara a encarar tudo sob uma nova luz, como se o que havia acontecido fizesse
parte de um sonho vivido por ela. Atualmente, andava por lá com passos macios, sorrindo,
revendo a imagem de James como ele fora uma vez com ela. Os olhos dele a observavam
com desejo, e ela agora lhe dava o que nunca dera, sorrindo com faceirice e movendo o
corpo de um lado para o outro, excitada.

Não havia ninguém para vê-la, mas provavelmente ninguém riria se a visse assim,
magra, idosa e de rosto severo, sorrindo para sombras invisíveis nos quartos silenciosos.
Quando Maria voltava para o seu próprio quarto, sempre tinha uma garrafa de vinho
do porto, um copo e o silêncio interminável por companhia. Passava a noite acordada,
vendo coisas que não queria ver. O vinho a fazia deslizar para um mundo de sonhos, onde
encontrava o James dos primeiros tempos e podia corresponder aos sentimentos dele, livre
de qualquer sensação de medo, culpa e autocensura.

A sobremesa, intocada, foi retirada pela criada. Uma xícara de café apareceu diante
de Maria. Com ar vago, ela colocou açúcar e mexeu com uma colherinha, enquanto os
criados suspiravam, à espera de que terminasse.

A campainha da porta soou. Maria ergueu os olhos, surpresa. Ouviu vozes, e logo
após, a porta da sala de jantar se abriu e Stonor apareceu. Por um instante ela o fitou
boquiaberta, sem reconhecê-lo. Rindo de sua expressão, ele deu a volta à mesa para beijá-
la.

— Não me dá as boas-vindas, mamãe?

Com um grito de alegria que o assustou, Maria ergueu-se e abraçou-o.

— Stonor, meu querido! Você mudou tanto! Nem o reconheci.

Stonor nunca recebera tal demonstração de afeto da parte dela. Olhando-a com
atenção, notou que a mãe tinha as faces encovadas e os olhos sem brilho.

— Como vai a senhora, mamãe? — perguntou, sentando-se também. — O café é


fresco, Robbins? Quero uma xícara, então. Beba o seu, mamãe. Está esfriando.

Maravilhada com a cor bronzeada e o aspecto sadio do filho, Maria não conseguia
tirar os olhos dele.

— Você está tão diferente, tão bonito! A França lhe fez bem. Mas por que não nos
avisou de que vinha? E Sophia? Onde está ela?

— Achei melhor deixá-la em Queen's Stonor.

— Mas ela está bem? — Maria fitou-o, ansiosa. — Ela não piorou, não é?

— Não, não! É que a viagem foi longa, e eu queria que ela descansasse bastante. —
Um sorriso divertido surgiu nos lábios de Stonor. — Tenho uma notícia que vai
surpreendê-la, mamãe: você é avó. Sophia teve um filho.

— Mas...! Mas os médicos...!

— Eu sei. O risco foi grande, mas ela conseguiu e agora temos nosso filho.

— Um filho! Ah, Stonor...

Atrás deles, os criados trocavam olhares de surpresa. Maria e Elizabeth costumavam


conversar na frente deles, e todos sabiam da recomendação do médico.
— Nós lhe demos o nome de Daniel, mamãe.

Maria repetiu o nome, sorrindo e com os olhos cheios de lágrimas. De repente, no


entanto, seu rosto assumiu uma expressão séria, preocupada.

— Como foi que Sophia saiu do parto? O coração dela não piorou?

— Acho que não. Sophia está muito bem, mamãe. A França fez maravilhas por ela.
Levamos uma vida muito tranqüila, com muito sol e descanso. Se ela já era bonita antes,
agora está linda.

— Mas foi um risco, Stonor. Eu entendo como se sente, mas o risco foi muito grande
para ela.

Maria estremeceu, lembrando-se das lágrimas da sobrinha na noite em que Stonor a


beijara na estufa. Não queria nem pensar no que a pobre moça fora obrigada a suportar.

O rosto de Stonor assumira novamente uma expressão fria.

— Está tudo acabado, agora. Temos nosso herdeiro e não haverá outra criança. A
comida ainda está quente? Quero comer alguma coisa, antes de ir ao escritório e ver o que
Grey andou fazendo.

Um dos criados adiantou-se e o serviu. Logo após, Maria pediu ao filho:

— Fale mais de Daniel.

Entre uma garfada e outra, Stonor foi contando:

— Daniel tem cabelos pretos, come como um bezerro e chora todas as vezes que o
contrariam. Um bebê como todos os outros, pelo que sei.

— Vocês arranjaram uma ama para ele?

— Não, Sophia mesma o amamenta.

— Ela mesma?! Mas Stonor, amamentar... — Maria abaixou o tom de voz para que os
criados não a ouvissem — ... faz mal para a beleza do corpo, além de acabar com as forças
da mulher!

— Mesmo assim, Sophia prefere amamentar o menino.

— O que foi que o pai dela disse, quando viu o neto? Ficou felicíssimo, não foi?

— Ele ficou surpreso, isso sim — Stonor replicou, com ironia.

— Ah, quando Elizabeth souber! Ela também está grávida.

— É? E o Tom, como vai?

— Eu mal o vejo. — Maria fez uma pausa. — Também quase não vejo Elizabeth. Ela
está sempre muito ocupada.
Stonor lançou-lhe um olhar cheio de compreensão.

— Por que a senhora não faz uma visita a Queen's Stonor, mamãe? Sophia vai gostar
de vê-la.

— Você acha mesmo?! Será que ela não vai ficar aborrecida?

— Não, Sophia gosta muito da senhora. Ela mesma me disse isso várias vezes.

— Vou pensar a respeito...

Terminando o café, Stonor levantou-se.

— Agora, tenho que ir para o escritório. Quero pegar Grey de surpresa.

— Eu o tenho visto tão pouco, também. Você acha que ele tem feito maus negócios,
Stonor?

— Só vou saber o que ele fez, quando verificar os livros de contabilidade.

Maria empalideceu.

— Os livros?!

— É. Mas não se preocupe, mamãe. Eu dou um jeito em tudo — garantiu Stonor, com
frieza.

Na calçada, ele se voltou para fitar a casa e suas janelas, de onde, quando menino,
observava o pai e Wolfe saírem para os passeios de fim de semana. Mais acima ficavam as
janelas dos cômodos que haviam abrigado Wolfe e a mãe. Antes, apenas a visão delas o
enchia de ódio. Agora, no entanto, provocavam-lhe um sorriso nos lábios.

— Quem ri por último... — Stonor murmurou baixinho, antes de girar nos


calcanhares e se afastar.

Nos escritórios da firma Whitley, Stonor terminou de verificar os livros de


contabilidade.

— O que você fez com tudo isso, Grey? — perguntou ao irmão, que esperava, pálido
e desafiante, numa cadeira diante da escrivaninha.

Grey deu de ombros, sem responder.

A mão de Stonor caiu pesada sobre a escrivaninha. O barulho fez o rapaz dar um
salto.

— Eu lhe fiz uma pergunta. Vou ter que chamar a polícia?

— Faça o que quiser! Mas não vai ficar nada bem, vai? A cidade é capaz de morrer de
rir. Por acaso é minha culpa, se não tenho cabeça para negócios? Quando você foi para a
França, não se preocupou em deixar o peso de tudo nos meus ombros.
— Não foi ineficiência que vi nesses números, foi um desfalque. Grey tornou-se ainda
mais pálido, o que realçou a cicatriz em seu rosto.

— Você acha que eu roubei esse dinheiro? É claro que não!

Stonor voltou algumas páginas do livro, com os olhos fixos nos do irmão.

— No começo foi um pouco aqui, um pouco ali. Mas com o tempo você ficou mais
ambicioso e descuidado, Grey. No que foi que gastou todo esse dinheiro? Com cavalos?
Jogo? Mulheres?

Grey não respondeu. Um ano atrás, ele e o irmão eram dois rapazes magros, pálidos
e loiros, bastante parecidos. Agora, Stonor parecia muito mais velho. Seu corpo e seu rosto
tinham adquirido uma maturidade que deixavam Grey mudo de raiva e medo.

— Eu quero a verdade! — Stonor disse por entre dentes, com os olhos brilhantes
parecendo mais claros, em contraste com a pele morena.

— Há pouco mais de um ano de diferença entre nós. Por que você deveria ficar com
tudo?

— Já discutimos isso antes e não chegamos a nada. A firma é minha, Grey, e eu vou
lhe perguntar mais uma vez: onde está o dinheiro que você roubou?

Grey ergueu-se de um salto.

— Está me chamando de ladrão?

— Exatamente!

— Eu deveria lhe dar uma surra! — E Grey levantou-se devagarinho, ameaçador.

— Eu não tenho medo de você!

Stonor sorriu, mostrando os dentes brancos e certos. Grey foi assolado .por uma onda
de raiva, principalmente porque sabia que o irmão fizera aquilo de propósito, para
provocar nele aquela reação. Stonor sempre fora capaz de se controlar e agir de modo a
conseguir o que queria, enquanto Grey sempre se deixava dominar pelo próprio
temperamento. Stonor era o mais forte, e Grey sabia disso.

— A firma devia ter sido dividida igualmente entre nós dois. Tenho tanto direito a
ela quanto você!

Stonor contemplou o irmão, exibindo um ar seguro que tornou o outro ainda mais
consciente de suas falhas.

— Eu estava pensando em me mudar para Bristol e deixar os negócios de Londres a


seu cargo, mas não vai dar. Não posso confiar em você.

Grey explodiu, comentando com mesquinharia:


— Não tem coragem de deixar Sophia sozinha, não é? Por quê? Medo de que Wolfe
tome seu lugar na cama?

Stonor pôs todo o peso do corpo no murro que lançou Grey ao chão. Com o sangue
escorrendo do nariz, o rapaz fitou o irmão com ódio. Gostaria de se levantar e esmurrar
Stonor até a inconsciência, mas sabia que não podia, e isso o fazia detestar ainda mais a
força de caráter, a discrição e o autocontrole do outro.

A raiva de Stonor diminuiu, e ele suspirou pesadamente.

— Não seja tolo, Grey. Para que me provocar? Você já está metido numa confusão dos
diabos e ainda não demonstrou o menor arrependimento.

— A troco de quê eu haveria de me arrepender?

— Levante-se! — Stonor ordenou, dando-lhe as costas. Grey apertou os lábios,


observando as costas eretas do irmão.

Queria provocar em Stonor uma raiva tão grande quanto a que sentia, fazendo-o
descer das alturas em que se encontrava e reduzindo-o a seu próprio nível. Pensando
nisso, disse baixinho:

— Talvez mamãe tenha acreditado naquela história de que Wolfe entrou no quarto de
Sophia para violentá-la, mas nós sabemos a verdade, não é?

— Cale a boca!

Stonor girou nos calcanhares, com um ar perigoso no rosto, e Grey sorriu.

— Mamãe os interrompeu naquela noite, mas aposto que Wolfe já tinha conseguido o
que queria em outras ocasiões.

Muito pálido, Stonor inclinou-se e agarrou-o pelo colarinho, sacudindo-o com


violência.

— Diga mais uma palavra e eu mato você!

Grey percebeu que conseguira atingi-lo e, por um momento, foi invadido pela
alegria. Logo, no entanto, o brilho de ódio nos olhos de Stonor acabou com sua coragem.
Amedrontado, nada mais disse, e o irmão soltou-o vagarosamente.

— Eu não vou chamar a polícia, Grey. Não por sua causa, mas por mamãe. Vou
custear a sua saída da Inglaterra. Tente uma das colônias... A Austrália ou a África.

— Eu não quero ir para essas malditas colônias!

— Se você ficar, não terá nenhuma ajuda da minha parte — Stonor declarou num tom
firme e frio. — Pelos meus cálculos, você tirou cerca de mil libras da firma. Vou lhe dar
mais mil para começar a vida no estrangeiro. Depois, estará por sua conta.
Grey pensou nas ruas de Londres, que percorria todas as noites, nos sorrisos das
mulheres bonitas, nas piadas, nos cigarros e no brandy com os amigos.

— Quero que me amaldiçoem, se eu for — declarou, com o rosto muito vermelho.

Tudo de que ele gostava estava em Londres. Durante a ausência de Stonor, fora
senhor da firma e da casa, fazendo o papel de rico para impressionar as dançarinas e
atrizes que perseguia, e trabalhando o mínimo possível. Só de pensar numa vida diferente
daquela, sentia-se estremecer da cabeça aos pés.

— Você devia ter pensado nas conseqüências, antes de fazer o que fez.

No olhar de Stonor havia pena e desprezo pelo irmão. Por algumas horas de prazer,
Grey jogara fora a chance que lhe fora dada. Além disso, estava irritado por não mais
poder deixá-lo no comando da firma, para viver em Queen's Stonor com Sophia e abrir
uma filial em Bristol.

— O que são algumas libras para você, Stonor? A sua fortuna é enorme!

— Eu posso processá-lo. Já pensou nisso?

— Vá para o inferno!

— Deixo isso para você.

Grey empurrou os cabelos loiros da testa suada.

— Meu Deus, você não tem sangue nas veias! Não é de admirar que Sophia tenha
preferido Wolfe.

— Chega! — A voz de Stonor ressoou como uma chicotada. — Vou comprar uma
passagem para o lugar que você quiser ir. Quando chegar lá, encontrará uma conta em seu
nome, no banco local. Pode tirar o dinheiro como e quando quiser, mas eu o aconselho a
usá-lo com cuidado. Não haverá mais, quando ele acabar.

— Wolfe sempre teve jeito com vagabundas — disse Grey, com ódio nos olhos. Então,
apavorado com a máscara de violência em que se transformou o rosto de Stonor, saltou
como um coelho e correu para o corredor.

Stonor foi atrás dele, mas parou na porta do escritório, com os punhos apertados,
lutando para recuperar o autocontrole. Depois, voltou-se e fechou a porta atrás de si,
praguejando baixinho.

Sabia que Grey falara para provocá-lo, mas mesmo assim os comentários o tinham
atingido como facas afiadas. Ouvir o nome de Wolfe sempre o alterava, e a calma bem-
humorada com que cumprimentara a mãe desaparecera por completo. Grey tinha que
deixar a Inglaterra, pois havia nele uma instabilidade emocional que nada poderia
consertar.

Pouco depois, o chefe dos contadores apareceu no escritório, aproximando-se da


escrivaninha em que Stonor se achava.

— Uma entrevista difícil, senhor?

Walters sabia do desfalque; tinha conhecimento de tudo que se passava na firma. Mas
era um homem discreto e eficiente, cuja integridade estava acima de qualquer suspeita.

— Está tudo resolvido.

Stonor não pretendia discutir sobre o irmão com um empregado. Já era péssimo que
alguém soubesse do que Grey fizera.

O homem percebeu e passou de imediato a discutir o problema dos doqueiros, que


volta e meia deixavam cair caixas na água, ao descarregar os navios. Stonor o ouviu,
fazendo um comentário de vez em quando. O contador ficou aliviado por vê-lo reassumir
a direção dos negócios.

Mais tarde, naquela mesma noite, sentado na sala de estar de Elizabeth, Stonor ouvia
a irmã queixar-se da renda do marido. O casamento dera a ela novas idéias sobre a quantia
de dinheiro que precisava para si mesma, e a indiferença do irmão a irritava.

Elizabeth achava que Stonor podia pelo menos mostrar alguma simpatia por suas
dificuldades. Afinal, ele ficara com a maior parte do dinheiro do pai. Fitando-lhe o rosto
sério, resolveu mostrar as garras, dizendo com doçura:

— Muito me admira que você tenha forçado Sophia a ter um filho, Stonor. Mamãe me
disse que os médicos a proibiram terminantemente de engravidar. — Ela fez uma ligeira
pausa, depois continuou: — Mas vocês, homens, são tão brutos! Coitada da Sophia, tenho
pena dela. Você não mostrou a menor consideração!

Os olhos de Stonor brilharam de raiva, e pelo movimento inquieto de seus lábios


Elizabeth percebeu que estava conseguindo atingi-lo.

— Em todo caso, nunca achei que Sophia fosse mesmo a dama que queria aparentar.
Na noite em que papai morreu...

Stonor ergueu-se de um salto.

— Por Deus, sua vagabunda, cale a boca! — murmurou entre dentes, dirigindo-se à
porta.

Elizabeth ouviu a porta bater e sorriu. Uma expressão de cobiça apareceu em seu
rosto, ao pensar no colar que Stonor lhe mostrara momentos antes. A mais linda jóia
imaginável, em ouro, com diamantes e safiras formando um desenho de flores. Ficaria
maravilhoso com seu novo vestido de baile..

Tom nunca lhe dava presentes tão lindos. Falava muito em economia, ao contrário de
Stonor, que proporcionava a Sophia uma vida esplêndida.

Elizabeth lembrou-se da noite em que entrara no quarto de Sophia e a vira nos braços
de Wolfe. Percebera de imediato que os dois estavam sensualmente envolvidos. Stonor
também percebera. Qualquer um que os visse notaria. Era o tipo da paixão que não podia
ser escondida.

Ela se aproximou do espelho, examinando a própria figura. Era bonita e fizera mal
em casar-se depressa. Poderia ter escolhido um homem melhor que Tom. Queria mais,
muito mais do que Tom podia lhe dar, mas estava presa a ele.

No momento, a única coisa que lhe dava prazer era infligir sofrimento aos outros,
como fizera com Stonor. Ele parecia estar sofrendo as dores do inferno, ao sair dali.
Encontrara um ponto fraco, nele. Não podia esquecer-se disso. Durante tanto tempo Stonor
se mantivera invulnerável, fora do alcance de seus comentários maldosos, que era mesmo
um grande prazer descobrir que ele tinha um calcanhar de Aquiles.

Sempre desprezara Sophia, vendo-a como uma tola, mas agora pensava nela com
cinismo. Ela se divertira com Wolfe e ainda se casara com Stonor. Devia ser muito
inteligente, para conquistar seu irmão legítimo de um modo tão completo.

Na casa de Londres, sentado a uma escrivaninha, Stonor lutava para escrever uma
carta a Sophia. Já tentara várias vezes, mas sua mão insistia em desobedecê-lo, escrevendo
coisas que jamais se permitiria dizer. Na quarta tentativa conseguiu compor uma carta
breve e polida, que selou com alívio. Sabia que teria que ficar várias semanas em Londres.
Havia muita coisa a ser feita na firma. Grey deixara os negócios em péssimo estado.
Suspirando, Stonor apoiou a cabeça nas mãos.

Em seu quarto, Maria Whitley bebeu o terceiro copo de vinho do porto e recostou-se
nos travesseiros, sorrindo em meio à escuridão. Esquecera-se por completo de Stonor.
Dentro de poucos momentos, seria envolvida pelo mundo de sonhos que passara a
preferir.

Capítulo XIV
Wolfe Whitley deixou o navio em Nova Órleans. A viagem longa e rigorosa o havia
endurecido. Seu rosto estava queimado e curtido pelos ventos fortes e os olhos pareciam os
de um animal cauteloso. Tivera que lutar por comida entre os companheiros famintos!
Seus anos de aventura na adolescência tinham lhe ensinado muito, mas a viagem para a
América lhe mostrara como era grande sua capacidade de sobrevivência.

Num navio de imigrantes, a vida era barata. Havia gente demais, o cheiro era ruim, a
comida, péssima e em pequena quantidade. Os mais fracos eram abatidos, e as mulheres
serviam de presa para os mais inescrupulosos. Só os fortes e violentos sobreviviam.

Wolfe decidira que chegaria vivo ao Novo Mundo. Antes de começar a viagem,
costurara o dinheiro que possuía na sola dos sapatos, tomando o cuidado de nunca mais
tirá-los. No navio, aprendera com os outros a roubar os companheiros e não se arrependia,
pois fora necessário. Para ele, só existia uma lei na vida: sobreviver a qualquer preço.

No entanto, mesmo com todo esse cuidado, sua bagagem desaparecera durante a
viagem e ele ficara só com a roupa do corpo. Por isso, a primeira coisa que fez, ao
desembarcar, foi procurar um lugar onde pudesse mandar lavar as roupas, tomar um
banho e fazer a barba. Num beco, encontrou uma lojinha onde se fazia limpeza de roupas.
Uma mulher chinesa, de calça e túnica negra, concordou em realizar o serviço, enquanto
ele esperava num quarto no fundo da loja.

Wolfe despiu-se e sentou-se na cama da mulher, enquanto ela saía com suas roupas.
Logo depois a filha dela entrou no quarto.

— Barba, senhor?

Wolfe concordou e a garota o barbeou com gestos rápidos e seguros. Pequena e


esbelta, ela se movia com tanta graça que ele sentiu prazer em observá-la.

Ao terminar, a garota ajoelhou-se no chão diante dele, inclinando a cabeça com


submissão.

— O senhor me quer? — perguntou, sem vergonha ou embaraço.

Wolfe segurou-a pelo queixo, fazendo-a erguer o rosto liso e inexpressivo, onde os
olhos negros e puxados pareciam dois poços sem fundo.

Um brilho especulativo surgiu naqueles olhos. O fato de Wolfe estar por ali indicava
que tinha pouco dinheiro, mas o modo arrogante com que ele agia a intrigava.

— Cinco "dólar".

Wolfe riu, balançando a cabeça, e ela corrigiu de imediato:

— Três "dólar".
Erguendo-a nos braços, ele a colocou sobre o cobertor e examinou-a por um
momento. De repente, fez um gesto inesperado e a viu enrijecer. Tirou-lhe a túnica e
percebeu as marcas de imediato, mas nada disse. Removeu-lhe então as calças, e toda a
história surgiu diante de seus olhos. O corpo dela estava coberto de marcas, algumas
novas, outras já desaparecendo.

Abaixando a cabeça, Wolfe beijou-a de leve no pescoço, acariciando com os lábios a


pele de forma sedutora. A garota esperava, pacientemente, mas aos poucos uma expressão
de sobressalto surgiu-lhe no olhar.

Pela reação lenta e confusa que obteve, Wolfe viu que, como a maioria das
prostitutas, ela recebera poucas demonstrações de ternura antes. Mas ele tinha muita
ternura. Nada tinha a fazer e há muito não possuía uma mulher que não lhe causasse nojo.
No navio, tivera algumas por pura necessidade física, sem nada conseguir além de um
alívio temporário, pois as que estavam dispostas a isso só lhe causavam repulsa, e as que
precisava forçar não lhe davam prazer.

Os longos cabelos negros da chinesinha o excitavam. Não queria admitir nem para si
mesmo a razão disso, mas o corpo esbelto e delicado, tremendo em seus braços, fazia seu
coração bater mais depressa. Entre as coxas douradas seu sexo palpitava cada vez mais
depressa, e, usando todos os truques que aprendera nas ruas de Londres, ele a conduzia
gradualmente ao frenesi.

— Quem bate em você? A sua mãe?

— Não — a garota respondeu, chocada. — O meu homem.

— Por que não se livra dele, então?

— Ele não vai embora.

Wolfe acariciou-a entre as pernas.

— Eu poderia obrigá-lo.

— O senhor?!

Ele sorriu, usando todo seu charme, e continuou a acariciá-la. Sua mente fugiu para
longe, enquanto as mãos prosseguiam nos movimentos automáticos.

Tivera que vir embora, deixá-la para trás, e, abandonando-a nas mãos de Stonor,
matara metade de si mesmo. No entanto, o que mais poderia ter feito? Arriscar a vida dela,
trazendo-a para um país como aquele, sem dinheiro e sem um lar à espera? Sophia não
teria agüentado nem a viagem. Pelo menos, com Stonor ela receberia todos os cuidados.

Wolfe sorriu de modo selvagem, apertando os dentes.


Ah, sim, Stonor cuidaria de Sophia! Será que ele já descobrira que ela não era mais
virgem?

Com um sorriso cruel, Wolfe excitou gentilmente a chinezinha, levando-a a um


clímax intenso. Não sabia ao certo se preferia que Stonor soubesse que possuíra Sophia ou
que simplesmente desconfiasse, sem ter certeza. Mas gostaria de estar presente, se um dia
ele descobrisse. Seria uma delícia observar o rosto do irmão.

A chinesinha imobilizou-se no catre, exausta pelo orgasmo. Wolfe acariciou-lhe os


cabelos, e ela beijou-lhe a mão timidamente, como um animalzinho agradecido.

A mãe voltou, sorrindo suavemente ao ver Wolfe sobre a filha. A garota falou alguma
coisa na língua nativa, e as duas o fitaram. Levantando-se, Wolfe vestiu as roupas reçém-
passadas e pagou a mulher. Ela inclinou a cabeça num gesto polido, depois perguntou:

— O senhor fica? Faz o outro ir embora?

— Vamos ver...

O outro era um irlandês bruto, de ombros largos e rosto mal-humorado. Mas Wolfe
não sobrevivera aos rigores da viagem por nada. Em dez minutos, com as costas ardendo
por obra do mesmo chicote que usara na chinesinha, o irlandês estava na rua, jurando
vingança.

Wolfe permaneceu por um mês com a garota. Ela era quieta e delicada, e por algum
tempo seu apetite se satisfez com o corpo esbelto e os longos cabelos negros. Mas logo ele
se aborreceu. A garota lhe dera o que precisava ao chegar: uma base de onde pudesse se
lançar no novo mundo. Por duas vezes o irlandês tentara pegá-la de volta. Numa, viera
sozinho, na outra, com dois amigos. Falhara nas duas vezes, pois, apesar de ser forte, não
tinha inteligência.

Wolfe já teria partido antes, se não fosse pela vontade de proteger a garota de uma
possível vingança. Pensando nisso, achou um chinês magro e enrugado, que se dispôs a
assumir o papel de protetor de Chin Lo. Ela não gostou. Ajoelhada a seus pés, implorou,
chorando, que ficasse.

Wolfe não se saiu mal na transação. O chinês pagou-lhe um bom preço por ela, e ele
já recebera cinqüenta por cento de tudo que Chin Lo ganhara durante aquele mês. Dando-
lhe um tapinha gentil na cabeça, ele sussurrou:

— Desculpe, Chin Lo, mas é a vida.

Um dia depois, Wolfe nem se lembrava mais do nome dela. Já arranjara um novo
lugar para si.
Durante os passeios pela cidade, sentira-se atraído para as casas elegantes no estilo
século dezoito, com balcões de ferro trabalhado onde as garotas se sentavam com ar
indolente, usando corpetes e anáguas de renda negra. Ao contrário de Londres, Nova
Órleans acomodava seus bordéis em casas lindas.

Wolfe ficara surpreso com a beleza da cidade, de arquitetura inteiramente francesa.


Sempre imaginara que os Estados Unidos fossem um país de cabanas de toras, mas Nova
Órleans abriu-lhe os olhos. O próprio ar parecia cheirar a dinheiro. Qualquer um poderia
fazer uma fortuna ali, com inteligência e um pouco de dinheiro.

Wolfe não tinha capital para começar um negócio e também não pretendia se matar
trabalhando. Como aprendera, desde jovem, que com o seu rosto e corpo podia tirar
dinheiro de qualquer mulher, dedicou-se a isso.

Ada foi sua segunda mulher no país. Ele a encontrou num salão, uma noite, e logo
notou que ela saía do bar, acompanhada, voltando meia hora depois. Era uma mulher
magnífica, de cerca de quarenta anos, olhar risonho e cabelos loiros. Na segunda noite em
que o viu no salão, ela o chamou e perguntou:

— Gostaria de me pagar um drinque, bonitão?

— Eu adoraria, mas não tenho dinheiro — respondeu Wolfe, sorrindo com todo seu
charme.

Com o olhar aguçado, Ada fitou-o da cabeça aos pés.

— Um rapaz com um rosto como o seu não precisa ficar sem dinheiro.

Uma semana depois disso, Wolfe deixou a chinesinha e mudou-se para o confortável
quarto de hotel, alugado por Ada. Não lhe foi difícil satisfazer a fome de prazer. Ele
gostava de fazer amor, e ela era excitante. Além de fazê-la feliz na cama, ele lhe servia de
guarda-costas, afastando fregueses indesejados.

Wolfe estava com Ada há vários meses, quando começou a se cansar daquela vida.
Uma noite, depois de ser rapidamente inspecionado pelo negro à porta, ele entrou num
salão de jogo e dirigiu-se ao bar. Garotas semidespidas inclinavam-se sobre as mesas,
encorajando os jogadores, enquanto um pianista dedilhava melodias alegres. Havia
espelhos no teto e na parte de trás do bar.

— Não quer me comprar um drinque?

Wolfe virou-se para examinar a garota que se aproximara. Ela era mais ou menos da
sua idade, com cabelos de um ruivo dourado e rosto oval, pesadamente pintado.

— Por que não? — Ele já aprendera a imitar o sotaque americano, pois sabia que lhe
era mais vantajoso não chamar atenção sobre si.
A moça pediu o drinque e pôs-se a brincar com o copo, olhando-o convidativamente.

— Não quer subir? Prefere jogar?

— Talvez eu queira os dois.

Ela sorriu artificialmente, mostrando os dentes bonitos.

— Eu gostaria muito.

— Você vai gostar sim, embora pense que não.

Os olhos dela se dilataram, cheios de surpresa, e Wolfe sorriu, divertido.

— Antes, que tal vermos que peixes existem nesse mar? Fale-me dos outros
jogadores.

— Você é um trapaceiro? — Ao dizer isto ela se tornara fria e hostil.

— Pareço um?

— Você parece uma cobra.

— Cuidado, mocinha! Cobras têm presas venenosas.

— Eu sei disso!

Tanta agressão era rara em mulheres daquela profissão, e Wolfe analisou-a divertido.
Ela possuía um corpo atraente e o ar de inteligência dos olhos verdes interessou-o. Sempre
achara fácil conquistar o sexo oposto, mas aquela garota podia ser diferente. Talvez
conseguisse divertir-se ainda mais.

— Qual é o seu nome?

— Eleanor.

— Eu sou Wolfe, e não precisa fazer nenhum comentário sobre o meu nome. Já ouvi
todos.

— De jeito nenhum! A última coisa que quero é aborrecê-lo.

— Tenho o pressentimento de que você não vai me aborrecer — Wolfe rebateu,


sorrindo.

Eleanor mexeu-se, inquieta, como se estivesse com vontade de ir embora. Percebendo


que ela estava decidida a não gostar dele, Wolfe sentiu-se ainda mais determinado a
conquistá-la.

— Me coloque naquela mesa de jogo — disse.

Há algum tempo Wolfe vinha observando os jogadores de uma mesa. Era fácil
interpretar as expressões deles, principalmente sendo um jogador experiente como ele.
A princípio Wolfe não fez o menor esforço para vencer, jogando com o olhar fixo em
Eleanor, como se ela o fascinasse. Entre os jogadores havia o dono de um jornal de uma
cidadezinha de Illinois. Encantado com Eleanor, ele não desviava a atenção dos seios da
garota, que o decote deixava quase totalmente de fora.

Wolfe logo pôs-se a brincar com os sentimentos do homem, falando em Eleonor a


toda hora. O sujeito suava, cada vez mais distraído, e acabou por perguntar, zangado.

— Você está jogando cartas ou o quê?

Wolfe passou a jogar com mais atenção. As cartas saíam exatamente como desejava, e
a pilha de dinheiro, diante dele, foi se tornando cada vez maior. Quando o homem deu por
si, já havia perdido muito.

— Estou limpo — declarou, empurrando a cadeira para trás.

— Fugindo, tão depressa? — Wolfe acendeu um charuto e soltou a fumaça para cima,
antes de virar-se para Eleanor e acariciar-lhe os seios, enfiando a mãos entre eles. — Que
tal irmos para cima, querida?

O outro homem endireitou o corpo abruptamente, engolindo em seco e correndo os


olhos pelo corpo de Eleanor. Wolfe sabia, com exatidão, que ele estava pensando que
aquela falta de sorte não podia continuar. ,

— Você aceita uma nota assinada?

— Por que não? — Wolfe fitou a ponta em brasa do charuto. — O vencedor fica com a
moça, por esta noite.

Eleanor lançou-lhe um olhar zangado e ele piscou, beliscando-lhe a coxa por baixo da
mesa.

— Qual de nós prefere, querida? Por quem vai torcer?

No começo, ela não deu sinais de ter ouvido. Depois, enraivecida, virou-se e sorriu
para o dono do jornal, acariciando-lhe o rosto com a ponta do indicador.

— Estou torcendo para você, Nat.

O homem engoliu em seco. Já estivera com ela duas vezes e estava apaixonado.
Eleanor sentia nojo dele, porém a arrogância de Wolfe a irritava e queria esnobá-lo. Mas
logo descobriu, aborrecida, que só conseguira diverti-lo ainda mais.

Duas horas depois, o dono do jornal escondeu a cabeça entre as mãos,


completamente limpo. O grupo que se aproximara, para vê-los jogar, dispersou-se.
Juntando o que havia ganho, Wolfe levantou-se e segurou Eleanor pela cintura, sorrindo.

— É a sua vez, querida — disse baixinho.


Foi Eleanor que viu a pistola saindo do bolso do homem.

— Cuidado, Wolfe! — gritou.

Wolfe virou-se, viu a pistola e pulou em cima do homem, empurrando o braço dele
para o alto. A bala afundou-se no teto, fazendo chover pedaços de gesso. Dois negros
enormes chegaram correndo, agarraram o homem e levaram-no para fora. Houve uma
briga, o homem libertou-se, e outro tiro soou. Os negros pegaram o corpo que caía.

— Deus do céu! — Eleanor gemeu, fitando Wolfe e imaginando o que se passava por
trás dos olhos dele, frios e brilhantes.

— Para cima — ele mandou, voltando-se para ela.

— Agora?! Depois do que aconteceu?

— Agora.

Eles subiram a escada e, ao entrarem no quarto dela, Wolfe perguntou:

— O que é que vai ser feito com aquele corpo?

— A gerência vai dar um jeito. Não há necessidade de você se envolver.

Ele se jogou sobre a cama e cruzou as mãos sob a cabeça, com uma expressão
estranha nos olhos brilhantes. De repente, não queria mais tocá-la. As ruivas o deixavam
frio. Quando a mulher tinha cabelos escuro podia-se deixar levar pela imaginação e
encontrar alívio físico, mas as ruivas não o afetavam em nada.

— Tire a roupa — ordenou de repente, com aspereza.

A fúria no olhar dela não o afetou. Apertando os lábios, Eleanor começou a se despir.
Quando ficou nua, aproximou-se da cama, mas ele não se moveu.

— Como é? Você não me quer? — Havia desafio e ressentimento na voz feminina.

— Tire a minha camisa.

Wolfe estava irritado com a atitude da garota. Queria vê-la tão submissa quanto Chi
Lo, implorante e ajoelhada a seus pés, não oferecendo-se a ele de forma tão indiferente.

Com os lábios tremendo pela raiva, Eleanor inclinou-se para despi-lo. Sabia que
estava sendo provocada de propósito.. No passado, Wolfe já se divertira tratando
prostitutas como se fossem damas, com toda delicadeza. Havia algo nela, no entanto, que
fazia com que tivesse vontade de feri-la. Ele estava se deliciando com aquela resistência
silenciosa, com a humilhação nos olhos verdes, com o fato de poder forçá-la a fazer o que
quisesse.

— Tire as minhas botas, também.


Eleanor endireitou-se, os olhos faiscando de raiva. Inclinando-se para a frente, Wolfe
segurou-a pelos ombros e obrigou-a a ajoelhar-se no chão.

— Tire as minhas botas — repetiu, sorrindo.

— Tire você!

Ela tentou se levantar, mas ele a manteve onde estava.

— Obedeça ou eu a obrigo a me implorar para fazer exatamente isso.

— Seu idiota! Seu porco sujo e mal cheiroso!

— Obedeça — ele tornou a falar naquele tom indolente, ainda sorrindo.

Eleanor cedeu, trêmula de raiva. Wolfe não tirava os olhos dela.

— Há quanto tempo você está nesta vida?

— Tempo bastante para cortar seu pescoço, se me amolar demais. Como eu lhe disse
agora há pouco, a gerência tem prática em fazer desaparecer corpos que não interessam.

— Acha que seria capaz de se mover mais depressa do que eu? Pois então tente.

Ela o fitou, frustrada. Nunca vira olhos tão estranhos quanto os dele, nem verdes,
nem azuis, tão bonitos que até pareciam de mulher. Mas não queria notar a beleza, o
charme e a arrogância sensual daquele homem. Só queria desprezá-lo.

Wolfe puxou-a para a cama, enterrando a mão nos cabelos vermelhos e sedosos.
Eleanor o agrediu, usando os punhos com violência. Ele a imobilizou, porém, forçando-a a
se deitar sobre os travesseiros, aprisionando-a com as mãos e uma das coxas.

— Me largue! — ela mandou, ofegante. — Não quero o seu dinheiro sujo!

Wolfe apossou-se da boca de Eleanor de forma violenta, sufocando-a sob uma


pressão implacável, a língua procurando a dela, os lábios punindo e acariciando.

Muitos homens tinham usado o corpo de Eleanor Davis nos últimos dois anos, mas
nenhum chegara a afetá-la. Ela se submetera às práticas mais depravadas com frieza e
desprezo, jamais perdendo o auto-respeito por gostar do que fazia. Contra Wolfe porém,
ela lutou, infeliz e apavorada, sentindo que ele representava um perigo.

Tendo ficado órfã durante a Guerra Civil, Eleanor se tornara uma criada na fazenda
do irmão, em Illinois. Fugiu de lá e foi trabalhar numa casa elegante e respeitável, em
Nova Órleans. Um mês depois, o patrão a empurrara para um quarto vazio e a violentara,
deixando-a sangrando e chorando sobre a cama, onde a patroa a encontrara. Uma hora
depois estava na rua, expulsa da casa dos patrões.

Cheia de desespero e ressentimento, Eleanor tivera que escolher entre uma vida de
servidão, onde poderia ser forçada a aceitar a atenção indesejada dos patrões, e a vida
livre e bem remunerada de uma prostituta. Nunca se arrependera de sua escolha.
Aprendera a desligar a mente do corpo, não se importando com o uso que dela faziam e
submetendo-se docemente a tudo, menos à brutalidade. Tinha um quarto na casa de jogos,
comia bem, vestia roupas finas e era protegida pelos negros lá embaixo. Metade de seu
ganho ia para o proprietário da casa, mas não se ressentia disso.

Os homens que usavam seu corpo jamais ficavam em sua mente. Ela não permitia. A
única vez que não conseguira esquecer fora a primeira: seu medo e incredulidade
enquanto o patrão, gordo e careca, forçava-a a se submeter a ele. Ficara tão apavorada que
nem gritara. Em seus pesadelos, ainda revivia a violação de sua inocência. Os homens que
a possuíram, desde então, não passaram de simples sonho.

Com Wolfe Whitley, no entanto, Eleanor foi assaltada por um medo tão grande
quanto o que tivera naquele momento. Ela tentou, mas foi ficando cada vez mais difícil
separar a mente do corpo. Ele a estava fazendo experimentar um prazer que nunca sentira,
tocando-a suavemente e inclinando-se para beijá-lá de vez em quando, como se adorasse
sentir-lhe o gosto.

O coração de Eleanor batia forte, e a cada movimento de Wolfe, o corpo tremia de


excitação. A vontade de retribuir as carícias dele era tão forte, que teve que apertar os
punhos para impedir-se de fazê-lo.

Wolfe olhava-a com um sorriso zombeteiro, certo do que fazia. A hostilidade de


Eleanor se acabara. Ela agora tremia em seus braços, ardendo de desejo. Delicadamente,
separou-lhe as coxas e viu um tremor mais forte dominá-la.

— Ah, não! Por favor, não! — Eleanor gemeu, com lágrimas nos olhos. De repente, os
últimos dois anos desapareceram. Ela era novamente uma virgem trêmula, e Wolfe, seu
primeiro homem. — Não, por favor

Mas ele prosseguiu, deslizando devagarinho para dentro dela. Eleanor sentiu-se
perdida. Com um grito de prazer, entregou-se por completo, enroscando os braços e as
pernas no corpo dele, enterrando-lhe as unhas nas costas, enquanto exclamações abafadas
de prazer escapavam de sua garganta.

Eleanor sabia que ele a excitara de uma forma fria e deliberada. E agora a observava
com aquele olhar estranho, como se quisesse dominá-la pelo prazer, enquanto se mantinha
distante. Uma onda de desprezo por si mesma assolou-a, e ela tentou escapar do domínio
que ele ganhara sobre seus sentidos, mas Wolfe não tinha intenção de permitir que isso
acontecesse. Segurando-a de encontro ao colchão, pôs-se a mover o corpo num ritmo
contínuo, provocando-a e torturando-a, com uma expressão de triunfo no rosto duro.
Eleanor aprendera a excitar os homens com suas carícias, mas jamais tivera alguém
que fizesse o mesmo com ela. Por isso, não se acreditava capaz de experimentar um desejo
tão forte. Sua excitação foi crescendo tanto, que perdeu a cabeça e arqueou o corpo para
cima, gemendo e cobrindo o peito de Wolfe com beijos frenéticos.

Os movimentos violentos e sensuais de Eleanor começaram, afinal, a afetar Wolfe. Ele


sentiu a tensão aumentar em seu íntimo e, inconscientemente, pôs-se a mover-se mais
depressa e com maior paixão aprofundando-se mais no corpo dela.

Desde aquela noite com Sophia, Wolfe nunca sentira um desejo tão grande. Eleanor
fazia o seu corpo arder de tensão. Ela soluçava, arqueada para cima, soltando exclamações
de prazer.

Só quando caiu sobre Eleanor, ofegante, Wolfe percebeu que, pela primeira vez em
muitos meses, conseguira prazer com uma mulher, sem pensar em Sophia.

O choro de Eleanor, momentos depois, fez com que se zangasse.

— O que foi que aconteceu? — perguntou, afastando-a para longe de si.

— Seu cafajeste! — ela soluçou, com os olhos verdes nadando em lágrimas. — Seu
porco!

— Você é uma prostituta, não é? E não vai querer me dizer que não gostou!

Eleanor avançou para ele com as mãos parecendo garras, mas Wolfe a dominou e
esbofeteou com força.

— Eu odeio você! — ela gritou, contorcendo-se debaixo dele.

Wolfe foi assolado por uma enorme sensação de prazer. Percebendo, ela lutou ainda
mais para libertar-se, rosnando como uma tigresa.

— Pare com isso, sua boba — ele mandou, rindo. — Até parece que a forcei a fazer
algo depravado. Você já fez isso antes. Até aquele tolo com quem joguei cartas teve seu
corpo. E não adianta me dizer que não! Eu vi como ele olhava para você.

Lutando para recuperar o autocontrole, Eleanor parou de lutar e fitou-o com


desprezo.

— Se já terminou, dê o fora. E não se esqueça de pagar antes de sair!

— Pagar? Eu? Você é que deveria me pagar. Afinal, conseguiu mais prazer do que eu.

O modo como ela empalideceu fez com que ele se arrependesse, de imediato, do que
dissera.

— Desculpe, que não devia ter dito isso. — Gentilmente, acariciou a testa feminina,
molhada de suor. — Foi bom para mim, também. Há muitos meses não era tão bom.
Eleanor não tirava os olhos dele.

— Por que você veio até aqui? Não me diga que precisa comprar uma mulher.

— Foi por acaso. Eu estava aborrecido.

— Então, espero ter aliviado seu aborrecimento.

Apesar da frase ter sido dita para ofender, Wolfe sorriu com todo seu charme.

— Você é linda.

— Obrigado.

Eleanor sentiu vontade de chorar de novo e fechou os olhos para não se trair.

Wolfe sorriu para si mesmo. Ela estava lutando até o fim, mas ele tinha que tê-la.
Inclinando-se, encostou a boca ao seio feminino e sentiu o mamilo enrijecer.

— Linda — repetiu, baixinho. — E eu quero ter você de novo. Sabe disso, não é?

— Esta casa é livre, venha quando quiser — Eleanor replicou num tom frio e duro,
sem abrir os olhos. — Se eu não estiver disponível, outras estarão.

— Não. Eu quero você de novo, mas é agora.

Desta vez ela abriu os olhos, e havia desespero em sua expressão.

— Não. Não!

Não queria que tudo aquilo se repetisse. Wolfe sorriu. A luta foi mais breve, e Eleanor
cedeu à própria paixão com um grito estrangulado.

Depois, que se amaram, ela se conservou completamente imóvel, sem olhar para ele.

— Quanto custa tirar você daqui? — Wolfe perguntou de repente, acariciando-lhe os


ombros nus.

Eleanor virou-se, incrédula, e ele a beijou na ponta do nariz.

— O que você acha de voltar para Illinois?

Capítulo XV

Uma semana depois, estirado numa cama de hotel, Wolfe observava Eleanor pentear
os cabelos. De repente, disse:

— Use aquele vestido verde, hoje. Nós vamos nos casar.


Atônita, ela se imobilizou por um instante, depois replicou com selvageria:

— Muito engraçado! Você se acha ótimo, não?

Sem replicar, Wolfe ergueu-se e começou a se vestir. Eleanor caminhou para o


guarda-roupa.

— O verde, eu disse.

Ignorando-o, ela tirou um vestido amarelo. De imediato Wolfe agarrou-a pelos


ombros e forçou-a se virar.

— Tire as mãos de mim, seu porco!

— O verde.

Depois de uma batalha silenciosa de olhares, Eleanor virou-se e, com um safanão,


arrancou o vestido verde do cabide. Wolfe sorriu.

— Assim é melhor.

Ele procurou a nuca feminina com os lábios, e Eleanor fechou os olhos,


estremecendo. Ainda lutava contra o poder que Wolfe tinha sobre seus sentidos, mas a
rebeldia era cada vez mais fraca. Ele pagara uma grande soma para tirá-la da casa de jogos,
mas seu instinto de mulher lhe dizia que o motivo não fora paixão. Naturalmente, ele
gostava de levá-la para a cama, mas sempre exercia um controle muito grande sobre si
mesmo, para que ela pudesse julgar que o afetava emocionalmente. A grande verdade era
que ele não passava de um sem-vergonha simpático e sorridente, e muitas vezes sua
vontade era enfiar-lhe um faca nas costas.

Quando não faziam amor, Wolfe a fazia falar da vida que levara, antes de conhecê-lo.
E ouvia com atenção, fazendo-lhe perguntas interessadas sobre Illinois, a fazenda, seu
irmão e os pais falecidos. No dia anterior, tinha lhe perguntado se escolhera a prostituição
por vontade própria ou fora forçada àquilo.

Eleanor lhe contara que fora violentada pelo patrão e posta na rua pela patroa, tendo
então decidido tornar-se prostituta. Era a primeira vez que falava nisso com alguém, e se
expressara com frases curtas, o rosto contorcido pelo desgosto. Sempre observando-a com
aqueles olhos estranhos, Wolfe continuara a lhe fazer perguntas até que todo o seu horror,
vergonha e medo se manifestassem.

— Acho melhor experimentarmos a aliança.

Eleanor fitou-o, incrédula, enquanto ele enfiava uma larga aliança de ouro em seu
dedo.

— Se você não andar depressa, chegaremos atrasados.


— Não é possível, você não está falando sério!

Wolfe sorriu, divertido, retirando a aliança.

— Ficou boa, não acha? Tive que adivinhar o tamanho.

— Wolfe, se você estiver brincando comigo, eu o mato!

Ele riu.

— Isso é bem de mulher! Eu a peço em casamento e você quer me matar.

— Quer dizer que é sério?

— É.

— Mas por quê?!

— Eu quero que você seja minha esposa.

Eleanor colocou o chapéu e seguiu-o com gestos automáticos. Durante todo o


caminho para a igreja, achou que estivesse sendo vítima de uma brincadeira. Mesmo
enquanto respondia às perguntas do padre, ainda estava incerta. O que Wolfe dissera
ecoava em seus ouvidos. Ele a queria como esposa. Ele a queria. Tonta de felicidade,
percebeu que, se não tomasse cuidado, acabaria se apaixonando por ele.

Logo depois do casamento, eles deixaram Nova Órleans a caminho de Illinois, para
reclamar a posse da empresa jornalística que Wolfe ganhara na mesa de jogo. Antes de sair
da cidade, Wolfe tomara a precaução de legalizar todos os documentos referentes ao
jornal. Providenciara também um novo guarda-roupa para Eleanor, dando preferência a
modelos discretos e em cores pálidas.

— Com esses cabelos — dissera, sorrindo —, você não precisa de cores vivas. Temos
que lhe dar um ar discreto e elegante. Se é que isso é possível.

Eleanor ficara aborrecida, mas estava aprendendo a esconder seus sentimentos de


Wolfe. Afinal, ele sempre usava suas emoções contra ela própria.

Wolfe gostava da presença de Eleanor em sua vida. Sabia que não a amava, mas a
queria por perto o tempo todo. Com Sophia fora de seu alcance, não tinha intenção de se
casar com mais ninguém, mas não conseguira aceitar a idéia de perder Eleanor. Porque
não podia levá-la para Illinois como sua amante, resolvera levá-la como esposa. Além do
mais, chegar com uma esposa que tinha uma ligação respeitável com aquela região não
lhe poderia fazer mal.

Wolfe nada contou a Eleanor sobre suas razões para casar-se com ela. Pela reação da
moça, percebeu que estava satisfeita. Sua intenção era mantê-la assim. Primeiro, vencera a
resistência física de Eleanor, e agora sentia o estranho desejo de ser amado por ela. Sua
explicação para esse desejo era que fazer-se amar por ela representava mais um desafio,
mas a verdade era que também deixara de procurar outras mulheres, desde que a
encontrara. Eleanor absorvia toda a sua atenção, e ele recebia dela mais prazer do que
jamais pensara que pudesse ter, sem Sophia.

Wolfe sempre colocava as coisas mais importantes em primeiro lugar. Ao chegarem à


pequena cidade onde ficava a empresa que ganhara no jogo, sua primeira providência foi
mostrar os documentos que tinha ao advogado local. Assegurada sua posse, ele foi para o
jornal e apresentou-se aos dois empregados, pedindo para ver tudo, desde as máquinas até
os livros de contabilidade.

— Vamos continuar como antes? — perguntou Fred, o mais velho dos empregados.

— Por enquanto, vamos. A linha deste jornal é muito sem graça, mas eu ainda não
conheço a cidade. Quando estiver mais ambientado, começaremos a animar as coisas por
aqui.

— O pessoal desta cidade não gosta de mudar. Eles preferem que as coisas fiquem
como sempre foram.

Wolfe sorriu.

— Isso é o que vamos ver.

Os cômodos em cima do escritório eram bem modestos, mas Wolfe não podia se dar
ao luxo de gastar com aluguel. Foi Eleanor que se dedicou à limpeza do local. Quando
terminou, Wolfe mandou-a comprar algumas peças de mobília, para dar ao ambiente uma
aparência melhor.

Era a primeira vez que Eleanor tinha um lar, desde a infância, mas se sentia inquieta.
Estava se ligando cada vez mais a Wolfe, o que a deixava nervosa. Jamais desejara criar
laços com alguém, e agora seu coração disparava cada vez que ouvia os passos dele na
escada ou o escutava dando ordens ao empregados, lá embaixo.

A chegada deles à cidade causara uma certa agitação. No início, foram alvo de
hostilidade, desconfiança e má vontade. Mas em duas semanas, Wolfe já dera um jeito de
alterar isso. Ele andava pela cidade sorrindo, conversando e oferecendo drinques no
saloon. Eleanor o acompanhava à igreja aos domingos, de olhos baixos, num vestido
discreto e mantendo os cabelos escondidos. No primeiro domingo, Wolfe rira disso,
dizendo:

— Você não passa de uma linda hipócrita! Estava parecendo uma pomba de pureza,
na igreja.

— Não era isso que você queria? — ela reagira de imediato, zangada.
— Claro, meu amor. Não quero ver todos os homens daqui olhando-a com desejo.

Eleanor estremecera. Seria possível que ele estivesse com ciúme? Mas não tivera
coragem de perguntar, com medo de servir de caçoada.

Agora, quando andavam pela calçada, todos os cumprimentavam com entusiasmo,


encantados com o charme de Wolfe. Eleanor percebia a reação sensual das outras
mulheres, à aproximação de seu marido, e ressentia-se disso.

— Está na hora de fazermos uma visita a seu irmão, Eleanor — Wolfe lhe disse, um
dia.

Jack Davis morava a uns quarenta quilômetros dali. Quando Wolfe e Eleanor
chegaram numa carruagem alugada, os cachorros começaram a latir, as galinhas voaram,
cacarejando, e as crianças procuraram os cantos, com os olhos fixos neles.

Jack apareceu no quintal, em roupas empoeiradas.

— Eleanor? É voce mesma?

Ela, que deixara a fazenda para se livrar do trabalho duro e infindável, correu, em
lágrimas, para beijar o irmão, um homem alto, de cabelos ruivos começando a
embranquecer. Ele olhou para Wolfe com desconfiança.

— Olá, Jake — Wolfe disse de imediato, estendendo a mão e sorrindo com todo o
charme. — Eu sou seu cunhado.

Sorrindo também, Jake apertou-lhe a mão.

— Então vocês se casaram, hein? Mas entrem, devem estar precisando de tomar
alguma coisa, depois dessa viagem.

A esposa dele, Sarah, comprimentou-os timidamente, afastando-se para buscar água


fresca. A casa era pequena e muito limpa, mas mostrava sinais de pobreza. Com um rápido
olhar em torno, Wolfe teve uma idéia exata da situação ali.

Durante o último ano da guerra civil, Jake pedira dinheiro emprestado para comprar
a fazenda. Naquela época, os gêneros alimentícios estavam em alta e ele obtivera bons
lucros. Mas o empréstimo a pagar era grande, e, com o fim da guerra, o preço dos
alimentos caíra muito.

Ingenuamente, Jake contou tudo a Wolfe, na esperança de que o cunhado bem


vestido pudesse ajudá-lo. Estava tão preocupado com as próprias necessidades, que nem
reparou que Wolfe não lhe disse nada, além do fato de que era dono de um jornal e casado
com Eleanor.
Durante a refeição simples que Sarah preparou, Jake continou a falar com amargura
do dinheiro escasso, dos preços cobrados pela ferrovia para permitir que produtos
agrícolas fossem guardados em seus armazéns e dos homens ricos, que controlavam o
destino de tantas famílias.

— Quer dizer que há outros fazendeiros na mesma situação? — Wolfe quis saber.

— Muitos. Todos temos que trabalhar para pagar algumas promissórias, enquanto
ricaços ficam em seus escritórios, esperando para receber!

— Pode ser que os preços subam.

— Se isso acontecer, os preços da ferrovia e as taxas de juro dos bancos também vão
subir. Estamos nas mãos deles.

De testa franzida, Wolfe tinha um ar pensativo.

— Engraçado, nunca li nada a respeito no meu jornal...

Jack riu.

— Acha que alguém haveria de querer escrever sobre isso? Todos sabem de que lado
está a força. O velho Schultz não permitiria que imprimissem uma palavra da verdade!

— Schultz? Já ouvi falar dele.

— Quem não ouviu? É o próprio "Homem do Dinheiro". Chegou da Alemanha como


imigrante, há uns trinta anos, e hoje ganha um dinheirão com ferrovias. O preço que ele
cobra para armazenagem e transporte é absurdo! E isso que acaba conosco.

— Ele mora em Chicago, não é?

— Mora, mas também tem uma fazenda aqui perto. Schultz se envolve em tudo que
possa lhe dar lucro.

Wolfe lançou um olhar a seu relógio de ouro.

— Hora de irmos — disse, com se lamentasse ter que partir. — Temos um longo
caminho pela frente.

— Voltem mais vezes — convidou Sarah, beijando Eleanor. E mais baixo: — Você é
uma garota de sorte, minha querida. Conseguiu um homem e tanto!

As duas saíram na frente, enquanto os homens ficavam para trás. Virando a cabeça,
Eleanor viu Wolfe colocar algumas notas na mão de Jake.

— Você emprestou dinheiro para Jake, não é? — ela perguntou, quando já estavam na
estrada. — Foi muita bondade sua, mas é como jogar dinheiro fora. Jake não vai conseguir
ficar com a fazenda. Você mesmo deve ter intuído isso.
— Eu intuí, sim.

Eleanor olhou para o céu, brilhante de estrelas. A seu lado, Wolfe parecia imerso em
pensamentos. Ela o amava, mas não conseguia entendê-lo. Já o vira tomar atitudes boas,
frias e até mesmo cruéis, no entanto ainda não aprendera a conhecê-lo. De vez em quando
Wolfe assumia uma expressão estranha, da qual ela não sabia a causa, mas que despertava
sua desconfiança e raiva.

Uma hora depois, Eleanor fitou-o e sentiu o sangue gelar nas veias. Lá estava ele de
novo com aquela expressão distante, sonhadora, como se estivesse com a mente cheia de
lembranças que lhe causavam mágoa e prazer ao mesmo tempo. Wolfe sempre evitara falar
do passado, mas ela estava quase certa de que era uma imagem de mulher que ocupava os
pensamentos dele.

Mas quem? Alguém na Inglaterra?

Nos meses seguintes, Eleanor teve várias pistas sobre sua rival desconhecida. Uma
vez, caminhando pela calçada com Wolfe, sentiu-o enrijecer diante de uma garota vestida
de branco, com os cabelos negros brilhando ao sol. Sua intuição estava ficando cada vez
mais afiada, no que dizia respeito a Wolfe, e ela deduziu que sua rival era jovem e tinha
cabelos negros.

Certa ocasião, Wolfe discutia com outros homens um ataque jornalístico aos bancos e
ferrovias que oprimiam os fazendeiros, quando um deles inclinou-se para a frente e bateu
como o punho sobre a mesa, exclamando:

— Mas isso é puro sofisma!

O sujeito ao lado dele cocou o queixo, antes de rebater comicamente:

— Não sei o que isso quer dizer, Ben, mas pode ser que você tenha razão.

— Sofisma é o uso de um argumento falso, com a intenção de enganar — Wolfe


explicou, rindo.

— Quando eu era mais jovem, conheci uma garota chamada Sophy. Era uma gata do
mato!

Wolfe virou-se para o sujeito que falara com uma expressão estranha no rosto tenso.
Eleanor percebeu, e foi assolada por uma onda de dor.

Sophy... Seria esse o nome da garota?

Durante aquele primeiro ano, Wolfe envolveu-se na política local e o jornal passou a
ocupar a maior parte de seu tempo. Eleanor não sabia o que o levava a fazer certas coisas.
De um modo geral ele lhe parecia cínico, egoísta e sem escrúpulos, mas de vez em quando
tomava atitudes que a faziam pensar que o julgava mal.
Wolfe estava se dedicando de corpo e alma a uma campanha de apoio aos
fazendeiros, apesar de já ter sido avisado pelo grupo contrário para não se meter no que
não lhe dizia respeito. Seus editoriais eram uma mistura de fatos simples, relatados com
uma malícia que levava os bancos e as ferrovias ao ridículo. O jornal vendia cada vez mais,
e ele se tornou famoso na região.

Wolfe passou a receber cartas anônimas, aconselhando-o a pôr um fim naquela


campanha, mas ignorou-as. Um grupo de ricaços da cidade ameaçou-o em termos velados,
e ele também os ignorou. Afinal, o outro lado reagiu de forma mais incisiva. Uma noite,
quando ele voltava do saloon para casa, três homens o agarraram e empurraram para um
beco sombrio.

— Tá na hora do senhor aprender a não aborrecer os outros — um deles disse,


dobrando-lhe o braço para trás. — Nós vamos mostrar como deve-se comportar, daqui em
diante.

Um dos outros avançou para socá-lo no estômago, mas Wolfe apoiou-se na parede,
ergueu os dois pés e enfiou-os no ventre do sujeito. O homem caiu para a frente. Então,
com um gesto brusco Wolfe conseguiu se libertar e atingir aquele que o segurava. Vendo
isso, o terceiro homem resolveu bater em retirada.

Wolfe apoiou o pé sobre o pescoço do sujeito que se retorcia ho chão.

— Diga a seus patrões que sou mais duro do que pareço. Na manhã seguinte
apareceu um relato do ocorrido no jornal, contado com graça e malícia, o que o
transformou na história da semana.

Uma semana depois, um barulho na oficina do jornal acordou Wolfe no meio da


noite. Deslizando para fora da cama, ele acordou Eleanor, que se sentou, perguntando:

— O que...?

Wolfe tapou-lhe a boca de imediato, apontando para baixo. Muito pálida, ela o viu
sair silenciosamente do quarto, com uma pistola na mão.

Os tiros acordaram a rua inteira. Cachorros começaram a latir e luzes acenderam-se


por toda parte. Vozes excitadas foram ouvidas, e várias pessoas chegaram correndo.

Eleanor correu para o topo da escada. Uma fumaça escura pairava no ar. De pistola
na mão, Wolfe contemplava um homem caído a seus pés.

Os estranhos tinham destruído o escritório, espalhando tinta, papéis e documentos


por toda a parte. Uma lata de parafina mostrava que eles tinham intenção de atear fogo ao
local. O homem morto foi identificado como um vagabundo, que estava na cidade há
alguns dias.
— Schultz quer mesmo me pegar — Wolfe disse a Eleanor. — Eles iam tocar fogo no
jornal. Nós dois poderíamos ter morrido.

— O que é que você pretende fazer? — ela lhe perguntou, sentindo-se muito infeliz.

— Imprimir tudo.

A história fez um sucesso enorme. Wolfe contou-a em tom de comédia, dando aos
vilões o papel de tolos.

— O riso pode ferir mais que um tiro — ele disse.

Eleanor vivia apavorada, com medo de que o matassem. Alguns dias depois, Wolfe
recebeu uma carta da Inglaterra. Ele se servia de café enquanto lia, e de repente o líquido
quente espalhou-se por toda a mesa.

— O que foi? — Eleanor perguntou, alarmada.

Sem responder, Wolfe levantou-se com um gesto brusco, que lançou a cadeira no
chão, e saiu da sala.

Eleanor fitou as manchas de café. O que haveria naquela carta? Esperou que Wolfe
voltasse, mas ele só apareceu à noite, completamente bêbado e caindo pelos cantos. Com a
cabeça latejando, ela o ouviu jogar-se a seu lado, sobre a cama, respirando pesadamente.

Na manhã seguinte, Eleanor tentou adivinhar o que passava pela mente de Wolfe,
mas não conseguiu. A expressão dele lhe pareceu mais enigmática do que nunca. A razão
de toda aquela alteração estava muito bem escondida.

— Eu vou a Chicago — ele lhe disse, um dia depois.

Eleanor empalideceu. Seria possível que ele a estivesse abandonando, para ir ao


encontro da outra?

— Para quê?

— Negócios.

— Que tipo de negócio?

Wolfe fitou-a com irritação.

— Isso não é da sua conta.

Em Chigaco, Wolfe procurou Schultz. O homem o recebeu com uma expressão dura,
fumando um enorme charuto.

— Muito bem, o que é que você quer?

— Dinheiro — Wolfe respondeu, sentando-se sem esperar convite.

Schultz riu.
— E veio atrás de mim? "

— Você já deve saber que não vai conseguir me amedrontar. Se quer que eu pare com
meus editoriais, vai ter que pagar.

— Seu verme! — Schultz sorriu. — Eu sabia que você estava planejando alguma
coisa. Muito bem, quanto quer para escrever o que eu disser?

— Eu não vou escrever nada para você. Estou é lhe vendendo o jornal.

— Mas que diabos eu haveria de fazer com um jornal?

— Não sei e pouco me importa. Vou voltar para a Inglaterra e quero dinheiro para
levar.

— Sei... Mas então você precisa de dinheiro rápido, não é?

Wolfe sorriu com indolência.

— Não, sr. Schultz, eu não preciso de nada. Vou lhe dar um preço e não aceito contra-
ofertas. Só terá que decidir se quer ou não. Se não quiser, volto para continuar com a
campanha.

Schultz apertou os dentes em torno do charuto. Depois de uma longa pausa, assentiu
com um gesto de cabeça.

— Está bem, negócio fechado.

Capítulo XVI

Eleanor foi invadida pelo desespero, ao deixar a América. O instinto lhe dizia que
Wolfe estava voltando para a mulher desconhecida, sempre presente no coração dele.

Ela ficara arrasada, quando ele lhe contara que tinha vendido o jornal a Schultz.

— Por quê? — perguntara achando que talvez ele estivesse com medo do alemão.

— Schultz pagou bem.

— Você fez isso por dinheiro?!

— Por que é que você se prostituía? Divertimento?

A resposta a enraivecera.

— Eu não tinha escolha, mas você tinha. Se queria mesmo vender, por que não
procurou outra pessoa? Vendendo o jornal a Schultz, você traiu meu irmão e os outros!
— Se é assim que pensa, não precisa vir comigo.

Isso a atingira como um punhalada no coração. Depois de uma pausa, ela


perguntara:

— É isso que você quer, Wolfe? .

— O problema não é a minha vontade, mas a sua. Talvez não queira continuar com
um sujeito como eu.

Ele a fitara com suprema indiferença, e Eleanor fora assaltada por uma enorme
vontade de chorar. Seu auto-respeito lutara contra o amor que tinha por Wolfe, e no fim o
amor acabara vencendo.

— Eu vou com você — dissera.

Wolfe não tocara mais nesse assunto. Infeliz, ela se perguntava se ele não tivera
esperança de deixá-la para trás. Ao contrário do que esperava, ele informara a todos que
vendera o jornal a Schultz. A cidade reagira de forma tão hostil, que ela se sentira feliz ao
sair de lá. Até Jack escrevera uma carta amarga a Wolfe, que ele não hesitara em deixá-la
ler.

Eleanor correu os olhos pelo horizonte, cada vez mais distante. A seu lado, no
tombadilho do navio, Wolfe observava o continente ficar para trás.

— Nós não conseguiríamos ganhar aquela briga — ele disse, de repente. — Os fracos
sempre acabam no paredão. Só os fortes sobrevivem.

Ela apertou com força a grade do convés.

— Mas você é forte, Wolfe.

— Não tão forte a ponto de lutar contra aquele tipo de negócio e sobreviver. Além do
mais, eu tenho que voltar para a Inglaterra.

— Por quê?

Por um instante ele permaneceu em silêncio. Depois repetiu, como um homem


obcecado por algo:

— Eu tenho que voltar.

Eles desembarcaram em Bristol, numa manhã de verão, indo de imediato para a


pensão que a mãe de Wolfe dirigia. Até aquele momento, Eleanor nem sabia que ele tinha
mãe.

— Wolfe! — Lucy exclamou, beijando, acariciando e abraçando o filho. — Por que


não me escreveu que ia voltar? Quando foi que chegou? Ah, Wolfe, você devia ter me
avisado!
— Eu queria lhe fazer uma surpresa, minha mãe. — Soltando-se, Wolfe virou-se para
a esposa. — Esta é Eleanor.

Eleanor, e não "minha esposa". Com o coração apertado, Eleanor enfrentou o olhar de
Lucy, imaginando o que Wolfe lhe contaria de sua vida.

— Bem-vinda à Inglaterra, Eleanor. — Lucy abraçou-a sorrindo com afeto. — Estou


tão contente em vê-los! Pensei que Wolfe não fosse mais voltar. Já tinha até aceitado a idéia
de nunca mais vê-lo.

— Eu gostaria que a senhora tomasse conta de Eleanor por algumas horas, mãe.
Tenho alguns negócios a tratar.

Lucy agarrou o filho pela manga, pálida de repente.

— Espere um pouco, Wolfe! — Fitando Eleanor, ela tentou sorrir. — Vá entrando,


minha filha. Fique à vontade. Eu só quero dizer uma coisinha a Wolfe.

Eleanor obedeceu, certa de que Lucy sabia do segredo que tanto afetava Wolfe. Ele
devia estar pensando em ir atrás da moça de cabelos negros. Sempre soubera que era ela
que o trazia de volta a Inglaterra, e jamais protestara. Agora, não tinha outra alternativa a
não ser continuar aceitando tudo que acontecesse.

Na porta da casa Lucy comunicou a Wolfe.

— Stonor e Sophia estão em Londres.

— Eles não moram em Queen's Stonor?

— Moram. Stonor abriu uma filial da firma em Bristol, mas de vez em quando vai a
Londres, ver como vai a matriz.

Wolfe apertou os lábios.

— E o filho deles? Que idade tem?

— Ah, Wolfe, não pense nisso! Esqueça essa moça. Eleanor é tão bonita! Que bem vai
lhe fazer ir atrás dela?

— Que idade ele tem?

— Como foi que ficou sabendo.

— Através de Luther. Ele me contou que viu os dois passeando num parque, com o
garoto.

Lucy suspirou, resignada.

— Acho que ele tem uns dois anos.


— Stonor não perdeu tempo. Maldito! Os médicos disseram que ela não devia ter
filhos, que poderia morrer... — A voz de Wolfe elevou-se. — Por que acha que a deixei?
Pensei... E todo esse tempo Stonor tem...

Ele se sentira seguro, ao deixar Sophia para trás. Sabia que Stonor insistiria no
casamento, e durante meses até se divertira imaginando-o junto a Sophia, sem poder tocá-
la. A carta de Luther lhe causara um choque tão grande, que quase enlouquecera.

Não devia ter aceitado a opinião dos médicos. Stonor obviamente não a aceitara,
consumando o casamento, e Sophia dera luz a um filho e sobrevivera.

Wolfe fitou o céu azul de Bristol, lutando para nada demonstrar. Os dois estavam
casados há quase três anos, e durante todo aquele tempo Stonor dormira com Sophia. Se
não fosse a carta de Luther, ele teria continuado por anos a fio nos Estados Unidos, sem
jamais descobrir que o coração de Sophia não ficara tão fraco quanto os médicos temiam.

Quando descobrira, no entanto, tivera que voltar. Sophia tinha condições de levar
uma vida normal e não estava fora de seu alcance. Mas, no momento, estava nos braços de
Stonor, e isso ele não podia suportar.

— Tenho que ver Luther — disse, abruptamente. — Onde posso encontrá-lo?

— Na loja nova, em Pencester Road. Desde que o pai morreu, ele abriu mais duas
lojas.

— Eu vou até lá. Enquanto isso, tome conta de Eleanor, por favor.

Ele se foi, sem olhar para trás, e Lucy entrou, fechando a porta atrás de si. Na
cozinha, sorriu com bondade para Eleanor.

— Sente-se, minha filha. Deve estar precisando de uma xícara de chá. Você é
americana?

— Sou, sim.

— Na carta que me mandou algum tempo atrás, Wolfe me disse que a conheceu em
Nova Órleans. A sua família é de lá?

Eleanor negou com um gesto de cabeça. Nervosa, sem saber ao certo o que Wolfe
contara a seu respeito para a mãe, ela falou rapidamente de Illinois, do irmão, do jornal e
dos problemas causados pelos artigos do marido.

— Aí Wolfe vendeu o jornal, e viemos para cá — disse, no fim.

— Ele não se saiu mal, então. Deve ter feito um bom dinheiro.

Eleanor apertou os lábios, com ar de cinismo.


— Não sei ao certo quanto ele ganhou, mas acho que deve ter pressionado bastante
Schultz.

— Você não aprova o que ele fez?

— Wolfe resolveu vender tudo de repente, e eu ainda não sei por quê. Pensei que ele
fosse corajoso como um leão, mas de repente ele nos traiu.

Lucy serviu o chá, com o rosto totalmente inexpressivo.

"Ela sabe", Eleanor pensou. "Ela sabe o que foi que fez Wolfe voltar correndo para a
Inglaterra. E eu vou ficar louca, se não descobrir".

— Fale-me senhora, da sua família. Wolfe não me disse quase nada a respeito de
vocês.

Lucy sentou-se com uma xícara na mão, e começou a falar sobre o filho. Não tocou
em Sophia, mas contou a verdade sobre seu relacionamento com James Whitley, a
ilegitimidade de Wolfe, o modo como ele crescera numa casa hostil e o ódio que tinha
pelos meio-irmãos.

— Eu me casei com Jack Duffey um ano atrás. Ele é um bom homem quando está
sóbrio, e eu faço o possível para que não beba. Maveen casou-se e voltou para a Irlanda,
mas nós vemos Luther, o meu sobrinho, com freqüência. É na casa dele que Wolfe está,
agora.

Eleanor sustentou o olhar da sogra, imaginando se ela não estaria mentindo. Pensara
que fosse ouvir alguma coisa sobre a garota desconhecida, mas se enganara.

— Eu sei que ela existe — disse de repente, sem rodeios. — Mas não sei quem é. E
tenho que saber! Não posso continuar assim, tentando adivinhar, sem saber ao certo...

Lucy assustou-se.

— Minha querida, eu...

— Por favor, pelo amor de Deus, diga-me! — Eleanor pediu, com veemência.

— Wolfe falou nela?

— Não, mas eu sei.

— É, essas coisas uma mulher sempre sente... Mas não há perigo algum, eu lhe
garanto. Ela está casada e tem um filho. Esqueça-se dela. Wolfe também a esquecerá, tenho
certeza.

Seus olhares se encontraram. Ambas sabiam que nem uma nem outra acreditava
nisso, mas sorriram como se acreditassem e mudaram de assunto.
— Que bom ver você! — Luther falou entusiasmado, sacudindo a mão do primo. —
Pensei que estivesse bem, na América.

— Decidi começar de novo, por aqui.

— Fazendo o quê?

— Tudo que eu puder. Mas, em primeiro lugar, um jornal. Você disse que havia
espaço para outro jornal, em Bristol.

— O que nós precisamos é de um jornal radical, de esquerda, não outro lacaio dos
comerciantes e da aristocracia. Precisamos de uma voz que fale a verdade.

Wolfe sorriu.

— Aqui, pelo menos, não terei que enfrentar os problemas que tive nos Estatos
Unidos. — E falou ao primo dos ataques, da hostilidade, das ameaças de que fora vítima.
Os olhos de Luther brilharam, zangados.

— Essas táticas são típicas. Aqui, eles agem de modo diferente, mas não há dúvida de
que vão tentar detê-lo.

— Eles que tentem — Wolfe retrucou, como se gostasse da idéia. — A primeira coisa
que tenho a fazer é arranjar um local, contratar impressores e alguns jornalistas.

— Isso vai lhe custar dinheiro.

— Eu tenho mais que o suficiente.

Luther fitou-o com atenção.

— Se está à procura de um investimento, Wolfe, eu preciso de um sócio. Estou me


expandindo depressa, mas tenho falta de capital. Até começarem a dar lucro, as lojas dão
muita despesa.

Wolfe manteve-se em silêncio por um instante, depois disse:

— Está bem. Dinheiro foi feito para ser aplicado. Não acredito em deixá-lo parado,
num banco.

— Tem certeza de que quer mesmo arriscar uma parte do seu dinheiro num jornal? O
risco é grande, principalmente com o tipo de jornal que pretende publicar. Não quer
aplicar tudo comigo?

Wolfe não conteve um sorriso.

— Deixar todos os meus ovos na mesma cesta, Luther? Não, obrigado. Além do mais,
tomei gosto por jornais, quando estava na América. Descobri que tenho dom para escrever
editoriais e não pretendo deixar que isso se perca.
Algumas semanas depois, Wolfe já estava com o jornal montado e o pessoal
necessário contratado. Sua primeira medida foi ligar para as firmas locais, oferecendo
espaço para anúncios. Mas há anos todos anunciavam em outros jornais de Bristol e não
acreditavam que houvesse espaço para outra publicação na área.

Foi através de Luther que Wolfe encontrou seu primeiro cliente, Southerby. O homem
supria o material para as lojas de Luther e também não acreditava que um novo jornal
tivesse chances de ir em frente, mas algo em Wolfe o impressionou.

— O sr. Hunt me disse que o senhor esteve nos Estados Unidos — comentou,
examinando o corpo e a altura de Wolfe com admiração. Ele ao contrário, era um homem
pequeno e magro, de careca avançada.

— Só em Nova Órleans, Chicago e Illinois.

— Nova Órleans? Ouvi dizer que é uma cidade do pecado.

— O sr. Southerby é um dos pilares da nossa igreja — contou Luther, muito sério.

Wolfe fitou-o por um instante, depois voltou-se para o homenzinho, sorrindo com
charme.

— Realmente, Nova Órleans é uma cidade cheia de pecado, sr. Southerby. Em Bristol,
o senhor nunca encontrou lugares como aqueles.

— Não me diga... O senhor viu mesmo esses lugares?

— Vi. Casas de jogos, de prostituição, ruas onde um cavalheiro não podia andar um
metro, sem ser acossado por uma mulher de rosto pintado.

O sr. Southerby engoliu em seco, os olhos muitos brilhantes.

— O senhor precisa jantar comigo, sr. Whitley. Estou pensando em escrever um artigo
para a revista da igreja, falando a respeito da Babilônia. Suas experiências na América
podem me ajudar a dar um exemplo moderno.

— Seria uma honra — Wolfe respondeu, com toda solenidade.

Ele jantou com a família Southerby. Conheceu a esposa tímida e silenciosa, viu-a ser
dispensada após o vinho do porto e passou o resto da noite dando ao sr. Southerby uma
versão bastante colorida de suas experiências na América. Fazia-se de vítima inocente e
horrorizada de uma sucessão de mulheres cheias de desejo.

Um semana depois, o sr. Southerby assinou um grande contrato para anunciar no


jornal de Wolfe.
Wolfe cultivou a amizade dele assiduamente, levando-o para jantar em casa e
observando, com cinismo, o modo como o homenzinho não tirava os olhos das curvas
sensuais de Eleanor.

— Que sujeito repugnante! — ela comentou depois, quando estavam no quarto. —


Não sei como pôde trazê-lo para cá.

— Nós precisamos dele.

Ela o fitou com um longo olhar.

— Você quer que eu seja agradável com ele?

Sorrindo, Wolfe abraçou-a por trás e beijou-a na nuca.

— Educada, Eleanor. Só isso.

Mas a amargura a fez continuar:

— Tem certeza de que não quer me emprestar a ele, por uma noite?

Wolfe apertou-a com força.

— Outro comentário desses, e sou capaz de lhe dar uma surra!

Eleanor passara os últimos tempos se consumindo em ansiedade, sem saber se Wolfe


estava se encontrando com sua rival. A tensão a deixara irritada, pronta a dizer palavras
amargas à menor provocação, mas Wolfe não era homem de agüentar isso de uma mulher.
Ela sempre se sentira grata pelo fato de ele não ter tocado mais do que uma ou duas vezes
em seu passado, e assim mesmo como um fato que aceitava. Julgara-o o melhor dos
homens por isso, mas ultimamente começara a achar que essa atitude não era um sinal de
bondade, e sim de total indiferença por ela. Foi essa crença que a levou a dizer:

— Eu sempre achei que você era um rato, mas só agora estou começando a perceber a
que ponto.

Por um instante Wolfe a fitou, tenso, e ela chegou a achar que seria agredida
fisicamente. Mas ele se controlou e, com um sorriso cínico nos lábios, rebateu:

— É preciso um rato para reconhecer outro.

De imediato Eleanor viu seu vestido ser puxado para baixo. Sentiu os lábios de Wolfe
em seu pescoço, colo e seios, tocando-a de forma dura e insultuosa. Ela lutou, socando e
chutando, ciente de que estava sendo tratada como naquela primeira noite, em Nova
Órleans.

— Ao contrário do coitado do Southerby, eu não preciso sair por aí atrás de uma


prostituta, preciso? — Wolfe perguntou num tom macio. — Eu tenho uma disponível em
casa, sempre que me der vontade.
— Seu porco, seu cafajeste!

Ele riu.

— Eu me lembro de ter ouvido você dizer isso, antes. E daquela vez eu também
consegui o que queria.

Wolfe conseguiu o que queria, mas só depois de uma longa luta. Enquanto se
submetia em silêncio às carícias brutais, Eleanor foi assolada por uma onda de ódio.
Depois de saciado, ele assumiu uma expressão estranha. Era a primeira vez que fazia amor
e ela não correspondia.

Levantando-se, Wolfe saiu do quarto sem outra palavra. Eleanor ficou na cama,
tremendo, cheia de manchas roxas nos locais em que ele a segurara e com lágrimas
escorrendo pelo rosto.

Wolfe alugou uma casa na mesma rua em que Luther vivia. Os dois primos viam-se
diariamente, fechando-se no escritório para falar de negócios. Eleanor ficava na companhia
da esposa de Luther, Susan, uma moça desinteressante, cujo único assunto de conversa
parecia ser o filho. Eleanor aprendeu a brincar com o bebê, Thomas, enquanto ouvia, com
ar fascinado, o relato de todas as suas proezas.

Ela estava começando a se preocupar com o fato de não engravidar. Queria muito um
filho, pois achava que Wolfe amaria a criança e isso seria mais um laço entre eles.

Desde a noite em que Wolfe a forçara e ela se recusara a corresponder, seu casamento
mudara. Ele passara a dormir num dos outros quartos e, algumas noites, nem vinha para
casa. Ela não sabia para onde ele ia e era muito orgulhosa para perguntar. Frios, distantes e
polidos, viviam juntos, compareciam à igreja e a jantares com amigos, mas mal se falavam
quando estavam sozinhos.

Através de Southerby, Wolfe estava alargando seu círculo de amizades. Já fora


apresentado aos maiores negociantes e abrira uma conta num banco local. Com suas
piadas maliciosas, seu charme e seu conhecimento do mundo, tornara-se um dos
convidados favoritos de determinado grupo. Também descobrira que seu sobrenome era
dos respeitados na região, por causa dos Whitley de Queen's Stonor, e dera um jeito de
espalhar que era parente distante deles. Sua posição social elevara-se de imediato com isso,
e o modo casual com que citava o nome de Stonor, de vez em quando, reforçara a crença de
que pertencia à mesma família.

Eleanor não entendia como Wolfe podia usar o nome de Stonor de maneira tão
desavergonhada, quando o odiava com tanta intensidade. A verdade era que estava
começando a descobrir que o marido não tinha escrúpulos nem moral. Para ele, os meios
não importavam, só o fim a ser alcançado.
Dois meses depois de sua chegada a Bristol, eles foram convidados para um jantar
dançante na casa de um banqueiro. Para a ocasião, Eleanor escolheu um vestido novo, de
saias cascateantes, que delineava seu corpo da cabeça aos pés, sem perder a elegância. Só
quando já estavam ha carruagem ela percebeu a tensão e o excitamento de Wolfe.
Examinando-lhe os olhos brilhantes e o modo como apertava os lábios, não teve dúvidas:
aquela noite conheceria sua misteriosa rival.

Capítulo XVII

Sophia não tinha a menor idéia da presensa de Wolfe em Bristol. Ao descer a


escadaria de Queen's Stonor, naquela noite, ela surpreendeu uma expressão sombria no
rosto de Stonor. Decidira usar um vestido azul, enfeitado com rendas e que deixava à
mostra seus ombros e parte dos seios, e não estava entendendo a expressão de Stonor.
Afinal, era uma de suas roupas de que ele mais gostava.

Stonor ficara sabendo da volta de Wolfe assim que ele e Sophia chegaram de Londres.
Descobrir que Wolfe se casara com uma linda garota americana fora um alívio tão grande,
que ele quase chegara a gostar do meio-irmão. Fizera questão de dar uma olhada em
Eleanor, e não pudera deixar de admirar-lhe o corpo esbelto, os cabelos vermelhos e o belo
rosto. Wolfe devia amá-la, senão não teria se casado com ela,. Eleanor era um encanto e,
pelo modo como se movimentava, mostrava ser dona de uma natureza extremamente
sensual.

Alguns dias antes, Wright, o banqueiro, lhe dissera:

— Há um parente seu na cidade, Whitley.

— Já me contaram.

— Pois é, eu achei melhor lhe falar nisso, porque ele e a esposa foram convidados
para o nosso jantar de sexta-feira. Você não se importa de encontrá-lo?

Stonor sorrira, com aquela expressão enigmática.

— De jeito nenhum. Já faz alguns anos que não nos vemos, e eu gostaria de conhecer
a esposa dele.

— Ah, uma mulher magnífica, Whitley. Magnífica!

"Graças a Deus", Stonor pensara. Sua esperança era de que ela conseguisse prender
Wolfe. Desde o início, soubera que não poderia impedir que ele e Sophia se encontrassem.
Sua única chance de controlar os fatos era estar presente quando acontecessem, para
observar a reação dos dois.

Ocorrera a Stonor que poderia dizer uma palavrinha discreta aqui e ali, e assim isolar
Wolfe da sociedade local. Bastaria mencionar a ilegitimidade do meio-irmão para que
todas as portas se fechassem diante dele.

A tentação fora grande, mas a mente fria de Stonor a rejeitara.

Em primeiro lugar, Wolfe saberia de quem era a culpa e poderia querer vingança.
Este era um risco que Stonor não tinha condições de correr, pois Wolfe logo encontraria seu
ponto fraco. Além do mais, estando bem casado e a ponto de se tornar um sucesso
financeiro, Wolfe também teria muita coisa a perder, caso fosse atrás de Sophia.

Na carruagem, ao lado de Sophia, Stonor revisava sua decisão. Sabia que agira da
forma mais racional possível, mas não podia conter um certo nervosismo.

Junto dele, Sophia já percebera essa tensão. O que poderia ser? Desde que se
instalaram em Queen's Stonor, tinham conseguido atingir um equilíbrio em seu
casamento. O único senão fora a morte de seu pai, no último outono, devido a uma queda
de cavalo. Stonor mostrara ser um pilar de força, durante as semanas que se seguiram. Ela
se apoiara nele instintivamente, como fizera ao dar a luz a Daniel, e Stonor a ajudara a
superar a depressão causada pela perda dp pai.

Sua admiração por Stonor fora crescendo cada vez mais, durante os três anos em que
viviam juntos. Vendo-o tomar atitudes ante o desfalque de Grey e sua ida para a África,
ante o vício do jogo que acometera Tom Lister e a dificuldade de abrir uma filial em
Bristol, ela não pudera deixar de admirar a imensa força interior que ele possuía.

Sua vida em comum era calma, sem nada mais íntimo que um beijo no rosto, antes de
irem dormir em seus respectivos quartos, ou um roçar ocasional de mãos. Stonor parecia
contentar-se com isso, e muitas vezes ela imaginava se ele não teria uma amante escondida
em algum lugar. Se ele tinha, jamais ficaria sabendo. Stonor era um mestre na arte de
esconder o que não queria que os outros descobrissem.

Era esse conhecimento que tornava ainda mais estranha a tensão que sentia nele,
aquela noite.

Fazia meia hora que Wolfe e Eleanor chegaram. Esbanjando todo o seu charme, ele
andou pelo salão, sorrindo para as senhoras e sussurrando piadas para os homens, que
riam à vontade.

Eleanor, por sua vez, fascinava os homens que a fitavam. Com seu corpo bem feito,
rosto bonito e modos sensuais, ela era muito útil a Wolfe, que não se importava de usá-la
para distrair os parceiros de negócios. Mesmo sorrindo e fingindo divertir-se, ela estava
ciente dos olhares do marido para a porta. Wolfe se mostrava tão impaciente, tão absorto
em suas próprias emoções, que se esquecera de mascará-las.

Eleanor estava tão zangada e enciumada, que poderia esbofeteá-lo com prazer.
Naquele relacionamento, Wolfe sempre fora o mais controlado, o mais frio dos dois. Jamais
tivera tanta certeza do que ele pensava como naquele momento, em que se consumia num
desespero agoniado, lançando olhares impacientes para a porta.

De repente, Wolfe enrijeceu como se alguém o tivesse socado no estômago. Eleanor


fitou-o, viu a chama ardente que brilhava em seus olhos, o modo como apertava a boca, e
virou-se rapidamente para a porta.

Um casal acabava de entrar. Eleanor já sabia que a mulher era bonita, mas, ao ver a
rival, foi assolada por uma onda de desânimo. A meiguice, a delicadeza, a fragilidade de
traços e os sorridentes olhos azuis de Sophia atingiram-na como uma punhalada no
coração. Se tivesse diante de si uma mulher experiente e sedutora, ainda poderia ter
esperanças de combater fogo com fogo. Mas aquela dama possuía qualidades que jamais
poderia igualar.

O banqueiro, Wright, inclinou-se diante de Sophia, beijando-lhe a mão com respeito.


Junto dela estava o marido, alto e de feições frias, segurando-lhe o braço numa atitude
possessiva. Outras pessoas dirigiam-se para lá, sorrindo, enquanto uma onda de sussurros
varria o salão. Sophia recebia todos com um sorriso caloroso, olhares francos e modos
inconscientemente seguros de si.

"Ela foi cuidada e mimada a vida inteira", Eleanor pensou, com profunda amargura.

Sophia continuava a receber as homenagens dos sorridentes cavalheiros, aceitando-as


como se fossem seu direito, mas sem manifestar convencimento ou altivez. Seu sorriso era
aberto, e seus olhares tão amigáveis, que cada um deles se acreditava particularmente
querido. Esses mesmos cavalheiros tinham observado Eleanor aquela noite, mas com uma
expressão diferente. Talvez algo nela traísse suas experiências passadas, despertando neles
a sensualidade. Sophia, no entanto, eles tratavam como se fosse uma rainha. Até as
mulheres mostravam-se ansiosas para cumprimentá-la, ser alvo de sorrisos e pequenos
comentários, exibindo uma atitude completamente oposta à ligeira hostilidade com que
haviam recebido Eleanor.

Eleanor tornou a olhar para Wolfe. Ele estava absolutamente imóvel, absorto, com os
olhos fixos no grupo junto à porta. Mais uma vez ela voltou a atenção para Sophia. Quem
seria aquela mulher? Seu olhar desviou-se para o homem alto e atraente, que ainda
segurava o braço de sua rival. Estariam os dois apaixonados? Seriam felizes juntos? Pela
frieza presente nas feições do homem, diria que não. Além do mais, parecia-lhe impossível
que alguém deixasse de preferir Wolfe. Ele era irresistível, principalmente quando fazia
questão de exibir o próprio charme.

Stonor vira Wolfe no momento em que pusera os pés no salão. Fora um choque
perceber o quanto ele mudara, durante os anos que passara na América. Estava mais
maduro, mais seguro de si, até mais arrogante.

Stonor aproximou-se mais de Sophia, e ela o fitou, com ar interrogativo. Podia sentir
o estado emocional alterado em que ele se achava, e seus próprios nervos reagiram a isso.

O que estaria acontecendo? Stonor ficara tão pálido! Seria possível que estivesse
doente?

A música, que havia parado, recomeçou. O som de uma valsa dolente espalhou-se
pelo salão, enchendo Sophia de vontade de dançar.

Nesse momento, Wolfe deu um passo para a frente. Eleanor, muito tensa, agarrou-o
pelo braço, decidida a acompanhá-lo. Visivelmente chocado, ele a fitou como se tivesse se
esquecido da sua existência, o que a fez experimentar uma mistura de amor e ódio por ele.

— Acho que já é hora de você conhecer meu meio-irmão — disse Wolfe com um
sorriso estranho, brilhante demais.

Eleanor levou um choque tão grande que sentiu vontade de esbofeteá-lo. Não era de
admirar que Lucy não lhe tivesse revelado o nome da mulher que Wolfe amava. Era a
esposa do irmão dele!

Com a cabeça inclinada para o lado e um sorriso nos lábios, Sophia ouvia com
atenção o que lhe dizia a esposa de Luther Hunt. Stonor ergueu o olhar. Seu rosto estava
totalmente inexpressivo.

— Boa noite, Stonor — Wolfe cumprimentou, em voz baixa. Mas seus olhos estavam
fixos em Sophia.

Ao ouvir-lhe a voz, ela ergueu a cabeça bruscamente. Seus olhos encontraram os dele,
enchendo-se de incredulidade. Stonor avançou um pouco, ocultando-a de Wolfe.

— Como vai? — perguntou, estendendo a mão. — Eu já tinha ouvido falar de sua


volta.

Wolfe sorriu, e Eleanor estremeceu. Os dois homens se fitavam, apertando-se as mãos


com ar cortês, mas a inimizade era vísivel em seus olhares.

— Eu gostaria de lhe apresentar minha esposa. — Wolfe fez com que Eleanor se
adiantasse um pouco. — Eleanor, minha querida, este é Stonor.
— É um prazer conhecê-la, Eleanor. — Inclinando-se, Stonor tomou a mão dela e
levou-a aos lábios.

Eleanor estremeceu ao contato dos lábios frios. Procurou uma reação qualquer
naquele rosto, pois intuíra que ele estava perfeitamente a par dos sentimentos de seu
marido.

Sophia ainda não se movia. Muito tensa, tinha os olhos fixos nos de Wolfe, que lhe
retribuía o olhar. Vagarosamente ele se inclinou, estendendo-lhe a mão.

— Posso ter o prazer desta dança, sra. Whitley?

Sem nem olhar para Stonor, Sophia se adiantou e sentiu os braços de Wolfe fecharem-
se em torno de sua cintura, num gesto possessivo. Estava em estado de choque e dançava
mecanicamente, de olhos baixos para que ele não visse a luta que sustentava em seu
íntimo, procurando recuperar o autocontrole.

Wolfe não quebrou o silêncio que os envolvia. Segurando-a bem junto a seu corpo,
girava pelo salão, com movimentos em perfeita harmonia com os dela.

Na mente de Sophia, os pensamentos se repetiam. Wolfe voltara; estava de novo na


Inglaterra. De repente, lembrou-se da tensão de Stonor, quando ainda estavam em casa, e
tomou consciência do que ele dissera a Wolfe, minutos atrás. Stonor sabia! Ele sabia que
Wolfe tinha voltado e compareceria àquela reunião. Se não lhe dissera nada, fora porque
queria ver sua reação.

Dando as costas a Stonor, Wolfe disse de repente, por entre os lábios quase fechados:

— Preciso ver você a sós.

Sophia levantou os olhos azuis, brilhantes e febris. Sabia que Stonor a observava. Em
pé, ao lado da esposa de Wolfe, com o rosto totalmente inexpressivo e uma postura rígida,
não tirava os olhos dela. Ela o conhecia o suficiente para reconhecer aquela postura e saber
que ele estava usando toda a força de vontade que possuía para nada demonstrar.

— Responda-me — Wolfe pediu, num tom não muito firme.

Sophia sentiu-se amolecer. Não se viam há três anos, no entanto seus corpos agora se
movimentavam juntos, roçando, tocando-se, como se cada passo fosse um ato de amor. A
música alegre dava-lhes a chance de expressar suas emoções, e só então ela percebeu o
quanto estavam próximos. Não notara, antes, que Wolfe a segurava tão perto de si, nem
que se movia de encontro a ele com tanta sensualidade.

— É impossível — murmurou, com os olhos nos de Wolfe.

— Por quê?
— Stonor.

— Maldito Stonor! Como pôde se casar com ele? Como teve coragem? E ainda lhe
deu um filho! Deus do céu, será que você não é capaz de adivinhar o que senti, quando
fiquei sabendo?

A voz dele tinha se elevado aos poucos, e Sophia olhou em volta, alarmada. Várias
pessoas os fitavam com curiosidade, e ela sentia sobre si o olhar frio e atento de Stonor.

— Não vamos brigar, Wolfe! Principalmente esta noite!

A zanga deixou o rosto de Wolfe, e seus olhos encheram-se de paixão.

— Desculpe! Esta noite não podemos, mesmo. Custou tanto! Eu já estava começando
a achar que nunca mais a teria nos braços.

Sophia sorriu daquele jeito caloroso, que o fizera amá-la praticamente à primeira
vista.

— Psiu...

— Meu Deus, Sophia — Wolfe interrompeu-se, percebendo que o que queria dizer
não podia ser abordado num salão cheio de gente. — Tenho que ver você a sós!

A música acabou, e eles se separaram. A relutância com que Wolfe a soltou era quase
visível, mas ele conseguiu inclinar-se numa mesura e sorrir-lhe com polidez, oferecendo-
lhe o braço para levá-la até Stonor.

Calmamente, Stonor observou-os aproximarem-se. Ele não falara com Eleanor,


enquanto Wolfe e Sophia dançavam. Ambos haviam permanecido lado a lado, absortos
nos próprios pensamentos. Mas em dado momento Stonor a fitou, e Eleanor respirou
fundo, espantada com o que via no rosto dele. Logo, no entanto, a máscara fria reassumiu
sua posição.

— Pode comparecer ao meu escritório amanhã de manhã, sra. Whitley? — Stonor


perguntou, baixinho. — Acho que a senhora e eu devemos ter uma conversa.

Eleanor fez que sim, incapaz de falar.

Wolfe trouxe Sophia, e o grupo que esperava envolveu-a de imediato. Ela


movimentava o leque, sorrindo, ouvindo uma piada do sr. Wright, em seguida dando
atenção à sra. Hunt, que falava com entusiasmo do filho e acabou perguntando:

— E o .seu homenzinho, sra. Whitley? Como vai?

Stonor virou a cabeça loira, dourada pela luz artificial. Seu olhar encontrou-se com o
de Sophia.
— Nosso filho está cada vez mais parecido com a mãe, sra. Hunt. — Ele sorriu,
movendo os lábios com secura. — Como a senhora, Sophia adora o garoto. Acho que ela
ficaria arrasada, se um dia tivesse que separar-se dele.

Os olhos de Sophia estavam presos aos de Stonor. Sabia muito bem que a intenção
dele fora lembrá-la de que era legalmente o pai de Daniel, e que, se ela quebrasse a palavra
que lhe dera e se voltasse para Wolfe, perderia o menino. Daniel era o trunfo de Stonor, e
contra isso ela não podia lutar.

Wolfe, que também estava ouvindo, percebeu o tom implacável na voz de Stonor.
Eleanor sentiu-o enrijecer e voltou os olhos para Sophia, notando a sensualidade
apaixonada na curva dos lábios dele. Não duvidava que Sophia estivesse apaixonada por
Wolfe, pois vira os olhares trocados por ambos. Mesmo agora, eles procuravam os olhos
um do outro, numa comunicação silenciosa. Não tinham necessidade de palavras, pois
conversavam por meio de olhares. Mas o que estariam se dizendo?

Eleanor teria suportado melhor a situação, se Wolfe demonstrasse ter por Sophia o
mesmo desejo cínico que dedicava às outras mulheres. No entanto, na presença dela, ele
deixara de ser um homem duro e implacável e se transformara num ser possuído por
emoções incontroláveis, radiante de felicidade pelo simples fato de estar no mesmo local
que ela.

Virando a cabeça, Sophia voltou a participar da conversa geral. Luther Hunt fez uma
pergunta a Eleanor; e ela, enquanto respondia, não perdia um só olhar trocado pela rival e
Wolfe. Foram tantos, e tão ardentes...

A noite transformou-se num pesadelo para Eleanor. Ela dançou com Luther, com
Stonor Whitley e com o próprio Wolfe. Sem saber como, manteve uma conversa polida.
Com os olhos em Sophia, que dançava com Stonor, Wolfe não lhe dirigiu a palavra. Ela
gostaria de socá-lo, de obrigá-lo a fitá-la. Por que ele a pedira em casamento? No começo,
pensara que fosse por querê-la, mas agora via que se enganara. Ele não parecia notar sua
existência, totalmente concentrado na mulher esbelta que bailava nos braços de Stonor
Whitley.

Wolfe estava com ciúmes, e era isso que mais a perturbava. Ele sempre fora tão auto-
suficiente, indiferente aos outros, implacável em tomar o que queria, sem ligar para a dor
que pudesse causar, mas agora... Descobrir que ele podia sentir ciúmes era como descobrir
uma falha, uma fraqueza num metal.

Foi nesse momento que Eleanor resolveu lutar pelo marido. Aquela garota era o
ponto fraco de Wolfe, e o primeiro passo era saber por quê. Quando descobrisse o que
havia nela para enfeitiçar Wolfe daquele modo, saberia como combatê-la.
Teriam eles sido amantes? Ou tudo não passara de algo platônico? Quando Wolfe
olhava para Sophia, estabelecia-se entre eles uma intimidade sem palavras, uma emoção
que ia além da sensualidade. Se ele já fizera amor com ela ou não, era impossível dizer.
Mas... Seria isso! Wolfe, o experiente sedutor, estaria preso à única mulher que nunca
conseguira levar para a cama?

Eleanor ergueu os olhos para o rosto tenso e sombrio do marido. Se fosse realmente
assim, Wolfe perderia o interesse por Sophia no momento em que conseguisse tê-la. Então,
melhor que a tivesse logo e acabasse com aquilo. Depois, voltaria para junto dela.

Não se importava com o fato de ele procurar prazer em outros lugares desde que
ficasse com ela. E depois daquela música, Stonor levou Sophia para casa. O trajeto foi feito
em silêncio. Ao chegarem, ele.ajudou-a a descer da carruagem, entrou ao lado dela e
convidou-a, cortesmente:

— Quer tomar um cálice de vinho madeira, antes de ir para a cama?

Sophia entendeu que ele queria falar de Wolfe, mas ainda não estava pronta para
isso. Precisava de tempo para pensar e decidir o que fazer.

— Eu estou cansada, Stonor. Se não se importa, vou agora para a cama.

Stonor não respondeu, e ela se afastou. No quarto, a criada sonolenta ajudou-a a se


despir e saiu, deixando-a diante do espelho.

Há muito tempo, prometera a Stonor esquecer-se de Wolfe. No entanto, durante


aqueles três anos de casamento, jamais conseguira deixar de pensar nele. Wolfe estava
sempre em sua mente, enchendo-a de tristeza e nostalgia. Há três anos ficava à parte de
tudo, vendo a vida passar no horizonte, sem munca tocá-la.

Stonor poderia ter consumado seu casamento, tornando-o uma realidade, depois do
nascimento de Daniel. Mas ela sabia que ele evitara, deliberadamente, a intimidade que
começara a nascer entre os dois. Se tivesse se transformado numa esposa em todos os
sentidos, talvez sua paixão por Wolfe tivesse morrido. Fora o vazio de sua vida pessoal que
mantivera aquele amor vivo, fazendo-a lembrar e relembrar a noite deliciosa em que
tinham feito amor no bosque, tantos anos atrás.

Stonor era um bom marido. Ele a mimava, fazia-lhe as vontades. Sentia-se feliz em tê-
la por companhia após o jantar, observava-a com um sorriso quando tocava piano e estava
sempre por perto, quando recebiam ou faziam visitas. Stonor era a imagem perfeita do
marido devotado, e muitas vezez ela ouvira outras mulheres comentarem a sorte que
tinha.
Sophia não fora infeliz, naqueles três anos. Na verdade, sentira-se até satisfeita,
absorta em sua vida diária com Daniel e Stonor. Eram uma família feliz, graças à
determinação de Stonor de que assim fossem.

Pensativa, Sophia fitou-se no espelho, enrolando um anel de cabelo nos dedos. Mais
uma vez, perguntou-se o que Stonor ganhava com aquilo.

No começo, achara que ele era levado por um ódio quase insano de Wolfe, que o fazia
querer tomar o que sabia ser propriedade do meio-irmão. Chegara a se ver como uma
arma na guerra entre os dois e ressentira-se disso. Depois, sua admiração pela força, o
caráter e a bondade do marido, a fizeram esquecer-se de que ele tinha um motivo para se
casar com ela, agir como pai de seu filho e moldar o que facilmente poderia ser uma
tragédia numa vida razoavelmente feliz.

Stonor era muito mais difícil de se conhecer do que Wolfe. Sua personalidade tinha
muitas facetas. Na superfície, era um homem frio e sem sentimentos, mas ela agora sabia
que esse exterior duro não passava de uma máscara.

O que havia, no entanto, por trás dessa máscara?

O sangue subiu-lhe ao rosto, quando se lembrou da aflição de Wolfe, das palavras


que ele lhe sussurrara, durante a dança. Wolfe não tentara esconder o que o trouxera de
volta. Ele acreditava que, agora, ela era capaz de levar uma vida normal. E voltara para se
apossar dela.

No entanto, Wolfe era casado. Tinha uma esposa bonita, que obviamente o amava.
Ah, por que ele tivera que voltar? Por que fora se casar com Eleanor antes de voltar? Ele
deveria ter continuado na América.

Sophia ergueu-se de um salto, pondo-se a andar de um lado para o outro. O que


devia fazer?!

Em seu quarto, Stonor escutava-a ir de um lado para o outro. Sabia as idéias e


sentimentos que lutavam dentro dela. Só não sabia como ela resolveria esse conflito, e era
essa incerteza que o consumia.

Quando se levantou para tomar o café da manhã com Stonor, Sophia estava pálida, de
olheiras, mas calma. Após a saída dele, mergulhou nas atividades de sempre, brincando
com Daniel, discutindo os pratos da semana com a cozinheira, encomendando novas
cortinas para os quartos e coisas assim. No entanto, o tempo todo, perguntas não
respondidas fervilhavam em sua mente.

Naquela manhã, Stonor recebeu Eleanor em seu escritório. Depois de lhe oferecer
chá, que ela recusou, sentou-se à escrivaninha e estudou-a por um instante, antes de
perguntar:
— Posso ser franco, sra. Whitley?

— Por favor. Será um prazer conversar com alguém capaz de ser franco.

Stonor fez uma ligeira pausa, depois disse, sem rodeios:

— O seu marido ama a minha esposa. Mas acho que a senhora já sabia disso.

Um sorriso febril apareceu nos lábios de Eleanor.

— Ah, sim! Ele nunca fez segredo disso.

— Mas a senhora e ele vivem juntos, como um casal normal, não é?

Era uma pergunta muito pessoal, mas ela a respondeu, tomada por uma mistura de
zanga e infelicidade.

— Há algum tempo, não. Já vivemos assim, mas desde que chegou à Inglaterra, ele
mudou. — Seus olhares se encontraram. — Desde que ele voltou para ela.

A notícia foi um choque para Stonor. Devido à beleza de Eleanor, achara que Wolfe
não teria condições de resistir a ela.

— O que foi que Wolfe disse à senhora? Quais são os planos dele? Ele falou em
Sophia? Contou-lhe o que pretende fazer?

Eleanor não conteve o riso.

— Ele não me disse nada. Wolfe nunca tocou no nome dela! Mas não foi preciso. Eu
já sabia que ela existia, antes mesmo de vê-la. Tem havido outras mulheres na vida de
Wolfe, mas nunca assim. Ele nunca olhou para elas do modo como olha para a sua esposa.

— Não — Stonor confirmou.

Ele também soubera disso, desde a primeira vez em que Sophia e Wolfe se
encontraram.

— Eu detesto quando ele procura outras mulheres — Eleanor confessou. — Fico


doente, mas se for para ele superar essa paixão, creio que posso agüentar.

Um brilho irônico surgiu nos olhos frios de Stonor.

— A senhora está sugerindo que deixemos os dois... gastarem essa paixão?

— Por que não? Eu sei que vai ser doloroso, mas nossos casamentos estão em risco.
Wolfe nunca conseguiu ser fiel a uma mulher, ele não é desse tipo. Se fecharmos os olhos
por algum tempo, pode ser que tudo dê em nada.

Stonor recostou-se na cadeira, os olhos fitos nela.

— A senhora acha que eles são amantes frustrados, que logo esquecerão um do
outro, se forem para a cama?
Algo na voz dele a fez enrijecer. E perguntou, num sussurro:

— E não são?

Stonor negou com um gesto de cabeça.

— Ele a possuiu, então?

Mais uma vez, Stonor respondeu que sim, por meio de um gesto de cabeça.

— Tem certeza? — Eleanor tremia da cabeça aos pés. Sua última esperança se fora.

— Absoluta. Não sei por quanto tempo ou com que freqüência, mas aconteceu. Eu
gostaria de poder dizer-lhe que Wolfe não a ama, que só quer me provocar, mas estou
convencido de que não é assim.

Eleanor estremeceu, dilacerada pela dor.

— Por que ele se casou comigo, então? Por que me trouxe até aqui? Para me
abandonar por causa dela?

Stonor inclinou-se para a frente.

— Vocês não têm filhos, têm? Talvez isso conseguisse segurá-lo. Há alguma
esperança nesse sentido?

Eleanor baixou os olhos, balançando a cabeça.

— Então, tudo depende de Daniel.

— O seu filho?! Acha que ela não terá coragem de deixá-lo?

— Ela adora o menino, e a minha esperança é de que esse amor seja maior que o que
sente por Wolfe.

De repente, Eleanor foi invadida por uma onda de curiosidade.

— O senhor a ama?

A expressão de Stonor não mudou.

— Por que não pergunta a Wolfe? Isso mesmo, pergunte a Wolfe. Ele me conhece
melhor que qualquer um, no mundo, e deve saber. Nós nos odiámos desde que
começamos a andar. Já ouviu falar naquele velho ditado... conheça o seu inimigo? É
verdade. Wolfe e eu nos conhecemos de dentro para fora. De que outro modo saberíamos
como lançar nossas farpas, para melhor ferir o outro?

Eleanor fitou-o, horrorizada. Lucy lhe dissera que os dois meio-irmãos se odiavam,
mas sob o tom frio de Stonor ela detectara um sentimento que a enchia de pavor.
Enquanto esperava que Wolfe voltasse para casa, aquela noite, Eleanor indagava-se se
realmente os dois homens amavam Sophia. Não seria ela apenas um prêmio pelo qual
ambos lutavam? Um símbolo da vitória eventual de um deles?

Quando Wolfe entrou, lançou-lhe um olhar casual, fingindo desinteresse.

— Chegou cedo, Wolfe. Não quer tomar um cálice de sherry, antes do jantar?

— Quero sim, obrigado.

Ele se acomodou numa cadeira, enquanto ela se levantava para servi-lo. Seria esse
seu papel na vida dele, agora? Uma simples observadora, sempre à espera? Seria capaz de
suportar?

— Acho que está na hora de convidarmos meu querido meio-irmão e a esposa para
jantar — Wolfe disse de repente, com os olhos fitos na bebida cor de âmbar.

Eleanor teve um choque, mas conseguiu sorrir.

— Claro, Wolfe. Vou mandar um convite a eles.

— Convide também Luther e a esposa. E Southerby. Você sabe o quanto ele gosta de
admirar sua beleza, Eleanor.

Ela engoliu em seco, mas conseguiu manter o sorriso.

— Seu meio-irmão parece bastante devotado à esposa.

— É? — Os lábios dele curvaram-se num sorriso frio.

— Ela é muito bonita.

— Muito — Wolfe concordou, como se falasse de alguém que mal conhecia.

— É bom saber que eles são felizes, juntos.

— Uma delícia!

— Ouvi dizer que é raro eles aparecerem em sociedade. São muito felizes, em seu
próprio lar.

Wolfe ergueu a cabeça e seus olhares se encontraram.

— Stonor a trancaria num harém, se tivesse coragem.

Levada pelo sofrimento, Eleanor cometeu um erro.

— Ele a ama, Wolfe! — exclamou.

De imediato, os olhos de Wolfe se estreitaram.

— Você esteve falando com Stonor? Já vi que esteve! Ele lhe contou tudo? E a troco de
quê? — Stonor está perdendo a classe. — O que achou que poderia conseguir, com isso?
Não, não me diga! — Uma expressão zombeteira surgiu nos olhos verde-azulados. —
Fique fora disso, Eleanor. Não é da sua conta.

— Mas que droga, eu sou sua esposa! Já se esqueceu disso? E por que se casou
comigo? Por quê? — Eleanor explodiu, cheia de raiva e dor.

— É melhor você controlar esse seu gênio!

— Por quê? Posso saber?

— Porque eu estou mandando!

— E a troco de quê eu deveria obedecê-lo? Um homem que corre atrás da mulher do


irmão, debaixo do meu nariz! O que você acharia, se eu começasse a andar atrás de Stonor?

— Chega! Não vamos mais falar disso.

Wolfe ergueu-se e deixou a sala, enquanto Eleanor, os punhos apertados ao lado do


corpo, xingava-o com violência, usando palavras que aprendera em Nova Órleans. Ela
tivera a intenção de agir com frieza e inteligência, mas, como uma tola, acabara sendo
levada pela raiva. Quando aprenderia?

Capítulo XVIII

Naquela tarde, Stonor chegou cedo em casa, pensando em presenciar o banho de


Daniel, o ponto alto no dia do menino e de Sophia. Encontrou-a no banheiro, com o
menino nu ao colo, rindo excitadamente da folia que fizera, jogando água para todos os
lados. Um barquinho ainda navegava na banheira, testemunhando o prazer que mãe e
filho tinham partilhado.

Sophia enxugou o menino e o fazia vestir a camisa do pijama, quando ele olhou em
torno e deu com Stonor observando-os, da porta.

— Papai! — Daniel estendeu os bracinhos, cheio de alegria. — Chegou cedo, papai.

Stonor adiantou-se para beijá-lo, erguendo-o nos braços.

— Foi um banho, gostoso?

— Ele estreou o barco novo. — Sophia dirigiu um olhar indulgente ao filho, que
torcia uma das orelhas de Stonor.

— Você me leva para a cama, papai? E me conta uma história?


Aconchegado em sua caminha, Daniel ouviu, encantado, a história inventada por
Stonor. No fim, Stonor e Sophia o beijaram, apagaram a luz e saíram, deixando-o aos
cuidados da babá, que esperava junto à porta.

Enquanto esperavam que o jantar fosse servido, Stonor, como de costume, passou os
olhos pela correspondência do dia. Sophia já sabia que havia entre as cartas uma de Wolfe,
convidando-os para jantar, e esperou, apreensiva, pela reação de Stonor.

Mas ele nada manifestou, limitando-se a dizer:

— Esse convite de Wolfe... Temos alguma coisa marcada para esse dia?

— Não.

— Então, por que não? A esposa dele é um encanto. Creio que está apaixonadíssima
pelo marido.

Sophia fitou-o, insegura, sem saber ao certo o que pensar.

— Também acho — murmurou.

Stonor não disse mais nada. Por mais que tentasse, não conseguia adivinhar o que se
passava na mente de Sophia. Ela andava escondendo dele o que pensava.

Depois do jantar, Sophia lembrou-se de uma carta de Elizabeth, que ficará sobre a
mesinha do hall.

—Também chegou uma carta de Elizabeth para você — disse a Stonor, indo buscá-la.

Stonor abriu-a e leu rapidamente, franzindo a testa.

— O que é? — Sophia quis saber.

— Problemas com Tom. Elizabeth quer que eu vá a Londres. Ele perdeu mais
dinheiro no mercado de ações. Será possível que ele não aprenda? Ele não tem cabeça para
isso! Não sei por que continua insistindo!

— Pois eu sei! Ele tem esperança de ganhar uma grande quantia, por causa de
Elizabeth. Ela está sempre se queixando do que ele ganha, e o coitado não sabe mais o que
fazer.

Stonor dobrou a carta, muito pálido.

— Não tenho escolha, preciso ir a Londres. — Ergueu os olhos para Sophia, que
captou neles um brilho duro. — Não poderei estar aqui para o jantar de Wolfe, Sophia.
Você terá que ir sozinha.

Mais tarde, em sua cama, Sophia lembrou-se do olhar de Stonor, ao dizer aquilo. Se
fosse em Wolfe, ela atribuiria aquele brilho à excitação do risco que ele estava correndo,
mas Stonor não era desse tipo. Ou era?
Stonor partiu no dia seguinte. O jantar de Wolfe era na outra noite, e Sophia foi para
lá sozinha, cheia de apreensão. Wolfe olhou por cima de seu ombro, ao recebê-la, e
estreitou os olhos azul-esverdeados.

— Onde está Stonor?

— Sinto muito, mas ele não pôde vir. Teve que ir a Londres.

— Ele não está aqui, então?!

— Não.

Uma expressão estranha surgiu no rosto de Wolfe.

— Entre. Meu primo e a esposa já estão aqui. Mais uma vez, você vai ter que agüentá-
la falando do filho.

Sophia sorriu.

— Se existe algo que nós duas temos em comum é o amor pelos nossos filhos.

— Seu filho é parecido com você ou com Stonor? — Wolfe perguntou, num tom
áspero.

Sophia desviou o olhar. Daniel era o retrato de Wolfe, mas ele não devia saber disso.
Se possível, nunca!

— Stonor diz que ele se parece comigo.

Sorrindo, Sophia adiantou-se para cumprimentar a sra. Hunt e sentou-se junto dela.
Logo Eleanor apareceu, e as três iniciaram uma conversa.

Wolfe juntara-se a Luther e ao velho Southerby, que a toda hora olhava para Eleanor,
fascinado por sua beleza. Mas dessa vez ela não se importou com isso, preocupada com o
fato de Stonor Whitley ter ido para Londres, deixando o campo livre para Wolfe. Por que
teria ele feito isso? O que estaria pretendendo?

A noite foi um tormento para ela. Observava o marido olhar para Sophia com uma
estranha ansiedade e a via virar o rosto, muito corada, a cada vez. Num certo ponto, teve a
impressão de que não conseguiria suportar mais. Os dois mantinham uma conversa
polida, convencendo os Hunt e os Southerby de que mal se conheciam, mas ela sentia a
urgência sensual que os ligava, como uma chama invisível.

Depois do jantar, os homens ficaram à mesa, fumando e tomando vinho do porto,


enquanto as mulheres se retiravam para a sala de visitas. Graças à conversa ininterrupta da
sra. Hunt sobre os problemas com a criadagem, qualquer mal-estar que pudesse haver,
entre Sophia e Eleanor, foi afastado.
— Eu não agüento mais esse pessoal. Eles trabalham pouco e querem ganhar muito.
— A sra. Hunt dirigiu um sorriso a Sophia. — Naturalmente não existe esse problema, em
Queen's Stonor. Pelo que sei, vocês têm criados que estão lá há anos!

— A maioria deles sempre viveu na propriedade — Sophia concordou, com um


sorriso. — Mas são todos uns tiranos domésticos, com a tendência de me ver como se eu
ainda fosse uma garotinha. Em todo caso, tudo que fazem é por amor.

"Por amor", Eleanor pensou, fitando-a. "Não é de admirar que ela seja tão meiga e
delicada. Sempre teve amor! De Stonor, Wolfe, até dos criados da casa. Aposto que nunca
soube o que é sofrer'!"

A noite arrastou-se para Eleanor. A toda hora ela olhava para o relógio, ansiosa para
que Sophia se fosse.

Naturalmente, foi Wolfe que levou Sophia até a carruagem. Ele ajeitou a manta de
viagem em torno das pernas dela com ternura, inclinando-se para sussurrar:

— Preciso ver você.

— Não, Wolfe.

— Eu vou a Queen's Stonor.

Vendo o brilho determinado nos olhos dele, ela empalideceu.

— Não!

— Sim! Por que acha que Stonor foi para Londres? Ele reconheceu a derrota e
desistiu!

— Ele foi a negócios, Wolfe. A negócios!

Wolfe sorriu.

— Amanhã à noite — murmurou, fitando-a com ternura e paixão. — Amanhã,


Sophia.

Durante todo o caminho de volta, Sophia não parou de pensar. Sabia que Stonor fora
para Londres, deixando-a sozinha de propósito. Deixando o campo livre para Wolfe!

Stonor não se importava com ela. Uma sensação estranha e assustadora assolou-a.
Tinha que tomar uma decisão, antes da noite seguinte, pois Wolfe ia pressioná-la. Ele não
fizera segredo do que pretendia, ao se despedirem.

Em casa, Sophia passou pelo quarto do filho. Ele dormia, com um anel de cabelos
escuros caído sobre a testa. A imagem de Wolfe. Stonor jamais o deixaria sair de lá.
Inclinando-se para beijá-lo, ela teve certeza de que nunca poderia abandoná-lo.
No dia seguinte, na companhia de Daniel e da babá, Sophia partiu para Londres. Não
havia ninguém na casa, a não ser Maria, que os recebeu de braços abertos.

— Stonor não me disse que vocês vinham.

— Foi uma decisão repentina. — Sophia examinou a tia com mais atenção, achando-a
pálida e abatida. — Por que a senhora não volta conosco para Queen's Stonor, tia Maria? A
senhora fica tão sozinha, aqui.

— Não posso deixar esta casa. Ela é a minha vida.

Sophia não entendia a tia. Ela passara a vida com saudades de Queen's Stonor, e
agora que podia morar lá, não queria sair da casa de Londres.

— Esse menino está cada vez mais parecido com James. Maria inclinou-se para beijar
Daniel, enquanto Sophia a fitava, surpresa. Não havia nada de James Whitley no menino.
A solidão e a tristeza estavam fazendo de Maria uma mulher muito estranha.

— Stonor está no escritório?

— Está, mas pretende jantar com Tom e Elizabeth, esta noite. Precisamos avisá-lo de
que você chegou.

— Não, não diga nada. Eu quero fazer uma surpresa a ele.

Sophia jantou apenas na companhia de Maria e notou que ela bebia muito, durante a
refeição. Seria possível que isso sempre acontecesse? Um olhar para o rosto de Robbins, o
mordomo, confirmou suas suspeitas. Alguma coisa tinha que ser feita. Stonor precisava
tomar uma providência.

Era sempre para Stonor que todos se viravam. Ele era o ponto de apoio em suas
vidas, o elemento em que todos confiavam.

Mais tarde, depois de dar boa noite à Maria, Sophia foi para o quarto de Stonor e
sentou-se, esperando que ele voltasse da casa da irmã. Provavelmente chegaria cansado,
até mesmo deprimido.

Elizabeth exercia esse efeito sobre ele. Maldosa e insatisfeita, ela estava sempre
pronta a aborrecer o irmão.

Sophia ouviu a carruagem chegando, o barulho da porta se abrindo e fechando, os


passos de Stonor em direção à saleta de estar. Os criados já estavam na cama, mas uma
garrafa de uísque e um prato de sanduíches tinham sido deixados para ele, caso chegasse
com fome.

Ela esperou, sentada numa poltrona, com um abajur aceso, na mesinha ao lado.
Logo, ouviu Stonor tropeçando, ao subir a escada. Teria ele bebido muito?
Um arrepio percorreu-lhe a espinha quando a porta se abriu. Stonor entrou,
feçhando-a atrás de si. No início, não a viu. Encostado à porta, com os olhos baixos, tinha o
rosto pálido e abatido. De repente, percebeu a luz e levantou a cabeça. Ela viu a expressão
dele, antes que, numa atitude instintiva, escondesse o que sentia.

Os olhos cinzentos assumiram uma expressão de frieza.

— O que está fazendo aqui, Sophia?

— Esperando por você.

Stonor estava tenso, e seu raciocínio não foi tão rápido quanto de costume.

— Por quê? — perguntou afinal, incapaz de ver lógica na atitude dela.

Sophia ergueu-se e foi até ele. Apesar do traje de noite, que lhe realçava o corpo forte
e alto, Stonor era a imagem do cansaço.

— Você está com um ar de meio-morto, Stonor. A conversa com Elizabeth foi muito
difícil?

— Não mais que de costume.

Erguendo as mãos, Sophia soltou a gravata e começou a desabotoar a camisa dele. A


reação de Stonor foi imediata: agarrou-a pelos pulsos. Ela então o fitou por entre os cílios,
com um leve sorriso nos lábios.

— Por que você está em Londres? Fugir não vai ajudar, Sophia.

— Eu não estou fugindo.

— Não? — Ele sorriu com amargura.

— É você que está fazendo isso.

As mãos que a seguravam aumentaram sua pressão.

— Não está? — E Sophia aproximou-se um pouco mais dele. — Por acaso cansou-se
de mim, Stonor? Foi por isso que fugiu para Londres, deixando-me para Wolfe?

Com os olhos cinzentos faiscando, Stonor inclinou-se para ela. A luz batia em seus
cabelos, dando-lhes um reflexo dourado que Sophia achou lindo.

— Acha que eu não sou humano? — ele murmurou, num tom quase inaudível. —
Acha que eu ia ficar para ver o que acontecia, para ouvir você mentir para mim, enquanto
se encontrava com ele em segredo?

— Eu não faria uma coisa dessas com você, Stonor.

— Você já fez.
— Isso foi antes de nos casarmos. Antes que eu o conhecesse, antes que eu tivesse
uma chance de descobrir como você é, na realidade.

Stonor não parecia ouvi-la. Estava preso a um mundo só seu, cheio de amargura.

— Quantas vezes você foi ao quarto dele, enquanto a casa dormia? Eu sabia que você
o via em segredo, mas nunca pensei que as coisas tivessem andado tão depressa e ido tão
longe.

— Não foi assim! Aquela noite foi a primeira, e nada aconteceu!

Ele riu, com ar de menosprezo.

— Não minta!

— Não estou mentindo. Não éramos amantes, quando eu estava na sua casa. Nós só
nos encontrávamos de manhã cedo e passeávamos por Londres. Wolfe me mostrou uma
parte da cidade, que de outro modo eu nunca teria visto.

Enraivecendo-se, Stonor explodiu:

— Mas que maldito, ele não tinha o direito de levá-la a esses lugares! Imagino que
tipo de rua ele lhe mostrou! A você, uma garota inocente, praticamente uma criança!

Stonor ainda a segurava pelos pulsos, apertando-os sem sentir. Sophia olhou-o com
ternura, sorrindo gentilmente.

— Você não me conhece por completo, Stonor. Wolfe e eu temos muito em comum.
Ele não me causou mal. Foi tudo muito inocente.

— Inocente! Ele a levou para conhecer o reduto de prostitutas e ladrões, e você chama
isso de inocente?!

— Mas foi — Sophia afirmou, lembrando-se do prazer que os passeios com Wolfe
tinham lhe causado.

— E quando ele a seduziu, também foi inocente?

Ela pensou no bosque silencioso, na casa a distância, no cavalo esperando a alguns


passos, nos dedos delicados de Wolfe despertando a paixão em seu intimo.

— Foi — murmurou. — Aquela noite foi a mais inocente, Stonor. Você acha que os
motivos de Wolfe foram os mais sujos e egoístas, mas está enganado. Ele me amava. Nós
nos amávamos. Foi completamente inocente. — Ela fez uma ligeira pausa, depois
continuou: — Você mentiu para mim, dizendo que ele estava morto. Eu me sentia tão
infeliz, quando voltei para Queen's Stonor... Então Wolfe apareceu, e foi como se o sol
tivesse nascido de novo. Eu fui ao encontro dele aquela noite, no bosque. Uma noite! Foi
tudo que tivemos. — Um suspiro escapou-lhe dos lábios — Tudo que jamais teremos...
— Então não pretende ficar com ele? Você não deve, Sophia. Lembre-se da sua saúde.
Você não pode ter outro filho. Isso a mataria!

— Wolfe é um jogador. Ele correria o risco.

— E você? Também correria?

— Estou cansada dessa meia vida, Stonor. Quero ser uma mulher normal. Sei que é
um risco, mas estou pronta a aceitá-lo.

Stonor observou-a por um instante, respirando pesadamente.

— E Daniel? Esqueceu-se dele? Eu não deixarei que você o leve.

— Eu disse que queria isso?

— Vai deixá-lo, também? — Ele apertou-lhe os pulsos com mais força, depois soltou-
os abruptamente, dando-lhe as costas. — Por que veio até aqui? Para me dizer que vai
embora? — Sua voz se alterou. — Eu o mato, Sophia! Se você me deixar por ele, eu o
matarei!

— Por quê?

Stonor se virou, o rosto crispado de paixão e ciúme.

— Sua vagabundazinha maldosa, o que mais quer de mim? Quer me ver rastejar,
implorando como um tolo repulsivo? Meu Deus, você tem razão! Você e Wolfe têm mesmo
muito em comum. E o que ele nunca poderia conseguir por si mesmo, usou você para
conseguir!

— Diga-me, Stonor — Sophia pediu, gentilmente.

— Para que você e Wolfe possam rir de mim, depois? Quero que me amaldiçoem,
antes disso! — Girando nos calcanhares, ele caminhou para a porta: um homem alto, duro,
de olhar amargurado. — Saia daqui! Vá atrás dele, se é isso que quer. Não terá muito
tempo. Assim que eu descobrir onde vocês estão, eu o matarei.

Stonor segurou a porta aberta, e Sophia dirigiu-se para lá. Mas, ao alcançá-lo,
enlaçou-o pelo pescoço e beijou-o.

A porta fechou-se com estrondo. Abraçando-a fortemente, Stonor puxou-a de


encontro a si, beijando-a na boca, entreabrindo-lhe os lábios e invadindo-a com a língua,
com uma violência que mostrava que não se importava de feri-la.

Sophia encostou-se ao corpo dele, acariciando-lhe os cabelos com os dedos, sentindo-


lhe o bater do coração, cada vez mais forte e acelerado.

De repente, sem deixar de beijá-la, Stonor ergueu-a nos braços e levou-a para a cama.
Forçando-a de encontro ao colchão, cobriu o corpo dela com o seu, procurando-lhe os
seios, fechando as mão sobre eles, num gesto selvagem de posse. Ao mesmo tempo
mordiscava-lhe a pele e a acariciava com a língua.

—Você cometeu um erro, Sophia. Não devia ter me tocado — murmurou,


entrecortadamente. — Se vai arriscar sua vida por ele, pode arriscá-la por mim. Deus sabe
que eu a quero há muito tempo!

Sophia esticou-se sensualmente, quente e receptiva, e levou as mãos à camisa dele,


terminando de desabotoá-la. Sentindo seu movimento, Stonor ergueu a cabeça e fitou-a.
Ela retribuiu o olhar, com um sorriso brincalhão.

— Eu já estava começando a achar que ia ter que seduzi-lo, Stonor.

— O quê?!

— Acha mesmo que eu poderia viver com você durante três anos e não aprender a
amá-lo?

— Não minta para mim! — Stonor explodiu, zangado.

— Por que eu haveria de mentir para você?

— Wolfe... — Tapando-lhe a boca com a mão, ela o impediu de continuar.

— Wolfe foi meu primeiro amor, e eu acho que uma mulher sempre tem uma
fraqueza pelo primeiro homem de sua vida. Ele é um sujeito charmoso, mas eu sei que
também é amoral e sem escrúpulos. Tem tantas fraquezas, enquanto você tem tão poucas!
— Sophia sorriu, provocante e zombeteira. — E eu sou uma delas, não sou, meu querido?

— Você é a única — Stonor respondeu, fitando-a com uma expressão de


incredulidade.

Terminando de desabotoar-Ihe a camisa, ela acariciou-lhe o peito musculoso, depois


os ombros e o pescoço.

— Diga-me agora, Stonor... Antes de fazermos amor!

— Nós vamos fazer amor? — Ele ainda a olhava como se não acreditasse no que
estava acontecendo.

— Se depender de mim, vamos.

— Mas é muito perigoso para você! Seria arriscar a sua vida, e acho que eu não
continuaria vivendo, se algo lhe acontecesse. O que tivemos, durante esses três anos é
melhor do que nada.

Sophia ergueu a cabeça e deslizou os lábios pelo corpo dele, obtendo em resposta um
gemido rouco.
— Arrisque-se, Stonor. Agora, estou mais forte do que há três anos. Eu sobrevivi ao
nascimento de Daniel, e poucos meses depois da minha doença. Tenho certeza de que
consigo de novo, se você me engravidar. — Ela sorriu com meiguice. — E eu quero ter um
filho seu, Stonor. Não entende? Eu quero você e quero lhe dar um filho!

— Meu Deus, como eu te amo, Sophia! Eu te amo desde que a vi pela primeira vez,
quando chegou a Londres. Você era tão meiga, tinha um sorriso tão caloroso! Depois de
viver tantos anos numa casa como a minha, eu esperava uma virgenzinha gelada, parecida
com a minha mãe. Quando você entrou, não pude acreditar na minha sorte. Eu me senti
como alguém saindo para a luz do sol, depois de passar anos trancado num túmulo.

— Meu pobre querido! — disse ela com amor e compaixão. — Sinto tanto ter lhe
causado tanto sofrimento. Se pudesse, eu voltaria àquele dia e começaria tudo de novo.

— Nunca a julguei culpada de nada. Sempre soube que era Wolfe o culpado. Ele
percebeu, no minuto em que a viu comigo. Foi por isso que a procurou. Era a velha
história de sempre: Wolfe roubando o que ele sabia que eu amava.

— Eu sei — Sophia murmurou, suspirando.

Realmente, Wolfe fora atrás dela com essa idéia. Mas, no momento em que se
encontraram, tudo mudara para ele. Seu encontro fora como uma colisão de nuvens
tempestuosas, uma explosão natural, que nada tivera a ver com idéias e intenções. Como
Stonor, Wolfe se apaixonara por ela de imediato. Fora uma ironia do destino, atingindo os
três.

Pela expressão de Sophia, Stonor adivinhou-lhe os pensamentos.

— Ah, sim, ele a ama! Mas isso veio depois, Sophia. No começo, ele só queria seduzi-
la.

— Eu sei. Mas, Stonor, mesmo que ele não tivesse feito o que fez, tudo aconteceria
como aconteceu. Ninguém manda nos sentimentos.

— Você ainda o ama! — A expressão fria voltou ao rosto dele. — Eu percebo na sua
voz, quando você diz o nome dele.

— O amor não pode ser sufocado ou enterrado, Stonor. Ainda não aprendeu isso?
Mas existem muitos tipos de amor. Agora, o que sinto por Wolfe é muito parecido com o
que sinto por Daniel. Ambos são crianças levadas e difíceis. Eu os amo e sempre amarei.
Mas você é o homem que eu quero, Stonor. — Sorrindo, cheia de ternura, ela levou a mão
ao rosto dele. — Eu te amo muito mais do que pensei. Quando você veio para Londres e
me deixou sozinha, fiquei surpresa e magoada. Antes, você sempre lutou por mim. Eu me
senti abandonada e não agüentei: tive que vir atrás de você. Não posso viver sem você,
Stonor!
O rosto de Stonor transfigurou-se. Muito corado, ele respirava com dificuldade,
enquanto ela lhe sorria, provocante.

— Faça amor comigo, Stonor. Tenha fé e se arrisque. Nós precisamos um do outro.

Parecendo estar em transe, Stonor inclinou a cabeça e beijou-a com paixão, obtendo
uma resposta que o fez estremecer. Seu autocontrole sumiu, e o ardor que ele sufocava no
íntimo foi liberado, manifestando-se no olhar brilhante e nas mãos trêmulas com que ele a
tocava.

A sensualidade que Stonor escondera por tantos anos emergiu. Ele explorou o corpo
dela, incitando-a a fazer o mesmo com o seu.

Debaixo dele, ela se movia gemendo baixinho, deliciando-se com cada carícia.
Separando-lhe as pernas gentilmente, ele a tocou na intimidade, fazendo-a gemer de
prazer.

— Stonor! Stonor!!!

Com um riso rouco, ele voltou a beijá-la na boca, segurando-a pelos cabelos.

— Faz tanto tempo que quero fazer isso! Não acha que podemos parar por aqui,
minha querida? Assim não haveria risco para a sua vida. Podemos fazer amor de muitos
jeitos, sem arriscar nada.

— Não, Stonor, eu quero que você me possua!

Tomada pela paixão, Sophia arqueou o corpo de encontro ao dele. Por um segundo
Stonor hesitou, mas depois cedeu. No instante da posse gemeram juntos, emocionados,
imobilizados.

Sophia tinha um brilho febril nos olhos azuis. Cada centímetro de seu corpo ardia em
chamas. Wolfe e o passado tinham sumido de sua mente e só havia desejo em seu olhar,
quando o convidou a continuar o ato, com um movimento de seu corpo sensual.

Cedendo às exigências de seu sexo, Stonor moveu-se com ferocidade, cada vez mais
depressa. Receptivo, o corpo dela correspondia a seus movimentos ajudando-o em sua
escalada rumo ao orgasmo.

— Querido, querido... — Sophia gemeu, beijando-o no pescoço. Toda a frieza e


autocontrole esquecidos, Stonor fitou-a com os olhos vidrados de paixão. Sophia enterrou
as unhas nas costas dele, soluçando, ofegante, até que a agonia acabou.

O rosto corado de Stonor colou-se ao dela, quando ele escorregou pelas espirais do
prazer e da satisfação, murmurando-lhe o nome em voz rouca. Depois, caiu de lado,
respirando fundo, feliz.
— Deus, como eu precisava disso! Você nem imagina...

— Imagino, sim — Sophia respondeu, com uma covinha no canto da boca.

— Depravada! — Stonor brincou, sorrindo. Mas logo o sorriso desapareceu. — De


quanto tempo você precisa para saber se está grávida? Quanto tempo vou ter que esperar?

— Se você está pensando o que eu desconfio, a resposta é não, Stonor. Uma vez só
não basta. Agora que começamos, vamos continuar.

— Sophia...

— É sério! Acha que quero continuar como antes, a vida inteira? Eu não estou com
medo. Não tenho a menor intenção de morrer. Vou aproveitar bem a vida e pretendo
acabar como uma velhinha de cabelos brancos. Até lá vou fazer com que me ame assim,
todas as noites.

Ele riu, depois meneou a cabeça.

— Não gosto disso.

— Mentiroso, você adorou!

— Querida! — Entre risos, Stonor a beijou. Pouco depois, no entanto, uma expressão
sombria surgiu em seu rosto. — E Wolfe?

— Deixe Wolfe comigo.

— Eu o mato, se ele chegar perto de você de novo!

Sophia riu, divertida.

— Não precisa ser tão drástico, Stonor! Sabe que Wolfe tem um dom que você nunca
teve? Ele sabe quando está derrotado. Você sabia, antes de nos casarmos, que eu amava
Wolfe, que tínhamos sido amantes e que eu não queria me casar com você, mas nem assim
desistiu.

— Eu não podia. Não conseguiria viver sem você.

— Por isso foi em frente, e no fim conseguiu o que queria. Em seu lugar, Wolfe teria
desistido. Pode imaginá-lo andando atrás de uma mulher que ama outro homem? O
orgulho dele não deixaria.

Stonor empalideceu.

— Eu não tenho orgulho, quando se trata de você. Pensa que me orgulho disso?

— Para um homem que detesta correr riscos, querido, você andou se arriscando
bastante. Você é mais forte que ele, Stonor. Wolfe tem uma vontade forte, mas você tem
muito mais. Quando eu estava doente, Wolfe partiu e me deixou. No fundo, ele tem menos
de jogador do que você. Você se uniu a mim, apesar de saber que não poderíamos viver
um casamento normal. Você nunca reconhece uma derrota, não é, Stonor?

— Pensei que a tivesse perdido, quando Wolfe voltou.

— É mesmo? Não sei, não. Na minha opinião, você se arriscou uma última vez. — Ela
sorriu. — Eu não sou cega. Você tinha esperanças de que eu não aceitasse correr o risco de
engravidar de novo, não é? Além do mais, havia Daniel. Você achou que eu não teria
coragem de deixá-lo. Veio para Londres, mas largou dois reféns para trás: Daniel e eu.
Mais um dos seus riscos muito bem calculados, não é, Stonor?

— De qualquer maneira, foi um risco. Você poderia ter ido embora.

— Poderia, mas vindo para Londres, você apelou também para a minha honra, não
foi? Você é mais duro que Wolfe, Stonor.

Quando ele souber que vim atrás de você, entenderá tudo e aceitará a derrota.

— Ele está apaixonado por você, Sophia. Não vai esquecê-la assim.

Sophia deu de ombros.

— A esposa o ajudará.

— A coitada é apaixonadíssima por ele. Estava muito abatida com tudo isso, quando
foi ao meu escritório.

— Ela foi ao seu escritório?!

Stonor corou.

— Foi.

Um brilho divertido surgiu nos olhos de Sophia.

— Você a chamou, não é? Meu Deus, Stonor, você cuida de todos os detalhes, hein?
Quando Wolfe descobrir que não vai me conquistar, voltará para ela. Além do mais, ele
tem o jornal para mantê-lo ocupado. Aposto que vai aceitar a derrota com um simples dar
de ombros.

— Tomara que sim. Senão, terei que matá-lo.

— Não fale desse jeito! Você deve aprender a entender e apreciar Wolfe. Ele é um
sem-vergonha, mas tem muito charme. E não pode mais nos magoar. Não vou permitir,
Stonor, e você sabe que, se existe alguém no mundo capaz de ameaçar Wolfe com sucesso,
essa pessoa sou eu.

— Porque ele a ama.

— Uma verdade que você precisa aceitar.


Stonor zangou-se.

— Eu não consigo!

— Você não consegue ser generoso, Stonor? — Ele não respondeu, limitando-se a fitá-
la. — Você venceu, Stonor. Nem mesmo assim consegue ser generoso com Wolfe?

Stonor envolveu-a nos braços.

— Ah, minha querida, meu amor... — sussurrou.

Sorrindo, Sophia aconchegou-se mais a ele.

Parte Dois

Capítulo XIX

Louise Stonor Whitley estava com seis anos, quando olhou realmente para a mãe,
pela primeira vez. Durante todos aqueles anos, a mãe fora uma figura linda e carinhosa,
que ia a seu quarto beijá-la, tomá-la no colo, acariciar-lhe os cabelos e contar histórias. Para
ela, "mamãe" era uma pessoa que existia única e exclusivamente para seu conforto.

Foi no outono de 1885, que percebeu que outros tinham direito a sua mamãe. Até
aquela data, seus irmãos, Daniel e Edward, dividiam com ela a ala das crianças. Um dia,
Daniel, de pura maldade, jogou uma bola de cricket no olho de Edward, que ficou roxo. À
noite, o papai deles apareceu, muito zangado, e disse a Daniel:

— Você merece uma surra. Vá depois ao meu escritório.

Louise, sentada numa cadeirinha de vime, com o polegar na boca, horrorizou-se.


Depois de sua mamãe, Daniel era a pessoa favorita em sua vida, seu protetor e seu
carrasco. Ele até permitia que participasse das brincadeiras de índio e pirata que
imaginava, ao contrário de Edward, que nem gostava de tê-la por perto.

Naquela noite, quando viu o olhar zangado do pai fixo em Daniel, Louise se
assustou. Mas Daniel nem piscou, ele nunca se amedrontava. Papai já batera nele duas
vezes: uma, quando ele estragara os pepinos da horta, e outra, quando a ajudara a subir
numa macieira e ela não pudera mais descer. Daniel agüentara as duas surras sem
derramar uma lágrima, e depois permitira que ela e Edward admirassem os vergões
vermelhos na pele branca de suas nádegas.
A atitude de Daniel enfureceu ainda mais seu pai, que o agarrou pela orelha e
sacudiu com violência. Daniel apertou os dentes, mas não deixou escapar um só som de
sua boca.

Então a porta abriu-se e sua mãe entrou. O pai soltou Daniel e voltou-se para ela.
Com um só olhar, a mãe percebeu o que ocorria e disse a Daniel:

— Já pediu desculpas a Edward pelo que fez, Daniel?

— Eu pedi desculpas a ele na hora, mamãe — Daniel respondeu, erguendo os olhos


verde-azulados para ela. — Eu sinto ter perdido a cabeça, mas foi tudo tão rápido...

A mãe inclinou-se e beijou-o na testa.

— Vá fazer companhia a seu irmão, querido. Pode ler algumas histórias para ele.
Aquele olho ainda vai levar alguns dias para sarar...

Daniel saiu e a bela mulher voltou-se para o marido, sem ver a filha em sua
cadeirinha, num canto.

— Ele merece uma surra, Sophia.

— Não, Stonor. Você pode castigá-lo de outro modo. Tire a mesada ou proiba-o de
comer doces aos sábados, mas não bata mais nele.

Stonor abriu a boca para protestar, depois fechou-a. Com um choque, Louise
percebeu que até seu pai, tão forte e poderoso que mesmo os criados o temiam, era
obrigado a acatar a vontade de sua mãe.

— Está na hora de Daniel ir para um internato — o pai comentou, depois de uma


pausa. — Jenkins é um ótimo tutor, mas Daniel já está superando os limites dele.

Louise sentiu um aperto no coração e olhou para a mãe, esperando ouvi-la repudiar
essa idéia. No entanto, para seu horror, ela apenas suspirou e disse:

— É, acho que você tem razão. O melhor é vocês ficarem longe um do outro.

— Eu bem que tentei, Sophia — murmurou Stonor, num tom quase suplicante. —
Mas quando ele me olha com aqueles olhos, eu...

— Eu entendo, Stonor. Essas coisas não podem ser controladas. O que acha de
descermos para o chá, agora? — Virando-se, Sophia deu com Louise e sorriu. — Querida!
Você está parecendo um ratinho, aí no seu canto. Já deu um beijo no papai?

Louise tirou o polegar da boca, mal-humorada.

— Eu odeio ele! Não quero que Daniel vá embora. Eu amo Daniel!

Stonor abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas a esposa impediu-o, com um
simples gesto de cabeça. Tomando então a menina nos braços, beijou-a com ternura.
— Nós todos amamos Daniel, minha querida, mas ele está ficando muito grande para
o quarto das crianças. Logo ele vai ficar como Alice na casa do Coelho Branco, com as
pernas e braços saindo pelas janelas, e a cabeça na chaminé...

Louise começou a rir, e logo seu pai juntou-se a ela. Dali a pouco, completamente
esquecida de sua zanga, ela lhe deu um beijo de boa noite. Só mais tarde, em sua caminha,
lembrou-se e, pensando, chegou à conclusão de que seu pai tinha que fazer tudo que a sua
mãe dizia, porque ela era uma pessoa especial. Os criados também a obedeciam com a
maior boa vontade, como se gostassem de satisfazê-la. Papai podia ser o dono de Queen's
Stonor, mas mamãe tinha a última palavra, em tudo.

O interessante era que Sophia nunca elevava a voz, ao contrário de seu pai. Ele
gritava sempre, dizendo que Daniel o aborrecia, o que acontecia com bastante freqüência.
Nem quando o garoto beijava a mãe, seu pai ficava contente. Nessas ocasiões, o pai fitava-o
com frieza, como se ressentindo do gesto amoroso do menino. No entanto, quando a filha
e Edward beijavam a mãe, o pai lhes sorria com ternura.

Daniel recebeu com calma a notícia de sua ida para a escola, mas Louise sentiu que
ele não queria ir.

— Eu gostaria tanto que você não fosse para a escola, Daniel... — murmurou,
enfiando sua mãozinha na do irmão.

— Vai ser divertido — replicou Daniel.

— Pelo menos, lá não existem garotas — disse Edward.

Louise mostrou-lhe a língua e se escondeu de imediato atrás de Daniel, quando ele


tentou revidar com um tapa.

— Quando eu estiver fora, Ned, é melhor deixar Louise em paz — Daniel avisou a
Edward. — Se eu ficar sabendo que você andou maltratando-a, dou-lhe uma surra de
arrebentar!

— E papai lhe dá outra! — gritou Edward.

— Mamãe não deixa — Louise interferiu, triunfante.

Os dois meninos voltaram-se para ela.

— Mamãe não pode impedir que papai bata em Daniel — Edward declarou. — É o
pai que cuida dessas coisas, numa família.

— Mamãe pode fazer o que quiser com papai! Por ela, ele faz qualquer coisa...

Sorrindo, Daniel fitou a irmãzinha.

— É verdade, Louise. Mamãe sempre consegue que façam a vontade dela...


Foi quando Louise teve certeza de que sua mãe era a criatura mais poderosa e linda
do mundo!

Para grande alívio de Louise, um ano depois de Daniel, Edward também foi
mandado para a escola. Ele partiu feliz, em seu novo uniforme, levando um guinéu que o
pai lhe deu para gastar em doces, no caminho. O pai também dera um guinéu para Daniel,
mas de um modo brusco, como que de má vontade.

Louise adaptou-se a sua nova vida, com satisfação. Agora tinha a mãe só para si,
além da governanta, uma mocinha míope, que morria de medo de seu pai, mas adorava
sua mãe. Assim que a mocinha chegara, Sophia examinara com desgosto as roupas baratas
que vestia, depois as substituíra por vestidos novos, elegantes e em cores bonitas,
mudando por completo a aparência dela. Passando pela cozinha, Louise ouvira uma das
criadas dizer:

— Isso é procurar encrenca. Desse jeito, a moça logo arranja um namorado e aí... Será
uma sorte, se ela não aparecer grávida!

— Uma coisa é certa — respondera a cozinheira. — Madame não precisa ter medo de
que o patrão olhe duas vezes para essa garota. Ou para qualquer outra mulher. Ele é
completamente louco por ela. Nunca vi uma coisa assim!

No dia seguinte, Louise perguntou à mãe o que era ser louco por alguém. Nesse
momento, seu pai entrou e sua mãe dissera a ele, com um sorriso estranho nos lábios:

— Louise quer saber o que significa ser louco por alguém, querido.

Para sua surpresa, Louise viu o pai corar.

— Onde foi que ela ouviu isso? — ele quis saber.

— É melhor não perguntar.

— O que isso quer dizer, papai? — Louise insistiu.

— Quer dizer amar alguém tanto, a ponto de perder a força de vontade — seu pai
respondeu num tom enrouquecido, com os olhos fixos em sua mãe. — É uma forma
deliciosa de loucura, Louise, para a qual não existe remédio.

Em sua cama, aquela noite, Louise preocupou-se com o pai. Estaria ele ficando louco?
Seria essa a opinião dos criados? Pobre papai...

A srta. Culpepper era a preceptora de Louise. Seguia as instruções da patroa e


educava Louise com calma, providenciando para que a menina passasse bastante tempo ao
ar livre. Todos os dias elas faziam longas caminhadas pelo parque ou saíam de carruagem
com Sophia. Às vezes, para alegria de Louise, Sophia dava folga à preceptora e levava a
filha para Bristol, com ela.
Um dia, as duas pararam a carruagem e deram um passeio por um parque cheio de
flores. Sentando-se num banco de pedra, Sophia mostrou a Louise os peixinhos dourados,
que nadavam num lago circular. Cheia de alegria, a menina pôs-se a correr em volta do
lago, parando do outro lado para fitá-la.

Sophia usava um vestido lilás, de corpete justo e saia rodada, com uma anágua roxa,
cheia de rendas, aparecendo junto à barra. Na cintura, trazia um raminho de violetas, e
parecia a Louise a mulher mais linda do mundo.

Louise corria de volta para juntar-se à mãe, quando viu um homem aproximar-se de
Sophia e curvar-se diante dela. Sophia corou, com uma estranha expressão no rosto, e
Louise apressou o passo. Nunca vira aquele homem antes. Ele era bem alto, com cabelos
escuros e bigode.

Parando junto deles, Louise foi tomada por uma sensação de hostilidade em relação
ao homem. Não gostava do modo como ele olhava para sua mãe, embora não soubesse ao
certo o motivo. O homem então a fitou, e ela percebeu, surpresa, que os olhos dele eram
parecidos com os de Daniel. De imediato sua hostilidade desapareceu.

— Aposto que você é Louise Stonor Whitley — o homem disse, inclinando-se para
beijar sua mãozinha.

Louise riu. Era a primeira vez que alguém beijava sua mão, como se já fosse uma
moça. Endireitando o corpo, o homem tocou, com a ponta dos dedos, os cabelos escuros
que escapavam de seu chapeuzinho amarelo.

— Deus do céu, mas é um retrato perfeito! — ele exclamou.

— O que isso quer dizer, mamãe? — Louise perguntou, de imediato.

— Ela faz perguntas e não descansa enquanto não encontra as respostas — sua mãe
disse ao homem, com uma nota estranha na voz.

Louise percebeu que havia um significado que não alcançava, naquela frase, e olhou
de um para o outro.

— O que eu quis dizer, Louise, é que você e sua mãe são absolutamente iguais.

Empurrando as duas para junto do lago, o homem apontou para a água. Louise
olhou com atenção e viu, cheia de alegria, que seu rosto era muito parecido com o de sua
mãe.

— Será que vou ser tão bonita quanto mamãe, quando crescer?

— Na certa!

Virando-se, Sophia deu a mão à filha.


— Temos que ir — falou, com polidez.

— Mas ainda é cedo! — A voz do homem tinha um traço de zombaria.

— A carruagem ainda vai demorar, mamãe. — Louise estava surpresa com o erro da
mãe. — E a senhora prometeu que eu podia ir até os balanços...

— Claro que ela tem que ir até os balanços. Venha, que eu empurro você, querida.

— Mamãe me chama de querida — Louise contou, alongando os passos para


acompanhar os do homem. — Ela também chama papai de querido, e Daniel...

— Então, a mamãe chama o papai de querido? E o papai gosta?

— O papai é louco pela mamãe!

Esse comentário animado foi seguido por um breve silêncio. Depois, o homem
murmurou:

— Quer dizer que seu pai continua tão louco pela sua mãe quanto antes...

— Chegamos — Sophia disse, depressa e com voz seca.

Louise correu para sentar-se num dos balanços, e o homem empurrou-a até que
estivesse na altura certa, nem alto, nem baixo, mas do jeito que gostava. Ela virou a cabeça
para sorrir-lhe por cima do ombro, mas ele estava ocupado, tirando as violetas da cintura
de sua mãe. Quando conseguiu desprendê-las, ele as passou suavemente pelos lábios dela,
depois prendeu-as no próprio casaco. Mamãe nada disse, limitando-se a fitá-lo com aquele
olhar tolerante, cheio de ternura, com que sempre fitava Daniel. Enquanto balançava,
Louise ouvia a conversa dos dois adultos.

— Como vai o meu querido meio-irmão?

— Bem, obrigada.

— Vocês têm saído pouco, ultimamente. Ele resolveu trancar você em casa?

— Stonor prefere passar as noites em casa.

— Mas que marido meloso ele é!

"Meloso", Louise pensou. O que significaria? Precisava perguntar a papai.

Sua mãe riu de alguma coisa que o homem disse, o rosto animado como Louise
nunca vira. Voltando a cabeça, ela pediu:

— Dá para me empurrar de novo, senhor?

— Claro!

— Chega! —ela gritou logo, com medo de ir mais alto. — Assim está bom. É assim
que Daniel me empurra.
— Você gosta de Daniel? — o homem perguntou, dando a volta até que ficassem de
frente um para o outro.

— Eu amo o Daniel.

— E Edward?

Louise fez uma careta.

— Ele é mau. Quando ele me bate, o Daniel bate nele. Daniel é mais forte, e Edward
tem medo dele. Daniel é o menino mais bonito e corajoso do mundo!

O homem virou-se para Sophia com uma expressão estranha, e ela olhou para o
outro lado, com um suspiro.

— Daniel deve ser bem parecido com seu pai — o homem comentou.

— Não, ele é muito diferente de papai. Mas agora a mamãe disse que o papai não
pode mais bater em Daniel, e ele não bate.

O homem franziu a testa, e Sophia explicou:

— Stonor faz o que pode, mas Daniel é um menino muito voluntarioso e rebelde. Eles
são tão diferentes! Mesmo assim, Stonor jamais lhe faria mal.

— É melhor que não faça mesmo! — o homem replicou, zangado.

— Como vai a sua menina? — Sophia indagou num tom macio, olhando-o nos olhos.

— Você acreditaria, se eu lhe dissesse que ela é parecida com a sua? Alice tem cabelos
escuros, os olhos azuis dos Stonor e é selvagem como um passarinho. Eleanor não sabe
como lidar com ela, por isso a deixa comigo.

— E Eleanor? Como vai?

— Deu para beber em segredo.

— Ah, não! Wolfe, o que foi que você andou fazendo?

— Eu?! Deus do céu, nada! A não ser dar a ela uma linda casa, quatro filhos
maravilhosos, respeitabilidade, uma carruagem, jóias, roupas finas...

— Você não tentou amá-la como devia! Devia ter se esforçado mais.

— Por quê? — Wolfe perguntou, com uma violência que assustou Louise. — As
coisas são como são!

— Mas ela o ama tanto! Você poderia ter sido melhor marido para ela.

— Seja boa para mim — disse o homem, numa voz estranha, com os olhos fixos nos
de Sophia —, que eu serei bom para ela.
Louise percebeu que a mãe corava ao dizer:

— Precisamos ir.

Aproximando-se do balanço, Sophia colocou Louise no chão e, de mãos dadas, as


duas se afastaram. O homem não as seguiu, embora as acompanhasse com o olhar, até
estarem fora de vista.

Dois dias depois, Stonor lia uma história de fadas para Louise quando ela se lembrou
da nova palavra que escutara.

— Papai — perguntou —o que é um marido meloso?

Ele sorriu, enquanto Sophia o fitava, estranhamente ansiosa.

— É um marido que ama a esposa. — Com um brilho divertido no olhar, ele virou-se
para Sophia. — Ela deve ter escutado isso na cozinha. Esses criados não tem outro
assunto?

— Não foi lá, não — Louise corrigiu. — Foi aquele homem... Ele disse que você é um
marido meloso.

O sorriso sumiu do rosto de seu pai.

— Que homem?

— O homem alto que encontramos no parque, em Bristol. Tem cabelos pretos e olhos
iguais aos de Daniel.

Com um movimento abrupto, o pai colocou-a no chão.

— Vá procurar a sua professora, Louise. Eu termino a história outra hora.

Louise obedeceu de má vontade e, enquanto fechava a porta atrás de si, ouviu o pai
dizer:

— Por que não me disse que o tinha visto, Sophia?

— Foi só por alguns momentos. Ele empurrou Louise no balanço e depois viemos
embora.

— Mas você não me contou — insistiu Stonor, com a voz mais zangada que Louise já
ouvira. — Quantas vezes isso aconteceu, Sophia?

— Foi a primeira vez. Não seja ridículo, Stonor! Eu não o vejo há anos.

— Não? Talvez deva perguntar para menina o que mais ele disse!

— Stonor, eu vou ter que obrigar você a se ajoelhar e me pedir perdão, ou pretende
me pedir desculpas agora? — Sophia falou num tom macio, como se estivesse sorrindo.
Com o ouvido encostado à porta, Louise escutou alguém andar e depois um riso
suave.

— Ah, Sophia! — seu pai sussurrou. — Minha querida...

Aliviada, Louise saiu à procura da preceptora. Mamãe era mesmo mágica. Só tinha
que agitar sua varinha de condão para acabar com a zanga de papai.

Quando fez oito anos, Louise ganhou de seu pai um pônei, um animalzinho gordo,
de olhos escuros e hábitos travessos. Durante todo o verão ela cavalgou pelo parque com
Daniel e Edward, aprendendo a saltar arbustos de baixa altura. Daniel sempre a aplaudia,
quando conseguia, e corrigia pacientemente seus erros, quando necessário. Ao contrário
de Edward, que sempre queria deixá-la para trás.

Uma noite, o pai deles trocou um aperto de mão com os meninos, antes de irem para
a cama. Ele sorriu para Edward, mas Daniel recebeu apenas um seco gesto de cabeça.
Louise ergueu o rosto para receber um beijo, constatando que seu pai nunca tratava Daniel
tão bem quanto a Edward. Quando já estava no hall, ela deixou cair a bola, que trazia nas
mãos, e voltou para pegá-la. Foi então que ouviu o pai dizer, zangado:

— Eles estão cada vez mais parecidos, Sophia! O destino tem mesmo um estranho
senso de humor.

— Então Eleanor deve rir muito, todas as vezes que olha para Alice — Sophia
respondeu gentilmente. — Porque ela é Stonor da cabeça aos pés, e mais parecida com a
nossa Louise do que com a própria mãe...

Stonor calou-se por um instante, depois disse:

— Deus do céu, eu sinto muito, Sophia!

— Não ligue para isso, querido. Eu sei que você faz o possível. — Ela fez uma pausa,
depois riu baixinho. — É engraçado como certos traços passam de geração em geração.
Tenho certeza de que os amigos deles acham que a menina se parece com Wolfe, como os
nossos amigos acham que Daniel se parece comigo.

— E se parece mesmo.

— Ele é meu filho.

— Perdoe-me, Sophia — Stonor replicou, estranhamente. Louise saiu dali bastante


intrigada. Tinha certezea de que já ouvira aqueles nomes antes, mas não sabia onde.

Na primavera seguinte, Louise foi com a mãe tomar chá na casa da sra. Hunt, uma
mulher magra, de cabelos grisalhos e olhos escuros. O marido dela era muito rico, e a casa
deles, moderna e bonita.
Sentada num sofá, balançando os pés no ar, Louise ouvia as senhoras conversarem.
De repente, a mãe fitou-a com bondade e disse:

— Louise pode ir brincar no jardim, sra. Hunt?

— Claro que sim!

Há muito tempo, Louise notara que todas as mulheres faziam questão de agradar sua
mãe, e a sra. Hunt não era exceção. Aliviada, ela saiu para o jardim de canteiros retos, com
filas certinhas de arbustos e árvores, tão diferentes da adorável profusão de flores e árvores
do jardim de sua casa.

Depois de admirar por alguns momentos os canteiros de rosas, Louise aproximou-se


de uma cerca viva, na qual havia um buraco. Passando por ele, viu-se em outro jardim,
cheio de árvores e estátuas de bronze. Caminhou ao longo da cerca viva e chegou a um
lugar onde o capim alto misturava-se com enormes macieiras. No galho de uma delas
havia um balanço, e ela se pôs a brincar nele. Depois de alguns momentos, cansada,
resolveu voltar. Estava passando pelo buraco na cerca viva, quando viu a mãe se
aproximando.

De repente, alguém deu um puxão em sua saia e Louise se virou.

Um garoto alto e moreno sorriu para ela. —Ora vejam! Uma invasora...

— Descupe — Louise murmurou. — Eu estava curiosa.

— Qual é o seu nome?

— Louise Whitley.

O garoto arregalou os olhos, de um azul-esverdeado estranhamente familiar.

— Mas esse é o meu nome!

— O quê? Louise? — Ela riu.

— Não, boba! Whitley.

Eles se fitaram com mais atenção. De repente, o menino disse:

— Depressa, alguém vem vindo! Para cá....

Sem parar para pensar, Louise o seguiu até uma macieira, cujos galhos mais altos
sustentavam uma casinha de madeira. De lá pendia uma escada de cordas, e Louise
engoliu em seco, vendo-o subir por ela.

— Venha, sua boba!

Ela obedeceu, meio amedrontada, e ele puxou a escada correndo de novo.

— Pronto! A bordo e salva.


— Você é a cara do meu irmão Daniel!

— E você é a cara da minha irmã Alice. Engraçado, não é?

— É... Mas se nós temos o mesmo sobrenome, podemos ser parentes distantes.

— É verdade. Por falar nisso, meu nome é Jerome, e esta é a minha casa. Onde é que
você mora?

— Em Queen's Stonor.

— Que nome esquisito para uma casa! Fica perto daqui? Nesse momento Louise
ouviu a mãe chamando-a. Ia responder mas Jerome tapou-lhe a boca com a mão, avisando,
com um gesto de cabeça, para que se calasse.

Por entre os galhos da macieira, Louise viu a mãe parar junto ao balanço e olhar em
torno. Depois de uma ligeira hesitação, ela se sentou no balanço, rindo baixinho.

— Quem é essa? — Jerome perguntou, num sussurro.

— Minha mãe — Louise respondeu, no mesmo tom.

— É muito bonita...

Juntos, eles observaram Sophia balançar, com as saias voando ao vento e revelando
seus tornozelos delicados. De repente, um homem saiu do meio das árvores e estacou,
fitando-a. Por um instante Louise não o reconheceu, depois lembrou-se do parque, em
Bristol, e do homem que havia ficado com as violetas de sua mãe.

Ele se aproximou em silêncio e, quando o balanço foi em sua direção, agarrou-o,


fazendo-o parar. Louise viu a mãe virar-se e sorrir daquele jeito delicioso, com os olhos
azuis brilhantes e alegres. Com uma exclamação abafada, o homem inclinou-se e beijou-a.

Louise ficou chocadíssima. Nunca vira duas pessoas se beijarem daquele modo, nem
mesmo quando era seu pai que beijava sua mãe. Os dois pareciam estar se devorando! De
repente o homem soltou o balanço e deslizou as mãos pelo corpo de sua mãe, de um jeito
que a deixou envergonhada.

Lembrando-se de Jerome, Louise virou-se e viu que ele observava os dois com um
olhar sombrio e zangado. Ao olhar de novo para a frente, ela deu com a mãe em pé junto
ao balanço, afastando o homem com uma das mãos.

— Não, Wolfe!

— Você não parecia ter mais que dez anos de idade, sentada nesse balanço! — o
homem comentou, sorrindo.

— Eu tenho trinta e dois anos e sou uma mulher casada, de respeito. Portanto, é
melhor se comportar.
— Você não devia ter sorrido para mim daquele jeito, se não queria que eu me
aproximasse. Mulheres casadas, de respeito, não devem ser tão sedutoras e convidativas.

— Você me pegou de surpresa.

— Uma coisa que tenho que fazer com mais freqüência.

— E eu tenho que ser mais cuidadosa, ao que parece!

Sorrindo, ele avançou. Sophia recuou até encostar na macieira.

— Fique onde está, Wolfe!

O homem apoiou uma das mãos na árvore e inclinou-se para a frente, com os olhos
fixos nos dela.

— Pensei que estivesse sonhando, quando dei com você nesse balanço. O que veio
fazer em meu jardim, Sophia?

— Eu estava atrás de Louise. Acho que ela passou para cá. Você não a viu?

— Não. Mas, me diga, o que achou das minhas estátuas, Sophia?

— Bonitas. Comprou-as quando esteve na Itália?

— É. Fique quieta, que tem um bichinho no seu pescoço.

Inclinando-se, Louise viu o homem tirar alguma coisa do pescoço de sua mãe, depois
enfiar a mão debaixo dos cabelos dela, acariciando-lhe a nuca.

— Pare com isso, Wolfe!

Sem ligar, ele começou a beijá-la de novo. De repente, Sophia soltou um gemido e
enlaçou-o pelo pescoço, apoiando-se nele como se estivesse a ponto de desmaiar. O
homem segurou-a de encontro a si, e o beijo continuou.

Sentindo o estômago doer, Louise percebeu que ia vomitar a qualquer momento.


Muito corada, ela tremia violentamente. Então sua mãe afastou-se do homem, e ele
murmurou, num tom de voz emocionado:

— Meu amor, meu querido amor...

— Tenho que ir, Wolfe.

— Precisamos nos ver de novo, Sophia! Durante os últimos dez anos, foi raro nos
encontrarmos. Stonor a mantém fechada em casa, como se tivesse medo de que a roubem
dele! — O homem fez uma pausa, depois riu asperamente. — Eu sei de alguém que com
certeza a roubaria, se você permitisse.

— Isso acabou, Wolfe. Não tente reviver o que já morreu — disse Sophia parecendo
zangada.
— Morreu? — O homem riu de novo, mas não havia alegria em seu rosto. — Você
sabe que está mais vivo do que nunca, Sophia! Pode enganar Stonor, mas a mim você não
engana. Nós fomos feitos do mesmo molde, e eu a conheço tanto quanto me conheço. Por
Deus, Sophia, eu sei o que está pensando, o que está sentindo e até o que quer!

— Então deve saber que quero fazer Stonor feliz, dar segurança aos meus filhos e
acordar todas as manhãs em Queen's Stonor!

— Maldita Queen's Stonor! Eu seria capaz de atear fogo nela e me sentir feliz!

— Eu jamais permitiria que fizesse isso! — Sophia sorriu, mas sem a doçura de
sempre. — Eu jamais permitiria que prejudicasse ou destruísse algo meu, Wolfe, e você
sabe que nunca teria coragem de tentar.

— Você faz o que quer de Stonor, mas comigo, não.

Sophia fitou-o, em silêncio. Quando tornou a falar, foi num tom excitado e
provocante, completamente desconhecido de Louise.

— Eu posso levar você a fazer o que eu quiser!

O homem então ergueu a mão de sua mãe e beijou-a na palma, depois no pulso.

— Minha querida! Pensa que eu não sei? Como também sei que você me prende de
propósito, apesar de fingir que me liberou. Você quer todos nós: Stonor, a casa e eu. Pelo
menos a Stonor e à casa, você dá uma parte de si mesma. A mim você não dá nada, a não
ser um olhar e um sorriso, de vez em quando. É o bastante para me fazer esperar como um
cachorrinho perdido, Sophia, mas não é o bastante para satisfazer a um homem
apaixonado.

— Então me deixe, Wolfe. Quantas vezes ainda terei que lhe dizer isso?

Louise viu o homem soltar a mão de sua mãe, que se afastou a seguir. Ele a seguiu
com o olhar, a cabeça jogada para trás, de modo que os raios de sol faziam brilhar os fios
prateados, entre seus cabelos escuros. De repente, ele perguntou:

— Devo dar a Eleanor suas lembranças, Sophia? Se ela estiver sóbria o bastante para
me entender, é claro!

De imediato, Sophia virou-se para ele.

— Ah, Wolfe... Seja bom para Eleanor! Eu gosto tanto dela, e ela é a sua esposa, a mãe
de seus filhos.

— Nem todos, meus.

— Wolfe...

— Pelo menos eu não bato na minha Alice.


— Fico contente em saber.

— Ela me lembra tanto você! Toda vez que olho para ela, vejo seus traços e tenho
vontade de beijá-la. Você beija Daniel?

— Ele está tão crescido, Wolfe! Eu me sinto meio velha, quando ele se senta ao meu
lado.

— Stonor o odeia?

— Daniel irrita Stonor. Ele é muito...

— ...parecido comigo? — o homem completou cheio de ironia.

— Demais. — Sophia suspirou. — Wolfe, tente ser bom para Eleanor. Um sorriso não
custa nada. Você se casou com ela. É seu dever tratá-la com bondade, e ela merece muito
mais do que tem recebido.

— Eu sei — o homem declarou, irritado. — Mas não posso mudar minha natureza.

— Talvez ajudasse, se você fosse mais discreto com suas amantes.

— Mas que ouvidos afiados você tem!

— Bristol inteira sabe delas.

— E Stonor faz questão de que você fique sabendo de tudo que dizem por aí, é claro!

— Eu fico sabendo por outros meios. Stonor não é mesquinho. E nunca fala em você,
se pode evitar.

— Não duvido. — Wolfe riu.

— Aposto que Eleanor tem "bons" amigos, que lhe contam tudo. Se precisa mesmo
ter essas mulheres, aja com mais discrição.

— Que esposa você seria para mim, Sophia! — Ele usou um tom zombeteiro. —
Também fingiria não saber das minhas escapadas, desde que eu fosse discreto?

— Se eu fosse sua esposa, você não teria necessidade delas.

— Não. Não, minha amada, eu não teria necessidade delas. E é por isso que faço o
que posso por Eleanor. Ela tem tudo que consigo lhe dar. Mais, do que isso, não dá.

— Pelo bem dos seus filhos, você tem que tentar. Pense nos seus meninos! Já
procurou saber o que eles acham de você? Meninos adoram as mães.

— Não duvido que isso aconteça com os seus meninos, mas com os meus... acho que
não...

— Bobagem. Jerome é um amor, inteiramente devotado à mãe.


— Jerome... Ele é o mais parecido comigo. Tem os meus olhos. Sabe que foi expulso
da escola, por fumar na classe? — O homem riu. — O tolo foi estúpido o suficiente para se
deixar pegar!

Sophia riu, também.

— Ele é bem parecido com Daniel. Daniel está sempre se metendo em encrencas. Às
vezes vejo Stonor olhando para ele e tenho certeza de que está pensando que o sangue
ilegítimo é que o faz assim...

— Não há dúvida de que é. Todos os meus filhos são iguais. — Wolfe fez uma pausa,
depois acrescentou: — Eu o vejo, de vez em quando. No verão passado, vi-o num jogo de
cricket. Stonor estava com ele e me ignorou, mas eu pude constatar que somos muito
parecidos. Deus do céu, isso deve deixar Stonor louco! — disse, rindo.

— Stonor começou amando Daniel, mas à medida que ele crescia e se tornava mais
parecido com você, quase passou a odiá-lo.

— Pois eu sempre vou amar a minha Alice. Uma vez, você me perguntou se eu era
menos maduro que Stonor, porque me recusava a aceitar a menina. Ao que parece agora
estou me mostrando superior a ele, nesse assunto.

— Seus motivos são diferentes.

— São, sim. Eu a amo porque ela se parece com você. Sophia deu-lhe as costas.

— Até logo, Wolfe.

Ela passou pela cerca viva, enquanto o homem se sentava no balanço, murmurando:

— Até logo, meu querido amor...

Poucos depois, ele se levantou e foi embora. De imediato Louise desceu pela escada
de corda.

— Ei, espere...

Jerome interrompeu-se, vendo-a inclinar-se no meio do capim e vomitar. Quando ela


terminou, começou a chorar. Hesitante, o garoto aproximou-se, passou o braço em torno
dela e levou-a para a sombra de uma árvore, fazendo-a deitar-se na grama. Deitando-se ao
lado, ele se pôs a fitar o céu.

— Louise... o que foi que você entendeu, de tudo aquilo?

Ela não respondeu, continuando a chorar.

— Pare com isso, sua boba! Eu quero saber o que foi que você entendeu. Uma coisa é
certa: nós somos parentes. Seu pai deve ser alguma coisa do meu.

Louise fitou-o com os olhos nadando em lágrimas.


— Eu odeio o seu pai! Ele é um bruto e... e eu odeio ele!

— Ele é um bastardo. Eu sei, porque ouvi os criados conversando.

— O que é isso?

— Significa que os pais dele não eram casados. Eu olhei no dicionário. — Uma
expressão zangada surgiu no rosto do menino. — Ele trata a minha mãe de um modo
horrível.

— Minha mãe fará com que ele seja bonzinho para ela.

— A sua mãe é uma vagabunda — Jerome declarou, levantando-se.

Louise imitou-o, muito vermelha.

— Seu porco! — xingou, repetindo o que ouvira na cozinha.

— Beijando o meu pai daquele jeito! Flertando com ele, deixando que ele a chamasse
de "meu amor querido..." — Os olhos de Jerome brilhavam de raiva. — Quem ela pensa
que é? Mandando meu pai ser bom para a minha mãe, daquele jeito maternal... Os dois me
deixaram doente, com aqueles beijos e aqueles olhares! Vou contar a minha mãe, para ela
jogar uma garrafa nele. Uma vez ela jogou. Papai se desviou e a garrafa saiu pela janela,
mas ele ficou muito zangado.

— Sua mãe é doente. Minha mãe nunca faria uma coisa dessas. Quando meu pai se
zanga, ela só tem que sorrir e dizer "Ah, Stonor", para que ele comece a sorrir de novo e a
beijá-la.

Jerome voltou-se para Louise, furioso.

— Como ela fez com meu pai agora há pouco, não é? O que ela quis. E ele ainda
garantiu que faria tudo que ela quisesse. Detesto mulheres assim!

— Pois eu amo a minha mãe. Todos a amam! Papai, Daniel, os criados... Eles dizem
que papai é louco por ela. Ela é meiga, carinhosa, tem cheiro de perfume francês e faz um
barulhinho com a saia, quando anda. E quando ela ri, a gente também tem vontade de rir.

— Eu odeio a sua mãe.

— Você odeia porque ela não é sua mãe!

Foi nesse momento que Jerome se descontrolou e deu-lhe um tapa no rosto. Louise
ficou tão surpresa, que por um segundo continuou a fitá-lo. Depois, soluçando, correu
para o jardim da sra. Hunt, onde vários criados a procuravam.

— Querida, o que é que houve? — a mãe perguntou-lhe, assustada. — Onde é que


você esteve?

- Eu subi numa árvore, caí e machuquei o rosto!


Louise viu o alívio nos olhos de sua mãe, quando lhe contou a primeira mentira de
sua vida. Sophia abraçou-a, aconchegando-a ao corpo, e ela desandou a chorar novamente.

Capítulo XX

Para Louise, o verão de 1887 representou uma mistura de delícias e infelicidade. As


horas mais felizes foram as que passou na companhia de Daniel, que viera passar as férias
em casa. Aos dezesseis anos, ele era um adolescente alto, de pernas longas e uma voz que
vivia mudando de tom.

Edward fora passar as férias em Londres, na casa de tia Elizabeth, que tinha um filho
quase da idade dele. O convite incluía Daniel, mas o pai mandou Edward sozinho, o que
foi uma alegria para Daniel e Louise.

Quando Edward estava em Londres, Thomas, o filho mais velho de Luther Hunt, fez
catorze anos. Orgulhosos, seus pais resolveram comemorar com uma festa, para a qual os
Whitley, naturalmente, foram convidados.

Ultimamente, Louise começara a perceber que fazer parte da família Whitley, dona
de Queen's Stonor, era uma grande vantagem. Não havia quem não admirasse a enorme
casa, com suas escadarias largas, a coleção de armaduras no hall, chão de tábuas, teto alto
e móveis finos. Sophia, que pertencera à família que possuíra a casa por gerações, era
tratada quase como uma rainha. Isso, combinado com sua beleza bem conservada e a
evidente adoração que o marido sentia por ela, tornava sua posição inexpugnável.

Para a festa dos Hunt, Sophia levou Louise a um costureiro de Bristol, para fazer um
vestido. Sentada numa cadeira, Louise observava, excitada, a mãe escolher tecidos e
modelos. Ela ia completar trinta e três anos em setembro, e seu pai estava pensando em
comemorar a data com um baile, em Queen's Stonor.

— Na minha idade, não tenho mais motivo para comemorar um aniversário, Stonor
— Sophia dissera, quando ele falara nisso pela primeira vez.

— Tem, sim. Você está um ano mais linda — Stonor respondera, fazendo a esposa rir.

Louise não entendia como a mãe podia ter trinta e dois anos e ainda ser tão bonita. A
delicadeza de seus traços parecia mais pronunciada, os cabelos não tinham um só fio
branco, e os olhos continuavam brilhantes como sempre, embora já tivesse algumas
ruginhas de riso em torno deles.
Ao saírem do costureiro, Sophia anunciou que tomariam um sorvete numa casa de
chá muito elegante, que havia ali perto. Louise adorou sentar-se a uma das mesas do salão
decorado em branco e ouro saboreando seu sorvete favorito. Estava tão feliz que até fechou
os olhos por um instante, para melhor sentir o gosto do sorvete. Quando os abriu, viu uma
mulher ruiva entrando, de mãos dadas com uma garotinha.

Louise viu sua mãe desviar o olhar e surpreendeu uma expressão sombria no rosto
da mulher, quando ela olhou na direção de sua mesa. A desconhecida tinha olhos verdes e
tristes, e o rosto cortado por veiazinhas azuis.

A garotinha era mais ou menos da altura e da idade de Louise. Ela deixou cair uma
bolsinha no chão e abaixou-se para pegá-la. Vendo-lhe o rostinho, Louise percebeu, de
imediato, o quanto eram parecidas. E voltou a sua mente a lembrança de um homem
moreno, beijando sua mãe num jardim ensolarado.

Quando Sophia se levantou, Louise seguiu-a, pensando nas estranhas que vira.
Durante o caminho de volta, a mãe manteve-se em silêncio, olhando pela janela da
carruagem com ar triste. Louise achou melhor nada comentar.

A festa dos Hunt foi realizada numa tarde de verão, quente e gostosa. Os pais foram
convidados a ficar e tomar chá com o casal Hunt, enquanto os filhos celebravam num salão
de piso de mármore, de onde todos os móveis tinham sido retirados.

Ao lado de Louise, Daniel olhava com desprezo as crianças que corriam e deslizavam
pelo chão. Thomas Hunt era um garoto forte, inteligente e de caráter vigoroso. Organizava
a festa aos brados, consciente do sorrizinho irritante de Daniel Whitley.

Aos dezesseis anos, Daniel tinha personalidade difícil de ignorar. Além de bonito, era
dono de muita arrogância e orgulho, o que seus inimigos atribuíram à sua posição de
herdeiro de Queen's Stonor.

Thomas e Daniel não simpatizavam um com o outro. Ambos tinham a tendência de


dominar os companheiros, e juntos pareciam dois garanhões novos e agressivos, lutando
para ganhar a supremacia. A antipatia chegou às vias de fato, quando Thomas aproximou-
se de Louise e disse:

— Se você tocar para nós, Louie, poderemos dançar...

— O nome dela é Louise — Daniel corrigiu de imediato, não gostando de ouvir o


outro usar o apelido que sempre dera à irmã.

Thomas ignorou-o. Tomando a mão de Louise, puxou-a de lado.

— Você toca tão bem, Louie. Uma polca seria ótimo...

Nesse momento, Daniel, muito corado, agarrou-o pelo colarinho.


— Solte a minha irmã, Hunt!

Thomas olhou-o, zangado, e o empurrou. No momento seguinte os dois lutavam com


selvageria no salão. Louise, horrorizada, correu para o hall silencioso. Evitando a sala de
estar, onde os adultos tomavam chá, ela correu para a estufa de flores, que tinha o
comprimento da casa, e foi se esconder no canto mais distante, entre uma palmeira e a
parede. Desde a infância, quando costumava apanhar de Edward, tinha pavor de violência.

Durante alguns instantes ela continuou onde estava, tremendo e imaginando como
estariam os dois meninos. Embora não tivesse coragem de contar a Daniel, gostava de
Thomas. Thomas também gostava dela e vivia lhe contando coisas que não contava a mais
ninguém o que aumentava o encanto que via nele. No entanto, se fosse obrigada a escolher
entre os dois, não tinha dúvidas de que o escolhido seria Daniel.

Louise começava a se recuperar e já pensava em voltar e ver o que acontecera,


quando ouviu passos. Olhou por entre as folhas da palmeira e viu sua mãe lá. Ela era tão
linda, e aquele vestido estampado de verde e branco a deixava parecida com uma flor!

Louise estava a ponto de correr para a mãe, quando ouviu outros passos. Sophia não
se voltou, permanecendo junto a uma fileira de plantas, arrancando-lhes as folhas com
gestos nervosos.

Um mal-estar súbito tomou conta de Louise quando reconheceu o homem que


chegava. Não podia deixar que se falassem. Tinha que arranjar coragem de sair dali e
impedir até mesmo que se olhassem. Mas antes que conseguisse mover-se sua mãe falou,
sem sequer olhar em torno, como se soubesse, instintivamente, quem estava ali.

— Você não deveria estar aqui, Wolfe.

— Eu trouxe Alice para a festa do primo. Achou que eles não a convidariam? Luther
não só é meu primo, como também meu sócio em negócios.

— Volte para sua casa agora. Não podemos ser vistos sozinhos.

— Quando é que isso acontece? — ele perguntou com sarcasmo. — Algumas vezes
em vários anos. Uma palavra, um olhar. A última vez foi há dois meses, no teatro. E você
nem olhou para o meu lado, com medo de que Stortor notasse.

— Vá embora, Wolfe. Não me faça ficar zangada com você. O homem aproximou-se,
segurando-a pelos ombros e fazendo-a virar-se de frente para ele.

— Deus do céu — disse numa voz áspera. — Fique zangada o quanto quiser, mas eu
tenho que fazer isso!

No instante seguinte ele dava em Sophia um beijo igual ao que tanto chocara Louise,
antes. Sua mãe empurrou-o com as duas mãos, retorcendo o corpo, mas de repente, sem
aviso, ficou quieta, parecendo desmaiada. Então, caindo de encontro ao homem, enlaçou-o
pelo pescoço. O silêncio tornou-se tão intenso que Louise podia ouvir as batidas do
próprio coração e os pássaros cantando no jardim.

Abruptamente, sua mãe endireitou o corpo e afastou-se, respirando forte, com os


olhos azuis muito brilhantes no rosto pálido.

Os dois adultos se encararam por um longo tempo. Então, Sophia virou-se e foi
embora. O homem recostou-se numa das janelas, com os punhos apertados, e Louise teve a
horrível impressão de que ele estava chorando. Já vira Daniel na mesma atitude, lutando
bravamente contra as lágrimas. Daniel odiava todo tipo de emoção e escondia seu amor
pela mãe. Tinha também o conhecimento instintivo de que o pai não o amava.

O homem alto, de cabelos escuros, que Sophia chamava de Wolfe tinha no íntimo as
mesmas emoções selvagens que Louise sentia em Daniel, e isso a assustou.

O homem virou-se, com o rosto já totalmente despido de emoções, parecendo uma


fria máscara, e se afastou. Depois de esperar mais algum tempo, Louise saiu
sorrateiramente da estufa e voltou para a festa. Olhando em torno de si, no salão
superlotado, achou a garota que estava procurando e fitou-a com atenção. Quando a garota
retribuiu seu olhar, aproximou-se e disse.

— Você é Alice Whitley, não é?

Um brilho de curiosidade surgiu nos olhos da pequena, tão parecidos com os olhos
de Sophia.

— Sou. E você, quem é?

— Louise Whitley. Eu conheço o seu irmão Jerome. Alice sorriu, mostrando os dentes
brancos e certinhos.

— Jerome está lendo ali no canto. Ele detesta festas e só veio porque papai o obrigou.

Puxando Louise pela mão, Alice levou-a a um canto escondido por longas cortinas,
onde Jerome, sentado num sofazinho, lia um livro com desenhos de vários ossos humanos.

— O que é que você está lendo? — Louise perguntou. Jerome reconheceu-a de


imediato.

— Anatomia — disse.

— E por que está lendo isso?

— Porque vou ser um médico.

— Papai não quer deixar — Alice confidenciou. — Ele quer que Jerome entre para a
firma.
— Mas eu vou ser médico e papai que vá para o inferno! — Jerome declarou, com
aspereza. E dirigindo-se novamente a Louise, perguntou, com um brilho de frieza no olhar.
— A sua mãe está aqui?

— Está.

— O meu pai também. — Olhou para a irmã. — Vá buscar um copo de limonada


para mim, Alice.

Alice saiu e Louise sentou-se junto dele, arranjando elegantemente as saias de seu
vestido. Baixinho, ele disse:

— Descobri tudo sobre as nossas famílias.

Louise fitou-o, com medo do que estava para ouvir.

— Nossos pais são meio-irmãos. Mas meu pai é filho ilegítimo, e seu pai o pôs para
fora de casa, algum tempo atrás. Um cafajeste, o seu pai. Eles se odeiam até a morte. E por
isso que nunca se encontram, apesar de seu pai ter negócios com tio Luther. Mas, como
meu tio é sócio do meu pai, de um modo indireto eles negociam um com o outro.

Louise ficou indignada.

— Papai não é um cafajeste! E ele nunca tentou... tentou fazer com a sua mãe... o que
seu pai faz com a minha.

— Pois fique sabendo que meu pai pode conseguir a mulher que quiser, num estalar
de dedos! E a sua mãe gosta, quando ele a beija. Você viu isso tão bem quanto eu!

— Mas ele não devia fazer isso — Louise gritou, cheia de dor e vergonha. — Meu pai
ama tanto minha mãe...

— Deve ser por isso que meu pai a beija. Ele gosta de ferir os outros e sabe como
fazer isso da melhor maneira. — Uma expressão de amargura surgiu nos olhos de Jerome.
— Ele sempre magoa a minha mãe, mas um dia eu ainda vou magoá-lo.

— É por isso que não quer entrar para a firma dele?

Jerome sorriu de modo irônico.

— Eu quero mesmo é ser médico. Mas, se isso aborrece papai, tanto melhor.

Louise baixou o olhar para a ponta dos sapatos.

— Alice sabe?

— Só que somos primos e existe uma rixa entre nossas famílias. De sua mãe eu não
lhe falei...

Louise fitou-o, cheia de gratidão.


— Então, não conte, por favor...

— Acha que eu quero? Fico doente, só em pensar...

— Acho que vi sua mãe com Alice, numa casa de chá. Você não é parecido com ela.

— Nenhum de nós é. Saímos todos ao papai. — Uma expressão estranha surgiu no


rosto dele. — Menos Alice... Ela é parecida com você, não acha?

— Ela é igualzinha a mim. Nós até poderíamos passar por irmãs.

— É verdade...

Nesse momento, Daniel afastou a cortina e entrou. Estava com o rosto vermelho e um
arranhado feio, numa das bochechas.

— Ah, Daniel! — Louise exclamou. —Foi Thomas que fez isso?

— Ele está no banheiro se lavando — Daniel comunicou, sorrindo. — Arrebentei o


nariz dele!

Daniel parecia contente com a luta, e Louise lançou-lhe um olhar de censura.

— É o aniversário dele, Daniel. Você não devia ter feito isso. Daniel olhou para
Jerome, que lhe dirigiu um sorriso frio, nem um pouco amigável.

— Olá, primo Daniel.

Daniel surpreendeu-se, e Louise teve que explicar tudo a ele. Sobre a mãe, no
entanto, nada disse.

Estranhamente, Daniel simpatizou de imediato com o primo recém-descoberto. Eles


começaram uma conversa animada, sorrindo maliciosamente de algumas ilustrações no
livro de Jerome.

Louise consumiu-se em ciúme até Thomas aparecer e pedir-lhe novamente que


tocasse, para que pudessem dançar. Sentada ao piano, ela tocou uma série de polcas,
enquanto Thomas permanecia a seu lado, virando as páginas das músicas. De vez em
quando, seus olhares se encontravam e eles sorriam. Ela estava tão feliz, que nem se
lembrou de ter ciúme do irmão. Só quando parou de tocar voltou a pensar nele. Notou que
a semelhança entre Daniel e Jerome era tão grande, que poderiam passar por gêmeos,
apesar da diferença em idade.

Dias depois, quando Daniel e Louise cavalgavam pelo bosque em torno de Queen's
Stonor, encontraram-se com Jerome, num pônei preto. Ele os saudou alegremente,
abanando o boné, ao que Daniel retribuiu com um sorriso.

— O que é que ele está fazendo aqui? — Louise perguntou, surpresa.


— Jerome veio nos visitar. Afinal, Louie, não é porque nossos pais não se dão que
temos que fazer o mesmo. Eu gosto de Jerome e acho que vai ser divertido ter a companhia
dele, de vez em quando.

Louise não gostou disso, mas, à medida que a tarde passava, foi se tornando mais
descontraída na presença de Jerome. A hostilidade inicial se fora, e agora ele se mostrava
extrovertido e amigável com Daniel. Aos poucos, também ela começou a gostar dele.

Durante as semanas de férias que restavam, Daniel visitou-o inúmeras vezes. Uma
forte amizade desenvolveu-se entre os dois garotos, como se partilhassem algo mais que
um parentesco longínquo. Louise teria se sentido posta de lado, se Jerome não tivesse
adotado a mesma atitude de Daniel em relação a ela. Ao contrário de Edward, ele nunca
tentou excluí-la ou queixou-se de sua presença. Na verdade, parecia gostar de sua
companhia. Ouvindo-o falar da irmã, Alice, Louise deduziu que eles tinham um
relacionamento tão próximo quanto o dela e de Daniel.

Ficou entendido, pelos três, que eles manteriam as visitas de Jerome em segredo.
Sempre se encontravam fora de vista, e nenhum deles dizia em casa qualquer coisa que
pudesse denunciá-los. Para Louise, aquela amizade deu ao verão uma mistura de perigo e
excitamento, que o tornou especial. Ela ficou mais triste do que nunca, quando Daniel e
Jerome voltaram para a escola. Apesar de que, sozinha em sua casa grande e linda, ela via
a mãe mais vezes e a tinha só para si.

O dia de aniversário de Sophia amanheceu claro e lindo. As folhas dos carvalhos


estavam começando a amarelar, e o ar tinha um frescor delicioso. O baile daquela noite
seria o acontecimento do ano. O grande salão de Queen's Stonor fora polido até brilhar,
muitos móveis haviam sido retirados, e havia flores espalhadas por todos os cantos. Uma
orquestra viria para tocar, e vários garçons já se agitavam pela cozinha, aborrecendo e
ofendendo os criados da casa.

À medida que o dia passava, o excitamento de todos ia se tornando cada vez maior.
Sophia mandara fazer um lindo vestido de seda creme, que colava a seu corpo, como uma
segunda pele e tinha a barra das anáguas enfeitada com cetim do mesmo tom. O decote era
tão grande que Louise corou ao vê:lo. Entrando na adolescência, ela passara a encarar a
beleza de outro modo, tomando consciência do modo como o pai a fitava, quando não se
julgava observado.

Louise ouvira os pais discutindo sobre o baile durante semanas, e sabia que o motivo
da desavença entre os dois era a insistência de sua mãe em convidar o meio-irmão dele
com a esposa. Naquela manhã mesmo, escutara o pai argumentar, com violência e
amargura:
— Se você pensa que doze anos fizeram alguma diferença para ele, está muito
enganada, Sophia. Como acha que ele vai encarar esse convite, o primeiro que lhe
mandamos? O que acha que vai deduzir?

— Nós não podíamos excluir Wolfe e Eleanor, querido. Afinal você faz negócios com
a firma deles, e se convidou Luther, tinha que convidar Wolfe.

— Não vejo por quê. Não há amizade entre nós, e todos sabem disso.

— Hoje em dia, Eleanor recebe poucos convites. Acha que ela não se ressente disso?
Sabendo que todos virão para o nosso baile, ela se sentiria insultada, não sendo convidada.

— Se ela não é convidada, é por um bom motivo. Ultimamente, transformou-se num


escândalo com suas bebedeiras, e as roupas que usa são mais próprias para uma prostituta
do que para uma mulher respeitável. Deve ser por isso que ela as compra... pensando em
aborrecer Wolfe e envergonhá-lo.

— Mesmo assim, tínhamos que convidá-los, Stonor. Se bem que acho que eles não
virão. Em todo caso, Eleanor poderá mostrar a todos que foram convidados. Isso não fará
mal a ninguém.

— Ele virá, sim. Você sabe disso. E eu terei que cumprimentá-lo, na minha própria
casa, e fingir que não tenho vontade de arrebentar a cara dele!

Louise não conseguira ouvir, mais nada. A idéia de que Wolfe Whitley compareceria
à festa de sua mãe deixara-a desgostosa, mas também estranhamente excitada. Seu maior
desejo era que Daniel e Jerome estivessem ali, para poder discutir o assunto com eles.

Naquela noite, Sophia foi ao quarto de Louise antes de descer para receber os
convidados. Abrindo o leque de renda preta, ela se abanou elegantemente, sorrindo para a
filha.

— Então? Que tal estou?

— Ah, mamãe... — Louise murmurou, certa de que jamais poderia dizer à mãe o
quanto ela estava bonita.

Sophia devia ter visto a reação em seu rosto, porque sorriu-lhe com ternura e beijou-
a, antes de ir.

Mais tarde, quando a música começou, Louise escapou para a galeria superior e viu
os convidados chegando e sendo recebidos na porta, por seu pai e sua mãe. Stonor estava
muito bonito e sorria o tempo todo, apertando as mãos dos convidados e conversando,
enquanto Sophia se mantinha ao lado dele, numa pose graciosa.

De repente, Louise viu Wolfe Whitley aparecer à porta e adiantar-se para


cumprimentar seu pai. Ele o recebeu com tanta frieza, que Wolfe jogou a cabeça para trás,
com um sorriso arrogante nos lábios. Wolfe viera sozinho e Louise sentiu arder o
estômago, quando o viu aproximar-se de sua mãe.

Stonor também ficou tenso, pois não tirou os olhos sombrios do meio-irmão, quando
ele se inclinou diante de Sophia e, olhando-a fixamente, sem a menor pressa, beijou-lhe a
mão.

Tudo acabou num segundo. Wolfe Whitley retirou-se para o salão, mas deixou para o
casal e sua filha a lembrança de sua presença. Os outros convidados pareciam nada
perceber. Na verdade, todos achavam que o famoso feudo familiar, tão comentado durante
anos, chegara ao fim naquela noite.

Após a chegada de todos os convidados, a festa começou. No salão, mulheres


lindamente vestidas giravam nos braços de seus companheiros, entre as flores e o brilho
dos lustres de cristal.

Segura em seu esconderijo na galeria, Louise observava, encantada, os pares que


deslizavam pelo salão. Dois enormes espelhos pendiam das paredes, refletindo o brilho
das jóias e dos cristais. O perfume das flores espalhava-se cada vez mais, e a noite parecia
ter saído de um conto de fadas.

Então, de repente, Louise viu Wolfe Whitley caminhar em direção a sua mãe, que ria
em meio a um grupo de convidados, entre os quais estavam Luther e a esposa. Stonor
dançava com uma senhora de amarelo, e Sophia só percebeu a aproximação dele quando já
o tinha junto de si.

Nervosa, Sophia começou a se abanar, e Louise viu o brilho sedutor nos olhos de
Wolfe Whitley, quando ele lhe disse alguma coisa. Sua mãe sorriu, meneando a cabeça,
abanando-se e gesticulando.

Os olhos de Wolfe faiscaram, e mesmo daquela distância Louise sentiu-lhe a zanga.


Quando ele se afastou, havia alívio no rosto de seu pai. Obviamente, seguira toda a cena...

O intervalo para a ceia foi anunciado, Stonor e Sophia levaram os convidados para a
sala de jantar. Os músicos também pararam e foram se alimentar numa sala menor. Mais
de uma hora se passou, antes que todos voltassem e a música recomeçasse.

A atmosfera do salão havia mudado. Os homens estavam corados, e as mulheres


riam com mais facilidade. O champanhe da ceia deixara todos à vontade. A música foi se
tornando mais animada, e Stonor retirou-se com alguns negociantes, para jogar um pouco
de bridge. Sophia ficou, passando dos braços de um convidado para outro, sorrindo com
ar provocante e girando pelo salão, com uma leveza incrível para sua idade.
Abanando-se, rindo, Sophia sentou-se num intervalo entre as danças. Quando a
música recomeçou, Wolfe Withletf surgiu diante dela. Desta vez, Stonor não estava lá para
ver e ela estendeu a mão para Wolfe, aceitando o convite para dançar.

Louise foi invadida por uma onda de náusea. Sua mãe girava nos braços daquele
homem, sem nada dizer. Com uma expressão controlada, ele olhava por cima dos ombros
dela. Os que os viam na certa achavam que eles dançavam por simples cortesia, sem nada
ter para dizer um ao outro.

Para Louise, no entanto, aquela dança foi interminável. A música alegre espalhava-se
pelo ar, os espelhos refletiam o brilho e a beleza da noite, e nos braços possessivos de
Wolfe sua mãe girava, como se estivesse em transe. Louise nunca experimentara uma
emoção tão grande quanto o ódio que sentia naquele momento por Wolfe Withley. Ele
representava um perigo para ela, para seu pai e, principalmente, para sua mãe. Ele fazia
sua mãe ficar tão diferente, tão distante, como se a levasse para um mundo onde só os dois
existiam.

Num dado momento, Wolfe Withley fitou Sophia que retribuiu-lhe o olhar, com os
olhos azuis brilhando como pedras preciosas. Então, lentamente, ele baixou o olhar,
passando pelo pescoço, pelo colo e mergulhando no vale entre os seios dela. Louise quase
morreu de vergonha, mas sua mãe continuou a fitá-lo, as pálpebras semicerradas, como se
estivesse recebendo uma carícia deliciosa.

Quando a dança terminou, Wolfe levou um longo tempo para soltar Sophia. Ela
sorriu sem calor, e ele a levou de volta à fila de cadeiras arrumadas junto às paredes.
Depois, com uma ligeira reverência e, sem nada dizer, foi embora. Uma atitude rude, pois
ele devia ter se sentado, ou ido buscar um refresco para ela, ou simplesmente ficado por
ali. O fato de agir assim mostrou a Louise que havia uma grande intimidade entre ele e sua
mãe. Horrorizada, ela fugiu para o quarto, onde se escondeu sob as cobertas, trêmula,
zangada, excitada e preocupada.

O baile continuou por horas. Já estava quase amanhecendo, quando Louise ouviu a
conversa baixa e zangada dos pais.

— Você tinha que dançar com ele? Não podia recusar?

— Eu recusei uma vez. Recusar de novo seria muita indelicadeza e todos notariam.

Com todo cuidado, para não fazer barulho, Louise saiu da cama e foi para o corredor.
De lá, poderia ouvir melhor.

— Você esperou que eu saísse para dançar com ele!

— Ele esperou — disse Sophia, naquele tom que só usava quando falava com Wolfe
Withley.
— Lógico que ele esperou! Ele vem esperando há muito tempo. Pensa que não o sinto
atrás de mim, como uma sombra junto à minha sepultura? Esperando... esperando. Ele
nunca vai desistir de você!

— E nunca vai me possuir. — Ela riu. — Stonor, quando vai aprender a confiar em
mim?

— Você ainda o ama — acusou, Stonor, irritado.

— Por acaso eu já menti e disse que não? Mas não como eu amo, você, Stonor. Você
não sabe que eu não faria nada que pudesse magoá-lo? Confie em mim, querido. Eu lhe
contei que dancei com ele, porque se não contasse você ia imaginar todo tipo de absurdo...

— Não suporto a idéia de ver você nos braços dele, mesmo num salão de baile! Pensa
que não sei que isso foi mais importante para você do que quer me fazer acreditar? Você
não viu a insolência, o triunfo nos olhos dele quando olhou para mim, antes de ir embora.
Wolfe queria que eu soubesse que alguma coisa aconteceu! Queria que eu desconfiasse...
Só Deus sabe do quê!

— Nós dançamos, mais nada.

— Eu já vi você dançar com ele. Vocês dançam como se estivessem fazendo amor —
acusou Stonor.

— Você me magoa tanto quando se recusa a confiar em mim, Stonor. Se eu me


sentisse tentada a ficar com Wolfe, seria à primeira a lhe dizer.

Stonor se manteve em silêncio por um instante, depois disse:

— Em vez de ir para Cambridge, quero que Daniel vá para a universidade alemã,


Sophia.

— Stonor, Daniel é o herdeiro de Queen's Stonor! Você jurou!

— Ele não é meu filho. Cada vez que vejo aqueles malditos olhos dele, sinto vontade
de matá-lo!

— Ah, não, Stonor! — E Sophia começou a chorar baixinho, como uma criança. —
Não afaste Daniel de nós. Você jurou que a ele pertencia Queen's Stonor!

— Foi por isso que ficou comigo, Sophia? Para que seu bastardo pudesse herdar
Queen's Stonor? Você rejeitou Wolfe Withley, pensando no filho dele? Foi isso, não foi? E
eu sei, há muito tempo. Você não liga para Edward. Nunca ligou. É sempre, Daniel, Daniel,
Daniel. Até Louise gosta mais dele do que do verdadeiro irmão.

— Daniel é irmão dela. Ele é meu filho.


— E dele — Stonor completou, furioso. — Foi tudo combinado entre vocês, para
ficarem com a casa, Sophia? Vocês se mantiveram separados durante todo esse tempo, para
que Daniel herdasse a minha casa?

Pela primeira vez, Louise reconheceu uma zanga real na voz de sua mãe. — Daniel é
um Stonor. Um Stonor e meu filho. Se você o deserdar, Stonor, eu deixou você!

— Afinal chegamos a isso! Você me deixa e vai para quem?

— Você está me machucando, Stonor!

— Eu gostaria de matá-la! Na minha própria casa, deixou que ele a segurasse nos
braços... Sob o meu teto, sua vagabunda...

— Eu nunca fui infiel a você, Stonor.

— Você não lhe deu seu corpo, mas o seu coração ele sempre teve, não é? Não é?

— É — ela respondeu, com uma estranha ênfase. É, é, é...

Incrédula, Louise ouviu o som de tapas atingindo o rosto de sua mãe. Seu pai
respirava como se estivesse morrendo. Louise agachou-se no chão, trêmula, com o rosto
pálido e os olhos cheios de lágrimas. A idéia de seu adorado pai batendo em sua mãe era
apavorante. Sophia gemia baixinho, quando Louise ouviu o barulho de tecidos se
rasgando. A seguir sua mãe deixou escapar um grito. Houve uma pancada pesada, junto à
porta, depois um som inconfundível de respirações alteradas e uma luta.. O ambiente
estava carregado de emoções e ela não podia entender. Então a voz de sua mãe ressoou,
num longo suspiro:

— Stonor... Ah, Stonor...

Louise não entendia o que se passava atrás da porta fechada. Seu pai estaria tentando
matar sua mãe? Ela mordeu o lábio, apertando as mãos. Sem coragem de entrar ou ir
embora, continuou ouvindo os sons estranhos. A respiração de seu pai era rápida e
raspante. Sua mãe gemia, murmurando o nome dele. Então começou um novo som, que
deixou Louise estranhamente excitada. Nunca ouvira coisa igual. Seus pais pareciam estar
morrendo, no entanto havia um prazer intenso em suas vozes.

— Ah, meu amor — seu pai dizia. — Sophia, minha querida... perdoe-me...

Louise ouviu o som de beijos. Depois sua mãe, com alegria na voz, disse:

— Fazia tempo que você não me violentava, querido. Não demore tanto, da próxima
vez...

Por incrível que pudesse parecer, Stonor se pôs a rir.


— Deus do céu, eu devia ser fuzilado! Seu rosto está machucado, e eu rasguei esse
vestido lindo, que custou tanto dinheiro...

— Pois eu não ligo a mínima, meu tolinho cruel e apaixonado! Mas venha para a
cama e mostre o quanto está arrependido...

Louise voltou para o quarto e sentou-se na cama, com o corpo quente e coberto de
suor. Violentar. Sabia o que isso significava. Daniel e Jerome tinham lhe explicado, quando
liam sobre um caso de violação, num dos jornais de Wolfe Withley. Louise não entendera a
natureza exata do crime, mas era difícil acreditar que seu pai, sempre tão controlado e
formal, pudesse fazer uma coisa dessas com sua mãe... E ela não desmaiara nem gritara.
Na verdade, nem lutara contra ele. Depois, até lhe dissera uma série de coisas excitantes,
numa voz macia e alegre. Era como se tivesse adorado cada segundo do que acontecera,
até mesmo os tapas. Uma coisa incrível, que lhe dava uma visão inteiramente nova de seus
pais.

De repente, Louise lembrou-se de outra coisa que ouvira: Daniel não era filho de seu
pai. Ele era um bastardo... e filho de Wolfe Withley.

Louise apertou os braços em torno de seu corpo gelado. A intimidade intensa e


silenciosa entre sua mãe e aquele homem tinha uma longa história. Começara antes
mesmo do nascimento de Daniel. Ela fechou os olhos. Seria possível que seu pai estivesse
falando sério, quando dissera que deserdaria Daniel?

— Ah, meu pobre Daniel!

O outono tornou-se mais frio, aquela semana. Olhando para o passado, para aquele
verão glorioso em que ela, Daniel e Jerome tinham sido tão felizes, Louise passou a encarar
a noite do baile como um grande abismo, dividindo aquela época e a que estava para vir.
Pela primeira vez, vislumbrava os segredos ocultos por trás da fachada feliz de sua família,
e isso mudara todo o seu modo de encarar a vida.

No dia primeiro de outubro, Stonor, Sophia e ela saíram para um passeio à cavalo,
antes do café. A mãe cavalgava alegre, rindo do marido para provocá-lo. Para Louise, foi
um alívio ver a velha adoração nos olhos de seu pai, enquanto Sophia disparava à frente
deles, chamando-o por cima do ombro. Tudo estava bem, de novo.

Então a égua de Sophia teve um acesso de rebeldia e tomou a rédea, fugindo ao


controle dela. Stonor deixou escapar um grito de horror.

— Sophia, meu amor...

Havia pavor estampado no rosto dele, quando esporeou o cavalo e saiu em


perseguição da esposa.
— Segure as rédeas com força, Sophia! Tente fazer com que ela volte para cá...

Louise, alarmada, observava a tudo de sua própria sela. Seu pai alcançou o riacho
que mantinha as vacas fora do terreno que rodeava a casa. Em vez de passar pelo portão,
como a égua de Sophia fizera, resolveu ganhar tempo e saltar a cerca, um pouco antes.
Louise gritou, quando viu a montaria cair na água. Um grito de Stonor ressoou ao mesmo
tempo, mas foi silenciado quase que de imediato.

Louise disparou para a frente, passou pelo portão e saltou do cavalo. Sua mãe olhou
para trás, entendeu o que acontecera e começou a gritar:

— Não, Stonor, não... Não, meu Deus...!

Capítulo XXI

Stonor jazia no quarto às escuras, o corpo quebrado imobilizado sob os lençóis. "Três
dias", Sophia pensou.

Três dias e três noites de desespero, em que Stonor não falara, não se movera, nem
mostrara sinais de voltar a si. Três dias e três noites em que ela não comera nem bebera;
limitando-se a ficar ali, junto dele, sentada numa cadeira. Nada que os médicos, as
enfermeiras, os criados, Louise e os filhos disseram conseguira penetrar em sua silenciosa
concentração no marido.

Louise, que tudo acompanhara, tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Desde o
momento em que haviam trazido o corpo ensangüentado de seu pai para casa, sua mãe
estava naquele estado de loucura, onde ninguém podia atingi-la, Os meninos tinham
vindo às pressas do colégio, mas nem Daniel conseguira fazê-la ouvir. Todo o seu ser
estava concentrado no marido.

Minutos atrás, Daniel e Edward, cansados de esperar na casa silenciosa, tinham saído
para cavalgar. Louise preferira ficar junto da mãe, a quem agora observava com amor,
compaixão e medo. A mulher forte, gentil e sorridente de antes estava totalmente imersa
na dor que a consumia, dando-lhe um aspecto de abatimento e cansaço.

A porta abriu-se. Virando-se, Louise viu que uma das criadas a chamava, com gestos
excitados. Mas antes que pudesse atendê-la, o homem que estava no corredor empurrou a
criada de lado, com os olhos verde-azulados já fixos em Sophia.
Por alguns instantes, Wolfe nada fez, limitando-se a observá-la. Louise fez sinal à
criada para que saísse e fechasse a porta. Estava zangada. Como se atrevia ele a vir à casa
de seu pai?

Wolfe cruzou o quarto com passadas longas e elegantes, segurou sua mãe pelos
ombros, obrigou-a a se levantar e envolveu-a nos braços, acariciando-lhe o corpo esbelto.
Louise esperava que a mãe o empurrasse, mas o que viu foi Sophia estremecer e fechar os
olhos, apoiando-se nele como uma criança cansada.

— Eu não vim antes porque não estava em Bristol, quando aconteceu — ele disse,
fitando o corpo imóvel do irmão. — Fiquei sabendo que os ferimentos de Stonor são sérios.

Pela primeira vez Sophia falou, e Louise não pôde evitar uma certa gratidão pelo
inimigo de seu pai.

— Ele foi muito pisoteado... A cerca junto à água... Exatamente onde papai morreu...
a culpa é minha, de novo... Se ele morrer, eu matei os dois.

— Se Stonor morrer por você, morrerá feliz — Wolfe Withley declarou, sem ironia.
— Pare de se culpar, Sophia. Foi um acidente. Ele ainda está vivo, e os médicos fazem
maravilhas, hoje em dia. Vamos chamar os melhores.

— Eles me disseram que, se Stonor recuperar a consciência, poderá ficar com dano
cerebral, paralisia ou as duas coisas. Os olhos também... Ele pode ficar cego. Eles não
sabem ao certo, mas será o fim de tudo para Stonor. Cego, paralítico... que tipo de vida
teria o meu pobre querido?

Wolfe abraçou-a com mais força.

— Ele nunca desiste, Sophia. Lembre-se disso. A tenacidade de Stonor sempre lhe
valeu muito, e valerá um pouco. Se ele acordar e a vir ao lado, lutará com unhas e dentes
para viver. Você sabe disso.

Sophia deixou escapar um soluço abafado.

— Por que acha que não saí daqui, todo esse tempo?

— Sem comer, beber ou dormir. Isso é tolice, Sophia. Não fará nenhum bem a Stonor,
se adoecer também. — Ainda abraçando-a, Wolfe olhou para a garota silenciosa, que os
observava. — Louise, sente-se aqui com o seu pai. Vou providenciar para que sua mãe
coma e descanse um pouco. Se precisar de alguma coisa, chame a enfermeira. Se seu pai
acordar e chamar por.sua mãe, segure a mão dele e tente mantê-lo acordado, até ela
chegar.

— Não, Wolfe — Sophia protestou, lutando para se libertar dos braços dele. — Não
vou sair daqui.
— Você vai fazer o que eu disse, Sophia.

Tomando-a pelo braço, Wolfe saiu do quarto. Louise sentou-se na cadeira em que sua
mãe estava, observando seu pai. Bandagens ensangüentadas cobriam-no da cabeça aos
pés. Se ele soubesse que a esposa fora retirada dali à força, pelo homem que mais odiava
no mundo, com certeza não estaria tão quieto e imóvel. Invadida por uma onda de
compaixão, Louise inclinou-se e colocou a cabeça sobre o travesseiro, junto a dele.

Ignorando os protestos de Sophia, Wolfe levou-a para o quarto e chamou uma das
criadas, que atendeu de imediato, com um misto de curiosidade, fascinação e susto.

— Traga uma refeição leve para sua patroa. E um copo de leite, também.

A criadinha já ia se retirando, quando ele acrescentou:

— E uma garrafa de brandy.

Sophia lutou para se sentar, mas Wolfe a empurrou de volta ajoelhando-se na beirada
da cama e segurando-a no lugar. Zangada, ela tentou empurrá-lo. Foi quando ele inclinou
a cabeça e começou a beijá-la com uma brutalidade que de início despertou resistência
nela, mas que depois foi enfraquecendo, até fazê-la aceitar a longa e ardente carícia.

Afinal, Wolfe soltou-a. A palidez desaparecera do rosto de Sophia. Ela estava corada
e com uma expressão vidrada nos olhos azuis.

— Eu não teria feito isso, se você não tivesse me obrigado. Pelo amor de Deus,
Sophia! Faça o que eu lhe digo! Stonor vai precisar muito de você, quando recuperar a
consciência. Se você não se alimentar, não terá condições de ajudá-lo.

Ela se submeteu, como se aquela luta apaixonada entre os dois tivesse satisfeito uma
necessidade de sua parte. Wolfe lançou-lhe um olhar repleto de ternura.

— Vou lhe fazer companhia, enquanto você come. Depois, quando estiver dormindo,
ficarei com Stonor.

Shopia fitou-o, surpresa, e ele fez uma careta.

— Pelo amor de Deus, ele é meu irmão... Podemos nos odiar, mas o maldito laço de
sangue é difícil de ser quebrado.

Ela então, sorriu, um sorriso doce e íntimo, que encontrou eco nos lábios dele, e uma
compreensão silenciosa os uniu.

A criada não tardou a chegar com uma bandeja. Wolfe dispensou-a e pôs-se a
alimentar Sophia na boca, como se fosse uma criança. Ela tomou o caldo de carne sem
vontade. Fazia tanto tempo que não comia que perdera o apetite. Wolfe forçou-a a comer
também um pouco de arroz e frango, terminando a refeição com um copo de leite, ao qual
acrescentou uma boa dose de brandy. Quando ela se recostou nos travesseiros, cobriu-a e
beijou-a gentilmente nos lábios.

— Durma, agora, minha querida. Se houver a menor mudança no estado dele,


prometo que a chamo de imediato.

— Não se sente muito perto dele, Wolfe — Sophia pediu, com o olhos já se fechando.

— Não, eu vou ficar de longe.

Wolfe sabia que ela temia que Stonor, vendo-o no quarto, sofresse um ataque de
ciúme e piorasse, em vez de melhorar.

Louise ainda estava com a cabeça junto à do pai, quando Wolfe entrou no quarto. Ela
se sentou, depressa, e ele lhe deu um sorriso terno e gentil, indo acomodar-se fora do
campo de visão de Stonor.

Louise estava confusa. O que deveria fazer? Ignorá-lo? Depois de alguns minutos de
silêncio, no entanto, o quarto adquiriu uma atmosfera tranqüila. Os dois observavam
Stonor Whitley com tanta ansiedade, que pareciam não ter consciência de não estarem a
sós com ele.

A babá Dorcas encontrou-se com Daniel e Edward na escada, quando eles voltavam
do passeio e censurou-os por terem saído.

— Seu pai pode morrer a qualquer momento... Edward, você está com cara de quem
vai vomitar de novo. Lave o rosto e vá se deitar por meia hora.

Desde que chegara, Edward vomitara três vezes. Daniel percebera, surpreso, que o
irmão amava profundamente o pai. Que o pai sempre amara Edward, ele sabia, mas que
Edward retribuísse esse amor, era novidade.

Edward voltou-se com raiva para a babá, que durante toda a sua infância, fora a
pessoa mais amada e importante.

— Não posso me deitar, quando meu pai está morrendo!

— Bem... ele não piorou — ela admitiu, corando. — Eu só estava preocupada... Vá se


deitar, Edward.

O rapaz queria discutir, mas sua náusea aumentou e ele correu para cima. Dorcas
seguiu-o com o olhar,

— Pobre garoto... e aquele homem aqui dentro, bem agora... Que insolência, a dele!
Entrando como se fosse dono da casa... e dela também, levando-a para o quarto,
alimentando-a como se fossem casados... Graças a Deus eles não são! A pobre mulher que
se casou com ele tem sofrido tanto!
Sem uma palavra, Daniel voltou-se e caminhou para o quarto do pai.

Wolfe estava sentado numa cadeira, com as pernas cruzadas e brincando com a
corrente do relógio, presa a seu colete. Ele não se traiu por nenhum gesto ou olhar, mas
dois pares de olhos azul-esverdeados examinaram-se com superioridade.

Louise virou-se nesse momento, e seu coração começou a bater depressa, de forma
atordoante. Pai e filho! Bastava fitá-los, para se descobrir a verdade.

Wolfe estava com trinta e cinco anos. O garoto magro e arrogante de vinte anos atrás
transformara-se num homem rijo, de corpo bem feito e enorme experiência. Anos de vida
intensa, ambição e aprendizado tinham-lhe transformado o rosto numa máscara de
orgulho e arrogância suavizada apenas por um humor zombeteiro. Seus ombros estavam
mais largos, e o corpo, mais atraente. Até os fios brancos, em meio aos cabelos escuros,
aumentavam-lhe o charme.

Daniel jogou os ombros para trás, mantendo ereto o corpo de garoto. Seus cabelos
pretos estavam despenteados pelo vento, e o rosto, muito pálido, não tinha nada da
autoconfiança de Wolfe. Ele fitou Wolfe com frieza, exibindo nas feições vulneráveis todo o
orgulho de seu nascimento e posição.

— Foi muita bondade sua vir saber da saúde de meu pai, senhor, mas nós não
queremos tomar o seu tempo.

Se ele esperava insultar Wolfe, falhou redondamente. Recostando-se na cadeira, o


olhar malicioso, Wolfe sorriu com todo o seu charme.

— Eu vou ficar aqui até meu irmão dar sinais de vida.

Daniel corou.

— Meu pai não o queria nesta casa, quando podia falar por si mesmo. Agora que não
pode mais, eu falo por ele: saia da minha casa!

Os lábios de Wolfe curvaram-se como se ele estivesse adorando a cena, mas seu olhar
zombava do garoto.

— E como é que pretende me forçar a sair, Daniel?

— Vou mandar os criados jogarem-no na rua — Daniel falou, entre os dentes


cerrados.

Nesse momento, Louise levantou-se e correu para ele, segurando-o pelos braços.

— Não, Daniel! Por favor, não brigue com esse homem.

Ela estava com medo. Medo de que Wolfe Withley contasse a Daniel o que ele jamais
deveria saber.
— Papai não haveria de querê-lo aqui, Louise.

— Como sabe o que meu irmão haveria de querer ou não? Meu rapaz, você ainda
tem muito que aprender sobre a natureza humana.

— Eu sei que ele odeia o senhor — Daniel retrucou. — Exatamente como sua esposa
o odeia. E Jerome também.

Wolfe endireitou-se bruscamente, enfrentando o garoto.

— O quê?

Sentindo a aspereza na voz dele, Louise percebeu que a idéia de ser odiado pelo
próprio filho magoava aquele homem. Virando-se, ela o fitou preocupada, dividida entre o
medo e a piedade. Wolfe percebeu seus sentimentos e ergueu as sobrancelhas, com ar
especulativo.

Daniel era a imagem do ódio e do orgulho juvenis. Louise abraçou-o, mantendo-o


imóvel, enquanto implorava mudamente a Wolfe que saísse dali, sem nada dizer. Ele
decifrou facilmente as expressões que passavam por seu rosto pálido e jovem.

Então a porta se abriu e Sophia entrou, corada pelo sono, com os cabelos arrumados
e o vestido trocado. Ela lançou um olhar a Stonor e suspirou. Só aí notou a atmosfera tensa
entre os outros três.

— Daniel e Louise — disse em tom baixo, mas firme —vão se trocar para o jantar.

— Mamãe, a senhora sabe que papai não haveria de querer esse homem na nossa
casa — Daniel argumentou, embora num tom bastante suavizado pelo amor que tinha por
ela.

— Eu cuido disso, Daniel.

Ele saiu com relutância, arrastando os pés. Louise também se sentia assim, e olhou,
amedrontada, da mãe para Wolfe Whitley. Indo até a porta, Sophia fez o filho inclinar-se e
beijou-o de leve.

— Seja um bom menino, Daniel. De agora em diante, vou precisar muito da sua
ajuda... Mostrou-me que posso confiar em você.

Daniel sorriu, deliciado com a confiança da mãe. Quando a porta se fechou atrás dele,
e de Louise, Sophia virou-se para Wolfe, e ambos trocaram um longo olhar.

— Bem, Sophia, se eu tenho que ir, é melhor ir logo. — Wolfe se levantou. — Queria
estar aqui, para o caso de você precisar de mim, mas já que é a meu filho que pedirá ajuda,
não vou insistir.

Sophia sorriu, com os olhos nadando em lágrimas.


— Sinto tanto que ele tenha falado com você daquele jeito, Wolfe...

— Ah, não se preocupe com isso! Eu não liguei. O garoto saiu a mim, e eu o entendo.
Na verdade, tenho orgulho dele. — De repente, uma nova expressão surgiu no rosto de
Wolfe. — Sophia, eu não sei como, mas eles sabem.

— Quem sabe o quê?

— Daniel conhece meu filho mais velho o bastante para me dizer que Jerome me
odeia. Não é novidade para mim, mas prova que há uma certa intimidade entre eles.

— Eles se conheceram na casa de Luther, e não é de se admirar que alguns segredos


de família tenham escapado.

— Não, é mais do que isso. Louise me olha de um jeito tão estranho... Como se
estivesse preocupada, ansiosa, desconfiada. Ela sabe do que se passa entre nós, Sophia.

— Louise?! Não pode ser! Como ela poderia ficar sabendo de uma coisa dessas?

— Se bem me lembro, ela tem ouvidos afiados. E é quieta e pensativa, não uma
ciganinha selvagem como você era, meu amor. Ela é uma estranha mistura de Stonor e
você...

Sophia sorriu com ternura.

— Ah, que ela é filha de Stonor não há a menor dúvida!

— Mas, que droga, eu sei disso!

— Você está imaginando coisas, Wolfe. Louise ama Daniel e provavelmente ficou com
medo de que você se zangasse com ele.

— Pode ser... Mas eu juraria que ela estava amedrontada, quando ele me enfrentou
como um galinho de briga.

— Ela e Daniel sempre foram muito unidos, e essa é uma das razão pelas quais
Stonor se ressente tanto dele. Pode parecer tolice, mas acho que ele tem ciúme de nossa
filha, por gostar tanto do irmão. Ele olha para eles e vê...

— Vê nós dois, minha querida — Wolfe completou, com um sorriso estranho. —


Louise é a sua imagem, e Daniel é a minha. Não precisa me dizer por que Stonor odeia vê-
los juntos. O amor que eles sentem, um pelo outro, deve fazê-lo se lembrar de nós, a todo
momento. — Inclinando-se rapidamente, ele a beijou na boca. — É melhor eu ir, antes que
Daniel volte para me insultar mais um pouco. Os seus negócios estão bem, Sophia? Se
houver alguma coisa que eu possa fazer, nesse sentido...

— O contador de Stonor está cuidando de tudo. E quando ele melhorar... —


interrompeu, os olhos nadando em lágrimas.
— Ele vai melhorar! — Wolfe garantiu. Abriu a porta e virou-se para fitá-la, sem
notar que Daniel continuava no corredor e o observava com desprazer. — Se precisar de
mim, minha querida, é só mandar me chamar que eu virei, de dia ou de noite. Tem certeza
de que os médicos de Stonor sabem o que estão fazendo? Eu posso mandar vir um
especialista de Londres...

— Nós estamos com o melhor, e ele disse que a única coisa a fazer é esperar.

— Stonor vai melhorar, Sophia. Você tem que acreditar nisso. Nós dois o conhecemos
e sabemos que ele não morrerá, se achar que assim estará deixando você para mim. Ele
lutará com unhas e dentes para não morrer, desde que você esteja a seu lado, para fazer
essa luta valer a pena.

— E eu estarei, Wolfe!

— Pensa que por acaso cheguei a duvidar disso?

Virando-se para sair, Wolfe deparou com Daniel. Ambos se olharam por um instante.
Então, despedindo-se do filho com um gesto casual, Wolfe se foi.

Daniel entrou no quarto e fitou a mãe com olhos acusadores, subitamente adultos.
Por alguns segundos ela retribuiu o olhar com o calor maternal de sempre. Depois,
notando-lhe a atitude, suspirou e baixou a cabeça. Daniel avançou até parar diante dela, e
Sophia inclinou-se, pousando a cabeça no ombro dele, a imagem da fragilidade feminina.
Zangado, Daniel ainda resistiu por um instante, mas logo a envolveu nos braços,
segurando-a de encontro a si.

— É tão bom você estar aqui, Daniel. Tem sido tão difícil agüentar tudo, sozinha...

— Eu vou cuidar de você, mamãe.

O amor e o orgulho iluminavam o rosto de Daniel. Ela nunca o fizera sentir-se tão
adulto e forte. E ele queria protegê-la, guardá-la, tirar-lhe o peso dos ombros. Pensando
que a mãe precisaria cada vez mais dele, esqueceu-se da insolência com que Wolfe Withley
a tratara e da raiva que sentira por ela, por permitir que isso acontecesse. Naquele
momento, só tinha consciência da fragilidade dela e do fato de que precisava de sua ajuda.

Durante aquela noite, o estado de saúde de Stonor mudou. Ele lutou contra a
escuridão que o envolvia, conseguiu abrir os olhos e viu Sophia a seu lado, segurando sua
mão. Logo atrás, Daniel, Louise e Edward fitavam-no, cheios de alegria e alívio. Depois de
passar os olhos por eles, com um leve sorriso nos lábios, voltou-se novamente para a
esposa e suspirou, movendo fracamente a mão que ela segurava.

— Sophia — murmurou. — Meu amor...

— Meu querido — ela respondeu, inclinando-se e beijando-o na boca.


Stonor fechou os olhos, voltando à escuridão com um suspiro. Um grito de medo saiu
dos lábios de Louise, e Sophia virou-se para ela.

— Ele não vai morrer, Louise. Só está cansado e precisa dormir. Vão para a cama,
todos vocês. Eu fico com ele.

— Você precisa descansar, mamãe — disse Daniel. — Deixe, que eu faço companhia a
papai.

— Esta noite não, Daniel. Eu dormi à tarde e estou descansada. Amanhã você fica
com o seu pai.

Daniel sorriu, aceitando, e os três saíram. Edward ainda se voltou, a tempo de ver a
mãe inclinar-se e beijar os lábios pálidos do marido.

Ele saiu, de cara fechada. Amava o pai com um amor sombrio e silencioso, que
escondia de todos com medo de ser motivo de riso. Sempre sentira que o pai era a única
pessoa que realmente o amava. Louise lhe roubara Daniel, e por isso a odiava. Só o pai
sorria para ele daquele jeito especial. Até sua mãe, tão boa e gentil, amava mais Daniel e
Louise, e ele se sentia um estranho e não querido no seio da família.

Isso começara há muitos anos. Tinha ciúme de Daniel, porque ele herdaria Queen's
Stonor. De sua mãe, porque o pai a amava mais do que tudo no mundo. De Louise, porque
ao nascer ela terminara com seu reinado na ala infantil, e logo arrebatara Daniel. Em seu
subconsciente, intuía que a preferência de seu pai era por ele, e esse era seu único consolo.
O pai era seu... No entanto, era a mãe que tinha o direito de passar a noite ao lado do pai,
protegendo-o da fronteira entre a vida e a morte.

Excluído, infeliz e mal-humorado, Edward foi para a cama. Seus olhos cinzentos
tinham a mesma tenacidade dos de Stonor, ao fitar a escuridão.

Seu pai não podia morrer. Porque, se isso acontecesse, ele ficaria realmente sozinho.
Não; seu pai não podia morrer!

À medida que o outono passava, foi se tornando claro que Stonor não morreria. A
vontade de viver puxara-o do túmulo, mas não poderia restaurar os músculos de seus
membros despedaçados. Ele estava parcialmente cego de um olho, embora pudesse
reconhecer as pessoas e ler, com a ajuda de uma lente de aumento. Mas não podia se
mover, e a fraqueza e a inatividade foram tornando seu corpo cada vez mais magro e
descolorido.

— Ele ficará paralítico o resto da vida — afirmou o médico de Londres. — A


princípio, pensei que nem fosse se recuperar, mas ele é um homem de muita força de
vontade. A senhora precisa encarar os fatos, sra. Withtley. Seu marido não sairá mais dessa
cama. Todo tipo de preocupação deve ser evitado, pois o coração dele não agüentaria. Ele
deve descansar o dia inteiro, pelo menos, durante os dois primeiros meses.

Sophia mesma contou a verdade a Stonor. Ela se sentou na cama, segurando-lhe as


mãos e fitando-o com amor, e Stonor preparou-se para agüentar o que ia ouvir. Mesmo
assim, não pôde conter um grito, que sufocou logo, apertando os lábios trêmulos.

— Você está vivo, meu querido — ela sussurrou. — Isso é mais do que esperávamos,
a princípio. Pelo menos, estaremos juntos.

— Por quanto tempo, Sophia? Quanto tempo vai agüentar conviver com um homem
que nem poderá dormir com você?

— Por quanto tempo eu viver. Ah, Stonor, você suportou tudo que eu lhe impus,
durante os primeiros anos de nosso casamento. Acha que eu sou menos capaz de amar do
que você?

— Você nunca me amou como eu a amo. Durante aqueles anos, eu satisfiz minhas
carências beijando suas mãos ou olhando-a, porque até a menor migalha de consolo me
bastava. E se a tenho até hoje comigo, é porque você quer Queen's Stonor para seu filho.

— Não!

— Está bem. Você ficou em parte porque achava nossas horas na cama satisfatórias.

Sophia levou a mão dele à boca, beijando e acariciando-a com os lábios.

— Você é um amante tão excitante, Stonor, principalmente quando se torna violento.


Não é capaz de ver o quanto eu o quero?

Ele prendeu a respiração, os olhos faiscando.

— Sophia...

— Acho que sempre quis você. Pelo menos, desde aquele dia em Kew, quando você
me beijou e me acariciou o corpo. Fiquei chocada, mas gostei tanto... E depois que Daniel
nasceu, eu me vi desejando que me tocasse até com mais intimidade...

Uma expressão estranha surgiu no rosto de Stonor, enquanto ambos se lembravam da


noite em que ele substituíra Daniel nos seios dela, ansioso para ajudar e desejando
violentamente desfrutar-lhe o corpo.

De repente, Sophia corou, e Stonor riu.

Daniel, entrando no quarto, levou um choque ao ouvir o riso do pai. Era a primeira
vez, em semanas; que Stonor dava mostras de não sentir dor.

Sem notar a presença do rapaz, aquecido pelas lembranças do passado, Stonor


ergueu a mão e passou-a pelos seios da esposa.
— Nós encontraremos outros meios, meu amor... — Sophia sussurrou, com voz não
muito firme.

— Jure que não irá para ele, mesmo que eu morra. — Stonor exigiu, com os olhos
escurecidos pelo ciúme.

— Eu juro.

Stonor suspirou.

— Obrigado, Sophia.

Alarmada pela palidez e abatimento no rosto dele, Sophia avisou:

— Mas isso não significa que você pode deixar de lutar pela vida, Stonor. Se quer me
conservar, tem que continuar vivo.

Stonor não pôde deixar de rir.

— Ah, minha querida! — exclamou, enquanto ela se inclinava para beijá-lo.

Daniel retirou-se em silêncio e foi para a sala de estar, onde Louise escrevia cartas de
agradecimento em resposta aos muitos votos de boa recuperação que a família recebera,
logo após o acidente de Stonor.

— O que foi? — ela perguntou alarmada, assim que o viu. — Papai...?

— Não, ele está bem. Louie... você se lembra do que Jerome nos contou, sobre o
motivo da briga entre as nossas famílias?

— Lembro...

— Pois eu acho que o motivo é bem mais profundo que aquilo. Ouvi papai e mamãe
conversando, e seria capaz de jurar que ele estava com ciúme do irmão, por causa de
mamãe. Você acha que eles brigaram por causa dela? Será que Wolfe Withley também
estava apaixonado por ela, antes que se casasse com papai? Ele a trata com tanta
insolência, como se... — Daniel apertou os lábios, zangado.

— Ele é sempre assim. Esse é o jeito dele.

— Não, a coisa não é tão simples assim. Papai a fez jurar que ela não iria para... esse
sujeito, se ele morresse.

Louise empalideceu.

— E ela jurou?

— Jurou, Louise, você sabe de alguma coisa! E vai me dizer. O que há entre esse
homem e nossa mãe?
Louise hesitou, sem saber o que falar. Daniel esperou por alguns momentos, depois
ameaçou com amargura:

— Se você não me disser, vou perguntar a Jerome. Aposto que ele sabe. Ele sempre
sabe de tudo. Acho que faz a mãe falar, quando ela está bêbada. Jerome me contou que,
quando está assim, insulta o pai dele, ameaça-o com uma série de coisas... Deve ser
terrível! Ele descobriu a história da inimizade entre nossas famílias, quando Eleanor estava
bêbada demais para saber o que dizia. Só Deus sabe o que mais ele descobriu. Eu vou lhe
perguntar...

— Não! — Louise gritou, amedrontada. — Por favor, Daniel, não pergunte a


ninguém. Não mexa nessas coisas...

— Ainda não sei como, mas eu vou descobrir.

— Não, Daniel. Será muito melhor se você não souber.

— Isso, a única pessoa que pode julgar sou eu. Dando-lhe as costas, Daniel saiu do
quarto. Dez minutos depois, Louise o viu cavalgando em direção aos portões da
propriedade. Foi um alívio quando ele voltou, pensativo e mal humorado. Graças a Deus,
Jerome ainda estava na escola, e quando Daniel o encontrasse de novo, já teria se
esquecido das perguntas que desejava fazer.

O outono cedeu lugar a um inverno frio e cinzento. Aos poucos, Stonor foi
recuperando um pouco de energia suficiente para falar e ler. O Natal estava perto e os
primeiros flocos de neve caíram sobre Queen's Stonor, pintando tudo de branco.

Foi um Natal sem alegria. Eles tiveram a árvore, os presentes de costume e a ceia
habitual, mas a ausência de Stonor lançou sobre todos uma sombra. Sophia logo deixou os
filhos para fazer companhia ao marido, e os três passaram o resto do tempo jogando cartas,
acusando-se de trapaças e discutindo.

Todas as manhãs, Edward passava uma hora lendo as notícias econômicas para
Stonor. Para ele, era uma alegria partilhar o interesse do pai pelo mercado de ações. Stonor
sorria-lhe de tempos em tempos, feliz por tê-lo junto de si, e ele retribuía com um olhar
possessivo.

Vendo-os juntos, Sophia começou a notar o quanto eram parecidos. Ela gostaria de
ter amado Edward tanto quanto Louise e Daniel, mas a natureza estranha e arredia do
garoto tornara isso difícil. Stonor, no entanto, dava-se bem com Edward e ela sugeriu que
ele subisse todas as noites, para jogar xadrez com o pai.

Um brilho de gratidão surgiu nos olhos de Edward, que se virou para Stonor. Mas
Stonor olhava para Sophia, com ar de adoração, e achando que ele nem ouvira, Edward
apertou os lábios, enciumado. Nesse momento, Stonor fitou-o e, percebendo o que ele
sentia, declarou:

— Eu gostaria muito que você viesse, Edward. Medir forças com você vai manter
meu cérebro funcionando.

Quando Edward saiu, pisando em nuvens, Stonor disse a Sophia:

— Você é um anjo, minha querida. Eu me curvo diante de você. Ela o entendeu. O


fato dele não gostar de ter Daniel junto de si, preferindo Edward, tinha que ser aceito.
Além disso, Edward podia ajudá-lo muito.

Edward esteve sempre junto do pai, durante as férias de inverno, e o relacionamento


entre os dois aprofundou-se. Como não podia deixar a cama, Stonor deu a Sophia uma
procuração para tratar de seus negócios, e todas as semanas ela ia a Bristol, falar com o
contador-chefe. Como nada entendia de negócios, Sophia deixava tudo aos cuidados do
contador, e só fazia a viagem semanal para poder dizer a Stonor que tudo ia bem.

Na hora de voltar para a escola, Edward mostrou-se arrasado. Para facilitar a


separação, Stonor sugeriu-lhe que escrevesse sempre que possível.

— Vou me aborrecer tanto nesta cama, meu filho, que será uma delícia ter as suas
cartas para ler.

Ele não fez tal pedido a Daniel, o que agradou Edward.

Daniel não tivera oportunidade de ver Jerome, naquele Natal. Devido à doença de
Stonor, Sophia não levara os filhos às festas usuais daquela época, e o único outro ponto de
encontro era a casa de Wolfe, em que Daniel não queria nem pensar. Assim, ele voltou aos
estudos ainda sem saber por que Stonor parecia não gostar dele, preferindo Edward.

Quando os rapazes se foram, a casa entrou num ritmo tranqüilo de vida, que girava
em torno da cama de Stonor. Incapaz de se vestir ou mover sozinho, ele tinha uma
enfermeira para ajudá-lo, o que muito lhe feria o orgulho. Ele gostava de ter Sophia junto
de si o tempo inteiro, mas, nesses momentos, mandava-a sair, seu amor próprio jamais
permitiria que ela o visse desamparado como uma criança nas mãos daquela mulher, que
o lavava e trocava com fria eficiência.

À medida que as semanas passavam, Stonor sentia cada vez mais sua fraqueza física.
O fato de estar recuperando a saúde, em outros pontos, tornava ainda mais intolerável essa
conscientização. Às vezes, ele lamentava não ter morrido, mas bastava imaginar Sophia
nos braços de Wolfe, para que se consumisse de ciúme e vontade de viver.
Capítulo XXII

Numa noite fria de fevereiro, os armazéns Whitley foram queimados até o chão por
um vigia bêbado, que deixou cair um lampião a óleo sobre um fardo de algodão. O
homem morreu, e quando o corpo de bombeiros chegou, o fogo já crescera de tal modo,
que eles nada mais puderam fazer, a não ser observar de uma distância segura.

No dia seguite, Sophia ficou sabendo que o seguro que cobria os armazéns não era
suficiente para compensar a perda de mercadorias sofrida. O contador-chefe de Stonor
ficara com uma parte do dinheiro que deveria ter pago um seguro maior, depois
armazenara uma carga de bens valiosos, recém-chegados do estrangeiro. A firma perdera
uma soma enorme, de uma só vez, e o gerente do banco, que Sophia procurou
discretamente, não quis lhe emprestar o dinheiro necessário para fazer frente ao prejuízo.

Só então Sophia percebeu em que equilíbrio delicado estivera a fortuna da família,


durante todos aqueles anos. Stonor gastara muito com a reforma de Queen's Stonor e a
abertura da filial em Bristol, e o incêndio daquela noite fora o golpe final à estabilidade
financeira da família.

Sophia nada disse a ele, pois adotara a regra de poupá-lo de tudo que pudesse
causar-lhe aborrecimentos. Stonor ficou sabendo do incêndio, mas pensou que o seguro
cobrisse tudo.

Desesperada com a situação, Sophia acabou pedindo dinheiro emprestado a uma


financeira especializada nesses assuntos e hipotecado Queen's Stonor. O contador-chefe foi
simplesmente despedido, pois, se o processasse, Stonor ficaria sabendo de tudo. Assim, ela
disse a ele que o homem recebera uma oferta melhor e que, dali em diante, cuidaria
sozinha da firma, tendo-o como conselheiro. Para sua surpresa, Stonor aceitou sua decisão,
sem protestos. Só depois ela percebeu que ele tinha esperanças de controlar a firma da
cama, através dela.

Todas as noites eles examinavam os papéis que ela trazia para casa, e Stonor lhe dizia
com que firmas fazer negócios e quanto pagar por cada item. Sophia era inteligente e
aprendeu rápido, mas a experiência de Stonor era enorme. Juntos eles recuperaram as
finanças da firma, sem que ele jamais ficasse sabendo da grande dívida que tinham ou da
hipoteca que pesava sobre Queen's Stonor.

Ao poucos, Sophia percebeu que o desastre tivera conseqüências mais felizes do que
seria de se esperar. Voltar aos negócios ocupou a mente de Stonor, que já havia começado a
se tornar amargo em relação a sua fraqueza física e dias tediosos, sempre passados numa
cama. Agora, ele parecia outro. Quando se tornou mais segura de si, Sophia contratou um
novo contador-chefe, um homenzinho chamado George Blare, portador de ótimas
referências. Mas continuou a comparecer ao escritório todos os dias, o que, a princípio,
causou um certo choque e consternação no mundo dos negócios. Muitas vezes, ela era
forçada a fechar negócios por intermédio de George Blare, embora continuasse a dirigir
tudo, com o aconselhamento de Stonor.

Dois meses depois de ter assumido o controle da firma, Sophia tratava de alguns
papéis, quando o contador entrou em seu escritório, anunciando que Wolfe Whitley estava
lá e queria vê-la.

— Mande-o entrar — ela disse, sem expressar emoção na fisionomia.

Wolfe e Luther tinham passado os últimos meses nos Estados Unidos, para entrar em
contato com novos métodos de negócios e aprender o que pudessem sobre medicamentos
americanos. Ela não ficara sabendo da volta deles, pois estava tão absorta com a firma, que
nem tinha tempo para conversas ou visitas sociais.

Wolfe entrou. Parou diante da escrivaninha de Sophia, sorrindo e fitando-a com um


olhar divertido.

— Meu Deus, sra. Whitley! Por acaso se tornou uma mulher de negócios?

— A necessidade nos leva a fazer coisas incríveis, sr. Whitley. Ele se sentou na cadeira
em frente à dela, olhando-a com ar insolente.

— Andei ouvindo uma série de boatos,. desde que cheguei. Parece que você ultrajou
a decência, assumindo o controle do império Whitley e conduzindo-o com eficiência.
Mulheres em cargos de comando nunca foram bem vistas no mundo dos negócios, Sophia.
Você já devia saber disso.

— Stonor me dá assessoria. — Fechando o livro que conferia, ela o encarou com


frieza. — O que é que você quer, Wolfe?

— Você sabe.

Sophia não se alterou.

— Por que veio até aqui?

— Pelo mesmo motivo. — A zombaria nos olhos dele aumentou.

— Pare de gracinhas e me diga logo!

— Bem... Pelo que sei, Stonor é um inválido permanente, incapaz de mover um


músculo que seja.

— Ele está vivo, e é isso que importa.

Os lábios de Wolfe crisparam-se com ironia.


— Sua mentirosa! O que importa é que, depois de todos esses meses de frustração,
você deve estar começando a ficar louca...

Sophia corou, zangada.

— Chega, Wolfe!

— Eu ainda nem comecei. Nós nos conhecemos muito bem, para mentir um para o
outro. Enquanto Stonor tinha condições de satisfazê-la na cama, você estava segura. Mas
agora as coisas mudaram, não é?

— Nada mudou. Você nem precisa pensar nisso, Wolfe.

— Você se endividou bastante depois do incêndio, não é, Sophia? Até hipotecou


Queen's Stonor.

Ela o fitou com mais atenção. Sempre escondera esse fato de todos, e não gostou de a
informação ter vazado. Wolfe tirou do bolso uma cigarreira.

— Posso fumar?

— Como quiser.

Sophia sabia que aquela demora em lhe dizer o que o trouxera a seu escritório era
proposital. Enquanto ela esperava, controlando a sensação de alarme que ameaçava
dominá-la, Wolfe acendeu um cigarro com todo cuidado, tragou e soltou a fumaça
azulada, recostando-se então na cadeira, numa pose casual e descontraída.

— Foi a minha companhia que lhe.emprestou o dinheiro, Sophia — disse, afinal. — A


hipoteca sobre Queen's Stonor é minha.

Sophia empalideceu. Jamais soubera que Wolfe estava envolvido nos círculos
financeiros, e a notícia atingiu-a como um choque. Sem saber como, conseguiu agüentar o
impacto e enfrentar o olhar dele, agora francamente zombeteiro.

Wolfe tirou o cigarro da boca.

— Por isso, agora, estou em condições de fazer uma escolha deliciosa: tomar posse de
Queen's Stonor... ou de você, Sophia.

Ela sabia, tão bem quanto ele, que tinha pouco dinheiro disponível. A firma acabava
de se recuperar das perdas sofridas com o incêndio, e os bancos não lhe emprestariam
mais dinheiro. Estava presa numa armadilha, e Wolfe se deliciava com sua impossibilidade
de escapar.

Levantando-se, ele sorriu e, cortesmente, fez-lhe uma reverência.

— Eu lhe dou vinte e quatro horas para tomar uma deciáão, Sophia. No dia em que
vier para mim, como minha amante secreta, eu lhe darei os documentos da hipoteca de
volta. — Ele assumiu um tom malicioso. — Stonor jamais ficará sabendo de nada. Já
aluguei um apartamento. Mesmo não querendo admitir, você precisa disso, e eu estou lhe
dando a chance de conseguir o que quer, sem se sentir culpada. Afinal, eu conheço as
idéias estranhas de lealdade que você tem, em relação ao meu querido irmão, e percebi
que teria que forçá-la, senão jamais a teria. Você não quer perder Queen's Stonor, quer?
Pois então não tem mais escolha: terá que vir a mim, para salvar sua casa. — Um brilho
cruel encheu os olhos dele. — Você se entregou a Stonor, por aquela maldita propriedade.
É justo que também se entregue a mim.

Sem a menor expressão, Sophia observou-o caminhar para a porta. De lá, ele se virou
e fitou-a, com um sorriso.

— Pela sua cara, um copo de brandy lhe faria bem, meu amor. Vejo-a amanhã no
mesmo horário, para saber a resposta.

Quando Wolfe se foi, ela continuou na mesma posição, rígida de horror. A idéia de
perder Queen's Stonor lhe era tão dolorosa, que sentia vontade de gritar de angústia. Toda
a sua vida amara a casa com uma paixão profunda, que jamais mudaria. Teria superado
qualquer coisa que Wolfe lhe fizesse, menos aquilo. Nunca permitiria que ele colocasse as
mãos na casa. Nunca!

Sophia estava tão zangada com Wolfe, que nem lhe passou pela mente considerar a
alternativa sugerida por ele. Sua reação imediata foi escrever uma nota e despachá-la por
um mensageiro. Uma hora depois, em resposta a seu chamado, Luther Hunt entrava em
seu escritório. Quando estivera nos Estados Unidos com Wolfe, durante as nevascas de
janeiro, a esposa dele morrera de pneumonia, e ele agora estava de luto por ela.

Sophia sorriu-lhe, com um brilho charmoso nos olhos, lançando mão de toda a sua
feminilidade. Há anos sabia que Luther Hunt a admirava. Ele nunca fizera segredo disso,
mas, ao contrário de Wolfe, era um homem de virtudes domésticas, que nunca tivera
amantes ou maltratara a esposa.

— Em que posso ajudá-la, sra. Whitley?

Sophia baixou os olhos, juntando as mãos no colo.

— Eu me sinto mal em lhe dizer isso, sr. Hunt, mas o senhor é amigo e sócio do seu
primo.

— Wolfe?! O que tem ele?

— Sr. Hunt... — Sophia mordeu o lábio. — Sr. Hunt, eu amo muito o meu marido, e
estou fazendo o que posso para proteger meu lar e minha família, desde que ele caiu
doente.
— A senhora tem se saído muito bem, pelo que ouvi dizer.

— Infelizmente, agora estou numa situação muito difícil. — Rapidamente, ela relatou
o incêndio, a necessidade de tomar um empréstimo e a existência da hipoteca sobre
Queen's Stonor, terminando, de olhos baixos: — Hoje, seu primo me informou que é dono
dessa hipoteca.

— Então, foi a financeira dele que a ajudou? Fico contente em saber.

Sophia ergueu o olhar, levando a mão trêmula à boca.

— Ah, sr. Hunt... — Mostrando vergonha e embaraço, a atuação dela era soberba. —
Seu primo me ameaçou... Ou eu... me torno a amante dele... ou ele executa a hipoteca.

— Meu Deus! — Luther endireitou-se na cadeira, chocadíssimo. — Eu sei que Wolfe


não é um homem de moral, mas isto...!

— É terrível — Sophia soluçou, com o rosto entre as mãos. Suas lágrimas eram reais,
mas causadas pela raiva e amargura, não pelo medo e pela vergonha. Quando Luther
Hunt deu a volta à escrivaninha, preocupado, ergueu para ele o rosto molhado e
implorante, apoiando no dele o corpo macio e esbelto.

— Não chore assim — Luther murmurou, secando-lhe o rosto com o próprio lenço,
deliciado com o perfume do corpo dela junto ao seu.— Eu vou falar com ele e...

— Não! Wolfe ficaria zangado comigo por ter-lhe contado, e só Deus sabe o que
poderia fazer. Não posso correr o risco de que meu marido fique sabendo dessa hipoteca.
Ah, sr. Hunt... Por favor, diga-me o que fazer! Não posso mais usar a casa como garantia de
um empréstimo, e não conheço outro jeito de levantar esse dinheiro.

Luther fitou-lhe o rosto lindo e pálido.

— E a firma? Já pensou em levantar essa quantia, usando sua firma?

Ela meneou a cabeça, com ar submisso.

— Fazendo sociedade com alguém? O senhor acha que esse é o melhor meio de
levantar o dinheiro para pagar o seu primo?

— Creio que sim. A senhora permite que eu dê uma olhada nos seus livros, sra.
Whitley?

— Claro.

De imediato Sophia chamou o contador e, juntos, os três examinaram os livros da


firma. No fim ela esperou, com os nervos à flor da pele, que Luther desse seu parecer.

— Pode ser que seu marido não goste da idéia de vender parte da firma a mim, sra.
Whitley — ele disse.
— Stonor gostaria menos da outra alternativa que tenho.

— É verdade. Quanto a isso, não tenho a menor dúvida.

Quando Wolfe chegou, no dia seguinte, tinha o rosto iluminado pelo triunfo e pelo
desejo que sentia por Sophia. Ao vê-lo, ela foi tomada por uma emoção tão grande quanto
à dele, mas nada demonstrou.

— Vim para receber minha resposta, sra. Whitley.

Ciente de que ele a observava com atenção, Sophia olhou para as mãos, cruzadas
sobre a escrivaninha.

— Não faça isso, Wolfe. Eu lhe imploro, não me force a fazer esta escolha!

— Você me quer tanto quanto eu a quero, e nós dois sabemos disso. Por causa dessa
sua vontade estúpida de manter aquela casa, tem se mantido fiel a Stonor e me obrigou a
fazer esta chantagem. Eu sempre soube que Queen's Stonor era minha verdadeira rival. E
Stonor também sabe disso, senão não teria usado a casa para consegui-la. Agora, é a minha
vez. Não estou fazendo nada além do que ele fez.

Sophia levantou a cabeça devagarinho, os olhos muito brilhantes no rosto pálido.

— Eu lhe estou pedindo de joelhos, Wolfe: não faça isso! Uma expressão amarga, de
ódio e frustração dominou o rosto dele.

— Você estragou a minha vida, por causa daquela casa. Eu amei você desde o
primeiro momento em que a vi, e você retribuiu esse amor. Sou capaz de fazer qualquer
coisa... manipular, roubar, trapacear e chantagear... para conseguir você, Sophia. Estou com
quase trinta e nove.anos de idade. Por sua causa, minha vida tem sido vazia e sem sentido.
Preciso tê-la, antes que seja tarde demais. Não vou permitir que desperdice o que nos resta
da vida. Você tem que vir para mim.

— Já pensou no que uma coisa dessas causaria a Stonor? Você não pode fazer isso
com ele, Wolfe!

— Você se lembra de quando ele lhe disse que eu estava morto? Você me perguntou
como ele tinha tido coragem de mentir assim, e eu lhe respondi que tudo valia, na guerra e
no amor. Acha que, no meu lugar, Stonor hesitaria em tomar a mesma atitude? Ele já fez o
que estou fazendo, Sophia, e você sabe disso. Foi ele que me ensinou a manipular você,
usando aquela maldita casa como isca.

Por um instante, Sophia ficou desanimada, depois estendeu-lhe o papel que tinha
sobre a escrivaninha. Ele o leu, então ergueu para ela os olhos repletos de ironia.

— Você deve me achar um tolo, Sophia. A sua conta bancária não tem fundos
suficientes para cobrir isto.
— Não tinha. Agora, tem.

Wolfe apertou os punhos, tomado por uma violenta raiva.

— O que foi que você fez?

— Me vendi a outro homem.

— Diga a verdade! Onde foi que conseguiu esse dinheiro? — indagou ele, lívido.

— Por acaso achou que eu não encontraria outro homem para me dar a soma que eu
quisesse, Wolfe?

Wolfe deu a volta à escrivaninha tão depressa, que ela não teve tempo de fugir. No
momento seguinte, estava nos braços dele, lutando para escapar. Mas ele segurou-a pela
cabeça com mãos que pareciam garras, imobilizando-a e forçando-a a fitá-lo.

— Sua tola, por que foi fazer isso? Por que teve que jogar fora nossa última chance de
felicidade?

— Você não devia ter tocado em Queen's Stonor. Eu perdoaria qualquer coisa vinda
de você, Wolfe, menos isso.

— Deus do céu, aquela casa! Você usou minha própria arma contra mim.

Os dois se olharam com ferocidade. Então Wolfe inclinou a cabeça e, segurando-a


para que não pudesse escapar, beijou-a com sofreguidão. Sophia agarrou-o pelo pescoço,
pressionando o corpo ao dele, e o silêncio os envolveu. Ela sentia o sangue correr quente
nas veias, e Wolfe tremia, mais emocionado do que nunca.

Afinal, Wolfe pôs fim ao beijo e, com olhos famintos de desejo, examinou o rosto
corado de Sophia.

— Venha para mim, querida... Eu preciso de você.

Ela meneou a cabeça, sem responder.

— Eu deveria lhe dar uma surra, por ser tão estúpida e teimosa! Stonor não merece
você!

— Ele morreria, se descobrisse. Não posso fazer isso com ele. — Seus olhos se
entristeceram. — Além do mais, Stonor deserdaria Daniel, se por acaso desconfiasse.

— Então é isso! Meu Deus, derrotado pelo meu próprio filho! — Um sorriso estranho
surgiu nos lábios de Wolfe. — Sua sem-vergonha, matreira e imprevisível! Sabe que vou
amá-la até morrer?

— Não existe nada a seu respeito que eu não saiba, Wolfe.


— Pois existe uma coisa a seu respeito, que eu ainda não sei: onde foi que conseguiu
o dinheiro?

Ela riu, zombeteira e provocante.

— Descubra sozinho!

— Pois eu vou, mesmo, descobrir. E se o seu benfeitor tiver um motivo pessoal para
tanta generosidade, está morto!

— Acho que não.

— Foi uma simples transação de negócios, Sophia? Percebendo a nota de ciúme na


voz dele, Sophia riu de novo, deliciada.

— Não vou lhe dizer absolutamente nada.

— Pois então, vou descobrir de outro modo. Se acha que vou deixar que procure
consolo na cama de outro homem, está muito enganada. Eu posso suportar a sua
castidade, Sophia, mas não que você encontre satisfação nos braços de outro homem!

— Você não tem direito de me impedir, se eu quiser fazer isso.

— Como seu cunhado, tenho todo o direito!

Sophia não agüentou e riu abertamente.

— Hipócrita!

— Eu vou descobrir tudo, Sophia. E quando eu descobrir... é melhor tomar cuidado!

Dois dias depois, Wolfe voltou. Erguendo os olhos das contas que examinava, Sophia
esperou que ele entrasse e fechasse a porta atrás de si.

— Sua sem-vergonha... Logo Luther, meu virtuoso primo! Ele não tentou esconder
nada, quando lhe perguntei se era verdade. Você tinha mesmo que lhe contar tudo,
Sophia?

— Achei que me seria vantajoso.

— Vingança, minha querida?

Ela não respondeu.

— Luther está horrorizado. Não entende como pude ter uma atitude tão depravada
com uma mulher tão doce, meiga e virtuosa! — Wolfe declarou de forma casual, apesar de
seus olhos expressarem zanga. — Meu relacionamento com Luther sempre foi muito bom,
mas agora você colocou um obstáculo entre nós. Ele nunca reclamou das minhas mulheres
e do modo como trato minha esposa, mas acho que ele também a deseja, Sophia, e por isso
reagiu com tanta indignação. O que pretende fazer, se ele por acaso tentar possuí-la?
— Ele jamais faria uma coisa dessas.

— Não? Quer me enganar que estou errado sobre o que Luther sente por você? Que
ele nunca a olhou com desejo?

— Ele olhou, sim. Mas, como você mesmo disse, é um homem muito virtuoso e não
perderá a cabeça.

— Espero que não... A não ser que ele queira perdê-la literalmente.

Sophia recostou-se na cadeira, sentindo um clamor no sangue, que mais parecia uma
doença. Os longos meses sem fazer amor com Stonor estavam cobrando seu preço. Seu
desejo por Wolfe era tão grande, que só se dominava à custa de muito esforço. Naqueles
anos, dedicara-se inteiramente a Stonor, sufocando o amor que tinha por Wolfe. Os poucos
encontros, os beijos roubados e os toques de mão tinham sido um verdadeiro delírio,
trazendo à tona emoções que não teria conseguido controlar, sem a ajuda da paixão de
Stonor. Seu amor crescente pelo marido, combinado com o prazer de suas noites juntos,
tinham erguido uma firme barreira entre ela e Wolfe. Mas agora, que Stonor não podia
mais lhe dar o prazer de que seu corpo precisava, essa barreira enfraquecia rapidamente.
Seus motivos para romper com Wolfe continuavam válidos, mas sua fraqueza por ele não
tinha mais rédeas.

Quando Wolfe se virou para sair, Sophia mordeu os lábios para não chamá-lo de
volta. Queria desesperadamente sentir o corpo dele junto ao seu, mas forçou um sorriso
polido e ele se foi, deixando-a lutar contra as emoções que a assolavam.

O brilhante senso de negociante de Luther Hunt modificou muito o modo como o


império Whitley vinha sendo conduzido. Sophia, ele e George Blare passaram horas
discutindo planos, verificando livros e pensando no futuro. Sophia foi obrigada a confessar
a Stonor o que fizera, e ele reagiu com zanga e amargura.

— Como pôde fazer uma coisa dessas com a minha firma, sua tola? Aos poucos,
Luther Hunt acabará absorvendo nossos negócios.

Sophia fitou-o, notando-lhe a fraqueza física e a amargura, trazida pela tristeza.


Hesitou, mas depois acabou contando toda a verdade.

— Não tive escolha. Eu... eu tinha hipotecado Queen's Stonor... Naturalmente, ela não
falou sobre a alternativa oferecida por Wolfe, limitando-se a dizer que ficara desesperada
para modificar a situação, quando descobrira que ele estava com a hipoteca da casa. Mas
não enganou Stonor. No fim de sua narrativa, ele a fitou, muito pálido, e disse:

— Wolfe queria você. É isso que não está me contando. Ele tinha a casa e achou que
também tinha você.
— Como vê, eu não tinha outra alternativa a não ser a sociedade com Luther Hunt...

— Claro que não. Aquele maldito! Se eu não fosse um aleijado...

Sophia segurou-lhe as mãos, querendo que ele acreditasse nela.

— Eu não hesitei, nem por um segundo. Na verdade, fiquei tão zangada que poderia
tê-lo matado!

— Zangada porque ele ameaçou Queen's Stonor, mas não porque ele ameaçou nosso
casamento. Não é, Sophia?

— Eu não quebraria o juramento que lhe fiz.

Stonor riu.

— Pois você está livre desse juramento, Sophia. Não quero prendê-la com palavras.
Eu me arrependi de ter-lhe pedido que fizesse esse juramento, no momento em que acabei
de falar. Afinal, se você quisesse ir para ele, nenhum juramento a impediria.

— Eu não quis ir para ele.

— Não, você não quis. E eu não sou tão cego a ponto de não entender por quê.

Eles estavam sozinhos no quarto de Stonor, como ficavam todas as noites, antes que
Sophia se retirasse para o dela. A enfermeira colocara Stonor na cama uma hora atrás e
fora dormir. Ele tinha um sino com o qual podia chamá-la, caso precisasse de alguma
coisa.

Sophia viu o cansaço, a desilusão e o desespero nas feições másculas, e seu coração
apertou-se de dor. Sentando-se na beirada da cama, pôs-se a acariciar-lhe os cabelos, com
uma expressão convidativa no rosto. Inquieto, Stonor correu os olhos por seu corpo
esbelto.

— Como consegue ser tão bonita, na sua idade? À medida que os anos passam, seu
rosto vai adquirindo uma beleza que me deixa sem fôlego. A sua pele é tão lisa e bonita,
que na certa deve usar feitiçaria para conservá-la assim...

Sophia soltou os cabelos escuros e brilhantes, e ele ergueu as mãos para tocá-los. De
olhos fechados, sentiu as mãos dela acariciando seu peito, depois deslizando para baixo do
paletó do pijama, à procura de sua pele.

— Faz tanto tempo! — ele gemeu. — Tanto tempo que a tive nos meus braços, minha
querida...

— Stonor...

Abrindo os olhos, ele reconheceu a expressão sensual no rosto de Sophia. Quando ela
começou a desabotoar o vestido, seguiu cada movimento com a respiração alterada. Ela se
despiu olhando-o nos olhos, deliberadamente provocante, e, já nua, arqueou o corpo sobre
o dele. Stonor deixou escapar uma exclamação agoniada de desejo.

— Pelo amor de Deus, Sophia, você sabe que é impossível! Está querendo me
enlouquecer?

— Faça com que eu sinta prazer, Stonor! Preciso tanto disso... Às vezes acho que vou
ficar louca! Por favor, passe as mãos pelo meu corpo... toque-me...

Stonor tremia enquanto acariciava-lhe o corpo, arrancando-lhe gemidos de prazer e


alívio. Quando tocou-lhe os seios com a boca, sentiu-se ofegante. Centímetro por
centímetro, Sophia expôs-se a exploração excitante da língua masculina. De repente,
afastou-se e puxou as roupas de cama, descobrindo-o por inteiro.

— Não, Sophia — Stonor murmurou, estremecendo.

Lançando-lhe um olhar de paixão, Sophia virou-se e apagou a luz. Na escuridão, ele


sentiu-lhe as mãos puxarem suas roupas de dormir e depois tocarem-no suavemente,
deslizando por sua pele.

— Você sente, quando eu o toco, querido? — ouviu-a perguntar.

Stonor estava dividido entre o prazer que as mãos dela produziam em seu corpo,
depois de tanto tempo, e o desgosto de deixá-la ver o estado de suas pernas feridas e
inúteis. As cicatrizes e os músculos enfraquecidos revelavam-se vagarosamente aos dedos
femininos. O corpo frágil, que agora tinha, enchia-o de raiva e desgosto, e seu medo era
que ela sentisse o mesmo. No entanto, seu orgulho jamais permitiria que demonstrasse o
temor, e, em silêncio, ficou imóvel, enquanto ela descobria que o corpo viril e poderoso,
que tão bem conhecera, transformara-se num pálido escombro do que fora.

Sophia entendeu seus pensamentos pois conhecia bem os sentimentos que o marido
lhe dedicava. Com as pontas dos dedos, acalmou a zanga e a amargura de Stonor.

Subitamente, ele deixou escapar um grito enrouquecido, quase um gemido de


choque e incredulidade: Sophia agora o excitava suavemente com a boca. Empurrou-a,
com mãos trêmulas.

— Não...

— Sim — ela respondeu, tocando com a língua a pele dele.

— Deus do céu, Sophia! Não posso permitir que faça isso...

— Eu quero — Sophia afirmou baixinho. — E estou gostando.


Stonor não mais tentou detê-la. De olhos fechados, entregou-se a um prazer incrível,
sentindo a tortura e a delícia com que os lábios dela o conduziam ao auge da sensação
sexual.

— Sophia, meu amor... meu amor... — ele repetiu, ofegante, quando a agonia quase
esquecida do êxtase o dominou.

Sophia deitou-se na cama, o corpo colado ao dele, ouvindo-lhe as batidas aceleradas


do coração diminuírem de ritmo e a respiração voltar ào normal.

— Ficou cansado, querido? — perguntou-lhe, pouco depois.

— Isto não devia ter acontecido; eu não devia tê-la deixado fazer isso. Ah, Sophia,
meu amor! Você sabe que não devia ter feito isso!

Ela riu, esfregando o rosto corado no ombro dele.

— Eu queria saber se você havia perdido toda a sensibilidade. Mas você não perdeu,
Stonor.

— Não. Por Deus, Sophia, não! — Com lábios trêmulos, ele a beijou. — Você me
deixou louco e sabe disso. Faz tanto tempo que eu a quero! Tenho tido muito medo de
perdê-la. Mas isto., não posso permitir que você...

Sophia tornou a rir, beijando-o novamente.

— Não pode me impedir, querido.

— Oh, eu adoro você, minha querida! Eu a venero!

— Ainda meu escravo, Stonor?

— Mais que nunca!

— Então, estou feliz — ela murmurou, encostando a cabeça em seu ombro. Depois de
alguns momentos, levantou-se, arrumou os lençóis e pegou ás próprias roupas, que
deixara jogadas no chão.

— Acenda a luz — Stonor pediu, sonolento. — Quero ver você se vestir...

Ela obedeceu sem comentários, e ele, com olhos sorridentes é semicerrados, a


observou vestir-se novamente. Depois que ela saiu, a noite envolveu-o e, pela primeira vez,
desde que sofrerá o acidente, ele dormiu como uma criança feliz.

O retorno à vida amorosa, mesmo numa base ocasional, mudou Stonor. A amargura
se foi, e ele passou a suportar a invalidez sem a amargura de antes.

Sophia sabia que ele vivia para as noites que tinham juntos. Essa troca sensual
também aliviava seus desejos e o medo que sentia de Wolfe. Enquanto seu corpo estivesse
satisfeito, Wolfe não estaria em sua mente como uma figura sombria, à espera do momento
de tomá-la.

Stonor também sabia disso, e o medo que tinha do irmão diminuiu, quando percebeu
que Sophia era sua novamente. Seu temperamento suavizou-se, e ele até tentou tratar
Daniel com bondade, quando os rapazes chegaram para as férias de verão.

Aos vinte anos, Daniel era quase um homem, de ombros largos e feições
parecidíssimas às de Wolfe. Ao cavalgar pelos campos, ele olhava para Queen's Stonor com
o ar possessivo| e arrogante de um futuro dono. Louise estava feliz com sua volta.
Enquanto Edward passava a maior parte do dia junto do pai, contente em servi-lo, ler e
jogar xadrez com ele, ela e Daniel cavalgavam juntos, rindo e conversando em total
harmonia.

Quando Jerome apareceu em Queen's Stonor numa tarde de agosto, Louise sentiu-se
petrificada. Temia que Daniel o interrogasse sobre o problema de suas famílias, mas nada
aconteceu, e eles passaram a manhã deitados na grama, felizes e cheios de preguiça.

Louise entrou para o almoço, esperando que Daniel a acompanhasse, mas ele não
apareceu.

Sophia arranjava rosas brancas numa jarra de prata da sala de estar, observada por
Louise, quando Daniel abriu a porta com violência e entrou. Ela ergueu os olhos e, assim
que o viu, empalideceu.

Daniel a fitava com amargura, os olhos estranhos e lindos muitos brilhantes no rosto
pálido.

— É verdade? Eu sou um bastardo de Wolfe Whitley?

Chocada, Sophia estremeceu, e teve que se agarrar à mesa, para não cair.

— Quem lhe disse isso? — Pensou de imediato em Stonor, abismada com o fato de ele
ter dito a verdade a Daniel.

— Jerome — respondeu o rapaz, por entre os lábios trêmulos. — Meu meio-irmão, ao


que parece. Deus do céu, então é verdade! Você não é nem capaz de negar! Foi por isso que
papai nunca gostou para mim, porque eu sempre senti que não tinha nada em comum com
ele... — Parou subitamente de falar, fitando-a como se nunca a tivesse visto antes. Quando
tomou a se expressar, foi num tom cheio de desilusão e desgosto. — Você deixou aquele
homem....

Daniel interrompeu-se novamente. Toda sua vida, amara profundamente a mãe.


Sophia dirigia a casa com tanta meiguice e delicadeza, que todos, seguindo o exemplo de
Stonor, tratavam-na quase com reverência. Mas agora, a visão romântica que tinha da mãe
despedaçara-se para sempre. Só o fato de imaginá-la nos braços daquele estranho insolente
e zombeteiro, permitindo que a submetesse aos atos mais íntimos, dava-lhe vontade de
gritar. Ele vomitara até não ter nada no estômago, depois que Jerome lhe contara a
verdade, com toda a calma. Jerome convivia há tanto tempo com o ódio, a desilusão e o
desprezo, que se surpreendera com a reação dele, chegando até a se alarmar um pouco.

Sophia avançou para Daniel, com ar implorante, mas ele recuou como se temesse que
o toque dela o contaminasse. Parecia meio enlouquecido de dor e desespero, e gritou de
repente:

— Eu vou matá-lo!

Daniel saiu para a noite escura e Sophia correu atrás, mas ao chegar à porta da frente,
só ouviu o barulho de um cavalo afastar-se pelo caminho de cascalhos. Por um instante
permaneceu onde estava, tentando raciocinar, a mente numa confusão caótica.

Louise a seguira, ansiosa, e, Sophia, ao ler nos olhos dela o susto e a compaixão,
percebeu que nada daquilo a surpreendera.

— Ele vai voltar, mamãe — disse Louise com gentileza, segurando-lhe a mão.

Sophia sentiu os olhos arderem de gratidão, e por um momento não pôde falar. Logo
depois, no entanto, dominou-se e disse com calma:

— Tenho que ir atrás de Daniel. Ele está completamente descontrolado, e só Deus


sabe o que é capaz de fazer. Fique aqui e, se seu pai perguntar por mim, diga-lhe que estou
com dor de cabeça e fui me deitar. Mas agora peça a Russel para aprontar a carruagem,
enquanto vou buscar um casaco.

Louise saiu voando para obedecer. Minutos depois, ao voltar ao hall, encontrou a
mãe já à espera, com um casaco de veludo sobre o vestido cinza que usava.

— Deixe-me ir junto, mamãe. A senhora pode precisar de mim.

— Não, minha filha. Você tem que ficar aqui, com seu pai. Nada vai me acontecer.

Sophia abraçou a filha, beijando-a com ternura, e depois saiu para a noite escura de
verão.

Capítulo XXIII

Sentado em uma cadeira forrada de brocado prateado, em seu elegante escritório,


Wolfe admirava a estatueta de mármore que comprara aquela manhã. Era a figura de uma
linda moça nua, banhando-se numa fonte em forma de concha, com os cabelos presos no
alto da cabeça altiva. Fazia-o lembrar-se de Sophia. Provavelmente acabaria por conservá-
la em seu quarto, para que pudesse contemplá-la da cama, à noite. Nos últimos tempos,
não sentia mais vontade de procurar prazeres em camas estranhas. Ou estava ficando
velho, ou o sexo comprado não mais o atraía. No entanto, não se sentia deprimido pela
diminuição de seu desejo sexual.

Fisicamente, seu casamento com Eleanor acabara depois do nascimento de seu filho
caçula, Jonathon. Ela quase matara a criança de tanto beber durante a gravidez, e quando
ele exigira, irritado, que parasse com o vício, tornara-a ainda mais decidida a continuar. A
bebida embrutecera as feições e a figura de Eleanor, afastando-o dela. A princípio, ela
aceitara mal esse afastamento, e as cenas entre eles foram chocantes. Mas depois
esquecera-se da mágoa, voltando-se ainda mais para a bebida.

As ligações abertas de Wolfe com uma série de prostitutas ainda causavam brigas
ocasionais entre eles. Devido ao vício, Eleanor deixara de ser convidada para reuniões
sociais, e Wolfe passara a ir sozinho. Com isso, ele fora deixando de tratá-la como esposa e
agora dirigia a casa e educava os filhos, sem a ajuda dela.

Eleanor raramente era vista fora de seu quarto, que ela transformara num lugar sujo e
fedendo a gim, com garrafas vazias e roupas vulgares espalhadas por todo canto.
Ultimamente, ela nem se vestia mais, passando os dias envolta num robe sujo e manchado,
despenteada e imersa no estupor causado pela bebida.

Wolfe providenciara para que os filhos vissem a mãe o mínimo possível, dando
ordens à babá para que os mantivesse longe dela. Assim que Jonathon e os dois meninos
mais velhos atingiram idade escolar, foram mandados para internatos, passando as férias
num hotel caro do litoral de Devon, sob os cuidados da babá. Era lá que os três e Alice
estavam, no momento.

Com Alice, o problema fora maior. Não existiam colégios internos para meninas, mas
Wolfe fizera o que podia para afastá-la da mãe, com a ajuda da babá. Ele tinha um afeto
possessivo pelos filhos, e até Jerome, o mais difícil de todos, causava-lhe orgulho. Fora
pensando neles que amealhara uma vasta fortuna, e enquanto vivesse tentaria protegê-los
do dano causado pelo ambiente doméstico.

No momento, Jerome estava em casa, provavelmente em seu quarto, lendo sobre


medicina. A insistência do rapaz em ser médico irritava Wolfe, que queria que ele
ingressasse na firma da família. Seus interesses haviam se expandido muito nos últimos
anos, e Jerome tinha uma larga escolha diante de si. No entanto, o rapaz recusava-se até a
pensar nisso.
Wolfe não tinha ilusões sobre o que o filho mais velho pensava dele. Fora uma pena
um garoto sensível como Jerome ter crescido num ambiente como aquele, com a mãe
sempre bêbada, trocando insultos com o pai. Em relação aos filhos mais novos, Wolfe se
saíra melhor conseguindo preencher o vazio deixado por Eleanor e tratando-os com afeto e
ternura. Só não conseguira o mesmo com Jerome porque ele sofrerá mais a influência da
mãe, que lhe contara inúmeras histórias doentias sobre a crueldade e o mau caráter do pai.
Jerome não mais acreditava em tudo que ouvia, mas o mal fora feito e ele odiava ambos os
pais.

Mais uma vez, os olhos de Wolfe pousaram sobre a estatueta de mármore. Por que
Sophia jogara fora sua última esperança de felicidade? A futilidade dessa atitude o abalara
muito. Desde então, não mais sentira desejo por uma mulher. Ele estivera tão certo, tão
ansioso... Mas falhara, e agora tudo que sentia era desespero.

Logo estaria com quarenta anos, uma idéia que não lhe agradava. Sua única noite
com Sophia transformara-se numa lembrança de elusiva felicidade, que procurava
recapturar com desespero. Que ela sentia o mesmo, Wolfe tinha certeza. Mesmo tendo
aprendido a amar Stonor e declarando abertamente que gostava de ir para a cama com o
marido, ela não o enganava. Só eles sabiam a agonia e o êxtase do ato que haviam
partilhado, naquela única noite. A união de seus corpos atingira as dimensões de um
sonho, algo que jamais conseguira alcançar com outra mulher. Fora um ato de fusão total,
de corpos, mentes e almas. Ele lhe dissera, então, que o que acontecera entre ambos era um
sacramento tão sério quanto um casamento, e não mentira.

Quando tivera que se afastar dela, aceitara com resignação o fato de que nunca mais a
teria. Dedicara-se a amealhar uma fortuna, e quisera cementar o futuro com uma família
respeitável. Agora, tinha o sucesso financeiro que sempre desejara e quatro filhos fortes e
bonitos. Mas a vitória viera com um gosto amargo, pois sua vida pessoal era vazia e o
dinheiro não lhe trouxera a felicidade que esperava.

Muitas vezes, olhara com inveja na direção de Queen's Stonor. A satisfação notória de
seu meio-irmão, o sucesso daquele casamento, quase o tinham levado à loucura.
Pouquíssimas vezes vira Sophia. Seus poucos encontros encerravam uma agonia acre-doce,
que ele considerava alucinante. Saber que ela ainda o amava só havia piorado a situação.
Durante um ano vivera de um beijo, durante seis meses, de um breve toque de mãos. As
semanas em que não a via não tinham o menor sentido.

Wolfe entendia muito bem por que Sophia continuava com Stonor, pois ela jamais
conseguira colocar uma barreira entre suas mentes. Era fácil ler-lhe os pensamentos.

O acidente de Stonor trouxera à tona toda a ternura que sentia por ela. Sabendo o
quanto Sophia gostava do marido e querendo poupar-lhe qualquer dor, torcera para que
ele vivesse. Só depois pensara no futuro e vislumbrara sua chance, enchendo-se de uma
ansiedade que o deixara louco por algum tempo.

— Eu tinha tanta certeza, meu Deus!

Com movimentos bruscos, Wolfe serviu-se de um cálice de vinho do porto. Quando o


saboreava, ouviu batidas violentas na porta da frente. Ergueu os olhos para o relógio sobre
a lareira. Era tarde para visitas. Seria alguma notícia desagradável?

Dos criados, só Rogers, o mordomo, ainda estava de pé. Wolfe escutou a porta da
cozinha se abrindo, depois a voz de Jerome.

— Pode ir dormir, que eu atendo, Rogers.

— Obrigado, sr. Jerome. Boa noite — disse o mordomo em seu tom polido, tornando
a fechar a porta da cozinha.

Wolfe recostou-se na cadeira, com os olhos de novo na estatueta de mármore. Ouviu


Jerome dizer qualquer coisa, depois houve um som abafado que lhe pareceu de um murro.
Fez menção de se erguer, mas, antes que conseguisse, a porta abriu-se com um safanão e
um garoto pálido, tenso e descabelado entrou.

Instintivamente, dando tempo a si mesmo para pensar, Wolfe voltou à posição


anterior.

— Seu... seu porco... — Daniel xingou, tomado por violenta emoção. — Eu vou matar
você!

Jerome apareceu à porta, com o rosto machucado e um sorriso irônico nos lábios.
Wolfe lançou-lhe um rápido olhar, depois disse friamente a Daniel:

— Boa noite, Daniel. Sua mãe sabe que você está aqui?

Foi como se a pergunta liberasse a zanga de Daniel. Pálido de raiva, ele avançou para
Wolfe e começou a bater-lhe no rosto com o chicote que trouxera. Wolfe ficou tão surpreso,
que por um instante nada fez. Depois, aborrecido, apossou-se do chicote com um safanão.
De imediato Daniel passou a atacá-lo com os punhos, e ele foi obrigado a se levantar e
agarrar o filho pelos ombros, empurrando-o de encontro à parede. Mesmo assim,
soluçando e com os olhos cheios de mágoa e ódio, Daniel continuou a chutar e esmurrá-lo.

Olhando para o filho, Wolfe sentiu uma estranha fraqueza tomar conta de seu corpo.
O garoto era tão parecido com ele! E filho de Sophia. Fora seu amor apaixonado por
Sophia que dera vida ao menino.

— Daniel — murmurou gentilmente, com amor, tentando contê-lo. — Não faça isso,
meu filho...
Um silêncio intenso caiu sobre o ambiente, todos se imobilizaram. Daniel fitou o pai.
Os olhos azul-esverdeados de Wolfe exibiam uma luz que só Sophia chegara a ver, antes.
Daniel teria que ser cego para não ver o amor naquele rosto duro e sombrio. Lentamente,
uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto.

Da porta, Jerome os observava, assolado por uma mistura de raiva e incredulidade. O


pai nunca o fitará ou falara com ele daquele modo. Nem com seus irmãos ou mesmo Alice.
Na verdade, a única outra vez em que ouvira o pai falar com tanta ternura fora com a mãe
de Daniel, no jardim de sua casa. Lembrava-se perfeitamente da paixão na voz do pai e da
raiva, mágoa e ciúme que o tinham dominado na ocasião.

O silêncio foi quebrado por outras batidas na porta da frente. Jerome foi atender.
Abriu a porta e olhou friamente para Sophia.

— Daniel está aqui?

Com um gesto cheio de menosprezo, ele a convidou a entrar e seguiu-a, observando-


a com uma estranha ansiedade. Aquela mulher poderia ter sido sua mãe...

Jerome pensara nisso pela primeira vez quando a surpreendera nos braços do pai, no
jardim. Ele nunca vira uma mulher tão linda, e isso, mais os sentimentos maternais que ela
exibia pelos próprios filhos, despertaram nele uma raiva tão grande que chegara a odiá-la
por não ser sua mãe. Ao mesmo tempo fora invadido pela sensação de estar traindo a mãe.
Desde então, cada vez que via Sophia, sentia a mesma mistura de ódio e atração.

Entrando no escritório, Sophia viu o filho imprensado de encontro à parede. Wolfe


tinha o rosto marcado por chicotadas e um corte no canto do lábio, de onde escorria um fio
de sangue. Daniel exibia uma expressão de desespero e amargura.

Wolfe virou-se para a porta e a emoção que sentiu encheu seu olhar de amor. Os dois
rapazes estremeceram, desgostosos.

— Como foi que ele descobriu? — Wolfe perguntou. — Stonor?

— Não, não foi Stonor — Sophia garantiu.

— Fui eu — disse Jerome, com insolência. — Ele perguntou se eu sabia de alguma


coisa, e eu lhe contei. Já era tempo de ele saber o que qualquer espelho poderia ter lhe dito,
anos atrás.

Um brilho perigoso surgiu nos olhos de Wolfe.

— Vá para o seu quarto, Jerome. Eu converso com você depois. Jerome sorriu com
frieza.

— Não quer saber como eu descobri, pai? Não quer saber quem me falou da sua
amante secreta, a que o senhor sempre escondeu, enquanto exibia as outras abertamente?
Sophia recuou um passo, muito pálida. Numa reação instintiva, Wolfe soltou Daniel e
virou-se para abraçá-la. Em sua preocupação por ela, esqueceu-se de que os filhos o
observavam.

— Não ligue para esse menino, minha querida. Ele saiu à vagabunda da mãe dele...

— Falando em vagabundas... — Jerome comentou, rindo.

Tomado pela raiva, Wolfe largou Sophia e avançou para Jerome. Mas antes que
conseguisse o que pretendia, Sophia, com lágrimas no olhos, segurou-o pelo braço.

— Não, Wolfe!

Wolfe parou, fitando o filho com os punhos apertados e uma expressão ameaçadora.

— Se tornar a falar dela assim, eu acabo com a sua vida!

— Você não devia ter dito aquilo sobre Eleanor — Sophia censurou-o. — Ele é filho
dela, Wolfe. E ama a mãe.

— Ele odeia a mãe, isso sim — Wolfe rebateu, impaciente.

Sophia estremeceu, lembrando-se do ódio e da repulsa que Daniel demonstrara ao


saber da verdade. Até àquele dia, Daniel a amara com adoração. Ela construíra toda sua
vida em torno dele, dando mais valor ao amor do filho que ao do próprio marido. Daniel
herdaria Queen's Stonor. Por Daniel, abafara o amor que sentia por Wolfe. Agora, só de
pensar nos novos sentimentos que ele tinha por ela, sentia-se mal.

Notando o sofrimento de Sophia, Wolfe tomou-a nos braços.

— Não, meu amor querido! Não...

Enciumado, com os olhos cheios de ódio, Daniel avançou para separá-los. Wolfe
soltou Sophia, e agarrou o filho, imobilizando-o com facilidade. Seus olhares se
encontraram. Ao fundo, Sophia chorava baixinho.

— Escute o que vou lhe dizer, Daniel: eu não tenho vergonha de ter feito sua mãe
engravidar de você.

A respiração de Daniel alterou-se ainda mais. Wolfe continuou:

— Na verdade, eu tenho orgulho disso. Nós nos apaixonamos antes que ela
concordasse em se casar com Stonor, íamos fugir juntos, e estávamos tão apaixonados que
eu não pude esperar... A culpa foi toda minha. Eu precisava dela. Você é capaz de entender
esse tipo de sentimento, Daniel? Nós tivemos uma noite juntos, depois sua mãe caiu
doente. Os médicos disseram que ela corria o risco de morrer, se tivesse um filho. Eu quase
enlouqueci de dor, mas não tinha autocontrole suficiente para me casar com ela e não tocá-
la. Por isso fui embora, e Stonor se casou com a sua mãe. Ele a amava a ponto de conseguir
o que eu não era homem bastante para fazer. Ele até aceitou você, apesar de saber que era
meu filho. Sua mãe jurou que não contaria a ninguém que Stonor não era seu pai. Não
permito que você a despreze. A culpa é toda minha, e eu...

De repente, com um gesto brusco, Daniel tentou se libertar. Mas Wolfe o impediu.

— Agora, você está zangado e magoado, Daniel, mas sua mãe e eu nos amávamos. —
Os olhos dele faiscaram. — Nós ainda nos amamos. E amamos você, meu filho.

— Mas que tocante! — disse, da porta, uma voz de tom indistinto. Eleanor entrou,
suja, descabelada e com uma garrafa meio vazia nas mãos. — Uma linda história, meu
querido marido, mas você deixou de fora algumas coisinhas, não é? Como o costume que
você e sua amante tinham de se encontrar fora das vistas do marido dela. Ou do modo
como você vem tentando trazê-la de volta para a sua cama há anos, usando todo
truquezinho sujo que conhece...

Wolfe fez um gesto violento, mas Sophia agarrou-o pelo braço, impedindo-o de
reagir. Eleanor riu com malícia.

— O seu querido pai, meu rapaz, baba de desejo pela sua mãe, noite e dia. A elegante
sra. Stonor Whitley produz mesmo esse efeito sobre os homens. Stonor rasteja no chão por
um sorriso dela, e ela sabe como mantê-lo de joelhos... — Um .riso áspero escapou dos
lábios de Eleanor. — Deus, se os honrados cidadãos de Bristol soubessem da verdade sobre
a dona de Queen's Stonor... Porque agora eles a admiram muito. Ela é tão linda e refinada,
de uma família aristocrática, mãe e esposa perfeita, mantida num pedestal por um marido
que seria capaz de qualquer coisa, para não perdê-la.

Wolfe estava pálido de raiva.

— Jerome, leve sua mãe para cima. Ela não sabe o que está dizendo...

Rindo, Eleanor levou a garrafa aos lábios inchados e tomou alguns goles da bebida.

— Claro que eu sei o que estou dizendo! O garoto descobriu a verdade, e já é tempo
que saiba de tudo. Inclusive que a mãe dele não passa de uma vagabunda, falsa e
trapaceira.

— Cale a boca! — Wolfe avançou de mão erguida contra Eleanor, mas Sophia
segurou-o, dizendo:

— Não, Wolfe!

Virando-se para ela, ele deixou escapar um gemido e abraçou-a, com ar possessivo e
protetor.

— Está vendo, Daniel? — Eleanor perguntou. — Sua mãe e meu marido queimam de
desejo um pelo outro, como animais presos numa armadilha. Olhe para eles, rapaz!
Qualquer um pode ver. E o modo como dançam juntos! Até um cego é capaz de enxergar
que estão loucos para ir para a cama! Se até agora os dois não fugiram juntos, é porque ela
não tem coragem de deixar a elegante Queen's Stonor em troca de meu querido marido.
Naturalmente, ela lhe contará uma bela história sobre ser fiel a Stonor Whitley, mas a
verdade é que não suporta a idéia de perder a posição de rainha do condado. Que
rebaixamento seria, passar a ser apontada como a ordinária mantida por Wolfe Whitley!
Toda a embalagem desaparece, se você olha com atenção. Não se trata de um lindo caso de
amor, mas de um sórdido caso de desejo físico...

Wolfe teria obrigado Eleanor a se calar na primeira frase, se Sophia não o estivesse
segurando. Agora, ele tinha as feições duras como pedra, e Sophia estava a ponto de
desmaiar. Daniel, incrédulo e angustiado, não tirava os olhos de Eleanor, enquanto Jerome,
cheio de amargura, fitava o chão.

— Sua vagabunda! — Eleanor gritou de repente, dominada pelo ódio. — Deixe o


meu marido em paz... — E avançou para Sophia, erguendo a garrafa quase vazia. — Vou
acabar com esse seu lindo rosto!

A garrafa desceu em direção ao rosto de Sophia com tanta rapidez, que Wolfe,
tomado de surpresa, não foi capaz de reagir. Daniel percebeu o que ia acontecer. Com um
grito de angústia, jogou-se instintivamente entre a garrafa e a mãe, recebendo o golpe
destinado a ela.

Perdendo o equilíbrio, Eleanor caiu para trás, batendo com a cabeça no canto da
lareira de mármore. Mas ninguém notou, pois todos estavam em torno de Daniel, que jazia
imóvel no chão, com um longo corte na têmpora. Jerome tomou-lhe o pulso e, depois de
um momento, disse:

— Temos que chamar um médico.

— Ele está tão frio — Wolfe comentou, tocando o rosto do filho. Levantando-se,
Jerome viu a mãe caída e foi até ela, tomando-lhe o pulso também.

— Pai — chamou baixinho. E quando Wolfe se aproximou, prosseguiu: — Ela está


morta. Bateu com a cabeça.

Voltando a si, Daniel deparou com Sophia, que o beijava.

— Mamãe — murmurou, os olhos cheios de lágrimas.

— Fique quietinho, meu querido. Não tente se mover...

— Eu amo você, mamãe.

— Eu sei, meu querido — Sophia era a imagem da mãe terna e amante. — E eu


também amo você.
Wolfe e Jerome assistiam à cena, invadidos pela inveja. Voltando o rosto, o rapaz viu
refletido no rosto do pai o mesmo ciúme que sentia.

— Não podemos chamar o dr. Waring para ver os dois aqui. Causaria muito falatório
— disse Jerome, depois de um instante. — Daniel tem que ir embora e ser atendido na casa
dele. Diremos ao dr. Waring que mamãe levou um tombo. Não será surpresa para ele... Ela
estava sempre caindo.

Wolfe foi até Daniel e o abraçou, ajudando-o a se levantar.

— Você têm que ir para casa — murmurou para Sophia. — Ninguém deve saber do
que aconteceu aqui, hoje.

Sophia seguiu-o para fora do cômodo. A sós com a mãe, o rosto crispado de
amargura, Jerome pôs-se a soluçar.

Assim que chegou a Queen's Stonor, Sophia mandou buscar o médico da vila, que fez
um curativo no corte de Daniel, garantindo que aquilo não era nada. Novamente a sós com
o filho, no quarto, ela o fitou nervosamente.

— Daniel, eu sei que é duro para você entender, mas... Seu pai não queria que você
soubesse de nada... — Sophia interrompeu-se, muito corada. — Você ainda é nosso filho
mais velho e Queen's Stonor é sua, meu querido...

— Eu sei da promessa que ele lhe fez. Jerome me contou. Mas eu não posso... não
posso viver uma mentira, a vida inteira. Queen's Stonor pertence a Edward, não a mim.

— Não, querido, a casa é sua. Stonor quer que você a tenha.

— O que ele quer é fazê-la feliz. Ele jamais gostou de mim. Só não me jogou na rua
para não deixá-la triste.

— Não! Não é assim, Daniel!

— É, sim. Agora, se não se importa, eu gostaria de dormir um pouco, mamãe. —


Cansado, ele fechou os olhos.

Sophia não teve outra escolha, a não ser sair. Naquela noite, não foi ao quarto de
Stonor. Passou o tempo todo acordada, pensando em como fazer Daniel enxergar as coisas,
antes que ele arruinasse a vida de ambos. Todos os seus sonhos e esperanças estavam
centralizados nele.

No dia seguinte encontrou o quarto dele vazio. Desesperada, procurou-o por toda
parte, embora já soubesse que ele se fora. Saira na calada da noite, com algumas roupas e
uma velha mala, sem uma palavra de explicação.
Muito pálida, Sophia procurou Stonor. Ele assumiu uma expressão preocupada,
assim que a viu.

— Daniel foi embora — ela comunicou, com a voz distorcida pela dor. — Ele
descobriu... a verdade. Ontem à noite. Eleanor contou a Jerome, e Jerome contou a ele. —
Um soluço escapou de seus lábios. — Ele não vai mais voltar. Eu sei!

— Aquela maldita mulher! — Stonor xingou baixinho. — Nós faremos com que ele
volte, minha querida. Daniel é só um garoto. Não irá longe.

— Não, não. Eu sei que ele não vai voltar...

Rompendo em lágrimas, Sophia saiu do quarto, sem ligar para os chamados de


Stonor. Ele nunca se sentira tão incapaz, desde o acidente. Sabia o quanto Daniel
significava para Sophia. Ela sempre o vira como dono de Queen's Stonor.

De repente, uma onda de piedade pelo garoto invadiu Stonor, e à sua mente voltou a
lembrança da sensação de amor e triunfo que tivera, ao ajudá-lo a nascer. Sentimentos que
tinham sido destruídos ao longo dos anos, à medida que Daniel crescia e se tornava cada
vez mais parecido com Wolfe. O golpe final fora dado pelo nascimento de Edward.

Uma onda de alegria assolou Stonor. Agora, Queen's Stonor seria de Edward. Mas...
se Edward ficasse com a propriedade, Sophia não teria mais motivo para ficar com ele. Seu
coração acelerou-se de angústia. Ele amava Edward profundamente, mas amava Sophia
muito mais.

No dia seguinte, a morte de Eleanor tornou-se pública. Segundos os boatos, ela


sofrerá uma queda, quando estava bêbada. Stonor recebeu a notícia como quem recebe um
golpe mortal. Wolfe estava livre. Cheio de angústia, ele ficou à espera de que Sophia
aparecesse para lhe dizer que ia embora. Mas o dia se passou sem que isso acontecesse, e,
pelos criados, ele ficou sabendo que ela estava fechada no quarto, com uma forte dor de
cabeça. Sua angústia, no entanto, não diminuiu: passou a noite acordado, sofrendo como
nunca.

Louise ficou junto da mãe a noite inteira, segurando-lhe a mão, enquanto ela chorava.
Ambas sabiam que Daniel jamais voltaria. Quando amanheceu, Stonor mandou chamar
Sophia. Louise foi no lugar dela e explicou ao pai que a mãe ainda estava doente.
Percebendo que a filha estava a par de tudo, ele pediu:

— Diga a sua mãe que não vou alterar meu testamento. Um dia Daniel vai voltar e
ficar com a casa.

— Não adianta, papai — murmurou Louise, chorando. Dali em diante, essa frase foi
o tormento de Stonor.
Capítulo XXIV

Três dias depois, pálida e com os olhos azuis completamente sem brilho, Sophia
entrou no quarto de Stonor.

— Estou de saída para o escritório. Ele a fitou, incrédulo.

— Está bem — disse, tentando ganhar tempo. Ela não fora embora e, no momento,
era o que importava.

Sophia entregou-se ao trabalho, como Eleanor entregara-se à bebida. Voltava para


casa depois de longas e exaustivas horas de trabalho, com o rosto duro e olhos que nunca
riam. Seu sofrimento era visível. Observando-a, Stonor foi se enchendo de desespero. A
mulher viva e sorridente que conhecera fora substituída por uma pessoa fria como a
morte, que nunca tinha uma palavra para ninguém. Afinal, ele ficou tão desesperado que
decidiu chamar Wolfe.

Wolfe surpreendeu-se com a mensagem do irmão. Já sabia do desaparecimento de


Daniel e estivera três vezes no escritório Whitley, atrás de Sophia. Mas ela não quisera vê-
lo e ele acabara desistindo.

Wolfe encontrou Stonor sozinho, na cama, e não pôde conter uma onda de piedade
por ele.

— Sente-se. — Stonor convidou.

— Esta é uma honra inesperada, Stonor...

Sem ligar para a ironia de Wolfe, ele disse:

— Estou preocupado com Sophia. Ela não fala mais, mal come e trabalha de manhã à
noite. Deus me perdoe, mas eu acho que ela... está morrendo.

— Por causa do garoto?

— Eu sabia que ela o amava, mas nunca pensei que fosse tanto. Agora, Sophia parece
ter perdido a razão de viver. Creio que, se essa casa pegasse fogo, ela nem tentaria salvá-la.

Wolfe apertou os lábios, emocionado.

— Por que você mandou me chamar?

— Porque você é a minha última esperança...


Por um longo instante, os dois se fitaram. Então, quase com relutância, uma
expressão de admiração surgiu no rosto de Wolfe.

— Você me impressiona, Stonor... É mesmo capaz de desistir para salvar-lhe a vida?


Eu jamais faria isso.

— Uma condição...

— Então não é bem como eu pensava...

Stonor corou, sob o olhar zombeteiro de Wolfe.

— Eu não posso viver sem ela — admitiu, cheio de dor. Wolfe correu o olhar pelo
corpo arruinado, à sua frente e concordou:

— Não, não pode. Mas que condição é essa?

— Ela não deve desconfiar que eu sei. E nem pode me deixar. Tudo tem que ser feito
em segredo.

— Você pede demais, Stonor! Se ela descobrir, vai nos odiar. — Agitado, Wolfe se
ergueu e foi até a janela.

— Eu sei, mas não posso deixá-la morrer aos poucos, diante dos meus olhos. Não
agüento mais vê-la tão... sem vida!

Wolfe suspirou. Pensara que Stonor estivesse dando a liberdade completa a Sophia,
mas agora via que ele só estava tentando retê-la a todo custo.

— Depois do que você me disse, Stonor, não há nada que me impeça de tomá-la
definitivamente...

— Não, não há.

— Eu não o entendo...

Um estranho sorriso surgiu nos lábios de Stonor.

— Se Sophia quiser me abandonar, não posso impedi-la. Eu esperava que ela se


voltasse para você, mas ela não se voltou. Em vez disso, começou a morrer aos poucos. Foi
por isso que o chamei. Ela precisa de você, mas nunca deve saber do que eu fiz. Você não
saberia disso, se eu não lhe dissesse. Em troca, quero que a deixe comigo. Ela não me
abandonará, se você não a pressionar.

— Deus do céu, meu irmão, você é um mestre de intriga! — Wolfe estava meio-
zangado. — Quer dizer que, em gratidão a você por ter me contado que sua esposa não
tem mais defesas contra mim, devo lhe prometer que ela não o abandonará?

— Isso mesmo.
— Você não tem orgulho?!

— Nenhum. Tome todas as providências para que ninguém fique sabendo. Deve ser o
segredo mais bem guardado do mundo.

— Acha mesmo que vou aceitar?

— Acho.

— Por que? Pelo amor de Deus, por quê?!

— Porque eu estou como você sempre quis me ver, Wolfe: de joelhos. O seu orgulho
fará com que concorde.

— Eu nunca a amei como você — Wolfe disse afinal, depois de um longo silêncio. —
Eu sempre soube que você era louco por ela, mas fazer isso...

Uma luz súbita e violenta faiscou nos olhos de Stonor.

— Você não tem a menor idéia do que seja amor. Sophia é a minha própria vida. Por
ela eu sacrificaria meu orgulho, meus filhos... tudo enfim! Por ela, já sofri, morri e chorei.
Sou capaz de qualquer coisa, para retê-la ao meu lado.

Wolfe deixou escapar um gemido.

— Está bem, Stonor, você venceu. Estou sendo um tolo, mas você venceu...

Wolfe foi ao escritório Whitley no dia seguinte, quando o expediente de trabalho já


havia acabado. Dando uma gorjeta ao vigia, entrou na sala de Sophia. Da escrivaninha,
onde lia alguns documentos, ela ergueu os olhos para fitá-lo. Sem nada dizer, ele obrigou-a
a se levantar e vestir o casaco.

— Mas o que é isso, Wolfe?! O que foi que houve?

Segurando-a pelo braço, Wolfe arrastou-a para a rua. Dispensara a carruagem dela, e
deixara a sua à espera. O cocheiro partiu, assim que entraram, indo parar, algum tempo
depois, numa ruazinha calma, diante de uma casa pintada de branco. Wolfe ajudou Sophia
a descer, mandou a carruagem embora e levou-a, relutante, em direção à porta da casa.

— Wolfe! — Ela tremia de irritação. — O que foi que deu em você? Eu tenho que ir
para casa. — De repente, seu rosto se iluminou. — É Daniel, não é? Ele está aqui?.

Wolfe fez com que ela entrasse e fechou a porta da casa.

— Ah, minha querida — murmurou, erguendo-a nos braços e subindo a escada.


Sabia que Sophia esperava ver Daniel lá em cima, e no pequeno quarto colocou-a no chão,
dizendo com ternura: — Não, meu amor, ele não está aqui... mas nós estamos...

— Não! — Desesperada, Sophia empurrou-o para longe de si. E quando ele tentou
abraçá-la, arranhou-lhe o rosto de alto a baixo.
— Não faça assim, Sophia...

Sophia não o ouviu. Tomada por uma fúria animal, continuou a atacá-lo.

De repente, uma raiva tão grande quanto a dela explodiu em Wolfe. Brutalmente, ele
a empurrou para trás, jogando-a sobre a cama e atirando-se sobre ela. Sophia não parou de
lutar, arranhando, chutando e mordendo, os olhos cheios de ódio e desespero. Mas a força
dele era superior, e seus movimentos violentos só serviram para tornar mais aguçado o
desejo que o consumia.

Puxando os braços de Sophia para trás, Wolfe usou o peso do corpo para imobilizá-
los, liberando as próprias mãos. Enquanto ela continuava a lutar para fugir, arrancou-lhe o
casaco e o vestido, rasgando-lhe as roupas de baixo e separando-lhe as coxas com rudeza,
antes de se despir.

— Não! — Sophia gritou com amargura.

Wolfe apossou-se dela com uma selvageria tão brutal, que a fez convulsionar-se da
cabeça aos pés. Ela tremia violentamente, quando o corpo rijo e musculoso deu início ao
mais elementar ato de possessão. Ainda assim, continuou a arranhá-lo, xingando-o em
meio a soluços de ódio.

Indiferente a tudo, ele a usou sem ternura, amor, sensualidade ou gentileza,


dominando-a pela força bruta. Ela o rejeitara durante anos, mas agora era a vez dele
vencer.

Wolfe viu a mudança ocorrer na rosto de Sophia. A raiva acabou como que por
encanto, e um gemido abafado escapou dos lábios dela. Desnudando-lhe os seios, ele os
mordeu com selvageria, segurando-a pelo pescoço, os dedos enterrados na pele macia.
Movimentava-se dentro dela sem parar, num ritmo rápido e violento. Gemendo, Sophia
começou a reagir com sensualidade, arrancando-lhe a camisa, enterrando-lhe as unhas no
peito e acariciando-o com gestos bruscos.

Toda a resistência se fora. Sophia cobriu-o de beijos lânguidos. Seu corpo fremia, e a
amargura de sua união carnal já fazia desaparecer a mágoa causada pela partida de
Daniel.

Wolfe teve a impressão de estar rompendo as membranas da mágoa de Sophia.


Quisera ser calmo e delicado, usando a ternura para diminuir-lhe a tristeza, mas agora
sabia que o instinto o levara a fazer o que ela mais precisava, naquele momento. Sua
violência despertara nela a energia que estava adormecida desde a partida de Daniel,
forçando-a a aceitar que a vida continuava.

Ele estava pronto para o êxtase, mas não queria alcançá-lo sem levá-la junto. Por isso
esperou, acariciando-a com a mesma brutalidade que usava para se movimentar dentro
dela. Quando, afinal, sentiu que ela deslizava em direção ao clímax, levantou-lhe os
quadris, fundindo seus seres na escalada final, ao som de suas vozes enrouquecidas de
paixão.

Depois, Sophia chorou. Wolfe beijou-lhe gentilmente o rosto molhado, com os olhos
também cheios de lágrimas.

— Todos esses anos para nada... — ela murmurou, com desespero. — Desisti do meu
amor por causa dele... Queen's Stonor, era para Daniel... e ele foi embora... acabou tudo...

Wolfe continuou a beijá-la, nas faces, no nariz, no queixo, na boca trêmula. Afinal,
Sophia se acalmou. Terminando de tirar as roupas dela e as suas, Wolfe esticou-se na cama
e abraçou-a. Nus eles permaneceram juntos, em silêncio, ouvindo o bater de seus corações.

— Fazia tanto tempo — Wolfe comentou. — Venho sonhando com isso há anos.
Preciso tocar cada centímetro de você.

Ele trouxe a mão dela para o próprio peito. A princípio, Sophia não reagiu, mas
depois começou a acariciá-lo devagarinho, sem paixão. Logo, Wolfe retribuiu as carícias, e
aos poucos eles foram percebendo que podiam abandonar toda inibição e autocontrole. As
carícias ternas e sem pressa foram se tornando cada vez mais febris, e Wolfe ouviu-a
gemer:

— De novo, Wolfe... De novo...

Passaram a noite juntos, mal falando, exaurindo seus corpos com um desejo que
parecia insaciável. De madrugada, Sophia olhou para Wolfe, os olhos enormes no rosto
lânguido.

— Wolfe... Stonor vai enlouquecer... sem saber onde estou... Ele vai imaginar... ou
então adivinhar, o que é pior.

— Eu disse ao seu cocheiro que você ia jantar com os Winverns e passar a noite com
eles. Se Stonor se mostrar desconfiado, minta para ele. Você vai ter que aprender a mentir
para ele, minha querida, porque não pretendo perdê-la de novo. Ou isso, ou você vem
morar comigo.

— Não posso deixar Stonor. Ele não agüentaria, Wolfe.

— Então você precisa mentir. Comprei esta casa, e ela será o nosso lar. Aqui faremos
amor todos os dias, e você mentirá para Stonor.

— Não sei se vou conseguir...

— O que os olhos não vêem, o coração não sente. Stonor jamais saberá, e é isso que
importa.
— Eu não posso...

— O que você prefere? Dizer a ele que estivemos juntos, a noite inteira? Você não tem
escolha a não ser mentir, Sophia, porque não vamos mais nos separar.

— Não — ela confirmou, com um suspiro. — Sabe?, a culpa de tudo sempre foi
minha. Eu fui sua desde o primeiro momento, mas me sacrifiquei por Daniel, e ele foi
embora.

— Daniel a ama, minha querida, e um dia vai voltar.

— Mas não terá Queen's Stonor.

— Queen's Stonor que se dane, Sophia — Wolfe disse com amargura. — Aquilo é só
uma casa. Nós somos seres humanos e precisamos um do outro.

Um sorriso iluminou o rosto de Sophia.

— Ah, Wolfe, não posso perder você de novo! Em resposta, o coração dele se
acelerou.

Stonor não dormiu naquela noite interminável. Sabia o que estava acontecendo como
se estivesse presente. Mesmo reconhecendo a finalidade do que fizera, não podia conter a
dor, e as imagens continuavam se formando em sua mente. Sophia era tão quente,
apaixonada e sensual! Fazia tanto tempo que não a tinha, mas ainda se lembrava de como
ela ficava ao atingir o orgasmo, gemendo, com o corpo arqueado para cima e os olhos
fechados.

Louise ficou impressionada com o aspecto do pai, no dia seguinte. Ele estava abatido,
de uma palidez mortal e com um brilho estranho, meio enlouquecido, no olhar.

— Teve uma noite difícil, papai?

— Um pouco.

— Quer que eu mande chamar a mamãe?

— Não. — Stonor forçou um sorriso. — Na verdade, até prefiro que ela não me veja
assim. Vá buscar um pouco de brandy, minha filha.

— Mas papai, o senhor está proibido...

— Faça o que eu digo!

Louise obedeceu e, sob seu olhar reprovador, Stonor bebeu dois copos de brandy.

— Chega papai — ela disse depois do segundo copo, pegando a garrafa antes que ele
pudesse se servir de mais uma dose.
Stonor estava mais corado e com um brilho febril no olhar. Quando os passos de
Sophia ressoaram na escada, Louise o viu apertar os lençóis e estremecer como se estivesse
com medo de encontrar sua mãe.

A porta se abriu, e Sophia entrou. Surpresa, Louise notou que ela usava um vestido
novo, que nunca vira antes, estampado com flores azuis. Mas foi o rosto dela que lhe
causou maior surpresa: a máscara rígida e sem vida desaparecera, e a expressão
sorridente, terna e graciosa voltara. Sophia parecia pelo menos dez anos mais nova.

— Sentiu a minha falta, querido? Sinto ter passado a noite fora, mas já era tão tarde
quando o jantar terminou...

Já sob o efeito do brandy, Stonor sorriu de forma sonolenta.

— Você está em casa agora, minha querida. É isso que importa.

Sophia inclinou-se para beijá-lo é Stonor foi tomado por uma vontade violenta de
beijá-la com ferocidade, colocando a marca de sua possessão no lugar onde a boca de seu
irmão estivera, tão pouco tempo atrás. Em vez disso, sorriu apenas.

— Seu vestido é muito bonito, querida.

— Comprei-o hoje de manhã. Fiz um rasgo no que eu estava usando, e não deu para
consertar.

Louise queimava de vergonha. Notara as pequenas marcas, azuis e avermelhadas, no


rosto e no pescoço de sua mãe, e sabia que o pai também as vira.

— Você deve estar cansada, minha querida, e precisando de um banho.

Sophia riu, o rosto radiante.

— Eu estou exausta... — Seu olhar fixou-se na janela. — O dia está lindo, lá fora.
Nunca vi Queen's Stonor tão bonita. Tive até a impressão de que ela me dava as boas-
vindas, quando cruzei os portões.

— Acho que a casa sempre fica contente de ver você voltar, Sophia. Como eu fico...

Sophia virou-se para fitá-lo, meio surpresa, mas depois de um momento seu sorriso
voltou a brilhar.

— Eu sempre volto para você, Stonor. Você sabe disso.

Quando Sophia saiu, Louise viu o sorriso calmo do pai ser substituído por uma
expressão de intensa dor. Não agüentando mais a angústia de observá-lo, saiu também.

Sozinho, Stonor fechou os olhos, mordendo os lábios. Comprara a felicidade de


Sophia por um preço alto demais. No início, sentira-se feliz por vê-la como era antes, mas
depois enchera-se de ciúme. Wolfe a tirara do mundo de mágoa em que vivia, não ele.
Apelando para toda a sua força de vontade, Stonor obrigou-se a lutar contra aquele
ciúme. Fora ele que chamara Wolfe, numa última e desesperada cartada. Seria injusto
condená-lo, agora, por ter devolvido a vida a Sophia. Se ela estivesse se afogando, e ele não
pudesse salvá-la, por acaso teria preferido que Wolfe a deixasse morrer?

Mesmo assim, era muito duro, e Stonor se viu lamentando que Louise não tivesse
deixado a garrafa de brandy. Estava precisando de alguma coisa que o ajudasse a
esquecer...

Stonor nunca mais pôde ver Sophia no vestido estampado de azul, sem ser sacudido
por uma onda de desgosto. Ela não passou mais nenhuma noite em Bristol, mas ele sabia
que não era por ter deixado de se encontrar com Wolfe. Sophia andava radiante, e muitas
vezes assumia uma pose pensativa, com os olhos brilhantes e um sorriso nos lábios. Essa
expressão só aparecia quando ela pensava em Wolfe.

Cheio de infelicidade, Stonor aceitou o fato de que Sophia passara a pertencer a seu
meio-irmão. Apesar de terem tido um casamento feliz, com ele Sophia nunca se mostrara
tão radiante e cheia de vida. Desde aquela noite, ela passara a tratá-lo com o mesmo
carinho que dava aos filhos. Ele não mais procurara qualquer contato do tipo sexual, e ela
nada lhe oferecera. Aos poucos, ele fora se adaptando à nova vida, suportando o tormento
do ciúme em silêncio, sem deixar que a esposa desconfiasse de seu conhecimento. Afinal, o
importante era tê-la junto de si, pois sem ela seria impossível viver.

Capítulo XXV

Ao entrar na sala de visitas dos Hunt, Jerome foi tomado por uma intensa sensação
de tédio. Desde os dezoito anos, ele era um dos sócios menores da firma Hunt & Whitley.
O pai não permitira que cursasse a escola de medicina, e, sem alguém que o sustentasse,
ele não vira jeito de alcançar sua meta. Tendo crescido em meio ao luxo, não tinha a menor
inclinação para viver de um salário de fome, trabalhando de noite e estudando de dia,
como faziam os estudantes pobres. Além disso, gostava demais de roupas finas, boa
comida e bons vinhos, para se privar da vida que o pai proporcionava.

Durante os dois anos que haviam transcorrido desde a morte de Eleanor, o ódio e o
desprezo de Jerome pelo pai tinham aumentado, atingindo também o resto da
humanidade e ele mesmo, já que fazia parte dessa humanidade. Jerome também detestava
o primo Edward.
Edward começara a trabalhar em Bristol, oficialmente sob a direção da mãe. Mas a
verdade era que passava a maior parte do tempo com Luther, pois não gostava de ser
mandado por uma mulher. Apesar das grandes melhorias introduzidas por Luther, ele
também se ressentia do envolvimento dele na firma e sonhava em tirá-lo da sociedade.

Estranhamente, no entanto, Edward se dava bem com Thomas Hunt. O espírito


agressivo de Thomas, que tanta antipatia despertara em Daniel, o atraía. Só uma coisa, em
Thomas, não lhe agradava: o interesse por Louise. Thomas a considerava muito atraente e,
ao contrário de Edward, enxergava muito bem a vantagem de unir suas famílias em
casamento. Nos últimos anos, Bristol passara a ser dominada pelos Whitley: Stonor e
Wolfe; e por Luther Hunt. Juntos, eles possuíam quase todos os negócios da cidade, e
Thomas pretendia consolidar a sociedade que existia entre eles através do casamento.

Completamente indiferente aos olhares de interesse das moças presentes, Jerome


olhou em torno de si. O primo Luther subira muito na vida, e ninguém mais criticava sua
aparência de novo rico. Desde a morte da esposa, com a ajuda da encantadora sra. Stonor
Whitley, ele redecorara totalmente a casa, aprendendo a se portar e vestir de forma mais
elegante. Naquela noite, a maioria dos mais respeitados cidadãos de Bristol ali estavam
presentes, para celebrar o vigéssimo aniversário de Thomas. Jerome também não gostava
desse primo, que se dava tão bem no mundo dos negócios, quando ele se sentia tão
irritado e aborrecido.

Correndo os olhos pela sala, Jerome fixou-os na sra. Whitley. Irritava-o o fato de não
poder deixar de admirar uma mulher que detestava. O tempo parecia não ter passado para
ela, que continuava tão jovem e linda quanto na primeira vez em que a vira. O pai dele, no
entanto, mudara muito. Desde a morte da esposa, passava as noites em casa, lendo ou
conversando com os filhos. Obviamente, envelhecera antes do tempo, perdendo a energia
sexual.

Seu olhar voltou para Sophia Whitley. Ali estava uma mulher de quarenta anos, que
poderia ter sido sua mãe, mas ainda era desejável. Fora amante de seu pai, e dessa união
nascera Daniel, tão parecido com ele.

Vagamente arrependido, Jerome lembrou-se do modo impensado como contara a


verdade ao irmão. O horror e o sofrimento de Daniel ainda o perseguiam, e ele se culpava
pelo que acontecera em seguida, inclusive a morte da mãe.

Um senhor magro juntou-se a Luther Hunt, e Sophia afastou-se polidamente, em


direção ar um grupo de mulheres. Jerome interceptou-a no meio do caminho.

— Sra. Whitley... — Ele não sabia, mas falava com insolência, e seus olhos
expressavam uma mistura de admiração e desprezo.
— Jerome, meu querido! Você está crescendo tão depressa! — Sophia comentou, num
tom maternal e alegre.

Irritado, Jerome tomou a decisão mais rápida e que menos esperava tomar, em sua
vida.

— Eu estava querendo falar com a senhora. Tenho uma notícia que talvez lhe
interesse...

— É mesmo? — ela retrucou, ouvindo-o como se estivesse fazendo a vontade de um


garotinho.

— Recebi notícias de Daniel.

Sophia empalideceu e seus lábios se crisparam. Com algum remorso, Jerome viu-a
deslizar, sem sentidos, para o chão. Um segundo depois, Luther estava junto deles e levou-
a para um quarto, onde a deixou, já se recuperando, sob os cuidados de Louise.

Wolfe agarrou o filho pelo braço, fitando-o com ferocidade.

— Por que foi que ela desmaiou?

— Eu lhe disse que tinha notícias de Daniel. Recebi uma carta dele.

— Quando? Por que não me disse? E o que foi que lhe deu, para falar com ela assim,
em público? Seu cafajeste...

Nesse momento, a porta do corredor se abriu e Louise Whitley apareceu. Olhando-a


com ternura, Wolfe pensou que ela continuava a imagem de Sophia. Ao contrário de Alice,
que mudara muito ao crescer, ficando com uma personalidade parecidíssima com a da
mãe.

— Jerome... Minha mãe gostaria de vê-lo, agora.

Jerome adiantou-se, com o pai nos calcanhares. Friamente, Louise disse a Wolfe:

— Sinto muito, mas minha mãe quer ver Jerome a sós.

Com um olhar triunfante para o pai, Jerome entrou no quarto onde estava Sophia,
sobre uma espreguiçadeira. Ela estendeu a mão para ele, que se ajoelhou junto dela, com a
garganta apertada.

— Onde está Daniel, Jerome? O que aconteceu com ele? E a carta?

As perguntas foram feitas numa voz meiga e trêmula. Com a mão dela entre as suas,
Jerome sentiu-se estremecer.

— Eu não trouxe a carta. Daniel escreveu de Londres. Ele está bem e queria notícias
suas...
— É mesmo? — Sob o olhar incrédulo do rapaz, Sophia corou como uma garotinha
recebendo notícias do namorado.

"Meu Deus" pensou Jerome, "não é de admirar que papai nunca tenha conseguido
esquecê-la! Ela é..."

— Daniel lhe contou o que está fazendo, Jerome?

— Ele se engajou no exército.

— No exército?! Ah, não... Podem matá-lo. Onde ele está? Precisamos tirá-lo de lá.

— Não é possível, Daniel já deve estar na Índia.

— Quando foi que ele partiu?

— Dois anos atrás — Jerome confessou, depois de uma ligeira hesitação.

— E você nunca me contou?!

Havia mágoa na voz dela, e Jerome corou. Prometera a Daniel jamais revelar onde ele
estava, mas uma vontade incontrolável de varrer do rosto de Sophia Whitley aquele sorriso
indulgente e alegre levara-o a quebrar sua palavra. Agora, estava furioso consigo mesmo.

— Eu tinha prometido a Daniel não contar — explicou, fitando os olhos de Sophia,


cheios de lágrimas. Emoções estranhas e ingovernáveis rugiam em seu íntimo. — Mas ele
me pediu para lhe dar isso. — Inclinando-se, roçou com a boca os lábios dela. — Quer ver
a carta de Daniel?

— Quero. Pelo menos, agora saberemos onde procurá-lo.

— Eu a levo para você, em Queen's Stonor.

— Ele só escreveu uma vez?

— Só.

Sentindo-se arder da cabeça aos pés, Jerome procurou uma desculpa qualquer para
beijá-la de novo. Mais uma vez, queria sentir, sob os seus, os lábios daquela mulher ainda
desejável, tão versada nos conhecimentos do amor. Imaginou-a, de repente, nua nos braços
dele e o sangue subiu-lhe ao rosto. Tentando disfarçar, murmura:

— Desculpe meu silêncio, mas Daniel insistiu muito para que eu não dissesse nada,
enquanto algum tempo não se passasse...

Enganando-se quanto ao motivo do embaraço dele, Sophia sorriu com gentileza.

— Eu não o condeno por sua lealdade ao meu filho, Jerome. Mas estou contente por
ter me contado, afinal. Quando pode me levar a carta?

— Amanhã cedo.
Impulsivamente, Sophia inclinou-se para beijá-lo no rosto, mas Jerome virou a
cabeça, fazendo seus lábios se tocarem. Nesse exato momento Wolfe entrou. Estacou,
surpreso ao ver o filho procurar, deliberadamente, os lábios de Sophia. Ela não notou, mas
ele viu o rapaz apertar os punhos junto ao corpo e percebeu, num átimo, as emoções que o
dominavam.

Jerome ouviu a porta se fechar e ergueu-se de um salto, corando ainda mais. Sem
uma palavra e ostentando novamente o ar irônico que lhe era peculiar, ele passou pelo pai
e saiu.

Wolfe virou-se de imediato para Sophia, fitando-a com atenção. Ela estava um pouco
tensa, mas com o rosto iluminado pela alegria.

— Wolfe, Daniel está com o exército, na Índia. Escreveu para Jerome há dois anos,
mas fez com que ele prometesse não nos contar...

Wolfe aproximou-se, no rosto uma máscara de frieza.

— Por que foi que ele escolheu exatamente esta noite para lhe contar, e em público?

— O que importa é que Jerome nos contou, e agora podemos encontrar Daniel. Ele
está vivo, sabemos onde está e como entrar em contato com ele...

— Vou me encarregar disso, amanhã mesmo. O exército nos dirá o que precisamos
saber, e o traremos de volta para cá.

Sophia estendeu a mão para ele, tão feliz que se esqueceu de que alguém poderia
entrar e vê-los. Como o filho fizera, Wolfe ajoelhou-se junto dela e beijou-a na boca.

— Você vai contar a Stonor?

Com tristeza, Sophia meneou negativamente a cabeça.

— Por que não?

— Ele não amava Daniel. Edward ficará com Queen's Stonor, e nada mudará isso.
Daniel é nosso filho. Seu e meu. Onde ele está e o que faz, só interessa a nós.

— É verdade, minha querida. — Concordou Wolfe, profundamente emocionado. —


Nosso filho não precisa de Queen's Stonor.

— Não foi isso que eu disse! Daniel amava aquela casa, e eu sei que ficou muito
magoado, quando a perdeu. — Sophia suspirou, resignada. — A casa pode estar perdida,
mas Daniel não está. Ah, eu tive vontade de beijar Jerome!

— Você beijou...

— Ele é um garoto estranho... E tão parecido com Daniel, que os dois poderiam ser
gêmeos! Geralmente é muito sarcástico e rude, mas esta noite ele foi muito bom para mim.
Com os olhos fixos no rosto dela, Wolfe raciocinava depressa. Cega pela juventude e
semelhança de Jerome com Daniel, Sophia não desconfiava dos sentimentos do rapaz. O
que poderia ele fazer? Era mesmo uma situação difícil...

Na manhã seguinte, Jerome levou a carta para Sophia. Ela o recebeu na porta,
beijando-o no rosto, sem perceber o efeito que exercia sobre ele.

— Sente-se, meu querido — convidou-o, levando-o para uma saleta e chamando


Louise.

As duas leram a carta de Daniel juntas, com os olhos cheios de lágrimas.

— Posso ficar com ela? — Sophia perguntou, no fim.

— Bem...

— Por favor, Jeromeí — ela implorou, segurando as mãos dele. Juntando toda sua
coragem, Jerome inclinou-se para a frente e beijou-a na boca.

— Acho que Daniel gostaria que ficasse com ela — murmurou, fingindo uma
bondade casual.

Louise o observava de perto. Quando ele a fitou, com a frieza de sempre,


surpreendeu-se com a antipatia e desprezo estampado no rosto dela. Zangado, retribuiu
com a mesma hostilidade.

Louise sabia muito bem o que Jerome sentia. Desconfiara na noite anterior, e naquela
manhã tivera a confirmação de suas suspeitas. Aos quinze, anos, ela era uma garota muito
sensível à atmosfera em torno de si, e muitas vezes temia que a fachada de Queen's Stonor
pudesse se abrir e revelar ao mundo os segredos que escondia.

O tempo não tornara menor a agonia de seu pai, causada pelo relacionamento entre
Sophia e Wolfe Whitley. Cada vez mais Stonor procurava ajuda no brandy, e só ela via-lhe
a angústia no rosto, quando a esposa partia para Bristol todas as manhãs, para trabalhar e
encontrar-se com o amante.

— Você deve estar com sede, depois dessa longa cavalgada — Sophia disse a Jerome,
sorrindo. — Louise, leve-o para a copa e dê-lhe um refresco...

Ofendido, com um olhar faiscante que a surpreendeu, Jerome respondeu por entre
dentes:

— Eu tenho dezoito anos de idade, sra. Whitley, e não doze.

— Ah, desculpe, Jerome! Estou sempre me esquecendo do quanto você cresceu...


"E não é capaz de ver o que está bem diante de seus olhos", Louise pensou, com
amargura. "Papai veria. O seu amante veria. Mas a senhora só vê os olhos de Daniel, o
rosto de Daniel..."

Sophia tocou a campainha, chamando uma criada.

— O que gostaria de tomar, sr. Whitley? — perguntou, inconscientemente flertando


com ele. — Sherry?

— Está ótimo, obrigado.

A criada trouxe o sherry, e Sophia serviu-o. Nervoso, Jerome levou o cálice aos lábios,
observado por mãe e filha. Sentiu-se um idiota e, ressentido, lançou um olhar frio para
Louise. O que estaria a "cadelinha" pensando, olhando-o daquela forma? Afinal, aliviado
por haver terminado, colocou o copo sobre uma mesinha e disse com brusquidão:

— Preciso ir. Srta. Louise... — Saudou-a com um gesto indiferente e virou-se para
Sophia, com a intenção de fazer o mesmo. Mas seu corpo não obedeceu a mente, e ele
acabou beijando-lhe a mão, consumido por uma emoção violenta, que jamais
experimentara.

Quando Jerome se foi, Sophia virou-se para a filha.

— Eu vou a Bristol, Louise. Temos que encontrar Daniel, e logo. Não vou dizer nada a
seu pai, porque esse é um assunto que não interessa a ele.

— Tudo que diz respeito à senhora interessa a papai. "E de Wolfe Whitley", Louise
pensou, zangada.

Quando Sophia saiu, ela foi para o quarto do pai. Encontrou-o lendo um livro, com ar
abatido que traía uma noite maldormida.

— Quem estava aí? Ouvi visitas chegando.

— Jerome.

— O que ele veio fazer aqui? Não gosto disso!

— Ele veio me visitar, papai.

Louise corou, por estar mentindo, mas Stonor interpretou de outro modo seu
embaraço e foi tomado pela raiva.

— Não quero esse garoto na minha casa. Você não o andou encorajando, não é? Não
vou admitir uma coisa dessas.

— Ah, não, papai! Não é nada disso. Jerome jamais olharia para mim desse modo.
Aliviado, Stonor recostou-se nos travesseiros. A idéia do filho de Wolfe Whitley
namorar sua filha lhe era tão repulsiva, que se esqueceu de fazer outras perguntas sobre a
visita do rapaz.

Mais tarde, Louise lembrou-se da conclusão errada tirada pelo pai e sorriu, meio
aborrecida. Jerome nem a via, à sombra da mãe. E que homem veria? Ela amava a mãe,
que nunca deixara de tratá-la com amor e ternura, mas às vezes sentia-se inquieta, com a
sensação de estar correndo o risco de perder sua identidade, sob o brilhante domínio da
mãe.

Louise sabia que a culpa não era de Sophia, que vivia lhe pedindo para ser um pouco
mais ousada em sua escolha de roupas. Mas ela nunca atendia, fazendo questão de
escolher roupas que diminuíam sua beleza. Era quase como se tivesse medo de competir
com a mãe e preferisse se esconder de todos. Se bem que, como poderia um pálido prisma
de um lustre competir com um raio de luar? Que chance teria ela contra a mãe?

Sophia sentou-se com Wolfe, no sofá.

— Você irá a Londres, ver se pode localizá-lo?

— Amanhã mesmo, minha querida. Acharei nosso filho, nem que tenha que mover
céus e terras. — Pondo-se a acariciá-la, Wolfe empurrou-a de encontro às almofadas.

— Agora não, Wolfe... Tenho que voltar ao escritório.

— Agora — ele replicou, num tom determinado.

Desde que percebera os sentimentos do filho, Wolfe sentia-se inquieto. O rapaz era
inteligente, brilhante e bonito, o que fizera crescer em seu íntinio, nos últimos dias, um
ciúme que considerava ridículo e vergonhoso. Afinal, Jerome não passava de um menino...
Mas depois ele se lembrava de si mesmo aos dezoito anos, ardendo com o desejo de um
homem e possuindo Sophia com toda a paixão da maturidade.

Wolfe resolvera não preveni-la, por se achar mais seguro enquanto ela não soubesse.
Na sua opinião, um garoto da idade de Jerome não teria coragem de se abrir com uma
mulher mais velha. Se estivesse enganado, no entanto... Seria possível que ela se sentisse
tentada?

No dia seguinte, Wolfe foi para Londres. Sophia continuou na rotina usual, fazendo o
possível para esconder sua impaciência de Stonor. Várias vezes Jerome apareceu no
escritório, para vê-la. Na primeira vez ela ficou surpresa, mas contente, aceitando a
alegação dele, de querer saber como estavam as buscas de Daniel. Quando ele apareceu
novamente, com a desculpa de ter deixado as luvas para trás, ela começou a se inquietar.
Só quando o viu corar enquanto a fitava, começou a desconfiar de algo mais sério.
Jerome viu a surpresa e depois a incredulidade que surgiram no rosto dela, e sentiu o
coração se apertar. Não sabia o que fazer de suas emoções, que o estavam deixando louco.
Interrompendo o que dizia, balbuciou que precisava ir e aproximou-se para beijar-lhe mão.
Sophia a estendeu devagarinho, olhando-o com curiosidade, e ele quase se descontrolou,
ao tocá-la e sentir-lhe o perfume.

Jerome nunca amara ninguém em sua vida. Aos dezoito anos, era um rapaz frio e
amargo, que se mantinha emocionalmente distante do resto da humanidade. Na infância,
detestara e desprezara Sophia, mas agora a amava apaixonadamente. Estava tão
despreparado para esse tipo de sentimento, que não tinha idéia do que dizer ou fazer. Ele,
que tanto se orgulhava de seu raciocínio rápido e autocontrole, agora se deixava levar por
impulsos de momento, como se não tivesse a menor capacidade de decisão.

Sophia alarmou-se com as estranhas emoções que cruzavam o rosto do jovem, à sua
frente. No momento seguinte, Jerome estava de joelhos diante dela, beijando-lhe as mãos
com paixão e murmurando palavras inaudíveis. Mas ela não precisava ouvi-las para
entender. Seus lábios se abriram numa demonstração de choque e incredulidade. Logo em
seguida, Jerome levantou a cabeça e, horrorizado consigo mesmo, ergueu-se de um salto e
saiu, deixando-a atônita, e imaginando o que fazer.

Dois dias depois, Wolfe voltou de Londres e foi ao escritório de Sophia. De imediato
ela se jogou nos braços dele, beijando-o e perguntando:

— Descobriu onde está Daniel?

— Venha, minha querida. Pegue o seu chapéu e vamos sair. Preciso ficar a sós com
você.

Ansiosa, ela obedeceu, e os dois se dirigiram à saída. Durante aqueles anos, tinham
sido raras as visitas de Wolfe ao escritório. Eles haviam feito questão de manter em
segredo seu relacionamento, e suas idas à casa que Wolfe comprara eram sempre discretas
e em separado.

Jerome estava do outro lado da rua, preparando-se para mais uma visita a Sophia,
quando viu o pai ajudando-a a subir numa pequena carruagem. Mais que depressa,
montou em seu cavalo e pôs-se a segui-los, a uma distância discreta.

— Vamos fazer um piquinique à beira do rio — Wolfe anunciou, mostrando a cesta


de vime sobre um dos bancos.

— Como está Daniel?

— Muito bem, minha querida.

Sophia relaxou, com os olhos brilhantes de alegria.


— Graças a Deus! Quando você não me disse logo...

Ao chegarem a um belo campo, junto ao rio, Wolfe pagou o cocheiro e pediu-lhe para
voltar àquele lugar dali a três horas, para pegá-los. Então, de mãos dadas com Sophia,
dirigiu-se a um bosque de chorões, que cresciam à margem do rio. Estendendo um
cobertor no chão, eles se acomodaram e abriram a cesta.

— Fale-me de Daniel, Wolfe. Não consigo mais esperar!

— Daniel está na região noroeste da Índia, num forte bastante remoto. Foi recrutado
nas ruas de Londres e mandado para lá, quase que de imediato. Pelo que me disseram,
tem se saído muito bem. Já foi promovido a cabo e mostrou muita bravura durante as
batalhas de que participou. Seus superiores acham que ele tem chance de fazer uma bela
carreira.

Sophia mal o ouviu.

— Temos que tirá-lo de lá. Precisamos trazê-lo de volta, Wolfe.

— Eu fiz o que pude. O oficial que me atendeu foi muito prestativo e gentil, mas
Daniel não é mais um garoto, para ser salvo pela mãe. Não podemos obrigá-lo a fazer
nada.

— Mas ele tem que voltar para mim! Não é possível que ele não queira voltar!

— Claro que ele quer voltar, Sophia. Ele a ama.

Sophia deitou-se sobre o cobertor, fitando o céu com ar sonhador. A seu lado, Wolfe
pôs-se a colher flores silvestres, trançando suas hastes para formar uma coroa.

Devagar, em silêncio, Jerome foi se aproximando, até poder observá-los, de trás de


uns arbustos. Viu o cobertor, a comida intocada, o pai, ocupado com uma coroa de flores, e
afinal, Sophia.

Logo depois, Jerome viu o pai tirar o chapéu de Sophia, soltar-lhe os cabelos negros e
enfeitá-los com a coroa de flores. Rindo, ela o puxou para si, começando a desabotoar-lhe a
camisa. Jerome sentiu-se sufocar de ciúme. Ela passava as mãos pelo peito de seu pai com
evidente prazer... De repente, porém, ergueu-se de um salto e fugiu para longe dele.

Wolfe a seguiu, e eles se puseram a brincar com a alegria e a despreocupação de duas


crianças. Enojado, Jerome observou o pai alcançá-la e puxá-la para o chão. Logo, ouviu o
som dos beijos que trocavam. Aquele não era um encontro breve, ocasional. Entre eles
havia a intimidade de antigos amantes. Até o modo como faziam amor não tinha a
urgência da novidade. Os dois se beijavam e acariciavam devagar, com prazer, como quem
tem todo o tempo do mundo a sua disposição e não precisa se apressar.
Jerome saiu dali e cavalgou como um louco para Queen's Stonor. Cego de ódio e
ciúme, estava decidido a destruir o que encontrasse diante de si. Louise o viu chegando e
foi recebê-lo.

— Preciso ver seu pai com urgência.

— Não!

— Já é tempo que ele saiba que sua mãe é amante de meu pai — explicou Jerome com
fúria. — Já é tempo que ele saiba a vagabunda que tem por esposa.

Louise o esbofeteou com força. Jerome moveu-se para retribuir o tapa, mas ela o
esbofeteou de novo, tão corada e cheia de vida em sua defesa do pai, que se tornou
parecidíssima com a mãe.

— Você não vai falar com meu pai! Ele está muito doente para saber disso...

Jerome dirigiu-se à escada, mas ela o agarrou, puxando-o para trás e fazendo-o cair.
Logo se levantou, dizendo histericamente.

— Eles estão lá agora, junto ao rio, fazendo amor em público, ao ar livre, como dois
animais! Por que seu pai não pode saber? Ele tem o direito de saber que está sendo traído
pelo irmão bastardo!

— E você está doente de ciúme! Deixe o meu pai em paz. Agüente o seu ciúme
sozinho. Não apareça mais aqui, chorando como um garotinho que descobriu que o
brinquedo que queria pertence a outro...

Jerome ficou roxo de ódio. Pela primeira vez via Louise como mulher, com os olhos
tão brilhantes quanto os da mãe, o rosto corado e a boca trêmula de raiva. Levado pela
violência, agarrou-a pelos ombros e a sacudiu.

— Eu vou contar a todos que sua mãe é uma vagabunda...

Louise esbofeteou-o de novo. Empurrando-a de encontro à parede, Jerome se pôs a


beijá-la com selvageria, mordendo e ferindo-lhe a boca. Quando ela tentou se libertar,
retorcendo o corpo, deslizou as mãos para baixo, procurando-lhe os seios. Perdera por
completo a noção da realidade. Em seus braços, tinha Sophia e tomava o que queria, com
lábios exigentes e mãos aflitas.

Louise gemeu. O corpo pressionando o seu era excitante. Gemendo de novo, cheia de
ardor, ela o enlaçou pelo pescoço e entreabriu os lábios.

O ar parecia estar cheio de fumaça entorpecente. Concentrados no que acontecia


entre eles, ambos tinham a respiração alterada. Louise tremia, com os lábios machucados e
doloridos, mas seus olhos se fecharam e ela se rendeu.
Percebendo a vitória, Jerome apertou-a ainda mais de encontro a si, o corpo latejando
de vontade de possuí-la. Subitamente, um relógio dando as horas trouxe-o de volta à
realidade. Louise abriu os olhos e fitou-o, muito pálida. Por um segundo ele continuou a
olhá-la como se quisesse atacá-la, depois girou nos calcanhares e saiu, deixando-a a chorar
baixinho.

Capítulo XXVI

No dia seguinte, Louise saiu para cavalgar pelo bosque. Não conseguia pensar em
nada, a não ser no que acontecera entre Jerome e ela. Há anos ele fazia parte de sua vida,
ligado à ameaça sombria que era Wolfe Whitley, e ela sempre o achara irritante, jamais
conseguindo ignorá-lo.

Pensativa, sem ver para onde ia, Louise continuou a cavalgar. Só quando outro cavalo
saiu de trás de uma árvore, voltou ao momento presente e ergueu a cabeça. Seu coração
quase parou. Dominada pelo instinto, virou o cavalo e se afastou a galope. Mas seu
perseguidor era mais audacioso e, enquanto corriam entre as árvores, ele descreveu um
semicírculo e agarrou as rédeas de seu cavalo, obrigando-a a parar.

Cega pela raiva e pelo medo, Louise levantou o chicote e atingiu o rosto de Jerome.
De imediato ele arrancou o chicote de suas mãos, empurrando-a para o chão. E antes que
ela tivesse tempo de montar novamente, estava a seu lado, agarrando-a com violência
pelos ombros.

— Me solte! Você me dá nojo, Jerome!

— Não foi isso que vi, ontem.

Os olhos dele faiscavam, irônicos, e ela corou.

— Você não é um cavalheiro! Mas também, o que mais eu poderia esperar do filho de
um bastar...

— Poderia esperar isto! — Jerome replicou, começando a beijá-la.

Louise mal lutou. Desde o dia anterior, vinha desejando uma repetição do que
acontecera entre eles, e deixou-o puxá-la para a grama, enlaçando-lhe o pescoço e
retribuindo o beijo. Quando a carícia terminou, no entanto, recomeçou a pensar e disse,
insultuosa:

— Eu não sou minha mãe.


— A vagabunda da sua mãe que vá para o inferno! — Jerome respondeu, com
indiferença. Virando-se de lado, pegou uma haste de grama e pôs-se a fazer-lhe cócegas na
orelha, com ar malicioso. — Ontem, quando você se zangou, ficou muito bonita, também.
Por que anda por aí como um ratinho, quando é uma gata selvagem por dentro?

Louise o fitou. Os olhos azul-esverdeados sorriam, e de repente ela sorriu também.

—Gatas arranham...

—Já percebi. — Ele passou a mão pelo vergão que o chicote seu rosto. — Mas um
beijo cura...

— Só se você me obrigar!

Empurrando-a de encontro à grama, Jerome ordenou:

— Beije-me, Louise.

Lentamente, ela ergueu a cabeça e pousou os lábios no vergão. Quando se deitou de


novo, ele comentou:

— O meu sangue ficou na sua boca.

Jerome procurou novamente seus lábios e Louise entreabriu-os sem hesitar. Por um
longo tempo, o silêncio os envolveu. Só quando ele levantou sua saia ela enrijeceu,
empurrando-lhe a mão para longe.

— Uma virgem — disse Jerome, com uma careta.

— E pretendo continuar sendo!

— Então, você não é filha de sua mãe.

— Se veio atrás de uma substituta para ela, pode procurar outra! — retrucou Louise,
cheia de amargura.

— Você a odeia?

— Não. Bem que eu gostaria, mas não é fácil.

— Tem razão.

Por um instante os dois se fitaram com atenção.

— Você está apaixonado por ela — acusou Louise.

— Não sei, não. Eu estava, até vê-la com meu pai. Há quanto tempo será que eles vêm
se encontrando em segredo? Deus do céu, a hipocrisia de tudo me deixa enojado!

— É? E o que é que você queria dela? Palavras gentis?


Foi a vez de Jerome esbofeteá-la. Louca de raiva, Louise reagiu e ambos rolaram pela
grama como animais, chutando e arranhando. No fim, dominando-a com o peso do corpo,
ele a prendeu de encontro ao chão. Ambos estavam corados e excitados.

— Deixe que eu... Deixe, Louise!

— Não! Não vou servir de substituta para a minha mãe.

— Não há ninguém aqui para me impedir, se eu quiser..,

— Se quer uma prostituta, vá a Bristol!

— Eu quero você.

— Não, você quer é a minha mãe.

Jerome examinou-a com um olhar febril.

— Droga! Fique então com a sua virgindade até estar velha demais para tentar
alguém.

Louise riu, os olhos azuis muito brilhantes.

— Você não sabe?! Eu vou me casar com Thomas.

Jerome zangou-se. Nunca pensara naquilo.

— Sua vagabunda, você me provocou esse tempo todo...

— Por acaso eu lhe pedi para encostar a mão em mim?

Louise estava achando excitante a expressão sombria de Jerome. Não era sua mãe que
ele via agora, mas ela.

Ambos se levantaram e Jerome agarrou-a com força pela cintura, apertando-a de


encontro a si, antes de ajudá-la a montar.

— Até outro dia, Jerome — ela se despediu, com ironia. Mas ele não replicou.

Deitados na cama, em sua casa em Bristol, Sophia e Wolfe comiam frios e tomavam
champanhe. Tinham feito amor durante quase uma hora, e agora, ainda nus, descansavam.

— Wolfe... eu me esqueci de lhe dizer, mas outro dia aconteceu uma coisa estranha...
Jerome foi me visitar e se comportou de um jeito tão esquisito...

Wolfe enrijeceu, e ela percebeu que ele já sabia o que ia lhe dizer.

— Como assim? O que foi que aconteceu, Sophia?

— Ah, nada de mais. Ele começou a beijar a minha mão com ardor e eu...

— O que foi que você fez?


— Nada. — Ela conteve o riso, ao ouvir o tom enciumado na voz do amante. — Está
com medo de que eu o encoraje, Wolfe? De que eu me entregue a ele?

— Eu o mataria, se isso acontecesse. — Tentando se controlar, Wolfe perguntou, num


tom menos áspero: — Mas agora diga-me a verdade: o que foi que você fez?

— Fiquei surpresa, e ele fugiu como um bichinho assustado, quando viu minha
expressão. — De repente, o divertimento de Sophia transformou-se em alarme. — Ele não
sabe de nós, sabe?

— Agora não, mas no passado, sim.

— Claro. Foi ele que contou a Daniel...

Vendo os olhos de Sophia encherem-se de lágrimas, Wolfe abraçou-a com ternura.


Jerome era uma ameaça, que precisava ser afastada. O que não seria difícil.

Naquela mesma noite, durante o jantar, Wolfe abordou o assunto. Alice estava
jantando na casa de uma família amiga, os outros garotos ainda não tinham vindo para as
férias, e eles se encontravam sozinhos.

— O que está achando dos negócios agora, Jerome? Ainda prefere a medicina? —
Wolfe perguntou, casualmente.

— Ainda. Eu detesto os seus negócios.

— Já que é assim, vou fazer sua vontade. Pode se matricular na escola de medicina.

Vagarosamente, Jerome colocou o cálice de vinho do porto sobre a mesa. Sabia muito
bem o que se passava com o pai.

— Resolveu me tirar do caminho, pai?

— Como assim? — Com esforço, Wolfe dominou a raiva, tentando nada demonstrar.
— Não quer mais fazer medicina?

— Ela é linda, não é, pai? E eu a quero. Ela lhe disse, não foi? Afinal, por que não? O
senhor a teve por tanto tempo, e eu sei que acha que as famílias devem partilhar tu...

Wolfe agarrou-o pelo pescoço, antes que Jerome terminasse de falar. Os dois se
ergueram, agredindo-se com fúria. De repente o pai acertou um soco violento no rosto do
filho. Jerome caiu, com o nariz sangrando, e Wolfe inclinou-se sobre ele.

— Nunca mais fale dela assim, ouviu? Amanhã mesmo você vai para um hotel, em
Londres. Em setembro, começam suas aulas. Tire tudo o mais da cabeça!

— Por que não me mata logo de uma vez, como fez com minha mãe? — Jerome
perguntou com ódio. — Sua amante bem que gostaria de saber que você matou para
conservá-la...
— Acha que eu não seria capaz?

Jerome recuou, assustado com a frieza do pai. Não conhecia o homem que tinha
diante de si.

— Ela é mulher de outro homem. E se eu contasse a ele a verdade?

— Pois conte. Vai ter uma surpresa e tanto.

Vendo o ar irônico nos olhos do pai, Jerome entendeu.

— Meu Deus, ele sabe...!

— Claro. Acha que poderíamos esconder dele, todo esse tempo?

— E ele não faz nada? Pensei que ele odiasse o senhor.

— Stonor a ama — Wolfe admitiu, com um suspiro. — Se você acha que conhece
alguma coisa do amor, Jerome, deve conversar com Stonor. Para poupar Sophia de um
instante de dor, ele se deixaria esquartejar por cavalos selvagens.

— E mesmo assim o senhor o trai?

— Seu tolo! Nunca estranhou que ela continue com ele, em vez de vir para mim?
Acha que não é isso que eu quero? Eu a tenho por algumas horas do dia, mas ela volta
para ele, Jerome. É isso que importa para Stonor, agora. Ele ficou impotente, mas a tem de
volta ao fim de cada dia, embora ela seja minha.

Jerome sentou-se no chão, limpando o rosto com o lenço.

— O senhor quebrou um dos meus dentes.

— É bom para você aprender a ser mais delicado. Sophia é a pessoa que mais amo no
mundo, Jerome. Fique longe dela!

— Mas que droga, pode ficar com ela! O que eu quero é uma boa mesada, enquanto
estiver estudando.

— Seu moleque! Mas eu concordo — Wolfe disse, rindo. Jerome não partiu para
Londres no dia seguinte. Em vez disso, foi a Queen's Stonor. Louise o viu antes que a
alcançasse, mas não fugiu. Na verdade, até parou o cavalo para esperá-lo.

— O que foi que aconteceu com você? — perguntou alarmada, ao ver-lhe o rosto
inchado e machucado.

— Sua mãe contou a meu pai do meu interesse por ela e ele resolveu acabar comigo.

— Bem que você mereceu!

— Ele vai me mandar para a escola de medicina, em Londres. Está com medo de que
sua mãe não consiga resistir às minhas atenções...
— Não fale assim!

— Você sabe que não tenho mais nenhum interesse por ela. E aquela história sobre
Thomas Hunt era mentira, não é?

— Não. Ainda não estamos oficialmente noivos, mas vamos ficar.

Jerome segurou-lhe a mão.

— Fuja para Londres comigo. Papai nos sustentará.

— Não diga bobagens!

— Case-se comigo, Louise.

Ela o fitou com tristeza.

— O que você espera conseguir, Jerome, casando-se com uma cópia apagada de
minha mãe?

— Ainda não acredita que é você que eu quero? Deixe-me mostrar-lhe o.quanto eu a
quero...

— Eu sei para que você me quer: para fazer comigo o que minha mãe não o deixa
fazer com ela.

— Sua vagabunda — ele xingou, tomado pela fúria. — Pensa que não sei que
também me quer? Você deixou isso mais do que claro, nos dois últimos dias!

Louise corou, envergonhada, mas ainda assim replicou:

— Já pensou que eu posso querer o seu pai? Que eu possa ter desejado que ele me
tratasse como trata a minha mãe?

Jerome riu, e depois de um instante, Louise riu também.

— De qualquer modo, eu jamais poderia me casar com você. Seria a morte, para
papai. Você não imagina o quanto ele odeia o seu pai, Jerome.

— Não? Acho que Stonor o odeia tanto quanto eu. E... ele sabe, Louise. Seu pai sabe a
respeito do meu pai e da sua mãe.

— Eu sei disso. Se você pudesse vê-lo, bebendo até a inconsciência para suportar a
dor e recebê-la, vinda dos braços daquele homem... É nessas horas que eu a odeio pelo que
faz com ele... Eu jamais poderia me casar com você, Jerome. Papai não me perdoaria, e eu
também não.

— A verdade é que, no fim, Louise, você é mais um ratinho que uma gata brava.

— Talvez seja mais seguro.


— Case-se com Thomas, então, e continue assim. Só não me convide para o
casamento.

Quando ficou só, Louise chorou por um longo tempo, escondido. No dia anterior
descobrira que estava apaixonada e que não havia futuro para ambos.

O outono chegou, e Jerome foi para Londres, estudar medicina. Todos admiraram a
compreensão de Wolfe para com o filho, mas Louise sabia que não era bem assim. Mesmo
assim, não disse a ninguém.

Algum tempo depois, Wolfe deu notícias de Daniel a Sophia. O rapaz recebera as
cartas que ela escrevera, mas não queria deixar o exército e voltar para casa. Respondeu
com algumas linhas breves e bondosas, como as de um estranho, o que a fez chorar,
embora não lhe tirasse a esperança de tornar a vê-lo, um dia.

Naquele inverno, o velho médico da família morreu, e um. rapaz ainda novo o
substituiu. Cheio de idéias modernas, ele examinou Stonor e disse:

— Por que o senhor fica na cama o dia inteiro? Compre uma cadeira de rodas. Um
passeio ao ar livre, todos os dias, vai fortalecer os seus pulmões e lhe dar uma boa cor. Essa
idéia de que um paralítico não deve sair da cama, por causa do coração, já está
ultrapassada.

Stonor tremia de excitamento, quando contou a novidade a Sophia, naquela noite. Ela
recebeu a notícia com alegria, e durante dias eles esperaram, cheios de ansiedade, que a
cadeira de rodas chegasse.

Stonor saiu para seu primeiro passeio ao ar livre, enrolado em vários cobertores, mas
com um olhar brilhante e esperançoso. Um dos criados empurrava a cadeira, e Sophia
caminhava ao lado dele, deliciada com o novo desenrolar dos acontecimentos.

Depois disso, o progresso de Stonor foi espetacular. Em poucos dias estava


passeando de carruagem, sentindo-se como Lázaro ressuscitado. Seguindo as ordens do
novo médico, começou a fazer exercícios com os braços e, em seguida, massagens nas
pernas atrofiadas. O tratamento foi tão efetivo, que dentro de poucas semanas ele parecia
outro homem.

A primeira festa a que Stonor compareceu foi na casa de Luther Hunt. Já acostumado
com a cadeira de rodas, ele causou sensação ao chegar. Do outro lado da sala, Wolfe o
observava, e não pôde conter a desconfiança ante o modo frio com que o irmão o fitou.
Nesse momento, Sophia inclinou-se para dizer qualquer coisa ao marido, e Stonor tocou-
lhe a nuca, dizendo baixinho:

— Você está tão bonita, minha querida. Dê-me um beijo.


Ela hesitou por um átimo de segundo, pois há anos não tinham esse tipo de contato,
depois obedeceu. Ao endireitar o corpo, seus olhos se encontraram com os de Wolfe.
Stonor fingiu nada ver, porém, já se decidira: suportara muito, mas agora aquele
relacionamento ilícito chegara ao fim.

Capítulo XXVII

Desde a festa na casa de Luther Hunt, Wolfe ficou à espera do próximo movimento
do irmão. Ele e Sophia sabiam que Stonor resolvera interferir no romance que ambos
mantinham. Com a volta de sua saúde, Stonor ganhara novo ímpeto. Embora nunca mais
pudesse andar, cavalgar ou ser o homem atlético que fora, ele estava cheio de energia e
pronto para impor sua vontade novamente.

Durante três meses, Stonor concentrou-se em recuperar a saúde, enquanto observava


que Sophia continuava na vida de sempre, encontrando-se com Wolfe. E ela, porém,
percebia que havia uma ameaça sob aquela tranqüilidade e estava preocupada.

— Ele está tão diferente — comentou um dia, com Wolfe. — Passa horas e horas com
Edward, passeando pelo parque. Não sei o que é que eles tanto conversam... O que vamos
fazer, Wolfe, se Stonor descobrir nosso segredo?

— O que é que você quer fazer? A decisão é sua, minha querida. Só quero que se
lembre de que não sou nada, sem você.

— Nenhum de nós é alguma coisa, sem o outro. Não quero voltar àqueles tempos
vazios, sem sentido.

— Então, só nos resta encarar Stonor, quando ele vier nos enfrentar. — Wolfe hesitou
por um instante, depois disse: — Ele sabe, meu amor.

— Será?! Há quanto tempo? Oh, ele nunca me disse nada. Como foi que descobriu?
Foi Jerome, não foi?

— Stonor sempre soube, Sophia.

— Como assim?

— Ele deu você para mim. — Rapidamente, Wolfe falou de sua entrevista com Stonor
e do trato que haviam feito.

— Então ele me deu para você, como alguém dá uma coisa de que não precisa mais?
Mas que sórdido! — Sophia murmurou no final, muito corada. — Muito obrigada por me
dizer a verdade, afinal! Que grande sacrifício, o dele! E como você foi nobre, ficando
comigo durante o dia e permitindo que eu voltasse para ele, todas as noites!

— Eu sabia que você veria tudo desse modo. Eu disse isso a Stonor, na época —
Wolfe retrucou, observando-a com atenção.

— De que modo você queria que eu visse? Meu marido me deu a outro homem!

— Não foi assim. Stonor nos deixou livres para nos amarmos, só isso.

Amargurada Sophia quase gritava:

— Será que você não vê, Wolfe? Fazendo o que fez, Stonor nos controlou direitinho!
Nós não passamos de bonecos, nas mãos dele.

— Eu nunca tinha pensado nisso... — Wolfe assumiu uma expressão sombria.

— Pois então pense. E pense também no que vamos fazer, quando Stonor decidir que
é hora de terminar o romance.

Um palavrão escapou dos lábios de Wolfe.

— Venha morar comigo, Sophia. Venha para mim...

— Eu vou pensar.

— Pensar no quê? Aquela casa ainda é minha rival? Pensei que tivéssemos
concordado que ela não tem nenhum valor, em face de nosso amor. É só um monte de
tijolos e cimento, e eu estou vivo, Sophia, e preciso de você. |

Sophia enfrentou o olhar do amante, sem se comover com a amargura que


demonstrava.

— Desta vez, vou tomar uma decisão pensando em mim, Wolfe. Sempre que tive de
escolher, coloquei a casa, Stonor, Daniel ou você em primeiro lugar. Agora, vou escolher
por mim.

Wolfe sorriu, aliviado.

— Isso, querida, escolha pensando em você. Lembre-se de que tem direito à vida e à
liberdade. Já se sacrificou pelo seu filho, e depois ele foi embora, sem nem dizer adeus.
Desta vez, escolha o que você mais quer.

Ele estava certo da vitória. Sophia o amava tanto quanto ele a amava, e desde que
Edward passara a ser o herdeiro de Queen's Stonor, a casa perdera muito do poder que
tinha sobre ela. Quanto ao poder de Stonor, também diminuíra quando revelara a ela o
trato que tinham feito. A vitória final seria sua.

Alguns meses depois, à mesa de jantar, Stonor anunciou:


— O dr. Stewart acha que estou forte o suficiente para assumir novamente os
negócios. Eu estive pensando, Sophia, e achei que seria uma boa coisa tirar esse peso dos
seus ombros. Edward pode me acompanhar.

"Então", pensou Sophia, "é este o plano. Muito inteligente!"

— Como quiser, querido. Eu só não quero que se canse demais. Edward, você precisa
ajudar seu pai no que puder.

Um brilho de surpresa apareceu nos olhos frios de Stonor. Esperava que ela
protestasse contra seus planos.

— Não terá mais que ir a Bristol todos os dias, minha querida, o que será uma
vantagem. Você anda com um ar meio abatido, ultimamente. A vida de negócios não é
própria para uma mulher. Será mais feliz aqui, em Queen's Stonor.

— Realmente, será ótimo. Eu só assumi os negócios por você e nossos filhos. Fico feliz
em devolvê-los a você.

Edward estava satisfeito. Ele e o pai tinham passado meses planejando essa mudança,
e seu medo de que a mãe se recusasse a ceder o poder que, em sua opinião, ela havia
usurpado, não se concretizara.

Stonor, no entanto, não parecia satisfeito. Sophia sabia que ele andava dificultando
seus encontros com o amante, mas mesmo assim mostrava-se calma e indiferente. Algo
estava errado.

Sophia sorriu para Louise:

— É uma sorte que a saúde de seu pai tenha melhorado logo, minha filha. Já é tempo
de você pensar no seu futuro, comprar novas roupas, arranjar alguns pretendentes... Ah,
Louise, vai ser divertido! Pense só nas festas a que iremos, as costureiras, os joalherias...
Afinal vou ter tempo para me distrair, como as outras mulheres fazem. — Com ar
zombeteiro, ela se virou para o marido. — Tempo para pensar só nos meus prazeres...

Stonor empalideceu, apertando os punhos. Sem nada notar, Edward encorajou-a:

— Isso mesmo, mamãe. Já é hora de arranjarmos um casamento para Louise. Ela já


tem idade mais que suficiente.

— Muito obrigada — Louise respondeu, com ironia. — Mas você também tem idade
suficiente para se casar, Edward.

— Por enquanto, prefiro continuar solteiro. Já existem mulheres demais nesta casa.

Sophia ergueu as sobrancelhas.

— Se você se casar, terá que ir morar em outro lugar, seu bobo.


— Por quê? Queen's Stonor é minha...

— Edward! — Stonor falou bruscamente, fitando a esposa com angústia. Ele sabia
como Sophia encarava a questão da casa, e tinha medo de que o filho tivesse sido muito
franco, ao falar dos futuros direitos.

Entendendo mal a reação do pai, Edward voltou-se para ele.

— Mas não será minha por muitos anos ainda, se Deus quiser, papai. Prefiro não ter a
casa do que tê-la através da sua morte.

— Mas que bom filho você é, Edward! — Sophia comentou, levantando-se. — Seu pai
tem sorte de ter um filho como você. Acho que vou para a cama. Você decerto vai querer
assumir os negócios amanhã mesmo, Stonor, por isso nem vou mais ao escritório. De agora
em diante, meus dias serão dedicados à busca da minha felicidade.

— Sophia... — Stonor quase gritou. — Preciso falar com você. Por favor, saiam meus
filhos.

Os dois obedeceram de imediato. A sós, Sophia e Stonor se entreolharam.

— Sophia — Stonor disse afinal, respirando fundo —, eu não a culpo por nada do
que aconteceu entre nós durante todos esses anos, mas agora gostaria que você voltasse
para seus deveres familiares. Queen's Stonor, Louise, Edward... todos nós precisamos de
você. Vamos pôr uma pedra no passado e começar nosso futuro esta noite...

— Você não pode ter de volta o que deu a outro, Stonor.

Stonor estremeceu como se ela o tivesse atingido fisicamente.

— Aquele bastardo quebrou a palavra que me deu!

— Só quando ficou evidente que você ia quebrar a sua.

— Eu quis ajudá-la! Você estava morrendo de infelicidade diante dos meus olhos e eu
não podia fazer nada...

— Sabe por que você não podia fazer nada? Porque sempre pertenci a Wolfe. Você
usou Queen's Stonor, para me obrigar a casar, porque sabia disso. E depois, usou tudo que
lhe veio às mãos, para me obrigar a ficar. No fim, quando suas armas se acabaram, apelou
para Wolfe, e ele, com pena, aceitou aquele trato. — Sophia fez uma pequena pausa,
depois continuou: — Eu já perdi Wolfe uma vez e não pretendo perdê-lo de novo. Você vai
ter que escolher: ou tudo continua como antes, ou eu me mudo agora mesmo para a casa
de Wolfe.

Stonor fitou-a, angustiado.


— Eu não suportaria. Minha vida foi um inferno, durante estes anos. Não me faça
sofrer mais Sophia!

— Sinto muito, Stonor — ela retrucou. — Uma vez, nós fizemos um trato... Daniel
teria Queen's Stonor e você o amaria como um pai. Nós vimos no que deu. Você odiava
meu filho e deixou que ele percebesse. Nunca me perdoou por tê-lo e descarregou seu
ciúme nele, ano após ano. Eu só agüentei por causa da propriedade. Depois você me
passou para Wolfe, como se eu fosse uma concubina que não lhe interessasse mais. E
deixou que eu mentisse para você, fingindo não saber de nada, o tempo todo.

— Mas eu sofri, Sophia. Eu quase morri de ciúme...

— Foi você que criou essa situação. A culpa é sua, não de Wolfe. Você sempre soube
que eu pertenço a ele, Stonor. Eu nunca menti, nunca fingi que não o amava.

— Durante muitos anos, você foi feliz comigo...

— Realmente. Tão feliz quanto eu podia ser, sem metade da minha alma. Wolfe e eu
somos como as fibras de um tecido. Separados, não passamos de um emaranhado de fios.
Você nos manteve longe um do outro, usando todos os truques que conhecia. No fim, o
único meio que ainda tinha de nos controlar era nos juntando, e até isso você fez. Qualquer
coisa era melhor do que me ver sair da sua vida para sempre, não é?

— Você não vai me deixar, não é, Sophia? — Stonor estava completamente indefeso.
— Eu faço qualquer coisa, Sophia, qualquer coisa...

— Eu ainda não me decidi. Tenho que pensar... Pela primeira vez, em toda a minha
vida, estou em condições de escolher pensando em mim. Eu lhe digo quando decidir,
Stonor.

Alguns dias depois, Louise estava na casa dos Hunt com a mãe, ouvindo Luther
discorrer sobre problemas comerciais, quando viu Thomas chamando-a, da estufa. Em
silêncio, ela foi até lá.

— Você vai à festa de sábado à tarde? — ele perguntou.

— Vou.

Louise fitou o rapaz com afeto. Ele era a pessoa mais próxima que tinha, desde que o
pai recuperara a saúde e passara a dedicar tanto tempo aos negócios, com a ajuda de
Edward. Com isso, ele pretendia não só melhorar o futuro dos Whitley, como também pôr
fim aos encontros da esposa com o amante. Nessa parte, ele falhara, e Louise tinha
conhecimento da agonia que suportava, enquanto esperava pela decisão da esposa.

Pensando que, se a mãe fosse embora, o pai morreria de desgosto, Louise não ouviu
as primeiras palavras de Thomas. Só voltou à realidade quando ele murmurou, excitado:
— Você aceita, Louise?

— Aceito o quê, Thomas?

Thomas corou, assumindo um ar magoado.

— Eu estava lhe pedindo para se casar comigo.

— Claro que sim, Thomas... Novamente excitado, ele a tomou pela mão.

— Então vamos dizer a eles!

Quando eles entraram, tanto Luther, quanto Sophia notaram o sorriso tímido de
Louise e o ar triunfante de Thomas. Luther voltou-se depressa para Sophia. Apesar de não
tão ricos como os Hunt, os Stonor eram uma família muito antiga e influente na região, e
ele não sabia como receberiam o pedido de seu filho.

Sophia olhou para a filha. Apesar de meio pomposo, Thomas era um rapaz
inteligente e de espírito competitivo, que certamente iria longe. Além disso, os Hunt
estavam subindo depressa na escala social e o dinheiro deles poderia ser útil à família, no
futuro. Louise escolhera bem. Olhando de seu pai para Sophia, Thomas falou:

— Eu sei que tenho que conversar com o sr. Whitley, antes de resolvermos qualquer
coisa, mas Louise me aceitou...

Havia tanto amor no modo como ele pronunciou o nome de Louise, que Sophia e
Luther se emocionaram.

— Querida, estou tão feliz por você! — Sophia exclamou, levantando-se e estendendo
os braços para a filha. Depois de beijá-la, virou-se para Thomas: — Bem-vindo à família,
meu querido rapaz.

Luther sorriu, deliciado. Apertou a mão do filho, beijou Louise e, pela primeira vez,
com muita ousadia, beijou Sophia no rosto.

Quando Stonor ficou sabendo, zangou-se com Sophia por ter dado sua aprovação ao
casal, sem antes consultá-lo.

— Minha filha não vai se casar com um Hunt — ele declarou com frieza. — Eles não
passam de uns arrivistas.

— Louise ama aquele rapaz, Stonor! Não vou permitir que faça isso com ela.

— Como está pensando em deixar esta casa, você não tem o direito de interferir nas
decisões que tomo sobre o futuro da minha filha,

— Não tende usar nossa filha como arma nesta luta entre nós. Será pior para você,
Stonor.

Stonor corou, fitando-a com ansiedade.


— Acha mesmo que eu deixaria Louise se casar com o primo do homem que a tomou
de mim? Acha que ela haveria de querer? Se você me abandonar por ele, não terá mais
contato com esta casa. Louise nunca mais falará com você. Ela nunca mais falará com os
membros daquela família, quanto mais se casar com um deles!

Sophia saiu da sala, sem pronunciar outra palavra. Encontrando-se com Louise,
contou-lhe, sem rodeios, o que ouvira de Stonor. A moça reagiu com perfeita calma, e
Sophia não agüentou:

— Você não tem nada a dizer? Vai aceitar a decisão de seu pai assim, de cabeça
baixa?

Louise não respondeu, e Sophia sentiu o rosto arder. Estava sendo rejeitada pela filha,
que se recusava a confiar ou até mesmo a falar com ela.

Louise mandou um recado urgente para Thomas, marcando um encontro no bosque.


Ele veio, surpreso e confuso.

— Thomas, meu pai não quer que eu me case com você.

— Então, teremos que esperar até que ele mude de idéia — Thomas replicou, depois
de um instante. — Eu sou paciente, Louise. Nunca haverá ninguém, para mim, além de
você.

Louise sentou-se na grama, começando a desabotoar o vestido. Horrorizado, ele


perguntou:

— O que é isso, Louise?

— Você tem que me engravidar, Thomas. É o único jeito.

— Ficou louca?! Acha que eu faria uma coisa dessas?

— Não me quer, Thomas?

— Quero, mas como minha futura esposa. Tenho muito respeito por você para...
para...

— Não entende? Papai nunca vai mudar de idéia. Ele odeia a sua família.

— Edward é meu amigo. Ele vai nos ajudar.

Louise suspirou.

— Papai nunca vai consentir, Thomas. Você precisa decidir se me quer ou não. Se não
fizermos alguma coisa, papai me casará com outro.

Thomas começou a acreditar nela.


— Não posso arruinar a sua reputação, Louise. Seria melhor se fugíssemos para nos
casar na Escócia.

— Boa idéia, Thomas! Não sei como não pensei nisso!

Por alguns instantes eles planejaram o que fariam, depois Thomas disse, meio sem
jeito, mas com os olhos brilhantes de paixão:

— Louise, não quero que se sinta magoada por eu... eu... ter rejeitado você... Eu... eu a
amo muito, para isso...

Louise fitou o rosto firme e honesto, diante de si, e pensou em Jerome. Nunca mais
amaria um homem como o amara, nunca mais conheceria a angústia intolerável de desejar
alguém como o desejara. Sua vida com Thomas seria calma e sossegada, e por um instante
ela lamentou o que nunca teria. Mas logo em seguida sorriu para Thomas, dizendo com
ternura:

— Sempre vou fazer o que você acha melhor, Thomas. Não existe mais ninguém com
quem eu gostaria de me casar.

Thomas fitou-a, satisfeito. Louise era perfeita. Ambos seriam muito felizes.

Dois dias depois, eles fugiram para a Escócia. Sophia leu a nota que a filha deixara e
foi dar a notícia a Stonor.

— Ela não entra mais nesta casa — gritou ele, amargurado. — Ela não é mais minha
filha... se é que algum dia o foi... — Seus olhos acusavam Sophia deliberadamente, pois
ambos sabiam que esse insulto não tinha razão de ser.

— Ela era sua filha, Stonor — Sophia retrucou, olhando-o com pena e desprezo. —
Até que você tentou destruí-la para me conservar.

Em silêncio, sabendo que a esposa o estava deixando, Stonor viu-a sair do quarto.
Desespero e angústia o dominaram. Tornara-se um homem obcecado, desde o primeiro
momento em que vira Sophia. Sua vida era dela, seus planos tinham sido feitos pensando
nela, e agora ela se fora. Estava sozinho, a não ser por Edward, e o amor que dedicava ao
filho não era suficiente para tornar suportáveis os anos que tinha diante de si.

Por um longo tempo, Stonor pensou em morrer. Fitou as próprias mãos, carne e osso,
vivas, capazes de sentir, mudando dia a dia através do milagre da natureza. A morte
acabaria com tudo...

Ele pensou nos anos que vivera com Sophia, no modo como usara a casa e depois
Daniel, para conservá-la junto a si. Pensou na noite em que Wolfe voltara da América e ela
se lançara nos braços dele, sem uma palavra, como um espírito perdido voltando ao lar.
Observando-os, vira que eles eram uma só alma, um só coração, um só corpo, e ainda
assim fizera o possível para mantê-los separados.

De repente, um grito enrouquecido escapou de sua garganta, e sua mente encheu-se


com a imagem de Sophia ainda jovem, em seus braços, retribuindo com sensualidade sua
paixão, seu desejo. Aqueles tinham sido os melhores anos de sua vida, os anos em que a
possuíra, em que a tivera só para si, esperando por cada noite como se fosse ao paraíso.
Agora tudo se acabara e sua escolha era pobre: podia continuar naquela casa, como um ser
decadente, sem alegria e sem esperança, ou morrer e admitir que perdera, deixando-a para
Wolfe Whitley.

— Não!

Enquanto houvesse vida, havia esperança. Ele já correra riscos antes, preferindo tudo
a admitir a derrota. Por que desistir agora? Enquanto Sophia vivesse, ele continuaria
vivendo. Uma vez, chegara a pensar que morreria, se ela o deixasse. Agora sabia que
continuaria no mundo pois o destino poderia lhe dar outra chance de tomá-la de volta... ou
de destruir Wolfe Whitley.

Recusava-se a considerar a hipótese de não tê-la. Estava com apenas quarenta e cinco
anos. Viveria muitos anos mais, e nesse tempo sem dúvida encontraria uma chance de se
vingar daquele bastardo...

Seus olhos brilharam de paixão e angústia. Ao menos poderia vê-la. E isso era melhor
do que estar morto.

Capítulo XXVIII

Durante os anos que se seguiram, o casamento entre Louise e Thomas Hunt


fortificou-se, apesar de Stonor continuar se recusando a aceitá-lo. Com enorme esforço, ele
levantara fundos suficientes para tirar a família Hunt da firma Whitley. Edward Whitley,
cada vez mais agressivo, trabalhava de manhã à noite para manter a firma solvente. Stonor,
agora uma figura familiar pela cidade, em sua cadeira de rodas, trabalhava com ele.

Depois que Sophia deixou Stonor houve muito falatório. Ela passou a viver
abertamente com Wolfe, na esperança que Stonor se divorciasse dela, mas ele parecia
decidido a ignorar a situação.

Dos filhos de Wolfe, Alice se casara há algum tempo, e os três rapazes, James, Martin
e Jonathon, ainda viviam em casa, embora passassem a maior parte do ano na escola.
Quando os informara de que Sophia seria a dona daquela casa, Wolfe lhes dera a
chance de aceitá-la ou receber uma mesada e ir morar em outro lugar. Para sua surpresa,
os três ficaram, logo passando a encará-la como a mãe que nunca tinham tido.

A princípio, houvera problema com os criados, mas Sophia pedira a Wolfe para não
interferir. Alguns foram despedidos, e os outros se curvaram a suas ordens. Dentro de
semanas ela se tornou a rainha absoluta da casa, com os criados e os meninos competindo
por sua atenção e girando em torno dela como satélites.

Na escola de medicina, Jerome logo ficou sabendo de tudo e fez questão de voltar
para uma visita. Não avisou ninguém de suas intenções e encontrou Sophia sozinha, na
saleta de estar. Para sua surpresa, ela o recebeu com calma e naturalidade, embora ele a
fitasse com insolência e sarcasmo.

— Jerome, meu querido... Por que não avisou que vinha? Teríamos preparado um
jantar especial.

— Então, está mesmo morando com meu pai...

— Martin lhe escreveu contando, não foi? Ele me mostra todas as cartas...

— A senhora é como musgo, sra. Stonor. Onde cai, se agarra...

Sophia sorriu, não demonstrando nada além de divertimento.

— Eu gosto muito dos seus irmãos. São bons rapazes.

— Pretende ser mãe amorosa para mim também, sra. Stonor Whitle?

A intenção dele era feri-la, com o uso do nome de casada, mas não parecia estar
conseguindo.

— Você não precisa de uma mãe, Jerome. Já é um homem. Os seus irmãos são garotos
e posso ser útil a eles.

— Se quisesse, também poderia ser útil para mim.

O sangue subiu ao rosto de Sophia, cujos olhos brilharam, cheios de zanga. O insulto
era evidente, na voz dele.

— Já chega, Jerome!

— Não, para mim.

Ela tentou sair da sala, mas ele a segurou pelos braços.

— Solte-me, Jerome! Não vou ficar aqui para ouvir insultos.

— Pois então fique para isso!


Sophia tentou fugir, mas ele foi mais forte e conseguiu dominá-la. Sabendo que lutar
só o excitaria ainda mais, ela não reagiu. Ele tremia, quando afinal pôs fim ao beijo.

— Você devia ter sido minha mãe — disse, como que acusando-a de traição. — Eu a
amo... No trem, vim pensando em magoá-la o máximo que pudesse. Queria vê-la chorar;
vê-la sentir vergonha. Mas eu a amo... — declarou, com uma expressão infeliz no rosto
— ... e o pior é que nem quero amá-la!

Gentilmente, Sophia libertou-se e foi se sentar no sofá, estendendo a mão para ele.
Jerome acomodou-se no tapete, como uma criança, e apoiou a cabeça no colo dela,
fechando os olhos.

— Você é tão parecido com Daniel — ela comentou, acariciando-lhe os cabelos. —


Aceite-me como sua mãe, Jerome. Os outros garotos aceitaram, e nós somos tão felizes
juntos. Você tem um lugar aqui, se quiser... como meu filho.

Jerome riu, incapaz de se conter.

— Você sabe que, eu não posso.

— Tente, Jerome. Você ainda é muito novo para saber o significado desse sentimento.

— Eu a amo — ele repetiu, erguendo o rosto para fitá-la. — Sabe que tentei contar a
seu marido, quando descobri que era de novo amante do meu pai? Foi Louise que não
deixou. Ela ficou uma fera, com chamas de ódio nos olhos azuis. Eu vi você, nela, e tentei
possuí-la...

— Jerome!

— Ah, não se preocupe... Sua filha sabe tomar conta de si mesma. Ela logo me pôs
fora de seu caminho, apesar de me desejar, também. Louise é uma moça de fibra!

— Ainda bem! — Sophia exclamou, aliviada. Não via Louise desde o dia em que ela
fugira com Thomas. Chegara a lhe escrever várias cartas, mas ela não respondera.

— Ela se casou com Thomas, não é? Louise é uma garota estranha. Fiquei surpreso
com o modo como retribuiu a minha paixão. Não consigo imaginá-la fazendo o mesmo
com Thomas. Mas se é isso que ela quer...

— Louise ama Thomas.

— Acho que, se ela não soubesse o motivo pelo qual eu a queria, teria ido embora
comigo...

Sophia estava abismada. Louise... e Jerome? Nunca desconfiara. Sob aquela fachada
calma, a filha escondia emoções surpreendentes. Sua fuga com Thomas fora um choque. E
a recusa em confiar na mãe, outro. Da noite para o dia, Louise transformara-se numa
estranha. Como Daniel. Ela perdera os dois filhos de que gostava mais... por causa de
Wolfe.

De repente, Jerome levantou-se, dizendo:

— Não há nada que possamos fazer a respeito. Eu a amo demais, para viver nesta
casa. Eu pretendia ficar, para fazê-la sofrer ao máximo, mas agora...

Sophia fitou-o, consternada. Jerome era uma complicação na qual não pensara. Wolfe
ficaria louco de raiva, se chegasse e o encontrasse ali, com aquela expressão amorosa no
rosto.

— Não se preocupe, eu vou embora — ele continuou, vendo-lhe o ar ansioso. —


Papai não terá que brigar comigo para não perdê-la. Sabe que uma vez ele me disse que
seria capaz de matar, para ficar com você? Eu também seria. E o seu marido, pobre
coitado...

— Oh, Jerome, você fala como se estivesse bêbado.

— Eu estou é louco de amor. Há anos você povoa meus sonhos. Uma vez, quando
criança, eu a vi nos braços de meu pai e fiquei com ciúme de ambos. Dele, porque amava
você, e de você porque não era minha mãe. Eu cresci querendo seu amor, e vou passar o
resto da minha vida lamentando o que perdi. Ainda bem que Louise teve juízo bastante
para me rejeitar. Eu só a desejei porque se parece com você, e ela entendeu isso. Quanto a
Daniel, eu lhe contei a verdade para que ele sentisse a mesma angústia que eu sentia,
quando pensava em você. Pode me odiar, que eu mereço. — Jerome falou com amargura.
— Na verdade, prefiro que me odeie a que sorria para mim, como faz agora. Como mãe, eu
nunca a aceitarei. Como inimiga, posso ao menos despertar alguma emoção em você.

Sophia não sabia o que dizer. Aquela confissão vinha de uma alma infeliz, com tanta
paixão no olhar, que ela só podia sentir pena. Depois de um momento, disse baixinho:

— Você nasceu quando eu já era mãe do primeiro filho de seu pai, Jerome. E é tão
parecido com meu filho e com seu pai, que não posso odiá-lo. Quando você tiver trinta
anos, eu estarei com mais de cinqüenta. Uma mulher de idade média avançada, sem
qualquer idéia romântica que você alimenta... Seja sensato, Jerome.

— Sensato? Já se esqueceu do que é estar amando? Cada vez que penso em você, é
como se morresse um pouquinho. Em toda a minha vida, nunca amei um ser humano, a
não ser... você.

— Ah, Jerome.

— Vou embora e não volto mais. Diga a papai que eu sei reconhecer quando uma luta
é inútil. Acho que nunca mais amarei outra pessoa. Amor e sofrimento são sinônimos.
— Não fale assim! Você é jovem e vai superar isso.

Jerome meneou a cabeça, com ar sombrio.

— Acha que já não tentei? Por menos que eu queira, você está sempre no meu
pensamento. — Fazendo-a levantar-se tocou-lhe o rosto com mãos que tremiam. — Seja
boa uma vez... Dê-me um beijo de despedida...

— Não, Jerome!

— Só um...

— Não! Não me peça isso, Jerome.

Sophia tentou afastar-se, mas ele a segurou.

— Por que não? Está com medo de... me desejar?

— Largue-me! — pediu Sophia, apavorada.

— Quer que eu lhe peça de joelhos? Acha que eu não pediria? — Pálido, trêmulo de
paixão, ele perdera por completo o auto-controle. — Eu a amo... Beije-me. Vou embora
para sempre, se você me beijar. Juro pela minha honra. Eu vou embora agora mesmo.

Lentamente, Sophia ergueu o rosto e encostou os lábios nos dele. Jerome a abraçou e
ela fechou os olhos, excitada. Beijaram-se com ardor. Ela, enlaçando-o pelo pescoço,
esquecida de tudo. Ele, murmurando-lhe o nome e recebendo toda a resposta que sempre
sonhara.

Por trás de suas pálpebras fechadas, Sophia revia um bosque de carvalhos, à noite e
Wolfe murmurava-lhe palavras de amor, enquanto se entregava a ele. Durante aqueles
anos, tinham envelhecido dia a dia, mas a lembrança daquela noite de amor persistia.
Recebendo as carícias de Jerome, ela sonhava com o pai dele e com a própria juventude,
que perdera.

— Adeus, Sophia.

Ela o viu sair, sentindo o peso da idade abater-se sobre ela.

Por meio de um vizinho indiscreto, que passou por seu escritório para informá-lo,
Wolfe logo ficou sabendo da visita de Jerome. Preocupado, esperando problemas, foi para
casa mais cedo, mas encontrou Sophia sozinha.

— Jerome já se foi — disse ela, assim que o viu.

— O que aconteceu?

— Nada. Ele está muito amargurado e infeliz, Wolfe.

— E continua se sentindo do mesmo jeito?


— Continua.

— Deus do céu, o que vamos fazer? Ele não pode voltar, se ainda tem os mesmos
sentimentos.

— Ele não vai voltar. — Um soluço escapou dos lábios de Sophia. — Ah, meu
querido, eu sinto tanto! Separei seu filho de você...

— Não, Sophia, Jerome nunca chegou a gostar de mim.

— Ele estava tão amargurado! Eu o magoei tanto...

— Ele foi desagradável com você? O que disse? Deus do céu, ele não a tocou, não é?

Sophia levantou os olhos cheios de lágrimas para Wolfe, enfrentando-o com


honestidade.

— Eu o beijei.

Wolfe apertou os lábios, enciumado.

— Por um instante esqueci-me de que não era você, meu querido, e me senti com
dezesseis anos de novo, no bosque de Queen's Stonor, com a vida inteira diante de nós. —
Ela deu um sorriso triste. — Então, abri os olhos e vi que não passava de uma mulher de
meia idade, relembrando a juventude.

— E Jerome?

— Foi embora.

— Ele vai superar o que sente por você.

Sophia não respondeu. Ainda não se esquecera do olhar de Jerome, ao dizer que
nunca mais amaria alguém.

Um ano depois, Jerome escreveu contando que se casara com uma jovem que
conhecera durante as férias, em Lancashire. Wolfe aumentou-lhe a mesada, dizendo:

— Ele superou.

Sophia nada comentou. Não lhe disse que também recebera uma carta de Jerome e a
queimara, assim que terminara de ler. Nela, Jerome lhe contava que se casara porque
achava cansativo procurar uma mulher, quando precisava de alívio físico. Hannah era
sensata e daria uma boa esposa para um médico. Depois de formado, ele pretendia se
estabelecer em Lancashire e trabalhar entre os pobres. Terminava dizendo que ainda a
amava, e que ela não lhe saía do pensamento, dia e noite.

Sophia respondeu à carta de Jerome em segredo, escolhendo as palavras com todo


cuidado. Disse a ele que esperava que fosse feliz no casamento e na vida que escolhera.
Mandou lembranças para Hannah e terminou contando que pensava muito nele. "Você é
tão parecido com Daniel", escreveu. "E com o seu pai".

Jerome poderia interpretar mal suas palavras mas mesmo assim ela as colocou na
carta. Ele vivia num inferno particular, e seria crueldade não tentar diminuir-lhe a dor.

Os anos seguintes foram de paz para Sophia e Wolfe. Suas vidas transcorriam felizes,
sem ansiedade para marcá-las. Ainda faziam amor com ternura, mas sem o ardor de antes.
Os três rapazes tinham terminado a escola e assumido ramos diferentes dos negócios do
pai. Eles não possuíam a menor originalidade, mas trabalhavam duro e conseguiam
sucesso por pura persistência. Todos pensavam em se casar, e Sophia observava, divertida,
sua passagem para a vida adulta.

Desde que se tornara abertamente amante de Wolfe, a sociedade passara a ignorá-la.


Ela nunca o acompanhava a funções sociais, e ambos não podiam convidar ninguém para
sua casa. Até Luther mantinha-se afastado deles.

Louise e Thomas não tinham filhos. No início, Sophia esperara com ansiedade pela
notícia de que seria avó, mas nada acontecera. Pelo que soubera, Luther também se
aborrecia com essa falta de herdeiros para a enorme fortuna que amealhara. Culpava
Louise pelo problema, tendo passado a tratá-la com bastante hostilidade.

— Mas isso é injusto. Luther não pode culpá-la! — Sophia exclamou, no dia em que
Wolfe lhe falou da situação de Louise.

— Luther age assim, porque Stonor nunca aceitou o casamento de Louise. Ele queria
que Thomas se casasse com ela, para que os Hunt pudessem entrar em Queen's Stonor. Do
jeito que as coisas estão, Louise não lhe deu nem a casa, nem um neto. É por isso que ele
não gosta dela.

— Tenho vontade de matar Stonor, por ser tão teimoso! — disse Sophia. — Ele podia
perdoar Louise.

— Stonor a perdoará, no dia em que você voltar para ele.

Sophia sorriu.

— Nem por isso eu voltaria. Não precisa me olhar assim.

— Eu até seria capaz de sentir pena de Stonor... se ele não fosse tão teimoso. Ele está
por trás de todos os problemas que tenho. Gasta uma verdadeira fortuna, para me forçar a
perder alguma coisa. Ele e aquele maldito filho de vocês têm tentáculos por toda parte,
com um único objetivo: me destruir.

— Você cresceu muito para eles. Stonor não tem como prejudicá-lo.

— Mas me irrita!
— É para isso que ele vive, hoje em dia — Sophia comentou, com ar triste.

— Com pena dele, Sophia?

— Você não tem?

Wolfe suspirou.

— Acho que sim. Sozinho naquela casa, só com o filho... Tenho pena dele, sim. —
Fitou-a com paixão. — Mas nem por isso ele pode tê-la de volta.

Quando os rapazes se casaram, um depois do outro, Sophia não compareceu às


cerimônias. As famílias das noivas não concordariam com isso, e ela insistiu em não ir,
apesar da zanga de Wolfe. Os moços pediram-lhe desculpas, pois gostavam muito dela.

Com a saída dos filhos, a casa ficou muito sossegada. Sophia e Wolfe passaram a
viver uma felicidade tranqüila. De tempos em tempos recebiam a visita dos garotos e, com
a chegada dos netos de Wolfe, Sophia começou a experimentar algumas das alegrias de ser
avó. Mary, a mulher de Jonathon, apegou-se muito a ela e ia sempre visitá-la, com os três
filhos.

Nessa época a guerra dos Bôer irrompeu, causando muita agitação em Bristol. Muitos
rapazes se alistaram, para nunca mais voltar. Um deles foi o segundo filho de Wolfe, James.
Casado com uma loira muito bonita, que flertava a torto e a direito, James era objeto
freqüente de riso, na cidade. Inesperadamente, ele se juntou ao exército e morreu dentro
de poucos meses. Sua esposa encontrou consolo antes mesmo que o período de luto
terminasse, e Wolfe, furioso, cortou-lhe a mesada.

— Aquela vadia! — ele comentou com Sophia. — James merecia coisa melhor.

Um pouco antes do fim da guerra, chegou uma carta anunciando a morte de Daniel.
Ele morrera praticando um ato de muita bravura e ousadia. O comandante do batalhão
escrevera diretamente a Sophia, a pedido do próprio Daniel, e ela encarou esse gesto do
filho como um ato de perdão e reconhecimento do amor que sempre os unira. Ela e Wolfe
choraram juntos.

— Você vai contar a Stonor? — Wolfe perguntou-lhe. Sophia meneou a cabeça, e


depois de um instante murmurou:

— Não. Stonor não tem direitos sobre Daniel. Ele era nosso filho.

O século XX chegou depressa, e quando a guerra dos Bôer acabou, a alegria foi geral.
No verão de 1902, Sophia fazia compras no centro da cidade, quando se viu frente a frente
com Stonor, sendo empurrado por um criado na cadeira de rodas. Os olhos de Stonor
brilharam, ao darem com ela. Era a primeira vez que se encontravam, desde aquele dia em
Queen's Stonor, anos atrás, e Sophia estacou, emocionada.
Mandando que o rapaz detivesse a cadeira, Stonor perguntou-lhe com frieza:

— Como vai, Sophia?

A pergunta foi tão seca que poderia ter vindo de um estranho, e ela corou. Tinha
raiva dele, desde que Wolfe lhe falara daquele maldito trato. Mesmo assim, ficou contente
por estar com seu vestido mais bonito. E enquanto o fitava, foi invadida por um desejo tão
grande de feri-lo, que se surpreendeu. Poucas vezes, em sua vida, fora tomada por um
impulso daqueles.

— Muito bem, obrigada. Estou muito feliz — respondeu, sorrindo com cinismo.

Stonor fitou-a com aquela expressão dura e fria com que costumava disfarçar a
angústia. E como se também quisesse atingi-la, Comentou:

— No ano que vem você fará cinqüenta anos. Está ficando velha, Sophia.

— Wolfe e eu estamos envelhecendo juntos.

— As mulheres envelhecem mais depressa que os homens. Ele encontrará consolo em


outro lugar, quando você não for mais desejável.

— Você faria isso, Stonor?

— Eu não sou o meu irmão.

Girando a sombrinha com ar despreocupado, Sophia disse:

— Não, você não é. Até outro dia, Stonor.

Ao passar pela cadeira de rodas, ela roçou a saia no braço dele e sentiu-o erguer a
mão para tocá-la. Percebeu que ele estava sofrendo e gostou disso.

Durante dias, Stonor não conseguiu pensar em nada além daquele encontro. Sophia
quisera feri-lo, e isso o alegrava. Teria sido horrível se ela se mostrasse polida e indiferente.
Fechando os olhos, ele relembrava as palavras que tinham trocado e o momento final,
quando ela esbarrara a saia em sua mão. A sensação que tivera ao tocá-la, imaginando-lhe
o corpo sob o tecido fino...

Gostaria de saber se ela falara de seu encontro a Wolfe. Se não falara, ainda havia
esperanças para ele. Sophia sempre reagira bem à crueldade, como se tivesse necessidade
dessa emoção em sua vida. Quantas vezes ela não o provocara deliberadamente, para
forçá-lo a usar a violência contra ela? Como acontecera na noite de seu baile de
aniversário...

Aquele encontro casual despertou em Stonor muitos sentimentos esquecidos, e ele


passou a viver para o momento em que veria Sophia de novo. Já estava quase louco,
imaginando uma desculpa para vê-la, quando soube da morte de Daniel. Depois de pensar
um pouco, juntou todos os pertences dele e mandou que aprontassem sua carruagem.

Ao longo dos anos, a casa de Wolfe havia adquirido estilo e beleza. Da carruagem,
Stonor contemplou-a friamente, por alguns instantes, depois mandou o cocheiro pedir à
sra. Whitley que saísse, para conversar com ele.

Sophia não acreditou, quando soube. Muito corada, espiou por entre as cortinas da
sala de estar. O que poderia Stonor querer?

Desde o encontro na rua, ele ficara em seu subsconsciente, e ela não duvidava que o
mesmo lhe tivesse acontecido. Emocionada como uma garotinha em seu primeiro encontro
com o namorado, Sophia examinou-se no espelho do corredor. Estava com cinqüenta anos
de idade e sua pele começava a mostrar os sinais da passagem do tempo. Mas suas feições
ainda possuíam todo o charme de antes, e os cabelos continuavam brilhantes e espessos,
apesar de alguns fios brancos.

Com modos graciosos, Sophia saiu para a calçada e parou junto à carruagem. Stonor
abriu a porta, convidando-a a entrar.

— Preciso falar com você.

Ela olhou para a casa, ciente de que os criados a observavam, incrédulos e fascinados.
Apertando os lábios, permitiu que o cocheiro a ajudasse a entrar. A porta fechou-se, e a
carruagem partiu. Assustada, virou-se para Stonor.

— Resolveu me seqüestrar, Stonor?

Os lábios dele se crisparam, num meio sorriso.

— Vim lhe trazer as coisas do seu filho. Fiquei sabendo da morte dele e achei que
você gostaria de tê-las.

Lágrimas surgiram nos olhos de Sophia, que estava emocionadíssima.

— Por quê você veio? — perguntou.

Stonor não fingiu que não entendia.

— Eu queria vê-la — disse, sem rodeios.

Muito corada, Sophia olhou para o outro lado.

— Por favor, leve-me de volta para casa...

— Wolfe provavelmente ficará curioso, ao saber da minha visita. O que foi que ele
disse do nosso encontro, aquele dia?

— Leve-me para casa, Stonor.


— Você não lhe contou, não é?

— Não — ela respondeu como se o insultasse, virando-se para fitá-lo. — Por que eu
haveria de contar? Eu já nem me lembrava mais!

Os frios olhos cinzentos concentraram-se no rosto dela.

— Você me odeia, Sophia?

— Odeio!

— Isso mesmo... Odeie-me o quanto quiser, Sophia...

Seus olhares se encontraram num duelo silencioso. Stonor fez sinal ao cocheiro para
que voltasse, e logo a carruagem parava diante da casa de Wolfe. Antes que Sophia se
levantasse, ele levou a mão à cintura dela e tirou o ramo de violetas que lá estava.

— Não...

Em resposta, ele sorriu friamente, guardando o ramo no bolso do casaco.

— Vou levar essas flores em pagamento pelas coisas do seu filho. As flores ainda
estão quentes do seu corpo, Sophia.

— Fique longe de mim, Stonor! Não quero mais vê-lo.

— Vai contar a Wolfe que fiquei com as violetas?

Sem responder, Sophia desceu da carruagem. O cocheiro acompanhou-a até a porta,


levando os pertences de Daniel. Sozinho, Stonor levou as violetas ao rosto. O cocheiro logo
voltou e partiu no mesmo instante em que Wolfe chegava. Stonor viu-lhe a expressão
surpresa, depois zangada, e sorriu com satisfação.

Sophia estava em seu quarto, vendo as coisas de Daniel, quando. Wolfe entrou como
um louco.

— O que foi que ele veio fazer aqui?

— Trazer as coisas de Daniel.

O rosto molhado de lágrimas o fez aproximar-se mais calmo.

— Você falou com ele?

— Falei.

— O que foi que ele disse?

— Pouca coisa, mas foi direto ao ponto. Eu entrei na carruagem, e o cocheiro tocou.
Por um momento, pensei que ele estivesse me seqüestrando. Você conhece Stonor...

— Ele a tocou?
— Roubou as minhas violetas. — Um riso histérico escapou-lhe dos lábios. — Você se
lembra de quando fez a mesma coisa? Louise era pequena, e você me olhou com tanto
amor...

— Stonor também a olhou com amor?

— Stonor? Ele veio para me ferir, para tirar o que pudesse. Às vezes ele me assusta,
Wolfe. Stonor prefere que eu o mate do que que eu o ignore...

— Ele é obcecado por você. Sempre foi. Nunca conheci um homem com a capacidade
de amar que Stonor tem.

— Ele me deu para você. E sabia o que estava fazendo.

Wolfe estudou-a com ar especulativo.

— Isso é uma chaga em você, não é? Por que, Sophia? Apesar de sofrer como o diabo,
ele se sacrificou para salvar a sua sanidade, talvez até a sua vida...

Sophia voltou os olhos zangados, cheios de amargura, para o livro de Daniel, que
tinha nas mãos. Em silêncio, começou a guardar as coisas do filho. Wolfe percebeu que era
uma atitude deliberada, e durante algum tempo continuou a observá-la, pensativo.

Capítulo XXIX

Os anos que transcorreram entre a guerra dos Bôer e a guerra contra a Alemanha
foram tempos de paz, para Sophia e Wolfe. As duas noras de Wolfe agora aceitavam
Sophia sem reservas, e nas tardes de domingo eles recebiam a visita dos netos.

De Louise, Sophia não tinha notícias. Através de Wolfe, ficara sabendo que a filha era
infeliz no casamento, pois a hostilidade de Luther minara seu relacionamento com
Thomas.

A guerra contra a Alemanha pegou quase todos de surpresa. No início, o senso de


patriotismo era forte, e muitos rapazes se alistaram, encorajados pelas namoradas e até
pelas mães. Jonathon foi um dos que se alistou. Ele encarava a guerra como uma cruzada,
uma aventura que não queria perder, e brigou muito com a esposa, que não entendia esse
ponto de vista.

— Que bom que você é muito velho para ir! — Sophia disse a Wolfe. Se não fosse pela
idade, ela estava certa de que ele se alistaria.
Com sessenta e um anos de idade, Sophia ainda era uma mulher esbelta, de corpo
ereto e cabelos totalmente prateados. Seu rosto não perdera a delicadeza, e a passagem dos
anos lhe dera uma beleza luminosa, que nunca tivera antes: menos física e mais espiritual.

Wolfe envelhecera mais do que ela, tendo engordado nos últimos cinco anos. Ele
ainda trabalhava duro, e seu império financeiro crescera tanto, que nem sabia mais, com
exatidão, o que abrangia. Seu relacionamento com Sophia, no início tão ardoroso,
adquirira um aspecto terno e agradável, mas ainda existia, muito forte.

Em dezembro de 1914, Sophia e Wolfe preparavam a árvore de Natal na sala de estar,


quando uma das criadas entrou.

— Madame... meu senhor... — ela começou, excitada. Do alto de uma escada, Wolfe
fitou-a, zangado.

— O que foi, Maisy? Diga logo!

Sophia, que estava ajoelhada no chão, ao lado de uma caixa de enfeites, levantou a
cabeça. O sorriso sumiu de seus lábios, quando viu o homem alto e bonito à porta, usando
um uniforme imaculado.

— Jerome!

O grito enrouquecido de Wolfe fez com que ambos se voltassem. Ele levou a mão ao
peito, cambaleante. Jerome moveu-se a tempo de pegá-lo, quando caía, carregando-o para
o sofá.

— O que foi, Wolfe? Está sentindo alguma coisa, meu querido? — De repente, veio à
mente de Sophia a lembrança daquela noite, quarenta anos atrás, quando o pai de Wolfe
morrera. Pálida como a morte, tensa demais para chorar, ela se ajoelhou ao lado dele. —
Wolfe... não, Wolfe...

Gentilmente, Jerome afastou-a e inclinou-se sobre o pai.

"Jerome é médico", ela pensou, aliviada. "Saberá o que fazer".

Os sons roucos, vindos da garganta de Wolfe, pararam. Sophia abriu os olhos,


aliviada, querendo beijar Jerome. Ele salvara Wolfe. Aproximando-se de novo, procurou os
olhos do amante... Estavam vítreos, com a frieza da morte!

— Não!— gritou, com tanto desespero que fez Jerome se arrepiar. — Não, Wolfe,
não...

Os criados entraram correndo na sala. Sophia continuou a gritar, recusando-se a


acreditar, mesmo quando Jerome abraçou-a e levou-a para o quarto, colocando-a na cama
sob a ação de um potente sedativo. Depois disso, ele chamou os irmãos.
— Minha esposa pode fazer companhia a Sophia — Martin disse.

Jerome olhou-o friamente.

— Louise é que tem que ficar ela.

— Louise não fala com Sophia desde que se casou com Thomas.

— Eu vou conversar com ela.

Jerome foi de imediato à casa de Louise. Ela era agora uma mulher de trinta e seis
anos, com toda a beleza e graça da mãe, mas com os olhos azuis mais frios e inexpressivos
que ele já vira.

— O que é que você quer, Jerome?

— Meu pai morreu esta tarde, e a sua mãe está em estado de choque. Você precisa ir
vê-la.

— Minha mãe e eu não nos damos mais.

— Pelo amor de Deus, mulher? — Jerome explodiu. — Agora não é hora de


ressentimentos infantis!

Ela corou de raiva fitando-o com uma frieza ainda maior.

— Não quero discutir este assunto com você, Jerome. Agora, se me dá licença...

Ele cruzou o espaço que os separava, agarrando-a pelos ombros e sacudindo-a com
vontade.

— Mas que droga, Louise! Você vai ver sua mãe, nem que eu tenha que carregá-la até
lá!

Inesperadamente, um ar zombeteiro surgiu no rosto dela.

— Meu Deus, acho que você ainda está apaixonado por ela... Uma mulher de mais de
sessenta anos! Não é possível! Você não pode ser tão tolo assim.

O rosto de Jerome transformou-se numa máscara de raiva.

— Eu sou um ser humano, Louise, não uma pedra de gelo como você. Sophia está
fora de si, com a morte de meu pai. Se não for até ela de livre e espontânea vontade, eu a
arrasto até lá, nem que para isso tenha que quebrar suas duas pernas!

— Me solte! Como se atreve a me tratar assim, na minha própria casa?

— Eu lhe darei uma surra na sua própria casa, se não fizer o que estou pedindo!

— Você não teria coragem!


A mão de Jerome atingiu-a no rosto e ela recuou, incrédula e chocada. Os anos cada
vez mais tristes, passados ao lado de Thomas, tinham-na isolado de qualquer sentimento,
deixando-a despreparada para enfrentar um homem do calibre de Jerome, capaz de
explodir com a força de um vulcão.

— Seu bastardo — xingou, surpreendendo-se com a própria reação.

Não tinha esse costume, mas Jerome sempre tivera o poder de fazê-la reagir com
violência.

— Arrume-se e venha comigo.

— Não!

Com um gesto rápido, ele torceu o braço dela para trás, fazendo-a gemer de dor.

— Faça o que estou mandando!

Amedrontada, Louise concordou. Assim que ficou pronta, ele a levou para a casa
onde sua mãe passara os últimos vinte anos, como amante de Wolfe Whitley.

Vinte anos! Vinte anos durante os quais Louise levara uma vida formal e discreta,
como esposa de um rico homem de negócios. Vinte anos de uma vida vazia, preenchendo
a posição que sua mãe deixara vaga na sociedade. Ela dançara, dera festa, sorrira e fora
uma sombra simpática e elegante. Enquanto isso, sua mãe, desprezada por todos, fora
radiantemente feliz. Não era justo!

A casa de Sophia estava em silêncio, com as venezianas fechadas. Da ala dos criados
vinha o som de choro, e a presença da morte enchia o ar. Sophia dormia como uma
criança. Jerome tomou-lhe o pulso, antes de puxar uma cadeira e fazer com que Louise se
sentasse junto à cama.

— Fique aqui, e quando ela acordar, seja gentil.

— Eu odeio você! — Louise exclamou, desafiante.

— É mesmo? — Um sorriso zombeteiro curvou-lhe os lábios. — Nem em um milhão


de anos, Louise.

O sangue subiu-lhe ao rosto, e ela sentiu a boca seca. Vinte anos tinham se passado,
mas bastara vê-lo para que aquele desejo, há muito enterrado, voltasse à tona.

Jerome saiu, e Louise fitou a mulher grisalha, sobre a cama. Como um relâmpago, a
consciência do que sempre soubera atingiu-a: amava a mãe, tinha inveja dela, sentia
ciúme... A mãe lhe tomara Jerome, como antes tomara o pai e Daniel. Todos haviam
preferido sua mãe. Ela nunca passara de uma simples sombra da mãe.
Horas depois, Sophia abriu os olhos e lançou um olhar vago em torno de si. Quando
viu a filha, lembrou-se de tudo que acontecera.

Louise não teve dificuldade em inclinar-se e abraçar a mãe. Sophia explodiu em


lágrimas, gemendo baixinho. A filha embalou-a como se fosse um bebê, murmurando
palavras de simpatia, amor e compreensão. Entrando logo depois, Jerome encontrou-as em
silêncio, de mãos dadas. Gentilmente, perguntou a Sophia se queria comer alguma coisa e,
quando ela recusou, deu-lhe outro sedativo.

— Venha comer alguma coisa — disse então a Louise, — Sua mãe vai dormir por um
bom tempo.

Em silêncio, Louise o seguiu até a cozinha e alimentou-se um pouco. As esposas de


Martin e Jonathon chegaram e se ofereceram para ficar e ajudar, mas Jerome dispensou-as,
dizendo que Louise cuidaria de tudo.

— Suas famílias precisam de vocês — ele acrescentou.

— É verdade. Louise não tem esse tipo de responsabilidade — comentou a esposa de


Martin.

Quando todos se foram, Jerome virou-se para Louise.

— Você não tem filhos?

— Não, eu sou estéril. Triste, não é?

— Você tem sorte. Poderia estar viva.

— Como?!

Ele se sentou junto dela no sofá, fitando-a com menosprezo.

— Você está morta como uma pedra, Louise... Quando a vi na sua casa, cheguei a
pensar que fosse uma das estátuas de papai. Thomas não é bom de cama?

Louise esbofeteou-o com violência, e ele riu.

— É a segunda vez que você volta à vida, comigo. Não se lamentou, todos esses anos?

— Não faço a menor idéia do que você está falando — ela mentiu, louca de raiva. —
Vou dormir.

Antes que Louise se levantasse, Jerome empurrou-a para trás, jogando-a sobre as
almofadas. Tomada por uma sensação de terror, ela lutou para fugir, mas ele a segurou
com firmeza.

— Sua ordinariazinha frígida — murmurou, com a boca a um centímetro da dela.


Mas o tom de voz era convidativo, quase acariciante.
Como se o contato com os lábios dele fosse o sinal que estivera esperando por toda
sua vida, Louise enlouqueceu, enlaçando-o pelo pescoço e beijando-o com ardor.

— Jerome... — gemeu, tremendo de prazer quando ele passou as mãos por seu corpo.
— Jerome...

Jerome a possuiu ali mesmo, dez minutos depois. Louise estava tão viva e excitada,
que ele se assustou com a reação que conseguiu arrancar dela.

— Eu amo você — ela gemeu, arqueando o corpo num movimento convulsivo. — Eu


amo você...

Jerome foi dominado por uma estranha agonia, como se algo tivesse se rompido
dentro dele. Gentilmente, acariciou-lhe o rosto quente, e ela abriu os olhos, dizendo com
aspereza:

— Eu não sou minha mãe.

— Não, você é Louise, e eu a amo...

Louise o fitou por um instante, depois seus olhos se encheram de lágrimas. Jerome
beijou as pálpebras molhadas, as faces e depois a boca, sendo correspondido com paixão.

Eles foram para a cama juntos, deitando nus e em silêncio. Depois de algum tempo,
Jerome disse:

— Eu estraguei nossas vidas. Minha obsessão com a sua mãe era como uma doença.
Você foi sensata, Louise, quando se recusou a casar comigo. Eu a teria feito terrivelmente
infeliz. Agora, é tarde demais.

— Eu terei esta noite. Se você não tivesse voltado, nem isso eu teria. — Ternamente,
ele beijou-lhe as mãos.

— Você me amava, naquela época? Foi sempre assim, com você?

— Sempre.

— Meu Deus, que confusão eu aprontei!

— Isso não tem mais importância. Você está aqui.

— Só por alguns dias. Ingressei no corpo médico do exército e tenho que me


apresentar, logo depois do Natal.

— Alguns dias... vinte anos... às vezes, é a mesma coisa...

— Não deu certo com Thomas?


— Como poderia? Ele nunca me amou como eu precisava ser amada. Eu fingi ser a
mulher meiga e submissa que ele queria, mas, sem filhos, nosso casamento logo
desmoronou.

— Meu casamento também não deu certo. Hannah é uma boa esposa, mas nunca
fomos amantes. — Vendo a incredulidade no rosto de Louise, Jerome continuou,
zombeteiro: — É claro que nós dormimos juntos de vez em quando, mas não é a mesma
coisa. Com ela, eu nunca tive o que acabo de ter com você.

— Nem eu, com Thomas. Eu senti o impulso de ir para Londres com você, quando
me pediu, mas havia tanta coisa contra.... papai, mamãe, você mesmo. Se você me amasse,
eu teria ido. Mas você amava mamãe.

Ele a puxou de encontro a si, acariciando-a de leve.

— Durma agora, Louise. Você está cansada.

Louise fechou os olhos, mas de repente abriu-os de novo e começou a rir.

— Já pensou, Jerome? Eu sou uma adúltera, como mamãe. Será que isso está no
sangue? Ou é só uma fraqueza fatal por olhos azul-esverdeados?

Jerome sorriu.

— Só Deus sabe. Mas eu tenho uma fraqueza por cabelos pretos e olhos azuis. —
Uma expressão séria cobriu-lhe o rosto. — Preciso lhe dizer uma coisa, Louise: estou com
trinta e nove anos, e até hoje só amei uma pessoa: sua mãe. Agora, descobri que amo você.
Só Deus sabe o que vamos fazer disso. Estou muito cansado e feliz para pensar. Foi a
primeira vez que dei e recebi amor, e a sensação é maravilhosa, meu anjo!

Nos dias que se seguiram, Louise passou a maior parte do tempo ao lado da mãe,
tratando-a com toda a ternura possível. Sophia mal notava os olhares trocados pela filha e
Jerome. O funeral de Wolfe fora marcado para três dias após a morte dele, às onze horas
da manhã. Thomas Hunt não se importou com a ausência da esposa, ao contrário de
Luther, que se escandalizou.

Quanto à presença de Sophia no funeral, os filhos de Wolfe resolveram deixar que ela
decidisse por si mesma. Os dois mais novos eram de opinião que ela não iria, devido ao
embaraço social que causaria, se fosse. Jerome nada disse. Ele a conhecia bem melhor.

Jerome falou com Sophia sobre a culpa que sentia, em relação à morte do pai.

— Se eu soubesse que ele sofria do coração, não teria entrado daquele jeito... Foi
infantilidade minha, mas eu queria ver vocês dois, antes de partir para a guerra.
— A culpa não foi sua, Jerome — assegurou ela, tomando-lhe as mãos. — Qualquer
coisa poderia ter desencadeado o ataque. Ele escondeu de todos que estava doente. O
médico disse que ele já sabia há meses...

— Sophia tinha os olhos novamente inundados de lágrimas. — Acho que nunca vou
me acostumar. Por muito tempo eu vivi sem minha alma, depois ela me foi devolvida.
Agora, levaram-na de novo...

Naquela noite, Jerome deu a Sophia um sedativo mais leve. Ela sonhou com Wolfe e,
ao acordar, viu a filha sentada junto à cama, trabalhando num bordado. Por entre as
pálpebras semicerradas, pôs-se a observá-la: Perdera Wolfe, mas recuperara Louise. Não
era uma troca justa, mas pelo menos não era uma perda total. E desta vez, talvez pudessem
aprender a se conhecer...

Jerome entrou no quarto, inclinando-se sobre ela. Sophia fingiu dormir, ajudada pela
sonolência causada pela droga. Ele deu-lhe as costas, voltando-se para Louise. Atônita, ela
viu o olhar que trocaram: havia paixão entre ambos!

— Venha para a cama, meu anjo — Jerome sussurrou, inclinando-se para beijar
Louise com evidente desejo.

— Ela vai dormir, até amanhã cedo.

Louise levantou-se e, abraçados, eles saíram do quarto. Sophia riu baixinho,


murmurando para si mesma:

— Ah, Wolfe, como eu gostaria que você estivesse aqui!

A consternação foi geral no círculo social da família Whitley, quando ficou claro que
Sophia pretendia comparecer ao funeral. De preto, com o rosto coberto com um véu, ela
chegou, acompanhada por Jerome de um lado e Louise do outro. Atras vinham os outros
filhos de Wolfe, com as esposas. A comunidade sentiu-se ultrajada, mas todos
concordaram que aquela arrogância era típica dos Stonor.

Depois de alguns olhares indignados para Sophia, os membros da congregação


resolveram ignorá-la. Afinal, os Whitley eram uma família muito importante na cidade e
não deixariam de acompanhar o funeral de Wolfe até o fim. Assim, reuniram-se todos em
torno da cova. Sophia chorava por trás do véu e Jerome a abraçava pelos ombros, como um
filho.

Quando as formalidades terminaram, um chofer, num elegante uniforme,


aproximou-se trazendo uma enorme coroa de flores. Em silêncio, colocou-a numa posição
de destaque. Incrédulos e chocados, todos os olhares focalizaram o cartão preso às flores.
Sophia, que já ia se voltando para ir embora, viu-o e parou. Jerome arqueou as
sobrancelhas ao ler o nome escrito no cartão, sem nenhuma palavra de simpatia ou
condolências.

Sophia olhou na direção dos portões do cemitério. Os presentes olharam também,


sussurrando entre si. Vagarosamente, ela se pôs a caminhar para lá. Incrédulos, todos
viram a porta da limusine abrir-se e a mão pálida e magra de um homem estender-se para
ela. Os olhos de Louise encheram-se de lágrimas, e Jerome apertou os lábios, num assobio
silencioso.

Sophia se deteve, olhando para o interior do carro, depois entrou. O chofer


reassumiu sua posição e deu a partida.

Foi como se uma bomba explodisse em meio à comunidade. O falatório


escandalizado começou, enquanto Luther Hunt acompanhava o carro com o olhar, como se
estivesse vendo o fim do mundo.

— Meu Deus, seu pai é incrível! — Jerome comentou com Louise. — tiro o chapéu
para ele por sua coragem. Que marcação impecável!

— Ele a ama — Louise respondeu.

Eles se fitaram em silêncio. Neste momento Thomas apareceu, perguntando com


agressividade:

— O que é que sua mãe está fazendo agora? Todo o falatório vai recomeçar! Como é
que ela pôde fazer uma coisa dessas comigo?

— Porque ela não liga a mínima para nenhum de nós — Jerome explicou com
sarcasmo. — E por que deveria? Por acaso nós ligamos para ela? Ela foi para onde é mais
querida... Qual de nós seria estúpido a ponto de recusar uma coisa dessas? — terminou,
olhando Louise nos olhos, para que ela entendesse claramente sua mensagem.

No carro, Sophia chorava, com a cabeça no ombro de Stonor, enquanto ele acariciava
seus cabelos ternamente, com um sorriso de satisfação no rosto. Ainda não tinham trocado
uma palavra. Não havia necessidade.

Em Queen's Stonor, os criados ficaram excitadíssimos com a volta de Sophia. Os


comentários foram muitos, pois ela era uma mulher caída em desgraça. Por que Stonor
fora buscá-la, ninguém sabia, mas ela era a verdadeira Stonor da casa, e isso pesava muito.

Edward ficou pasmo. O pai nunca lhe falara de suas intenções. Na verdade, Stonor
não tinha meios de saber se Sophia viria ou não. Desde que soubera da morte de Wolfe,
ficara num excitamento doentio, mas não se atrevera a agir até ver como ela recebia sua
coroa de flores. Se Sophia a tivesse ignorado, não teria se atrevido a abrir a porta do carro.
Mas ela não a ignorara. Em vez disso, virara-se e fora em sua direção e, em silêncio, ele a
convidara a voltar.

Naquela noite, Edward se retirou logo para seu quarto, deixando os pais a sós.
Emocionados, eles falaram em frases curtas e abruptas, e sempre de Wolfe. Stonor entendia
que Sophia tinha necessidade dessa conversa e estava muito feliz para se importar com o
tema. Com as feições suavizadas pela felicidade, ele ouvia e respondia, sem tirar os olhos
dela.

Quando Stonor já estava acomodado na cama, Sophia entrou para lhe dar boa noite.
No momento em que ela se preparava para sair, ele pediu-lhe:

— Fique comigo, Sophia.

Para outras pessoas, um pedido desses seria considerado o máximo da


insensibilidade. Mas Sophia fechou a porta, despiu-se e, em roupas de baixo, deitou-se ao
lado dele. Havia consolo e calor humano em seu gesto. A morte de Wolfe a deixara muito
só. Podia ter mais vinte anos de vida. Vinte anos sem Wolfe... Com um suspiro,
aconchegou-se mais a Stonor.

— Vi Louise no funeral. Acha que ela virá a Queen's Stonor, Sophia? — Stonor
perguntou, de repente.

— Você terá que falar com ela.

— Ela é nossa filha.

— Ah, Stonor, seu tolo! Você sempre consegue o que quer.

Ele não fingiu não entender.

— Eu ia me matar quando você me deixou — disse. — Mas depois resolvi esperar


para ver... Foram anos muito longos e vazios, minha querida, mas estou feliz por ter
esperado.

Capítulo XXX

Louise e Jerome se encontravam sempre que ele podia sair do acampamento. Usavam
hotéis discretos, caminhavam pelas praças, de mãos dadas como jovens amantes. Na
primavera de 1915, Thomas foi para a América a negócios, e o convite de Stonor para uma
visita a Queen's Stonor deu ao casal a oportunidade de se encontrarem com mais
freqüência e em particular.
Deliciado com a reconciliação dos Whitley, Luther Hunt, foi o primeiro a reconhecer
a posição de Sophia como senhora de Queen's Stonor, convidando-a para um jantar. O
resto da comunidade, levando em conta a alta posição de Stonor na sociedade e no
comércio, resolveu imitar Luther, fingindo que o lamentável caso entre Wolfe e Sophia
jamais ocorrera.

Foi no fim de 1915, que Stonor percebeu que Louise e Jerome eram amantes,.

— E se Thomas descobrir? — ele perguntou a Sophia, zangado.

— Thomas anda tão aborrecido ultimamente, querido! Não pensa em nada, a não ser
em ganhar dinheiro. Quem pode culpá-la?

— Tendo em vista as circunstâncias, ninguém... Tendo em vista que ela tem o meu
sangue, não é?

Sophia riu, e Stonor juntou-se a ela.

— Não sei se você notou, mas Louise mudou tanto, Sophia. Ela está tão bonita!

— O amor tem dessas coisas, querido. Louise está apaixonada... e eu a invejo. Você,
não? Toda a paixão se acabou?

— Paixão? — Stonor repetiu, pensativo. — A paixão, talvez, mas não o amor. Esse
permaneceu, tão firme quanto antes. Não sabia disso, Sophia?

— Claro que sabia, meu apaixonado querido!

— Por que você quis tanto me magoar, aquele dia?

— Você me deu para Wolfe, e isso eu não podia perdoar.

— Mas foi para o seu bem. Eu tinha medo de que você morresse. Você andava tão
triste e sem vida... e Wolfe era o único capaz de tirá-la da depressão.

— É verdade... Mas eu sou uma mulher, Stonor, e me ressenti do fato de você me dar
a ele. Wolfe considerou sua atitude um gesto nobre, mas eu me zanguei.

— Queria que eu a deixasse morrer?

— Não é tão simples assim. Eu queria que você lutasse, como fez quando eu quase
morri, no parto de Daniel. Você sempre lutou por mim, e de repente desistiu.

— Acho que nunca vou entender você, Sophia... Olhando-o nos olhos, ela riu.

— Você me entende sim, Stonor, e muito bem...

Em 1916, Jerome foi mandado para a França. Ele e Louise passaram o último fim de
semana juntos, em Queen's Stonor. Sophia fez o possível para que nada perturbasse os
amantes, embora Stonor fosse contra.
— Não acha que isso é perigoso? — ele perguntou.

— Eles têm tão pouco tempo, Stonor. O que você diria, se fôssemos nós?

Stonor fitou-a, divertido.

— Pensa que não sei que você adora a idéia de saber que o filho de Wolfe vai para a
cama com a nossa filha?

— Puritano! — Sophia retrucou, rindo abertamente.

— Eu deveria proibir isso!

Mas desde a morte de Wolfe, Stonor deixara de se importar com a paternidade de


Jerome. Sem Wolfe, ele era dono absoluto da felicidade e não ligava para o resto do
mundo.

Depois que Jerome se foi, Louise, triste e silenciosa, passava a maior parte do tempo
em Queen's Stonor, com os pais. Edward raramente estava em casa. Apaixonado por carros
a motor, ele adquirira o hábito de ir sempre a Londres, dirigindo. Um telefone fora
instalado na casa, e foi através dele que a família recebeu a notícia da morte de Edward,
num acidente automobilístico, no verão de 1916. Stonor ficou arrasado. Desde a volta de
Sophia, negligenciara o filho, e a culpa pesava em sua consciência.

Sophia também se sentia culpada com relação a Edward. Sabia que sua volta rompera
a proximidade entre ele e o pai, e de certo modo se julgava a causadora daquela morte,
exatamente como Jerome achava que causara a de Wolfe.

Três semanas depois dessa infelicidade, Louise apareceu, tarde da noite, trazendo
notícias da morte de Jerome, no sul da França. Ela estava arrasada pela dor e com o rosto
muito inchado.

— O que houve com o seu rosto? — Sophia perguntou.

— Thomas me bateu.

— O quê?! — Stonor exclamou, zangado.

— Não consegui me controlar ao saber da morte de Jerome. Thomas se zangou, e


quando eu lhe disse que estava esperando um filho de Jerome...

— Ah, minha querida! — mesmo infeliz com aquela morte, lágrimas de alegria
encheram os olhos de Sophia. — Que noticia maravilhosa...

— Os Hunt vão ficar arrasados — comentou Stonor.

— E quem liga para isso? O importante é que agora teremos um novo herdeiro para
Queen's Stonor, meu querido.

Ele não escondeu a zanga.


— Um... bastardo?! O filho bastardo de Jerome Whitley vai herdar Queen's Stonor?

— Ele será seu neto, meu querido. Que diferença faz, se é filho de Jerome ou de
Thomas?

— Para você, faz muita. Você queria isso, Sophia. Foi por isso que deu a eles tanta
liberdade, aqui em casa.

— Foi mesmo — ela admitiu, sem o menor pudor. — Thomas já tinha mostrado que
não era capaz de ser pai, e, com a morte de Edward, nós precisávamos de um herdeiro...

— Pois eu não vou aceitar isso! Acha que fiquei tolo, só porque estou velho? Eu sei o
que você quer, Sophia! Você quer o neto de Wolfe reinando em Queen's Stonor, quando eu
estiver morto.

— Seu neto, também. E meu... Ele terá o sangue de todos nós, nas veias.

Stonor fitou-a, refletindo sobre o que ela dissera. No fim acabou falando, de mau
humor:

— Provavelmente vai ser uma menina.

Rindo, Sophia beijou-o.

— Ah, Stonor, seu tolo!

Algumas semanas depois, Thomas apareceu em Queen's Stonor, cheio de raiva e a


dignidade ferida.

— Eu vou divorciar dela — disse aos sogros. — Louise não verá um tostão do meu
dinheiro, e esse bastardo não terá meu nome.

— Está bem — Stonor concordou friamente. — De hoje em diante, quando quiser


entrar em contato conosco, faça o favor de procurar nossos advogados.

Incrédulo, Thomas corou.

— Quer dizer que vocês pretendem ficar com Louise e esse bastardo? Ela é uma
vagabunda! Estava dormindo com ele há meses e...

Stonor tocou a campainha e mandou que os criados mostrassem a Thomas a porta da


rua. Em pouco tempo, os papéis do divórcio estavam em andamento, mas Louise não se
importou.

Luther também tentou convencer Stonor a botar Louise para fora de casa, porém,
nada conseguiu. Depois que a visita se foi, Sophia beijou o marido.

— Eu tenho orgulho de você, Stonor!


— Fiz o que você queria, Sophia. Eu sei que você anda dirigindo minha vida, mas
estou muito velho e fraco para me importar, Além disso — Stonor zangou-se —, não
admito interferência de ninguém nos negócios de minha família. Se eu quero ficar com
Louise aqui, não é da conta de ninguém!

— Pobre Luther... Ele teria dado o braço direito para ver um neto como dono desta
casa. Agora, terá que se conformar à idéia de ver Louise dando a luz ao filho de outro
homem.

— A culpa foi de Thomas. Obviamente, Louise sempre foi capaz de ter filhos. O
problema era com ele.

— É verdade... Mas eu, no lugar de Thomas, não faria tanto alarde da minha
impotência. Ele está dizendo a todo mundo que Louise levou anos sem engravidar dele,
mas que com Jerorne engravidou bem depressa.

Os dois últimos filhos de Wolfe também se alistaram. No outono Stonor e Sophia


ficaram sabendo que ambos haviam morrido, no mesmo dia e durante a mesma batalha.
Sophia fez uma visita de condolências às duas moças, que estavam inconsoláveis.

Por toda a Inglaterra, mulheres choravam. A aventura que começara com tanto
esplendor, em 1914, transformara-se num derramamento de sangue que parecia não ter
mais fim.

Louise ainda era nominalmente esposa de Thomas, quando deu à luz, numa noite de
inverno. Era o garoto que Sophia predissera, uma criaturinha magra, comprida, de cabelos
pretos e olhos cinzentos. Olhando-o, Stonor teve uma curiosa sensação de dejà vu, e à sua
mente veio a lembrança do nascimento de Daniel, tanto tempo atrás...

Ela não é uma garota esperta? — Sophia comentou, com a voz suavizada pela alegria.
— Acaba de nos dar nosso herdeiro, Stonor.

Louise assustou-se. Não esperava uma coisa dessas. Sentira-se grata quando os pais a
abrigaram, apesar da pressão dos Hunt e da sociedade local. Mas aquilo... uma promessa
formal de que seu filho seria o herdeiro de Queen's Stonor... Virou-se para o pai, com ar de
dúvida, e viu-o estender o dedo indicador para o neto, que de imediato agarrou-o com
uma das mãozinhas.

Stonor ergueu os olhos para a filha.

— Que nome vai lhe dar?

— Não sei...

— Daniel. Dê-lhe o nome de Daniel.


Louise olhou para a mãe, com os olhos cheios de lágrimas, e viu que ela também
estava emocionada. Sentindo a mesma emoção, Stonor anunciou:

— Vou mudar meu testamento hoje mesmo, deixando tudo para Daniel...

Sophia nada disse. Sabia que desta vez ele não tentaria usar Daniel como pião do
jogo perigoso que afetara suas vidas. Stonor via aquela criança como sua própria carne, e
era isso que importava. Carne de sua carne, sangue de seu sangue. Quem ligava para
títulos legais? Ou para o mundo? Aquele era o neto deles.

A cidade recebeu com divertimento a notícia de que Stonor Whitley nomeara


herdeiro de tudo que tinha o filho bastardo da filha. Os Hunt ficaram ofendidíssimos.
Luther se indignava ao pensar que, se aquela criança fosse de Thomas, seria seu neto a
herdar Queen's Stonor, Thomas, por sua vez, percebendo que era motivo de caçoada de
todos, encheu-se de raiva.

— Vou me casar de novo — disse ao pai, furioso.

— Para quê? Uma mulher é igual à outra. Você teve anos para engravidar Louise e
não conseguiu. Por que perder tempo tentando com outra?

Fora de si, Thomas dirigiu-se a Queen's Stonor. Encontrou Louise no jardim,


empurrando o bebê num carrinho. Detendo o carro, ele desceu e foi até lá, xingando com
desespero:

— Vagabunda... você arruinou minha vida... você e esse bastardo... e os avós ainda
fazem dele o herdeiro de Queen's Stonor... Até meu pai me trata com pouco caso... você me
destruiu, sua vagabunda!

Louise nunca vira Thomas tão alterado. Ele parecia um louco, com as feições
marcadas pela raiva e os olhos injetados de sangue, devido à falta de sono.

— Eu deveria asfixiar esse maldito com o travesseiro na cara! — Thomas disse de


repente, virando-se para o bebê.

Louise reagiu de imediato, empurrando-o para afastá-lo do carrinho e gritando:

— Vá embora daqui! Vá embora!

Thomas descontrolou-se por completo. Esbofeteando-a com violência, jogou-a sobre


a grama. Louise tentou se levantar, morta de medo pelo filho, mas ele caiu sobre ela,
imobilizando-a sem dificuldade. Já se esquecera por completo da criança a poucos passos.

— Se ele pôde, eu também posso. Uma vagabunda como você aceita sempre, sem
reclamar.
Louise mal podia acreditar que aquele era o marido quieto e orgulhoso, que a
entediara durante anos. Seus corpos rolavam pela grama numa luta animal, que ela não
tinha esperanças de vencer. Thomas segurou-a, ofegante, enquanto a tomava com
brutalidade. Nunca, em toda a vida de casados, ele mostrara tanta paixão diante dela. Só a
vergonha pública poderia levá-lo a proceder assim.

— Sua vagabunda! Quando você se ofereceu a mim aquele dia, eu devia ter visto que
não passava de uma mulher à toa. — Olhando-a com ódio, foi tomado pela necessidade de
dominá-la pela força bruta. — Eu devia ter usado você e ido embora. Fui um tolo,
tratando-a com respeito e cavalheirismo. Mulheres como você só entendem isso...

Thomas movia-se sobre ela, dominado por um misto de ódio e desejo. De repente
Louise fechou os olhos, gemendo baixinho. Ele nunca a vira com aquela expressão
apaixonada no rosto. Durante seu casamento, os momentos na cama tinham sido rituais
discretos e silenciosos, no escuro.

Louise enlaçou-lhe o peito, enterrando as unhas nas costas largas. Deixara de lutar, e
seu corpo arqueava-se receptivamente, correspondendo aos movimentos do dele com
ardor.

Thomas acariciou-lhe os seios, sem afastar os olhos do rosto dela. Ansioso, abriu-lhe
o vestido e libertou a carne macia, tocando-a com paixão.

— Não pare... não pare... — ela gemia, retorcendo o corpo.

— Por Deus, Louise.— ele exclamou de repente, pressionado pelo desejo. — Eu quero
você!

Thomas nunca dissera isso, antes. Nem pensara. Ela era sua esposa, gentil, submissa
e discreta. O desejo ardente que o dominava era uma surpresa, e a resposta dela o
descontrolava por completo. Atraído pela curva suave dos seios femininos, inclinou-se
para beijá-los e encontrou-os receptivos. Ofegante, incitado pela língua de Louise,
aprofundou o beijo.

— Eu nunca soube — Thomas murmurou depois, num tom enrouquecido. — Eu


nunca soube...

Entendendo-o perfeitamente, Louise enroscou-se nele e, juntos, eles partilharam o


único ato de amor completo, em suas vidas.

Thomas não conseguia pensar em nada. Indiferente à possibilidade de serem vistos,


sem ligar para o fato de poderem ser ouvidos, alcançou o pico de um prazer que nunca
soubera que existia, com Louise gemendo debaixo dele e junto com ele.
Exausto, atordoado, por alguns momentos ele continuou como estava. Quando se
moveu, Louise esticou o corpo sobre a grama, estendendo os braços para o alto, num gesto
cheio de vida.

Thomas deitou-se ao lado dela, arrumando as roupas, tão corado que parecia estar
doente. O silêncio do parque os envolvia, e a primavera espalhava um cheiro delicioso pelo
ar. Depois de um longo silêncio, ele disse:

— Volte para casa comigo, Louise.

Ela levou alguns instantes para perguntar:

— E Daniel?

— Leve-o junto.

Louise suspirou.

— Eu vi como meu irmão sofreu, porque papai não o amava. Não vou fazer isso com
o meu filho.

— Se não der certo, você pode voltar para cá. Dê-me uma chance, Louise. —
Sentando-se, Thomas colocou a mão sobre os seios dela, ainda expostos. — Depois disso,
tenho que ter você de volta. Nós nunca tivemos uma chance. Eu não fazia idéia. Louise, eu
a quero... não como minha esposa ou por ser uma ótima dona de casa... eu a quero porque
você... Você sabe o quanto eu a quero. Uma vez só não basta. Quero você assim, todas as
noites.

Louise riu, cheia de afeto por ele.

— Ah, Thomas, mas que vergonha... Você vai me tratar como uma vagabunda todas
as noites, então?

— Isso mesmo.

— E se eu quiser ouvir você dizer que me ama?

— Mas é claro que eu amo você! Eu a amo e joguei fora anos de nossas vidas, por não
saber o quanto.

— Eu amei muito Jerome. Já o amava, mesmo antes de me casar com você.

Thomas fitou-a, sem esconder o ciúme e a dor. Mas logo, com o espírito competitivo
que o caracterizava, disse:

— Eu farei com que você me ame.

— Deus do céu, acho que você é bem capaz! — Ela riu. — Você me espantou,
Thomas. Nunca pensei que fosse capaz de me possuir assim... e ainda me fazer gostar... O
que mais quer?
— Fazer com que você me ame.

— E o escândalo? O divórcio?

— O escândalo que vá para o inferno! E o divórcio eu posso interromper. Seu pai


aceitou sua mãe de volta, porque eu não haveria de aceitar você? As pessoas têm memória
curta. Daqui a alguns anos, ninguém mais se lembrará.

Olhando-o por entre os cílios, Louise lembrou-se de ouvir a mãe dizer: "Eu posso
levar você a fazer o que eu quiser". Para quem ela dissera isso? Stonor ou Wolfe? Não
sabia, mas ainda se lembrava do modo como a mãe fazia o que queria dos dois homens,
provocando e encantando-os.

— Arrume meu vestido, Thomas — pediu baixinho.

E quando ele obedeceu, ardendo de paixão, Louise foi invadida por uma deliciosa
sensação de poder. Enchendo os pulmões com o delicioso ar de primavera, sorriu para ele,
inconscientemente flertando.

— Ajude-me a levantar. Você foi muito bruto, jogando-me no chão daquele jeito...

"Então é isso", ela pensou, observando o rosto de Thomas, enquanto ele a levantava
com todo cuidado. Aquele era o segredo do poder de sua mãe sobre os homens, e agora
que o conhecia, faria uso dele enquanto pudesse.

— Você precisa entrar para falar com mamãe e papai. Temos que explicar que nos
reconciliamos.

Caminhando ao lado do carrinho, Thomas sentia-se mais novo e mais velho do que
era. A experiência explosiva de há pouco o tinha libertado das algemas que usara, desde a
juventude. Olhou disfarçadamente para Louise e percebeu, atônito, que ela possuía toda a
beleza de Sophia. A esposa quieta e dócil, que passara anos a seu lado, transformara-se de
repente numa mulher desejável e excitante, que ele ardia de vontade de possuir outra vez.

Quando eles entraram na casa, Thomas só via Louise. Carregando com alegria suas
correntes de desejo e amor, ele foi com ela para a saleta de estar, onde estavam os sogros.

O casal se surpreendeu. Sophia notou a desarrumação em que eles se achavam e


arqueou as sobrancelhas.

— Thomas quer que eu volte para ele — Louise explicou, com um leve sorriso.

— E o menino? — Stonor perguntou de imediato.

— Thomas promete ser bom para ele.

— Se ele não conseguir, Daniel volta para cá. Ele é meu neto, e não quero que nada
nem ninguém o magoe. Nunca!
— Eu farei o possível para que isso não aconteça — Thomas declarou, muito corado e
sem jeito.

Durante algum tempo eles discutiram a situação. Depois, Thomas levou para casa
consigo Louise, Daniel e a babá do menino. Não queria esperar nem mesmo mais uma
noite, antes de reassumir sua vida de casado.

— Eu nunca vou entender as mulheres desta família — Stonor comentou. — Pensei


que ela o odiasse...

— Ah, querido, você é tão cego!

Stonor riu, olhando para Sophia com adoração.

— Estamos sozinhos de novo, minha querida. Vai sentir muita falta de Louise e do
menino?

— Eles virão nos visitar sempre. E nós temos um ao outro.

— É verdade, nós temos um ao outro...

Durante meses, Bristol só falou na reconciliação de Louise e Thomas. Luther,


enraivecido, mal acreditou quando o filho, sempre tão cordato, disse-lhe para não se meter
com sua vida.

— E se o senhor ofender Louise — acrescentou ainda —, nunca mais será bem-vindo


em nossa casa.

— Eu nunca vou aceitar esse bastardo como meu herdeiro. Está ouvindo, Thomas?
Nunca! Prefiro deixar meu dinheiro para um asilo.

— Deixe para quem quiser! O filho de Louise não precisa do seu dinheiro. Ele terá
Queen's Stonor.

— Você não tem orgulho, meu filho? Não tem virilidade?

Para espanto do pai, Thomas riu.

— Eu tenho os dois, meu pai. Descobri um pouco tarde, mas, graças a Deus, ainda
em tempo.

Três meses depois, Louise comunicou-lhe que estava grávida.

— Este será neto de seu pai — disse. — Daniel não precisa do dinheiro dele. Cada um
terá sua própria herança.

Thomas foi à casa do pai aquela noite, levando uma garrafa de champanhe.

— Daniel terá Queen's Stonor — anunciou, triunfante e cheio de orgulho. — Meu


filho terá o seu dinheiro, papai.
— Tem certeza de que é seu? — Luther perguntou, sem intenção de ser cruel.

Thomas riu.

— Claro que tenho! Tomei providências para que assim fosse todas as noites, durante
os últimos três meses.

Luther riu então, com um brilho de espanto e divertimento no olhar. Thomas abriu o
champanhe e, triunfantes, eles brindaram ao bebê.

De repente, Luther indagou:

— Daniel está registrado no seu nome?

— Está. Não podia ter a criança me chamando de pai, com o nome de outro homem.

— Então, um dia, os Hunt estarão em Queen's Stonor. Pense nisso, meu filho... O
nosso nome!

Durante os longos e terríveis meses de 1918, só houve um assunto de conversa, nas


reuniões sociais de Bristol: o espantoso fato de que Louise Hunt dera à luz gêmeos e tivera
a insolência de chamá-los Stonor e Luther. Logo, todos se acostumaram a ver Luther Hunt
exibindo orgulhosamente os netos gêmeos pela cidade. E os dois eram tão parecidos com
Thomas, que não deixavam dúvida quanto à sua paternidade.

Luther enchia de presentes não só os netos, como também Louise. De nora detestada,
ela passara a filha querida. Toda a cidade notou, incrédula, que quanto mais os anos
transcorriam, mais Louise Hunt se tornava parecida com a mãe, a notória Stonor.

— Os Stonor sempre foram voluntariosos — as pessoas diziam entre si, começando a


se orgulhar do comportamento excêntrico e vergonhoso das mulheres daquela família. —
Está no sangue.

E, durante o ano da paz de 1919, Sophia e Stonor viram, deliciados, o neto mais velho
montar seu primeiro pônei e andar pelo pátio.

— Olhe para mim, vovô — ele gritou para Stonor. — Olhe para mim...

— Estou olhando, querido.

O triunfo ardia nos olhos cinza do garoto, enquanto ele tocava o animalzinho para a
frente.

— Daniel é tão parecido com você — Sophia comentou.

— Ele tem os seus cabelos — Stonor disse, como já o fizera inúmeras vezes.

Mas o que nenhum deles falou foi o que sempre pensavam, em segredo: que as
feições do menino pareciam uma estampa das de Wolfe Whitley. Realmente, ele tinha os
olhos de Stonor e os cabelos de Sophia, mas a impressão geral que causava era a de se
parecer com Wolfe.

Mais tarde, quando voltavam para casa, Daniel quis ajudar a empurrar a cadeira do
avô. Desde bebê, ele mostrara ter pelo avô um enorme afeto, que Stonor retribuíra sem
reservas.

— Estou empurrando a sua cadeira, vovô — ele anunciou, esforçando-se ao máximo.

A família parou para admirar a casa. O sol da manhã caía sobre ela como um véu
dourado. Tranqüila, sonhadora, a mansão se erguia em meio ao cenário verdejante,
contendo séculos de alegrias e tristezas dos seres que abrigara. A violência e a tragédia não
tinham deixado marcas em sua fachada. Ela sobrevivera a tudo que a passagem do tempo
podia trazer. Em torno da casa, os bosques e campos da Inglaterra estendiam-se como um
mar de tranqüilidade. A guerra se acabara. A paz deveria durar para sempre. Queen's
Stonor esperava para receber com alegria seu atual senhor e o futuro herdeiro.

Daniel inclinou-se de lado para olhar o avô. O rostinho traía seu sangue, a mistura
das vidas de Sophia, Stonor e Wolfe, que resultará naquele único e adorado ser humano,
que um dia reinaria em Queen's Stonor.

— Estamos em casa, vovô — ele anunciou, como se Stonor não tivesse visto. — Bem,
quase em casa...

Stonor tomou a mão de Sophia na sua.

— Isso mesmo, querido... Estamos quase em casa.

FIM

A autora e sua obra

Sheila Holland começou a escrever romances em 1971, sob o pseudônimo Charlotte


Lamb, uma das mais famosas autoras de ficção contemporânea. Desde essa época, mais de
setenta livros foram publicados em todo o mundo. Com os romances Violência, já
publicado por nós com enorme sucesso, e Segredos, que ela assina com o nome
verdadeiro, confirma-se o talento de uma escritora de muita sensibilidade, que encanta os
corações românticos de seus leitores.

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