You are on page 1of 6
CADERNOS DE SUBJETIVIDADE Nécleo de Estudos ¢ Pesquisas da Subjetividade Programa de Estudos P6s-Graduados em Psicologia Clfnica da PUC-SP Cad, Subj. S.Pawlo v1 on. 1 pp. 1-136 _mar./ago. 1993 UMA CONSTRUCAO PERMANENTE, Jean Oury © psiquiatra Jean Oury havia levado Guatiari consigo, desde 1953, na aventura da clinica de La Borde. Fundador em 1953, da clfnica de La Borde, perto de Blois, o psiquiatra Jean Oury conhecia Félix Guattari h4 mais de 45 anos. Quase meio século de amizade € colaboragao profissional, cujo epflogo teve lugar no sibado de ma- nh&, na prépria clinica, quando Jean Oury descobriu o corpo inanimado de Félix Guattari em seu quarto, Testemunho: Conheci Félix Guattari em 1945 por intermédio de meu ir- mao Fernand, professor primério de quem Félix havia sido aluno. Félix tinha 15 anos ¢ eu 21. Ele militava em um movimento nascido logo apés a guerra, a fa- vor dos albergues da juventude. Era, jé, um rapaz curioso com relagéo a tudo, imaginativo, cujas idéias polfticas eram engajadas, e que se interessava tanto pela ciéncia quanto pela misica. Alguns anos mais tarde, no fim do ano de 1950, quando eu trabalhava em uma clinica psiquidtrica de Loir-et-Cher, ele veio me ver, bastante desorientado. Sua famflia o havia compelido a empreen- der estudos de farmécia, 0 que ndo o agradava nem um pouco. Ele continuou comigo, nés conversamos bastante, eu 0 encoragei a mudar de via, tha concepgo de psiquiatria, enraizada no social e no politico, o inte- ressava muito, mas eu no podia estar por inteiro no social e, por conseguinte, propus-Ihe ocupar essa funcSo. O que nds fizemos foi firmar uma espécie de contrato, Ele respeitou esse contrato até o seu dltimo dia. Tivemos desacordos, mas isso fazia parte do contrato. Ele se instalou em La Borde em 1955, mas jé estava 1d desde 1953. Félix era um ‘animador’! incansdvel. Tinha muitos ami- 205 € trouxe aqui uma populagdo incrfvel, etndlogos, psicélogos, fil6sofos, como Lucian Sebag, Francois Chatelet, Michel Cartry, do Hautes Etudes ou, ainda, 55 Pierre Clastres. Ele viajava sem cessar. Era um passeur?, um verdadeiro entre- cruzamento?, Ele tinha uma forma muito particular de intervencio. Levava muito em conta, no seu trabalho, problemas de alienagio ¢ de insergdo social. O incons- cicnte, no sentido freudiano, parecia-Ihe muito fechiado ao social e sua pritica 0 havia reforgado na convicgao de que essa palavra recobria bem mais que a sua tradicional acepcao psicanalitica. Aos sessenta anos ele era o mesmo que aos 15. Nunca mudou: aparente- mente sonhador, mas extremamente atento, retendo tudo com uma falsa displi- céncia ¢ de uma presenga extraordinéria. E sempre a mesma simplicidade ado- lescente. Ele nunca se tornou ‘senhor isto’ ow ‘senbor aquilo’, Nao dava a mf- nima bola para isso. O que the interessava era a pesquisa. Era muito obstinado, sempre pronto, sempre aberto, Fra como uma construg&o permanente, que havia dado ¢ iria dar coisas magnificas. Notas 1, No original, animateur. © termo refere-se a ‘coordenador de grupos’, como também a alguém que ‘faz acontecer’, que ‘fustiga’ atividades etc., além dos significados usuais. 2, No original, que significa: barqueiro que se encarrega da passagem de pessons ¢ coisas de uma margem para outra de um rio. 3. Carrefour, no original, ATE 0 FIM." Gilles Deleuze Até o fim, meu trabalho com Félix foi para mim fonte de descobertas e de alegrias. Nao quero, entretanto, falar dos livros que fizemos juntos, mas daqueles que ele escreveu sozinho. Pois eles me parecem de uma riqueza inesgotével. Bles atravessam trés domfnios, em que abrem caminhos de criacio. Em primeiro jugar, no domfnio psiquidtrico, Félix introduz do ponto de vista da andlise institucional duas nogées principais: os ‘grupos-sujeito’ ¢ as ‘re- Jagées transversais’ (no hierarguizadas). Observa-se que estas nogdes so tio politicas quanto psiquistricas, IZ que delirio como realidade psicética € uma poténcia que habita imediatamente o campo social ¢ polftico: longe de se ater ao pai-mie da psicanélise, 0 delfrio deriva os continentes, as racas ¢ as tribos. Ele é, a0 mesmo tempo, processo patolégico a ser trabalhado mas, também, fator que trata a ser determinado politicamente. Em segundo lugar, de um modo geral, Félix sonhava talvez com um sistema do qual alguns segmentos teriam sido cientificos, outros filoséficos, outros vivi- dos, ou artisticos etc. Félix se eleva a um estranho nfvel, que conteria a po: lidade de fungSes cientificas, de conceitos filos6ficos, de experiéncias vividas, de criagdo artistica. E esta possibilidade que € homogénea, enquanto os possfveis so heterogéneos. Assim, 0 maravilboso sistema a quatro cabecas nas Cartogra- fias: os territérios, os fluxos, as méquinas ¢ 0s universos. Enfim, em terceiro lugar, como nao ser sensivel precisamente a certas ané- lises artisticas de Félix, sobre Balthus, sobre Fromanger, ou andlises literérias, como 0 texto essencial sobre o papel dos ritornelos em Proust (do grito das ven- dedoras & pequena frase de Venteuil), ou 0 texto patético sobre Genet e Le captif amoureux. A obra de Félix est& para ser descoberta e redescoberta. E uma das mais belas maneiras de manter Félix vivo. O que hé de dilacerante na lembranga de um amigo morto, so os gestos ¢ os olhares que ainda nos atingem, que nos che- gam ainda quando ele se foi. A obra de Félix dé a estes gestos ¢ a estes olhares uma nove substancia, um novo objeto, capazes de nos transmitir suas forgas. * Este texto foi escrito por Gilles Deleuze para ser Lido por Jean Oury, por ocasiio do sepultamento de Félix Guattari, ocorrido em 4,9,1992, Tradugio de Arthur Hyppito de Moura, Revisio de Suely Rolnik. 57 BIBLIOGRAFIA DE FELIX GUATTARI Fonte: Suety Rolnik Esta bibliografia nfo 6 exaustiva, uma vez que nfo esto relacionadas as vérias revistas que Félix Guattari fundou ¢ dirigiu, os intimeros artigos e regis- tros de intervenes, tanto na Franga, quanto nos Estados Unidos, Itélia, Brasil, Japao € outros pafses. Psychanalyse et transversalité. Paris, Maspero, 1972. (Trad. esp.: Psicoandlisis y ransversalidad. Buenos Aires, Siglo Veintiuno, 1976.) La révolution moléculaire. Fontenay-Sous-Bois, Recherches, 1977. La révolution moléculaire (ed. transformada). Paris, 10/18, 1977. L’inconscient machinique. Fontenay-Sous-Bois, Recherches, 1979, (Trad. bras.: O inconsciente maqutnico ~ ensaios de esquizo-andlise. Campi- nas, Papirus, 1988.) Les années Hiver, 1980-1985. Paris, Bernard Barrault, 1986. Cartographies schizoanalytiques. Paris, Galilée, 1989. Les wrois écologies. Paris, Galilée, 1989. (Trad. bras.: As trés ecologias. Campinas, Papirus, 1990.) ‘Chaosmose. Paris, Galilée, 1992. (Trad. bras.: Caosmose - um nove paradigma estético. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992.) Em colaboragao com Gilles Deleuze: L’anti-Oedipe — capitalisme et schizophrénie. Paris, Minuit, 1972, (Trad. bras.: O anti-Edipo. Rio de Janeiro, Imago, 1976.) Kafka, pour une littérature mineure. Paris, Minuit, 1975. (Trad. bras.: Kafka, por uma literatura menor. Rio de Vaneiro, Imago, 1975.) 61 Rhizome. Paris, Minuit, 1976. Mille Plateaux — capitalise et schizophrénie. Paris, Minuit, 1979. (Trad. esp.: Mil mesetas. Valencia, Pre-texto, 1988; trad. bras.: Mil platés. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993 - no prelo.) Qu’ est-ce que la philosophie?. Paris, Minuit, 1991. (Trad. bras.: O que € a filosofia?. Rio de Janciro, Editora 34, 1992.) Em colaborago com Toni Negri: Les nouveaux espaces de liberté. Paris, Dominique Bedoux, 1985. Livros publicados exclusivamente no Brasil: Revolucao molecular: pulsacdes politicas do desejo. Sio Paulo, Brasiliense, 1981 (3! edicdo em 1987). Coletinea de textos, publicados e inéditos, de Félix Guattari, organizada, traduzida, prefaciada ¢ comentada por Suely Rolnik. Lula/Guatiari ~ entrevista. Sio Paulo, Brasitiense, 1982. Em colaboracdo com Suely Rolnik Micropolitica — cartografias do desejo. Petrépolis, Vozes, 1985. (2 edicéo em 1987) 62

You might also like