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Sociedade de risco Rumo a uma outra modernidade Tradugao de Sebastiao Nascimento editora 34 A primeira edigao de Sociedade de ris- co foi publicada na Alemanha em 1986, logo apés o acidente de Chernobyl: ines- peradamente, uma usina nuclear construi- da para fins pacificos ¢ em regime de segu- tanga maxima foi pelos ares naquela cida- de ucraniana, espalhando caos ¢ pavor pe- la Europa e suspendendo a respiragio do planeta © livro de Ulrich Beck chega agora 20 Brasil comprovando sua atualidade 0 vi- gor de sua argumentagao. Afinal, ele coin- cide com a reiteragdo de um cirenito dia- bélico integrado por cardstrofes, crises tragédias que se sucedem em Ambito glo- bal, inquietam ¢ intrigam. Se incluirmos no cireuito a escalada da violencia banal, do terrorismo ¢ dos crimes hediondos, a sensacao de mal-estar que impregna a vi- da cotidiana, 0 retorno de doengas que se acreditava controladas, o desemprego es- trutural, a desorientagao dos jovens em relagdo a6 futuro desequilibrio ecol6- gico, entre tantas coisas, vemo-nos num cenério que exige explicagdes no minimo audaciosas. Seria esse cortejo de horsores e dificul- dades a expresso de acidentes normais, de falhas sist8micas passiveis de prevengdo ou da “vinganga” de uma natureza cansada de superexploragio? Ainda que tais mo- tivos possam ser plausiveis, nao ha como descartar a hipétese principal que emer- ge do presesite livco: passamos a viver em meio aos efeitos colaterais de uma civili- zagio — a modernidade capitalista indus- trial — que regurgitou e saiu dos trilhos, voltando-se contra si propria e escapando dos controles que visam ordené-la. Mobilizando de modo consistente uma admiravel rede de conhecimentos ¢ infor- magées, o liveo de Beck converteu-se num classico contemporaneo. Tornou-se obri- gatério para quem deseja entrar em conta- to com a realidade do mundo atual sem cair na mesmice das dentincias ocas contra a globalizagao ou o neoliberalismo ¢ sem Ulrich Beck SOCIEDADE DE RISCO Rumo a uma outra modernidade Tradugao Sebastiao Nascimento Tuchei wma entrevista inédita cont 0 autor editoral—l34 EDITORA 34 Editora 34 Leda. Rua Hungtia, $92 Jardim Europa CEP 01455-000 Sao Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.editora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda. (edigio brasileica), 2010 Risikogesellschaft @ Suhckamp Verlag, Frankfurt am Main, 1986 Tradugao © Sebastifio Nascimento, 2010 A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E ILEGAL E CONFIGURA UMA APROPRIACAO INDEVIDA DOS DIRETTOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. A uadugio desta obra contou com o apoio do Goethe-Institut, que € patrocinado pelo Ministério das Relagdes Exteriores da Alemanha. Titulo original: Risikogesellschaft: auf dem Weg in eine andere Moderne Capa, projeto gréfico e editoragao elerrénica: Bracher & Malta Produgao Grafica Preparagao: Luciano Gatti Revi Mell Brites 1? Edigio - 2010, 2* Edigao - 2011 (1* Reimpressao - 2013) CIP - Brasil. Catalogagio-na-Fonte {Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Beck, Ulich, 1944 B24 Sociedade de risco: rua a urna outa moderni¢adef Ulrich Beck; tradugio de SebastiSe Nescimentos inclui uma enerevisea inédita com ‘a autor — Sio Paulo: Editora 34, 2011 (2° Bdigao}, 386 p. ISDN 978-85-7326-450-0 Tradugio de Risikogesellschaft 1. Socioiogio. 2, Modernidade, 3. Sociedade ¢ globalizagso, 1, Noscimento, Schastiso, J. Bueno, Arthur. IL. Titulo. eop- 301 SOCIEDADE DE RISCO 7 Prefacio . aL Primeira parte No vuicho CIvILIzZATORIO: OS CONTORNOS DA SOCIEDADE DE RISCO «.. 21 1. Sobre a légica da distribuigao de riqueza ¢ da distribuigdo de riscos ... 23 2. Teoria politica do conhecimento da sociedade de risco .. 61 Segunda parte INDIVIDUALIZAGAO DA DESIGUALDADE SOCIAL: SOBRE A DESTRADICIONALIZACAO DAS FORMAS DF VIDA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL.. wo . Para além da classe e do estrato .... Eu sou eu: sobre o um sem 0 outro, © um com 0 outro € 0 im contra 0 outro na relacdo entre os sexos dentro e fora da familia 5. Individualizacao, institucionalizacao e padronizagao das condig6es de vida e dos modelos biograficos = n , Despadronizagao do trabalho assalariado: sobre o futuro da formacao profissional e do emprege ee 203 Terceira parte MoverNiZAGAO REFLEXIVA: SOBRE A GENERALIZACAO DA CIBNCIA E DA POLITICA... 229 7. Ciéncia para além da verdade e do esclarecimento? Reflexividade e critica do desenvolvimento cientifico-tecnolégice .... 235 8. Dissolucio das fronteiras da politica: sobre a relacdo entre controle politico ¢ transformagao técnico-econémica na sociedade de risco 275 Bibliografia een 343 - Anexo: Didlogo com Ulrich Beck, Arthur Bueno 361 Indice das matérias .. 377 Sobre o autor .... 383 A propésite da obra Pobre em catastrofes histéricas este século na verdade nao foi: duas guetras mundiais, Auschwitz, Nagasaki, logo Hartisburg e Bhopal, ¢ agora Chemobyl. Isso exige precaugio na escolha das palavras e aguea 0 olhar para singularidades histéricas, Todo 0 sofrimento, toda a miséria ¢ toda a violéncia que seres humanos infligiram a seres humanos eram até entio reservados & categoria dos “outros” — judeus, negros, mulheres, refugiados, dissidentes, comunistas etc. De um lado, havia cereas, campos, distritos, blocos milita- res e, de outro, as proprias quatro patedes — fronteiras reais e simbdlicas, atras das quais aqueles que aparentemente nao eram afetados podiam se re- colher. Isso tudo continua a existir e, a0 mesmo tempo, desde Chernobyl, deixou de existir. E 0 fim dos “outros”, o fim de todas as nossas bem culti- vadas possibilidades de distanciamento, algo que se tornou palpavel com a contaminagio nuclear. A miséria pode ser segregada, mas ndo os perigos da era nuclear. E. ai reside a novidade de sua fora cultural ¢ politica. Sua vio- Iéncia é a violéncia do perigo, que suprime todas as zonas de protegao e todas as diferenciagées da modernidade. Essa dindmica que suprime as fronteiras do perigo nao depende do grau de contaminagio ou da disputa em torno de seus efeitos, Muito pelo contra- io, todas as medigdes jé so feitas sob a guilhotina da consternagdo generali- zada. A admissio de uma contaminacdo nuclear perigosa equivale & admissio da inexisténcia de qualquer saida possivel para regides, paises ou continen- tes inteiros, Sobrevivencia e (re)conhecimento do perigo se contradizem. esse fato que torna a disputa em torno de medigSes, valores maximos acei- taveis e efeitos de curto e longo prazo, algo candente para a propria existén- cia, $6 precisamos nos perguntar uma tnica vez o que & que de fato poderia ter sido feito diferente se houvesse ocorrido uma contaminagao do ar, da 4gua, da fauna e dos seres humanos que alcangasse, também segundo pa- rametros oficiais, uma proporcio acentuadamente perigosa. Nesse caso, a vida — respirar, comer, beber — seria interrompida ou restrita por uma A propésito da obra 7 medida oficial? O que acontece com a populagao de um continente inteiro que, em diferentes graus (de acordo com variaveis “fatalistas” como vento, condigGes atmosféricas, distancia em relagdo ao local do acidente etc.}, 6 ir- reversivelmente contaminada? Podem (grupos de) paises ser mantidos em quarentena? Desencadeia-se um caos interno? Ou ento, mesmo nam caso desses, tudo acabaria precisando acontecer como aconteceu em Chernobyl? Perguntas como essas revelam o tipo de suscetibilidade objetiva na qual o diagnéstico do perigo coincide com a sensagao de inelutavel desamparo dian- te dete, Na modernidade desenvolvida, que surgi para anular as limitagdes impostas pelo nascimento e para oferecer As pessoas uma posi¢do na estru- tura social em razdo de suas préprias escolhas ¢ esforgos, emerge um novo tipe de destino “adscrito” em func&o do perigo, do qual nenhum esforco permite escapar. Este se assemelha mais ao destino estamental da Idade Mé- dia que as posigdes de classe do século KIX. Apesar disso, ndo se vé nele a desigualdade dos estamentos {nem grupos marginais, nem diferenca entre campo e cidade ou de origem nacional ou étnica, e por af afora). Diferente dos estamentos ou das classes, ele nfio se encontra sob a égide da necessida- de, e sim sob o signo do medo; ele nao € um “residuo tradicional”, mas um produto da modernidade, particularmente em seu estagio de desenvolvimento mais avangado. Usinas nucleares — o auge das forcas produtivas e criativas humanas —converteram-se também, desde Chernobyl, em simbolos de uma moderna Idade Média do perigo. Blas designam ameacas que transformam 0 individualismo moderno, j4 levado por sua vez ao limite, em seu mais ex- tremo contrario. Os reflexos de uma outra época ainda esto muito vivos: como poderei eu proteger a mim mesmo e aos meus? E conselhos destinados A esfera pri- vada, que j4 ndo existe, ydo de vento em popa. Mas, na verdade, todos ain- da vivem sob © choque antropolégico de uma dependéncia “natural” das formas de vida civilizatérias, uma dependéncia experimentada em meio a ameaca e que suspendeu todos os nossos conceitos de “emancipacio” e “vida prépria”, de nacionalidade, espaco e tempo. Longe daqui, no oeste da Unido Soviética, ou seja, de agora em diante, em nosso entorno préximo, aconte- ceu um acidente — nada deliberado ou agressivo, na verdade algo que de fato deveria ter sido evitado, mas que, por seu carater excepcional, também é normal, ou mais, é humano mesmo, Nao é a falha que produz a cardstrofe, mas os sistemas que transformam a humanidade do erro em inconcebiveis forgas destrutivas, Para a avaliagio dos perigos, todos dependem de instru- mentos de medigao, de teorias e, sobretudo: de seu desconhecimento — inclu- 8 Sociedade de risco enn teen nny een sive os especialistas que ainda ha pouco haviam anunciado o império de 10 mil anos da seguranga probabilistica atémica e que agora enfatizam, com uma seguranga renovada de tirar o félego, que 0 perigo jamais seria agudo. Em tudo isso, destaca-se o peculiar antdigama de natureza e sociedade por meio do qual o perigo passa por cima de tudo o que lhe poderia opor resisténcia. De saida, o hibrido da “nuverm atérmica” — essa forca da civiliza- go invertida e convertida em forca da natureza, na qual histéria ¢ fendme- no atmosférico entram numa comunhio tao paradoxal quanto avassaladora. Todo o mundo conectado eletronicamente acompanha estarrecido seu cur- so. A “esperanca residual” por um vento “favordvel” (os pobres suecos!) revela entdo, mais do que muitas palavras, a inteira medida do desamparo de um mundo altamente civilizado, que havia erguido muros ¢ arame farpa- do, mobilizado exército e policia, tudo isso para proteger suas fronteiras. Uma virada “desfavordvel” do vento, e ainda por cima chuva — que azar! —, ¢ jd se revela a futilidade de tentar proteger a sociedade da natureza con- taminada e jogar 0 perige nuclear para o “outro” do “meio ambiente”. Essa experiéncia, que por um instante chegou 2 esmagar nossa forma de vida atual, reflete a impoténcia do sistema industrial mundial diante da *natureza” industrialmente integrada e contaminada. A oposigao entre na- tureza e sociedade € uma construgao do século XIX, que serve ao duplo pro- pésito de controlar ¢ ignorar a natureza. A natureza foi subjugada ¢ explo- rada no final do século XX e, assim, transformada de fendmeno externo em interno, de fendmeno predeterminado em fabricado. Ao longo de sua trans- formagio tecnolégico-industrial e de sua comercializagao global, a natureza foi absorvida pelo sistema industrial, Dessa forma, ela se converteu, ao mes- mo tempo, em pré-requisito indispensével do modo de vida no sistema in- dustrial. Dependéncia do consumo ¢ do mereado agora também significam um novo tipo de dependéncia da “natureza”, e essa dependéncia ismanente da “natnreza” em relagdo ao sistema mercantil se converte, no ¢ com 0 sis- tema mercantil, em lei do modo de vida na civilizagfo industrial. Contra as ameagas da natureza externa, aprendemos a construir caba~ nas e-a acumulaz conhecimentos. Diante das ameacas da segunda natureza, absorvida no sistema industrial, vemo-nos praticamente indefesos. Perigos -yém a reboque do consume cotidiano. Eles viajam com o vento e a Agua, escondem-se por toda a parte e, junto com o que hé de mais indispensavel & vida — o ar, a comida, a roupa, 0s objetos domésticos —, atravessam todas as barreiras altamente controladas de protecao da modernidade, Quando, depois do acidente, agdes de defesa e prevengao j4 nao cabem, resta (aparen- temente) uma dnica atividade: desmentir, um apaziguamento que gera medo A propésito da obra 9 € que, associado ao grau de suscetibilidade generalizada condenada & passi- vidade, alimenta sua agressividade. Essa atividade residual, diante do risco residual realmente existente, encontra na.inconcebibilidade e impercepti- bilidade do perigo seus ctimplices mais eficazes. O reverso da natureza socializada é a socializagéo dos danos @ nature- 2a, sua ttansformacio em ameagas sociais, econdmicas e politicas sistémicas da sociedade mundial altamente industrializada. Na globalidade da conta- minagao e nas cadeias mundiais de alimentos ¢ produtos, as ameagas a vida na cultura industrial passam pot meramorfoses sociais do perigo: regras da vida cotidiana sao viradas de cabega para baixo. Mercados colapsam. Pre- valece a caréncia em meio & abundancia. Caudais de demandas so desenca- deados. Sistemas juridicos no dao conta das situagdes de fato. As questdes mais prementes provocam desdém. Cuidados médicos falham. Edificius de racionalidade cientifica ruem. Governos tombam. Eleitores indecisos fogem. E tudo isso sem que a suscetibilidade das pessoas tenha qualquer coisa que ver com suas aces, ou suas ofensas com suas realizacées, e ao mesmo tem- po em que a realidade segue inalterada diante de nossos sentidos. Esse é 0 fim do século XIX, o fim da sociedade industrial cldssica, com suas ideias de soberania do Estado Nacional, automatismo do progresso, classes, principio do desempenho, natureza, realidade, conhecimento cientifico etc. O discurso da sociedade (industrial) de risco, também e principalmen- te nesse sentido — enunciado ha cerca de um ano contra muita resisténcia de vozes internas ¢ externas —, manteve um amargo sabor de verdade. Mui- to do que se impés por escrito, de modo ainda argumentative — a indis- cernibilidade dos perigos, sua dependéncia do saber, sua supranacionalida- de, a “desapropriagao ecolégica”, a mudanga repentina da normalidade em absurdo etc. ~, pode ser lido apés Chernobyl como uma trivial descrigio do presente. Ah, pudesse ter continuado a ser a evocagdo de um futuro a ser evitado! Ulrich Beck Bantberg, maio de 1986 10 Sociedade de risco Prefacio © tema desie livro é 0 discreto prefixo “pés”. Ele é a palavra-chave de nossa época. Tudo é “pés”. Ao “pés-industrialismo” j4 nos acostumamos hd algum tempo. Ainda Ihe associamos alguns conteddos. Com a “pés-moder- nidade”, tudo jd comega a ficar mais nebuloso. Na penumbra conceitual do pds-esclarecimento, todos 08 gatos so pardos. “Pos” é a senha para a deso- rientago que se deixa levar pela moda, Ela aponta para um além que no é capaz de nomear, enquanto, nos contetidos, que simultaneamente nomeia e nega, mantém-se na rigidez do que j4 é conhecido. Passado mais “pés” — essa € a receita bdsica com a qual confrontamos, em verborragica ¢ obtusa confusao, uma realidade que parece sair dos trilhos. Este livro é uma tentativa de seguir o rastro da particula “pés” (ou, em seu lugar, “avangado”, “tardio”, “ultra”). Ble é movido pelo esforgo de com- preender os contetidos que o desenvolvimento histérico da modernidade nas Uiltimas duas, trés décadas — especialmente na Alemanha Ocidental —, atri- buiu a essa particula. Isso somente poderd ser feito num duro confronto com as velhas teorias e habitos de pensamento que, com o acréscimo da particula “pés”, tiveram sua validade prolongada. Uma vez que estes velhos habitos no se aninham somente nos outros, mas em mim também, por vezes ressoa livro adentro um ruido de luta, cuja intensidade também se deve ao fato de que tive que pér para correr as objegdes que fago a mim mesmo. Algumas passagens poderdo, assim, acabar soando estridentes, precipitadas ou exces- sivamente irdnicas, A usual ponderagio académica, contudo, nao bastaria para escapar ao campo de gravidade do pensamento corrente. Os argumentos aqui apresentados nao so necessariamente representa- tivos, como exigiriam as regras da pesquisa social empirica. Eles se pautam por uma outra pretensdo: a despeito de um passado ainda vigente, tornar vistvel 0 futuro que jd se anuncia no presente, Apoiando-se numa compara- Go histérica, pode-se dizer que foram escritos com a mesma perspectiva de um observador do cen4rio social no inicio do século XIX, que buscasse, por Prefécio WW trds das fachadas da era agricola feudal e decadente, os tracos que jé anun- ciavam uma era industrial ainda inédita. Em tempos de mudanga estrutural, a representatividade dos argumentos indicaria uma alianca com o passado e acabaria obstruindo o olhar voltado para um futuro que jd comega a despon- tar no horizonte do presente. Nesse’sentido, este liveo contém wim pouco de teoria social prospectiva, empiricamente orientada — mas sem todas as sal- vaguardas metodolégicas. Ele se apoia na avaliagdo de que somos testemunhas oculares — sujeitos ¢ objetos — de uma ruptura no interior da modernidade, a qual se destaca dos contornos da sociedade industrial classica e assume uma nova forma — a aqui denominada “sociedade (industrial) de risco”. Isso exige um diffcil equilibrio entre as contradicées de continuidade ¢ cesura na modernidade, que se refletem mais uma vez nas oposigées entre modernidade e sociedade industrial e entre sociedade industrial e sociedade de risco, O fato de que essas diferenciacées de época ainda hoje continuam ocorrendo na realidade é 0 que pretendo mostrar neste livro. Sobre como se deve diferencid-las detalhada- mente € algo que veremos a partir de propostas de desenvolvimento social. Antes que qualquer clareza a respeito disso possa ser obtida, & preciso que um pouco mais do futuro se torne visivel. A incerteza tedrica corresponde a incerteza pratica. Aqueles que se agar- ram ao esclarecimento, tal como éle se apresenta ema suas premissas do século XIX, com o intuito de contrapor-se ao assalto da “irracionalidade do espiri- to do tempo”, s4o peremptoriamente contrariados, da mesma forma como aqueles que querem deixar que todo 0 projeto da modernidade, bem como as anomalias que s¢ acumulam, escoe rio da hist6ria abaixo. Nada resta a acrescentar 20 panorama assustador, suficientemente di- fundido por todos os setores do mercado de opinides, de uma civilizagdo que ameaca a si mesma; menos ainda as manifestagdes de uma Nova Perplexi dade, que se extraviaram das dicotomias ordenadoras de um mundo do in- dustrialismo ainda “intacto” mesmo em suas contradi¢ées, O presente livro trata do segundo passo, daquele que se segue a isso. Ele eleva esse proprio estado de coisas a objeto de explicagiio. Sua questo é como é possivel ent- tender e compreender, em um pensamento sociologicamente informado e inspirado, esse atordoamento do espirito do tempo, o qual seria cinico ne- gar sob o pretexto de critica ideolégica e, ao mesmo tempo, perigoso aceitar sem reservas. A ideia-mestra te6rica, a ser elaborada com esse propésito, pode ser mais facilmente exposta em uma analogia histérica: assim como no sé- culo XIX a modernizacdo dissolveu a esclerosada sociedade agrdria esta- mental e, ao depurd-la, extrain a imagem estrutural da sociedade industrial, 12 Sociedade de cisco hoje a modernizagao dissolve os contornos da sociedade industrial e, na con- tinuidade da modernidade, surge uma outra configuragao social. Qs limites dessa analogia apontam simultaneamente para as peculiari- dades dessa perspectiva. No século XIX, a modemnizacio se consumou contra 0 pano de fundo de seu contrério: um mundo tradicional e uma narureza que cabia conhecer e controlar. Hoje, na virada do século XXI, a modernizagao consumiu e perdeu seu contrério, encontrando-se afinal a si mesma em meio a premissas e principios funcionais socioindustriais. A modernizacao no ho- rizonte empirico da pré-modernidade é suplantada pelas situagdes problem- ticas da modernizacio autorreferencial. Se no século XIX foram os privilé- gios estamentais e as imagens religiosas do mundo que passaram por um desencantamento, hoje é o entendimento cientifico e tecnol6gico da saciedade industrial cldssica que passa pelo mesmo proceso — as formas de vida e de trabalho na familia nuclear ¢ na profissio, os papéis-modelo de homens e mulheres etc. A modernizacao nos trilhos da sociedade industrial é substitui- da por uma modernizagio das premissas da sociedade industrial, que nao estava prevista em qualquer dos manuais te6ricos ou livros de receitas poli- ticas do século XIX. £ essa iminente oposigao entre modernidade ¢ socieda- de industrial (em todas as suas variantes) que atualmente nos confunde em nosso sistema de coordenadas, a-nés que estavamos até a medula acostuma- dos a conceber a modemidade nas categorias da sociedade industrial. Essa diferenciacdo entre modernizagao de tradicao e modernizag&o da sociedade industrial, ou dito de outra forma: entre modernizacao simples e reflexiva, ainda ha de nos ocupar longamente. Nas paginas seguintes, ela sera abordada por meio da consideragio de situagdes concretas, Apesar de ainda ser completamente imprevisivel quais “estrelas fixas” do pensamento so- cioindustrial sero extintas a0 longo dessa recém-iniciada racionalizagéo de segundo grau, ja se pode supor com algum fundamento que isso vale inclu- sive para “leis” aparentemente pétreas, como a da diferenciagao funcional ou a da produgao em massa baseada na estrutura fabril. Duas consequéncias destacam claramente o cardter insdlito dessa pers- pectiva. Ela assevera o que até ent&o parecia impensdvel: que a sociedade industrial, justamente em sua concretizagao, ou seja, nos passos leves da normalidade, se despede do palco da histéria, saindo pelos bastidores dos efeitos secundérios — ¢ nao do modo como até hoje havia sido previsto nos livros ilustrados da teoria social: com um estrondo politico (revolugio ou eleicdes democraticas). E ela vai mais longe ao afirmar que o cendrio “an- timodernista” que atualmente inquieta 0 mundo — critica da ciéncia, da tecnologia, do progresso, novos movimentos.sociais — nao contradiz a mo- Preficio ‘ B dernidade, mas representa a expressio de seu desenvolvimento ulterior, para além do projeto da sociedade industrial. © contetido geral da modernidade contrapée-se a suas incrustagées € redugdes no projeto da sociedade industrial. O acesso a essa visio é bloquea- do por um mito renitente, até hoje pouco conhecido, ao qual o pensamento social no século XIX se via fundamentalmente preso ¢ que ainda continua a langar suas sombras sobre o final do século XX: 0 mito de que a sociedade industrial desenvolvida, com sua articulagdo esquematica de trabalho e vida, seus setores produtivos, seu pensamento em categorias de crescimento eco- némico, sua compreensio cientifica ¢ tecnolégica e suas formas democr4ti+ cas, constitui uma sociedade t#teframente moderna, o apice da modernidade, para além do que nada de razoavel existe que possa sequer ser mencionado. Esse mito tem muitas manifestag&es, Entre suas modalidades mais eficazes, encontra-se o despropésite a cespeito do fine da histéria social. Em vatian- tes otimistas e pessimisras, ele fascina justamente o pensamento da época em que © perpetuado sistema de inovagdo comega a se renovar gracas a dindmi- ca liberada nele mesmo. E por isso que sequer podemos conceber a possibi lidade de uma transformagao da configurag&o social 1a modernidade, pois os te6ricos do capitalismo socioindustrial converteram essa configuracdo histérica da modernidade, que em aspectos fundamentais segue vinculada a seu oposto no século XIX, em algo aprioristico. Na pergunta, tributéria de Kant, pelas condigGes de possibilidade de sociedades modernas, os histori- camente contingentes contornos, linhas de conflito e princfpios funcionais do capitalismo industrial foram clevados a condigées necessdrias da moderni- dade. A excentricidade com que se assume até hoje na pesquisa em ciéncias sociais que na sociedade industrial tudo se transforma ~~ familia, profissao, fabrica, classe, trabalho assalariado, ciéncia — ¢ que ao mesmo tempo nada de essencial muda — familia, profissao, fabrica, classe, trabalho assalariado, ciéncia — é s6 mais uma evidéncia disso. Mais urgente do que nunca, precisamos de esquemas de interpretacao que nos facam —~ sem nos langar equivocamente a eterna e velha novidade, repleta de saudades ¢ bem relacionada com as discretas cdmaras do tesouro da tradigéio — repensat a novidade que nos atropela e que nos permita viver ¢ atuar com ela. Seguir as pistas de novos conceitos, que jé se mostram em meio aos cacos dos antigos, é empreendimento dificil. Para uns, soa a “mu- danga sistémica” ¢ cai na 4rea turva de competéncia dos servicos de inteli- géncia. Outros se encapsularam em convicgdes itrevogaveis e, diante de uma fidelidade aos principios secrérios sustentada mesmo contra o impulso mais intimo — e ela pode ter muitos nomes: marxismo, feminismo, pensamento 14 Sociedade de risco quantitativo, especializagao —, comecam agora a se bater contra tudo aqui- Jo que lembra o cheiro da dissidéncia extraviada. Apesar disso ou por isso mesmo: 0 mundo nao esta acabando, pelo menos nao porque o mundo do século XIX estd acabando. Apesar de que isso também seja um exagero. £ sabido que o mundo social do século XIX jamais foi muito estavel. Muitas vezes ele j4 ruiu -- em pensamento. Na verdade, ele jé foi enterrado antes mesmo de ter chegado a nascer. Vivenciamos atual- mente as visdes de Nietzsche ou os dramas conjugais e familiares da j4 “clas- sica” (o que quer dizer: velha) modernidade literdria, outrora encenados no palco, sendo na verdade- vividos {mais ou menos) representativamente na cozinha e no quarto de dormir. Ou seja, o que hé muito tempo foi previsto acontece, E, apesar de tudo, acontece com um atraso de — contando nos dedos — algo entre meio século ¢ um século inteiro. E hé tempos j4 vem acon- tecendo. E decerto vai continuar acontecendo por um bom tempo. E ainda nem sequer acontece. Além disso, vivenciamos também — para além da antecipagao literria —0 fato de que é preciso continuar vivendo depois disso. Vivenciamos, por assim dizer, o que acontece quando, numa pega de Ibsen, cai a cortina. Vi- venciamos a realidade nao cenografica da era pos-burguesa. Ou, em relaglio aos riscos civilizacionais: somos os herdeiros de uma critica da cultura tor- nada real, que justamente por isso jA nao se pode dar por satisfeita com 0 diagnéstico da critica da cultura, que em todo caso sempre foi pensado como uma adverténcia pessimista quanto ao futuro. Nao é possivel que uma era inteira escorreguie para um espaco situado além das categorias atuais, sem que esse além seja antes percebido e demarcado como aquilo que é uma preten- sio ordenadora do passado que se prolonga para além de si mesma e da qual tanto presente como futuro se desprenderam. Nos capitulos seguintes, em discussdes a respeito de tendéncias evo- Jutivas em campos centrais da praxis social, procurar-se-d retomar o fio do pensamento histérico-social e estendé-lo para além da conceptualidade da sociedade industrial (em todas as suas variantes). A ideia condutora de uma modernizagio reflexiva da sociedade industrial sera desdobrada a partir de dois lados. Inicialmente, ser4 abordada a interpenetragdo de continuidade e rupture no exemplo da produgao de riqueza e produgito de risco. A avalia~ cdo € a seguinte: enquanto na sociedade industrial a “légica” da producao de riqueza domina a “légica” da produgdo de riscos, na sociedade de isco essa relaco se inverte (Primeira Parte). Na reflexividade dos processos de modernizacao, as forcas produtivas perderam sua inocéncia. O actimulo de poder do “progresso” tecnoldégico-econdmico é cada vez mais ofuscado pela Prefacio 15 produgao de riscos. Estes somente se deixam legitimar como “efeitos co- laterais latentes” num estagio inicial. Com sua universalizagao, escrutinio piiblico e investigacdo (anticientifica), eles depdem o véu da laténcia e assu- mem um significado novo e decisive nos debates sociais ¢ politicos, Essa “I. gica” da producio e distribuigao de riscos serd desenvolvida em comparacao com a “légica” da distribuicao de riqueza (que até entdo definia o pensamen- to s6cio-te6rico). No centro da questo esto os riscos e efeitos da moderni~ zagio, que se precipitam sob a forma de ameagas a vida de plantas, animais e seres humanos. Eles jd nio podem — como os riscos fabris e profissionais no século XIX e na primeira metade do século XX — ser limitados geogra- ficamente ou em fungio de grupos especificos. Pelo contrério, contém uma tendéncia globalizante que tanto se estende 4 produgdo e reprodugao como atravessa fronteiras nacionais e, nesse sentido, com um novo tipo de dina mica social c politica (Capitulos 1 e 2), faz surgir ameagas globais suprana- cionais e iadependentes de classe. Essas “ameagas sociais” ¢ seu potencial cultural e politico sao, entretan- to, apenas um lado da sociedade de risco. O outro lado passa a ser visivel quando sao inseridas no centro da questao as cortradicées imanentes entre modernidade e contramodernidade presentes no plano geral da sociedade industrial (Segunda ¢ Terceira Partes): por um lado, a sociedade industrial é definida como sociedade de grandes grupos, no sentido de uma sociedade de classes ou camadas sociais, e isso ontem, hoje ¢ para todo 0 sempre. Por outro lado, as classes sociais permanecem dependentes da validade de culturas tradigées sociais de classe, que so justamente destradicionalizadas ao lon- go da moderniza¢ao do Estado de Bem-Estar Social no perfodo de desenvol- vimento da Alemanha Ocidental no pés-guerra (Capitulo 3). Por um lado, junto com a sociedade industrial, a convivéncia é nor- matizada e padronizada segundo o modelo da familia nuctear. Por outro Jado, a familia nuclear se apoia em alocacdes “estamentais” de posicées de género para homens ¢ mulheres, algo que se fragiliza justamente na continui- dade dos processos de modernizacao {integracao das mulheres na educagio eno mercado de trabalho, cifras crescentes de divércios etc.). Desse modo, Porém, a relagio entre produgio e reprodugdo comega a se mover, assim como tudo o mais que se encontra vinculado a “tradigao da familia nuclear” industrial: casamento, paternidade, sexualidade, amor etc. (Capitulo 4), Por um lado, a sociedade industrial é pensada segundo as categorias da sociedade do trabalho (assalariado). Por outro lado, as medidas de racio~ nalizagao adotadas hoje em dia tém em vista precisamente ‘os fandamentos do esquema ordenador associado a ela: flexibilizagdes da jornada ¢ do local 16 Sociedade de risco de trabalho diluem as fronteiras entre trabalho e cio, A microeletrénica permite reconectar setores, empresas e consumidores a despeito dos setores produtivos, Dessa forma, porém, as amais premissas juridicas e sociais do sistema empregaticio so “modernizadas até desaparecerem™: o desempre- go em massa é “integrado” ao sistema empregaticio sob formas novas de “subemprego plural” — com todos os riscos ¢ oportunidades implicados (Capitulo 6). Por umm lado, na sociedade industrial a ciéncia é institucionalizada e, com ela: também a diivida metodica. Por outro lado, essa diivida & (inicialmente) limitada & dimensio exterior, aos objetos investigados, enquanto os funda- mentos ¢ resultados do trabalho cientifico permanecem protegidos contra 0 ceticismo internamente fomentado. Essa divisdo da divida é tanto necessa- sia, em vista das metas de profissionalizagio, quanto instavel, em rariio da indivisibilidade da suspeita de falibilidade: em sua continuidade, o desenvol- vimento cient{fico-tecnolégico experimenta tanto interna como externamente uma ruptura. A diivida é estendida aos fundamentos e riscos do trabalho cien- tifico — com a seguinte consequéncia: o recurso a ciéneia é ao mesmo tempo universalizado e desmistificado (Capitulo 7). Por um lado, com a sociedade industrial a demanda ¢ as formas da de- mocracia parlamentar sio concretizadas. Por outro lado, o ambito de vali- dade desses ptincipios so reduzidos, O proceso de renovagio subpolitica do “progresso” mantém-se na esfera de competéncia da economia, da cién- cia e da tecnologia, em decorréncia do qual garantias democraticas tidas por evidentes acabam sendo suprimidas. Na continuidade dos processos de mo- dernizacao, isso se torna problemnético quando — em vista de forgas produ- tivas potencializadas e arriscadas — a subpolitica tiver subteaido 4 politica 0 papel dominante na configuragao social (Capitulo 8). Em outras palavras: no modelo da sociedade industrial, de formas di- veryas — como no esquema de “classes”, “familia nuclear”, “trabalho assa- lariado”, na compreensio de “ciéncia”, “progresso”, “democracia” —, ele- mentos constitutivos de uma tradicionalidade industrial imanente so incor- porados, seus fundamentos fragilizados e suspensos pela reflexividade das modernizacées. Por mais estranho que possa parecer: as itritagdes de época assim desencadeadas siio em todos os sentidos resultados do éxito das mo- dernizacdes, que atualmente j4 no ocorrem nos, ¢ sim contra os trilhos e categorias da sociedade industrial. Vivenciamos uma transformagao dos fun- damentos da transformagao. Para poder chegar a conceber isso é pressupos- to que a imagem da sociedade industrial seja revista. Segundo seu plano ge- ral, ela é uma sociedade semimoderna, cuja conjugada contramodernidade Prefacio va no € algo antigo ou tradicional, mas construto e produto socioindustriais. A imagem estrutural da sociedade industrial se apoia em uma contradigéo entre 0 contetido universal da modernidade ¢ a malha funcional de suas ins- tituigdes, nas quais cla pode ser implementada somente de modo partictelar- -seletiva, Isso quer dizer, porém: a sociedade industrial se instabiliza em sua propria concretizagiio. A continuidade se torna “causa” da ruptura. As pes- soas se libertam das formas de vida e pressupostos da era socioindustrial da modernidade — semelhante ao que ocorrera na era da Reforma, quando elas foram “dispensadas” dos bragos seculares da Igreja para abracar a socieda- de. As comog@es assim desencadeadas compdem 0 outro lado da sociedade de risco. O sistema de coordenadas ao qual a vida e o pensamento esto su- jeitos na modernidade industrial — os eixos da familia e do ermprego, a crenga na cifncia e no progresso — comega a cambslear, ¢ surge um novo creptia- culo de oportunidades e riscos — precisamente os contornos da sociedade de risco. Oportunidades? Nela, inclusive os principios da modernidade protes- tam contra sua reducio socioindusttial. De maneiras diversas, este livro reflete o proceso de descoberta e apren- dizado de seu autor. Ao fim de cada capitulo me vi mais sensato do que ao inicid-lo, Era grande a tentago de repensa-lo inteiramente ¢ reescrevé-lo a partir do final. Para tanto, faltava-me nao apenas tempo. Novamente teria chegado apenas a um novo estdgio intermediério. Isso evidencia ainda mais © cardter processual da argumentagao ¢ de maneira alguma deve ser enten- dido como cheque em branco para argumentos contrérios. Nisso encontra- rd 0 leitor a vantagem de poder ponderar cada capitulo também isoladamente ow em qualquer outra ordem ¢ demandar conscientemente o proprio en- volvimento, oposigio e continuidade. Praticamente todas as pessoas préximas a mim foram confrontadas em algum momento com extensas versdes preliminares deste texto e com a soli- citagao de comentarios. Vatias delas tiveram a duvidosa alegria de verem jorrar variagSes sempre novas. Tudo foi incorporado, Essa contribuigdo, em gtande parte de jovens pesquisadores no ambito de minhas relagdes de tra- balho, néio pode ser suficientemente estimada, nem no texto e nem aqui no prefécio, Ela se tornou paca mim uma experiéncia motivadora sem prece- dentes. Vérias partes deste livro sio literalmente plagios de conversas pes- soais e vida compartilhada, Sem ser exaustivo — eu agradeco: Elisabeth Beck- -Gernsheim, por nosso dia a dia nada rotineiro, pelas ideias vividas em co- mum e pela obstinada irreveréncia; Maria Rerrich, por muitos impulsos de Pensamento, conversas e complicados processamentos de material; Renate Schiitz, por sua curiosidade intelectual celestialmente contagiosa e por suas 18 Sociedade de risco inspiradoras visdes; Wolfgang Bon&, por conversas especulativas coroadas de éxito sobre praticamente todas as partes do texto; Peter Berger, pela tare~ fa deixada a mim de registrar por escrito sua prestativa contrariedade; Chris- toph Lan, por pensar comigo e me proteger de argumentagées obliquas; Her- mann Stumpf e Peter Sopp, por muitos conselhos ¢ pela habilidosa localiza- Gao de material bibliogrfico e bancos de dados; Angelika Schacht ¢ Gerlinde Millet, por sua confiabilidade e sev entusiasmo ao contribuir com a concep- do ea escrita do texto. Também pude contar com o notayel encorajamento de meus colegas Karl Martin Bolte, Heinz Hartmann e Leopold Rosenmayr. © que ainda res- tar de repeticdes e imagens inadequadas no texto, declaro serem sinal de imperfeicao deliberada. No ce equivoca quem acreditar perceber aqui ¢ ali entre as linhas o cintilar de um lago. Largas porcdes do texto foram escritas ao ar livre, so- bre uma colina As margens do lago Starnberger, com seu vivido envolvimento. Assim, varios comentarios feitos pela luz, pelo vento ou pelas nuvens foram imediatamente incorporados. Esse locat de trabalho pouco usual — favore- cido por um céu quase sempre radiante — foi possibilitado pelo cuidado hospitaleiro da sra. Ruhdorfer e de toda a sua familia, que fizeram com que mesmo os animais pastando ¢ as criangas brincando a minha volta se manti- vessem a devida distancia. A Fundagio Volkswagenwerk assegurou, por meio da concesso de uma Bolsa-Academia, os pressupostos para o écio sem o qual a aventura desta argumentacao jamais teria sido ousada. Os colegas de Bamberg Peter Gross e Laszlo Vaskovics concordaram em me favorecer com a protelagao de seus semestres sabdticos. A todos cles — sem qualquer atribuicio de culpa por meus erros e exageros — meus sinceros agradecimentos. Sejam especialmente contemplados também aqueles que nao perturbaram meu sossego e supor- taram meu siléncio. ~ Ulrich Beck BambergtMunique, abril de 1986 Prefécio 9 PRIMEIRA PARTE : No vulcao civilizatézio: : os contornos da sociedade de risco CaP{TULO I Sobre a légica da distribuigdo de riqueza e da distribuicao de riscos Na modernidade tardia, ‘onsequentemente, aos pro~ blemas e conflitos distributivos da sociedade da cscassez sobrepSem-se 08 problemas ¢ conflitos surgidos a partir da produgio, definigio e distribuigso de riscos cientifico-tecnologicamente produzidos. Essa passagem da légica da distribuicdo de riqueza na sociedade da es- cassez para a logica da distribuigdo de riscos na modernidade tardia esté li gada historicamente a (pelo menos) duas condicSes. Ela consuma-sef/@na PEED como se pode reconhecer atualmente —, quando ¢ na medi da em que, através do nivel alcancado pelas forcas produtivas humanas e tec- nolégicas, assim como pelas garantias e regtas juridicas e do Estado Social, Em segundo lugar, essa mudanca catege sve-se simultaneamente ao fato de.qe, a eboque das forgasprodutivasexponencalment crescetes no Pro- Na medida em que essas condic&es se impSem, ocorre que um tipo his- térico de pensamento e agdo é relativizado ou recoberto por um outro. O conceito de “sociedade industrial” ou “de classes” (na mais ampla vertente 1 Modernizagao significa o salto tecnolégico de racionalizacao ¢ a transformagio do trabalho e da organizagao, englobando para além disto muito mais: a mudanga dos caracteces sociais e das biografias padrao, dos estilos formas de vida, das estruturas de poder ¢ con- trole, das formas politicas de opressao e participagao, das concepgbes de realidade e das nor- mas cognitivas, O arado, a locomaciva a vapor e 0 inicrochip sfo, na concepgaa sociocienti- fica da modernizagio, indicadores visiveis de um processa de alcance muito mais profundo, que abrange ¢ reconfigura toda a trama social, no qual se alteram, em tiltima instincia, as fontes da certeza das quais se nutre a vida (Koselleck, 1977; Lepsius, 1977; Eisenstadt, 1979}. Normalmente, distingue-se entre modernizagao ¢ industcializagio. Aqui, por razdes de sim- plificagdo da linguagem, ucilizaremos preponderantemente “modernizasiio” como om con- ceito generalizante. Sobre a logica da distribuigéo de siqueza 2B de Marx e Weber) gira em torno da questo de como a riqueza socialmente produzida pode ser distribufda de forma socialmente desigual e ao mesmo tempo “legitima”. Isto coincide cor Georanto inteiramente distinto, Como € possivel que as ameacas €riscos sis- tematicamente coproduzidos no proceso tardio de modernizagio sejam evi- tados, minimizados, dramatizados, canalizados e, quando vindos & Juz sob a forma de “efeitos colaterais latentes”, isolados e cedistribufdos de modo tal que nao comprometam 0 processo de modernizacao e nem as fronteiras do que é (ecolégica, medicinal, psicolégica ou socialmente) “aceitavel”? ‘Nao se trata mais, portanto, ou no se trata mais exclusivamente de uma utilizagdo econémica da natureza para libertar as pessoas de sujcigoes tradi- cionais, mas também e sobretudo de(problemas|decontentes |d6)propaiayde>) naa processo de modernizagao torna-se *reflexivo”, convertendo-se a si mesmo em tema ¢ problema. As questées do desenvolvimento e do emprego de tecnologias (no 4mbito da natureza, da sociedade e da personalidade) sobrepdem-se questées do “manejo” politico ¢ cientifico — administragao, descoberta, integragao, prevengdo, acober- tamento — dos riscos de tecnologias efetiva ou potencialmente empregaveis, tendo em vista horizontes de relevancia a serem especificamente definidos. A promessa de seguranga avanga com os riscos e precisa ser, diante de uma esfera publica alerta ¢ critica, continuamente reforgada por meio de interven- gdes cosméticas ou efetivas no desenvolvimento técnico-econémico. Ambos os “paradigmas” de desigualdade social esto sistematicamente relacionados a fases especificas do proceso de modernizagio. A distribuigdo 0s conflitos distributivos em torno da riqueza socialmente produzida ocupa- ro o primeiro plano enquanto em paises ¢ sociedades (atualmente, em gran- de parte do assim chamado Terceiro Mundo} 0 pensamento ea agao das pes- soas forem dominados pela evidéncia da caréncia material, pela “ditadura da eacassez.”. Em tais circunstancias, na sociedade da escassez, 0 processo de mo- dernizagZo encontra-se e consuma-se sob a pretensdo de abrir com as chaves do desenvolvimento cientifico-tecnolégico os portdes que levam as recéndi- tas fontes da riqueza social. Essas promessas de libertagio da pobreza e da sujeicio imerecidas esto na base da aco, do pensamento e da investigacao com as categorias da desigualdade social, abarcando, na verdade, desde a sociedade de classes, passando pela sociedade estratificada, até a sociedade individualizada, ‘Nos Fstados de Bem-Estar altamente desenvolvidos do Ocidente, ocorre um processo duplo: de um lado, a uta pelo “pio de cada dia” — em com- 24 No vulcio civilizatério paragiio com a subsisténcia material até a primeira metade do século XX e com 0 Terceiro Mundo, ameacado pela fome — deixa de ter a urgéncia de um problema bésico que lanca sombra sobre tudo o mais, Em lugar da foe, surgem, para muitas pessoas, os “problemas” do “excesso de peso” (sobre © problema da “nova pobreza”, ver pp. 133 ss.}. Deste modo, porém, 0 pro- cesso de modernizagao é privado de seu fundamento de legitimidade até en- tio vigente: o combate 4 miséria gritante, em xazdo do qual se dispunha a arcar com certos efeitos colaterais (j4 nao inteiramente) imprevistos. Paralelamente, dissemina-se a consciéncia de que as fontes de riqueza esto “contaminadas” por “ameagas colaterais”. Isto, de forma alguma, é algo novo, mas passou despercebido por muito tempo em meio aos esforgos para superar a miséria, Essa pagina negra, além do mais, ganha em impor- tincia com o superdesenvolvimenta das Forgas vn em tal medida que a imaginagaéo humana fica desconcertada diante delas. Ambas as fontes alimentam uma crescente critica da moderniza- go, que, ruidosa e conflitivamente, define os rumos das discussdes pablicas. Argumentando sistematicamente, cede ou tarde na histéria social come- gam a convergir na continuidade dos processos de modernizacao as situagGes ¢ 0s conflitos sociais de uma sociedade “que distribui riqueza” com os de uma sociedade “que distribui riscos”. Na Republica Federal, encontramo-nos — esta é minha tese —, pelo menos desde os anos setenta, no inicio dessa transi- Go. Quer dizer: sobrepdem-se aqui ambos os tipos de temas e conflitos. Ain- da n@o vivemos numa sociedade de risco, mas tampouco somente em meio a conflitos distributivos das sociedades da escassez. Na medida em que essa transigéio se consuma, chega-se entdo, com efeito, a uma transformagao social que se distancia das categorias e trajetérias habituais de pensamento € aco. Oconceito de risco tem realmente a importancia socio-histérica que Ihe é aqui assinalada? Nao se trata de um fendmeno origindrio de qualquer agao humana? N&o serSo os riscos justamente uma matca da era industrial, em relacdo & qual deveriam ser nesse caso isolados? £ certo que os riscos nao sio uma invengéio moderna. Quem — como Colombo — sain em busca de no- vas terras ¢ continentes por descobrir assumiu riscos. Estes eram, porém, ris- cos pessoais, e nao situagbes de ameaga global, como as que surgem para toda a humanidade com a fissdo nuclear ou com o actimulo de lixo nuclear. A palavra “risco” tinha, no contexto daquela época, um tom de ousadia e aven- tura, e no o da possivel autodestruigdo da vida na Terra. Também as florestas sito desmatadas ha muitos séculos — inicialmente através de sua conversio em pastos e em seguida através da exploragao in- Sobre a légica da distribuigao de riqueza 25 consequente da madeira. Mas o desmatamento contemporaneo aconteceglouD (GaEMBS— © na verdade como consequéncia implicita da industrializacao — com consequéncias sociais e politicas inteiramente diversas. Sao afetados, por exemplo, também ¢ especialmente paises com ampla cobertura florestal {como Noruega ¢ Suécia), que sequer dispdem de muitas indiistrias poluentes, mas que tém de pagar pelas emissées de poluentes de outros paises altamente industrializados com a extingdo de florestas, plantas e animais. deveria ser o equivalente de ter o nariz acoitado. “Os excrementos acumu- lam-se por toda a parte, nas ras, a0 pé das cancelas, nas carruagens [...| As fachadas dds casas parisienses sio carcomidas pela urina [...] A constipagao socialmente organizada ameaca envolver Paris inteira num proceso de as- quetosa dissolugio” (A. Corbin, Berlim, 1984, pp. 41 ss.). E de se notar, porém, que as ameagas de entdo, a diferenga das atuais, agastavam somente © nariz on os olhos, sendo portanto sensorialmente perceptiveis, enquanto 08 riscos civilizatérios atuais tipicamente escapam A percepsio, fincando pé sobretudo na esfera das formulas fisico-quimicas (por exemplo, toxinas nos alimentos ou a ameaca nuclear}. Uma outra diferenca est relacionada a esse caso. Naquela época, elas podiam ser atribufdas a uma subprovisio de tec- nologia higignica. Hoje, elas tém sua causa numa superproducio industrial. Os riscos e ameacas atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com frequéncia semelhantes por fora, fundamentalmente por con- a: seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas{€ausas) S40 riscos da modernizagao. S40 um produto de série do ma- quindrio industrial do progresso, sendo sistentaticamente agravados com seu desenvolvimento ulterior. Os riscos do desenvolvimento industrial sio certamente to antigos quanto ele mesmo. A pauperizacao de grande parte a prenden a respiragao do século XIX. 4 so ha muito tema de processos de racionalizacio e de conilitos sociais, salvaguardas (e pesquisas) a cles relacionados. Mesmo as- sim, aos riscos que em seguida serao abordados em detalhe e que hé alguns anos inquietam o péblico corresponde uma nova caracteristica. No que diz respeito & comogiio que produzem, eles jé nao estao vinculados ao lugar em que foram gecados — a fdbrca. BBaéokdo Coma Seu Fey IES AMEE (Giaaine Planetay Sob ouias|as|suas formas jComparados com isto, os riscos profissionais da industrializagio primaria pertencem a uma outra era, Os 26 No vulcio civilizatério perigos das forgas produtivas quimicas ¢ atémicas altamente desenvolvidas suspendem os fundamentos ¢ categorias nos quais nos apoidvamos até en- to para pensar e agit — espago e tempo, trabalho e dcio, empresa ¢ Estado Nacional, até mesmo as fronteiras entre blocos militares e continentes. A arquiterura social e a dindmica politica de tais potenciais de autoamea- ga civitizatéria sao o mais importante aqui. A argumentacao pode ser ante- cipada em cinco teses: da maneira como so produzidos no estagio mais avangado do desenvolvimento das forcas produtivas — refiro-me, em primeira linha, A radioatividade, que escapa completamente & percep¢ao humana imediata, mas também 4s toxinas e polucntes presentes no ar, na gua e nos alimentos ¢.a08 efeitos de curto e fongo prazo deles decorrentes sobre plantas, animais e seres humanos —, diferenciam-se claramente das riqnezas. Fles desenca- deiam danos sistematicamente definidos, por'vezes irreversiveis, permanecem no mais das vezes fundamentalmente ivisiveis, baseiam-se em interpretagGes causais, apresentam-se portanto tio somente no conbecimento (cientifico ou anticientifico) que se tenha deles, podem ser alterados, diminuidos ou aumen- tados, dramatizados ou minimizados no 4mbito do conhecimento e estéo, assim, em certa medida, abertos a processos sociais de definigdo. Dessa for- = a (2) Com a distribuigao ¢ o incremento dos riscos, surgem situagées so- (GANae GARE!) Estas acompanham, na verdade, em algumas dimensdes, a desigualdade de posigdes de estrato ¢ classe sociais, fazendo valer entretan- to uma légica distributiva substancialmente dlistinta:(@3)riscos| da mioderiii>) (Gra ideclasses) Tampouco 08 ricos e poderosos esto seguros diante deles. Isto ndo apenas sob a forma de ameagas a satide, mas também como ameagas & legitimidade, & propriedade e ao lucro: com o reconhecimento social de riscos da modernizacio estio associadas desvalorizacdes ¢ desapropriagées ecold- gicas; que incidem méltipla e sistematicamente a contrapelo dos interesses de lucro e propriedade que impulsionam o processo de industrializagao. Ao mesmo tempo, 08 riscos produzem roves desniveis internacionais, de um lado entre o Terceiro Mundo e os paises industriais, de outro lado entre os pré- prios paises industriais. Eles esquivam-se @ estrutura de competéncias do Estado Nacional. Dian Gnivenlidade da upiancionalidad€™dO™> Sobre a logica da distribuigdo de riqueza 27 (3) Ainda assim, a expansdo ¢ a mercantilizag3o dos riscos de modo al- gum rompem com a légica capitalista de desenvolvimento, antes elevando-a a um novo estégioMRiseos da modemizagao sao big busingss))Eles sao as necessidades insaciaveis que os cconomistas sempre procuraram. A fome pode ser saciada, necessidades podem ser satisfeitas, mas @B)EseOs|evilie zatérios sao um barril de necessidades sem fundo, intermindvel, infinito, autoprodurivel. Com os riscos — poderiamos dizer com Luhmann —, a eco- nomia torna-se “autorreferencial”, independente do ambiente da satisfacao das necessidades humanas. Isto significa, porém: (Goma canibalizagao eco" ndmica dos riscos que sio desencadeados através dela, a sociedade industrial produz as situaces de ameaca e o potencial politico da sociedade de risco. (4) Riquezas podem ser possuidas; em rela¢ao aos riscos, porém, somos afetados; ao mesmo tempo, eles aio atribuidos em termos civilizarérios. Di- to de forma hiperbdlica ¢ esquemética: em situacées relativas a classe ou ca- mada social, a consciéncia é determinada pela exist€ncia, enquanto, nas si- tuagdes de ameaga, é a consciéncia que determina a existéncia. O conheci- mento adquire uma nova relevancia politica. Consequentemente, o potencial politico da sociedade de risco tem de se desdobrar e ser analisado numalso- ciologia e numa teoria do surgimento ¢ da disseminagao do conhecimento sobre os riscos. (5) Riscos socialmente reconhecidos, da maneira como emexgem clara- mente, pela primeira vez, no exemplo das discussdes em torno do desma- tamento, contém um peculiar ingrediente politico explosivo:@quild/quelate ha pouco era tido por apolitico torna-se politico — 0 combate as “causas” Ho proprio processo dé industrializacaoy Subitamente, a esfera pablica ¢ a politica passam a reger na intimidade do gerenciamento empresarial — no planejamento de produtos, na equipagem técnica etc. Torna-se exemplarmen- te claro, nesse caso, do que realmente se trata a disputa definit6ria em torno dos riscos: nao apenas dos problemas de satide resultantes para a natureza e © ser humano, mas dos éfeitos colaterais sociais, econdmicos ¢ politicos des- ses efeitos colaterais: perdas de mercado, depreciac&o do capital, controles burocréticos das decisées empresariais, abertura de novos mercados, custos astronémicos, procedimentos judiciais, perda de prestigio. Emerge assim na sociedade de risco, em pequenos e em grandes saltos — em alarmes de niveis intoleraveis de poluigdo, em casos de acidentes téxicos etc. —, 6 porencial politico das\caidetvofesySua prevencio e seu manejo podem acabar envol- vendo uma feorganizacao do poder e da responsabilidade. A socicdade de risco 6 uma sociedade catastréfica. Nela, o estado de excegio ameaga con- verter-se em normalidade. 28 No vulcao civilizatorio 1, DIsTRIBUIGAO DE POLUENTES DE ACORDO COM AS CIENCIAS NATURAIS E SITUAGOES SOCIAIS DE AMEACA A discussZo em torno do teor de poluentes e toxinas no ar, na 4gua e nos alimentos, assim come em torno da destruicdo da natureza e do meio ambien- lo permanece in- Em decorréncia, persiste o perigo de que uma discuss4o ambiental conduzida de acordo com catego- rias quimico-biolégico-técnicas acabe sendo involuntariamente levada em consideragao pelas pessoas unicamente como um mero dispositivo orgdnico. Desse mado, parém, ela é ameacada pela sobreposicao do equivoco oposto ao equfvoco pelo qual ela, com razao, repreentdia o renitente otimismo com © progresso industrial: atrofiar-se numa discussiio da natureza sem ser huma- no, sem questionar seu sentido social ¢ cultural. Foram justamente as discus- sdes da ultima década, nas quais todo o arsenal de argumentos criticos em relacdo A tecnologia e a industria se viu novamente expandido ¢ representa- do, que permaneceram essencialmente tecnocrdticas e naturalistas. Elas es- gotam-se na comutaco e invocacio de substncias t6xicas no ar, na 4gua € nos alimentos, coeficientes de crescimento demogrdfico, consumo de energia, caréncias alimentares, insuficiéncia de matérias-primas etc., com um tal ar- dor e incontrastabilidade, como se jamais tivesse havido alguém — um cer- to Max Weber, por exemplo — que houvesse perdido seu tempo demonstran- do que, sem a integragiio das estruturas sociais de poder e de distribuigao, das burocracias, das normas ¢ racionalidades vigentes, isto tudo seria vazio ou absurdo, ou provavelmente ambas as coisas, Furtivamente, insinuou-se uma concepgio segundo a qual a modernidade é reduzida 20 arcabougo da tecno- Jogia e da natureza no sentido de perpetrador e vitima. Assim abordada, es- capam a essa ideia (também tipica do movimento ambientalista) os conteti- dos ¢ consequéncias sociais, politicos e culturais dos riscos da modernizacdo. Tlustremos com um exemplo. © conselho de especialistas para questBes ambientais afirma em seu laudo que “no leite materno sfo frequentemente en- contrados beta-hexaclorociclohexano, hexaclorobenzeno ¢ DDT em concen- tragdes considerdveis” (Rat der Sachverstindigen fiir Umweltfragen, 1985, p. 33). Bssas toxinas estfio presentes em pesticidas que, nesse interim, j4 fo- ram retirados de circulacdo. Sua origem seria inexplicdvel (ibid.). Em outea passagem, afirma-se: “a exposigio da populagdo ao chumbo é, na média, inofensiva” (p, 35). O que se esconde por tras disto? Talvez — por analogia Sobre a légica da distribuigao de riqueza 29 —a seguinte distribuico: dois homens tém duas.magds. Um come ambas. Logo, na média, cada um comeu uma. Adaptada a distribuigéo de alimen- tos em escala mundial, essa afirmacao significatia: “na média”, todos os se- res humanos na Terra esto bem alimentados. O cinismo é evidente nesse caso, Numa parte do planeta, as pessoas morrem de fome, na outra, os efei- tos decorrentes da sobrenutrigdo acabaram por se transformar num dnus de primeira ordem, Pode ser que em relagao a poluentes e toxinas essa afirma- $40 nao seja cinica. Que, portanto, a exposicaio média também seja a expo- sigdo real de todos os grupos populacionais. Porém, temos certeza? Nao ser necessatio, ao menos para que essa afirmacao seja defensdvel, saber quantas toxinas mais as pessoas serio obrigadas a inalar e ingerir? Surpreendente a naturalidade com que se demanda pela “média”. Quem demanda a média jd est desse modo excluindo as situagées socialmente designais de ameaca Mas é justamente disto que nao se tem certeza? Existem talvez condigdes de vida e grupos para os quais um teor de chumbo-e-todo-o-resto “na média inofensivo” represente um risco de vida? A frase seguinte do laudo afirma: “somente nos arredores de emissores industriais sio encontradas por vezes concentragées criticas de chumbo entre as criancas”. Neste, assim como em outros laudos de impactos ambientais e de contaminago, o que se destaca nfo apenas a auséncia de todo tipo de diferenciacSo social. Destaca-se também 0 modo como se diferencia: numa perspectiva regional em relacdo A origem das emissdes e de acordo com di- ferencas etdrias — ambos critérios que se assentam numa concepgio biold- gica (ou mais amplamente: das cjéncias naturais). Isto nao é de responsabili- dade exclusiva das equipes de inspegdo. Corresponde unicamente ao pensa- mento cientifico ¢ social geral em relacio aos problemas ambientais. Estes so amplamente considerados como uma questiio de natureza e tecnologia, economia ¢ medicina. O que surpreende nesse caso é o seguinte: o impacto ambiental da industria e a destinigdo da natureza, que, com seus diversos efeitos sobre a satide e a convivéncia das pessoas, surgem originalmente nas sociedades altamente desenvolvidas, sio marcados por um déficit do pensa- mento social. Soma-se a esse déficit o grotesco: ninguém se da conta dessa auséncia — sequer os préprios sociélogos. Questiona-se e examina-se a distribuigdo de poluentes, toxinas, impacto sobre a Agua, o ar, o solo, os alimentos etc. Os resultados, regionalmente diferenciados, sao expostos ao ptiblico apavorado em “mapas ambientais” coloridos. Enquanto a situacdo do meio ambiente tiver de ser apresentada assim, essa forma de representacio e de consideracio sera evidentemente adequada. Enquanto forem extraidas dai consequéncias para as pessoas, a 30 No vuledo civitizatério concepgio de fundo entrard em curto-circuito: ou bem se presume abran- gentemente que todas as pessoas — independente de renda, educacao, pro- fissio e dos respectivos habitos e possibilidades de alimentagao, habitacio e lazer — so igualmente expostas nos centros regionais de contaminagdo ave- riguados; on entio, em diltima instdncia, deixam-se inteiramente de lado as pessoas € 0 alcance de sua preocupacao, tratando-se entio unicamente das substancias t6xicas, de seus efeitos e de sua distribuigao regional. Como consequéncia, a discussao sobre substancias téxicas, conduzida com categorias das ciéncias naturais, move-se entre a falacia de preocupages biolégicas e sociais ou uma consideracdo da natureza ¢ do meio ambiente que deixa de lado a preocupacao seletiva das pessoas, assim como os significa- dos sociais e culturais que elas Ihe imputam, Ao mesmo tempo, continua-se a desconsiderar o fato de que as ntesnzas substancias toxicas podem ter um significado inteiramente distinto para pessoas distintas, conforme a idade, © sexo, os habitos alimentares, 0 tipo de trabalho, os niveis de informagao ¢ educacio ete. Um problema especialmente grave é que investigag6es voltadas unica- mente a substancias téxicas isoladas jamais podem dar conta das concentra- Ges toxicas no ser bumano, Aquilo que pode parecer “inofensivo” num pro- duto isolado talvez seja consideravelmente grave no “reservatério do consu- midor final”, algo em que o set humano acabou por se converter no estgio avangado da mercantilizacao total. Trata-se, nesse caso, de uma falacia ca- tegorial: uma andlise de toxicidade que tome por base a natureza de forma geral ou produtos isolados ndo tem condicdes de responder A questio da inocuidade, de todo modo nao enquanto “gravidade” ou “inocuidade” ti- verem algo a ver com as pessoas que ingerem ou aspiram a substincia (ver com mais detalhe pp. 77 ss,}. £ sabido que a ingestao de varios medicamentos pode anular ou reforgar o efeito de cada um deles. Mas é sabido que (ainda} nem sé de varios medicamentos vive o ser humano. Ele também inspira as substdncias téxicas do at, bebe as da agua, come as dos alimentos etc. Em outras palayras: as inocuidades acumuilam-se consideravelmente. Tornam-se elas dese mado — como é 0 caso comum das adicdes de acordo com as re- gras da matematica — sempre mais inécuas? 2. DA DEPENDENCIA COGNITIVA DOS RISGOS DA MODERNIZACAO. Riscos, assim como riquezas, sio objeto de distribuigao, constituindo igualmente posig6es — posigdes de atneaca ou posigées de classe. Trata-se, Sobre a ldgica da distribuigdo de ciqueza 3t entretanto, tanto num como noutro caso, de um bem completamente distinto e de uma outra controvérsia em torno de sua distribuigéo. No caso das ti- quezas sociais, trata-se de bens de consumo, renda, oportunidades educacio- nais, propriedade etc., como hens escassos cobigados. Em contraste, as amea- gas sio um subproduto modernizacional de uma abundancia a ser evitada. Cabe ou erradicd-la ou entéo negé-la, reinterpretando-a. A ldgica positiva da apropriago é assim confrontada por uma ldgica negativa do afastamento pela distribuigio, rejeicdo, negacao e reinterpretacao. Enquanto renda, educago etc. forem para o individuo bens consumi- veis, tangiveis, a existéncia e a distribuicgdo de ameacas c riscos sera tedia- das de modo invaviavelmente argumentativo. Aquilo que prejudica a saiide ¢ destréi a natureza é frequentemente indiscernivel 4 sensibilidade e aos olhos de cada um e, mesmo quando parega evidente a olhos nus, exigiré, segundo a configuracio social, o juizo comprovade de um especialista para sua as- sercéo “objetiva”. Muitos dos novos riscos (contaminagées nucleares ou quimicas, substancias toxicas nos alimentos, enfermidades civilizacionais) escapam inteiramente & capacidade perceptiva humana imediata. Cada vez mais esto no centro das atengdes ameagas que com frequéncia ndo sfo nem visiveis nem perceptiveis para os afetados, ameacas que, possivelmente, se- quer produzirdo efeitos durante a vida dos afetados, e sim na vida de seus descendentes, em todo caso ameacas que exigem os “érgdos sensoriais” da ciéncia — teorias, experimentos, instrumentos de medic¢ao — para que pos- sam chegar a ser “visiveis” ¢ interpretdveis como ameagas. O paradigma dessas ameacas s&o os efeitos mutagénicos da radioatividade, que, impercep- tiveis para os afetados, acabam — como mostra o caso do acidente do reator de Harrisburg — por submeté-los inteiramente, sob enormes sobrecargas nervosas, ao juizo, aos equivocos ¢ as controvérsias dos especialistas. Agregando o dissociado: suposigbes de causalidade Essa dependéncia cognitiva ¢ invisibilidade das situagSes de ameaca civilizacional nao bastam, contudo, para sua definigo conceitual; elas j& contém em si novos componentes. Declaragées a respeito de ameacas jamais so redutiveis a meras declaragdes de fato. Constitutivamente, elas englobam tanto um componente tedrico quanto um normative. A constatagao de “con- sider4veis concentragdes de chumbo nas criangas” ou de “agentes pesticidas no leite materno” nao chega a ser, como tal, uma situagao de ameaca ci- vilizacional, ndo mais que a concentragdo de nitrato nos rios ou o teor de diéxido de enxofre no ar. £ preciso que s¢ adicione uma explicagio causal 32 No vulcio civilizatério b que faca com que isto seja visto como produto do modo de produgao indus- trial, como efeito colateral sistemético de processos de modernizacao. Nos riscos socialmente reconhecidos, portanto, sic previstos os atores e as ins- tncias do processo de modernizacdo, com todos os scus interesses parciais e dependéncias, ¢ colocados numa relagio direta, concatenada segundo o modelo de causa ¢ efeito, com ameagas ¢ fendmenos nocivos inteiramente allieios no que diz respeito a dimensio social, de contetido, espacial ou tem- poral. A mulher que, em seu apartamento de trés cémodos num subiubio de ‘Neuperlach, amamenta seu pequeno Martin de trés meses de idade encon- tra-se desse modo numa “relacdo imediata” com a industria quimica, que fabrica pesticidas, com os agricultores, que se veem obrigados, em razdo das diretrizes agricolas da Comunidade Europeia, a recorrer & produgdo massiva especializada @ A sobrefertilizacio, ¢ por af afora. Até onde se podem ou de- vern buscar efeitos colaterais é algo que continua em grande medida incer- to. Até mesmo na carne de pinguins antérticos foi encontrada recentemente uma superdose de DDT. Esses exemplos mosteam duas coisas: primeiro, que riscos da moderni- zagdo emergem ao mesmo tempo vinculados espacialmente e desvincula- damente com um alcance universal; e segundo, quio incalculdveis ¢ impre- vistveis sio os inttincados caminhos de seus efeitos nocivos. Nos riscos da modernizag4o, portanto, algo que se encontra conteudistico-objetiva, espa- cial e temporalmente apartado acaba sendo causalmente congregado e, desse modo, além do mais, colocado simultaneamente numa relacio de responsa- bilidade social ¢ juridica. Suposigdes causais, no entanto, por definigao es- capam — como desde Hume jé sabemos — A percepsio. Elas so teoria. Sempre tém de ser conceitualmente adicionadas, presumidas como verdadei- tas, acreditadas. Também nesse sentido os riscos sao invisiveis. A causalidade suposta segue sendo algo mais ou menos incerto ¢ provisério, Trata-se, nes- se sentido, também no que diz respeito A consciéncia cotidiana dé risco, de uma consciéncia tedrica e portanto cientificizada. Etica implicita Tampouco é suficiente essa concatenacao causal daquilo que esté insti- tucionalmente apartado. Riscos vivides pressupdem um horizonte normativo de certeza perdida, confianca violada. Desse modo, os riscos, mesmo quan- do irrompem calados, encobertos por cifras e formulas, continuam a estar em principio vinculados espacialmente, como a condensacao mateméatica de vis6es danificadas da vida digna de ser vivida, Por sua vez, estes precisam ser Sobre a légica da distrlbuigo de riqueza 33 acreditados, isto é, nao sao tangiveis por conta prdpria. Riscos sao, nesse sentido, imagens negativas objetivamente empregadas de utopias nas quais o elemento humano, ou aquilo que dele restou, é conservade ¢ revivido no processo de modernizagao. Apesar de toda a desfiguraco, nao se pode afi- nal evitar que esse horizonte normativo, no qual o que hé de arriscado no tisco comega a se fazer visivel, seja tematizado e experimentado. Por tras de todas as reificacées, cedo ou tarde emerge a questiio da aceitaciio e, com ela, a velha nova questo: como queremos viver? O que hd de humano no ser humano, de namral na natureza, que € preciso proteger? Nesse sentido, 0 propalado discurso da “catdstrofe” é a expressfio exagerada, radicalizada, objetivante de que tal proceso nao é desejado. Essas velhas-novas questées — o que é 0 set humano? como seguir adian- te com a natureza? — podem ser jogadas para ld e para cd entre o cotidiano, a politica ea ciéncia, No estdgio mais avancado do processo civilizatério, clas yoltam a gozar de prioridade na ordem do dia — também ou justamente nos momentos em que se revistam com a camuflagem das férmulas matematicas ¢ das controvérsias metodolégicas. Constatacées de risco sAo a forma sob a qual ressurgem — os centros da modernizagéo — na economia, nas ciéncias naturais, nas disciplinas técnicas a ética ¢, com ela, também a filosofia, a cultura ¢ a politica. Consratagées de risco sfio uma ainda desconhecida ¢ subdesenvolvida simbiose de ciéncias naturais e humanas, de racionalidade cotidiana e especializada, de interesse e fato. Ao mesmo tempo, no sao nem apenas uma e nem apenas a outra coisa. Sdo ambas e sob uma nova forma. JA ndo se podem mais especializar, isolar uma da outra, desenvolvendo e fi- xando seus préprios padrdes de racionalidade. Pressupdem uma colabora- cdo para além das trincheiras de disciplinas, grupos comunais, empresas, administeagdo e politica, ou entio — o que é mais provavel — acabam por explodir em meio a esses polos em definigdes contrapostas ¢ lutas emt torno das definigdes. Racionalidade ciemtifica e social Reside aqui a consequéncia fundamental e decisiva: nas definigdes de tisco, quebra-se 0 monopélio de racionalidade das ciéncias, Existem sempre pretensdes, interesses ¢ pontos de vista concorrentes € conflitivos dos distin- tos atores da modernizagao e grupos de afetados, que acabam sendo forgo- samente agregados nas definigdes de risco, no sentido de causa ¢ efeito, au- tores e prejudicados. Muitos cientistas certamente pdem mos a obra com todo o impeto e a paixdo de sua racionalidade objetiva, seus esforcos ob- 34 No vulcao civitizatério jetivantes aumentam como que proporcionalmente ao teor politico de suas definigécs. Mas, na esséncia de seu trabalho, eles continuam a depender de expectativas e valoragées sociais que, como tais, Ihes so prescritas: onde ¢ como devem ser tracadas as fronteiras entre as sobrecargas que ainda ¢ jd nao mais seréo acumuladas? Qual a margem de negociag&o no que diz, respeito aos pardmetros que para tanto se pressupdem? Deve ser levada em conta, por exemplo, a possibilidade de uma catdstrofe ecolégica para contemplar inte- resses econdmicos? O que sdo necessidades, o que siio supostas necessidades @.0 que so necessidades a serem modifleadas? A pretensao de racionalidade das ciéncias de determinar objetivamente 0 teor de risco do risco refuta-se a si mesma permanentemente: cla baseia-se, por um lado, num castelo de cartas de conjecturas especulativas e move-se unicamente no quadra de assergées de probabilidade, cujos prognésticos de seguranga nao podem, a bem da verdade, ser-refutados sequer por acidentes reais. Por outro lado, é preciso ter assumide um ponto de vista axiolégico para chegar a poder falar de riscos com algnma propriedade. Constatacdes de risco baseiam-se em possibilidades matematicas ¢ interesses sociais, mesmo e justamente quando se revestem de certeza técnica, Ao ocuparem-se com ri cos civilizacionais, as ciéncias sempre acabaram por abandonar sua base de légica experimental, contraindo um casamento polfgamo com a economia, a politica e a ética — ou mais precisamente: elas convivem numa espécie de “concubinato nao declarado”. Essa heteronomia oculta na pesquisa sobre o risco acaba por revelar-se como um problema justamente por conta da continua pretensdo dos cientis- tas ao monopélio da racionalidade. Os estudos de segutanga de reatores li- mitam-se a estimativa de determinados riscos quantificdveis em razdo de acidentes provdveis. A dimensionalidade do risco ¢, portanto, de saida redu- zida 4 manuseabilidade técnica, Para amplos setores da populagdo e para os opositores da energia nuclear é, ao contrario, precisamente 0 potencial catas- tréfico da energia nuclear que est4 no centro da questéo. Mesmo uma pro- babilidade de acidentes tao reduzida é alta demais quando wr acidente sig- nifica exterminio. Com algum recuo, especificidades do risco desempenham nas discussdes ptiblicas um papel que sequer é abordado nos estudos sobre o risco, como por exempio a proliferagao de armas nucleares, a contradicio entre humanidade (equivoco, fracasso} e seguranga, longo prazo ¢ irrever- sibilidade das decisdes tomadas envolvendo grandes tecnologias ¢ que colo- cam em jogo a vida das futuras geragdes. Em outras palavras, tornam-se evi- dentes nas discussdes de risco as fissuras c trincheiras entre racionalidade cientifica e social ao lidar com os potenciais de ameaga civilizacional. Todos Sobre a I6gica da distribuigio de riqueza 35 ignoram-se mutuamente. De um lado, so colocadas questées que sequer chegam a ser respondidas pelos outros, enquanto, de outro lado, sao ofere- cidas respostas e perguntas que, desse modo, sequer chegam ao fulcro daquilo que na verdade foi perguntado e que aviva os temores. E certo que racionalidade cientifica ¢ racionalidade social se distanciam uma da outra, mas ao mesmo tempo seguem interpoladas ¢ referidas de mul- tiplas maneiras uma na outra. Rigorosamente falando, a prépria diferencia- go torna-se cada vez menos possivel. O envolvimento cientifico com riscos do desenvolvimento industrial continua igualmente a referir-se 2 horizontes axiolégicos ¢ expectativas sociais, da mesma forma como, inversamente, a discussio e percepgio sociais dos riscos em relagao aos argumentos cientifi- cos, Ao mesmo tempo, a pesquisa sobre o risco acompanha ruborizada os eastros de quectionamento da “tecnofobia”, para cuja contengio fai can yocada e por conta do qual, alias, ela experimentou nos tiltimos anos um inesperado fomento material. A critica e a inquietac4o piiblica vivem funda- mentalmente da dialética da pericia ¢ da contrapericia. Sem argumentos cien- tificos ¢ critica anticientifica de argumentos cientificos, ela fica apdtica, on pior: pode mesmo nem chegar a perceber 0 objeto ¢ o procedimento, no mais das vezes “invisiveis”, de sua critica e de seus temores. Para parafrasear uma expresso célebre: racionalidade cientifica sem racionalidade social fica va- ia, tacionalidade social sem racionalidade cientifica, cega. ‘Nao se esbogard dessa forma uma imagem de harmonia universal. Ao contrario; trata-se de muiltiplas pretensdes de racionalidade concorrentes € conflitivas rivalizando por validade. Tanto num como noutro caso, s40 coi- sas distintas que se destacam, que so variavelmente definidas ou mantidas constantes. Se num dos casos 0 primado de transformagio reside no modo de producdo industrial, no outro caso residiré no manuseio tecnolégico das probabilidades de acidentes, ¢ por af afora. Diversidade definitéria: cada vez mais riscos © contetido tedrico e o referencial axiolégico, dos riscos condicionam outros componentes: a conflitiva pluralizagao e diversidade definitéria de riscos civiligacionais observavel. Atinge-se, por assim dizer, uma superprodu- go de riscos, que em parte se relativizam, em parte se complementam, em par- te invadem o terreno uns dos outros. Cada ponto de vista interessado procura armar-se com definigées de risco, para poder dessa maneira rechagar os ris- cos que ameacem seu bolso, Ameagas ao solo, 3 flora, ao ar, 3 agua ea fauna ocupam uma posicao especial nessa luta de todos contra todos em torne das 36 . No vulcio civilizatério definig6es de risco mais Incrativas, na medida em que dao espago ao bem co- mum e as vozes daqueles que nao tém voz prépria (talvez sé mesmo direitos eleitotais ativos e passivos estendidos as gramineas ¢ minhocas serao capa- 2es de trazer as pessoas & razdo). No que diz respeito aos referenciais dos ris- cos em termos de valores ¢ interesses, tal pluralizacao € evidente: aleance, ur- géncia e existéncia de riscos oscilam com a diversidade de valores e interesses. E menos claro se isto também afeta a interpretagao do contetido dos riscos. © nexo causal que se produz nos riscos entre as influéncias daninkas atuais ou potenciais e o sistema de produgdo industrial introduz uma diver- sidade quase infinita de interpretages especificas. No fundo, pelo menos a titulo experimental, pode-se relacionar tudo com tudo, decerto enquanto o modelo basico — modernizag&o como causa, dano como efeito colateral — for mantido. Muito nao poder4 ser corroborado. E mesmo © j4 corrobora- do tera de se afirmar contra diividas sistemAticas ¢ permanentes. Todavia, o essencial é que, mesmo em meio a imensa profuse de possibilidades inter- pretativas, sAo invariavelmente condigSes isoladas que sAo relacionadas umas 4s outras. Destaquemos o desratamento. Enquanto o besouro-do-pinheiro, 9 esquilo on o guarda florestal de plantdo eram considerados como causas ou culpados, aparentemente ndo se tratava ainda de um “risco da moderni- zagio”, ¢ sim de uma sacudidela na gestdio econdmica das florestas ou de voracidade animal. Abre-se uma arena inteiramente distinta de causas ¢ culpados quando um tal crro de diagnéstico tipicamente local, que sempre precisa ser con- flitivamente ultrapassado pelos riscos no caminho de seu reconhecimento, é finalmente superado e o desmatamento é percebido e reconhecido como um efeivo da industrializagao. Somente ento € que passa a ser um problema que exige solugdes de longo prazo, sistemicamente definidas, que ndo mais sejam revogaveis no nivel local, mas que sejam antes polfticas. Uma vez que uma tal mudanga de perspectiva se tenha verificado, surge uma nova infinidade de possibilidades: ¢ 0 didxido de enxofre, 0 nitrogénio, seus compostos fo- to-oxidantes, 0s hidrocarbonetos ou qualquer outra coisa que ainda hoje nos completamente desconhecida 0 que afinal nos presenteia com esse derra- deiro e eterno outonc — com a queda das folhas? Essas formulas quimicas apenas aparentam responder por si mesmas. Por tras delas, sio empresas, se- tores industriais, grupos econdmicos, cientificos ¢ profissionais que entram na linha de fogo da critica pablica. Pois toda “causa” socialmente reconhe- cida submete-se a uma enorme demanda de mudanga, e junto com ela o sis- tema de ago no qual ela surgiu. Mesmo quando essa pressfo publica é recha- cada, reduzem-se as vendas, perdem-se mercados, a “confianca” dos consu- Sobre a logica da distribuigio de riqueza 37 midores precisa ser reconquistada e reassegurada por meio de grandes ¢ ca- ras campanhas publicitérias. E 0 automével o atual “maculador nacional” ¢, em decorréncia, o verdadeiro “desmatador”? Ou é preciso finalmente ins- talar nas rermoelétricas filtros de dessulfurizacao e de desnitrificag3o de qua- lidade ¢ em sintonia com os padrdes técnicos mais modernos? Ou entio isto talvez de nada sirva, visto que o poluente que mata a floresta nos é trazido pelos mais diversos ventos das chaminés e canos de escape dos paises vizi~ nhos, sendo entregue, sem cobrar frete, “na porta (ou na rvore) de casa”? Para onde quer que aponte o holofote que rastreia causas, irrompe 0 fogo, por assim dizer; é preciso que os “bombeiros argumentativos”, rapi- damente mobilizados e parcamente equipados, apaguem e salvem, com um forte jato de contrainterpretagio, o que ainda der para apagar e salvar. Quem quer que subitamente se veja exposto no pelourinho da produgdo de tiscos, acabard refutando, na medida do possivel, com uma “contra-ciéncia” paulatinamente institucionalizada em termos empresariais, os argumentos que o prendem ao pelourinho, trazendo outras causas e portanto outros réus a tona. A imagem diversifica-se. O acesso a midia torna-se crucial. A incer- teza no interior da inddstria aprofunda-se: ninguém sabe quem sera o prd- ximo sob o holofote da moral ecolégica. Bons argumentos, ou pelo menos argumentos capazes de se impor publicamente, convertem-se em condicao prévia do sucesso profissional. Os artesdos da esfera publica, os “carpinteiros argumentativos”, tém sua grande chance profissional. Correntes causais e circuitos daninhos: a ideia de sistema Para dizer expressamente uma vez mais: todos esses efeitos produzem- -se independentemente do quao sdlidas parecam as interpretagdes causais a partir de uma dada perspectiva cientifica, No mais das vezes, as opiniées a respeito no interior das ciéncias ¢ das dreas em questio distanciam-se consi- deravelmente. © efeito social das definigdes de risco nao depende portanto de sua solidex cientifica. Sem embargo, essa diversidade interpretativa tem seu fundamento na prépria légica dos riscos da modemizacdo. Para concluit, procuraremos re- lacionar aqui os efeitos nocivos com fatores especificos dificilmente isolaveis no complexo sistema do modo de produgdo industrial. A interdependéncia sistémica dos altamente especializados atores da modernizagao na economia, na agricuftura; no direito e na politica cozresponde & auséncia de causas es- pecificas e responsabilidades isolaveis: é a agricultura que contamina o solo ou os agricultores sdo apenas o elo mais fraco na corrente dos circuitos da- 38 No vuleio civilizatério ninhos? Serio eles apenas mercados dependentes e subalternos para as vendas da indtistria quimica de ragdes e fertilizantes, sendo nesse caso necessdrio empregar a enxada para uma prudente descontaminacdo dos solos? Mas as autoridades poderiam ha muito ter proibido ou drasticamente limitado a yenda de venenos. Contudo, nao o fazem. Ao contrario: com o apoio da cién- cia, constantemente concedem patentes para “inofensivas” produgées de veneno, que cada vez mais afetam mais do que apenas os nossos rins. Estaré © mico preto, portanto, no meio da selva de autoridades, ciéncia ¢ politica? Mas elas, afinal de contas, no cultivam o solo, Entao é mesmo dos agricul- tores a culpa? Mas eles acabaram sendo espremidos pela pinga da Comuni- dade Europeia, tendo de promover uma superproducio com uso intensivo de fertilizantes para poderem, por sua vez, sobreviver economicamente. Em outras palavras: a altamente diferenciada divisao do trabalho impli- ca uma cumplicidade geral e esta, por sua vez, uma irresponsabilidade genera- lizada, Todos sao causa ¢ efeito, ¢ portanto uma ndo causa. As causas csfa- relam-se numa vicissitude generalizada de atores e condigées, reagées e con trarreagées. Isto confere evidéncia social e popularidade 4 ideia sistémica. Desse modo, evidencia-se exemplarmente onde reside a importincia bio- grafica da ideia sistmica: pode-se fazer algo e continuar a fazé-lo sem ter de responder pessoalnente por isto. Atua-se, por assim dizer, & prépria revelia. Atua-se fisicamente, sem que se atue moral e politicamente, O outro genera- Jizado — o sistema — atua em e através de cada um: esta é a moral civili- zacional do escravo, segundo a qual se atua social e pessoalmente como se estivéssemos sob 0 jugo de um destino natural, da “lei universal da queda livee” do sistema. E dessa mancira que se joga, diante do iminente desastre ecolégico, 0 “jogo do mico preto”. aE ESA O teor de tisco: 0 ainda-niio evento que desencadeia a ago Riscos nao se esgotam, contudo, em efeitos e danos j4 ocorridos, Neles, exprime-se.sobretudo um componente fuivro. Este bascia-se em parte na extensio futura dos danos atualmente previsiveis e em parte numa perda geral de confianga ou num suposto “amplificador do risco”. Riscos tém, portanto, fundamentalmente que ver com antecipacao, com destruigées que ainda nao ocorreram mas que sao iminentes, e que, justamente nesse senti- do, jd so reais hoje. Um exemplo a partir do laudo ambiental: 0 comité que emite 0 laudo refere-se ao fato de que as altas concentragdes de nitrato de- correntes da fertilizago com nitrogénio até o momento infiltrou-se pouco ou sequer chegon a se infiltrar nas camadas profundas dos grandes aquiferos Sobre a légiea da distribuigdo de riqueza 39 subterraneos dos quais extraimos nossa’ 4gua potavel. Elas, em grande me- dida, decompem-se no subsolo. Todavia nao se sabe ainda como isto ocor- re € por quanto tempo ainda ocorrerd. Muitas razdes indicam que nao se deve, sem mais reservas, projetar no futuro a continuidade do efeito filrante das camadas protetoras do subsolo, “Teme-se que, apés alguns anos ou dé- cadas, as atuais eluviacdes de nitrato, com um retardamento correspondente A vazio, terfo alcangade mesmo os len¢6is fredticos mais profundos” (p. 29). Em outras palavras: a bomba-relégio esr4 armada. Nesse sentido, os riscos indicam um futuro que precisa ser evitado. Em oposigao a evidéncia tangivel das riquezas, os riscos acabam impli- cando algo irreal. Num sentido decisivo, eles séio simultaneamente reais e ir- reais. De um lado, muitas ameagas ¢ destruigées ja so reais: rios poluidos ou mottos, destruigéo Hlorestal, novas doengas etc. De outro lado, a verdadeira forga social do argumento do risco reside nas ameagas projetadas no futuro. Sao, nesse caso, riscos que, quando quer que surjam, representam descruigées de tal proporgao que qualquer agio em resposta a elas se torna impossivel ¢ que, jd como suposicaio, como ameaga futura, como prognéstico sincreti- cameiite preventivo, possuem e desenvolvem relevancia ativa. O micleo da consciéncia do risco nao estd no presente, ¢ sim no futuro. Na sociedade de risco, o passado deixa de ter forca determinante em relacao ao presente, Em seu lugar, entra o futuro, algo todavia inexistente, construido e ficticio como “causa” da vivéncia e da atuacao presente. Tornamo-nos ativos hoje para evi- tar ¢ mitigar problemas ou crises do amanhé ou do depois de amanhi, para tomar precangées en relagao a eles — ou ent&o justamente nao. Em céleulos modelares, afunilamentos “prognosticados” do mercado de trabalho produ zem imediatamente um efeito sobre o comportamento educacional: 0 desem- ptego antecipado, iminente é um determinante crucial das condigdes ¢ postu- ras de vida atuais; a destruigao prognosticada do meio ambiente ¢ a ameaca nuclear colocam a sociedade de sobreaviso e conseguem levar amplos setores da geragdo jovem as ruas. Na discussdo com o futuro, temos portanto de lidar com uma “varidvel projetada”, com uma “causa projetada” da atuacdo (pes- soal e politica) presente, cuja relevancia e significado crescem em proporga0 dircta & sua incalculabilidade ¢ ao seu teor de ameaca, ¢ que concebemos {temos de conceber} para definir e organizar nossa atuagio presente. Legitimagao: “efeitos colaterais latentes” Isso pressupde, além do mais, que os riscos tenham sido bem-sucedidos num processo de reconhecimento social. Contudo, riscos sao inicialmente 40 No vuledo civilizatério bens de rejeigio, cuja inexisténcia é pressuposta até prova em contrario — de acordo com o principio: “in dubio pro progresso”, ¢ isto quer dizer: na duivida, deixa estar. Est igualmente associado a isto um modo de legiti- magio, que se diferencia claramente da distribuigao designal de riquezas so- ciais, Os riscos podem pois ser legitimados pelo fato de que sua produgao nao foi nem prevista, nem desejada. As situagdes de ameaca precisam, portant, na civilizag&o cientificizada, romper o privilégio da tabuizagdo que as cerca e “nascer cientificamente”. Isto ocorre no mais das vezes sob a forma de um “efeito colateral latente”, que ao mesmo tempo admite ¢ legitima a realidade da ameaca. O que nao foi previsto tampouco podia ser evitado, tendo-se produzido com a melhor das intengSes, revelando-se uma crianga problema- tica, indesejada, sobre cuja aceitacdo sera necessario agora decidir. O racio- cinio esquematico do “cfcito colateral latente” cquivale assim a uma espécie de licenga, a um destino natural civilizatério, que simultaneamente reconhe- ce, distribui seletivamente ¢ justifica efeitos a serem evitados. 3. RIscOS ESPECfFICOS DE CLASSE Tipo, padr4o ¢ meios da distribuicdo de riscos diferenciam-se sistema- ticamente daqueles da distribuigae de riqueza. Isto no anula o fato de que muitos riscos sejam distribuidos de um modo especificado pela camada ou pela classe social. A hist6ria da distribuigao de riscos mostra que estes se atém, assim como as riquezas, ao esquema de classe — mas de modo inverso: as riquezas acumulam-se em cima, os riscos em baixo. Assim, os riscos pa- recem reforgar, endo revogas, a sociedade de classes. A insuficiéncia em ter- mos de abastecimento soma-se a insuficiéncia em termos de seguranga ¢ uma profusio de riscos que precisam ser evitados, Em face disto, os ricos (em ter- mos de renda, poder, educacao) podem comprar seguranca e liberdade em relago ao risco. Essa “lei” da distribuigao de riscos determinada pela classe social e, em decorréncia, do aprofundamento dos contrastes de classe atra- vés da concentracio de riscos entre os pobres e débeis por muito tempo im- pés-se, ¢ ainda hoje se impée, em relagdo a algumas dimensdes centrais do tisco: 0 risco de tornar-se desempregado é atualmente consideravelmente maior para quem nao tem qualificagdes do que para os que s4o altamente qualificados. Riscos de sobrecarga, irradiagio e contaminagao, ligados & execugdo do trabalho nos correspondentes ramos da industria, s4o disteibus- dos de modo desigual conforme a profissiio. Sao principalmente as vizinhan- gas mais acessiveis aos grupos de menor renda da populacdo, nas redondezas Sobre a légica da distribuigio de riqueza 41

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