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Título

original
WikiLeaks:
Inside Julian Assange’s War on Secrecy

Editora
Raïssa Castro

Coordenadora Editorial
Ana Paula Gomes

Copidesque
Anna Carolina G. de Souza
Maria Lúcia A. Maier

Revisão
Ana Paula Gomes

Projeto Gráfico
André S. Tavares da Silva

Diagramação
DPG Editora
Daiane Avelino

Foto da capa
AFP/Getty Images

© The Guardian, 2011


Originalmente publicado por Guardian Books

Tradução © Verus Editora, 2011


Todos os direitos reservados, no Brasil, por Verus Editora.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
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www.veruseditora.com.br
AGRADECIMENTOS

Os autores gostariam de agradecer a:

James Ball Richard Norton-Taylor


Ian Black Daithí Ó Crualaoich
Julian Borger Aron Pilhofer
Heather Brooke Gill Phillips
Jon Casson Geraldine Proudler
Lisa Darnell Mark Rice-Oxley
Alastair Dant Simon Rogers
Rob Evans Marcel Rosenbach
Harold Frayman Alison Rourke
Paul Galbally Paul Scruton
Janine Gibson Eric Schmitt
John Goetz Vaughan Smith
Ian Katz Holger Stark
Bill Keller Jonathan Steele
Francois Kunc Oliver Taplin
Gavin MacFadyen Simon Tisdall
Ewen MacAskill Jan Thompson
Toby Manhire Declan Walsh
Georg Mascolo Helen Walmsley-Johnson
James Meek
SUMÁRIO

Lista de personagens
Introdução

1. A caça
2. Bradley Manning
3. Julian Assange
4. A ascensão do WikiLeaks
5. O vídeo do apache
6. As conversas com Lamo
7. O acordo
8. No Bunker
9. Os diários de guerra do Afeganistão
10. Os diários de guerra do Iraque
11. Os telegramas
12. O homem mais famoso do mundo
13. Parceiros incômodos
14. Antes do dilúvio
15. O dia da publicação
16. O maior vazamento da história
17. A balada da prisão de Wandsworth
18. O futuro do WikiLeaks

Apêndice: Telegramas diplomáticos americanos


LISTA DE PERSONAGENS

WikiLeaks
Melbourne, Nairóbi, Reykjavik, Berlim, Londres, Norfolk, Estocolmo

Julian Assange – fundador/editor do WikiLeaks


Sarah Harrison – auxiliar de Julian Assange
Kristinn Hrafnsson – jornalista islandês e colaborador do WikiLeaks
James Ball – especialista em dados do WikiLeaks
Vaughan Smith – ex-capitão dos Granadeiros, fundador do Frontline Club e
anfitrião de Assange em Ellingham Hall
Jacob Appelbaum – colaborador do WikiLeaks nos EUA
Daniel Ellsberg – informante na Guerra do Vietnã, defensor do WikiLeaks
Daniel Domscheit-Berg – programador alemão e arquiteto do WikiLeaks
(também conhecido como Daniel Schmitt)
Mikael Viborg – dono do PRQ, provedor de internet do WikiLeaks na Suécia
Ben Laurie – especialista em criptografia britânico, conselheiro de Assange
para assuntos de criptografia
Mwalimu Mati – líder do grupo anticorrupção Mars Group Kenya, fonte do
primeiro vazamento importante do WikiLeaks
Rudolf Elmer – ex-presidente do braço nas ilhas Caimãs do Julius Baer Bank,
fonte do segundo vazamento importante do WikiLeaks
Smári McCarthy – entusiasta do WikiLeaks baseado na Islândia, programador,
militante do Modern Media Initiative (MMI)
Birgitta Jónsdóttir – parlamentar islandesa e defensora do WikiLeaks
Rop Gonggrijp – hacker e homem de negócios holandês, amigo de Assange e
militante do MMI
Herbert Snorrason – militante islandês do MMI
Israel Shamir – colaborador do WikiLeaks
Donald Böstrom – jornalista sueco e contato do WikiLeaks em Estocolmo

The Guardian
Londres

Alan Rusbridger – editor-chefe


Nick Davies – repórter investigativo
David Leigh – editor investigativo
Ian Katz – subeditor (notícias)
Ian Traynor – correspondente europeu
Harold Frayman – editor de sistemas
Declan Walsh – correspondente no Paquistão/Afeganistão
Alastair Dant – visualizador de dados
Simon Rogers – editor de dados
Jonathan Steele – ex-correspondente no Iraque
James Meek – ex-correspondente no Iraque
Rob Evans – jornalista investigativo
Luke Harding – correspondente em Moscou
Robert Booth – repórter
Stuart Millar – editor de notícias, guardian.co.uk
Janine Gibson – editora, guardian.co.uk
Jonathan Casson – chefe de produção
Gill Phillips – chefe do departamento jurídico
Jan Thompson – editora executiva

The New York Times


Nova York, Londres

Max Frankel – ex-editor executivo


Bill Keller – editor
Eric Schmitt – correspondente de guerra
John F Burns – correspondente em Londres
Ian Fisher – subeditor estrangeiro

Der Spiegel
Hamburgo, Londres

Georg Mascolo – editor-chefe


Holger Stark – chefe de redação
Marcel Rosenbach – jornalista
John Goetz – jornalista

El País
Madri, Londres

Javier Moreno – editor-chefe


Vicente Jiménez – subeditor

Outras Mídias
Raffi Khatchadourian – escritor da New Yorker e autor de um extenso perfil de
Assange
Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen – funcionários da agência de notícias
Reuters acidentalmente mortos por pilotos americanos em 2007
David Schlesinger – editor-chefe da Reuters
Kevin Poulsen – ex-hacker, editor da revista Wired
Gavin MacFadyen – professor da Universidade da Cidade e jornalista, anfitrião
de Assange em Londres
Stephen Grey – repórter freelance
Iain Overton – ex-jornalista de TV, chefe da Agência de Jornalismo
Investigativo
Heather Brooke – jornalista americana baseada em Londres e ativista da
liberdade de informação

Bradley Manning
Bradley Manning – soldado raso de 23 anos e suposta fonte do WikiLeaks
Rick McCombs – ex-diretor da escola de Crescent, Oklahoma
Brian, Susan, Casey Manning – pais e irmã
Tom Dyer – colega de escola
Kord Campbell – ex-gerente no empresa de software Zoto
Jeff Paterson – membro do comitê de apoio a Bradley Manning
Adrian Lamo – hacker e confidente online
Timothy Webster – ex-agente especial de contrainteligência do Exército
americano
Tyler Watkins – ex-namorado
David House – ex-hacker e defensor
David Coombs – advogado

Julian Assange
Christine Hawkins – mãe
John Shipton – pai
Brett Assange – padrasto
Keith Hamilton – ex-parceiro de Christine
Daniel Assange – filho
Paul Galbally – advogado de Assange no julgamento de 1996 por hacking

Alegações em Estocolmo / extradição


“Sonja Braun” – reclamante; membro do movimento Irmandade
“Katrin Weiss” – reclamante; trabalhadora em museu
Claes Borgström – advogado de ambas as mulheres, ex-ombudsman da Suécia
pela igualdade de oportunidades e proeminente político social-democrata
Marianne Ny – promotora sueca e especialista em crimes sexuais
Mark Stephens – advogado de Assange
Geoffrey Robertson – advogado de Assange
Jennifer Robinson – advogada no escritório de Mark Stephens
Gemma Lindfield – advogada agindo em nome das autoridades suecas
Howard Riddle – juiz, magistrado da Corte de Westminster
Ouseley – juiz do Supremo Tribunal, Londres

Governo
Hillary Clinton – secretária de Estado americana
Louis B. Susman – embaixador dos Estados Unidos em Londres
P.J. Crowley – porta-voz do Departamento de Estado americano
Harold Koh – conselheiro legal do Departamento de Estado americano
Robert Gates – secretário de Defesa americano
Sir Sherard Cowper-Coles – ex-representante especial do Reino Unido no
Afeganistão e ex-embaixador em Cabul
INTRODUÇÃO

NA ÉPOCA EM QUE quase ninguém ouvira falar do WikiLeaks, começaram a


chegar regularmente à minha caixa postal e-mails de alguém chamado Julian
Assange – um nome memorável. Editores costumam receber um misto de dicas,
cartas, reclamações e teorias excêntricas não solicitadas, mas havia algo sobre os
e-mails do periódico WikiLeaks que chamou minha atenção.
Às vezes, vinha anexada aos e-mails uma boa história. Ou um documento que,
quando examinado com mais cuidado, se revelava pouco impressionante. Num
dia chegava uma diatribe contra um jornalista em particular – ou contra a
covardia mercenária dos grandes veículos de comunicação de modo geral. No
outro, o tal Assange se mostrava satisfeito com algo que fizéramos ou divagava a
respeito de sua vida em Nairóbi.
Na Grã-Bretanha, o The Guardian foi, por muitos meses, o único jornal a
escrever sobre o WikiLeaks ou a usar algum dos documentos que eles estavam
revelando. Em agosto de 2007, por exemplo, publicamos um incrível relatório
confidencial da Kroll, que supostamente provava que o ex-presidente Daniel
arap Moi desviara centenas de milhões de libras e as escondera em contas
bancárias estrangeiras em mais de trinta países. Era uma história incrível de
todos os pontos de vista. E o tal Assange, fosse quem fosse, era alguém que não
se devia perder de vista.
Embora desconhecido de grande parte do mundo, Julian Assange estava se
tornando um pioneiro muito interessante e singular no uso de tecnologias digitais
para desafiar Estados autoritários e corruptos. Não é provável que o nome dele
significasse algo para Hillary Clinton na época – ou mesmo em janeiro de 2010,
quando, como secretária de Estado, ela fez um discurso sobre o potencial do que
chamara de “um novo sistema nervoso para o planeta”.
Ela descreveu uma visão das publicações digitais semiclandestinas – “o
samizdat dos nossos dias” –, que estavam começando a defender a transparência
e a desafiar a antiga ordem autocrática e corrupta mundial. Mas também advertiu
que governos repressivos passariam a “mirar os pensadores independentes que
usam tais ferramentas”. Ela se referia a regimes como o Irã.
Suas palavras sobre o futuro dessas corajosas publicações clandestinas bem
poderiam ser aplicadas ao estranho e ingênuo hacker australiano, que
desenvolvia em silêncio métodos para publicar segredos mundiais sem correr o
risco de ataques legais ou tecnológicos.
Ao fazer o discurso tão elogiado, a sra. Clinton não podia imaginar que, no
período de um ano, faria outra declaração sobre quem divulgava documentos
confidenciais – dessa vez, atacando diretamente pessoas que usavam as mídias
eletrônicas para defender a transparência. E chegou a afirmar, numa conferência
do Departamento de Estado organizada às pressas em novembro de 2010, que
aquilo era “não apenas um ataque aos interesses da política estrangeira dos
Estados Unidos, mas um ataque à comunidade internacional”. No intervalo de
onze meses, Assange tornara-se viral. Ele acabara de ajudar a orquestrar o maior
vazamento de informações na história do mundo – só que agora deixara em
maus lençóis não uma nação pobre do leste africano, mas o país mais poderoso
do planeta.
É esta história que este livro se propõe a contar: a transformação do hacker
anônimo numa das pessoas mais polêmicas do mundo – um homem, por um
lado, insultado, procurado, preso e marginalizado e, por outro, louvado e tratado
como celebridade.
Em apenas alguns anos, Assange foi catapultado da obscura vida em Nairóbi –
onde divulgava informações com as quais ninguém se importava muito – à
publicação de uma imensa quantidade de documentos confidenciais que
atingiram o coração das operações militares e da política estrangeira norte-
americanas, passando subitamente de figura marginal, convidada a participar de
debates em modestas conferências sobre tecnologia, a inimigo público número 1
dos Estados Unidos. Considerado por alguns um messias das novas mídias, para
outros ele é um ciberterrorista. Como se já não fosse suficientemente dramático,
no meio disso tudo duas mulheres na Suécia o acusaram de estupro. Em outras
palavras, parece mentira, mas é tudo verdade.
Depois de deixar Nairóbi, as ambições de Assange cresceram na escala e no
potencial do WikiLeaks. Na companhia de outros hackers, ele desenvolveu uma
filosofia de transparência. Ele e alguns colegas especialistas em tecnologia já
haviam obtido êxito em um dos objetivos: tornar o WikiLeaks virtualmente
indestrutível e, portanto, a salvo de ataques legais ou cibernéticos de qualquer
jurisdição ou fonte. Advogados, que recebiam somas exorbitantes para proteger
a reputação de clientes e corporações ricos, admitiam – em tons mesclados de
frustração e admiração – que o WikiLeaks era o único meio de comunicação do
mundo que eles não podiam silenciar. Era muito ruim para os negócios.
No The Guardian, tínhamos razões para observar a ascensão do WikiLeaks
com grande interesse e algum respeito. Em dois casos – envolvendo o Banco
Barclays e a Trafigura –, o site acabou hospedando documentos que os tribunais
britânicos haviam decidido manter em segredo de justiça. Houve um período
difícil em 2008-2009, quando a Suprema Corte, em Londres, começou não
apenas a banir a publicação de documentos de elevado interesse público, mas
simultaneamente a impedir que se mencionasse a existência das ações judiciais e
das partes nelas envolvidas. Uma firma de advocacia foi longe demais ao tentar
estender a proibição à menção de discussões parlamentares que citavam o
material encontrado no site do WikiLeaks.
Graças a esse novo fenômeno de publicação, os juízes estavam tão confusos
quanto as corporações globais. Numa audiência em março de 2009, a Suprema
Corte, em Londres, decidiu que ninguém estava autorizado a imprimir
documentos que revelassem as estratégias de evasão fiscal do Barclays – embora
eles estivessem disponíveis para leitura no website do WikiLeaks. A decisão do
juiz pareceu um pouco ridícula.
Mas essa nova forma de publicação indestrutível trazia à tona algumas
questões difíceis. Para cada Trafigura, poderia haver outros casos em que o
WikiLeaks pudesse ser usado para lesar ou destruir alguém. Isso fez de Assange
uma figura muito poderosa. O fato de que houvesse reclamações entre os colegas
sobre seu estilo autocrático e reticente não diminuía os temores sobre esse barão
da nova mídia. Perguntas continuavam sendo feitas: Quem era aquela figura
sombria “brincando de Deus”? Como ele e sua equipe podiam ter certeza da
autenticidade de um documento específico? Quem determinava o contexto ético
que estabelecia que informações deveriam ser publicadas ou não? Tudo isso
significava que Assange desempenhava, em muitos aspectos – talvez até mais do
que ele gostaria –, uma função não muito distinta daquela de um editor
convencional.
Como este livro narra, a espetacular aparição do WikiLeaks diante dos olhos e
na imaginação de um público mundial mais amplo começou com um encontro
em junho de 2010 entre Nick Davies, do The Guardian, e Assange. Davies o
procurou depois de ler os primeiros relatos que davam conta do vazamento de
uma imensa coleção de documentos diplomáticos e militares. O jornalista queria
convencer Assange de que aquela história teria mais impacto e significado se ele
estivesse disposto a se aliar a um ou dois jornais – por mais tradicionais,
covardes ou parciais que parecêssemos aos olhos de alguns hackers.
Um acordo foi fechado, e assim nasceu uma colaboração única entre
(inicialmente) três jornais, o misterioso nômade australiano e o que quer que sua
indefinida organização, o WikiLeaks, realmente fosse. Isso nunca ficou muito
claro. Assange, no melhor dos casos, era difícil de ser contatado, pois mudava o
número do celular, os endereços de e-mail e de salas de bate-papo criptografadas
como mudava de lugar. Ocasionalmente, apareceria com outro colega – um
jornalista, um hacker, um advogado ou um ajudante sem função definida –, mas
frequentemente viajava sozinho. Nunca estava muito claro em que fuso horário
ele se encontrava. A diferença entre dia e noite – uma importante consideração
para a maior parte dos seres vivos – parecia de pouco interesse para ele.
O que começava agora era uma operação jornalística bastante tradicional,
apesar de usar habilidades de análise e visualização de dados desconhecidas das
redações até recentemente. David Leigh, o editor investigativo do The Guardian,
passou o verão lendo vorazmente todo o material. O editor assistente do jornal,
Ian Katz, começou a unir forças mais amplas. Equipes foram reunidas em
diversos cantos dos escritórios do The Guardian, em Londres, para dar sentido
ao vasto estoque de informações. Equipes semelhantes foram reunidas em Nova
York e Hamburgo – e, mais tarde, em Madri e Paris.
A primeira coisa a fazer era construir um mecanismo de busca que pudesse
tornar os dados coerentes – e a próxima era trazer correspondentes estrangeiros e
analistas de relações exteriores com conhecimento detalhado dos conflitos no
Afeganistão e no Iraque. A peça final da empreitada jornalística foi introduzir
um procedimento de redação, de modo que nada que publicássemos pudesse
expor fontes vulneráveis ou comprometer operações especiais ativas. Tudo isso
demandou muito tempo, esforço, recursos e energia. Dar coerência aos arquivos
não foi tarefa fácil. Há pouquíssimos paralelos nos anais do jornalismo – se é
que há algum –, nos quais uma organização noticiosa tenha precisado lidar com
uma base de dados tão vasta. Estimamos que fossem aproximadamente trezentos
milhões de palavras (comparativamente, os Papéis do Pentágono, publicados
pelo The New York Times em 1971, chegaram a 2,5 milhões de palavras). Uma
vez editados, os documentos foram divididos entre os (no fim das contas) cinco
jornais e enviados ao WikiLeaks, que aceitou todos os textos.
A amplitude do processo de edição e a extensão relativamente limitada da
publicação dos telegramas foram aparentemente negligenciadas por muitos
comentaristas – incluindo importantes jornalistas norte-americanos –, que
falavam de modo depreciativo de uma “divulgação em massa” leviana de
telegramas e do consequente risco à vida. Mas até o presente não houve
nenhuma “divulgação em massa”. Pouco mais de dois mil dos 250 mil
telegramas diplomáticos foram publicados, e, seis meses após a primeira
publicação dos diários de guerra, ninguém foi capaz de comprovar algum dano à
vida ou à integridade física.
É impossível escrever esta história sem contar a história do próprio Assange,
embora a questão mais ampla do WikiLeaks e da filosofia que o site representa
seja de maior importância. Mais de um jornalista já o comparou a John Wilkes, o
dissoluto parlamentar e editor do século XVIII que arriscou a vida e a liberdade
em diversas lutas pela liberdade de expressão. Outros o compararam a Daniel
Ellsberg, a fonte do vazamento dos Papéis do Pentágono, descrito pelo ex-editor
executivo do The New York Times, Max Frankel, como “um homem de intelecto
incisivo e dissimulado e de temperamento volátil”.
Os veículos de comunicação e o público se dividiram entre os que viam
Assange como um novo tipo de cibermessias e os que o consideravam um vilão
de James Bond. Cada extremo projetava sobre ele poderes sobre-humanos, para
o bem ou para o mal. O roteiro se tornou ainda mais confuso em dezembro,
quando, como parte das condições para sua fiança, Assange precisou ir viver em
Ellingham Hall, uma mansão em estilo georgiano construída em centenas de
acres, na paisagem rural de Suffolk. Era como se uma história de Stieg Larsson
tivesse sido transformada em um drama de época.
Poucas pessoas parecem considerar Assange um homem de fácil colaboração.
O colunista de mídia da revista Slate, Jack Shafer, captou muito bem seu caráter
neste breve perfil:
Assange atormenta os jornalistas que trabalham com ele porque se recusa a se conformar a qualquer
papel que esperam que ele desempenhe. Age como uma fonte de vazamento quando é conveniente. E
se disfarça de editor ou representante de agência de notícias quando lhe é vantajoso. Como um
relações-públicas, manipula organizações noticiosas para maximizar a publicidade para seus
“clientes”, ou, quando é desafiado, ameaça jogar bombas de informação, como um agente infiltrado.
É alguém astuto que está sempre se metamorfoseando e não consegue ficar parado; um negociador
imprevisível, sempre mudando os termos do acordo.
Certamente tivemos momentos de dificuldade e tensão no decurso de nosso
empreendimento conjunto, os quais foram causados tanto pelas dificuldades de
comunicação aberta e regular quanto pelo status de Assange como uma mistura
confusa de fonte, intermediário e editor. Mensagens instantâneas criptografadas
não substituem o diálogo. E enquanto Assange era certamente a fonte principal
dos documentos, de maneira alguma era uma fonte convencional – ele não era a
fonte original e muito menos confidencial. Nos últimos tempos, deixara de ser
até mesmo a única fonte. Ele era, no mínimo, uma nova espécie de editor-
intermediário – um papel algumas vezes desconfortável, no qual ele buscava
manter certo grau de controle sobre o material da fonte (e até uma forma de
“propriedade”, complementada por ameaças de processos por perdas
financeiras). Quando, para a fúria de Assange, o WikiLeaks deu origem a um
vazamento, a ironia da situação foi quase cômica. As questões éticas envolvidas
no novo status de editor/fonte tornaram-se ainda mais complicadas quando nos
foi sugerido que devíamos alguma forma de proteção a Assange – na qualidade
de “fonte” – e por isso não investigássemos tão a fundo as acusações de assédio
sexual levantadas contra ele na Suécia. Mas esse não nos pareceu um argumento
convincente, embora houvesse aqueles – não é exagero chamá-los de
“discípulos” – que não estavam dispostos a imaginar nenhuma história além da
difamação.
Essas rusgas foram em grande parte superadas – às vezes com uma taça de
vinho ou indo ao encontro do extraordinário apetite de Assange por conversas
exaustivas e exigentes do ponto de vista intelectual. Como o texto de Sarah
Ellison na revista Vanity Fair concluiu sobre o tema: “Quaisquer que fossem as
diferenças, os resultados foram extraordinários. Dados o alcance, a profundidade
e a precisão dos vazamentos, essa colaboração produziu, sob todos os aspectos,
um dos maiores furos jornalísticos dos últimos trinta anos”.
O desafio que o WikiLeaks representou para os veículos de comunicação de
modo geral (sem falar nos Estados, empresas ou corporações globais sujeitos ao
escrutínio indesejado) não era confortável. O instinto inicial do site era publicar
quase tudo e, no início, eles estavam profundamente desconfiados de qualquer
contato entre seus colegas nos jornais e qualquer tipo de autoridade. Falar com o
Departamento de Estado, o Pentágono ou a Casa Branca, como o The New York
Times fez antes de cada etapa da publicação, era um campo minado em termos
da manutenção de uma relação tranquila com o WikiLeaks. Na época da
publicação do Cablegate, o próprio Assange, consciente dos riscos de causar
danos não intencionais aos dissidentes ou a outras fontes, ofereceu-se para falar
com o Departamento de Estado – oferta que foi recusada.
De modo geral, parece-me que o WikiLeaks e organizações semelhantes são
admiráveis em sua visão obstinada da transparência e da abertura. Notável é
como o céu não caiu, apesar da enorme quantidade de informação liberada
durante meses. Os inimigos do WikiLeaks fizeram repetidas declarações sobre
os danos causados pela divulgação do material. A julgar pela resposta que
tivemos de países sem as vantagens de uma imprensa livre, houve uma
considerável sede pelas informações dos telegramas – uma fome de
conhecimento, que contrastava com os ocasionais bocejos bem informados de
pessoas sofisticadas das metrópoles que insistiam em dizer que os telegramas
não traziam nenhuma novidade. Em vez de uma reação instintiva por mais sigilo,
essa poderia ser a oportunidade para refletir sobre as vantagens e desvantagens
da transparência forçada.
Essa abordagem – uma avaliação racional de novas formas de transparência –
deveria acompanhar o questionamento inevitável de como o governo norte-
americano pode ter permitido que considerações privadas de reis, presidentes e
dissidentes fossem lidas tão facilmente por quem quer que tenha decidido passá-
las ao WikiLeaks.
Cada organização jornalística tratou das questões éticas envolvidas nessa
história – e na decisão geral de publicá-la – de modo diferente. Fiquei
interessado, poucos dias depois do início da divulgação do Cablegate, ao receber
um e-mail de Max Frankel, que supervisionou a defesa do New York Times no
caso dos Papéis do Pentágono, quarenta anos atrás. Hoje com 80 anos, ele me
enviou um memorando que escrevera ao ombudsman do The New York Times. É
interessante citá-lo como um conselho conciso e sábio para as futuras gerações,
que podem muito bem ter de lidar com tais questões no futuro:
1. Minha opinião quase sempre foi de que a informação que quer sair vai sair; nossa função é recebê-
la com responsabilidade e publicá-la ou não de acordo com nossos padrões noticiosos invariáveis.
2. Se a fonte ou o informante violar seu juramento ou a legislação, deveríamos deixar às autoridades
a tentativa de fazer cumprir a legislação ou o juramento, sem nossa colaboração. Rejeitamos
colaboração ou a revelação de nossas fontes pela principal razão de que todas as fontes merecem ser
protegidas por nós. No entanto, é parte de nossa obrigação revelar qualquer tendenciosidade ou
objetivo aparente das pessoas que vazam ou revelam informações.
3. Se certas informações parecem desafiar os padrões proclamados pela Suprema Corte no caso dos
Papéis do Pentágono – isto é, de que a publicação causará dano direto, imediato e irreparável –,
temos a obrigação de limitar a publicação adequadamente. Na dúvida, devemos dar à autoridade
apropriada a chance de nos persuadir de que tal perigo direto e imediato existe. (Veja nosso atraso de
24 horas na revelação dos mísseis soviéticos em Cuba, tal como descrevi em minha autobiografia, ou
o atraso em informar aviões perdidos em combate até que os pilotos possam, talvez, ser resgatados.)
4. Sempre acreditei que ninguém pode prever seguramente as consequências da publicação de todos
os tipos de informações. Os Papéis do Pentágono, contrariamente ao desejo de Ellsberg, não
abreviaram a Guerra do Vietnã nem provocaram protesto adicional significativo. Uma determinada
divulgação pode constranger governos, mas melhorar políticas, ou pode ser um vazamento do próprio
governo e acabar prejudicando a política. “Publique e seja amaldiçoado”, como costumava dizer
Scotty Reston; parece terrível, mas, como lema jornalístico, isso tem servido muito bem à sociedade
através da história.

Há muitos tratados mais longos sobre ética no jornalismo que dizem menos.
Uma das lições do projeto WikiLeaks é a de ter demonstrado as possibilidades
de colaboração. É difícil pensar em exemplos comparáveis de organizações
noticiosas trabalhando juntas do modo como o The Guardian, o The New York
Times, a Der Spiegel, o Le Monde e o El País trabalharam no projeto WikiLeaks.
Acredito que nós, os cinco editores, gostaríamos de imaginar modos pelos quais
pudéssemos aproveitar nossos recursos novamente.
Mas a história ainda não acabou. No Reino Unido, houve apenas críticas
furtivas ao The Guardian por publicar os vazamentos, embora essa reserva nem
sempre tenha se estendido ao próprio WikiLeaks. A maioria dos jornalistas pôde
ver o claro valor público na natureza do material publicado.
Parece ter sido outra a história nos Estados Unidos, onde houve uma discussão
mais amarga e sectária, obscurecida por ideias distintas de patriotismo. Foi
espantoso sentar em Londres e ler que figuras razoavelmente conhecidas nos
Estados Unidos pediam o assassinato de Assange pelo que ele desencadeara. Foi
surpreendente ver a relutância difundida entre os jornalistas americanos em
apoiar a ideia geral e o trabalho do WikiLeaks. Para alguns, a questão se resumia
simplesmente à relutância em admitir que Assange era um jornalista.
É interessante especular se essa atitude mudaria caso Assange fosse
processado pelos vazamentos. No início de 2011, houve sinais de crescente
frustração por parte das autoridades governamentais norte-americanas na
tentativa de varrer o mundo em busca de evidências a ser usadas contra ele,
incluindo a liminar para obtenção de detalhes das contas do Twitter. Mas
também houve, entre as mentes legais mais moderadas, a avaliação de que era
virtualmente impossível processar Assange pelo ato de publicar os diários de
guerra ou os telegramas do Departamento de Estado sem também pôr cinco
editores no banco dos réus. Esse seria o caso midiático do século.
E, claro, ainda não ouvimos um relato sem intermediários do homem que
supostamente é a verdadeira fonte do material, Bradley Manning, um soldado
raso norte-americano de 23 anos. Até que isso ocorra, nenhuma história
completa do vazamento que mudou o mundo pode ser realmente escrita. Mas
este é um primeiro capítulo fascinante numa história que, suspeita-se, continuará
a interessar as pessoas por muito tempo.

Londres, 1º de fevereiro de 2011


ALAN RUSBRIDGER, EDITOR DO THE GUARDIAN
1
A caça
Ellingham Hall, Norfolk, Inglaterra
NOVEMBRO DE 2010

“Você não imagina como ele estava ridículo.”


J WIKILEAKS
– AMES BALL,

OLHANDO À MEIA-LUZ da noite londrina, aquela silhueta poderia passar por uma
mulher. Ela apareceu cautelosamente na entrada e curvou-se para dentro de um
carro vermelho batido. Havia alguns acompanhantes, entre eles um homem de
traços nórdicos com expressão séria e dois jovens com cara de nerd. Um deles
pareceu ter entregado um casaco à senhora. O carro passou pelo tráfego
tranquilo de Paddington e rumou para o norte, na direção de Cambridge.
Enquanto seguiam para a autoestrada M11, os ocupantes olhavam para trás. Não
havia sinais evidentes de estarem sendo seguidos, mesmo assim, de quando em
quando paravam no acostamento e esperavam, com as luzes apagadas, no escuro.
Aparentemente sem ser detectado, o grupo rumou na direção leste pela lenta
rodovia A143. Às dez horas da noite, já haviam chegado às planícies de East
Anglia, uma paisagem em tons de sépia em que uma fábrica de açúcar
abandonada se destacava na escuridão.
Cerca de 25 quilômetros para o interior, na desconhecida vila de Ellingham,
finalmente viraram à esquerda. O carro desviou para uma entrada de veículos e
passou por um antigo pombal, antes de parar em frente a uma mansão em estilo
georgiano. A mulher desceu do carro. Havia algo de estranho nela, tinha uma
espécie de corcunda. Se um agente da CIA ou outro observador estivesse
escondido no bosque com os faisões, também poderia ter experimentado um
momento de perplexidade.
Olhando de perto, no entanto, era óbvio que a estranha figura era Julian
Assange, com o cabelo platinado oculto por uma peruca. Com mais de 1,80
metro, dificilmente ele poderia se passar por uma mulher. “Você não imagina
como ele estava ridículo”, disse James Ball, membro da equipe. “Ele ficou
vestido como uma senhora por mais de duas horas!”
Assange decidira trocar de sexo numa tentativa teatral de fugir de possíveis
perseguidores. Com ele, também estavam sua jovem assistente, Sarah Harrison,
e o porta-voz do WikiLeaks, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson. Naquela
noite, essa pequena equipe era o núcleo do WikiLeaks, o website que Assange
criara havia quatro anos e que revelava informações confidenciais.
Em um curtíssimo período de tempo, o WikiLeaks saíra de sua posição
anterior – de website radical e obscuro – para se tornar uma plataforma de
notícias online conhecida mundialmente. Assange publicara material vazado
mostrando pilotos de helicóptero norte-americanos em pleno voo executando
dois funcionários da Reuters em Bagdá, aparentemente como se estivessem
jogando videogame. E outra proeza sucedera a esta, causando ainda mais
sensação: um acordo sem precedentes com os jornais – intermediado pelo The
Guardian, em Londres – para revelar centenas de milhares de relatórios de
campo secretos, redigidos por militares norte-americanos nas guerras do
Afeganistão e do Iraque – muitos deles incriminadores.
Assange, um australiano de 39 anos, era um hacker genial. Ele sabia ser
sedutor, fazer graça mantendo-se impassível e ainda ser espirituoso. Mas
também podia se enfurecer facilmente, explodindo em xingamentos e críticas. O
temperamento inconstante de Assange lhe rendia fãs e inimigos, defensores e
adversários, algumas vezes na mesma pessoa. Messias da informação ou
ciberterrorista? Defensor da liberdade ou sociopata? Protetor da moral ou
narcisista iludido? O debate em torno de Assange repercutiria nas semanas
seguintes em manchetes do mundo todo.
Assange e sua equipe tinham chegado a Ellingham vindos do Frontline Club,
um local frequentado por correspondentes estrangeiros e outros tipos dos
veículos de comunicação na parte oeste de Londres. Desde julho, com a
divulgação dos diários da Guerra do Afeganistão, Assange dormia, de vez em
quando, nas acomodações do clube, em Southwick Mews. O fundador do clube,
Vaughan Smith, tornara-se simpatizante e aliado, e convidara Assange e seu
grupo para se hospedarem em sua residência ancestral – Ellingham Hall –,
escondida num recanto afastado de East Anglia. E os improváveis refugiados
acabavam de chegar.
Smith fora capitão dos Granadeiros, um regimento de elite do exército
britânico, e decidira tornar-se repórter de televisão freelance na Frontline TV.
Suas aventuras em zonas de guerra – no Iraque, durante a primeira Guerra do
Golfo, onde se disfarçou de oficial do exército britânico; na Bósnia, com os
massacres e os horrores; no Afeganistão e novamente no Iraque – indicavam um
espírito de independência pouco ortodoxo. Smith não era um anarquista. Sua
família servira no exército britânico por várias gerações. E seu jornal preferido
era o mal-humorado e conservador periódico britânico Daily Telegraph. Smith
também era corajoso. Em Kosovo, uma bala mortal se alojou em seu telefone
celular, salvando-lhe a vida.
Mas, em comum com outros libertários de direita, ele tinha um obstinado
senso de justiça e acreditava em defender os mais fracos. Nesse caso, isso
significava o próprio Assange, que se tornara uma figura odiosa para a hostil
direita norte-americana. Eles o queriam preso. Alguns pediam sua cabeça. Smith
apoiou amplamente a cruzada de Assange por transparência num momento em
que – como ele mesmo percebera – o jornalismo se aproximava perigosamente
do governo e corria o risco de se tornar meras relações públicas.
Quando Assange se estabeleceu em Ellingham Hall para trabalhar, moravam
na mansão Pranvera Shema – a esposa de Smith, nascida em Kosovo – e seus
dois filhos pequenos, de 2 e 5 anos. Suas bicicletas estavam paradas do lado de
fora da imponente entrada da residência. Também se encontravam lá os
abastados pais de Vaughan. O pai também servira nos Granadeiros; um retrato
dele como jovem oficial numa túnica vermelha estava pendurado na sala de
jantar. Smith pai podia ser visto segurando uma bolsa branca, uma discreta
referência a sua carreira como mensageiro da rainha. A função incluía viajar pelo
mundo a serviço dos negócios de Sua Majestade, carregando segredos
diplomáticos. Parecia claro que Smith pai desaprovava Assange, que, acreditava-
se, estava na posse de um número assustadoramente grande de mensagens
diplomáticas secretas.
Smith pai responsabilizava-se pela patrulha da propriedade – com seus lagos
gêmeos e seus cedros – armado com um rifle, integrado a uma mira camuflada.
Normalmente, ele atirava em perdizes e tetrazes. No entanto, atirar nos
paparazzi que em breve acampariam do lado de fora da mansão – ou mesmo nos
radicais sujos dentro dela – deve ter sido uma enorme tentação. Ao lhe
perguntarem, dois dias antes do Natal, se ele estava gostando de ser o anfitrião
dos informantes internacionais que se encontravam na residência, respondeu,
cerrando os dentes: “Preferia que não estivessem aqui”. Essa foi uma das muitas
ironias que apimentariam semanas tensas.
Entre os WikiLeakers em Ellingham estava James Ball, de 24 anos, que fora
recrutado por Assange e era um dos poucos colaboradores que recebia salário. O
talento de Ball era lidar com grandes conjuntos de dados. Ele era um jovem
tranquilo, mas estava passando por uma experiência vertiginosa. Em poucos
meses, deixara o trabalho como repórter da revista especializada em varejo
Grocer para se tornar porta-voz do WikiLeaks e até discutir com o diplomata
norte-americano John Negroponte no programa televisivo Hardtalk, da BBC
World. A primeira tarefa de Ball era urgente: dirigir-se até Norwich, a
aproximadamente 25 quilômetros dali, e ir a uma filial da loja de departamentos
John Lewis em busca de equipamento técnico. Ele saiu, carregando milhares de
libras em dinheiro (a moeda de troca preferida de Assange), e voltou com vários
laptops, um roteador e alguns cabos – deixando um confuso vendedor atrás de si.
“Você já tentou gastar mil libras em dinheiro na John Lewis? Sinceramente, o
vendedor parecia apavorado diante das notas de cinquenta libras”, ponderou
Ball. “Foi uma experiência surreal!”
A equipe começou a montar uma identidade anônima na internet. A conexão
fora pensada para dar a impressão eletrônica de que a equipe do WikiLeaks,
instalada na Inglaterra rural, estava, na verdade, estabelecida na Suécia. A
preocupação com a segurança era crucial: acreditava-se que o WikiLeaks era um
alvo permanente da vigilância norte-americana e de ciberataques potencialmente
prejudiciais. Nos deslocamentos fora da mansão, a equipe se valia das mesmas
técnicas de contravigilância empregadas durante a viagem a Norfolk. Isso era
prudente. Mas também significava que, algumas vezes, Ball era deixado horas a
fio parado em estradas secundárias e outros pontos de encontro gelados,
aguardando uma carona.
Protegido em uma grande sala de estar decorada com uma lareira e mais
retratos dos ancestrais de Vaughan Smith, Assange tinha muito trabalho a fazer.
Normalmente, ele passava de dezesseis a dezoito horas por dia diante do laptop,
e algumas vezes ficava acordado por 48 horas antes de dormir no chão. Outros
membros da equipe do WikiLeaks o acordavam e o levavam até os quartos do
andar de cima. Ele dormia por algumas horas e depois continuava. O ciclo de
Assange era noturno, e ele costumava estar no auge entre três e quatro horas da
manhã.
“Era mais fácil fazer as coisas à noite, quando, algumas vezes, você podia ter
a atenção de Julian. Ele é capaz de ignorar alguém durante cinco minutos,
mesmo se o estiverem chamando: ‘Julian! Julian!’”, declarou Ball. Outros
associados do WikiLeaks – Sarah Harrison e Joseph Farrell, ambos estagiários
de jornalismo – cuidavam dos e-mails e da agenda dele.
Assange considerava sua função a de um coordenador. Sua tarefa era
monitorar a vasta pegada do WikiLeaks no ciberespaço e entrar em contato com
os colaboradores da organização em outras jurisdições e fusos horários. Como
observou Smith: “Ele é obcecado pelo trabalho. Julian precisa entender o que
está sendo escrito sobre o WikiLeaks e a história. E ele descreve isso como
monitoramento da temperatura”.
À direita da lareira, havia um impressionante retrato do trisavô de Vaughan
Smith – o “Tiger” Smith. Ele conquistara o apelido depois de matar 99 tigres,
trazendo muitos deles consigo para Ellingham Hall. Dois animais empalhados
estavam em caixas de vidro; outros haviam sido descartados depois de
apodrecer. O saguão de entrada era decorado com sabres cruzados, rifles antigos
com baionetas e outras recordações de conflitos coloniais esquecidos. Havia uma
cabeça de cervo empalhada, um par de galhadas e uma enorme pintura
representando dois cervos indo furiosamente ao encontro um do outro, sobre um
estranho pano de fundo pistache. Se um diretor de cinema americano quisesse
selecionar a construção rural inglesa perfeita para um filme de época,
dificilmente escolheria lugar melhor que Ellingham.
A equipe do WikiLeaks rapidamente se adaptou aos rituais da vida rural
inglesa. Ellingham Hall tinha uma governanta; havia uma cozinha com uma
mesa central quadrada, onde os empregados faziam as refeições; pedaços de
carne e salsichas ficavam empilhados numa caixa de papelão. A propriedade
tinha uma plantação orgânica (cuja produção também era servida no restaurante
do Frontline Club, em Londres). Vaughan Smith tinha uma adega razoável – o
conteúdo fora selecionado pelo antigo crítico de vinhos do The Guardian,
Malcolm Gluck. Na hora das refeições, Assange e seus colaboradores sentavam-
se na esplêndida sala de jantar, a uma respeitável mesa circular. E tomavam
vinho do Porto – passado para o lado esquerdo pelos ciber-radicais, de acordo
com a convenção inglesa. Assange insistia que ninguém bebesse mais de uma
taça por noite, forçando os companheiros a fazer acordos com o pessoal da
cozinha.
Os hábitos de Assange eram ascéticos – ele quase não se preocupava com o
que comia. Seu alheamento estendia-se ao guarda-roupa. Ele parecia não ter
roupas próprias. Em determinado momento, a equipe do WikiLeaks decidiu que
Assange precisava sair de sua proteção e fazer um pouco de exercício.
Compraram-lhe uma camiseta vermelha da Adidas. Uma vez ao dia, Assange
deveria correr no parque público – um lampejo de luminosidade numa paleta de
cores rurais, com marrons e verdes. Em pouco tempo, Smith converteria
Assange nas tonalidades mais suaves de um cavalheiro rural, emprestando-lhe a
parca verde e o casaco de tweed com bolsos assimétricos que usara como um
alinhado jovem de 19 anos. Assange também tentaria pescar.
No mundo exterior, poucas pessoas imaginariam o que realmente estava
acontecendo no interior das elevadas janelas salientes de Ellingham Hall.
Assange decidira se esconder como uma raposa porque estava preparando, com
o The Guardian e quatro outros grandes jornais internacionais, a publicação do
mais espetacular vazamento da história. Ele confidenciou que estava um pouco
assustado. Jamais houvera algo assim, nem mesmo os Papéis do Pentágono – a
publicação do relatório secreto sobre a guerra norte-americana no Vietnã –,
quase quarenta anos antes. Em determinado momento, a caçada local soou pelas
dependências de Ellingham Hall: cães e caçadores precipitavam-se pelos
bosques de Spion Kop. Era esse o tipo de caçada na qual Assange sentia que
estava metido. Seria ele também um animal perseguido, com promotores
públicos e agentes da inteligência norte-americana cavalgando ao som de uma
corneta e aproximando-se cada vez mais, como os caçadores de casaco
vermelho?
2
Bradley Manning
Estação Operacional de Contingências Hammer,
65 quilômetros a leste de Bagdá, Iraque
NOVEMBRO DE 2009

“Eu deveria ter deixado o telefone em casa.”

– LADY GAGA

DEPOIS DE SER castigado pelo calor do verão, a temperatura no mês de


novembro era quente e agradável no Iraque. Mas, para os homens e mulheres
que serviam no Campo Hammer, no meio do deserto de Mada’in Qada, o ar
estava sempre denso, com a poeira e a sujeira levantada pelos comboios de
caminhões que abasteciam a capital – uma lembrança constante de que estavam
muito distantes de casa. Entre eles, estava o especialista Bradley Manning, que
fora enviado ao Iraque com a 2ª Brigada de Combate, 10ª Divisão de Montanha,
poucas semanas antes. Prestes a completar 22 anos, ele era a antítese do soldado
norte-americano endurecido pela batalha e amado por Hollywood. De olhos
azuis e cabelos louros, o rosto redondo e um sorriso infantil, media 1,57 metro e
pesava 47 quilos.
Mas ele não fora enviado ao Iraque por causa de seus atributos físicos. Ele
estava lá por seu talento para manipular computadores. Na função de analista de
inteligência, Manning passava longos dias na sala de informática da base,
examinando cuidadosamente informações confidenciais. Para um soldado tão
jovem e relativamente inexperiente, era um trabalho extremamente delicado.
Mas, desde o primeiro dia em Hammer, ele ficara impressionado com a falta de
segurança. A porta era trancada com uma fechadura de código de cinco dígitos,
mas bastava dar um empurrão e era possível entrar. Os outros colegas da
inteligência pareciam entediados e desiludidos com o trabalho pesado de catorze
horas por dia, sete dias por semana. Eles apenas sentavam nas estações de
trabalho e viam videoclipes ou filmagens de perseguições automobilísticas.
“Depois de três semanas, as pessoas paravam de se preocupar”, observou
Manning.
Após alguns meses, Manning tornara-se bastante crítico em relação à cultura
da base. “Servidores ruins, registros ruins, segurança física ruim,
contrainteligência ruim, análise de sinal negligente... Uma perfeita tempestade”,
escreveria mais tarde.
Aproximando-se do oficial da Agência de Segurança Nacional responsável
pela proteção dos sistemas de informações, perguntou-lhe se era possível
localizar o envio de arquivos suspeitos a partir de redes locais. O oficial deu de
ombros e disse: “Isso não é prioridade”.
Era uma cultura que, como Manning descreveu mais tarde, “alimentava
oportunidades”. Para ele, essas oportunidades se apresentaram sob a forma de
dois laptops militares, cada um deles com acesso privilegiado a segredos de
Estado norte-americanos. O primeiro estava conectado à Secret Internet Protocol
Router Network (Rede de Roteadores do Protocolo Secreto de Internet)
(SIPRNet), utilizada pelo Departamento de Defesa e pelo Departamento de
Estado para compartilhar informações de modo seguro. O segundo permitia
acesso ao Joint Worldwide Intelligence Communications System (Sistema
Conjunto de Comunicações de Inteligência Mundial) (JWICS), que atua como
uma espécie de funil mundial para mensagens confidenciais.
Espanta o fato de que um soldado raso pudesse ter acesso aparentemente
irrestrito a essa enorme fonte de material confidencial. E que pudesse fazê-lo
praticamente sem supervisão ou salvaguardas, no interior da base, é mais
impressionante ainda. Ele passava horas examinando documentos e vídeos
altamente confidenciais, usando fones de ouvido e fingindo cantar Lady Gaga.
Quanto mais lia, mais alarmado e perturbado ficava, chocado com o que
considerava duplicidade e corrupção oficiais do próprio país. Tratava-se de
vídeos que mostravam o ataque aéreo de um helicóptero equipado com
metralhadoras a civis desarmados no Iraque, relatos de mortes de civis e
acidentes causados por “fogo amigo” no Afeganistão. E havia uma quantidade
gigantesca de telegramas diplomáticos revelando segredos de todo o mundo, do
Vaticano ao Paquistão. Ele começou a ficar impressionado com o tamanho do
escândalo e da intriga que estava descobrindo. “Há muita coisa”, escreveu
depois. “E isso afeta a todos no planeta. Onde quer que haja um posto norte-
americano, há um escândalo diplomático a ser revelado. É lindo e assustador.”
Não demorou muito para que ele começasse a pensar no que podia fazer em
relação a isso. “Se você tivesse um acesso sem precedentes a redes sigilosas
durante catorze horas por dia, sete dias por semana, por mais de oito meses, o
que faria?”
O que ele fez foi pegar o CD regravável com as músicas de Lady Gaga e
apagá-lo, copiando, em seguida, outro tipo de material digital – muito mais
perigoso. Assim, estava prestes a embarcar numa jornada que levaria ao maior
vazamento de segredos diplomáticos e militares na história norte-americana.

Crescent, em Oklahoma, é uma planície distante dos grandes centros urbanos,


assim como o deserto de Mada’in Qada. Mas a semelhança entre os dois lugares
para por aí. Crescent é uma cidadezinha no meio de uma área rural, cerca de 55
quilômetros ao norte de Oklahoma City, onde o horizonte é dominado por uma
imensa pilha de grãos brancos. “É uma comunidade muito conservadora e
fechada”, disse Rick McCombs, diretor recentemente aposentado da escola
secundária de Crescent.
Bradley Manning nasceu em 17 de dezembro de 1987 e passou os treze
primeiros anos de vida em Crescent, usufruindo da convivência de cidade
pequena, mas sofrendo com a mentalidade estreita que a acompanhava. Ele
morava nos arredores da cidade, num sobrado, com Brian, o pai americano,
Susan, a mãe galesa, e Casey, a irmã mais velha. Os pais se conheceram quando
Brian serviu na Marinha norte-americana, na base de Cawdor Barracks, no
sudoeste do País de Gales.
Desde pequeno, Bradley apresentava as duas qualidades que o destacariam
das outras crianças e o conduziriam à via que terminaria – de modo trágico para
ele – numa cela trancada na base da Marinha em Quântico, na Virgínia. Ele tinha
a mente extremamente curiosa e a tendência a questionar a atitude dominante. O
diretor McCombs recorda-se que Bradley não apenas tocava bem saxofone na
banda da escola como também pertencia à equipe de competição de
conhecimentos gerais, com crianças muito mais velhas. “Ele era muito, muito
inteligente. E também muito teimoso, mas apenas até certo ponto. Nunca se
meteu em encrencas nem sofreu nenhuma punição por qualquer motivo”,
afirmou.
Manning demonstrara desde cedo paixão por jogos de computador, jogando
Super Mario Bros com um vizinho. Tinha também espírito extremamente livre.
Era um dos poucos habitantes de Crescent que manifestavam abertamente
dúvidas sobre religião – o que não era uma posição fácil para uma criança
nascida em uma comunidade cristã devota, com nada menos que quinze igrejas.
Ele se recusava a fazer os deveres de casa relacionados à Bíblia e se calava
durante a referência a Deus no juramento de lealdade à bandeira e à República
norte-americana. Crescent, disse Manning uma vez, tinha “mais bancos de igreja
que habitantes”.
Do pai, que passara cinco anos na Marinha trabalhando com sistemas de
computador, Bradley herdou importantes qualidades: o fascínio por tecnologia
de ponta, o patriotismo e a crença fervorosa no serviço militar, que o
acompanhariam, apesar do tratamento desgastante que experimentaria mais tarde
nas mãos da polícia militar. Em uma das poucas declarações que pôde fazer
desde a prisão, em maio de 2010, Manning publicou uma mensagem na véspera
do Natal desse mesmo ano, na qual pedia a seus defensores que aproveitassem a
ocasião “para se lembrar daqueles que estão separados dos entes queridos nessa
época, em virtude da preparação das tropas e de missões importantes”. Chegou a
pensar até nos carcereiros nas instalações de confinamento em Quântico, “que
passarão o Natal longe da família”.
O pai era um homem rigoroso. Vizinhos contam que a severidade de Brian
contribuiu para a crescente introversão e reserva de Bradley. Essa introversão se
agravou com a puberdade e a descoberta de que era gay. Aos 13 anos, Manning
comentou sobre sua sexualidade com alguns dos amigos mais íntimos na escola
de Crescent.
A entrada na puberdade foi uma fase turbulenta. Em 2001, quando Manning
estava começando a assumir a homossexualidade, o pai chegou em casa e
anunciou que deixaria a mãe. Em poucos meses, a vida de Manning em Crescent
lhe foi arrancada, os amigos afastados, e o cotidiano transplantado para mais de
seis mil quilômetros de distância, em Haverfordwest, no sudoeste do País de
Gales, para onde sua mãe decidira voltar após a triste separação.
No País de Gales, Manning teve de se acostumar à nova escola secundária, a
Tasker Milward, que, com cerca de 1.200 alunos, era do tamanho de sua antiga
cidade. E ele era o único estudante americano.
“Ele era um alvo fácil de bullying, por ser um pouco diferente. Os alunos
costumavam imitar seu sotaque e seus maneirismos”, lembra Tom Dyer, amigo
de Manning na Tasker Milward. “Ele não era o menino mais alto ou mais
atlético, e o pessoal ria dele. Algumas vezes, ele respondia às provocações e
revidava.”
Talvez na tentativa de restaurar sua autoestima, ele se apaixonou cada vez
mais por computadores e novidades tecnológicas. Na hora do almoço, ia para o
laboratório de computação da escola, onde criou um website.
“Ele estava sempre fazendo alguma coisa, sempre indo para algum lugar,
sempre com um plano de ação”, diz Dyer. “E se irritava se as coisas saíam
errado. Sua mente estava sempre trabalhando. Isso fazia com que ele parecesse
um pouco esquisito e hiperativo.”
Dyer também lembra que, aos 15 anos, Manning começou a desenvolver uma
clara percepção política, a qual, apesar do patriotismo arraigado, era cada vez
mais crítica em relação à política externa dos Estados Unidos. Quando a invasão
do Iraque aconteceu, em março de 2003, eles tiveram longas conversas sobre o
assunto, e Manning costumava dizer que tudo tinha a ver com petróleo e que
George Bush não tinha o direito de estar lá.
Essa sensibilidade política se desenvolveu mais ainda quando, ao concluir a
escola, aos 17 anos, ele voltou para Oklahoma para viver com o pai. Arrumou
emprego numa empresa de software de compartilhamento de fotos chamada
Zoto.
“Ele chamava atenção por ser mais inteligente que os garotos de sua idade”
recorda-se o patrão de Manning na Zoto, Kord Campbell. “Estávamos em plena
era Bush, e ninguém no mundo dos softwares gostava do presidente. E Brad
mantinha suas opiniões políticas, o que era incomum para um garoto.”
Campbell diz que o funcionário era inteligente e aprendia muito rápido. Mas o
lado inconformista de Manning também estava se tornando mais evidente. “Ele
era esquisito, não resta dúvida. Era muito esquisito mesmo.” Em algumas
ocasiões, Campbell lembra-se de Manning com o que ele descreve como um
“olhar perdido”: “Ele ficava em silêncio, não falava nem parecia me
reconhecer”. Depois de quatro meses, preocupado com o fato de que os
problemas pessoais de Manning estivessem afetando seu trabalho, Campbell o
demitiu.
Depois de descobrir que Bradley era homossexual, Brian Manning o expulsou
de casa. Sem lar e sem emprego, Bradley perambulou por alguns meses,
passando de um lugar a outro, de um bico a outro. Como observa Jeff Paterson,
membro do Comitê Diretor da Rede de Apoio a Bradley Manning: “Ele
precisava de um modo de se afirmar, de aprender a se virar, de se estabelecer”.
Após alguns meses sem um objetivo definido, a solução apareceu diante dele:
Bradley seguiria os passos do pai e serviria nas Forças Armadas norte-
americanas. Ele se alistou em outubro de 2007 e realizou o treinamento
especializado para trabalhar na inteligência militar no Forte Huachuca, no
Arizona. Depois da formatura, em agosto de 2008, foi destacado para o Forte
Drum, ao norte de Nova York, enquanto aguardava o envio para o Iraque, de
posse da habilitação de segurança que lhe daria acesso aos dois bancos de dados
confidenciais.
Para alguém que buscava um sentido na carreira militar, a experiência de vida
vestindo o uniforme foi decepcionante, algumas vezes. Ele reclamava por ser
“frequentemente ignorado”: “Eles só se lembravam de mim quando eu tinha algo
indispensável [...] Depois, voltavam ao ‘traga-me um café, varra o chão’. Eu me
sentia como um burro de carga”. Em outra ocasião, ele escreveu no Facebook:
“Bradley Manning não é uma peça de máquina”.
Além de se sentir como um escravo, ainda havia a política do Don’t Ask
Don’t Tell (Não pergunte, não conte) – o infeliz compromisso proposto pela
administração Clinton, no ano de 1993, que permitia que homossexuais
servissem nas Forças Armadas desde que não saíssem do armário. Embora
Manning estivesse consciente das restrições ao se alistar, rapidamente essa
política passou a irritá-lo e angustiá-lo. Repetindo suas explosões ocasionais na
escola Tasker Milward, às vezes ele dava mostras de sua frustração e por pouco
não infringiu a parte sobre “não contar” da fórmula.
A frase que incluiu em seu perfil do Facebook deixava claro: “Goste de mim
pelo que sou ou encare as consequências”. Essa abordagem extravagante se
manifestou durante as primeiras semanas de serviço no Forte Drum, quando ele
compareceu a uma passeata de protesto contra a Proposição 8, da Califórnia, que
vetava casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Muito se discutiu, desde a prisão de Manning, sobre o papel que sua
sexualidade desempenhou nos eventos que levaram às divulgações massivas do
WikiLeaks. Sugeriu-se que ele estaria considerando uma mudança de sexo, com
base em algumas observações que fez durante uma conversa online com o
hacker Adrian Lamo, pouco antes da prisão. Num dos comentários, Manning diz
a Lamo que “não me importaria de ir para a prisão para o resto da vida ou ser
executado [...] se não fosse pela possibilidade de ter fotografias minhas [...]
espalhadas pela imprensa mundial [...] como menino”. Em outro momento, ele
reclama que sua CPU, ou unidade central de processamento, “não foi feita para
esta placa-mãe”, uma análise usando a linguagem dos computadores que foi
considerada por algumas pessoas como a queixa de um homem angustiado por
um cérebro que ele sentia não ser adequado à estrutura masculina.
Mas essas especulações não têm fundamento e foram criticadas por diversas
pessoas, que as consideraram um ataque implícito à credibilidade dos
homossexuais nas Forças Armadas. Timothy Webster é um dos que
ridicularizam a correlação entre a sexualidade de Manning e o vazamento de
segredos de Estado. Ex-agente especial de contrainteligência do Exército dos
Estados Unidos, Webster teve um papel importante na história de Manning. Foi
ele quem intermediou o contato entre Lamo – o hacker com quem Manning
trocava confidências – e os militares, depois que Lamo decidiu se tornar um
informante e denunciar Manning às autoridades.
Webster, que também é gay, observa: “Um pequeno, mas barulhento grupo de
pseudointelectuais tentou usar o caso Manning como impulso para impedir que
os homossexuais sirvam nas Forças Armadas. Mas a ideia de que esse caso possa
estar de algum modo relacionado à sua sexualidade é categoricamente absurda.
Milhares de homossexuais e bissexuais servem com honras, e sugerir que sua
sexualidade os torna menos capazes de defender o país é uma bobagem
preconceituosa”.
Mas a sexualidade de Manning foi importante em pelo menos um aspecto. Sua
reação à política do Don’t Ask, Don’t Tell e a disposição de combatê-la de modo
semiaberto eram um presságio do que vinha pela frente. Muitos homossexuais
nas Forças Armadas consideravam que, desde que trabalhassem em silêncio pela
reforma da política no interior da própria instituição, não estariam
desrespeitando uma ordem. Mas Manning era muito firme em suas convicções –
alguns diriam “muito impetuoso” – para aceitar uma regra que considerava
injusta. Como Jeff Paterson afirma: “Ele estava disposto a encarar a punição e a
ridicularização dentro do Exército para combater algo que sabia estar errado”.
A outra razão pela qual a sexualidade de Manning pode ser relevante é
secundária – foi por intermédio do primeiro namorado que ele conheceu o
mundo dos hackers de Boston. O namorado em questão era Tyler Watkins, um
autoproclamado músico clássico, cantor e drag queen. Eles se conheceram no
outono de 2008, quando Manning estava servindo no Forte Drum, e deviam ser
um casal curioso: o extravagante e comunicativo Watkins e o taciturno e sensato
Manning. Mas, a julgar pelas atualizações do Facebook, o soldado estava
apaixonado pela drag queen: Bradley Manning “está aconchegado na cama
hoje”; “é um coelhinho feliz”; “está no alojamento sozinho. Tyler, estou com
saudades!”.
Watkins estuda neurociência e psicologia na Universidade Brandeis, nos
arredores de Boston. Manning frequentemente fazia a viagem de pouco mais de
480 quilômetros desde o Forte Drum para vê-lo e, com isso, acabou conhecendo
a extensa rede de amigos de Watkins, da Brandeis, da Universidade de Boston e
do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) – o berço das novidades
tecnológicas, descrito como a “Mesopotâmia da cultura hacker”. Para Manning,
era a entrada em um modo completamente novo de pensar, muito distante do
conservadorismo de cidade pequena de Crescent ou do rigor fardado do Forte
Drum.
Característico das novas atitudes que ele estava explorando era o “espaço
hacker” ligado à Universidade de Boston, que conheceu em janeiro de 2010,
quando estava de licença nos Estados Unidos, visitando Watkins. Conhecido
como Builds, é uma espécie de versão tecnológica do século XXI de um coletivo
de artistas dos anos 60. Os participantes se reúnem para trabalhar em um grande
número de projetos, desde criar um rato-robô vermelho até projetar um sistema
para registrar as distâncias percorridas pelos atletas na pista de corrida ou estudar
como abrir trancas de portas (apenas nas próprias casas). É um misto de oficina
de informática, laboratório eletrônico e local do tipo “faça você mesmo”. O que
une essas atividades variadas é a cultura hacker, que todos apoiam.
David House, aluno da Universidade de Boston e criador do espaço hacker,
afirma que ser hacker não é uma atividade obscura ligada à pirataria e à invasão
de computadores, como normalmente se imagina. Antes, é um modo de ver o
mundo. “Trata-se de compreender o ambiente em que agimos, separá-lo e, em
seguida, expandi-lo e recriá-lo. Para isso, é decisiva a ideia de que a informação
deve ser livre, combinada com uma profunda desconfiança em relação à
autoridade.”
House cita um livro – Hackers: Heroes of the Computer Revolution [Hackers:
os heróis da revolução informática], de Steven Levy – que narra o surgimento de
uma “ética hacker” no MIT: “Os hackers acreditam que lições importantes sobre
o mundo podem ser aprendidas ao separar as coisas, ver como funcionam e usar
esse conhecimento para criar coisas novas e ainda mais interessantes”, escreve
Levy. “Eles se sentem agredidos por qualquer pessoa, barreira física ou lei que
tente impedi-los de fazer isso. Todas as informações devem ser livres. Se você
não tem acesso às informações de que precisa para melhorar as coisas, como
pode consertá-las?”
House lembra o encontro com Manning na inauguração do espaço hacker, em
janeiro de 2010. Eles tiveram uma rápida conversa, em que Manning não falou
nada incomum. “Ele não me pareceu uma pessoa que depois seria acusada de
agir contra o governo dos Estados Unidos”, House afirma.
Essa foi a única ocasião em que eles se encontraram antes da prisão do
soldado. Desde então, porém, House iniciou uma importante amizade com ele,
tornando-se uma das duas únicas pessoas (a outra é o advogado de Manning,
David Coombs) que podem visitá-lo em Quântico. Ao longo de diversas visitas,
House desenvolveu uma compreensão mais íntima do que move Manning. “Ele
pensa de modo muito profissional. Conversar com ele é como beber com um dos
velhos professores da faculdade. Ele tem um grande interesse no que fundamenta
o poder, nos sistemas subjacentes, de um modo abstrato. Por isso se adaptou tão
bem à cultura hacker de Boston, que segue a mesma linha acadêmica.”
A outra qualidade que despertou a atenção de House é o que ele chama de
“elevada integridade moral” de Manning: “Ele sempre traça uma linha ética
firme. Existem coisas que considera direitos humanos básicos e que acredita ser
invioláveis”.
Um desses fundamentos invioláveis em que Manning evidentemente
acreditava era o valor da informação livre para a sociedade democrática. Como
afirmou em suas conversas via web com Lamo, “a informação deveria ser livre.
Ela pertence ao domínio público. Se ela é divulgada [...] deve ser um bem
público [...]. Quero que as pessoas vejam a verdade [...] independentemente de
quem são [...] porque, sem informação, você não pode tomar decisões bem
fundamentadas como público”. Uma declaração que poderia ter saído do manual
dos hackers de Boston.
Essa foi uma crença que entrou em jogo com muita força quando Manning
estava decidindo o que fazer com a imensa coleção de segredos de Estado a que
teve acesso no Iraque. Para a maioria dos soldados, a resposta à questão seria
absolutamente simples: agir de acordo com a confidencialidade que lhe fora
atribuída e continuar o trabalho. Mas, para Manning, era mais complicado que
isso. Na mesma viagem a Boston em que visitou o espaço hacker de House, ele
conversou com Tyler Watkins sobre seu dilema. Watkins declarou ao website
Wired.com: “Ele queria fazer a coisa certa. Acho que era algo com o qual ele
estava se debatendo”.

Nos sete meses que passou na Estação Operacional de Contingências


Hammer, no Iraque, houve um momento decisivo que parece ter despertado a
raiva de Manning. Discutia-se o futuro de quinze iraquianos, detidos pela força
policial nacional do Iraque sob a acusação de imprimirem “literatura anti-
iraquiana”. A polícia se recusava a trabalhar com as Forças Armadas norte-
americanas no caso, e o trabalho de Manning era investigar e descobrir quem
eram os “malvados”. Ele pegou o folheto que os homens detidos estavam
distribuindo e pediu que fosse traduzido para o inglês. E ficou surpreso ao
descobrir que, na verdade, era uma crítica acadêmica ao primeiro-ministro
iraquiano, Nouri al-Maliki, que associava a corrupção dominante ao gabinete do
político.
“Imediatamente peguei aquela informação e fui até o oficial explicar o que
estava acontecendo”, falou Manning depois. “Mas ele não quis me ouvir [...].
Disse para eu calar a boca e explicar como poderíamos ajudar a polícia
[iraquiana] a arranjar mais detidos.”
Manning observou que, desde então, “tudo começou a desmoronar”.
“Comecei a ver tudo de modo distinto [...]. Sempre questionei o modo como as
coisas funcionavam e investiguei para descobrir a verdade [...] mas, dessa vez,
era uma questão na qual eu tomava parte e estava ativamente envolvido, sendo
radicalmente contra.”
Lentamente, Manning avançava rumo à posição que muitos denunciariam
como traidora e abominável, enquanto outros louvariam como corajosa e
heroica. Ele começou a pensar em explorar as bases de dados secretas às quais
tinha acesso e lançá-las de modo espetacular ao domínio público. “É importante
que isso seja conhecido [...] Por alguma razão estranha”, disse, “acho que isso
pode realmente mudar as coisas.”
Mas, primeiro, ele precisava de um canal, de um modo seguro através do qual
transmitir a informação copiada nos CDs de Lady Gaga. Enquanto decidia que
meios usar, sua atenção foi atraída por um exercício feito pelo WikiLeaks no Dia
de Ação de Graças de 2009, cerca de um mês depois do início do serviço militar
no Iraque. Durante 24 horas, o WikiLeaks publicou mais de quinhentas mil
mensagens de pagers, interceptadas no dia dos ataques de 11 de setembro de
2001 em Nova York e Washington, na ordem em que haviam sido enviadas. Elas
ofereciam uma imagem extraordinária de um dia extraordinário. Manning ficou
ainda mais impressionado porque, com seu conhecimento, sabia que o
WikiLeaks conseguira as mensagens anonimamente de uma base de dados da
Agência de Segurança Nacional. E isso fez com que ele se sentisse à vontade
para oferecer o material ao WikiLeaks, sem medo de ser identificado.
A busca por um canal através do qual descarregar a montanha de material
confidencial foi bem-sucedida. Poucos dias depois do impressionante WikiLeaks
11/9, Manning deu o primeiro grande passo. Fez contato com um homem que
descreveu como “um australiano maluco de cabelo branco que não parece
conseguir ficar no mesmo país por muito tempo”. Agora, a bola estava com
Julian Assange.
3
Julian Assange
Melbourne, Austrália
DEZEMBRO DE 2006

“Dê-lhe uma máscara e ele lhe dirá a verdade.”

– OSCAR WILDE

O ESTRANHO AUSTRALIANO que publicou seu perfil no site de encontros


OKCupid usava o nome “Harry Harrison”. Ele tinha 36 anos, 1,88 metro e,
segundo um teste do site, era “87% galinha”. Ele começou assim:
ATENÇÃO: Quer um cara normal, com os pés no chão? Melhor seguir adiante. Não sou o robô que
você procura. Não perca seu tempo, antes que seja tarde demais. Sou um cara apaixonado e um
intelectual ativista muitas vezes cabeça-dura, que procura uma sereia para romance, filhos e
conspiração criminosa ocasional. Procuro uma mulher divertida e alegre, muito inteligente, embora
não precise ter recebido educação formal, que tenha coragem, classe & força interior e seja capaz de
pensar estrategicamente sobre o mundo e as pessoas com quem se importa.
Gosto de mulheres de países que viveram agitações políticas. A cultura ocidental parece forjar
mulheres vazias e sem valor. Ok, não apenas mulheres!
Embora eu seja bastante combativo intelectual e fisicamente, sou muito protetor em relação a
mulheres e crianças.
Sou um PERIGO, ACHTUNG* e ??????????????!

“Harry” continuou, dizendo que dirigia um “projeto desgastante e perigoso de


direitos humanos, dominado, como se pode imaginar, por homens”. E que
também sofria com “adolescentes asiáticas que o perseguiam”. À pergunta sobre
o que “não poderia faltar”, respondeu: “Eu poderia me adaptar a qualquer coisa,
menos à perda de companhia feminina e de carbono”. O perfil advertia: “Não me
escreva se você é tímida. Sou muito ocupado. Escreva-me se você for corajosa”.
As atividades declaradas de Harry eram extraordinárias. Ele se descrevia
como “envolvido profissionalmente, em diversos níveis, com jornalismo
internacional/livros, documentários, criptografia, atividades de inteligência,
direitos civis, ativismo político, crimes de colarinho-branco e internet”. A galeria
de fotos apresentava um homem de pele clara, traços marcantes e cabelos
prateados desgrenhados. Em algumas, ele tem um meio sorriso; em outras, fita a
objetiva da câmera.
Harry Harrison era um pseudônimo, e a pessoa por trás da máscara era Julian
Assange, um hacker que vivia numa república lotada em Melbourne, sonhando
com um esquema para uma revolta idealista de informação que mais tarde seria
mundialmente celebrada – e execrada – como o WikiLeaks. Assange tinha uma
personalidade surpreendente e, segundo alguns críticos, perturbada. Ele a exibia
no perfil do site de encontros, mas ela provavelmente tinha raízes profundas na
infância e na juventude, vividas na Austrália.
A obsessão por computadores e a compulsão por viagens parecem ter origem
na agitada infância. Assim como, provavelmente, os comentários feitos por
algumas pessoas de que ele habitava alguma parte do espectro autista. O próprio
Assange brincava quando perguntavam se ele era autista: “E não o são todos os
homens?” O humor sarcástico o tornava atraente – talvez até demais – para as
mulheres. Além disso, tinha uma inteligência extremamente analítica. Em outra
encarnação, poderia ter sido, talvez, o bem-sucedido diretor executivo de uma
grande corporação.
Mas havia alguns defeitos que o OKCupid não podia captar. Às vezes,
Assange parecia carecer de habilidades sociais. O modo como seus olhos se
moviam pelo cômodo era curioso – um jornalista do The Guardian o descreveu
como “alternante”. E, ocasionalmente, ele se esquecia de tomar banho. Os
colaboradores que brigaram com ele – haveria uma longa lista deles – acusavam-
no de arrogância e desprezo insensível por quem ele desaprovava. Certamente,
quando o contradiziam, Assange podia ficar com muita raiva e seu humor podia
mudar de um momento para o outro. Mas, pelo menos em um aspecto, o perfil
do OKCupid, modificado pela última vez em 2006, mostrou-se, no fim das
contas, assustadoramente preciso. Quatro anos depois, em 2010, ninguém poria
em dúvida o fato de que Assange falava sério quando disse: “PERIGO,
ACHTUNG!”

Julian nasceu no dia 3 de julho de 1971, em Townsville, no estado de


Queensland, no norte subtropical da Austrália. A mãe, Christine, era filha de
Warren Hawkins, descrito por colegas como um acadêmico rígido e
tradicionalista, que se tornara diretor de uma faculdade. A família estabeleceu-se
na Austrália, vinda da Escócia, no século XIX. O pai biológico de Julian está
ausente de grande parte da história: aos 17 anos, Christine subitamente saiu de
casa, vendendo suas pinturas para comprar uma motocicleta, uma barraca e um
mapa. Cerca de 2.400 quilômetros dali, chegou a Sidney e juntou-se ao cenário
da contracultura. Segundo o livro Underground, um romance revelador baseado
em fatos reais, do qual Assange foi colaborador, sua mãe trabalhava como artista
e se apaixonou por um jovem rebelde que conhecera numa manifestação contra a
Guerra do Vietnã, em 1970. Era o pai de Julian. Mas a relação acabou, e ele
aparentemente não teria importância na vida do filho por muitos anos. Eles não
tiveram contato até Assange completar 25 anos.
Apesar disso, o pai não foi esquecido. Em 2006, no início de sua
extraordinária missão para revelar segredos de Estado, Julian registrou, segundo
os processos judiciais, o nome de domínio wikileaks.org sob a identidade do pai
biológico: John Shipton. Após o nascimento do filho, Christine se mudou como
mãe solteira para Magnetic Island, distante da baía de Townsville por uma curta
travessia de balsa. A ilha era primitiva e boêmia. Sua pequena população incluía
hippies que dormiam nas praias e em cavernas rochosas. As crianças da região
pescavam, nadavam e jogavam críquete com cocos, numa paisagem habitada por
coalas, gambás e moluscos gigantes. A Grande Barreira de Coral ficava próxima,
e os moradores da ilha eram ecopioneiros que cultivavam os próprios alimentos
e se serviam do que o mar lhes oferecia: peixes, pitus, caranguejos e lagostins.
Mais tarde, a mãe de Assange recordaria: “Aluguei uma casa na ilha a doze
dólares por semana, na Picnic Bay [...]. Eu vivia de biquíni, me tornei uma
nativa, com meu bebê e outras mães da ilha”. Ela se casou com Brett Assange,
ator e diretor de teatro. O sobrenome aparentemente deriva de Ah Sang,
supostamente um colono chinês do século XIX. O estilo de vida errante foi o
pano de fundo da infância de Assange. O padrasto encenava e dirigia peças,
segundo o livro Underground, e a mãe era responsável pela maquiagem, figurino
e cenografia. Ela também fazia apresentações de fantoche.
Em 2010, Assange descreveu as produções do padrasto como uma boa
preparação para o WikiLeaks, uma organização móvel que podia ser empacotada
ou desempacotada em questão de horas – “era algo que minha família fazia
quando mexia com teatro e cinema: ia para as locações, preparava tudo, reunia
as pessoas, organizava o lançamento da produção e – bang! – lá se iam todos de
novo!”
Assange tornou-se uma pessoa capaz de mudar de aparência: frequentemente
mudava o corte de cabelo e se vestia com roupas de outras pessoas. Num dia era
um camponês inglês; no outro, um pescador islandês ou uma velha senhora. Até
sua função no WikiLeaks parecia confusa: ele era um informante, editor,
jornalista ou um ativista? Quando o show acabava, ele seguia em frente.
Os Assange viveram por algum tempo numa fazenda de plantação de abacaxis
abandonada em Horseshoe Bay. Christine lembra que tinha de abrir caminho até
a porta da frente com um facão e afirma ter atirado numa taipan – uma cobra
mortal – no tanque de água. Royce Dalliston, que ainda mora em Magnetic
Island, lembra que Christine costumava nadar e pintar sob as figueiras-de-
bengala. Os outros meninos roubavam sobras de gordura culinária dos hotéis e a
esfregavam no telhado das cabanas do píer, para escorregar para a agitação
borbulhante das ondas do mar, sempre que a balsa chegava de Townsville.
Dalliston e os meninos maiores chamavam Assange de “framboesa”, porque o
“menino pequeno e magro de cabelos louros” parecia ter muito medo de pular do
píer. Mas Assange contou ao escritor de seu perfil na revista New Yorker, Raffi
Khatchadourian: “Eu tinha meu próprio cavalo. Construí minha própria balsa e
saía para pescar. Descia em poços de extração e em túneis”.
Em 1979, Christine voltou a morar próximo aos pais, em Lismore, no estado
de Nova Gales do Sul, onde os fazendeiros locais e os hippies coexistiam num
estado de incompreensão mútua. A cidade de Nimbin – que hospedava o Era de
Aquário, festival de música hippie de 1973 – ficava logo acima na estrada.
Christine vestia uma longa saia rodada e dirigia um Fusca verde. Os hippies
locais conseguiram interromper a exploração de uma das áreas remanescentes
das florestas tropicais virgens de Terania. Foi a primeira vitória do emergente
movimento ecológico australiano. Filmagens antigas da marcha mostram uma
jovem muito parecida com a mãe de Assange, vestindo macacão e andando com
dificuldade ao longo de uma trilha, acompanhada de um grupo de ativistas
barbudos e de pessoas que tocavam violão.
Christine não queria que o filho tivesse a educação convencional de Lismore,
um lugar tradicional, em que as mulheres eram proibidas, no clube local, de
deixar a área atapetada, exceto nas noites de dança. Jennifer Somerville, cujos
filhos frequentavam a pequena escola primária rural com Assange, se recorda:
“Ela era um tanto alternativa e não acreditava numa educação terrivelmente
formal. Aparentemente, decidiu que seria melhor se Julian frequentasse uma
pequena escola do interior”.
A permanência de dois anos ali foi um dos períodos mais regulares na
formação de Assange; segundo seus próprios cálculos, durante a infância ele
frequentou 37 escolas diferentes e saiu sem nenhuma qualificação. ”Algumas
pessoas ficam horrorizadas e dizem: ‘Coitadinho, você frequentou todas essas
escolas!’ Mas, na verdade, durante esse período eu realmente gostava disso”, ele
afirmou mais tarde. Os colegas de escola, no povoado de Goolmangar, lembram-
se do menino calmo e sociável. A inteligência excepcional e os cabelos louros
nos ombros chamavam atenção.
Um dos antigos colegas, Nigel Somerville, afirma que “sempre havia
fantoches pendurados na janela [...]. A mãe dele era muito talentosa. Durante
anos, tive uma pipa feita por ela. Era muito colorida, enfeitada com olhos
grandes em tons de laranja, vermelho e azul”. Ele e Julian conversavam sobre
rádios de galena e experimentavam desmontar as coisas. Em meio a esse
descontraído período anticonformista, havia momentos de paranoia. Em
Adelaide, quando Assange tinha 4 anos, o carro da mãe foi perigosamente
jogado para fora da estrada, após deixar um encontro de manifestantes
antinucleares. Na ocasião, um guarda chegou a lhe dizer: “A senhora está com
uma criança na rua às duas da manhã. Acho que deveria sair da política”.
O casamento de Christine também enfrentava problemas nessa época. Brett
Assange, que administrava com ela o teatro de fantoches, era um padrasto bom e
próximo. Na vida adulta, Julian Assange frequentemente citaria frases “de meu
pai”, tais como: “Homens capazes e generosos não criam vítimas: eles as
alimentam”. Mais tarde, Brett Assange descreveria o enteado como “uma criança
muito esperta”, com “um aguçado senso de certo e errado”. Mas, de acordo com
as transcrições de uma audiência no tribunal, Brett estava, na época, “tendo
problemas com álcool”. Quando Assange tinha 7 ou 8 anos, o padrasto foi
afastado de sua vida, pois ele e Christine se divorciaram.
A mãe de Assange teve uma relação tempestuosa com um terceiro homem,
muito mais jovem, Keith Hamilton, músico amador e membro de um grupo new
age, a Santiniketan Park Association. Segundo Assange, tratava-se de um
psicopata manipulador. Supostamente, Hamilton tinha cinco identidades
diferentes. “Todo seu passado era uma mentira, a começar pelo país onde ele
nasceu”, declarou Assange em Underground. Apesar do nome respeitável, a
Santiniketan Park Association era uma conhecida seita presidida por Anne
Hamilton-Byrne, uma professora de ioga que convenceu seus seguidores de
classe média de que era a reencarnação de Jesus. Keith Hamilton não apenas
estava ligado à seita como talvez fosse filho de Hamilton-Byrne. Ela e suas
auxiliares recolhiam crianças e frequentemente persuadiam mães adolescentes a
lhes entregarem seus bebês. Anne e suas discípulas – as “tias” – moravam numa
propriedade rural isolada, cercada de arame farpado e com vista para um lago
próximo à cidade de Eildon, Vitória. No local, administravam sob um regime
bizarro seus “protegidos”, que, em certo momento, totalizavam 28 crianças, as
quais apanhavam regularmente e tinham a cabeça mergulhada em baldes de
água.
A mãe de Assange tentou deixar Keith Hamilton em 1982, segundo
transcrições judiciais, o que resultou numa disputa pela guarda do meio-irmão de
Julian, Jamie. Hamilton era um companheiro agressivo e violento, segundo
afirmam os documentos judiciais. Assange conta que o ex-companheiro da mãe
passou a persegui-la, forçando-a a fugir constantemente com as crianças. Ele
disse a um jornalista australiano em 2010: “Minha mãe se envolveu com uma
pessoa que parece ser o filho de Anne Hamilton-Byrne, da seita Anne Hamilton-
Byrne, na Austrália, e, provavelmente por causa de vazamentos no sistema de
seguridade social, éramos sempre descobertos. Por isso tínhamos de fugir muito
rapidamente para uma nova cidade e viver com nomes falsos”.
Nos cinco ou seis anos seguintes, os três viveram como fugitivos. Christine
viajou para Melbourne, em seguida fugiu para Adelaide, durante seis meses, e
depois para Perth. Quando era adolescente, Assange voltou para Melbourne,
vivendo com a mãe em pelo menos quatro refúgios diferentes. O fundador do
WikiLeaks manifestaria esse padrão de ação evasiva novamente em 2010,
quando acreditou estar sendo perseguido pela inteligência norte-americana por
causa das revelações do site.
Os autos do processo do julgamento do adolescente Assange por hacking, em
Melbourne – do qual falaremos mais tarde –, documentam alguns dos efeitos de
uma vida tão estranha sobre um adolescente inteligentíssimo, com grande
aptidão para a matemática. Seu advogado disse que Assange fora privado da
oportunidade de fazer amigos ou de se associar normalmente aos colegas: “O
passado dele é, de certo modo, trágico”. O livro Underground descreve o
subúrbio de Melbourne como “terrivelmente entediante”, “apenas uma parada –
entre muitas – enquanto a mãe viajava com o filho pelo continente, tentando se
livrar de um psicopata ex-marido de facto. A casa era um abrigo de emergência
para famílias em fuga. Durante algum tempo foi segura [...] exausta, a família
parou para descansar antes de sair novamente em busca de um novo lugar para
se esconder”.
Quando Assange tinha 13 ou 14 anos, sua mãe alugou uma casa em frente a
uma loja de eletrônicos. Ele começou a frequentá-la e a trabalhar num
Commodore 64. Christine economizou para comprar o computador para o
primogênito, que começou a estudar código sozinho. Aos 16 anos, ganhou o
primeiro modem. Participou de um programa para crianças superdotadas em
Melbourne, onde conheceu a namorada “introvertida e emocionalmente
perturbada”, como a descreve. Tornou-se mais interessado em ciências e passou
a frequentar bibliotecas. Em pouco tempo, descobriu o hacking. Aos 17 anos,
suspeitou que a polícia de Vitória fosse invadir sua casa. Segundo o
Underground, “Ele limpou os disquetes, queimou o material impresso e saiu”
para dormir temporariamente num albergue com a namorada. O casal juntou-se a
uma associação de sem-teto e, quando Assange completou 18 anos, sua
namorada engravidou. Casaram-se e tiveram um filho, Daniel. Quando a polícia
finalmente se aproximou do círculo ilegal de hackers, fazendo aumentar a
ansiedade de Assange, a esposa foi embora, levando o filho de 20 meses
consigo. Assange foi hospitalizado com depressão. Durante algum tempo,
dormiu em parques, vagando pelos bosques de eucaliptos do Parque Nacional de
Dandenong Ranges.

As relações humanas devem ter parecido algo muito desestruturado para o


adolescente Assange, tendendo ao abandono, à confusão e às reviravoltas. Por
outro lado, o universo dos computadores era previsível. Os algoritmos – a chave
para a habilidade posterior de Assange como criptógrafo – eram confiáveis. As
pessoas não eram. Mais tarde, Assange diria à revista New Yorker que a
“austeridade” da interação com os computadores o atraiu: “É como jogar xadrez
[...]. Não há acaso”. Durante o julgamento por hacking, em 1996, seu advogado
de defesa, Paul Galbally, tentou atenuar a acusação, dizendo que o computador
havia se tornado “seu único amigo”. À medida que Assange mudava de escola,
era alvo de bullying por ser visto como um intruso: “Seu único salvador, sua
base na vida, era o computador. A mãe, na verdade, o incentivava a usar o
computador [...] que, desde muito cedo, se tornara um instrumento viciante para
ele”. Galbally descreve Assange como “superinteligente” – não apenas um
hacker nerd, mas uma pessoa incomum e exuberante.
Curiosamente, alguns dos programadores mais talentosos do mundo vêm de
famílias destruídas. Jacob Appelbaum, que se tornaria o representante do
WikiLeaks nos Estados Unidos, afirma ser filho de uma mãe esquizofrênica e
paranoica e de um pai viciado em heroína. Ele passou parte da infância num
abrigo para crianças. Quando era pequeno, encontrou uma mulher em convulsão
no banheiro do pai, com uma agulha enfiada no braço. Appelbaum contou à
revista Rolling Stone que a programação e o hacking lhe permitiram “sentir que
o mundo não é um lugar perdido. A internet é a única razão pela qual estou vivo
hoje”.
O submundo hacker de Melbourne dos anos 80, em que Assange começou a
se destacar, era um pequeno grupo quase inteiramente masculino, formado por
adolescentes autodidatas. Muitos vinham de famílias instruídas, mas pobres, do
subúrbio; todos tinham inteligência acima da média e utilizavam computadores
Commodore 64 e Apple IIe. Criavam códigos e usavam modems terrivelmente
lentos. Não havia internet ainda, só redes de computadores e bulletin board
systems, conhecidos como BBSs. Na vida “real”, Assange poderia ser
considerado um fracasso – não conseguiu obter o certificado de conclusão do
ensino médio num curso por correspondência. Também estudou computação e
física numa instituição para educação de adultos, mas não chegou a concluir os
cursos.
Mas, na vida eletrônica, Assange era um deus. Esses jovens especialistas em
computação sem traquejo social podiam se reinventar como heróis ousados, com
nomes como Phoenix, Gandalf ou Eric Bloodaxe. Assange usava o pseudônimo
Mendax. Segundo o dicionário de latim de Lewis e Short, o termo significa
“dado a mentiras” e forma a raiz da palavra “mentiroso”. Mas Assange fora
inspirado, mais explicitamente, pelas Odes, de Horácio. A mãe o apresentara
com entusiasmo aos clássicos gregos e latinos. No livro III, xi, Horácio conta a
história das cinquenta filhas de Dânao. O pai se zanga porque elas são forçadas a
se casar com os primos, filhos de Egipto, e ordena que matem os noivos na noite
de núpcias. Quarenta e nove cumprem a ordem, mas a quinquagésima,
Hipermnestra, previne o marido, Linceu, e eles escapam. (Em algumas versões,
eles fundam uma dinastia.) Por isso, Horácio a chama de splendide mendax, ou
“mentirosa esplêndida”. Outra tradução possível seria “falácia gloriosa”. O nome
fora muito bem escolhido. Evocava o que o extremamente ambicioso Assange
faria em seguida – algo, ao mesmo tempo, falaz e glorioso: hackear a rede
militar norte-americana.
O livro Underground: Tales of Hacking, Madness and Obsession on the
Electronic Frontier (Submundo: histórias de hacking, loucura e obsessão na
fronteira eletrônica) surgiu em 1997. Na obra assinada por Suelette Dreyfus, uma
acadêmica de Melbourne, Assange é creditado como pesquisador, mas sua marca
é perceptível, porque certos trechos soam como uma biografia sua. O livro
apresenta o submundo internacional dos computadores dos anos 90, “um mundo
velado, habitado por personagens que entram e saem na semiescuridão. Um
lugar onde as pessoas não usam seus nomes verdadeiros”. Assange escolheu uma
epígrafe de Oscar Wilde: “Um homem em nada se parece consigo quando fala
por si mesmo. Dê-lhe uma máscara e ele lhe dirá a verdade”.
“Algumas vezes, Mendax ia à escola”, conta a história de Underground. “Mas,
na maioria delas, isso não acontecia. O sistema escolar não lhe parecia muito
interessante. Não lhe nutria a mente [...]. O sistema informático de Sidney era
um local muito mais interessante para passar o tempo do que a escola secundária
rural.“
Em 1988, Assange (Mendax) tenta invadir o Minerva, sistema de mainframes
em Sidney pertencente à empresa pública Overseas Telecomunicação
Commission (OTC). Para o submundo dos computadores, hackear a OTC era
uma espécie de rito de passagem.
Mendax telefona para um funcionário da OTC em Perth como se fosse um
operador de Sidney, descreve o livro Underground. Para tornar o telefonema
mais autêntico, ele grava a impressora doméstica fazendo ruído em segundo
plano e até murmura passagens de Macbeth para simular o barulho do escritório.
O funcionário inocentemente revela a senha – LURCH. Mendax entra! É um dos
momentos mais dramáticos do livro. Em 2010, lembrando suas proezas como
hacker na adolescência, Assange afirmou: “Éramos jovens. Não fazíamos nada
para obter lucro criminoso. Fazíamos isso por curiosidade, desafio e algum
ativismo. Não destruíamos nada. Para qualquer adolescente do subúrbio de
Melbourne, era uma coisa incrivelmente libertadora do ponto de vista
intelectual”.
Em 1989, os hackers de Melbourne realizaram uma façanha espetacular,
lançando um worm contra o site da Nasa. A confusa equipe da agência espacial
americana leu a mensagem: “Este sistema foi oficialmente WANKado”. A sigla
significava Worms Against Nuclear Killers (worms contra Assassinos
Nucleares).* Será que Assange estava por trás do Wank? Provavelmente, mas
seu envolvimento nunca foi provado. Em 1991, Assange talvez fosse o melhor
hacker da Austrália. Ele e outros dois companheiros, chamados Prime Suspect e
Trax, fundaram a revista International Subversives (Subversivos Internacionais),
que oferecia dicas sobre phreaking – como invadir ilegalmente sistemas
telefônicos e fazer ligações gratuitas. A revista tinha leitores exclusivos: a
circulação se resumia a três pessoas – os próprios hackers.
Em seguida, Assange dedicou-se a hackear o terminal principal da Nortel,
uma grande empresa canadense que produzia e vendia equipamentos de
telecomunicações. Ele também invadiu o complexo militar-industrial norte-
americano, usando seu sofisticado programa para captação de senhas, o
Sycophant. Hackeou o quartel-general do 7º Grupo de Comando da Força Aérea
dos Estados Unidos, no Pentágono; o Instituto de Pesquisa de Stanford, na
Califórnia; o Centro Naval de Guerra de Superfície, na Virgínia; a fábrica de
sistemas técnicos aeroespaciais da Lockheed Martin, na Califórnia; e muitas
outras instituições militares confidenciais. Na primavera de 1991, os três hackers
encontraram um empolgante alvo novo: a Milnet, rede de dados secreta de
defesa das Forças Armadas norte-americanas. Rapidamente Assange descobriu
um backdoor e entrou. “Tivemos controle total sobre ela durante dois anos”,
afirmou mais tarde. Os hackers também costumavam invadir os sistemas da
Universidade Nacional da Austrália.
Entretanto, a unidade de crimes de informática da Polícia Federal australiana
estava atrás deles. Os policiais grampearam as linhas telefônicas dos hackers e
depois de um tempo invadiram a casa de Assange, que confessou à polícia o que
tinha feito. Em 1994, ele foi finalmente acusado, e as audiências ocorreram em
1996. Ele se declarou culpado na corte do condado de Vitória, em Melbourne,
em 24 acusações de hacking. A promotoria descreveu Assange como “o mais
ativo” e “mais capaz” do grupo e pressionou para que ele fosse condenado à
prisão. A motivação de Assange, segundo eles, era “simplesmente arrogância e
desejo de exibir suas habilidades com o computador”.
Em determinado momento, Assange levou flores para uma das advogadas da
promotoria, Andrea Pavleka (descrita, em Underground, como “alta, magra, de
pernas longas, cabelo na altura dos ombros, com cachos louro-avermelhados,
óculos de intelectual apoiados num belo nariz arrebitado e uma risada
contagiante”). Era um galanteio. Galbally se sentiu obrigado a advertir Assange:
“Ela não quer um encontro com você, Julian. Ela o quer na prisão”.
O juiz Leslie Ross afirmou que considerava os crimes de Assange “muito
graves”, mas que não havia evidências sugerindo que ele visasse lucro pessoal –
ele era mais um “bisbilhoteiro” do que um hacker malicioso e, como afirmou o
juiz, agia por “curiosidade intelectual”: “Aceito o que seu advogado afirmou
sobre sua instável história de vida durante seus anos de formação e sobre a
existência errante que você e sua mãe foram obrigados a levar, além da ruptura
pessoal que ocorreu em sua família [...]. Não deve ter sido fácil para você;
certamente deve tê-lo influenciado na aquisição de suas qualificações
educacionais formais, que não parecem estar além de suas capacidades. Dessa
forma, a suposição de que você é uma pessoa extremamente inteligente me
parece bem fundada”.
O juiz multou Assange em 2.100 dólares e o advertiu de que, se continuasse a
hackear, seria preso. Apesar de o processo estar encerrado, Assange se levantou
e pediu para falar. A transcrição judicial descreve o seguinte:
PRISIONEIRO: Excelência, acredito que a promotoria fez diversas alegações equivocadas em
relação às acusações e, portanto, prefiro continuar esta defesa, se Sua Excelência me permitir.
SUA EXCELÊNCIA: Não, você se declarou culpado. O processo acabou. Peço que se apresente e se
sente atrás do sr. Galbally.
PRISIONEIRO: Excelência, acho que uma grande injustiça foi feita e gostaria de registrar o fato de
que o senhor foi induzido ao erro pela promotoria em relação às acusações de [ininteligível] e
diversos outros assuntos.
SUA EXCELÊNCIA: Sr. Galbally, o senhor gostaria de conversar com seu cliente?
SR. GALBALLY: Sim, Excelência.
SUA EXCELÊNCIA: Então, vá e converse com ele.

Assange se considerava vítima de uma injustiça, ao estilo de Soljenítsin. Uma


década depois, escreveria: “Se há um livro cujo sentimento me atrai, é O
primeiro círculo, de Soljenítsin. Sentir que o lar é a camaradagem dos
intelectuais perseguidos e de fato condenados, num campo de trabalhos forçados
estalinista! Isso é muito parecido com minhas próprias aventuras! [...] Uma
acusação dessas na juventude é uma experiência de pico determinante. Conhecer
o Estado como ele realmente é! Ver, através das aparências, a promessa educada
da descrença, mas ainda assim seguir com o coração servilmente! [...] A crença
na falsidade do Estado [...] começa com um pontapé na porta. A verdadeira
crença se forma quando o levam para o banco dos réus e se referem a você na
terceira pessoa. A verdadeira crença é quando uma voz distante ressoa – ‘o
prisioneiro deve ficar de pé’ – e ninguém mais na sala se levanta”.

Condenado, mas tratado com tolerância, Assange era agora um pai


desempregado, em Melbourne, sobrevivendo com a pensão de pai solteiro. Os
tribunais de família lhe haviam dado a guarda exclusiva do filho. Assange e sua
mãe passaram anos brigando com a ex-mulher pela aproximação com Daniel, o
que se transformou numa luta terrível com o Estado pelo acesso às informações
do caso. Assange trabalhava como programador, mas sem remuneração, criando
um site na internet que oferecia dicas sobre segurança digital, chamado Best of
Security. Em 1996, já tinha cinco mil assinantes. O compromisso inicial de
Assange com informações e software livres lentamente se transformaria no
WikiLeaks. Com palavras que agora parecem proféticas, Galbally disse ao juiz
em 1996: “Seu desejo é que a internet ofereça material gratuito para as pessoas,
e para isso ele próprio oferece seus serviços gratuitamente”.
Assange foi coautor de diversos softwares gratuitos, como parte do que se
tornaria o Movimento pelo Código Aberto. (Entre eles, incluem-se o software de
cache da Usenet NNTPCache e o Surfraw, uma interface de comando por linha
para mecanismos de busca na web.) Ele e alguns colaboradores inventaram o
sistema de criptografia ambígua Rubberhose. A ideia era muito simples: que os
ativistas de direitos humanos que enfrentassem tortura pudessem entregar uma
senha para uma camada de informação. Os torturadores não perceberiam que
havia outra camada embaixo.
De acordo com o site do Rubberhose, Assange concebeu o software depois de
se encontrar com militantes dos direitos humanos e ouvir histórias de abuso por
parte de regimes repressivos, como os do Timor-Leste, Rússia, Kosovo,
Guatemala, Iraque, Sudão e República Democrática do Congo. O site dá uma
pista sobre a filosofia ativista de Assange: “Esperamos que o Rubberhose proteja
seus dados e ofereça um tipo mais amplo de proteção para pessoas que correm
riscos por causas justas [...]. Nosso lema é: ‘Vamos dar um pouco de trabalho’”.
Em 1999, Julian concebeu a ideia de um site para divulgar informações
sigilosas, segundo ele mesmo afirma, e registrou o nome de domínio
wikileaks.org. Mas, fora isso, não havia muita coisa a fazer. Assange vivia em
Melbourne e criava o filho tranquilamente. A disputa pela guarda acabara, e
provavelmente era o período mais estável de sua vida. Daniel – hoje um
programador de computadores – frequentava a escola Box Hill, no subúrbio a
leste de Melbourne. Entre 2003 e 2006, Julian estudou física e matemática na
Universidade de Melbourne, além de filosofia e neurociência. Ainda não
conseguira se formar, mas a ideia do WikiLeaks o acompanhava.
Assange criou um blog com um nome ousado, IQ.org, e postou uma teoria
aparentemente fantástica para acabar com a injustiça no mundo: “Quanto mais
secreta ou injusta é uma organização, mais os vazamentos estimulam o medo e a
paranoia na liderança e no círculo de planejamento. Isso deve resultar na
minimização da eficiência de mecanismos de comunicação internos (um
aumento na ‘taxa de sigilo’ cognitiva) e no consequente declínio cognitivo em
todo o sistema, o que resulta na diminuição da habilidade de se manter no poder
[...]. Como sistemas injustos, por natureza, atraem adversários, e em muitos
lugares mal exercem o controle, o vazamento em massa os deixa perfeitamente
vulneráveis àqueles que procuram substituí-los com formas mais abertas de
governança. Apenas a injustiça revelada pode ser enfrentada; para o homem
fazer algo inteligente, ele tem de saber o que realmente está acontecendo”.
Assange mencionou um chamado grandioso: “Se vivemos apenas uma vez,
então que seja uma aventura ousada, que reúna todas as nossas forças.[...] O
universo inteiro[...] é um adversário digno, mas, por mais que eu tente, não
posso deixar de ouvir o sofrimento […]. Os homens, no auge, quando têm
convicções, são chamados a agir de acordo com elas”.
Aqueles que estavam em sua lista de contatos, em pouco tempo conheceram
todos os detalhes. John Young, do site de material de inteligência Cryptome, foi
um dos que pediram (sem sucesso) para “liderar” uma nova organização
WikiLeaks, que se baseava no sigilo, incluindo evitar a própria palavra secreta:
“Esta é uma lista de correio restrita para o desenvolvimento interno do w-i-k-i--l-
e-a-k-s-.-o-r-g. Não mencione a palavra diretamente nas discussões; refira-se
apenas a ‘WL’”. Em 9 de dezembro de 2006, um e-mail assinado “WL” chegou
de surpresa para Daniel Ellsberg, que divulgara informações sigilosas sobre a
Guerra do Vietnã. Assange ousadamente convidava Ellsberg a se tornar o rosto
público de um projeto “para colocar uma nova estrela no firmamento do
homem”. A governança “de conspiração e medo” dependia de sigilo, escreveu
Assange. “Concluímos que incentivar um movimento mundial de vazamentos
em massa é a intervenção política mais efetiva em termos de custo.” Ellsberg,
que mais tarde se tornou um defensor entusiástico das ideias de Assange,
inicialmente temia que fosse “uma iniciativa muito ingênua pensar que eles
realmente possam sair ilesos”.
No ano seguinte, Assange falou em público pela primeira vez. A CBC News,
do Canadá, foi uma das poucas emissoras a informar:
O Garganta Profunda pode estar mudando para um novo endereço – online. Um novo website,
que usará o formato aberto de edição da Wikipédia, espera se tornar um local onde informantes
possam divulgar documentos confidenciais sem medo de ser rastreados. O WikiLeaks, de acordo
com o website do grupo, será “uma versão sem censura da Wikipédia para vazamento e análise em
massa de documentos não rastreáveis. Nosso principal interesse são os regimes opressivos na Ásia,
no antigo Bloco Soviético, na África subsaariana e no Oriente Médio, mas também esperamos
auxiliar todos aqueles no Ocidente que queiram revelar o comportamento antiético de seus próprios
governos e corporações”, afirmou o grupo.

A maior parte dos veículos de comunicação de massa, porém, prestou pouca


atenção na novidade. Para os hackers, que há muito tempo lamentavam as
imperfeições desses veículos, isso não foi surpresa.
Notas

* Cuidado, em alemão no original. (N. da T.)


* “Wank”, em inglês, também significa masturbar-se. (N. da T.)
4
A ascensão do WikiLeaks
Congresso anual do Chaos Computer Club,
Alexanderplatz, Berlim
DEZEMBRO DE 2007

“Como você revela coisas sobre pessoas poderosas


sem levar um pé na bunda?”

– BEN LAURIE, ESPECIALISTA EM CRIPTOGRAFIA

JULIAN ASSANGE pode ser visto no vídeo da conferência cumprimentando a


todos entusiasticamente com os punhos cerrados. Perto dele, está um homem
magro e com ar sério. É o programador alemão Daniel Domscheit-Berg, que
acabara de conhecer Assange no 24º Congresso Chaos de Comunicação – o
encontro dos hackers europeus – e estava prestes a se tornar um colaborador-
chave. Em pouco tempo, Domscheit-Berg largaria o emprego em tempo integral
na EDS, gigante norte-americana de computadores, e se dedicaria a aperfeiçoar a
arquitetura técnica do WikiLeaks, adotando o nome de guerra “Daniel Schmitt”.
A amizade de Domscheit-Berg e Assange acabaria numa amarga troca de
acusações, mas a relação entre os dois marcou uma fase decisiva na saída do
hacker australiano do casulo do meio estudantil de Melbourne. “Alguns amigos
me falaram sobre o WikiLeaks no fim de 2007”, diz Domscheit-Berg. “Comecei
a ler um pouco mais sobre ele e a entender o valor de um projeto como esse para
a sociedade.”
O Chaos Computer Club é um dos maiores e mais antigos grupos de hackers
do mundo. Um dos cofundadores, em 1981, foi o visionário hacker Herwart
“Wau” Holland-Moritz, cujos amigos criaram a Fundação Wau Holland após sua
morte. A instituição tornou-se um canal importante na coleta de doações para o
WikiLeaks em todo o mundo. Os membros do Chaos Computer Club no
congresso em Berlim, como Domscheit-Berg e o colega holandês Rop
Gonggrijp, tinham talentos que se mostraram decisivos no desenvolvimento do
projeto de guerrilha de Assange (embora o próprio Assange, mais tarde, tenha
tentado rejeitar o rótulo de hacker. Numa conferência em Oxford, ele disse que
“hackear” agora era considerado uma atividade “na maioria das vezes usada pela
máfia russa para roubar os dados bancários das vovozinhas. Por isso, a expressão
não é mais tão agradável quanto costumava ser”).
Domscheit-Berg estava entusiasmado com o idealismo social e recitava o
mantra dos hackers de que a informação deveria ser livre. “Qual a sua atitude em
relação à sociedade?”, provocaria mais tarde. “Você olha para o que está aí e
aceita como se fosse uma dádiva de Deus, ou vê a sociedade como algo onde
identifica um problema e então procura uma solução criativa? [...] Você é um
espectador ou participa ativamente da sociedade?”
Ele e Assange queriam desenvolver refúgios físicos para os servidores do
WikiLeaks em todo o mundo. Domscheit-Berg estimulava os colegas hackers
em Berlim, convidando-os a identificar países que poderiam ser usados como
bases do WikiLeaks: “Muitos países no mundo de hoje não têm mais uma
legislação forte para os meios de comunicação. Mas alguns países, como a
Bélgica, os Estados Unidos, com a primeira emenda, e a Suécia em particular,
têm uma forte legislação de proteção à mídia e ao trabalho de jornalistas
investigativos ou generalistas. Portanto, se houver suecos por aqui, vocês têm
que garantir que seu país [continue sendo] uma das fortalezas da liberdade de
expressão”.
A Suécia acabou se tornando o porto seguro dos que queriam vazar
informações confidenciais – ironicamente, considerando os problemas de
Assange com os hábitos e a moral dos suecos. Os hackers em Berlim tinham
ligações com o site dissidente sueco para compartilhamento de arquivos The
Pirate Bay. E dali a trilha conduzia a uma empresa de hospedagem na web
chamada PRQ, que proporcionou ao WikiLeaks uma face externa. Mikael
Viborg, o barbudo proprietário do provedor de acesso à internet, acabou
mostrando na tevê sueca a operação – localizada num modesto porão no
subúrbio de Estocolmo. “Primeiro, eles queriam passar o tráfego de informações
pelo provedor para desviá-lo de proibições nos locais em que não gostam do
WikiLeaks”, disse ele. “Mas depois puseram um servidor aqui.”
A PRQ oferece sigilo aos clientes. Eles dizem que seus sistemas evitam que
páginas de conversas online sejam grampeadas ou que se descubra quem enviou
o que para quem. “Nós oferecemos serviços anônimos e túneis VPN [virtual
private network, redes virtuais privadas]. O cliente se conecta ao servidor e baixa
as informações. Se alguém na fonte das informações tentar rastreá-lo, só chegará
até nós – e nós não divulgamos quem estava usando aquele número de IP
[protocolo de internet]. Aceitamos o que é considerado legal sob a legislação
sueca, independentemente de ser questionável, porque não fazemos juízos
morais.”
Essa atitude firme agradou a Domscheit-Berg: “A PRQ tem o histórico de ser
o provedor mais difícil de se encontrar no mundo. Não há ninguém que se
incomode menos com ameaças de advogados sobre o conteúdo hospedado”.
Os laptops do WikiLeaks têm criptografia em nível militar: se apreendidos, os
dados não podem ser lidos, nem mesmo diretamente no disco. O hacker
voluntário do WikiLeaks Jacob Appelbaum, de Seattle, afirma que destruiria
qualquer laptop que saísse de sua vista, por temer que ele fosse grampeado. Mas
ninguém da equipe se preocupa muito com as consequências de perder um
computador, porque as linhas de código para controlar o site são armazenadas
em computadores remotos sob seu controle – “em nuvens” –, e as senhas de
acesso são memorizadas.
Para as conversas internas, no dia a dia, o Skype – serviço de telefone via
internet, que também usa criptografia – é bastante popular. Como ele foi
desenvolvido na Suécia e não nos Estados Unidos, a equipe acredita que não
tenha uma backdoor através da qual a Agência de Segurança Norte-Americana
possa grampear as conversas.
Como o nome sugere, o WikiLeaks começou como um “wiki” – um site
editável pelos usuários (o que, algumas vezes, gerou confusão com a Wikipédia
– não há ligação entre eles). Mas Assange e os colegas rapidamente perceberam
que o conteúdo e a necessidade de remover informação perigosa ou
incriminatória tornavam esse modelo impraticável. Assange estava errado ao
acreditar que milhares de “jornalistas cidadãos” online estariam dispostos a
examinar os documentos publicados e descobrir se eram ou não genuínos.
Mas, apesar de as características “wiki” terem sido abandonadas, uma
estrutura que permite o envio anônimo de documentos vazados permanece no
cerne do WikiLeaks. O especialista em criptografia britânico Ben Laurie também
foi colaborador. Laurie, ex-matemático que vive na parte oeste de Londres e,
entre outras coisas, aluga abrigos à prova de bombas para hospedar servidores
comerciais de internet, conta que, quando Assange propôs pela primeira vez o
esquema para “uma agência de inteligência democrática de código aberto”,
pensou que fosse “balela”. Mas logo se convenceu, entusiasmou-se com o
projeto e o assessorou na parte de criptografia. “É uma questão técnica
interessante: Como você revela coisas sobre pessoas poderosas sem levar um pé
na bunda?”
Na forma atual, o WikiLeaks alega que não pode ser censurado nem rastreado.
Os documentos podem ser vazados em grande escala de um modo que “combina
a proteção e o anonimato de tecnologias de criptografia de ponta”. Assange e
colegas afirmam que usam OpenSSL (sistema de conexão segura de código
aberto, como os usados por varejistas online, como a Amazon), FreeNet (método
peer-to-peer de armazenamento de arquivos entre centenas ou milhares de
computadores, sem revelar a origem ou os proprietários) e PGP (programa de
criptografia de código aberto cuja sigla é a abreviação da expressão jocosa Pretty
Good Privacy – privacidade muito boa).
Mas o principal dispositivo de proteção ao anonimato é conhecido como Tor.
O WikiLeaks anuncia que “nenhum registro é mantido sobre o local em que o
arquivo foi carregado, o fuso horário, o navegador ou mesmo quando o envio foi
feito”. Trata-se de uma anonimização clássica via Tor.
As agências de inteligência norte-americanas consideram o Tor importante
para o trabalho de espionagem disfarçado e não ficaram satisfeitos ao vê-lo
usado para vazar os próprios segredos. Com o Tor, os envios podem ser
encobertos e as discussões internas podem ocorrer fora da vista de supostos
monitores. É um projeto do Laboratório de Pesquisa Naval dos Estados Unidos,
desenvolvido em 1995, que foi apropriado por hackers em todo o mundo. Ele
usa uma rede de cerca de dois mil servidores de computador voluntários no
mundo, através dos quais qualquer mensagem pode ser roteada, de modo
anônimo e não rastreável, via outros computadores Tor, até chegar a um receptor
fora da rede. O conceito-chave é o de que alguém de fora nunca será capaz de
associar o emissor e o receptor ao examinar os pacotes de dados.
Normalmente, isso não acontece com dados enviados online, em que cada
mensagem é dividida em “pacotes” que contêm informações sobre a fonte, o
destino e outros dados organizadores (por exemplo, onde o pacote se encaixa na
mensagem). Ao chegar ao destino, os pacotes são reunidos. Qualquer um que
monitore a conexão de internet do emissor ou do receptor verá o receptor e a
fonte da informação, mesmo se o conteúdo estiver criptografado. E, para quem
divulga informações confidenciais, isso pode ser um desastre.
O Tor introduz um nível de ofuscação inquebrável. Se Appelbaum, em Seattle,
quiser enviar uma mensagem para Domscheit-Berg, em Berlim, os dois precisam
executar o Tor em seus computadores. Appelbaum pode tomar a precaução de
criptografá-la primeiro, usando um sistema PGP gratuito. Então ele a envia
através do Tor. O programa cria outro canal criptografado roteado através dos
servidores Tor, usando alguns “nós” entre a rede mundial. A criptografia é em
camadas: à medida que a mensagem atravessa a rede, cada nó descasca uma
camada da criptografia, que indica qual nó deve enviar a carga útil para o
seguinte. Passagens sucessivas retiram mais criptografia, até que a mensagem
chegue ao limite da rede, onde sai com tanta criptografia quanto o original –
nesse caso, criptografado com o PGP.
Um observador externo em qualquer ponto da rede que tente interceptar a
informação não pode descriptografar o que foi enviado e só consegue ver um nó
anterior e um posterior. Portanto, monitorar as conexões do emissor ou do
receptor só vai mostrar uma transmissão entrando ou saindo de um nó do Tor – e
mais nada. Esse estilo “cebola” de criptografia, em camadas, deu origem ao
nome do procedimento: The Onion Router (O Roteador Cebola) – abreviado
para Tor.
O Tor também permite ao usuário criar “serviços ocultos”, como mensagens
instantâneas, que não podem ser vistos ao se grampear o tráfego nos servidores.
Eles são convenientemente acessados através de pseudodomínios de primeiro
nível, terminados em “.onion”. Isso garante outra medida de segurança, de modo
que alguém que tenha enviado uma versão física de um arquivo eletrônico, por
exemplo, em um pen drive, pode criptografá-lo e enviá-lo, e só depois revelar a
chave da criptografia. O Jabber, programa de bate-papo criptografado, é popular
entre os WikiLeakers. “A importância do Tor para o WikiLeaks não pode ser
subestimada”, disse Assange à revista Rolling Stone, quando esta publicou o
perfil de Appelbaum, o hacker associado da costa oeste dos Estados Unidos.
Mas o Tor tem uma fraqueza curiosa. Se a mensagem não for criptografada de
forma especial desde o princípio, seu conteúdo algumas vezes poderá ser lido
por outras pessoas. Isso soa como um ponto técnico obscuro, mas há evidências
de que explica a verdadeira razão para o lançamento do WikiLeaks, no fim de
2006 – não como uma empresa jornalística tradicional, mas como uma divisão
de hackeamento clandestino e oportunista. Em outras palavras: grampo.
Às vésperas da primeira publicação do WikiLeaks, no início de 2007, Assange
enviou uma mensagem animada a John Young, veterano curador do site de
vazamento de informações Cryptome, para explicar de onde vinha o material:
“Os hackers monitoram a inteligência chinesa, entre outras, enquanto estas
pesquisam seus alvos. Quando elas extraem as informações, nós também
extraímos. É uma fonte inesgotável de material, quase cem mil documentos/e-
mails por dia. Vamos abrir o mundo e deixar algo novo florescer [...]. Temos
tudo sobre o Afeganistão antes de 2005. Quase tudo sobre o BC indiano, meia
dúzia de ministérios estrangeiros, dúzias de partidos políticos e consulados,
Banco Mundial, Opep, departamentos das Nações Unidas, grupos comerciais,
associações do Tibete e de Falun Dafa e [...] a máfia russa do phishing, que
extrai dados de todos os lugares. Estamos nos afogando em documentos e não
conhecemos nem um décimo do que temos ou a quem isso pertence. Paramos de
armazenar ao chegar a 1 Tb [um terabyte, ou mil gigabytes]”.
Poucas semanas depois, em agosto de 2007, um especialista sueco em Tor,
Dan Egerstad, disse à revista Wired que confirmara ser possível coletar
documentos, conteúdo de e-mails, nomes de usuários e senhas de diversos
diplomatas e organizações, atuando como um nó de “saída” voluntário do Tor –
o servidor final no limite do sistema Tor, através do qual documentos sem
criptografia end-to-end eram enviados antes de sair. A revista informou que
Egerstad
descobriu contas que pertencem ao ministro das Relações Exteriores do Irã, ao Departamento de
Imigração do Reino Unido no Nepal e à Organização de Pesquisa e Desenvolvimento de Defesa do
Ministério da Defesa indiano. Além disso, Egerstad pôde ler a correspondência do embaixador
indiano na China, de muitos políticos em Hong Kong, de funcionários do gabinete de comunicação
do Dalai-Lama e de diversos grupos de direitos humanos sediados em Hong Kong.

“Fiquei chocado”, ele afirmou. “E estou convencido de que não fui o único a
descobrir isso.”
As especulações foram confirmadas em grande parte em 2010, quando
Assange permitiu que Raffi Khatchadourian redigisse seu perfil. O jornalista da
New Yorker escreveu:
Um dos ativistas do WikiLeaks era proprietário de um servidor que estava sendo usado como nó para
a rede Tor. Milhões de transmissões confidenciais passavam através dele. O ativista percebeu que
hackers da China estavam usando a rede para reunir informações de governos estrangeiros e
começou a registrar o tráfego. Apenas uma pequena parcela foi divulgada no WikiLeaks, mas o
material inicial possibilitou a criação do site, e Assange pôde afirmar: “Recebemos mais de um
milhão de documentos de treze países”. Em dezembro de 2006, o WikiLeaks divulgou o primeiro
documento: uma “decisão confidencial” assinada pelo xeque Hassan Dahir Aweys, líder rebelde
somali da União dos Tribunais Islâmicos, selecionada do tráfego que passava pela rede Tor rumo à
China.
O mundo clandestino dos hackers era apenas uma parte do solo no qual o
WikiLeaks cresceu. Havia também os radicais anticapitalistas – a comunidade de
ativistas ambientais, defensores dos direitos humanos e revolucionários políticos
que formavam o que, na década de 60, era conhecido como “contracultura”.
Quando Assange falou em público pela primeira vez sobre o WikiLeaks,
estava em Nairóbi, no Quênia, para participar do Fórum Social Mundial (FSM),
em janeiro de 2007. Trata-se de uma paródia radical do Fórum Econômico
Mundial de Davos, na Suíça, onde pessoas ricas e influentes se reúnem para falar
sobre dinheiro. O FSM, que teve origem no Brasil, pretende, por sua vez, ser o
lugar em que os pobres e as pessoas desprovidas de poder se reúnem para falar
sobre justiça.
No evento, dezenas de milhares de pessoas entoaram, no Parque da Liberdade,
em Nairóbi: “Outro mundo é possível!” Os organizadores foram forçados a
desistir de cobrar o ingresso depois que moradores das favelas da cidade fizeram
uma manifestação. A BBC noticiou que dezenas de crianças de rua que
mendigavam comida invadiram a tenda de um hotel cinco estrelas e devoraram
as refeições que seriam vendidas a sete dólares, quando muitos quenianos viviam
com dois dólares por dia: “Outros participantes que reclamavam que a comida
era muito cara juntaram-se às crianças famintas, e a polícia, pega de surpresa,
não foi capaz de controlar a situação. Os recipientes com a comida foram
esvaziados”.
Assange passou quatro dias numa tenda do FSM com três amigos, fazendo
palestras, distribuindo folhetos e conhecendo pessoas. Ele estava tão animado
com o que chamou de “a maior festa na praia de uma ONG no planeta” que
permaneceu durante boa parte dos dois anos seguintes num acampamento em
Nairóbi, com ativistas dos Médicos sem Fronteiras e de outros grupos
estrangeiros.
“Muito rapidamente fui apresentado a profissionais experientes do jornalismo
e dos direitos humanos”, declarou, mais tarde, a um entrevistador australiano. “O
Quênia teve oportunidades extraordinárias de reformas. Houve uma revolução na
década de 70. Mas o país só se tornou uma democracia em 2004.”
Ele escreveu que encontrou, na África, “muitas pessoas empenhadas e
desremidas – grupos de oposição ilegais, pessoas que investigavam a corrupção,
sindicatos, imprensa audaciosa e o clero”. Esses indivíduos corajosos eram o
diferencial para ele – em uma circular, comparava-os de modo contundente com
os companheiros de viagem ocidentais: “Grande parte dos tipos do Fórum Social
são homossexuais inúteis que se especializam em fazer filmes sobre si mesmos e
dão festas com o dinheiro das fundações para ‘trocar ideias’ com os amigos. Eles
[...] amam as câmeras”.
Assange parecia preocupado em provar que ele, por outro lado, era um
homem de coragem. E invocou um de seus heróis pessoais na mensagem do
WikiLeaks: “Esta citação de Soljenítsin é cada vez mais apropriada – ‘O declínio
da coragem pode ser o traço mais evidente do Ocidente atual para um
observador externo. O mundo ocidental perdeu a coragem cívica [...]. Tal
declínio é particularmente perceptível entre as elites dominantes e intelectuais’”.
Assange frequentemente dizia a quem estava por perto: “A coragem é
contagiosa”.
Foi o Quênia que proporcionou ao WikiLeaks o primeiro furo jornalístico. Um
relatório imenso sobre a suposta corrupção do ex-presidente Daniel arap Moi
fora encomendado à empresa de investigação privada Kroll. Mas seu sucessor, o
presidente Mwai Kibaki, que encomendara o relatório, não pôde divulgá-lo,
supostamente por razões políticas. “Esse relatório era o santo graal do jornalismo
no Quênia”, disse Assange mais tarde. “E, em 2007, eu fui até lá e o consegui.”
As circunstâncias da publicação foram mais complexas. O relatório foi
entregue a Mwalimu Mati, líder do Mars Group Kenya, um grupo anticorrupção.
“Alguém nos entregou o documento de bandeja”, afirmou. Incentivado por um
contato na Alemanha, Mati já havia se registrado como voluntário no
WikiLeaks. O medo de retaliação tornou muito perigosa a divulgação do
relatório no site do próprio grupo. “Então pensamos: Será que podemos divulgá-
lo no WikiLeaks?”
Em 31 de agosto, a história apareceu simultaneamente na primeira página do
The Guardian, em Londres. O texto integral do documento foi divulgado no site
do WikiLeaks com o título: “Os bilhões desaparecidos no Quênia”. Um
comunicado à imprensa explicava: “O WikiLeaks ainda não foi ‘lançado’ ao
público. Estamos abertos apenas para envio de material por contatos jornalísticos
e dissidentes. Entretanto, em virtude da situação política no Quênia, achamos
que seria negligência reter esse documento por mais tempo”. O site
acrescentava: “Referência deve ser feita a [...] Julian A., porta-voz do
WikiLeaks”.
O resultado foi, de fato, sensacional. Houve um alvoroço, e Assange mais
tarde declarou que foi observada uma variação de 10% na votação, nas eleições
que se seguiram no Quênia. No ano seguinte, o site divulgou um relatório muito
elogiado sobre os esquadrões da morte no país: “The Cry of Blood: Extra-
Judicial Killings and Disappearances” (O grito de sangue: massacres e
desaparecimentos extrajudiciais), baseado em evidências obtidas pela Comissão
Nacional de Direitos Humanos do Quênia. Quatro pessoas associadas à
investigação dos massacres foram assassinadas depois, incluindo os ativistas dos
direitos humanos Oscar Kingara e John Paul Oulu.
Assange foi convidado para ir a Londres receber um prêmio da organização de
direitos humanos Anistia Internacional – foi um momento de respeitabilidade
jornalística. Caracteristicamente, chegou à cidade com três horas de atraso, após
uma série de voos complicados desde Nairóbi, que envolveram ocultar das
autoridades até o último minuto as informações de seu passaporte. O discurso de
aceitação do prêmio foi generoso, embora um pouco eloquente: “Graças ao
trabalho corajoso de organizações como a Fundação Oscar, a KNHCR
[Comissão Nacional de Direitos Humanos do Quênia], o Mars Group Kenya,
entre outras, obtivemos o apoio primordial de que necessitamos para expor esses
assassinatos ao mundo. Sei que elas não descansarão, e que nós não
descansaremos, até que justiça seja feita”.
Mais uma vez, havia uma relação simbiótica com os grandes veículos de
comunicação: a história do Quênia só ganhou impulso mundial ao ser
investigada por Jon Swain, do Sunday Times, de Londres.
Nesse momento, Assange e seu grupo começavam a receber um fluxo
constante de documentos genuinamente vazados, inclusive de algumas fontes
militares do Reino Unido. Assange tentava distribuí-los. Ele escreveu diversas
vezes ao The Guardian, apresentando-se como “editor” ou “editor investigativo”
do WikiLeaks, tentando chamar a atenção de Alan Rusbridger, editor do jornal,
para suas histórias. E parecia incapaz de aceitar que, algumas vezes, os
vazamentos talvez não fossem tão interessantes – a ausência de resposta era
sempre vista como falta de coragem, ou coisa pior, por parte dos desprezados
meios de comunicação de massa.
Por exemplo, em julho de 2008, ele declarou: “Será que o The Guardian e
outros veículos de comunicação do Reino Unido perderam a coragem cívica ao
lidar com o Ato de Segredos Oficiais?” Ele estava oferecendo à mídia acesso a
uma cópia vazada do manual de contrainsurgência britânico de 2007, mas
ninguém se interessou. “Acho que a imprensa do Reino Unido perdeu o rumo
[...]. Desde que todos sejam igualmente castrados, todos são igualmente
lucrativos. É hora de romper o cartel de timidez.”
Quem se recorda do perfil de Assange num site de encontros de Melbourne
ficaria intrigado por sua observação de que divulgar revelações jornalísticas
combativas, como ele fazia, também era um excelente modo de arrumar uma
transa: “No Quênia, onde estamos acostumados a invasões a jornais e prisões
arranjadas, não nos importamos muito. Essas tentativas torpes corroboram a
história que deu causa a elas, vendem jornais, ficam bem no currículo e atraem
amantes como títulos de nobreza”.
Outro experimento de Assange na manipulação dos veículos de comunicação
foi a tentativa, em 2008, de leiloar um cache do que supostamente seriam
milhares de e-mails de um redator de discursos para o líder venezuelano Hugo
Chávez. O vencedor teria acesso exclusivo, durante algum tempo, aos
documentos. O leilão se baseava na teoria de que ninguém levaria o material a
sério se fosse oferecido gratuitamente. Assange comentou: “Sabe-se que a
revista People pagou mais de dez milhões de dólares pelas fotos do bebê de Brad
Pitt e Angelina Jolie”. Para sua surpresa, os detalhes da política venezuelana não
se mostraram tão vendáveis quanto as fotos do bebê das celebridades – ninguém
apresentou uma oferta.
Assange agora descobria – para seu desgosto – que não bastava divulgar em
um site longas listas de documentos não editados e aleatórios para mudar o
mundo. E refletia sobre o colapso da ideia original de crowdsourcing: “A ideia
inicial era algo do tipo: ‘Olhe para todas essas pessoas editando a Wikipédia.
Olhe para todo o lixo no qual trabalham [...]. Com certeza todas as pessoas que
estão ocupadas escrevendo artigos sobre história, matemática etc., e todos os
blogueiros que estão ocupados discursando sobre desastres dos direitos humanos
[...] com certeza essas pessoas vão se manifestar, dado o material inédito para
pesquisa, e fazer algo’. Não. Besteira. É tudo besteira. Na verdade, as pessoas
escrevem sobre coisas de modo geral (quando não têm relação com a profissão
delas) porque querem exibir seus valores para os colegas, que estão no mesmo
grupo. Na verdade, elas não estão nem aí com o material”.
Ele continuou procurando em vão um modelo de funcionamento para o
WikiLeaks que pudesse gerar receita e obter atenção política mundial. Suas
reflexões publicadas na época são reveladoras, porque mostram que ele
considerava o problema de uma perspectiva externa, mas ainda não conseguia
solucioná-lo: “O grande problema para o WikiLeaks é o material de primeira
classe indo para o lixo porque tornamos o fornecimento ilimitado, de modo que
as empresas de notícias, bem ou mal, se recusam a ‘investir’ em análise sem
incentivos adicionais. A economia é contraintuitiva: se você limita
temporariamente o fornecimento, aumenta a absorção [...] um conhecido
paradoxo em economia. Dado que o WikiLeaks precisa restringir o fornecimento
por um período para aumentar o valor percebido, até o ponto em que os
jornalistas invistam tempo para produzir histórias com qualidade, surge a
questão sobre que método deve ser utilizado para distribuir o material entre
aqueles que mais provavelmente investiriam nele”.
Havia apenas um modo – relativamente limitado – de o modelo de Assange
começar a atrair o interesse dos grandes veículos de comunicação: agir não da
maneira concebida originalmente, como deposito anônimo de documentos, mas
como o que ele chamou de “editor de última instância”. Um confronto fascinante
entre o WikiLeaks e um banco suíço demonstrou que pelo menos uma das
afirmações-chave para a nova ciberestrutura sem cidadania de Assange era
verdade – eles poderiam rir dos advogados.
Rudolf Elmer dirigira a filial do Banco Julius Baer nas ilhas Caimã durante
oito anos. Depois de se mudar para as ilhas Maurício e tentar, em vão, denunciar
às autoridades o que ele dizia ser uma evasão fiscal ultrajante por parte de alguns
dos clientes de seu antigo patrão, contatou Assange para divulgar os
documentos: “Fizemos contato através de um software criptografado e eu recebia
instruções sobre como proceder [...]. Eu não estava procurando anonimato”.
Os furiosos banqueiros de Zurique moveram uma ação em um tribunal da
Califórnia para forçar o WikiLeaks a apagar os arquivos, alegando
“disseminação ilegal de registros bancários roubados e de informações das
contas pessoais dos clientes”. O banco ganhou uma batalha preliminar quando o
site de hospedagem de domínios Dynadot, com sede na Califórnia, foi obrigado
a desativar o domínio “wikileaks.org”. Mas Baer rapidamente perdeu a guerra: o
WikiLeaks manteve outros sites, hospedados na Bélgica e em outros países;
muitos “sites-espelho” surgiram, exibindo os documentos ofensivos; e a decisão
do tribunal foi revertida quando uma série de organizações norte-americanas se
uniu em apoio ao WikiLeaks em nome da liberdade de expressão. Entre elas,
estavam a União Americana pelas Liberdades Civis e a Fundação Fronteira
Eletrônica, assim como uma aliança jornalística que incluía a Associated Press, o
Gannett News Service e o Los Angeles Times.
O banco suíço e seus clientes corruptos só conseguiram jogar mais luz sobre si
mesmos, enquanto o WikiLeaks demonstrou ser verdadeiramente à prova de
liminares. A partida terminou assim: WikiLeaks 1, Julius Baer 0. Assange
recebeu outro prêmio em Londres, do grupo pela liberdade de expressão Index
on Censorship. Um dos membros do júri, o poeta Lemn Sissay, relatou em seu
blog uma típica atitude de Assange: “Não sabíamos se Julian Assange
apareceria. Felizmente ele veio: um homem alto, cuidadoso, de cabelos muito
louros e pele clara. Segundos antes de subir ao palco, ele sussurrou: ‘Pode ser
que alguém pule no palco para me entregar uma intimação. Não posso deixá-los
fazer isso, e terei que sair se os vir’”.
Agora o The Guardian, de Londres, via o valor de ter os próprios documentos
confidenciais divulgados no WikiLeaks. Os advogados do Banco Barclays
tinham acordado um juiz às duas horas da manhã para forçar a retirada dos
arquivos vazados do The Guardian que detalhavam os esquemas de evasão fiscal
do banco. Mas os arquivos foram imediatamente divulgados na íntegra por
Assange, tornando a obstrução inútil. (Numa divertida mistura de práticas
anticensura novas e antigas, o The Guardian e todos os outros veículos de
comunicação britânicos foram a princípio legalmente impedidos de dizer que os
arquivos estavam disponíveis no WikiLeaks. Foi necessário que um membro
democrata-liberal da Casa dos Lordes divulgasse a informação, sob a proteção
do antigo dispositivo do privilégio parlamentar, para que essa bobagem
acabasse.)
Do mesmo modo, o WikiLeaks funcionou como um reforço online, junto com
o Greenpeace e a tevê estatal norueguesa, ao divulgar na íntegra um relatório
incriminatório sobre o lixo tóxico descartado pela empresa de petróleo Trafigura.
Os advogados da Trafigura haviam impedido o The Guardian de divulgar o
relatório vazado, mas suas ações draconianas se mostraram uma perda de tempo
num mundo digitalmente globalizado.
Mas Assange ainda se esforçava para ser mais que um operador de nicho. No
início, em 2006, ele provocara a ira de John Young, do Cryptome, site análogo
de material de inteligência. Young lamentava a aproximação de Assange com o
bilionário George Soros – que fundara uma variedade de projetos de
comunicação, sobretudo na Europa do Leste – e rompeu relações quando
Assange falou em levantar cinco milhões de dólares. “Anunciar o objetivo de
arrecadar cinco milhões de dólares até julho de 2007 acabará com esta
iniciativa”, escreveu. “Isso faz com que o WikiLeaks pareça um golpe de Wall
Street. Essa quantia não poderia ser necessária em tão pouco tempo, exceto para
propósitos suspeitos. Soros vai expulsá-lo do escritório. As fundações estão
cheias de tagarelas pedindo muito dinheiro, gabando-se de nomes famosos e
prometendo resultados espetaculares.”
Dois anos depois desse início precipitado, Assange fez outra tentativa de obter
uma grande quantia. Ele e seu braço direito, Domscheit-Berg, foram até a
Fundação Knight, nos Estados Unidos, que estava realizando “um concurso de
inovação nos veículos de comunicação com o objetivo de fomentar o futuro da
imprensa, financiando novos modos de informação digital para as
comunidades”. Domscheit-Berg pediu 532 mil dólares para equipar uma rede
local de jornais com “botões do WikiLeaks”. A ideia, desenvolvida e elaborada
por ele, era que as pessoas que divulgavam informações confidenciais locais
pudessem fazer contato através dos sites de notícias e, assim, gerar um fluxo
regular de documentos. Um projeto rival – o DocumentCloud –, concebido para
criar uma base pública de dados com os documentos integrais por trás das
notícias, era apoiado pela equipe do The New York Times e pela ProPublica,
organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos. Eles receberam
719.500 dólares. E Assange não recebeu nada. No fim de 2009, o WikiLeaks
continuava lutando por uma reputação.
5
O vídeo do apache
Hotel Quality, Tønsberg, Noruega
TRÊS HORAS DA MANHÃ, 21 DE MARÇO DE 2010

“A culpa é deles por trazerem os filhos para uma batalha.”

– PILOTO DE HELICÓPTERO NORTE-AMERICANO

NO MÊS DE MARÇO, ainda havia gelo no porto e a neve cobria a montanha onde
ficava a velha fortaleza. Mas, no salão de dança do hotel, na orla, a banda
Boogie Wonder trabalhava duro, tocando ritmos vigorosos para centenas de
repórteres noruegueses que comemoravam o Jubileu – o baile do vigésimo
aniversário do Skup, a animada associação de jornalistas investigativos.
“Venham com belas roupas e muito bom humor”, dizia o convite, e, apesar de
Assange não ter tirado a fiel jaqueta de couro marrom, com o zíper fechado até o
pescoço, ele certamente estava de bom humor. Na verdade estava muito
animado, e por uma boa razão: em pouco tempo, daria o primeiro passo para se
tornar uma celebridade mundial.
O anúncio de sua palestra dizia: “Algumas pessoas acreditam que o
WikiLeaks fez mais jornalismo investigativo que o New York Times nos últimos
vinte anos”. Mas Assange sabia que o mundo ainda não vira nada, comparado ao
que estava por vir. Depois de uma noite regada a carne de rena e repetidos
brindes ao estilo viking, com copos erguidos, ele não pôde mais se conter. “Quer
ver uma coisa?”, perguntou a David Leigh, jornalista do The Guardian que
também falaria na conferência. Magro, de cabelos compridos e prateados,
Assange sorria de modo atraente e pueril, o que também tinha efeito sobre as
mulheres à sua volta. O convite atual era igualmente intrigante.
No quarto de hotel de Leigh, com a porta trancada e aferrolhada, Assange
tirou um de seus pequenos netbooks da mochila, que ele nunca perdia de vista, e
digitou uma série do que pareciam longas senhas. Depois de algum tempo, um
vídeo em preto e branco começou a ser exibido. Era uma das coisas mais
chocantes que Leigh já tinha visto.
A famosa sequência, mais tarde exibida repetidas vezes no YouTube, da China
ao Brasil, era uma tomada feita de cima, mostrando nuvens de poeira que se
erguiam em meio a um grupo disperso de homens, atingidos e mortos pela
artilharia de um helicóptero de combate. Um dos homens, ferido, tenta rastejar
para longe da carnificina, indo para o lado direito da tela. Em seguida, um
motorista pode ser visto tentando arrastar o homem para dentro de uma van,
atingida por mais tiros de canhão. Ao ouvir pelo rádio que crianças haviam sido
feridas, um dos pilotos diz em sua defesa: “Bem, a culpa é deles por trazerem os
filhos para uma batalha”.
As imagens foram feitas pela câmera militar de um helicóptero AH-64
Apache que sobrevoava um subúrbio de Bagdá, atirando com seu canhão
automático de 30 mm enquanto ficava praticamente invisível para quem estava
no solo. O helicóptero estava a um quilômetro de altitude. Leigh assistia,
chocado, enquanto o vídeo não editado do massacre era exibido no pequeno
laptop durante quase 39 minutos.
O vídeo era, como explicou Assange, o registro confidencial de um escândalo.
Em julho de 2007, pilotos do Exército norte-americano, numa dupla de
helicópteros de patrulha, haviam matado dois funcionários inocentes da agência
de notícias Reuters: Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen. Noor-Eldeen era
fotógrafo de guerra e tinha 22 anos. Chmagh era motorista e assistente da
Reuters, tinha 40 anos, fora ferido e tentara rastejar. Ao todo, doze pessoas
morreram naquela única ocasião. Os dois filhos pequenos do motorista da van
foram feridos, mas sobreviveram.
Assange não disse de onde viera o vídeo bruto, apenas que obtivera material
de “fontes militares”. Mas disse ao jornalista do The Guardian o que planejava
fazer em seguida. Viajaria para a Islândia, onde faria com que aquele vazamento
sensacional tivesse sua veracidade confirmada e fosse editado numa versão com
legendas. Então, ele o revelaria ao mundo.
A Islândia, no extremo norte do Atlântico, parecia um destino estranho para
Assange, mas não era. O errante fundador do WikiLeaks tornara-se recentemente
muito popular no país, ao concordar em divulgar um documento secreto vazado
que listava os maiores empréstimos bancários do país, concedidos a amigos de
banqueiros e grandes acionistas de banco. O colapso financeiro da Islândia
deixara atrás de si uma população enfurecida e ressentida, que parecia apreciar a
transparência de Assange.
Kristinn Hrafnsson era um dos muitos islandeses impressionados com
Assange. Ele ficou tão inspirado que, em seguida, se tornou um colaborador
próximo. Hrafnsson, que viajaria para Bagdá com um cameraman para chegar a
história do helicóptero Apache a pedido de Assange, afirma: “A primeira vez
que ouvi falar do WikiLeaks foi no início de agosto de 2009. Eu trabalhava
como repórter para a televisão estatal quando recebi a dica de que o site tinha
divulgado importantes documentos online. Era a carteira de empréstimos do
falido Banco Kaupthing [...]. Eles [o banco] obtiveram uma liminar na justiça – a
primeira e única na história – proibindo a tevê estatal de divulgar a informação.
O escândalo gerou um convite para que Assange e o colega Daniel
Domscheit-Berg fossem até Reykjavik. Assim, os dois ativistas se viram
estimulando o pequeno país a promover uma legislação para a liberdade de
imprensa. Assange sentou-se num sofá no estúdio da tevê e perguntou: “Por que
a Islândia não se torna o centro editorial do mundo?”
Domscheit-Berg recorda: “Julian e eu estávamos apenas lançando a ideia,
declarando em rede nacional de tevê que achávamos que aquele seria o próximo
modelo de negócios para a Islândia. Foi muito esquisito perceber, no dia
seguinte, que todos queriam falar sobre isso”.
Assange era uma espécie de líder, reunindo em todo lugar seguidores em volta
de si. Outro entusiasta do WikiLeaks na Islândia, o programador Smári
McCarthy, disse a uma rede de televisão sueca: “Como país, falhamos porque
não compartilhávamos as informações de que necessitávamos. Tínhamos sede de
informação, e o WikiLeaks nos deu o impulso de que precisávamos. Tínhamos
uma ideia, mas não sabíamos como fazer. Então eles vieram e nos disseram, e
isso foi uma coisa incrivelmente valiosa. Eles são, sobretudo, ativistas da
informação, que acreditam no poder do conhecimento, no poder da informação”.
A parlamentar islandesa Birgitta Jónsdóttir estava na linha de frente dos
passos seguintes para elaborar uma proposta que seus defensores chamavam de
MMI – Modern Media Initiative (Iniciativa das Mídias Modernas) –, endossada
unanimemente pelo Parlamento islandês. A proposta foi delineada por Assange,
Rop Gonggrijp, seu amigo holândes meio hacker, meio homem de negócios, e
três islandeses: Jónsdóttir, McCarthy e Herbert Snorrason. Eles pediam a criação
de leis que preservassem a proteção das fontes, a liberdade de imprensa e de
informação. Jónsdóttir, de 43 anos, é uma artista e poetisa anticapitalista – uma
figura inesperadamente romântica em meio à legislatura de Reykjavik. “Eles
apresentaram essa ideia, chamada de a ‘Suíça dos bytes’”, ela explica, “que
basicamente consistia em pegar o modelo de paraíso fiscal e transformá-lo num
modelo de paraíso da transparência.”
Assange decidiu publicar alguns aperitivos islandeses do material confidencial
militar recentemente obtido para coincidir com a campanha do MMI – um deles
era um telegrama muito recente da embaixada norte-americana em Reykjavik,
com data de 13 de janeiro de 2010, descrevendo opiniões de oficiais islandeses
sobre a crise bancária. O ministro-conselheiro na embaixada, Sam Watson,
informou que as pessoas que ele encontrou “traçaram um quadro muito sombrio
para o futuro da Islândia”. Assange divulgou então perfis vazados do
embaixador islandês em Washington (“irritadiço mas pragmático [...] gosta da
música de Robert Plant, ex-membro do Led Zeppelin”), do ministro das
Relações Exteriores (“amigo dos EUA”) e da primeira-ministra, Jóhanna
Sigurðardóttir (“apesar da orientação sexual destacada pela imprensa
internacional, isso mal foi percebido pelo público da Islândia”).
As autoridades norte-americanas não tomaram nenhuma atitude visível em
relação a esses vazamentos. Não havia conexão aparente entre Reykjavik – onde
o material aparecera – e uma obscura base militar no deserto da Mesopotâmia, a
milhares de quilômetros de distância.
Assim, no fim de março, Assange retornou à Islândia depois da conferência
triunfal na Noruega e obteve um empréstimo de dez mil euros de Gonggrijp para
alugar uma casa e editar o vídeo do helicóptero Apache. Leigh, de volta a
Londres, tentou contatar Assange para propor um acordo segundo o qual o The
Guardian publicaria o vídeo. Assange disse que entraria em contato, mas nunca
o fez. Mais tarde descobriu-se que ele fizera um acordo jornalístico mais atraente
com a revista New Yorker, cujo escritor Raffi Khatchadourian o acompanhava
com a finalidade de redigir seu perfil (publicado em junho com o título “No
Secrets: Julian Assange’s Mission for Total Transparency” [Sem segredos: a
missão de Julian Assange pela transparência total]. Pouco depois, Assange disse
a amigos que aquilo era “muito lisonjeiro”).
Khatchadourian estava presente para gravar Jónsdóttir, a parlamentar
feminista briguenta do sul de Reykjavik cortando com certa má vontade o cabelo
de Assange, enquanto ele se sentava curvado diante do laptop, envolvido numa
importante troca de mensagens. O jornalista também tomava notas quando uma
mensagem chegou de Bagdá.
Os jornalistas que haviam ido até Bagdá [...] haviam encontrado as duas crianças da van. Elas viviam
a um quarteirão do local do ataque e o pai as levava para a escola naquela manhã. “Elas se lembram
do bombardeio, sentiram muita dor, disseram, e perderam a consciência”, escreveu um dos
jornalistas. [...]
Jónsdóttir virou-se para Gonggrijp, cujos olhos estavam marejados.
– Você está chorando? – ela perguntou.
– Estou – ele respondeu. – Está tudo bem, está tudo bem, são só as crianças. É triste.
Gonggrijp se recompôs.
– Merda! – exclamou. [...]
Agora Jónsdóttir também chorava, assoando o nariz.

Assange exibiu o vídeo do helicóptero Apache no Clube Nacional de


Imprensa, em Washington, no dia 5 de abril. Ele o intitulou “Assassinato
colateral”. Embora o vídeo tenha causado certa comoção, algo saíra errado. Ele
não gerou a indignação universal e a pressão por reformas causadas, por
exemplo, pela exibição por Seymour Hersh, na New Yorker, de fotos vazadas que
mostravam prisioneiros iraquianos sendo humilhados e torturados na prisão de
Abu Ghraib.
Uma das razões pelas quais o vídeo provocou menos reação que a esperada
por Assange foi que a Reuters, cujos funcionários haviam sido assassinados,
decidiu não atacar com base na informação vazada. Dizia-se que um clipe
parcial da morte dos dois homens fora mostrado à agência de notícias poucos
dias depois dos acontecimentos, embora as solicitações subsequentes do vídeo
completo, com base na legislação de liberdade de informação, tivessem sido
repetidamente negadas. O editor-chefe da Reuters, David Schlesinger, escreveu
uma coluna serena para o The Guardian, que denotava mais tristeza que revolta:
Os editores da Reuters viram apenas uma parte do vídeo. Imediatamente mudamos nossos
procedimentos operacionais. A primeira parte do vídeo deixou claro que qualquer um andando com
um grupo de pessoas armadas pode ser considerado um alvo. Imediatamente decidimos que nossos
jornalistas não poderiam nem mesmo andar próximos a grupos armados. No entanto, não nos
mostraram a segunda parte, em que o helicóptero atira numa van que tenta evacuar os feridos. Se nós
a tivéssemos visto, poderíamos ter ajustado ainda mais nossos procedimentos.

Outra razão para a reação limitada ao vídeo foi o título tendencioso:


“Assassinato colateral”. Leitores e telespectadores costumam detestar a sensação
de que estão sendo coagidos a aceitar determinado ponto de vista. O que
aparecia na tela podia ser interpretado como um evento muito mais nuançado
para olhos não completamente cegos pelo rancor ou pela tristeza.
Os soldados haviam nitidamente cometido um erro. Alguns membros do
grupo no qual eles atiraram estavam, de fato, armados, e a teleobjetiva do
fotógrafo da Reuters realmente parecia uma arma apontada furtivamente para
“nossos irmãos em solo”, como afirmou um dos pilotos. A cruel decisão de tratar
as ruas de Bagdá como um campo de batalha em que todos são um alvo legítimo
foi tomada não por sádicos ou criminosos de guerra, mas por militares norte-
americanos de alto escalão. Os pilotos estavam desempenhando as atividades
mortais que haviam sido treinados para fazer – como alguns dos soldados na
unidade de solo envolvida declararam publicamente mais tarde. Certamente
havia muito mais a ser discutido do que aquilo que se poderia concluir pela crua
legenda “Assassinato colateral”.
No entanto, tratava-se de um debate que talvez nunca tivesse ocorrido se um
jovem soldado norte-americano não tivesse decidido que o vídeo deveria ser
visto e se Assange não o tivesse disponibilizado corajosamente para exibição
pública. Daquele momento em diante, as mortes de civis que os soldados
americanos com tanta frequência precipitavam do céu seriam tratadas de modo
um pouco menos casual pelo público do país. Certamente é disso que se trata
quando se fala em liberdade de expressão. Aos olhos de muitos, Assange
merecia ser considerado um herói.
6
As conversas com Lamo
Estação Operacional de Contingências Hammer, Iraque
21 DE MAIO DE 2010

“Não posso acreditar no que estou lhe contando.”

– BRADASS87

NA ABAFADA BASE DO Exército no deserto do Iraque, o especialista Bradley


Manning apresentou sinais de estresse considerável nas semanas que se seguiram
à divulgação do vídeo do helicóptero Apache. Em salas de bate-papo online,
confidenciou que tivera “cerca de três surtos” resultantes de sua insegurança
emocional e estava “se automedicando feito um doido”. E acrescentou: “Fiquei
isolado muito tempo. Perdi a cabeça. Estou uma pilha de nervos”. Em 5 de maio,
Manning publicou no Facebook que estava “com a profunda sensação de que
nada me resta”.
Parte do turbilhão emocional provavelmente se relacionava ao rompimento do
namoro de Manning e Tyler Watkins em Boston, que ocorrera na mesma época.
Mas ele também estava apavorado que algo pudesse dar errado em suas
atividades de “hacktivista”, como ele as descrevia, com o WikiLeaks. Às vezes,
gabava-se de que “ninguém suspeitava de nada. E é provável que nunca
suspeitem”. Outras, contudo, imaginava ser condenado à prisão perpétua ou à
pena de morte.
“Fiz uma tremenda confusão. Acho que estou mais encrencado do que você
jamais esteve”, confidenciou numa conversa online com Adrian Lamo, hacker
norte-americano que fora sentenciado a dois anos em liberdade condicional por
invadir os computadores de uma série de empresas, incluindo o The New York
Times.
A perda de Watkins e a ameaça de ser descoberto pelas autoridades deixaram
Manning visivelmente perturbado. Dias antes de começar a desabafar com Lamo
na internet, foi rebaixado do posto de especialista para o de soldado raso, depois
de ter dado um soco na cara de outro soldado.
Julian Assange recentemente publicara, em rápida sucessão, quatro
documentos confidenciais vazados, todos de tipos diferentes, mas todos
acessíveis a um membro do Exército norte-americano na posição de Manning.
Em algum momento entre meados de janeiro e de fevereiro, Assange recebeu
uma cópia do telegrama da embaixada de Reykjavik, que publicou com sucesso
durante sua campanha nos veículos de comunicação da Islândia. Publicado em
18 de fevereiro, o telegrama foi descrito por Manning, mais tarde, como um
“teste”.
Em 15 de março, Assange publicou um longo relatório sobre o próprio
WikiLeaks, escrito por um “ciberanalista de contrainteligência” do Exército e
intitulado por Assange “Inteligência norte-americana planejou destruir o
WikiLeaks”. O “relatório especial” trazia a data de 2008, e seu autor estava
preocupado com as listas de equipamento militar que o WikiLeaks obtivera.
Apesar de ter 32 páginas, o relatório era, na verdade, uma constatação do óbvio
– ele afirmava que um bom modo de deter o WikiLeaks seria localizar e punir os
informantes. Mas o ousado título dado por Assange era o método jornalístico
perfeito para fazer propaganda e atrair doações.
Duas semanas depois, em 29 de março, Assange causou mais turbulência na
Islândia, publicando a série de perfis dos principais políticos locais feita pelo
Departamento de Estado norte-americano. Eles pareciam ter sido extraídos de
uma pasta biográfica separada da inteligência, e não de telegramas. Oficiais
islandeses contataram o ministro-conselheiro norte-americano, Sam Watson,
para formalizar uma queixa.
Uma semana mais tarde, Assange voou de Reykjavik até Washington para
divulgar o vídeo do Apache. Com base no que Manning disse depois, parece que
ele fizera um trabalho de detetive em relação ao vídeo e o enviara em fevereiro,
depois de descobri-lo num dossiê legal – o arquivo Judge-Advocate-General
(JAG) –, provavelmente porque a morte dos funcionários da Reuters conduziu a
uma investigação formal na época.
É claro que esses quatro vazamentos eram apenas o começo. Assange também
recebera um completo banquete de dados: um arquivo sobre os presos de
Guantánamo; um grande lote de relatórios de “atividades importantes” do
Exército norte-americano, que detalhavam a guerra em curso no Afeganistão;
um conjunto semelhante de diários da ocupação do Iraque; e – o mais
sensacional de tudo –, após o “teste” bem-sucedido com o vazamento do
telegrama de Reykjavik, Manning conseguiu, como foi dito mais tarde, fornecer
a Assange uma segunda coletânea de todos os 250 mil telegramas encontrados
na base de dados “Net-Centric Diplomacy”, à qual a habilitação de segurança do
jovem soldado proporcionava acesso irrestrito.
Apesar de as precauções de Manning e Assange funcionarem bem até então,
não era de admirar que o soldado se sentisse exposto. O processo pelo qual ele
entrou em contato com Assange, ganhando sua confiança depois, foi lento e
meticuloso, segundo trechos publicados mais tarde do que supostamente são os
registros de suas conversas. Nem ele nem seus advogados questionaram a
autenticidade desses registros. O jovem soldado, especialista em computadores,
parece ter entrado em contato com o “cara maluco de cabelo branco” pela
primeira vez no fim de novembro de 2009, mas de modo hesitante. Ele precisava
ter certeza de que o WikiLeaks era confiável o bastante para receber o material
explosivo sem que sua identidade se tornasse conhecida.
Por algum tempo, continuou em dúvida até sobre a pessoa com quem se
comunicava. Estava em contato com um usuário que dizia ser Assange, mas
seria ele realmente? Sentado em sua estação de trabalho, no deserto do Iraque,
como poderia ter certeza? Manning precisou de quatro meses para isso. Em suas
conversas com Assange, pedia detalhes ao australiano sobre como ele estava
sendo perseguido pelos oficiais do Departamento de Estado norte-americano.
Então os comparava com o que Assange declarava na imprensa, e as duas
informações correspondiam. Ele também usava sua habilitação de segurança
para verificar as atividades da Equipe de Segurança Diplomática do Norte da
Europa, o corpo de inteligência que provavelmente estava fazendo a vigilância
de Assange, e isso também correspondia à descrição fornecida pelo australiano.
O teste de Manning com o telegrama de Reykjavik confirmaria não apenas
que eles podiam se comunicar com segurança, mas também a capacidade de
Assange de publicar o que ele enviava. Com confiança cada vez maior, Manning
poderia seguir adiante com o valioso material.
Quais eram precisamente os negócios entre os dois homens? Segundo o
próprio Manning disse a Lamo, ele “desenvolveu uma proximidade com
Assange [...] mas eu não sei muito mais do que aquilo que ele me diz, o que é
muito pouco”. Em entrevistas, Lamo foi além, afirmando que Manning lhe
contara que usava um serviço de teleconferência criptografado via internet para
se comunicar diretamente com Assange e que, embora eles nunca tivessem se
encontrado pessoalmente, Assange “treinara” ativamente Manning em relação ao
tipo de dados que ele deveria lhe transmitir e como fazê-lo. Somente Lamo fez
essas declarações, que nunca foram confirmadas por evidências.
O que parece mais certo é que alguma forma de conexão segura foi criada
prioritariamente, ou talvez exclusivamente, para Manning, de modo que lhe
permitisse transmitir documentos e vídeos secretos diretamente para o
WikiLeaks. Em suas conversas com Lamo, Manning descreveu a técnica: ele
pegava um arquivo do material, extraído do sistema militar, e o criptografava
usando a cifra AES-256 (advanced encryption standard, padrão de criptografia
avançada, com um tamanho de chave de 256 bits), considerado um dos métodos
mais seguros.
Em seguida, enviava o material criptografado através de um FTP (file transfer
protocol, protocolo de transferência de arquivo) seguro para um servidor num
endereço de internet particular. Finalmente, a senha de criptografia que Manning
criara era enviada em separado, via Tor, fazendo com que fosse muito difícil
para as autoridades de vigilância descobrirem onde a informação iniciara sua
viagem.
Matt Blaze, professor associado de ciência da computação na Universidade da
Pensilvânia e especialista em criptografia, afirma que o sistema supostamente
construído por Manning era uma técnica bastante direta para transmissão segura:
“Do ponto de vista da segurança dos computadores, vias diretas normalmente
são muito boas, pois pode haver erros em vias complexas”.
Kevin Poulsen, editor sênior da revista Wired, que publicou uma versão
parcial das conversas com Lamo na web – e, ele mesmo, um conhecido ex-
hacker –, destaca que o trecho da conversa em que Manning descreve a técnica
de transmissão é hipotético. É a resposta de Manning a uma pergunta hipotética
de Lamo: “Como eu transmitiria algo se tivesse dados incriminadores?” Mas, se
Manning estava de fato descrevendo o modo como transmitiu os documentos ao
WikiLeaks, então era muito importante. “Isso está muito, muito além do método
normal do WikiLeaks de subir material para o site”, afirma Poulsen. “Se esse foi
o modo como ele transmitiu informação ao WikiLeaks, então isso mostra que
devia haver um nível de contato com o WikiLeaks que ia muito além dos
procedimentos normais.”
Em 21 de maio, pode-se supor que Assange e todas as suas conexões mútuas
no cenário hacker de Boston estavam evitando completamente qualquer contato
com Bradley Manning – para sua segurança e para a deles. Infelizmente,
Manning começou a enviar mensagens para Adrian Lamo. Ele fez contato com o
hacker no dia em que apareceu uma matéria na revista Wired mencionando
Lamo com alguma simpatia a respeito de seu recente diagnóstico de síndrome de
Asperger e depressão e de sua internação psiquiátrica.
De acordo com a versão de Lamo publicada na Wired, na primeira conversa,
Manning – que usava o pseudônimo Bradass87 – ofereceu informação suficiente
para ser facilmente rastreado. (Os registros foram editados aqui, para maior
clareza.)
“Sou analista de inteligência do Exército, enviado para o leste de Bagdá, e
aguardo dispensa por ‘transtornos de adaptação’[...]. Sei que você deve estar
muito ocupado. Se você tivesse um acesso sem precedentes a redes sigilosas
catorze horas por dia, sete dias por semana, por mais de oito meses, o que faria?”
No dia seguinte, ele começou a deixar escapar confissões. As declarações que
o atormentado rapaz de 22 anos fez sobre o maior vazamento na história oficial
dos Estados Unidos – algumas íntimas, outras desesperadas, outras ainda
inteligentes e cheias de princípios – constituem, por enquanto, o que temos de
mais próximo do testemunho do próprio Manning. Elas deixam claro que ele não
era ladrão, nem corrupto, nem louco e tampouco traidor. Ele acreditava que, de
algum modo, estava fazendo uma coisa boa.
“Pergunta hipotética: se você tivesse acesso livre a redes sigilosas por longos
períodos, digamos, oito a nove meses, e visse coisas incríveis, coisas terríveis,
coisas que pertencessem ao domínio público e não a algum servidor armazenado
numa sala escura de Washington, D.C., o que faria? (Ou Guantánamo, Bagram,
Bucca, Taji, VBC [Complexo de Bases Vitória], a propósito.) Coisas que
tivessem impacto sobre 6,7 bilhões de pessoas; digamos, uma base de dados de
meio milhão de eventos durante a Guerra do Iraque, entre 2004 e 2009, com
relatórios, grupos data-hora, locais com lat[itude]-lon[gitude], números de
baixas? Ou 260 mil telegramas do Departamento de Estado, de embaixadas e
consulados por todo o planeta, explicando em detalhes como o primeiro mundo
explora o terceiro, de uma perspectiva interna?”
Manning confessou: “O air gap foi invadido”. Air gap, nesse contexto, é o
jargão informático para o modo como a internet militar é mantida fisicamente
separada, por razões de segurança, dos servidores civis, nos quais a internet
comercial comum funciona.
Lamo o incentivou a continuar: “Como assim?”
“Vamos dizer que ‘alguém’ que eu conheço intimamente invadiu as redes
sigilosas norte-americanas, extraindo dados como os descritos aqui e
transferindo-os das redes sigilosas sobre o air gap para um computador de rede
comercial – ele selecionou os dados, comprimiu, criptografou e fez o upload
para um australiano maluco de cabelo branco que não parece querer ficar no
mesmo país por muito tempo.”
Manning continuou: “Carinha maluco de cabelo branco = Julian Assange. Em
outras palavras, fiz uma tremenda confusão. (Desculpe. Estou destruído
emocionalmente. Estou totalmente confuso. Acho que estou mais encrencado do
que você jamais esteve.)”
Lamo continuou a pressioná-lo: “Há quanto tempo você ajuda o WikiLeaks?”
“Desde que eles liberaram as mensagens de pager de 11/9. Reconheci
imediatamente que elas vinham da base de dados da NSA [Agência de
Segurança Nacional] e me senti à vontade para enviar-lhes o material.”
“Então, foi logo após a Ação de Graças de 2009?”
“Hillary Clinton e milhares de diplomatas no mundo inteiro vão ter um ataque
do coração quando acordarem de manhã e descobrirem que um repositório
inteiro de política estrangeira sigilosa está disponível, em formato pesquisável,
para o público.”
“Que tipo de conteúdo?”
“Hum... Maluco, quase criminoso, negociações políticas. As versões não
editadas de eventos e crises mundiais. Hum... Todo tipo de coisa: tudo, da
preparação até a Guerra do Iraque... até o conteúdo real dos ‘pacotes de ajuda’.
Por exemplo, dizem que os Estados Unidos estão enviando ajuda ao Paquistão,
que inclui recursos para água, comida, roupas. É verdade, isso está incluído, mas
os outros 85% vão para os caças F e para munição, para ajudar o esforço no
Afeganistão, de modo que os Estados Unidos possam convocar os paquistaneses
para um bombardeio aéreo, em vez de ter americanos potencialmente matando
civis e gerando uma crise de relações públicas. Tem muita coisa. E isso afeta a
todos no planeta. Onde quer que haja um posto norte-americano, há um
escândalo diplomático a ser revelado. Islândia, Vaticano, Espanha, Brasil,
Madagascar: se é um país e foi reconhecido pelos Estados Unidos como tal, tem
alguma sujeira oculta. É diplomacia aberta, anarquia mundial em formato CSV
[formato de texto simples]. É o Climagate com alcance global e profundidade de
tirar o fôlego. É lindo e assustador, e é importante que seja divulgado. Por
alguma estranha razão, acho que isso pode realmente mudar alguma coisa. Não
quero ser parte disso, pelo menos não agora. Não estou pronto. Não me
importaria tanto de ir para a prisão para o resto da vida ou ser executado, se não
fosse pela possibilidade de ter fotografias minhas espalhadas pela imprensa
mundial como um menino. Perdi a cabeça completamente. Nada tem sentido. A
CPU [unidade central de processamento do computador] não foi feita para esse
tipo de placa-mãe... >suspiro< Eu só queria tempo para me descobrir, para ser eu
mesmo e não precisar correr o tempo todo, tentando satisfazer as expectativas de
outras pessoas. Agora estou meio que à deriva, esperando para ser transferido de
volta aos Estados Unidos, ser dispensado e descobrir como diabos vou fazer essa
transição – enquanto vejo o mundo surtar no momento em que seus segredos
mais íntimos forem revelados. É um lugar muito estranho para estar, do ponto de
vista emocional e psicológico. Não posso acreditar no que estou lhe contando...
Fiquei isolado por tanto tempo. Eu só queria ser legal e viver uma vida normal,
mas os acontecimentos me forçam a imaginar modos de sobreviver. Inteligente o
bastante para saber o que está acontecendo, mas incapaz de fazer alguma coisa...
Ninguém se importou comigo... Estou me automedicando feito um doido,
quando não estou trabalhando no escritório de suprimentos (meu novo posto;
como estou sendo dispensado, não estou mais oficialmente na inteligência).
“Que tipo de escândalo?”
“Centenas deles.”
“Como assim? Quero muito saber os detalhes.”
“Eu não sei. Tem muita coisa. Eu não tenho mais o material original... hum... a
Santa Sé e a posição do Vaticano sobre os escândalos sexuais.”
“Tente se lembrar de algo.”
“Aquela história cozinhando lá na Alemanha... Desculpe, tem tanta coisa. É
impossível para um ser humano ler todos os 250 mil [telegramas] e não ficar
impressionado, e talvez até dessensibilizado. O alcance é muito vasto, e ainda
assim tão profundo.”
“Você podia me dar um voto de confiança... Sabe? Algum detalhe.”
“Um deles foi um teste: um telegrama sigiloso da embaixada norte-americana
em Reykjavik sobre o Icesave, com data de 13 de janeiro de 2010. Depois disso,
o embaixador islandês nos Estados Unidos foi chamado de volta e demitido.
Esse é só um dos telegramas.”
“Alguma coisa não foi liberada?”
“Eu teria que perguntar ao Assange. Eu zerei [apaguei] o original.”
“Por que você responde a ele?”
“Eu não respondo. Eu só queria a divulgação do material. Não quero tomar
parte nisso.”
“Pensei em ajudar o WikiLeaks com a OPSEC [segurança operacional].”
“Eles têm uma boa OPSEC. Eu estou obviamente a violando. Estou uma pilha
de nervos. Estou uma pilha total de nervos agora.”

A transcrição, editada por Lamo, é retomada mais tarde, com mais confissões:
“Sou uma fonte, não um voluntário. Quer dizer, sou uma fonte importante e
criei uma proximidade com Assange, mas não sei muito mais do que o que ele
me conta, que é muito pouco. Levei quatro meses para confirmar que a pessoa
com quem eu falava era mesmo Assange.”
“Como você fez isso?”
“Eu reunia informações quando fazia perguntas a ele, sempre que ele era
perseguido na Suécia pelos oficiais do Departamento de Estado. Fiquei tentando
imaginar quem o estava perseguindo e por quê – e ele me contava histórias de
outros momentos em que era perseguido e elas batiam com as que ele contava
em público.”
“E isso foi confirmado? A vigilância?”
“Com base na descrição que ele me deu, avaliei que fosse a Equipe de
Segurança Diplomática do Norte da Europa tentando imaginar como ele
conseguira o telegrama de Reykjavik. Eles também desconfiaram que ele tivesse
um vídeo do ataque aéreo a Garani, no Afeganistão – que ele tem, mas ainda não
descriptografou. A equipe de produção estava trabalhando, na verdade, no ataque
em Bagdá, que nunca foi realmente criptografado. Ele tem todo o 15-6 [relatório
de investigação] do incidente, então não será apenas o vídeo sem contexto. Mas
nem de longe é tão incriminador: foi um incidente horrível, mas nada comparado
ao de Bagdá. Os oficiais da investigação deixaram o material desprotegido num
diretório no servidor centcom.smil.mil, mas eles ziparam os arquivos, usaram o
AES-256, com uma senha excelente, portanto, até onde eu sei, ela ainda não foi
quebrada... +14 caracter[es]. Não acredito que estou lhe contando isso.”
Em 23 de maio, Lamo tomou a iniciativa de contatar Manning novamente. Ele
não contou ao jovem soldado que já o entregara para as Forças Armadas norte-
americanas. Mais tarde, Lamo afirmou que achava que esse era seu dever
patriótico: “Eu não teria feito isso se vidas não estivessem em jogo. Ele estava
na zona de guerra e basicamente tentava varrer o máximo de informações
sigilosas que podia, mandando tudo para o espaço”. Lamo começou a sondar o
novo amigo em busca de mais detalhes:
“Alguma coisa nova e excitante?”
“Não, fiquei o dia inteiro debaixo do sol, quarenta graus, arrumando diversos
detalhes para uma banda que vinha nos visitar e para as cheerleaders da equipe
de uma faculdade. Dei um churrasco, mas ninguém apareceu. Joguei um monte
de comida fora. Sim, cheerleaders de futebol americano, numa visita fora de
temporada – como parte dos projetos Morale, Welfare and Recreation (MWR)
[Incentivo Moral, Bem-Estar e Recreação]. Estou queimado de sol, cheirando a
carvão, suor e protetor solar. É basicamente isso que há de novo.”
“Assange usa o AIM [serviço de mensagens instantâneas do AOL] ou outro
serviço de mensagens? Eu gostaria de conversar com ele um dia desses sobre a
OPSEC. Minhas únicas credenciais, além da invasão, são que o FBI nunca
conseguiu meus dados nem me encontrou, antes da rendição negociada, mas isso
já é alguma coisa. E meus dados nunca foram recuperados.”
“Não, ele não usa o AIM.”
“Como eu poderia falar com ele?”
“Ele iria até você. Ele usa o OTR [criptografia Off The Record para serviços
de mensagens instantâneas], mas não fala nada sobre a OPSEC... Ele talvez use o
servidor jabber ccc.de [serviço de mensagens confidenciais do Chaos Computer
Club alemão], mas não diga que fui eu que lhe contei.”
“Certo.”
“Vou pegar algo para comer, falo com você mais tarde.“

Mais tarde, eles voltam a conversar e Lamo pergunta:


“Por acaso você é batista?”
“Fui criado como católico. Mas nunca acreditei numa palavra daquilo. Sou
ateu. Acho que sigo valores humanistas. Tenho umas plaquetas de identificação
em que está escrito ‘humanista’... Eu era a única pessoa não religiosa na cidade –
mais bancos de igreja do que gente. Apesar disso, eu os entendo, não sou
mesquinho. Eles realmente não sabem. Discordo educadamente, mas são eles
que se sentem desconfortáveis quando levanto, com muita educação, boas
questões... Por falar nisso, a revista New Yorker vai publicar um artigo de dez mil
palavras sobre o wl.org em 30 de maio.”

No dia seguinte, 25 de maio, Manning refletiu sobre como se sentia ligado ao


especialista do Exército Ethan McCord, que aparece no vídeo do Apache
retirando crianças feridas da van. Manning adicionou McCord como amigo no
Facebook depois que o vídeo vazou. McCord deixou o Exército norte-americano
e denunciou o ataque do helicóptero.
“É incrível como o mundo funciona – coloca os seis graus de separação em
um nível inteiramente novo. A história de como a coisa toda aconteceu parece
saída de um livro: o evento acontece em 2007, eu assisto ao vídeo em 2009 sem
contexto, faço pesquisa, encaminho as informações a um grupo de ativistas pela
liberdade de informação, acontece mais pesquisa, o vídeo é exibido em 2010, os
envolvidos se apresentam para discutir o evento, eu vejo os envolvidos
aparecendo para discuti-lo em público e até adiciono alguns como amigos no FB
– sem eles saberem quem eu sou. Eles mudam minha vida, eu mudo a deles, eles
mudam novamente a minha. E o ciclo se fecha.”
“Você está preocupado com a CI/CID [Divisão de
Contrainteligência/Investigação Criminal] examinando o material do Wiki?
Sempre fui paranoico.”
“A CID não tem nenhuma investigação aberta. O Departamento de Estado vai
ficar superirritado, mas acho que eles não são capazes de rastrear tudo.”
“E a CI?”
“Pode ser uma investigação do Congresso norte-americano e um esforço
conjunto para entender o que aconteceu. A CI provavelmente tomou nota, mas
isso não teve efeito sobre as operações. Portanto, foi prejudicial publicamente,
mas não aumentou os ataques ou a retórica. O esforço conjunto será meramente
político, ‘apuração da verdade’ – algo do tipo: ‘como podemos evitar que isso
aconteça novamente’, em relação aos telegramas do Departamento de Estado...”
“Por que seu trabalho lhe garante acesso?”
“Porque eu tinha uma estação de trabalho. Tinha dois computadores – um
conectado ao SIPRNet e o outro ao JWICS. Eram laptops do governo. Foram
zerados por causa do vazamento. As evidências foram destruídas pelo próprio
sistema.”
“Mas como você distribuiria os telegramas? Se distribuísse... Armazenados
localmente ou recuperáveis?”
“Eu não tenho mais cópia. Eles estavam armazenados num servidor
centralizado. Vulnerável pra caramba.”
“E qual o plano final, então?”
“Bem, o material, foi enviado ao WL, e Deus sabe o que vai acontecer agora:
com sorte, haverá discussão, debates e mudanças em todo o mundo. Se não,
estamos condenados como espécie. Se nada acontecer, vou desistir da sociedade
que temos. A reação ao vídeo me deu uma enorme esperança... O iReport, da
CNN, ficou impressionado; o Twitter explodiu. Quem viu sabia que havia
alguma coisa errada. Quero que as pessoas vejam a verdade, independentemente
de quem são, porque, sem informação, você não pode tomar decisões fundadas
como público. Se na época eu soubesse o que sei hoje, esse tipo de coisa. Ou
talvez eu seja apenas jovem, ingênuo e tolo.”
Manning continuou falando sobre sua crescente desilusão com o Exército e
com a política externa norte-americana:
“Não acredito mais em mocinhos contra bandidos – só vejo um monte de
Estados agindo em proveito próprio, com ética e padrões morais variáveis, claro,
mas ainda assim em proveito próprio. Quer dizer, nós somos melhores em alguns
aspectos: somos muito mais sutis, usamos muito mais palavras e técnicas legais
para legitimar as coisas. É melhor que desaparecer no meio da noite, mas, só
porque uma coisa é mais sutil, não quer dizer que seja certa. Acho que sou muito
idealista. Acho que a coisa que mais me pegou... que me fez repensar o mundo
mais que qualquer outra coisa foi ver os quinze presos levados para a Polícia
Federal do Iraque por imprimir ‘literatura anti-iraquiana’. A Polícia Federal do
Iraque não iria cooperar com as forças norte-americanas, por isso fui instruído a
investigar a questão, descobrir quem eram os ‘bandidos’ e se isso era importante
para os PFs. Descobri que eles imprimiram uma crítica acadêmica ao PM Maliki
[o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki]... Um intérprete a leu para mim
e, quando descobri que era uma crítica política bem intencionada, intitulada
‘Para onde foi o dinheiro?’, que seguia a trilha de corrupção no gabinete do
primeiro-ministro, imediatamente peguei a informação e corri até o oficial para
explicar o que estava acontecendo. Mas ele não quis me ouvir. Disse-me para
calar a boca e explicar como poderíamos ajudar os policiais federais a arranjar
mais presos. Tudo começou a desmoronar depois disso. Eu via as coisas de
modo distinto. Sempre questionei o modo como as coisas funcionavam e
investiguei para encontrar a verdade, mas, naquele momento, eu era parte de
algo. Estava ativamente envolvido em algo de que discordava completamente.”
“Isso poderia acontecer na Colômbia. Culturas diferentes, cara. A vida não
vale nada.”
“Ah, eu sei, mas eu era parte daquilo e estava completamente impotente.”
“O que você faria se seu papel no WikiLeaks corresse o risco de ser
descoberto?”
“Tentaria imaginar como eu poderia contar minha versão da história antes que
tudo fosse distorcido para me fazer parecer Nidal Hasan [major do Exército
norte-americano acusado de homicídio múltiplo no tiroteio no Forte Hood]. Não
acho que isso vá acontecer. Quer dizer, nunca fui notado... Também há um
controle terrível sobre os endereços IP. A rede foi atualizada e remendada muitas
vezes, os sistemas caíam, os registros se perdiam, e, quando eram movidos ou
atualizados, os hard drives eram zerados. É impossível rastrear muita coisa
nessas redes de campo, e quem iria esperar que tanta informação fosse extraída
de uma rede dessas?”
“Se eu fosse você, ficaria paranoico.”
“O vídeo veio de um servidor no nosso domínio! E ninguém percebeu...”
“Quanto tempo se passou entre o vazamento e a publicação?”
“O upload foi feito em fevereiro, não sei bem o dia.”
“Feito onde? Como eu transmitiria algo se tivesse dados incriminadores como
esses?”
“Hum... De preferência, criptografaria o arquivo no OpenSSL com AES-256...
Então usaria SFTP em endereços IP de saída preestabelecidos, mantendo a chave
separada e fazendo o upload por meios distintos... O envio HTTPS seria
suficiente do ponto de vista jurídico, mas eu usaria o Tor além dele... Fontes de
longo prazo têm preferência... Veracidade... O material é fácil de verificar porque
eles sabem um pouco mais sobre a fonte do que se ela fosse simplesmente
anônima, e a confirmação pública do material inicial faria com que eles
quisessem publicá-lo, eu acho. Se dois dos maiores ‘golpes’ de relações públicas
viessem de uma única fonte, por exemplo. Apenas enviar o material é mais
provável de passar despercebido, sem contatá-los por outros meios e dizer: ‘Ei,
verifique material enviado para x’.”
Manning continuou falando sobre a descoberta do vídeo do helicóptero:
“Percebi o valor de algumas coisas. Vi o vídeo de um jeito frio, por exemplo. À
primeira vista, era apenas um grupo sendo atingido por um helicóptero, nada de
mais. Havia mais um monte de onde veio esse, certo? Mas alguma coisa parecia
errada com a história da van, e também com o fato de que ele estava guardado
no diretório do oficial da JAG. Então investiguei, localizei a data e as
coord[enadas] exatas do GPS e pensei: ‘Então foi assim que aconteceu. Legal...’
Em seguida, entrei na internet normal e ainda estava pensando nisso. Aí digitei
no Google a data e o local e vi isso [uma reportagem do New York Times sobre a
morte dos jornalistas da Reuters]... Fiquei pensando nisso por semanas,
provavelmente um mês e meio, antes de enviar para o [WikiLeaks]”.

Manning continuou detalhando a falha de segurança que permitia a ele, ou a


qualquer outro, desviar dados de redes sigilosas sem levantar suspeitas.
“O engraçado é que transferíamos muitos dados para CDs sem identificação.
Todo mundo fazia isso... vídeos, filmes, música, tudo às claras. Levar e trazer
CDs das redes era/é uma coisa comum. Eu entrava com um CD-RW de música
identificado com algo como ‘Lady Gaga’, apagava as músicas e gravava um
arquivo dividido e comprimido. Ninguém suspeitava de nada. Era meio triste. Eu
nem precisava disfarçar... É uma cultura que alimenta oportunidades. É possível
que a parte mais difícil seja o acesso à internet – subir dados confidenciais em
internet aberta não é uma boa ideia, porque as redes são monitoradas por
rebeldes/terroristas/milícias/tipos criminosos.”
“Tor?”
“Tor + SSL + SFTP... Eu até perguntei a um rapaz da NSA se ele poderia
identificar alguma atividade suspeita saindo das redes locais. Ele deu de ombros,
disse que não era prioridade e voltou a ver Controle absoluto. Então, era um
vazamento massivo de dados, facilitado por inúmeros fatores físicos, técnicos e
culturais. Um exemplo perfeito de como não fazer INFOSEC... Eu ouvia e
cantava baixinho ‘Telephone’, da Lady Gaga, enquanto extraía possivelmente o
maior vazamento de dados da história americana... Servidores ruins, registros
ruins, segurança física ruim, contrainteligência ruim, análise de sinal negligente
– uma perfeita tempestade. >suspiro< Parece bem ruim, hein?... Bem, deveria
ser melhor! É triste. Quer dizer, e se eu fosse alguém mal-intencionado? Eu
poderia ter vendido à Rússia ou à China e ganhado muito dinheiro!”
“E por que não fez isso?”
“Porque são dados públicos. Pertencem ao domínio público. A informação
deve ser livre. Porque outro Estado simplesmente se aproveitaria das
informações e tentaria conquistar alguma vantagem. Se ela é divulgada, deve ser
um bem público, e não de algum analista de inteligência nojento. Sou louco
assim. Não sou má pessoa, acompanho tudo. Observo a coisa toda se desdobrar a
distância. Leio o que todo mundo diz, olho as imagens, observo e sinto muito
por eles, porque basicamente desempenho um papel essencial na vida deles sem
nunca tê-los encontrado. Eu era assim como analista de inteligência também. A
maioria não se importa, mas eu sabia que tinha um papel na vida de centenas de
pessoas sem que elas soubessem. Eu me importo e acompanho alguns detalhes,
para garantir que todos estejam bem. Não me vejo brincando de ‘Deus’ ou coisa
parecida, porque não sou isso: só desempenho meu papel no momento. Não
controlo o modo como reagem. Há muito mais pessoas que fazem o que eu faço,
no interesse do Estado, diariamente, e que não ligam a mínima – é assim que
tento me separar de meus (ex-)colegas... Não tenho certeza se serei considerado
um tipo de hacker, cracker, hacktivista, informante ou sei lá o quê. Na verdade,
sou apenas eu... Não poderia ser um espião. Espiões não divulgam as coisas para
o mundo saber.”

Imediatamente após ser denunciado por Lamo, Manning foi preso e voou do
Iraque para uma prisão militar no Campo Arifjan, no Kuwait. Poucas semanas
depois, foi acusado de “transferir dados sigilosos para o computador pessoal e
instalar software não autorizado num sistema de computador sigiloso, em
conexão com o vazamento do vídeo de um ataque de helicóptero no Iraque em
2007”, além de “comunicar, transmitir e fornecer informações sobre a defesa
nacional a uma fonte não autorizada e divulgar informações sigilosas sobre a
defesa nacional, que se acredita que poderiam trazer prejuízos aos Estados
Unidos”. Mais tarde, voou de volta aos Estados Unidos e, desde então, está preso
na Base dos Fuzileiros Navais em Quântico, na Virgínia, cerca de cinquenta
quilômetros a sudoeste de Washington, D.C. Embora não tenha sido julgado ou
condenado, está vivendo sob condições difíceis. Passa 23 horas por dia sozinho
numa cela de 1,8 por 3,5 metros, com uma hora de exercício, na qual caminha
fazendo o número oito num cômodo vazio. Segundo seu advogado, Manning não
pode dormir depois que acorda, às cinco da manhã. Quando tenta fazer isso, os
guardas – que não podem conversar com ele – imediatamente mandam que se
sente ou fique de pé. Qualquer tentativa de fazer flexões ou outros exercícios na
cela é impedida pelo uso da força. “Os guardas devem verificar as condições do
soldado raso Manning a cada cinco minutos, perguntando se ele está bem. O
soldado raso Manning deve responder de maneira afirmativa. À noite, se os
guardas não podem vê-lo claramente, por estar com a cabeça coberta pelo
cobertor ou virado para a parede, eles o acordam para verificar se está bem. Ele
recebe todas as refeições na cela. Não pode ter travesseiro nem lençóis. No
entanto, recebeu dois cobertores e, recentemente, um novo colchão com um
travesseiro embutido. Não lhe é permitido ter objetos pessoais.”
Os amigos de Manning dizem que ele é praticamente torturado no esforço de
subjugá-lo e fazer com que implique Assange numa acusação de conspiração.
David House, uma das duas únicas pessoas que podem visitá-lo, afirma ter
testemunhado a deterioração – mental e física – do soldado durante os meses de
encarceramento. House conta que, cada vez que vê Manning na cela, o
prisioneiro tem um discurso menos fluente, é menos capaz de expressar ideias
complexas e manifestá-las de modo eloquente. “Sempre que vou até lá, parece
ter havido uma nítida piora. Física também. Quando o vi pela primeira vez, ele
era um jovem forte, de olhos brilhantes, como nas primeiras fotografias, mas
agora parece fraco, tem bolsas enormes debaixo dos olhos, e os músculos se
transformaram em gordura. É difícil ver alguém se debilitar dessa maneira em
um intervalo tão curto de tempo.”
O Exército norte-americano afirma que o estimula a cada cinco minutos para
seu próprio bem-estar. Como ele é um suicida em potencial, dizem que é vigiado
para que não possa se ferir. O próprio Manning pode estar se lembrando agora
do que disse a seu interlocutor nos registros de conversas: “Somos muito mais
sutis, usamos muito mais palavras e técnicas legais para legitimar as coisas. É
melhor que desaparecer no meio da noite, mas, só porque uma coisa é mais sutil,
não quer dizer que seja certa”. Ele pode receber livros e, no fim de 2010, pediu
que lhe enviassem a Crítica da razão pura, de Kant.
7
O acordo
Hotel Leopold, Place Luxembourg, Bruxelas
21H30, 21 DE JUNHO DE 2010

“Eu tinha a sensação de que era a maior história do planeta.”

– NICK DAVIES

TRÊS HOMENS se sentaram e pediram café repetidas vezes. Passaram a tarde de


verão discutindo até o cair da noite, só parando para comer um prato de massa.
Finalmente, o mais alto deles pegou um guardanapo amarelo de aspecto barato,
estendeu-o sobre a frágil e moderna mesa do café na entrada do hotel e começou
a escrever. Um dos presentes era Ian Traynor, correspondente europeu do The
Guardian, que recorda: “Julian pegou um minilaptop, abriu e fez alguma coisa
no computador. Em seguida, pegou um guardanapo e disse: ‘Muito bem, aqui
está’. Então nós perguntamos: ‘Aqui está o quê?’ E ele respondeu: ‘Aqui está
todo o arquivo. A senha é este guardanapo’”.
Ele continua: “Eu estava atônito. Nós esperávamos uma negociação longa e
muitas condições, mas foi instantâneo. Era como um ato de fé”.
Assange circulara diversas palavras despreocupadamente e o logo do hotel no
guardanapo do Hotel Leopold, acrescentando a frase “sem espaços”. Era a senha.
No canto, rabiscou apenas três letras: GPG, referência ao sistema de criptografia
que usara para um website temporário. O guardanapo era o toque perfeito, digno
de um romance de espionagem de John le Carré. Os dois jornalistas do The
Guardian estavam perplexos. Nick Davies enfiou o guardanapo na mala, com
suas camisas sujas. De volta à Inglaterra, o guardanapo amarelo foi
reverentemente guardado em seu escritório, junto a uma pilha de blocos de
anotações jornalísticas e um amontoado de livros.
“Acho que vou emoldurá-lo”, disse.

Alguns dias antes, Davies estava sentado tranquilamente no escritório,


levantando os olhos do jornal matutino para o jardim e admirando a paisagem de
Sussex. Davies é um dos jornalistas investigativos mais famosos do The
Guardian. Numa carreira de mais de três décadas, trabalhou em diversas
histórias que revelaram obscuros abusos de poder.
Seu livro Flat Earth News (Notícias da terra plana) é um aclamado registro do
modo como a indústria jornalística perdeu o rumo, abandonando as reportagens
reais pelo que Davies chamou, de maneira memorável, de churnalism,* ou
“jornalismo de press release”.
Na ocasião, Davies estava envolvido numa longa investigação sobre o
escândalo dos grampos telefônicos do tabloide News of the World, na época em
que Andy Coulson era o editor. Coulson – que, em consequência, foi forçado a
renunciar, em janeiro de 2011, ao cargo de chefe de relações-públicas do
primeiro-ministro conservador, David Cameron – afirmou desconhecer os
grampos telefônicos ilegais de celebridades e membros da família real feitos por
sua equipe.
Hoje, porém, a atenção de Davies era atraída pelo noticiário internacional do
The Guardian: “Oficiais americanos buscam Julian Assange – fundador do
WikiLeaks – numa tentativa de pressioná-lo a não publicar milhares de
telegramas diplomáticos confidenciais e potencialmente embaraçosos, que
apresentam avaliações não editadas sobre governos e líderes do Oriente Médio”.
A história continuava: “O Daily Beast, um website norte-americano de
reportagens e colunas de opinião, informou que investigadores do Pentágono
estão tentando localizar Assange – cidadão australiano que frequentemente muda
de país – depois da prisão de um soldado americano, na semana passada, que
teria passado ao WikiLeaks um vídeo confidencial mostrando o massacre de
civis por tropas americanas em Bagdá. O soldado, Bradley Manning, também
afirmou ter dado ao WikiLeaks 260 mil páginas de telegramas diplomáticos
confidenciais e avaliações da inteligência. As autoridades americanas temem que
o vazamento possa causar ‘danos graves à segurança nacional’”.
Davies estava chocado. Um soldado raso desconhecido, de 22 anos,
aparentemente baixara todo o conteúdo de uma base de dados confidencial
militar dos Estados Unidos. Manning estava preso no Kuwait. Será que havia
algum meio de o The Guardian pôr as mãos nos telegramas?
“Eu tinha a sensação de que era a maior história do planeta”, afirma Davies.
Fazendo uma pesquisa online sobre “Bradley Manning”, ele encontrou as
transcrições publicadas no site Wired.com, que detalhavam as conversas do
soldado com o ex- hacker Adrian Lamo, nas quais Manning aparentemente
confirmava que baixara de forma ilegal mais de 250 mil documentos
confidenciais, falava de “negociações políticas quase criminosas” dos Estados
Unidos e afirmava: “Hillary Clinton e milhares de diplomatas no mundo inteiro
vão ter um ataque do coração”.
Se apenas uma parcela do que Manning dizia fosse verdade, o WikiLeaks
tinha agora nas mãos centenas de milhares de telegramas que detalhavam
operações diplomáticas suspeitas, crimes de guerra no Afeganistão e no Iraque e
sabe Deus o que mais. Era uma mina de ouro. “Havia uma grande história nisso
tudo. Não era difícil perceber”, diz Davies. Seu radar de repórter disparara em
sinal de entusiasmo. Mas, surpreendentemente, ninguém mais no que antes fora
conhecido como Fleet Street – a sede da imprensa britânica – parecia ter
considerado as dimensões massivas daquilo.
A chave para acessar os telegramas – e as histórias neles contidas – tinha de
ser Julian Assange. Davies nunca o havia encontrado pessoalmente, mas
conhecia o site – chegara até o WikiLeaks durante uma investigação do The
Guardian, em 2009, sobre evasão fiscal e bancos suíços. Ele queria entrar em
contato com Assange rapidamente, antes dos investigadores do Pentágono ou de
qualquer outra pessoa. Mas onde ele estaria? O Daily Beast informava que
Assange cancelara uma aparição pública em Las Vegas em virtude de
“problemas associados a segurança” – um grupo de ex-oficiais da inteligência
americana prevenira publicamente que a segurança física de Assange estava em
risco. Agora havia poucas pistas sobre seu paradeiro.
Davies enviou uma série de e-mails para Assange e ofereceu-se para ajudar
Manning e tornar pública a situação do rapaz. Em 16 de junho, escreveu: “Olá,
Julian, passei a tarde de ontem no escritório do The Guardian argumentando que
Bradley Manning é atualmente a história mais importante do planeta. Há muito a
fazer, e isso leva um pouco de tempo. Mas agora acho que a questão mais
importante é acompanhar e expor o esforço do governo norte-americano em
eliminar Bradley, você, o WikiLeaks e tudo o que vocês possam querer levar ao
domínio público”. O e-mail continuava: “Você pode conversar comigo sobre isso
ou me apresentar a alguém que possa? Talvez uma possibilidade seja eu
conversar com algum advogado que esteja assessorando Bradley. Boa sorte,
Nick”.
Essa última tentativa obteve resposta – apesar de não ser muito útil. Assange
apenas enviou um comunicado à imprensa que descrevia como o WikiLeaks
convencera os parlamentares islandeses a construir um “novo paraíso para os
veículos de comunicação” na Islândia.
Davies foi até o escritório do The Guardian, em Londres, para consultar David
Leigh, um colega e velho amigo. Naquele mesmo ano, Leigh encontrara-se com
Assange na Noruega e tentara, sem sucesso, fazer um acordo sobre o vídeo do
helicóptero Apache. Ele estava cético e avisou a Davies que o australiano era
imprevisível. Além disso, duvidava que Assange quisesse colaborar. “Mas faça
como quiser”, acrescentou Leigh.
Davies não desistiu. Enviou a Assange outro e-mail oferecendo-se para “viajar
para onde quer que seja e me encontrar com você ou outra pessoa para levar isso
adiante”. Dessa vez, Assange foi mais afável. Enviou o nome de Birgitta
Jónsdóttir, a parlamentar islandesa que coproduzira o vídeo do Apache e cujas
informações no Twitter seriam solicitadas, mais tarde, pelo Departamento de
Justiça norte-americano, e também mencionou Kristinn Hrafnsson, seu leal
representante. Assange concluiu a mensagem dizendo: “Atualmente, por razões
de segurança, é difícil me entrevistar, mas me envie todos os seus contatos”.
Davies enviou e-mails para Jónsdóttir, Hrafnsson e outros participantes do
WikiLeaks e falou com muitos deles por telefone. Achava que estava começando
a fazer progressos. Mas também estava dolorosamente consciente de que, se
apenas pedisse que o WikiLeaks compartilhasse as informações, Assange o
consideraria mais um representante dos gananciosos e desonestos veículos de
comunicação de massa. Algo mais sutil era necessário – algo que, no fim das
contas, proporcionasse ao The Guardian acesso aos telegramas, mas também
oferecesse a Assange um modo de resolver os próprios problemas.
Na noite de domingo, 19 de junho, Davies recebeu um telefonema. O
informante disse: “Não diga a Julian que eu lhe contei, mas ele vai para Bruxelas
amanhã, para uma coletiva de imprensa no Parlamento europeu”. Agitado,
Davies telefonou para Leigh, que estava em casa, em Londres. Leigh assistia a
uma série policial na tevê e pareceu pouco impressionado com os
acontecimentos. Em seguida, Davies ligou para o editor do The Guardian, Alan
Rusbridger. Os dois haviam começado juntos no jornal, em 1979, como
repórteres e moraram em apartamentos vizinhos no bairro de Clerkenwell, em
Londres. Rusbridger confiava plenamente em Davies e dera a ele carta branca
para seguir em projetos investigativos, acreditando que ele sempre traria algo
valioso.
Esse arranjo pouco comum permitira a Davies iniciar longas investigações em
diversas áreas, incluindo a questão da pobreza no Reino Unido, o sistema
educacional britânico e a corrupção policial. O jornalismo desafiador e profundo
de Davies criara agitações políticas e se mostrara popular entre os leitores.
“Alan, o que você sabe sobre esse rapaz, Bradley Manning?”, perguntou
Davies.
“Não muito”, Rusbridger respondeu.
“Bem, é a maior história do planeta...”
“Sim”, concordou Rusbridger, “vá para Bruxelas.”
Não havia transporte para levar Davies a Bruxelas a tempo para a coletiva de
imprensa, mas o editor sugeriu que Ian Traynor, que era muito experiente e
morava na cidade, tentasse conversar com Assange. Davies enviou um e-mail
para Traynor naquela noite: “Bradley Manning, de 22 anos, é um analista de
inteligência americano que trabalhava numa base dos Estados Unidos nos
arredores de Bagdá, onde tinha acesso a duas redes de comunicação fechadas.
Uma continha informação das embaixadas norte-americanas de todo o mundo –
classificada como ‘secreta’; a outra continha informação das agências de
inteligência norte-americanas – classificada como ‘ultrassecreta’. Manning
concluiu que não gostava do que estava vendo e copiou uma grande quantidade
delas em CDs”.
Ele explicou que, na sua opinião, Manning dera “um bom e um mau passo”. A
boa ideia foi procurar Assange; a má foi aparentemente deixar escapar o que
fizera para Lamo, “um solitário hacker norte-americano”.
Davies pediu a Traynor que fosse à sessão de debates de Assange, na hora do
almoço, no edifício do Parlamento. “A longo prazo, trata-se de tentar criar algum
tipo de aliança para que – se e quando Assange divulgar o material que Manning
alega ter vazado – nós estejamos envolvidos.”
No dia seguinte, em Bruxelas, Traynor conseguiu fazer contato com a colega
de Assange, Birgitta Jónsdóttir. Ele a reconheceu num café, acompanhada de
dois homens, incluindo “um cara que vestia um enorme pulôver de lã islandês”.
Na verdade era o próprio Assange, mas Traynor – que nunca o vira antes – não o
reconheceu. “Caso contrário, eu o teria agarrado!”, disse.
Traynor somente conseguiu falar com Assange no evento no Parlamento
europeu. Além dele, o único repórter britânico presente era um foca da rádio
BBC. Mas a sala estava cheia e havia vários jornalistas estrangeiros – entre eles,
um repórter de televisão austríaco que Traynor sabia que tinha faro para uma boa
história –, por isso o correspondente do The Guardian agiu rapidamente e
afastou Assange da multidão quando a reunião acabou.
Eles saíram juntos por um aglomerado de corredores parlamentares e
conversaram sozinhos por cerca de meia hora. Traynor considerou Assange
tranquilo, cauteloso e enigmático. Ficou impressionado com sua inteligência e
sagacidade, e, embora algumas vezes considerasse suas respostas evasivas e
difíceis de acompanhar, “gostei dele e acho que ele gostou de mim”. Traynor
ficou contente ao ouvir que o fundador do WikiLeaks era um grande fã do The
Guardian. Ele parecia ávido por iniciar um projeto de colaboração com um
jornal que tivesse credenciais progressistas. Assange revelou, de modo
significativo, que o WikiLeaks estava planejando divulgar “dois milhões de
páginas” de material bruto. Traynor perguntou do que se tratava, e Assange
simplesmente respondeu: “Tem a ver com guerra”. Em seguida, deu a Traynor o
número de seu celular local de Bruxelas e eles combinaram de se encontrar
novamente no dia seguinte.
Enquanto isso, Davies almoçava, ansioso, com Rusbridger no restaurante no
andar térreo do Kings Place, a sede londrina do The Guardian, com vista para as
casas flutuantes atracadas no Regent’s Canal. No meio do almoço, o e-mail de
Traynor chegou, confirmando que Assange estava disposto a marcar um
encontro. Naquela noite, Davies não conseguiu dormir: “Eu estava muito
agitado”. A primeira coisa que fez, na manhã seguinte, foi pegar o trem-bala na
estação de St. Pancras, em Londres, até o túnel do Canal e depois para Bruxelas.
Enquanto o vagão do Eurostar atravessava a paisagem verde de Kent, ele
formulava e reformulava seu argumento. Do modo como via as coisas, Assange
estava enfrentando quatro linhas de ataque distintas. A primeira era física –
alguém poderia atacá-lo ou coisa pior. A segunda era legal – Washington poderia
tentar pressionar o WikiLeaks nos tribunais. A terceira era tecnológica – os
Estados Unidos ou seus representantes poderiam tirar o site do WikiLeaks do ar.
A quarta e, talvez, mais preocupante possibilidade era um ataque à imagem –
uma campanha de propaganda maliciosa poderia ser iniciada, acusando Assange
de colaborar com terroristas.
Davies também sabia que Assange estava desapontado com a recepção ao
vídeo do Apache, divulgado de maneira solitária em Washington. A história
deveria ter iniciado um escândalo mundial; em vez disso, a narrativa fora
deslocada e a atenção não se concentrara no assassinato de iraquianos inocentes,
mas no próprio WikiLeaks.
Havia outra grande preocupação. Se o The Guardian obtivesse e publicasse
sozinho os telegramas diplomáticos, a embaixada norte-americana em Londres
poderia tentar impedir o jornal por meio de uma liminar. O Reino Unido é o lar
de algumas das leis mais hostis em relação aos veículos de comunicação, sendo
considerado uma espécie de paraíso para oligarcas suspeitos e outros duvidosos
“turistas da difamação”. Davies sentia que era necessária uma aliança
multijurisdicional entre veículos de comunicação tradicionais e o WikiLeaks,
incluindo, talvez, organizações não governamentais e outras instituições. Se o
material dos telegramas fosse publicado simultaneamente em diversos países,
será que isso evitaria a ameaça de liminar no Reino Unido? Davies abriu o
notebook e escreveu: “New York Times/Washington Post/Le Monde”,
acrescentando: “Políticos? ONGs? Outros interessados?” Talvez o The Guardian
pudesse ter uma amostra dos telegramas vazados e selecionar os melhores
ângulos da história. O The Guardian e o WikiLeaks repassariam então esses
“mísseis da mídia” a outras publicações amigas. O plano lhe agradava. Mas será
que Assange concordaria?
Enquanto isso, em Bruxelas, Traynor descobria – assim como muitos outros –
que ter o número do celular de Assange e conseguir falar com ele eram duas
coisas muito distintas. Temendo que o australiano tivesse ido embora, Traynor
dirigiu-se ao Hotel Leopold, na Place Luxembourg, próximo ao Parlamento
europeu, onde Assange estava hospedado. Subiu até o quarto e bateu à porta.
Finalmente, Assange apareceu e o convidou a entrar. O quarto parecia a cela de
um monge moderno – os únicos bens materiais de Assange aparentemente
incluíam duas mochilas cheias de equipamentos, três laptops e um monte de
celulares e cartões SIM. Suas roupas se resumiam a uma camiseta, um pulôver e
uma calça jeans.
Assange estava de ótimo humor. O ex- hacker disse a Traynor: “Vocês, do The
Guardian, têm que fazer algo em relação à segurança. Vocês têm que manter
seus e-mails seguros e criptografados”.
“Ele conhecia o conteúdo do e-mail que eu enviara a Londres”, diz Traynor,
bastante impressionado, “e agora estava se exibindo, mas também estava
preocupado.”
Quando Davies chegou à cidade, os dois repórteres do The Guardian
dirigiram-se novamente ao Leopold e ligaram para o quarto. Assange –
aparentemente ainda no fuso horário australiano – dormira de novo. Mas
finalmente apareceu, quinze minutos depois. Os três sentaram-se no café na
entrada do hotel. Eram 15h30; não havia mais ninguém por perto.
Seguiu-se uma conversa de seis horas que resultaria numa extraordinária –
embora algumas vezes tensa – parceria entre um grande jornal e o WikiLeaks –
um novo modelo de cooperação para a publicação do maior vazamento do
mundo. A revista Vanity Fair caracterizou-o como um namoro entre “um dos
jornais mais antigos do mundo, com critérios jornalísticos rígidos e
consagrados”, e “um dos mais novos veículos da geração de jornalismo de
denúncia online”. O artigo da autora americana Sarah Ellison afirmava: “O The
Guardian – como outros veículos de comunicação – acabaria por considerar
Assange como alguém que dever ser tratado com luvas de pelica ou, talvez, com
luvas de látex – sedutor demais para ser ignorado, corrompido demais para ser
aceito sem reservas”.
As esperanças de um acordo, porém, corriam o risco de desandar desde o
início. Assange já se posicionara como inimigo ideológico de Davies, cuja
campanha muito difundida para forçar o tabloide de Rupert Murdoch, o News of
the World, a assumir e interromper suas escutas telefônicas fora denunciada
anteriormente pelo australiano como uma tentativa vil de “políticos e da elite
social, que se lamenta hipocritamente”, de exigir o direito à privacidade.
Assange acusara Davies de “falta de solidariedade jornalística” por criticar o
News of the World, dizendo que fora meramente “uma oportunidade de atacar
um rival de classe e jornalístico”. Agora ele não conseguia disfarçar certo
desprezo pelos veículos de comunicação de massa em geral.
No entanto, ele passou a Davies a impressão de ser alguém “muito jovem,
pueril, um tanto tímido – e perfeitamente fácil de lidar”. E bebeu suco de laranja.
Delicadamente, Davies começou a apresentar as opções. Disse a Assange que
era improvável que alguém o atacasse fisicamente, pois isso seria um
constrangimento mundial para os Estados Unidos. Mas, profetizava Davies, os
Estados Unidos iniciariam uma guerra suja de informações e o acusariam de
ajudar terroristas, pondo em risco a vida de inocentes. A resposta do WikiLeaks
deveria contemplar o direito do mundo de saber a verdade sobre as guerras
sombrias conduzidas pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão.
“Nós vamos colocá-lo num elevado pedestal moral – tão elevado que você
precisará de uma máscara de oxigênio. Você vai estar lá em cima com Nelson
Mandela e madre Teresa”, disse Davies a Assange. “E eles não vão conseguir
prender você. Nem vão poder bloquear o acesso ao site.”
Assange parecia interessado. Não era a primeira vez que o WikiLeaks
trabalhava com veículos de comunicação tradicionais, e ele concluíra que
poderia ser uma boa ideia fazer isso de novo. Em seguida, revelou o tamanho do
cache. Confidenciou que o WikiLeaks, na verdade, obtivera diários que
detalhavam cada um dos incidentes militares norte-americanos na Guerra do
Afeganistão. “Santo Deus!”, observou Davies. Havia mais. Assange acrescentou
que o site tinha diários de guerra semelhantes do Iraque desde março de 2003.
“Cacete!”, exclamou Davies.
Mas não era só isso. O WikiLeaks possuía telegramas secretos do
Departamento de Estado norte-americano, relativos a missões diplomáticas dos
Estados Unidos em todo o mundo. E, para finalizar, ele tinha arquivos dos
tribunais de revisão do status de combatentes inimigos mantidos na baía de
Guantánamo – a conhecida colônia penal norte-americana em Cuba. No total,
para espanto do repórter, havia mais de um milhão de documentos.
Era um material impressionante. Davies propôs que o The Guardian tivesse
acesso prévio a todo o material, para contextualizar o que, de outra forma, seria
uma massa de dados incompreensível.
Assange disse que o WikiLeaks estava pronto para divulgar essas informações
havia duas semanas, mas que hesitava porque, embora nunca tivesse revelado se
Manning era realmente sua fonte, estava preocupado com as implicações legais
para o jovem soldado. O Exército ainda não o acusara; ele acreditava que o
soldado raso fora treinado para resistir a interrogatórios, e as declarações de
Lamo eram evidentemente “inverossímeis”. Mas Assange temia que a
publicação do material vazado pudesse dar aos investigadores do Pentágono
evidências para prosseguir.
Davies e Assange conversaram sobre a possibilidade de incluir o The New
York Times como parceiro. Segundo Davies, em hipótese alguma a administração
de Obama atacaria o jornal democrata mais poderoso dos Estados Unidos. As
histórias do WikiLeaks no jornal estariam protegidas pelas disposições sobre a
liberdade de imprensa da primeira emenda da Constituição americana. Além
disso, havia o precedente da batalha histórica do The New York Times pelo
direito de publicar os Papéis do Pentágono. O status doméstico do jornal
também tornaria mais difícil para as autoridades acusarem Manning de
espionagem, o que poderia ocorrer com a publicação do material apenas no
exterior. Assange concordou.
Ian Traynor recorda: “Assange conhecia algumas pessoas no New York Times.
Ele queria que o material fosse publicado nos Estados Unidos, não apenas no
exterior. Se fosse publicado apenas no exterior, ele achava que estaria mais
vulnerável”.
Em caso de acordo, Assange insistia que o Times, em Nova York, deveria
publicar o material cinco minutos antes que o The Guardian, em Londres. Ele
imaginava que isso reduziria o risco de Manning ser acusado de violação da Lei
de Espionagem. Traynor sugeriu a possibilidade de também incluir a Der
Spiegel, de Berlim. Ele enfatizou que a revista alemã tinha muito dinheiro e a
própria Alemanha havia se envolvido militarmente no Afeganistão.
Assange disse que, se o Grande Vazamento realmente ocorresse, ele queria
controlar o cronograma do The Guardian – não queria publicar cedo demais para
não prejudicar Manning, mas também estava preparado para divulgar todo o
material imediatamente se houvesse algum tipo de ataque ao WikiLeaks.
A certa altura, os futuros parceiros saíram para comer num restaurante
italiano. Durante a refeição, Assange olhava nervosamente por cima do ombro
para ver se estava sendo observado. (Até onde se percebia, não havia agentes
norte-americanos por lá – apenas Daniel Cohn-Bendit, líder do partido verde
europeu e ex-estudante rebelde, sentado bem atrás dele.) Assange avisou que, se
o acordo se concretizasse, o The Guardian teria que melhorar a segurança e
adotar medidas rigorosas. “O jornal tem que supor que os telefones serão
grampeados, os e-mails serão lidos e os computadores conterão vírus”, disse.
“Ele tinha uma enorme preocupação com a questão da segurança”, lembra
Davies. E também parecia conhecer muito bem os veículos de comunicação.
“Ele sugeriu que encontrássemos uma história adequada para oferecer à rede Fox
News, pois assim eles ficariam do nosso lado em vez de se tornarem cães de
ataque. Outra boa ideia. Estávamos caminhando.”
Assange retornou ao quarto, voltando com um pequeno laptop preto. E
apresentou a Davies amostras reais da base de dados do Afeganistão. Disse que a
equipe do WikiLeaks havia examinado os dados e descoberto que ocorreram
muito mais massacres no Iraque do que no Afeganistão. Mas as amostras da base
de dados pareciam imensas, confusas e impossíveis de se navegar – uma floresta
impenetrável de jargões militares. Davies, exausto depois de um longo dia,
começou a se questionar se elas, de fato, incluíam algo de valor jornalístico.
E havia outro problema. Como ele levaria o material sobre o Afeganistão para
o The Guardian, em Londres? Ele poderia, claro, salvá-lo num pen drive, mas
corria o risco de tê-lo apreendido pelos oficiais britânicos na alfândega. Assange
– um hacker genial – deu-lhe a resposta: ele transferiria o material criptografado
para um site especial, que existiria apenas por um curto período, antes de
desaparecer.
Abrindo novamente o netbook, Assange digitou por um tempo e depois
circulou algumas palavras no guardanapo do Hotel Leopold. Eram a senha para
descriptografar os dados que seriam baixados do site temporário que ele criaria e
que estariam criptografados em GPG (também conhecido pelo nome genérico de
PGP – Pretty Good Privacy, ou “privacidade muito boa”). Sem a senha, o site
não poderia ser acessado, a menos que um adversário encontrasse os dois
imensos números primos que geravam a criptografia. De posse da senha, a
equipe do The Guardian em breve poderia acessar o primeiro pacote de dados –
os diários de guerra do Afeganistão. Os outros três pacotes prometidos viriam
depois.
Eles concordaram com outras precauções: Davies enviaria a Assange um e-
mail dizendo que não haveria acordo. (Escrito em 23 de junho, dizia: “Voltei em
segurança à base. Obrigado pelo tempo gasto comigo – não precisa se desculpar
por não poder me dar o que eu queria”.) A ideia era confundir os americanos. Os
homens se separaram.
Davies tomou café e comeu um pão na estação, na madrugada seguinte,
embarcando no primeiro trem de volta a Londres. No escritório, encontrou
Rusbridger. “Vou lhe contar um segredo”, disse. De acordo com Davies, a reação
sábia de Rusbridger foi, como sempre, sutil. Mas ele avaliou nitidamente as
implicações. Às 9h30, concordou em telefonar para Bill Keller, editor do The
New York Times, assim que ele acordasse do outro lado do Atlântico.
De volta para casa, em Sussex, Davies aguardava notícias de Assange. No
meio da manhã do dia 24 de junho, recebeu um e-mail que o direcionava ao
website. Ele baixou o imenso arquivo, mas não foi capaz de realizar o
procedimento necessário para a descriptografia GPG. Telefonou para o
especialista local em computadores, que não pôde ajudá-lo. Frustrado, Davies
gravou os dados ainda criptografados num pen drive e apagou o e-mail de
Assange. Pouco depois, o website deixou de existir. Davies voltou para Londres
e entregou o pen drive para Harold Frayman, editor de sistemas do Guardian
Media Group. Frayman transformou facilmente o conteúdo em uma planilha
eletrônica descriptografada. “Não foi nem um pouco difícil. Nós sabíamos a
senha”, disse Frayman calmamente.
Então, à noite, o The Guardian tinha a base de dados do Afeganistão – um
retrato de hora em hora sem precedentes da guerra dura e real, conduzidas nas
montanhas e ruas empoeiradas de Hindu Kush. Mas, na época, não parecia
assim: nos primeiros cinco ou seis dias, o registro do Afeganistão era quase
impossível de ler. “Era uma merda”, diz Davies. “Era extremamente difícil
extrair informações da planilha; um processo difícil e lento.”
Apesar disso, ele enviou um e-mail triunfante a Assange, que dizia: “Os
mocinhos ficaram com as mocinhas”.
Notas

* Trocadilho com as palavras churn (out) (produzir de maneira rápida e mecânica) e journalism
(jornalismo). (N. do E.)
8

The Guardian, quarto andar, Kings Place, Londres


JULHO DE 2010

“Eu parecia uma criança numa loja de doces.”

– DECLAN WALSH, THE GUARDIAN

NA PEQUENA SALA com paredes de vidro, no quarto andar do The Guardian,


mapas dos distritos militares no Afeganistão e no Iraque estavam presos com
ímãs num quadro branco. Ao lado deles, os jornalistas rabiscavam
constantemente listas atualizadas das até então desconhecidas siglas das Forças
Armadas norte-americanas. “O que é EDF?”, gritava um dos repórteres.
“Escalada de força!”, alguém respondia. EEH? Equipe de exploração humana.
NL? Nacional local. IMEA era a contagem de corpos: inimigos mortos em ação.
Havia literalmente centenas de outros jargões, e no fim o jornal teve de publicar
um longo glossário anexo às histórias.
O discreto escritório, bem afastado das operações diárias de notícias do jornal,
tornara-se uma sala de guerra multinacional, com repórteres vindo de Islamabad,
Nova York e Berlim para analisar centenas de milhares de relatórios de campo
militares vazados. Eles tropeçavam em especialistas em informática e internet de
Londres. Uma fragmentadora de papéis fora instalada junto à fileira de seis
monitores, e o clima de segurança era intensificado pelo austero aviso colado na
porta: “Sala de Projetos. Privado & Confidencial. Proibido Acesso Não
Autorizado”.
Nick Davies estava tão obcecado por manter segredo que inicialmente se
recusara a contar sobre o projeto até para o chefe de redação do The Guardian, o
editor assistente Ian Katz. Ele ficou chocado ao descobrir como a notícia de seu
envolvimento numa história ultrassecreta se espalhara rapidamente. Outro
colega, Richard Norton-Taylor, o veterano editor de segurança do jornal,
perguntou a Davies pouco depois sobre o “furo”. Davies se recusou a contar.
Algumas horas depois, Norton-Taylor o encontrou novamente e o provocou em
tom jocoso: “Eu sei todos os seus segredos!” A redação de um jornal não é um
bom lugar para tentar esconder algo por muito tempo.
Todavia, a equipe do jornal fez o que pôde. Declan Walsh, correspondente do
The Guardian no Paquistão, foi chamado sob intenso sigilo. Sentanda em volta
de uma mesa na sala do editor, a equipe refletia sobre as dificuldades técnicas.
David Leigh estava irritado: “É como buscar minúsculos grãos de ouro numa
montanha de dados”, reclamou. “Como vamos saber se há realmente uma
história nisso?” A resposta a essa pergunta inseriu os veteranos do The Guardian
numa pronunciada curva de aprendizado, enquanto eles começavam a entender
como lidar com métodos modernos.
Primeiro descobriram, confusos, que o primeiro download, a planilha do
Afeganistão, não continha sessenta mil entradas, como acreditaram durante
vários dias. Continha muito mais. Mas a ultrapassada versão do Excel que o
jornal tinha simplesmente interrompera a leitura depois de sessenta mil linhas. O
total real de relatórios de campo hora a hora – os diários de guerra – chegava a
92.201 linhas de dados. O problema seguinte era ainda maior. Sabia-se que uma
planilha enorme como aquela seria muito lenta para ser manipulada, embora
fosse possível selecioná-la e filtrá-la para gerar uma imensa quantidade de
estatísticas e tipos diferentes de eventos militares. Assim, a divulgação dos
diários de guerra do Iraque jogou outros 391 mil registros no colo dos
jornalistas, quadruplicando os problemas com os dados.
Harold Frayman, o especialista técnico do The Guardian, resolveu esses
problemas improvisando rapidamente uma base de dados completa. Da mesma
maneira que o Google ou sofisticados mecanismos de busca de notícias – como
o LexisNexis –, a base de dados de Frayman podia ser pesquisada por data,
palavra-chave ou frase entre aspas. Declan Walsh recorda: “Quando acessei a
base de dados pela primeira vez, eu parecia uma criança numa loja de doces.
Meu primeiro impulso foi pesquisar ‘Osama bin Laden’, o homem que iniciara a
guerra. Muitos de nós digitamos o nome para ver o que resultaria (não muito,
como se viu mais tarde)”. Leigh também começou a se animar: “Agora esses
dados estão começando a fazer sentido!”, afirmou.
Ele foi apresentado a outro especialista do The Guardian, Alastair Dant:
“Alastair é nosso visualizador de dados”. Ao que Leigh comentou: “Eu nem
sabia que essa função existia!” Rapidamente ele recebeu as últimas informações.
O projeto WikiLeaks produzira novos tipos de dados. Agora eles precisavam ser
extraídos mediante novos tipos de jornalismo. Dant explicou que podia converter
num gráfico interativo animado as estatísticas dos milhares de explosões de
bombas registrados nos diários de guerra do Afeganistão. Ele podia usar o
mesmo modelo básico a partir do qual o The Guardian desenvolvera
anteriormente um popular mapa interativo do Festival de Glastonbury, uma bela
diversão para os fãs de música. Se o observador movesse o cursor sobre o mapa
da área do festival, apareceriam os artistas que tocariam no local naquele
determinado momento.
Agora, com o Afeganistão, o observador poderia apertar um botão do mesmo
modo, mas dessa vez seriam exibidas imagens mais assustadoras, que
revelariam, dia a dia e ano a ano, a incapacidade do Exército norte-americano de
conter os rebeldes no Afeganistão, enquanto literalmente milhares de “artefatos
explosivos improvisados” surgiam em todo o sistema rodoviário do país. O
observador poderia ver como a grande maioria das bombas na beira das estradas
estava assassinando civis comuns e não adversários militares, e como os ataques
iam e vinham conforme as mudanças nos desenvolvimentos políticos. Era uma
representação que permitia compreender pelo menos parte de uma guerra
fragmentada e mal contada.
O principal especialista em internet era Simon Rogers, editor de dados do The
Guardian. “Você é bom com planilhas, não é?”, perguntaram-lhe. “Esta aqui é
uma planilha e tanto!”, ele observou. Depois de trabalhar nela, concluiu:
“Algumas pessoas dizem que a internet está matando o jornalismo. A história do
WikiLeaks é uma combinação dos dois: técnicas de jornalismo tradicional e o
poder da tecnologia, usados para contar uma história extraordinária. No futuro, o
jornalismo de dados pode não parecer tão incrível e novo, mas hoje ele é. O
mundo mudou, e foram os dados que o transformaram”.
Uma oportunidade óbvia era, pela primeira vez, poder obter estatísticas
genuínas das baixas. As Forças Armadas norte-americanas haviam declarado
falsamente que, ao menos no que se referia a civis e “inimigos”, não havia
números disponíveis. Mas os jornalistas podiam ver agora que os diários de
guerra continham categorias altamente detalhadas que deviam ser preenchidas
para todo evento militar, divididos em norte-americanos e aliados, forças locais
iraquianas e afegãs, civis e combatentes inimigos, classificados, em cada caso,
como mortos ou feridos. Mas não era tão simples assim. Rogers e os repórteres
tinham de lidar com a realidade do terreno militar – uma realidade que
transformava conjuntos de dados aparentemente atraentes em estatísticas brutas
e pouco confiáveis.
No mínimo, uma pessoa listada como “ferida” na época poderia ter morrido
depois. Os campos das baixas às vezes não eram preenchidos. Os repórteres se
solidarizavam com os soldados, os quais, exaustos após um dia de combate, se
deparavam com formulários que exigiam o preenchimento de nada menos que
trinta campos de informações burocráticas. Algumas unidades eram mais
meticulosas que outras. Os primeiros anos das guerras traziam informações mais
superficiais que os últimos, quando os sistemas estavam mais organizados.
Quando havia intensos combates urbanos ou quando os corpos eram
transportados, era difícil calcular as baixas. Algumas unidades tinham a
tendência de registrar números absurdamente altos de supostos “inimigos mortos
em ação”. Às vezes, de modo sinistro, os civis mortos eram registrados como
“inimigos”. Isso evitava perguntas incômodas para as tropas. Os números eram,
em todo caso, muito baixos, porque faltavam alguns meses e anos, assim como
também faltavam informações das forças especiais, que operavam fora dos
círculos de comando normais do Exército. E muitos dos confrontos que
envolviam britânicos, alemães e outros “aliados” aparentemente não estavam
registrados na base de dados do Exército norte-americano.
Portanto, era uma tarefa complicada produzir estatísticas de real valor. Isso
enfatizava mais uma vez as limitações inevitáveis da ideologia purista do
WikiLeaks. O material encontrado nos documentos vazados, por mais extenso
que fosse, não era “a verdade”. Muitas vezes era apenas uma indicação de uma
parte da verdade e exigia uma interpretação cuidadosa.

O próprio Assange acabou voando de Estocolmo para Londres em uma noite


de julho de 2010. Ele chegou ao escritório do The Guardian com uma mochila e
um sorriso tímido, como um dos Garotos Perdidos de Peter Pan. “Você já tem
lugar para ficar?”, perguntou Leigh. “Não”, ele respondeu. “Já comeu?” A
resposta novamente foi negativa. Leigh o acompanhou até um pequeno
restaurante que ainda estava aberto, na estação de St. Pancras, e entregou-lhe o
cardápio. Assange comeu doze ostras e um pouco de queijo. Em seguida, passou
a noite no apartamento de Leigh, próximo de Bloomsbury.
Ele ficou um bom tempo lá, dormindo durante o dia e trabalhando no laptop a
noite toda. Depois, foi para um hotel próximo e passou o último fim de semana
da Copa do Mundo na casa de Nick Davies, em Sussex (mas, diz Davies, “ele
não parecia nem um pouco interessado em futebol”), estabelecendo-se então na
residência de Gavin MacFadyen, jornalista e professor da Universidade da
Cidade. Assange levou para a casa em Pimlico apenas três pares de meia, mas
rapidamente encantou a família MacFadyen, interessando-se pelos livros de
poesia nas prateleiras e pacientemente explicando o Big Bang, acrescido de
fórmulas matemáticas, para surpresas crianças que estavam de visita. O único
momento constrangedor ocorreu durante uma refeição em que seria servido
risoto, feito por Sarah Saunders, dona de um bufê e filha da esposa de
MacFadyen, Susan. Normalmente, Assange digitava no laptop durante as
refeições; outros participantes do WikiLeaks que às vezes apareciam
costumavam fazer a mesma coisa. Nessa ocasião, Saunders pediu a Julian que
desligasse o laptop, ao que ele imediatamente obedeceu.
Um mês depois, Assange estabeleceu uma base maior para sua crescente
organização no Frontline Club, a oeste de Londres. Algo no errante Assange
fazia com que as pessoas que se acercavam dele quisessem protegê-lo – mesmo
que o sentimento nem sempre fosse duradouro.
A equipe que frequentava a sala de guerra do The Guardian também
aumentava. Dois conhecidos veteranos do jornal no conflito do Iraque, Jonathan
Steele e James Meek, foram convocados. O editor executivo do The New York
Times, Bill Keller, enviou-lhes Eric Schmitt, experiente correspondente de
guerra. Schmitt, conhecedor de assuntos militares, pôde confirmar que os diários
de guerra pareciam autênticos. Ele os gravou num pen drive e voou de volta para
casa para iniciar o processo de construção da base de dados em Nova York.
O contingente alemão também fez contribuições decisivas para o processo de
verificação. Como intermediário do acordo original com o The Guardian e o The
New York Times, Nick Davies inicialmente não ficou muito satisfeito com a
entrada da revista Der Spiegel – uma possibilidade que fora apenas mencionada
de maneira incerta, no encontro de Bruxelas, pelo colega Ian Traynor. Assange
lhe dissera que estava ocorrendo um almoço com a Der Spiegel em Berlim.
Então, num telefonema de um homem que se apresentava como Daniel Schmitt
– na verdade, o braço direito de Assange, Daniel Domscheit-Berg –, ele soube
que não apenas a Der Spiegel, mas também uma estação de rádio alemã seriam
“parceiras de mídia” na divulgação dos diários de guerra. “Fiquei muito confuso.
Meu primeiro instinto foi dizer não”, recorda Davies. “Acordo é acordo, e
segurança é muito importante. E pensei: Não quero que entrem.” Davies
finalmente concordou que a Der Spiegel entrasse, mas a rádio alemã ficaria de
fora. Então, os repórteres da revista John Goetz e Marcel Rosenbach viajaram
até a sala de guerra.
“Eles se adaptaram muito bem. Gostávamos deles. E eles tinham muita
experiência no Afeganistão”, afirma Davies. Foi decisivo o fato de que as fontes
da Der Spiegel tinham acesso à investigação do Parlamento da Alemanha sobre a
Guerra do Afeganistão, incluindo material militar secreto norte-americano. Isso
foi essencial para a confirmação da autenticidade das informações oferecidas ao
The Guardian.
Porém os jornais tinham outra dor de cabeça. Normalmente, quando se tem
uma história dessa magnitude, o mais conveniente a fazer é publicá-la durante
muitos dias. Isso mantém o interesse dos leitores e ajuda a vender mais cópias.
Numa reportagem anterior sobre evasão fiscal de empresas, o The Guardian
publicara uma história por dia, sem interrupção, durante duas semanas. Dessa
vez, a estratégia seria impossível. Em primeiro lugar, porque os dois diários, de
Londres e de Nova York, estavam agora ligados a uma revista semanal na
Alemanha. Com uma única tacada, a Der Spiegel ia querer publicar todas as
histórias de uma vez.
Em segundo lugar, e mais grave, nenhum dos editores sabia se haveria uma
segunda chance. A resposta do governo dos Estados Unidos poderia ser tão
explosiva que eles poderiam enviar seus advogados com uma ordem de
proibição de publicação. Portanto foi decidido que, no caso do The Guardian, o
jornal publicaria tudo que tinha, em catorze páginas, no dia do lançamento.
Havia, claro, um lado negativo nesse método: embora o lançamento dos diários
de guerra do Afeganistão devesse causar imensa polêmica, seria difícil encontrar
alguém no dia seguinte, em Londres, que realmente tivesse percorrido todas as
catorze páginas. Simplesmente havia muito a ser lido. No momento da
publicação dos diários do Iraque, quando ficou claro que o governo norte-
americano não tentaria obter liminares e ordens de proibição contra a mídia, a
publicação foi dividida mais confortavelmente durante alguns dias.
A questão mais complicada envolvia a edição dos textos. Os jornais
planejavam publicar apenas um número relativamente pequeno de histórias
importantes e, com elas, o texto dos diários correspondentes. Por outro lado, o
WikiLeaks pretendia liberar o lote simultaneamente. Mas muitos dos registros,
em particular os “relatórios de ameaças” da inteligência, mencionavam nomes de
informantes ou de pessoas que haviam colaborado com as tropas norte-
americanas. Na cruel política interna do Afeganistão, essas pessoas poderiam
estar em perigo. Declan Walsh foi um dos primeiros a perceber isso: “Eu disse a
David Leigh que estava preocupado com a repercussão da publicação dos
nomes, que poderiam facilmente ser assassinados pelo Talibã ou por outros
grupos militantes, caso fossem identificados. David concordou que era um
problema e disse que discutiria a questão com Julian, mas este não pareceu
preocupado. Naquela noite, fomos até um restaurante de comida Moura, o Moro,
com os dois repórteres alemães. David falou sobre o problema novamente com
Julian. A resposta me desconcertou: ‘Bem, eles são informantes’, ele afirmou.
‘Se forem mortos, é porque pediram por isso. E o mereceram.’ Durante alguns
instantes, fez-se silêncio na mesa. Acho que todos se surpreenderam, por ser
uma coisa muito insensível de se dizer. Pensei nas bases norte-americanas que
tinha visitado, nos afegãos que conhecera nas pequenas vilas e cidades, na
complexa política local, que coloria tudo, e nos dilemas das pessoas durante uma
guerra sangrenta. Eu não iria pôr tudo isso em risco por causa de um documento
preparado por um soldado norte-americano novato, que podia ou não ter
entendido corretamente as informações recebidas. A outra questão que aquela
breve conversa me sugeria era que Julian tinha uma visão bastante ingênua – ou
arrogante – no que se referia aos veículos de comunicação. Além das
considerações morais, ele não parecia entender que a divulgação dos nomes dos
informantes poderia ter consequências sobre todo o projeto”.
Davies também ficou consternado com a dificuldade de persuadir Assange a
fazer a edição dos documentos. “Primeiro, ele simplesmente não entendia que
não é correto publicar material que causará a morte de pessoas”, afirmou. O
repórter do The Guardian estudara a força-tarefa 373, um misterioso grupo de
operações especiais cuja função era capturar ou matar talibãs do alto escalão.
Um diário de guerra era especialmente preocupante, porque descrevia que um
informante não identificado tinha um parente próximo vivendo uma exata
distância a sudeste da casa do alvo mencionado e que “ficará de olho nele”.
Evidentemente, era possível descobrir as identidades com a ajuda de algum
conhecimento local, e publicar o diário poderia fazer com que os talibãs
executassem os dois afegãos. Mas Assange, de acordo com Davies, parecia
indiferente. Apesar de sua simpatia pessoal pelo fundador do WikiLeaks, Davies
observa: “O problema é que ele é basicamente um hacker e tem – ou tinha,
naquele momento – uma ideologia simplista de que toda informação tem de ser
publicada, de que toda informação é boa”.
Para fazer justiça a Assange, no fim ele reviu sua posição, apesar das
dificuldades técnicas impostas ao WikiLeaks. E, na época em que os telegramas
do Departamento de Estado americano foram publicados – cinco meses depois –,
Assange já abraçara inteiramente a lógica da edição, desempenhando
praticamente o papel de um grande editor. Pouco tempo antes da divulgação do
material do Afeganistão, ele removeu maciçamente os quinze mil arquivos da
inteligência – listados como “relatórios de ameaças” – que provavelmente
continham detalhes que possibilitavam a identificação de pessoas. Isso deixou
algumas identidades ainda descobertas no corpo dos telegramas, fato que Rupert
Murdoch, do The Times de Londres, publicou de forma destacada. Apesar da
suposta desaprovação ao WikiLeaks, o jornal indicou informações que podiam
ajudar o Talibã a assassinar pessoas. Na época da publicação dos diários do
Iraque, Assange já tivera tempo de criar um programa de edição mais
sofisticado, que ocultava um vasto número de nomes. E, quando os telegramas
diplomáticos foram publicados, ele parecia ter abandonado a ambição inicial de
divulgar tudo. No decurso de 2010, deu-se por satisfeito em publicar apenas uma
fração dos telegramas – aqueles cujo texto já fora individualmente editado pelos
jornalistas dos cinco parceiros da mídia impressa.
No fim, então, toda a ansiedade sobre o destino dos informantes foi mera
especulação. No final do ano em que o WikiLeaks publicou essa imensa
quantidade de informação, nenhuma evidência concreta viera à tona de que
algum informante tivesse sofrido represálias reais. A única informação foi a do
secretário de Defesa, Robert Gates, que disse a um marinheiro a bordo de um
navio de guerra norte-americano em San Diego: “Não temos informações
específicas sobre um afegão que tenha sido assassinado”. A CNN informou, em
17 de outubro, que, de acordo com um oficial sênior da Otan, em Cabul, “Não
houve um único caso de afegãos que precisassem ser protegidos ou transferidos
por causa do vazamento”.
Como Walsh previra, os inimigos do WikiLeaks, porém, jogaram sujo. O
almirante Mike Mullen, chefe do Estado-maior das Forças Armadas, esteve entre
os primeiros. “A verdade é que eles podem ter nas mãos o sangue de um jovem
soldado ou de uma família afegã”, ele disse na coletiva de imprensa do
Pentágono, quatro dias depois do vazamento. Esse slogan – “sangue nas mãos”
–, por sua vez, transformou-se de especulação em fato, repetido de maneira
interminável e usado como justificativa para o desejo de sangue por parte de
alguns políticos norte-americanos, que aparentemente acharam que podiam
ganhar votos ao exigir o assassinato de Assange. Particularmente repugnante era
ouvir a frase sendo usada por generais norte-americanos que, como revelavam os
documentos do WikiLeaks, tinham litros de genuíno sangue civil nas mãos.
Assange começava a se mostrar um parceiro volátil em diversos aspectos.
Nick Davies era seu principal contato e o homem que o trouxera para o The
Guardian. Portanto, foi um choque quando a dupla brigou. Davies acreditava
que ele e Assange haviam desenvolvido uma amizade, fortalecida por jantares,
piadas, debates filosóficos na madrugada e refeições ao ar livre no centro
histórico da ilha de Estocolmo: “Eu o achava inteligente, interessante e uma
companhia divertida. Nós estávamos envolvidos nessa aventura excitante e
muito significativa”. Mas, na véspera da divulgação dos diários de guerra do
Afeganistão, o telefone de Davies tocou. Do outro lado da linha estava Stephen
Grey, um repórter freelance. Grey começou: “Adivinha só? Acabei de conversar
com Julian Assange”. E explicou que Assange lhe dera uma entrevista exclusiva
para a tevê sobre os bombásticos diários de guerra do Afeganistão. Ele também
fornecera material para o site da Channel 4. E havia mais notícias ruins: Grey
disse que Assange abordara a CNN e a Al Jazeera e lhes oferecera entrevistas
também. Davies ficou furioso. Assange, porém, insistiu: “Sempre foi parte do
acordo que eu faria isso”.
A discussão não era um bom sinal para o futuro, nem os crescentes atritos de
Assange com o The New York Times. O NYT se recusava a disponibilizar um link
direto para os telegramas do WikiLeaks a partir do próprio site do jornal. Bill
Keller queria fazer de modo diferente do The Guardian e da Der Spiegel, que,
depois de algumas discussões internas, haviam decidido publicar um link para o
WikiLeaks normalmente. O The New York Times assumiu a posição igualmente
defensável de que os leitores – e, na verdade, o próprio governo hostil dos
Estados Unidos – poderiam não considerar a equipe do jornal como repórteres
imparciais se eles os direcionassem para o WikiLeaks de maneira tão óbvia.
Keller afirma: “Temíamos – corretamente, como se viu depois – que o material
contivesse nomes de informantes do baixo escalão e os transformasse em alvos
do Talibã”. Assange ficou furioso com o que considerava a pusilanimidade dos
americanos. E dizia com seu sotaque australiano: “Eles precisam ser punidos!” O
editor do The New York Times, por sua vez, passou a considerar Assange um
“semianarquista arrogante”. Keller recorda: “Conversei com Assange algumas
vezes por telefone e ouvi suas reclamações. ‘Onde está o respeito?’, perguntava.
‘Onde está o respeito?’ Outra vez, ele me telefonou para dizer que não gostara do
perfil de Bradley Manning que tínhamos escrito. [...] Assange reclamava que
havíamos ‘psicologizado’ Manning e dado pouca importância ao seu ‘despertar
político’”.
Sob a superfície, ferviam todas essas tensões. Mas, para o público, a
divulgação da primeira parte dos diários de guerra do Afeganistão representava
um sutil e bem orquestrado golpe de mídia, que colocou os três veículos de
comunicação em máxima evidência e transformou Julian Assange, durante
algum tempo, no homem mais famoso do mundo. Era o maior vazamento da
história – até ser sucedido por um conjunto ainda mais ousado de revelações
sobre o Iraque. Essas eram duas guerras tremendamente controversas que os
Estados Unidos haviam infligido ao mundo. Agora, parecia impossível encobri-
las.
9
Os diários de guerra do Afeganistão
Ciberespaço
25 DE JULHO DE 2010

“Lamentamos a perda de vidas inocentes


por causa da covardia dos militantes.”

– CHRIS BELCHER, MAJOR DO EXÉRCITO NORTE-AMERICANO, AFEGANISTÃO

NUMA NOITE NO Afeganistão, cinco pesados foguetes, lançados de um novo tipo


de arma, chegaram guinchando em meio à escuridão e atingiram uma escola
religiosa – uma madraçal –, reduzindo-a a escombros. Quando os helicópteros de
ataque aterrissaram e as forças especiais norte-americanas saíram, descobriram
que haviam matado sete crianças. O alvo real, um combatente de alto escalão da
Al Qaeda, escapou. Esse evento – um dos muitos durante a pouco civilizada
Guerra do Afeganistão – ocorreu em 17 de junho de 2007 e foi descrito da
seguinte maneira pelo serviço de notícias do Comando de Operações Especiais
do Exército norte-americano:
Ataque aéreo em Paktika
AEROPORTO DE BAGRAM, Afeganistão.
As forças afegãs e de coalizão realizaram uma operação no distrito de Zarghun Shah, na província de
Paktika, na noite de domingo, que resultou em sete crianças e diversos militantes mortos e dois
militantes presos. Inteligência confiável indicou o complexo, que incluía uma mesquita e uma
madraçal, como um esconderijo suspeito de combatentes da Al Qaeda.
As forças de coalizão confirmaram a presença de atividade perversa no local antes de receber
aprovação para realizar um ataque aéreo. Após o ataque, moradores do complexo confirmaram que
combatentes da Al Qaeda estiveram presentes durante todo o dia.
Informações anteriores [sugerem] que as sete crianças na madraçal foram mortas em consequência do
ataque. “Esse é mais um exemplo de como a Al Qaeda usa o abrigo de uma mesquita, bem como
civis inocentes, para se proteger”, afirmou o major do Exército Chris Belcher, porta-voz da Força-
Tarefa Combinada Conjunta 82. “Lamentamos a perda de vidas inocentes por causa da covardia dos
militantes.”

A história real só apareceu com o texto de um diário militar vazado, obtido


pelo WikiLeaks três anos depois e publicado em todo o mundo pelo The
Guardian e seus parceiros, o The New York Times e a Der Spiegel. O relatório de
campo estava entre os 92 mil supostamente enviados pelo soldado norte-
americano Bradley Manning ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange.
O diário revelou que, na verdade, não houve um “ataque aéreo” (as câmeras
de reconhecimento poderiam, de fato, ter sido mais precisas). Em vez disso, o
que aconteceu foi o teste de um novo e poderoso – embora potencialmente
indiscriminado – sistema de mísseis, um lança-foguetes guiado por GPS que
podia ser disparado da traseira de um caminhão a pouco mais de sessenta
quilômetros de distância, conhecido como Himars (high mobility artillery rocket
system, sistema de foguetes de artilharia de alta mobilidade). O ataque não foi
iniciado pelas “forças afegãs e de coalizão” comuns, mas por uma obscura tropa
de matadores norte-americanos conhecida como Força-Tarefa 373, cujos alvos
constavam de uma lista especial. E o ataque dos foguetes não foi motivado por
“atividade perversa”, mas pela esperança de que um precioso alvo – o
comandante al-Libi – estivesse na área.
O diário de guerra vazado trazia o seguinte relatório (as siglas estão escritas
por extenso):
Data 2007-06-17 21:00:00
Tipo Ação Amigável

Título 172100H[orário Zulu] F[orça]-T[arefa] 373 Rota OBJ[etiva]

Resumo
OBSERVAÇÃO: As informações a seguir (FT-373 e Himars) são Classificadas Secretas/NOFORN.
O conhecimento de que a FT-373 realizou um ataque Himars deve ser protegido. Todas as outras
informações a seguir são classificadas Secretas/LIB[eração] FIAS [Força Internacional de
Assistência à Segurança].

Missão
F[orça]-T[arefa] de O[perações] E[speciais] realiza ataque cinético, seguido por incursão da Força de
A[taque] com H[elicópteros] para matar/capturar ABU LAITH AL-LIBI, em Á[rea] de I[nteresse]
N[omeada] 2.

Alvo
Abu Laith al-Libi é um veterano comandante militar da Al Qaeda, líder do Grupo de Combate
Islâmico Líbio (GCIL). Dirige campos de treinamento em todo o Waziristão do Norte. A base é em
Mir Ali, Paquistão. Busca de informações durante a última semana indica concentração de árabes
N[as] P[roximidades] D[a] área do objetivo.

Resultado
6 x I[nimigos] M[ortos] E[m] A[ção]; 7 x N[ão] C[ombatentes] MEA 7 x presos

Resumo
A F[orça] de A[taque] com H[elicóptero] partiu da [base] Orgun-E para realizar conexão e
posicionamento em relação ao objetivo, imediatamente após os tiros de pré-ataque. Sob ordens, 5
foguetes foram lançados e destruíram estruturas no objetivo (AIN 2). A FAH rapidamente introduziu
a força de ataque na Zona de A[terrissagem do] H[elicóptero]. I[nteligência], V[igilância] e
R[econhecimento] informou diversos H[omens] N[ão] I[dentificados] deixando a área do objetivo. A
força de ataque rapidamente conduziu movimento desarmado para a área-alvo e estabeleceu
contenção no lado sul do objetivo. Durante o ataque inicial, recursos aéreos exclusivos prenderam
diversos H[omens] em I[dade] M[ilitar] fugindo da área do objetivo. O C[omandante] da F[orça]
T[errestre] estimou que 3 x IMEA fugitivos ao norte e 3 x IMEA fugitivos ao sul do complexo foram
neutralizados com tiros dos recursos aéreos. A força de ataque rapidamente manobrou com um
elemento do ESQ[ua]D[rão] sobre os fugitivos restantes, o qual deteve 12 x HIM e retornou para a
área do objetivo. O CFT transmitiu avaliação inicial de 7 x NC MEA (crianças). Durante a
investigação inicial, foi avaliado que as crianças não podiam sair do edifício, em virtude da presença
de HNIs no complexo. A força de assalto conseguiu descobrir 1 x criança NC nos escombros. A
E[quip]E MÉD[ica] imediatamente limpou os destroços de sua boca e realizou RCP* para reviver a
criança durante 20 minutos. Em razão do tempo limitado, o C[oman]D[ant]E da FT iniciou o
elemento de F[orça] de R[eação] R[ápida] para combater um alvo associado (AIN 5). Eles
rapidamente imobilizaram o objetivo e iniciaram o ataque. O objetivo foi assegurado e a força de
ataque inicialmente prendeu 6 x HIM. O CFT recomendou que 7 HIM fossem detidos para
interrogatório adicional. O CDE da FT avaliou que a força de ataque continuará SSE.* O governador
local foi notificado da situação atual e solicita auxílio para cercar a Á[rea de] O[perações], com apoio
da Polícia N[acional] A[fegã] e das forças locais de coalizão, em busca do I[ndivíduo de] A[lto]
V[alor]. Uma E[quipe de] R[econs- trução] P[rovincial] está a caminho da AO.

1) O alvo era um Líder de Alto Escalão da A[l] Q[aeda]

2) Padrões de vida foram realizados em 18 de junho de 0800z a 1815z (hora do ataque) sem
indicações de mulheres ou crianças no objetivo

3) A mesquita não era o alvo nem foi atingida; relatórios iniciais indicam que não foi danificada

4) Um idoso que estava na mesquita afirmou que as crianças foram detidas à força e mantidas
intencionalmente no interior

ATUALIZAÇÃO: 18 0850Z junho 07

– O governador Khapalwak tentou, sem sucesso, falar com o presidente Karzai (a agenda do
presidente estava cheia), mas espera contatá-lo em uma hora (P[residente] d[o] A[feganistão]
contatado durante a tarde ~ 1400Z)

– O governador realizou uma Shura [consulta] nesta manhã; moradores dos distritos de Yahya
Yosof & Khail estavam presentes

– Ele apresentou os Pontos de Discussão que lhe foram oferecidos e acrescentou alguns que seguiram
nossa história atual

– O clima entre os moradores locais é de choque, mas eles entendem que isso foi causado, em última
instância, pela presença de criminosos

– O povo acha bom que homens maus tenham morrido

– O povo lamenta a morte das crianças

– O governador fez coro à tragédia da morte das crianças, mas destacou que isso poderia ter sido
evitado se as pessoas tivessem revelado a presença de insurgentes na área

– O governador prometeu outra Shura em poucos dias e que as famílias seriam compensadas pelas
perdas

– Ao governador foi questionado sobre como estava o humor das pessoas e disse que “a operação foi
uma coisa boa e o povo acredita no que lhe dissemos”

Há menos jargão militar cifrado que o usual neste trecho do diário de guerra.
O relatório é atipicamente longo e em linguagem relativamente simples, porque
o massacre das sete crianças transformou-se num escândalo e o presidente
Karzai estava protestando cada vez mais contra o número de civis mortos nas
operações norte-americanas no Afeganistão. De resto, é representativo do tipo de
documento que veio à tona quando os diários de guerra do Afeganistão foram
publicados pela primeira vez, em 25 de julho de 2010. Nesse dia, a matéria de
capa da Der Spiegel era sobre as atividades do esquadrão da morte, a Força-
Tarefa 373, com o título: “A guerra secreta da América”. No The Guardian, Nick
Davies revelou muitas informações sobre a lista de dois mil alvos para “matar ou
capturar” da FT 373. A lista aparecia representada por outra sigla cifrada nos
diários de guerra: JPel, isto é, joint priority effects list (lista de efeitos de
prioridade conjunta).
Davies escreveu:
O inspetor especial das Nações Unidas para os direitos humanos, professor Philip Alston, foi ao
Afeganistão, em maio de 2008, para investigar rumores sobre assassinatos extrajudiciais. Ele advertiu
que as forças internacionais não eram nem transparentes nem responsáveis, e que os afegãos que
tentaram descobrir quem havia matado seus entes queridos “frequentemente saíram de mãos vazias,
frustrados e amargurados”. Agora, pela primeira vez, os diários de guerra vazados revelam detalhes,
previamente escondidos sob uma cortina de desinformação, das missões mortíferas da FT 373 e de
outras unidades, que perseguiam e capturavam alvos da JPel. Tais detalhes levantam questões
fundamentais sobre a legalidade dos assassinatos e das prisões por longos períodos sem julgamento, e
também, pragmaticamente, sobre o impacto de uma tática que basicamente mata, fere e aliena os
espectadores inocentes cujo apoio a coalizão deseja.

A publicação do The Guardian/WikiLeaks revelou profundas divergências


sobre essas táticas entre a coalizão de ocupação. “Os diários de guerra
confirmam a impressão de que esta é uma campanha militar sem direção
estratégica clara, em meio a generais lutando para lidar com as realidades
sociais, políticas e econômicas do Afeganistão”, afirma Sir Sherard Cowper-
Coles, até junho de 2010 representante especial do governo do Reino Unido no
Afeganistão e, de 2007 a 2009, embaixador em Cabul. “A verdade é que a
campanha militar no Afeganistão não é adequadamente supervisionada ou
controlada. A lista de efeitos de prioridade conjunta [a famosa lista “matar ou
capturar”] não é submetida a nenhuma supervisão política genuína – é conduzida
pelos militares. A situação se deteriorou mais ainda desde que os diários de
guerra foram publicados. O general Petraeus intensificou a campanha pelo
massacre dos comandantes do Talibã, sem uma estratégia clara para conseguir
isso politicamente e em oposição à afirmação de seu próprio manual de campo
de que a oposição aos rebeldes é 80% política.”

Uma face até então oculta da Guerra do Afeganistão foi revelada com a
história da FT 373 e da lista de alvos. Outro véu foi erguido com a revelação do
implacável número de mortes de civis totalmente inocentes por tropas nervosas
andando em comboios. As tropas estrangeiras – não apenas americanas, mas
também britânicas, alemãs e polonesas – estavam compreensivelmente
apavoradas com a possibilidade de haver bombas na beira da estrada ou
terroristas suicidas aproximando-se em carros ou motos. Em tese, há
regulamentos estritos sobre as séries graduadas de passos de advertência que os
soldados devem seguir no Afeganistão antes de atirar para matar. Esses são os
procedimentos que governam a EDF – escalada de força. Mas, na prática, como
os registros do diário indicam repetidamente, alguns soldados tendiam a atirar
primeiro e perguntar depois.
Os relatórios de campo quase nunca continham admissões diretas de
comportamento impróprio – eles foram escritos por outros soldados e
destinavam-se à leitura dos oficiais mais graduados. Mas os norte-americanos
eram um pouco menos inibidos ao tratar da conduta dos aliados do que ao
escrever sobre a própria conduta. Assim, David Leigh e o colega Rob Evans
conseguiram extrair evidências do que parecia um uso excessivo de força contra
civis por parte de certas unidades britânicas. Eles identificaram um destacamento
dos Coldstream Guards que recentemente assumira posição no Campo Soutar,
em Cabul. O blog não oficial da tropa descrevia o humor reinante na época: “A
ameaça predominante é de atentados suicidas, que aconteceram em grande
número no passado recente”.
Quatro vezes em quatro semanas, essa unidade parece ter atirado em civis na
cidade para proteger os próprios membros. O pior evento foi em 21 de outubro
de 2007, quando soldados norte-americanos informaram um caso de fogo amigo
“azul no branco”,* no centro de Cabul, observando que tropas desconhecidas
haviam atirado num veículo civil com três intérpretes de uma empresa de
segurança privada e o motorista. As tropas estavam num “veículo de tipo militar
marrom com um soldado da artilharia no alto [...]. Não havia forças norte-
americanas nas proximidades do evento que pudessem estar envolvidas. Mais a
seguir!” Pouco depois, disseram: “A INVESTIGAÇÃO É CONTROLADA
PELOS BRITÂNICOS. NÃO CONSEGUIMOS OBTER A HISTÓRIA
COMPLETA. ESSE EVENTO PERTENCE ÀS FORÇAS BRITÂNICAS DA
FIAS”.
Foram necessários mais três meses, depois que os diários do WikiLeaks
vieram a público, para que o Ministério da Defesa, em Londres, admitisse que
esse tiroteio em Cabul de fato ocorreu. Eles confirmaram que a patrulha
britânica matou um civil e feriu outros dois num micro-ônibus prateado. Alegou-
se que o micro-ônibus não parou quando os soldados sinalizaram para que o
fizesse.
Poucos dias depois do tiroteio ao micro-ônibus, em 6 de novembro, os
britânicos informaram que, por volta do meio-dia, haviam ferido outro civil em
Cabul, com o que chamaram de “tiro de advertência”. No fim da tarde, os
americanos souberam que o homem havia falecido e que isso poderia lhes trazer
problemas: “Poderia haver manifestações, porque o civil era filho de um general
afegão da Aeronáutica e estava de casamento marcado para aquela noite, com
muitos convidados”. Depois informaram: “Não era o casamento da pessoa que
foi morta. O casamento marcado para aquela noite era do irmão, mas agora foi
cancelado. A família levará o corpo amanhã de manhã”. Novamente o Exército
britânico acabou confirmando a revelação do WikiLeaks, depois de um longo
atraso. A versão britânica oficial é de que o filho do general “acelerou” seu
Toyota em direção a uma patrulha, dando aos soldados tempo só para gritar uma
advertência antes de atirar no carro, que então derrapou para o acostamento,
lançando o homem para fora, segundo dizem.
Esses eventos – assim como centenas de outros –, tomados juntos, constituem
a história oculta da Guerra do Afeganistão, em que pessoas inocentes eram
continuamente assassinadas por soldados estrangeiros. O impressionante nível
de detalhes fornecido pelos diários de guerra possibilitou que ela se tornasse,
pela primeira vez, acessível.

Contudo, enquanto os veículos de comunicação europeus se concentravam no


sofrimento de civis, o The New York Times tendia a tratar da Guerra do
Afeganistão de modo mais estratégico. Um de seus maiores interesses era
estudar a grande – e muitas vezes surpreendente – quantidade de evidências nos
diários de guerra de que os esforços americanos para suprimir o Talibã estavam
sendo dificultados pelo Paquistão. Havia repetidos registros comentando com
detalhes confrontos ou relatórios nos quais o serviço de inteligência do
Paquistão, a ISI, parecia ser o vilão, apoiando secretamente o Talibã por alguma
razão.
A administração Obama teve uma reação relativamente sofisticada a essa
informação, que o governo sabia que os jornais haviam descoberto. Ela usou a
situação para projetar uma mensagem. Quando os diários foram publicados, às
dez da noite (hora de Greenwich), no domingo, um porta-voz da Casa Branca
enviou um e-mail aos correspondentes jornalísticos em Washington com uma
nota não destinada a publicação, com a seguinte linha de assunto: “Pensamentos
sobre o WikiLeaks”. Eles até anexaram algumas citações úteis de oficiais do alto
escalão destacando a preocupação com a ISI e com locais seguros no
Afeganistão. “Agora isso foi divulgado”, disse um oficial de alto escalão do
governo ao The New York Times. “Agora é real. De alguma forma, isso facilita
para dizermos aos paquistaneses que eles precisam nos ajudar.” Um porta-voz
afirmou publicamente: “Os locais seguros para grupos extremistas violentos no
Paquistão continuam a representar uma ameaça intolerável aos Estados Unidos,
ao Afeganistão e ao povo do Paquistão”.
O primeiro-ministro britânico, David Cameron, numa viagem de dois dias à
Índia, entrou na conversa, de modo particularmente sincronizado. Falando para
um público executivo em Bangalore, dois dias depois da divulgação dos diários,
sinalizou a mesma linha dura: “Não podemos tolerar, de modo algum, a ideia de
que esse país [o Paquistão] possa olhar nas duas direções e promover a
exportação do terror, seja para a Índia, para o Afeganistão ou para qualquer outra
parte do mundo”, afirmou. “É por isso que essa relação é importante. Mas
deveria ser baseada numa mensagem muito clara: de que não é certo manter
contatos com grupos que promovem o terror. Estados democráticos que querem
fazer parte do mundo desenvolvido não podem fazer isso. A mensagem dos
Estados Unidos e do Reino Unido para o Paquistão é muito clara nesse ponto.”
Era uma reviravolta surpreendente, que confirmava o que a maioria dos
jornalistas investigativos já sabia instintivamente: que a divulgação de
informações até então secretas pode estimular todo tipo de resultados
inesperados. O The Guardian resumiu, num editorial, o objetivo de sua
cooperação com o WikiLeaks:
O nevoeiro da guerra é incomumente denso no Afeganistão. Quando ele se ergue, como faz hoje [...],
revela-se uma paisagem muito distinta daquela que conhecíamos. Esses diários de guerra – escritos
no calor da batalha – mostram um conflito brutalmente sujo, confuso e imediato. E contrasta, de
algum modo, com a guerra ”pública”, limpa e higiênica, tal como vista através dos comunicados
oficiais e fotografias necessariamente limitados dos jornalistas que acompanham as tropas [...]. O
The Guardian passou semanas examinando esse oceano de dados, que gradualmente revelou as
histórias de horror humano e de tessitura oculta infligidas diariamente durante uma guerra
promovida, muitas vezes, de modo desastrado. É importante considerar o material pelo que ele é: um
catálogo contemporâneo do conflito. Alguns dos relatórios mais chocantes da inteligência têm
origem duvidosa: alguns aspectos do registro de mortes de civis feito pela coalizão parecem
suspeitos. Os diários de guerra – classificados como secretos – são enciclopédicos, mas não
completos. Removemos materiais que pudessem ameaçar a segurança de tropas, informantes locais e
colaboradores.
Com essas limitações, a imagem coletiva que emerge é muito perturbadora. Hoje descobrimos quase
150 incidentes nos quais as forças de coalizão, incluindo tropas britânicas, mataram ou feriram civis,
a maior parte dos quais nunca foi informada; centenas de conflitos nas fronteiras entre tropas afegãs e
paquistanesas, dois exércitos supostamente aliados; a existência de uma unidade de forças especiais
cujas tarefas incluem matar líderes do Talibã e da Al Qaeda; o massacre de civis pegos pelos
dispositivos explosivos improvisados dos talibãs; e um catálogo de incidentes nos quais as tropas de
coalizão atiraram e mataram umas as outras ou seus companheiros de armas afegãos.
Nesses documentos, as agências de inteligência do Irã e do Paquistão agem de forma descontrolada.
A Inteligência Interserviços do Paquistão está ligada a alguns dos comandantes mais famigerados da
guerra. A ISI supostamente enviou mil motocicletas para o comandante militar Jalaluddin Haqqani,
destinadas a ataques suicidas nas províncias de Khost e Logar, e esteve implicada numa
impressionante variedade de conspirações – de tentativas de assassinar o presidente Hamid Karzai ao
envenenamento do suprimento de cerveja das tropas ocidentais. Essas informações não podem ser
averiguadas e podem fazer parte de um bombardeio de informações falsas fornecidas pela
inteligência afegã. Mas ontem a resposta da Casa Branca às alegações de que elementos do Exército
paquistanês foram especificamente associados aos militantes tornou claro que o status quo é
inaceitável. Eles disseram que locais seguros para os militantes no Paquistão continuam a representar
“uma ameaça intolerável” às forças norte-americanas. Por mais que se corte, esse não é o
Afeganistão que os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha estão prestes a entregar embrulhado para
presente, com fitas cor-de-rosa, para um governo nacional soberano em Cabul. Ao contrário: depois
de nove anos de guerra, o caos ameaça dominar. Uma guerra travada ostensivamente no coração e na
mente dos afegãos não pode ser vencida assim.

O que o jornal não ousou dizer, por razões de segurança, era que o mundo em
breve seria apresentado a uma coleção ainda maior de documentos vazados, que
detalhavam verdades semelhantes sobre o banho de sangue no Iraque.
Notas

* Ressuscitação cardiopulmonar. (N. da T.)


* Su-sueste. (N. da T.)
* Maneira como os registros dos diários se referem a eventos envolvendo a morte de civis. (N. do E.)
10
Os diários de guerra do Iraque
Ciberespaço
22 DE OUTUBRO DE 2010

“Você sabe que não fazemos contagem de corpos.”

– GENERAL TOMMY FRANKS

OS DIÁRIOS DE GUERRA do Iraque tratavam de números. Tanto a administração


norte-americana quanto o primeiro-ministro britânico recusavam-se a admitir
quantos iraquianos comuns haviam sido assassinados desde a duvidosa
“libertação” do país pelas tropas dos dois países. O general Tommy Franks foi
amplamente citado, em 2002, ao dizer: “Não fazemos contagem de corpos” – um
ano antes de conduzir a invasão militar norte-americana ao Iraque. Talvez ele
quisesse dizer que não cairia na armadilha superotimista da Guerra do Vietnã,
nos anos 60, quando generais norte-americanos alegaram repetidas vezes ter
abatido praticamente todo o efetivo militar do Vietnã do Norte, antes de admitir
a derrota final.
Mas como a invasão e a ocupação do Iraque em 2003 se transformaram num
banho de sangue não planejado, a frase “Não fazemos contagem de corpos”
tornou-se o mantra velado de Bush e Blair. As autoridades registraram
meticulosamente que 4.748 soldados das tropas americanas e aliadas perderam a
vida até o Natal de 2010. Mas os governos ocidentais alegaram durante anos que
não havia estatísticas oficiais das baixas.
A publicação da imensa base de dados vazada dos relatórios de campo
iraquianos, em outubro de 2010, refutou essa informação. Os diários revelaram
um registro detalhado, incidente a incidente, de pelo menos 66.081 mortes
violentas de civis no Iraque desde a invasão. Esse número, assustador por si só,
era, porém, apenas um ponto de partida estatístico. Era muito baixo. A base de
dados inicia um ano depois, em 2004, omitindo o elevado número de baixas do
período da invasão, no ano anterior, e termina em 31 de dezembro de 2009.
Além disso, os números norte-americanos são claramente duvidosos em relação
à questão mais delicada: o número de mortes de civis causadas diretamente por
atividades militares dos Estados Unidos.
Por exemplo, a cidade de Falluja foi palco das duas maiores batalhas urbanas,
em 2004, que reduziram o lugar praticamente a ruínas. Mesmo assim, as mortes
de civis não foram registradas pelos diários do Exército, com base no fato de que
anteriormente os moradores haviam recebido ordens de evacuar a área. Por outro
lado, monitores do grupo extraoficial Iraq Body Count (Contagem de Corpos do
Iraque) (IBC)conseguiram identificar mais de 1.200 civis mortos durante os
combates em Falluja.
Em outros casos, o Exército norte-americano matou civis que foram
erroneamente registrados na base de dados como combatentes inimigos. Por
exemplo, foram registrados como combatentes inimigos os dois funcionários da
Reuters atingidos em Bagdá, em 2007, pela artilharia de um helicóptero Apache
– no episódio registrado pela câmera de vídeo do helicóptero e, posteriormente,
descoberto e vazado para o WikiLeaks.
Como ocorre frequentemente, foi necessária investigação jornalística para
aprimorar os números brutos e distorcidos estatisticamente. A Iraq Body Count,
ONG que é uma ramificação do Grupo de Pesquisa de Oxford, cofundada por
um professor de psicologia, John Sloboda, dedicou-se por anos à contagem de
cadáveres que, de outro modo, seriam desconsiderados. Eles conseguiram cruzar
seus números com os dados militares vazados. O grupo afirma:
A divulgação e a publicação dos “Diários de Guerra do Iraque” pelo WikiLeaks proporcionaram ao
IBC a primeira base de dados de grande escala que podíamos comparar e cruzar com a nossa. Para a
maior parte dos incidentes, a base de dados militar é tão detalhada quanto a do IBC e, algumas vezes,
até mais. A divulgação de forma tão detalhada nos permitiu realizar pesquisas preliminares sobre o
número de baixas que os diários podem conter, que não foram registradas em outra parte.
Consequentemente, o IBC foi capaz de fornecer uma estimativa inicial – mas extremamente robusta
– de que, após a análise completa dos diários, outras quinze mil mortes de civis (incluindo três mil
policiais comuns) seriam reveladas, além do número de mortos conhecido anteriormente.

Os números encontrados nos diários de guerra não apenas deram lugar a mais
quinze mil baixas como também eram, de modo geral, comparáveis aos dados
extraoficiais do próprio IBC. No fim de 2010, o IBC concluiu que o número total
de mortes documentadas de civis pela violência no Iraque, desde 2003, variava
entre 99.383 e 108.501. A confiança que o público pode ter nesses números é
consequência direta da divulgação de Manning e Assange, além da dedicação
dos pesquisadores do IBC e do trabalho duro de jornalistas de três organizações
noticiosas. Futuros historiadores poderão avaliar se esse trabalho será capaz de
tornar as aventuras militares norte-americanas e britânicas menos precipitadas e
sangrentas.
Outro aspecto das estatísticas dos diários de guerra que provavelmente é
muito confiável – pois o Exército norte-americano não teria razão para
subestimar esses números – é o espantoso total de civis, soldados locais e
membros das forças de coalizão cuja morte foi causada por minas terrestres
rebeldes ou por combates entre membros do mesmo grupo. Nada menos que
31.780 mortes foram atribuídas a bombas improvisadas plantadas na beira das
estradas pelos rebeldes. Atentados praticados por extremistas (registrados como
“assassinatos”) causaram mais 34.814 vítimas. No total, os diários de guerra
detalharam 109.032 mortes.
Esse total de mortos caiu para os 66.081 civis detalhados anteriormente, mais
15.196 membros das forças de segurança do Iraque e 23.984 pessoas
classificadas como “inimigos”. Em 31 de dezembro de 2009, quando a base de
dados vazada é interrompida, o número total foi alcançado com a adição de
3.771 mortes de soldados norte-americanos e aliados. Todos os soldados
ocidentais que morreram tinham um nome, uma família e, provavelmente, uma
fotografia publicada no jornal local, acompanhada de condolências. Mas os
arquivos mostram que eles representam menos de 3,5% do número total de
mortos no Iraque.

Esse derramamento de sangue chocante foi justificado pelos Estados Unidos,


pelo Reino Unido e por parceiros de ocupação com base no fato de que eles
salvaram os iraquianos do brutal Estado policial de Saddam Hussein. Assim, foi
duplamente perturbador quando uma análise dos dados feita por Nick Davies, do
The Guardian, revelou que o Iraque ainda era uma câmara de tortura. O legado
deixado pelas tropas ocidentais foi de um Exército e de uma força policial
iraquianos que continuariam a prender, abusar e assassinar seus próprios
cidadãos, quase como se Saddam nunca tivesse sido deposto.
Foi a revolta de Bradley Manning com o comportamento da polícia iraquiana
e com a conivência dos militares norte-americanos que o levou, de acordo com
suas declarações nos registros de conversas, a pensar, em 2009, em revelar
informações confidenciais. Depois de ver descartada sua tentativa de inocentar
um grupo de iraquianos presos injustamente, “tudo começou a desmoronar [...].
Eu via as coisas de modo distinto [...]. Estava ativamente envolvido em algo do
qual discordava completamente”.
Davies afirmou, no The Guardian de 23 de outubro:
Autoridades norte-americanas deixaram de investigar centenas de relatos de abuso, tortura, estupro e
até assassinatos praticados pela polícia e pelos soldados iraquianos, cuja conduta parece ser
sistemática e normalmente ficar impune. [...] Os inúmeros relatos de abuso de presos, frequentemente
apoiados em evidências médicas, descrevem prisioneiros algemados, vendados, pendurados pelos
pulsos ou tornozelos e submetidos a chicotadas, socos, chutes e choques elétricos. Seis relatos
terminam com a aparente morte do prisioneiro.
Recentemente, em dezembro de 2009, os americanos receberam um vídeo que, ao que tudo indica,
mostrava oficiais do Exército iraquiano executando um prisioneiro em Tal Afar, no norte do Iraque.
O registro afirma: “A filmagem mostra aproximadamente doze soldados do Exército iraquiano. Dez
soldados conversavam entre si, enquanto outros dois seguravam o prisioneiro. Suas mãos foram
amarradas [...]. A filmagem mostra os soldados levando o prisioneiro pela rua, jogando-o no chão,
socando-o e atirando nele”. O relatório mencionou pelo menos um agressor e foi transmitido às
forças de coalizão.
Em dois casos, as autópsias revelaram evidências de morte por tortura. Em 27 de agosto de 2009, um
oficial médico norte-americano encontrou “contusões e queimaduras, além de ferimentos visíveis na
cabeça, braço, tronco, pernas e pescoço”, no corpo de um homem que a polícia alegava ter se
matado. Em 3 de dezembro de 2008, foram encontradas “evidências de algum tipo de procedimento
cirúrgico desconhecido no abdome” de outro prisioneiro, que a polícia alegou ter morrido de “doença
renal”.
Mas os registros revelam que a coalizão tem uma política formal de ignorar alegações de tortura. Eles
registram que “nenhuma investigação é necessária” e simplesmente transmitem os relatórios às
mesmas unidades iraquianas envolvidas nos atos de violência. Por outro lado, todas as alegações que
envolvem forças de coalizão são submetidas a inquéritos formais.

Mesmo quando torturas como essas não eram mencionadas, surgiam dos
registros das mortes no Iraque inúmeras imagens que devem ter sido
profundamente degradantes e prejudiciais para os agressores militares.
Em 22 de fevereiro de 2007, por exemplo, a tripulação de um helicóptero
Apache, da mesma unidade que matou os funcionários da Reuters – indicativo
de chamada Crazyhorse 18 –, contatou a base via rádio para ouvir instruções
sobre uma perseguição aérea. Eles estavam atrás de dois rebeldes que haviam
lançado morteiros contra uma base norte-americana e, em seguida, tentado fugir
numa van. O Crazyhorse 18 disparou contra o veículo. Os dois homens saltaram
e tentaram escapar num caminhão basculante. O Crazyhorse 18 voltou a atirar.
“Eles desceram, querendo se render”, comunicou a tripulação do helicóptero à
base, solicitando orientação. O que eles deveriam fazer?
O fato de que o advogado da base tenha se colocado imediatamente à
disposição, pronto para ser consultado, é sinal do respeito norte-americano à
legalidade. O controlador respondeu: “O advogado diz que eles não podem se
render a uma aeronave e que ainda são alvos válidos”. E a tripulação do
helicóptero matou os homens, enquanto eles tentavam se render.
Os dois homens mortos eram combatentes inimigos. O mesmo provavelmente
não pode ser dito de um carro que dirigia muito próximo a um comboio de
suprimentos, nos arredores de Bagdá. Os fuzileiros navais no último Humvee*
disseram, mais tarde, que fizeram sinais com as mãos e deram tiros de
advertência no bloco do motor, “para obrigar o veículo a diminuir a velocidade e
não se aproximar do comboio”. Quando ele se aproximou cerca de vinte metros
do Humvee, os fuzileiros começaram a atirar no para-brisa.
O texto em maiúsculas do relatório de campo vazado resume a história:
O VEÍCULO DESVIOU DA ESTRADA PARA UM CANAL 1,5 KM AO NORTE DE
SAQLAWIYAH (38S LB 768 976) E AFUNDOU. (1) HOMEM ADULTO SAIU DO VEÍCULO E
FOI RETIRADO DO CANAL; OS OUTROS PASSAGEIROS AFUNDARAM COM O VEÍCULO.
O HOMEM ADULTO RECEBEU CUIDADOS MÉDICOS NO LOCAL E FOI TRANSPORTADO
PARA O CCC DE SAQLAWIYAH E, EM SEGUIDA, PARA O HOSPITAL JORDANIANO. A
F[ORÇA] P[OLICIAL] I[RAQUIANA] DE SAQLAWIYAH FOI ATÉ O LOCAL E RETIROU DO
VEÍCULO (2) MULHERES ADULTAS, (3) CRIANÇAS COM IDADE ENTRE 5 E 8 ANOS E (1)
BEBÊ. TODOS OS (6) SE AFOGARAM. A FPI DE SAQLAWIYAH ESTÁ LEVANDO TODOS
OS CORPOS RETIRADOS PARA RAMADI.

Não se tratava agora da retórica militar hi-tech tão frequentemente exibida nos
comunicados do Exército norte-americano à imprensa, mas de atos de crueldade
mais dignos de uma versão moderna das gravuras sombrias de Goya do início do
século XIX – Os desastres da guerra.

Assange lançou a publicação dos diários do Iraque no grandioso salão de baile


do Hotel Park Plaza, no Tâmisa, com o Iraq Body Count, Phil Shiner, do Public
Interest Lawyers (Advogados em Defesa do Interesse Público) e uma equipe de
documentaristas televisivos. Pouco antes das dez da manhã, as equipes se
alinharam no corredor atrás de Assange, que vestia terno de corte reto e gravata
e os levou até o mar de flashes e luzes das câmeras. Ele estava cercado por uma
multidão. Era como se o australiano fosse uma estrela do rock acompanhado de
sua comitiva. Cerca de trezentos jornalistas viram seu desempenho – cinco vezes
mais que os presentes na divulgação dos diários do Afeganistão. Quando se fez
silêncio na sala lotada, Assange anunciou: “Esta revelação é sobre a verdade”.
Agora ele já havia divulgado dois dos controversos pacotes vazados para os
jornais, com resultados impressionantes. Mas a pergunta que permanecia na
mente dos jornalistas do The Guardian e do The New York Times, enquanto
observavam toda aquela bajulação, era se Assange estaria preparado para honrar
seu compromisso e entregar o terceiro pacote para publicação. Isso se revelaria
ainda mais sensacional.
Notas

* High mobility multipurpose wheeled vehicle (veículo multifuncional de alta mobilidade), utilitário militar
usado pelas Forças Armadas dos Estados Unidos e de outros países. (N. da T.)
11
Os telegramas
Próximo a Lochnagar, Escócia
AGOSTO DE 2010

“ACollectionOfDiplomaticHistorySince_1966_ToThe_PresentDay#”

– SENHA DE ASSANGE, COM 58 CARACTERES

DAVID LEIGH ouvira pacientemente Assange, que o instruíra a nunca conectar o


pen drive num computador ligado à internet, pelo perigo de haver grampos
eletrônicos da inteligência norte-americana. Mas agora não havia esse risco. O
chalé alugado por Leigh, nas Terras Altas da Escócia, não podia receber nem
sinal de tevê, que dirá uma conexão de banda larga. O editor investigativo do
The Guardian originalmente planejara passar as férias anuais de verão com a
esposa, caminhando pelos montes Grampianos. Mas os picos de Dreish, Mayar,
Lochnagar e Cat Law não foram seu destino dessa vez. Em vez disso, ele se
sentou imóvel à escrivaninha, enquanto o sol nascia e se punha diariamente nas
montanhas cobertas de urzes. No pequeno pen drive prateado da Hewlett-
Packard conectado ao MacBook, estavam os textos na íntegra de mais de 250
mil telegramas diplomáticos. Pesquisar neles era enlouquecedor e cansativo – e
absolutamente irresistível.
Havia sido uma batalha arrancar esses documentos de Assange, em Londres.
Muitas foram as idas à casa que pertencia ao Frontline Club, de Vaughan Smith,
situada próximo à estação de Paddington, antes que ele relutantemente os
entregasse. “Precisamos trabalhar neles, Julian”, argumentara Leigh. “Nenhum
dos parceiros sabe realmente o que está lá, exceto que o conteúdo supostamente
fará Hillary Clinton ter um ataque do coração!” Assange estava mantendo as três
organizações noticiosas na expectativa, apesar do acordo original de entregar
todo o material para publicação. De boa vontade, fornecera os menos
importantes diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, mas falava de como
usaria seu poder para reter os telegramas, a fim de “disciplinar” os grandes
veículos de comunicação.
Os ânimos haviam começado a ficar mais difíceis desde que, no verão, Nick
Davies rompera relações com Assange, depois que este violara o pacto original –
tal como Davies o entendia – ao procurar, sem seu conhecimento, os rivais
televisivos do The Guardian, na Channel 4, e levar consigo todo o conhecimento
adquirido nas visitas privilegiadas à sala de pesquisa do jornal. Na época, Davies
afirmou que se sentia traído; Assange simplesmente insistia que nunca houvera
um acordo.
Os outros jornalistas do The Guardian permaneceram impassíveis e calados.
Havia ainda um longo caminho a percorrer para que todos os vazamentos
viessem à tona. Mas, após a publicação dos diários de guerra do Afeganistão,
Assange propôs mudar os termos do acordo novamente, antes do lançamento do
pacote de diários do Iraque, bem maior. Ele queria mais televisão, para
proporcionar um “impacto emocional”. E tinha novos amigos em Londres agora:
Ahmad Ibrahim, da Al Jazeera, financiada pelo Qatar, e Gavin MacFadyen, da
Universidade da Cidade. MacFadyen, jornalista veterano do World in Action, um
dos programas investigativos de televisão mais importantes dos anos 70,
recentemente ajudara a montar uma produtora independente na universidade.
Chamada Agência de Jornalismo Investigativo, era financiada pela Fundação
David e Elaine Potter. Elaine fora repórter durante a fase áurea do The Sunday
Times, de Londres, e o marido, David, ganhara milhões desenvolvendo o
computador Psion. Havia a expectativa de que a próspera Fundação Potter se
tornasse patrocinadora do WikiLeaks, à maneira dos Médici florentinos, por
assim dizer, para o Michelangelo de Assange. Rapidamente, a Agência foi
atraída para os novos planos do australiano.
Ele exigia que a publicação impressa dos diários de guerra do Iraque fosse
adiada por pelo menos seis semanas. Isso permitiria à Agência, sob a orientação
de Assange, vender um documentário televisivo para a respeitada série
Dispatches, da Channel 4. A Agência também prepararia e venderia um segundo
documentário, de natureza mais abrangente, a ser transmitido pelos canais inglês
e árabe da Al Jazeera, que certamente causaria alvoroço no Oriente Médio. Os
dois documentários foram produzidos, e Assange sensatamente contratou uma
respeitada ONG – a Iraq Body Count – para analisar o número de baixas para as
produções televisivas.
A nascente Agência, presidida pelo ex-jornalista televisivo Iain Overton,
tentou, sem sucesso, fazer outras vendas lucrativas para canais de televisão dos
Estados Unidos. Depois, Overton irritou seus parceiros de mídia impressa, já
pouco entusiasmados, ao dar uma entrevista a Mark Hosenball, da revista
Newsweek, divulgando antecipadamente todo o plano ultrassecreto de publicar
os diários de guerra do Iraque.
“Exclusivo: WikiLeaks colabora com meios de comunicação para divulgar
documentos do Iraque” – eis a manchete do artigo, que iniciava da seguinte
forma: “Uma organização de jornalismo sem fins lucrativos, em Londres, está
trabalhando com o site WikiLeaks, com a tevê e com veículos impressos de
diversos países em programas e histórias baseados no que é descrito como um
cache massivo de relatórios de campo militares confidenciais dos Estados
Unidos, relacionados à Guerra do Iraque [...]. O material é o ‘maior vazamento
da inteligência militar’ já ocorrido, afirma Overton”.
O acordo de Assange com os jornalistas do Qatar também irritou os parceiros
originais. A Al Jazeera quebraria o embargo acordado de publicação simultânea
em quase uma hora, deixando as outras organizações noticiosas com dificuldades
para atualizar seus sites. Leigh achava difícil discordar de Eric Schmitt, do The
New York Times, que reclamou que Assange parecia estar fazendo acordos com a
“ralé”. O fundador do WikiLeaks fora catapultado ao status de celebridade, em
grande parte graças à credibilidade que lhe fora concedida por três das maiores
organizações noticiosas do mundo. Mas será que ele estava saindo de controle?
Leigh fez um esforço para não brigar com o empresário australiano, que
costumava criticar o que chamava de “britânicos velhacos”. Em vez disso, o
jornalista do The Guardian usou as instáveis demandas de Julian como moeda de
troca: “Você quer que atrasemos a publicação dos diários do Iraque para que
você possa fazer contatos com a tevê?”, comentou. “Podemos recusar e
simplesmente continuar a publicação como planejado. Se você quer que façamos
algo por você, tem que fazer algo por nós também.” E lhe pediu que parasse de
adiar a entrega da maior coleção de todas: os telegramas. Assange argumentou:
“Posso lhe dar metade deles, cobrindo os primeiros 50% do período”.
Leigh recusou. “É tudo ou nada”, disse. “E se você acabar de macacão laranja
a caminho de Guantánamo antes de divulgar todos os arquivos?” Em troca, ele
prometeu a Assange manter os telegramas seguros e não publicá-los até a hora
certa. Assange sempre tivera uma ideia vaga sobre o momento da publicação, no
entanto geralmente apontava o mês de outubro como uma data adequada.
Acreditava que as acusações do Exército norte-americano contra o soldado
Bradley Manning, mantido preso, já estariam esclarecidas até lá, e que a
publicação não poderia piorar sua situação. Ecoando o humor macabro de Leigh,
afirmou: “Primeiro, vou precisar estar seguro em Cuba!”
Finalmente, Assange cedeu. Tarde da noite, depois de duas horas de discussão,
iniciou, num dos pequenos netbooks, o procedimento que permitiria a Leigh
baixar todo o pacote de telegramas. O jornalista do The Guardian tinha de
instalar o sistema de criptografia PGP no laptop de casa, do outro lado de
Londres. Então poderia digitar a senha. Assange a escreveu num pedaço de
papel: “ACollectionOfHistorySince_1966_ToThe_PresentDay#”.* “Esta é a
senha”, disse. “Mas é preciso acrescentar uma palavra a mais ao digitá-la. É
preciso que você digite a palavra ‘Diplomatic’* antes da palavra ‘History’. Você
vai conseguir se lembrar?”
Leigh respondeu que sim. Então foi para casa e instalou com sucesso o
software PGP. Digitou a enorme senha e ficou satisfeito ao conseguir baixar um
imenso arquivo do site temporário de Assange, mas percebeu que o arquivo
estava zipado – fora comprimido em um formato chamado 7z, totalmente
desconhecido para ele. Em plena madrugada, entrou no carro e dirigiu pelas ruas
desertas de Londres até o quartel-general de Assange, em Southwick Mews.
Assange sorriu com um pouco de pena e descompactou o arquivo para ele.
Agora, isolado nas Terras Altas, na companhia de lebres e falcões, Leigh
sentia-se suficientemente seguro para trabalhar duro no perigoso conteúdo do
pen drive. Obviamente, não havia como ele, ou outro ser humano qualquer, ler
os 250 mil telegramas. Isolado da rede do The Guardian, ele era incapaz de
transformar aquele material numa base de dados pesquisável. Tampouco podia
pesquisar o arquivo monolítico do modo jornalístico normal e simples, como um
documento do Word ou coisa parecida – o arquivo era grande demais.
Foi Harold Frayman, o especialista técnico do The Guardian, quem o salvou.
Antes de Leigh deixar a cidade, Frayman dividiu o material em 87 partes, cada
uma pequena o bastante para ser acessada e lida em separado. Em seguida,
explicou como Leigh poderia usar um programa simples, chamado
TextWrangler, para pesquisar por palavras-chave ou frases simultaneamente em
todos os arquivos separados e obter os resultados de modo simplificado.
Leigh estava começando a entender as coisas. Aprendeu rapidamente que,
embora os telegramas frequentemente incluíssem textos livres sobre a política
local, os cabeçalhos eram sempre construídos num formato rígido. Na verdade, o
Departamento de Estado divulgara em seu próprio site um manual de
telecomunicações não confidencial que orientava os criptógrafos a respeito de
todos os procedimentos.
Assim, por exemplo, digitar “FM AMEMBASSY TUNIS” resultaria em uma
lista de todas as mensagens enviadas a Washington da embaixada americana na
capital da Tunísia. Além disso, todas as mensagens eram assinadas com o
sobrenome do embaixador no posto na época, em letras maiúsculas. Assim, a
palavra TUTTLE buscaria todos os telegramas enviados durante o tempo de
serviço de Robert Tuttle, embaixador de George W. Bush em Londres.
Contudo, havia limites para o conteúdo do dossiê, em virtude do pouco
material anterior a 2006 e de que o sistema Net-Centric Diplomacy fora
construído a partir de projetos-piloto restritos. Assim, no início, poucas
embaixadas enviavam material. Mesmo as mensagens mais atualizadas e
extensas eram apenas uma seleção parcial – muitos telegramas ou trechos que o
Departamento de Estado não se viu obrigado a compartilhar com outras partes da
selva militar e burocrática de Washington não estavam lá. Apesar disso, os
telegramas continham uma espantosa montanha de palavras, retratando a recente
diplomacia da maior superpotência mundial de forma que ninguém nas décadas
anteriores poderia imaginar.
O volume total era impressionante. Se o pequeno pen drive que continha os
telegramas fosse um conjunto de textos impressos, teria formado uma biblioteca
de mais de dois mil livros de bom tamanho. Nenhum diplomata se atreveria a
escrever tanto antes da era digital; e, mesmo que tivesse escrito, nenhum espião
teria conseguido roubar cópias daquela quantidade de papéis sem usar um
caminhão, e nenhuma mente teria sido capaz de analisá-las posteriormente sem
passar metade da vida nessa tarefa.
Confrontar-se com todo aquele conjunto de dados representava, portanto, um
sério problema jornalístico.

Leigh começou seus experimentos digitando a palavra “Megrahi”. Ele achava


que o nome do oficial de inteligência líbio, preso pela participação no famoso
atentado a bomba em Lockerbie, em 1988, poderia ser incomum o bastante para
exibir resultados relevantes. O caso Megrahi estava enredado em uma disputa
diplomática envolvendo americanos, líbios, britânicos, escoceses e – como se
viu depois – até diplomatas do Qatar. Contra o desejo dos norte-americanos,
Megrahi havia sido libertado de uma prisão britânica em agosto de 2009,
supostamente por razões humanitárias, visto que, em virtude de um câncer de
próstata, teria pouco tempo de vida. Um ano depois, ele ainda estava vivo e fora
recebido como herói em Trípoli. Era essa a história que o mundo conhecia, mas
havia muitas teorias conspiratórias. Será que agora seria possível descobrir a
verdade?
O software TextWrangler não levou nem dois minutos para exibir e catalogar
nada menos que 451 ocorrências da palavra “Megrahi” nos despachos norte-
americanos. Somadas, a imagem que pintavam certamente era diversa da que
fora oficialmente oferecida ao público britânico na época. O primeiro telegrama
na tela era de Richard LeBaron, o encarregado de negócios americano em
Londres, com data de 24 de outubro de 2008. Assinalado como
“PRIORIDADE”, tanto para o secretário de Estado em Washington quanto para
o Departamento de Justiça, o telegrama era classificado como
“CONFIDENCIAL/NOFORN”.* Começava assim: “Abdelbasset al-Megrahi,
condenado por bombear o Pam [sic] Am 103, tem câncer incurável e inoperável,
mas não está claro quanto tempo tem de vida”.
Uma sequência de telegramas retratava a crescente pressão – descrita como
“violenta” – exercida pela Líbia sobre a Grã-Bretanha. Considerado da
perspectiva norte-americana, o dilema do funcionário em Londres era claro e até
despertava alguma simpatia. O público americano ficaria furioso se o enfermo
Megrahi fosse libertado logo – muitos cidadãos norte-americanos haviam
falecido no atentado ao avião, e Megrahi fora o único líbio que recebera algum
tipo de punição pela atrocidade.
Por outro lado, se Megrahi fosse deixado para morrer numa prisão escocesa
(os fragmentos do avião caíram numa cidade da Escócia, país que tinha seu
próprio sistema legal), Muammar Kadafi, o governante megalomaníaco da Líbia,
imporia terríveis represálias comerciais. O embaixador britânico avisava que os
interesses do Reino Unido poderiam ser prejudicados. Era a verdade crucial que
nenhum político do país queria admitir em público.
A administração britânica em Londres conseguiu empurrar a decisão sobre a
libertação de Megrahi – e a consequente culpa por ela – para o governo
autônomo da Escócia. Os políticos nacionalistas escoceses reclamavam
amargamente com os Estados Unidos que não ganhariam nada com isso. Os
diplomatas americanos registravam em particular que era bem feito para os
nacionalistas escoceses por não saberem lidar com a situação. Os americanos
também afirmaram suas suspeitas de que os escoceses poderiam ter sido
subornados com a oferta de empréstimos comerciais do Qatar para libertar
Megrahi (as duas partes negaram enfaticamente) e que Tony Blair, quando era
primeiro-ministro, poderia ter cinicamente prometido indulto para Megrahi em
troca de vantajosos acordos para o petróleo. (Os britânicos também negaram
enfaticamente essa acusação.)
Os telegramas fizeram com que os britânicos parecessem incompetentes – eles
não conseguiram evitar que o filho de Kadafi, Saif, organizasse uma embaraçosa
recepção de herói para Megrahi, embora as comemorações tenham sido
atenuadas. E a inteligência do Reino Unido era tão fraca que os diplomatas
estavam preocupadíssimos diante da perspectiva de um funeral público para
Megrahi no ano seguinte – mas com base em informações falsas, devidamente
transmitidas aos Estados Unidos, de que ele morreria a qualquer instante.
Os telegramas também revelavam que os americanos eram dissimulados.
Enquanto os políticos domésticos dos Estados Unidos bufavam de raiva pela
traição líbia, o Departamento de Estado assinalava que Kadafi poderia ser
convencido a ajudar na caça aos fundamentalistas da Al-Qaeda. E o governante
líbio continuava a desmantelar seu suposto arsenal nuclear – mas para isso
Hillary Clinton teve de assinar pessoalmente uma carta humilhante para aplacar
um de seus ataques violentos.
Conforme os telegramas revelaram, esse ataque particular ocorreu quando
Kadafi, sempre acompanhado de uma “voluptuosa enfermeira ucraniana loura”,
se irritou com a sarcástica recepção a seu longo discurso na Assembleia Geral da
ONU. Sua irritação aumentou com a recusa dos Estados Unidos em deixá-lo
montar sua icônica tenda em estilo beduíno em Nova York. Kadafi manifestou
sua ira – como se soube mais tarde – recusando-se subitamente a permitir que
uma carga “quente” de urânio altamente enriquecido fosse carregada num avião
de transporte e enviada de volta à Rússia, como parte do acordo de
desarmamento nuclear. Apavorados, diplomatas e especialistas norte-americanos
advertiram sobre uma calamidade radioativa, pois o contêiner de urânio ficaria
armazenado durante um mês, sem vigilância, sob o risco de aquecer e rachar.
A imagem que emergiu do relacionamento diplomático entre os Estados
Unidos e a Líbia era, portanto, de uma textura rica e fascinante. Mostrava uma
superpotência em ação: bajulando, consertando, montando escutas, manobrando
e, algumas vezes, intimidando. Também mostrava as atitudes assustadoramente
desvairadas de um governante que possuía ambições nucleares e uma valiosa
reserva de petróleo – uma verdade que seus próprios súditos raramente
conseguiam ver. E, do ponto de vista de um repórter britânico, mostrava a
aparente limitação das opções abertas ao Reino Unido, apesar das pretensões do
país de fazer mais do que lhe era possível.
Esses documentos deveriam ser tratados com cuidado – percebeu Leigh.
Alguns dos informantes que haviam descrito as idiossincrasias de Kadafi
evidentemente precisariam ter sua identidade protegida. Embora os telegramas
fossem obviamente genuínos, não significava que as análises e os boatos
mencionados também estivessem corretos. Era preciso ter em mente que os
autores das mensagens para Washington também tinham seus próprios interesses
– queriam impressionar, promover as próprias opiniões. Algumas vezes, queriam
simplesmente demonstrar que sabiam o que estava acontecendo – diplomatas,
como jornalistas, eram capazes de transformar um almoço sem graça com um
“contato” numa história quente, se isso fosse bom para a carreira.
Ainda assim, com todas essas limitações, estava claro que o relacionamento
secreto diplomático entre os Estados Unidos e a Líbia era tremendamente
revelador. Não só merecia ser publicado como era importante. Era uma imagem
do mundo, visto por um prisma menos confuso que o habitual. E havia mais de
cem países ainda! Leigh estava mergulhando mais uma vez na base de dados
quando o telefone subitamente tocou, interrompendo o silêncio nas montanhas
das Terras Altas. Era Nick Davies, o colega de Londres, com uma mensagem
desconcertante, algo que ameaçava arruinar toda a empreitada do WikiLeaks.
“Julian vai ser preso na Suécia!”, ele disse. “Ele está sendo acusado de estupro.”
Notas

* Literalmente, “Uma coleção de história desde 1966 até os nossos dias”. (N. da T.)
* Literalmente, “Diplomática”. (N. da T.)
* NOFORN = Not Releasable to Foreign Nationals (Não pode ser divulgado a cidadãos estrangeiros). (N.
da T.)
12
O homem mais famoso do mundo
Apartamento de Sonja Braun, Estocolmo
SEXTA-FEIRA, 13 DE AGOSTO DE 2010

“Sonja tentou diversas vezes pegar a camisinha, mas Assange


a impediu, segurando seus braços e prendendo suas pernas.”

– DEPOIMENTO DE BRAUN, DOSSIÊ DA POLÍCIA SUECA

A REVELAÇÃO DE QUE Julian Assange estava sendo acusado de estupro veio


como uma bomba. Numa sequência de chamadas internacionais frenéticas,
Leigh e Davies tentavam juntar os pedaços de uma história de desastrosos
conflitos sexuais, ocorrida no alto verão nórdico, que levaria os promotores
suecos a emitir o pedido de extradição de Assange da Grã-Bretanha para ser
interrogado sobre as acusações de comportamento sexual impróprio. Ninguém
imaginara isso.
Uma coisa é certa: de acordo com as provas apresentadas, Julian Assange não
é, de modo algum, um estuprador no sentido usado por muitas pessoas – ou seja,
ele não pratica nem foi acusado da brutal e premeditada violência sexual que a
palavra “estuprador” evoca nas manchetes dos tabloides.
Mas, durante sua estada em Londres, Assange frequentemente demonstrou ter
uma atitude inquieta e predatória em relação às mulheres. Isso contrastava com
seu comportamento normalmente indiferente. Numa ocasião, sua conduta fez sua
loura advogada, Jennifer Robinson, do escritório Finers Stephens Innocent,
corar. Reunido no alto da escada no interior do prédio do The Guardian, um
grupo de repórteres famintos, com Assange e alguns membros de sua equipe de
advogados, falava sobre sair para comer. “Devemos levar os advogados
conosco?”, perguntou um jornalista. Assange olhou maliciosamente para
Robinson e disse: “Vamos levar só a moça bonita”.
Um membro da equipe do WikiLeaks confidenciou mais tarde: “Sempre
alertávamos Julian para que ele parasse de fazer comentários sexualmente
inapropriados”. A parlamentar islandesa Birgitta Jónsdóttir, uma de muitas
mulheres irritadas, comentou, com certa tolerância, que era importante ter em
mente a cultura de onde vinha Assange. Ela disse ao The Daily Beast online:
“Julian é brilhante em muitos aspectos, mas suas habilidades sociais não são
muito boas [...] ele é um australiano clássico, no sentido de que é um pouco
machista”.
Homens como Assange, que chamam as mulheres de “gostosas” e vêm de um
lugar onde são comuns piadas grosseiras sobre a cobra dentro das calças,
contrastam muito com a sobriedade dos suecos, que são bem avançados na
compreensão dos direitos sexuais femininos.
Nesse contexto, na Suécia, estava montado o cenário para um encontro
ambíguo e, como se viu, extremamente controverso.

Na quarta-feira, 11 de agosto, Assange chegou a Estocolmo vindo de Londres.


Naquela noite, jantou no Beirut Café, restaurante libanês ao norte da cidade, com
mais quatro pessoas. Estavam presentes Donald Boström, de 56 anos, jornalista
sueco que era o contato local do WikiLeaks, e a esposa. O outro casal na mesa
eram Russ Baker, repórter norte-americano de cabelo grisalho cortado bem curto
que, no ano anterior, publicara um polêmico livro sobre a família Bush, e uma
amiga com quem ele viajava. Assange a paquerou de forma tão descarada –
embora sem sucesso – que, segundo os presentes, aquilo acabou gerando uma
briga. “Assange e Baker acabaram se desentendendo do lado de fora do
restaurante”, afirma uma das pessoas envolvidas.
Boström comenta que se preocupava com o amigo famoso e que o prevenira a
respeito de seu comportamento, que poderia representar um risco à sua
segurança: “Ele não seria o primeiro grande homem a se deixar levar por uma
mulher de saia curta”. A fama de Assange e sua notória coragem se tornaram
muito atraentes para as mulheres, segundo Boström: “É mais ou menos o que
acontece com os astros do rock. Para algumas pessoas, ele é o homem mais
famoso do mundo. É inteligente de verdade – isso é atraente – e capaz de
enfrentar o Pentágono. Tudo isso impressiona muita gente. Eu poderia dizer que
a maioria das mulheres que entram em contato com ele se apaixona
completamente. Elas ficam enfeitiçadas”.
A sexta-feira 13 fez jus à fama, pelo menos para Assange. No início da
viagem, o famoso informante ficou hospedado no subúrbio de Södermalm, num
apartamento vazio que pertencia a Sonja Braun (nome fictício), de 31 anos,
ativista política de um movimento chamado Irmandade, grupo cristão ligado ao
Partido Social-Democrata. Braun é uma feminista magra de cabelos escuros,
anglófona, ex-funcionária para questões de igualdade numa importante
universidade sueca. Foi ela quem convidou Assange para ir até a Suécia
apresentar um seminário, e, na verdade, parece ter arranjado tudo para que ele
dormisse em seu apartamento, que tinha apenas um quarto e uma única cama,
como observam os advogados de Assange.
Antes da chegada do australiano, Braun telefonou para Boström, recorda o
jornalista: “Nós nunca havíamos nos encontrado antes, e ela me disse: ‘Olá, meu
nome é Sonja Braun. Estou organizando um seminário e estarei fora numa
viagem de negócios. Meu apartamento estará vazio e Julian poderia ficar lá. O
que você acha?’ Sairia mais barato para a Irmandade não pagar diárias de hotel, e
Julian ficaria melhor num apartamento que num hotel, por isso sugeri isso a ele,
que concordou com a ideia. Então, pus os dois em contato. Fui o intermediário,
por assim dizer. A ideia era que Julian ficasse lá até sexta-feira, eu acho. O
seminário era no sábado. Supostamente, Sonja voltaria no sábado”.
Mas ela decidiu voltar um dia antes. Nesse ponto, as histórias começam a
divergir. Os advogados de Assange forneceram uma cronologia precisa numa
audiência posterior em Londres, dizendo: “Braun chega sem explicação, o leva
para jantar e o convida para a cama dela. Ela lhe oferece uma camisinha e eles
têm relações sexuais diversas vezes”. Os advogados acrescentam com sarcasmo:
“De manhã, Braun tira uma foto (não autorizada) de Assange dormindo na cama
e depois a divulga na internet”.
Uma versão bem diferente foi dada à polícia pela própria Braun. Segundo ela,
era a história de uma noite de sexo ruim, com uma reviravolta. O documento da
polícia registra: “Enquanto eles estavam sentados tomando chá, Assange
acariciou a perna de Sonja, que declarou que em nenhum momento antes desse
ele tentara demonstrar qualquer interesse físico por ela, o que inicialmente ela
recebeu bem. Então, de acordo com Sonja, tudo foi muito rápido. Assange era
bruto e impaciente. Ele arrancou as roupas dela e, ao mesmo tempo, quebrou seu
colar. Sonja tentou vestir uma peça de roupa, porque as coisas estavam indo
rápido demais e de modo desagradável, mas Assange arrancou-as novamente.
Sonja afirma que não queria ir além, mas era muito tarde para impedi-lo, já que
ela fora longe demais. Ela afirma que sentia ser a única culpada e, por isso,
deixou que Assange a despisse”.
Essa ação vigorosa não parece distante da realidade. Outra mulher, de
Londres, que se envolveu com Assange mais ou menos na mesma época, disse
aos autores do livro: “Eu o beijei. Em seguida, ele começou a tentar tirar meu
vestido. Essa era a abordagem dele”.
Mas as queixas de Braun vão além. De acordo com sua declaração, ela
percebeu que ele estava tentando fazer sexo com ela sem proteção: “Ela tentou
girar os quadris e cruzar as pernas para interromper a penetração. Braun tentou
diversas vezes pegar a camisinha, mas Assange a impediu, segurando seus
braços e prendendo sua pernas, tentando penetrá-la sem preservativo. Braun
afirma que estava quase chorando e, como não podia pegar a camisinha, pensou:
‘Isso vai terminar mal’. Depois de algum tempo, Assange perguntou a Sonja o
que ela estava tentando pegar e por que estava cruzando as pernas, e ela
respondeu que queria que ele colocasse a camisinha [...]. Assange já soltara seus
braços e colocara a camisinha que ela lhe dera. Ela afirma que sentia haver uma
resistência velada por parte de Assange, o que a fez perceber que ele não gostava
que lhe dissessem o que fazer”.
Braun disse à polícia que, em algum momento, Assange “fizera algo” com o
preservativo, que fez com que este se rompesse, e ejaculara sem retirar o pênis.
Quando, mais tarde, questionado pela polícia de Estocolmo, Assange confirmou
que fizera sexo com Braun, mas disse que não rasgara o preservativo, alegando,
inclusive, que continuou a dormir na cama dela na semana seguinte sem que em
nenhum momento ela tocasse nesse assunto.
Às 9h30 da manhã seguinte, segundo os defensores de Assange, um jornalista
chegou para levá-lo para a palestra. “Ele ficou surpreso ao encontrar Braun lá.”
Ela também parecia constrangida e negou ter feito sexo com Assange. Boström
disse à polícia: “Ao ser questionada, ela brincou que Julian estava vivendo em
seu apartamento e dormindo em sua cama, mas que eles não tinham feito sexo.
Ela disse que ele havia tentado, mas que ela não quis”. Muito mais tarde,
segundo Boström, ela confessou, sem graça, que de fato fizera sexo com
Assange. A explicação: “Eu estava orgulhosa de ter o homem mais famoso do
mundo em minha cama, vivendo em meu apartamento”.
Às onze da manhã, na palestra de Assange com o tema “A verdade é a
primeira baixa da guerra”, Sonja Braun podia ser vista filmando no palco. Ela
parecia profissional, embora um pouco desanimada.
Boström começou a desconfiar de algo. No almoço após o seminário, ele
observou que Braun e Assange conversavam com intimidade: “Ela me disse,
rindo, que ele era um cara estranho, que levantava no meio da noite para
trabalhar no laptop, e ela achava isso engraçado. Mas depois, na festa, ela se
senta ao lado de Julian e volta a falar disso [...]. ‘Você ficou acordado ontem à
noite?’, diz. E continua: ‘Eu acordei, você tinha levantado e me senti
abandonada’. E foi essa palavra que me chamou atenção. Por que ela se sentiria
abandonada se eles não...” O relato é interrompido e toma outro rumo: “Peter
Weiderud [um dirigente da Irmandade] diz que é época de lagostim na Suécia,
que Julian veio de fora e que devia experimentar o lagostim sueco”. Braun,
então, zelosamente tuíta, às duas da tarde: “Julian quer ir a uma festa do
lagostim. Alguém tem lugares disponíveis para hoje ou amanhã?” A festa acabou
sendo organizada no apartamento dela, às sete da noite.
Mas, ao que tudo indica, Assange já tinha encontrado outro peixe. Prometendo
aparecer mais tarde na festa do lagostim, ele deixou o almoço não com Braun,
mas com outra admiradora, vestida com um suéter rosa. De cabelos louros
compridos, até o meio das costas, Katrin Weiss (nome fictício) – ou “uma
mulher qualquer”, como Braun supostamente a descreveu mais tarde – tem 25
anos e trabalha no museu local.
No depoimento de Weiss, ela explicou que algumas semanas antes vira
Assange na tevê e, desde então, acompanhara avidamente as notícias sobre o
WikiLeaks. Ela achou Assange “interessante, corajoso e admirável” e, ao
pesquisar seu nome no Google, descobriu, entusiasmada, que ele faria uma
palestra na Suécia. Foi uma das primeiras a se inscrever no seminário. “Sonja se
aproximou de Katrin e perguntou se ela podia ajudar procurando um cabo para o
computador de Julian. Então ela saiu e comprou dois cabos, para ter certeza de
que um deles serviria. Quando voltou, ele nem lhe agradeceu.”
Contudo, Katrin conseguiu transformar a situação numa chance de se
aproximar de seu herói: “Ela ouviu que eles sairiam para comer e perguntou se
poderia acompanhá-los. Então, foi com Sonja, Julian e outras pessoas para um
restaurante”. Segundo o depoimento, no restaurante, ela enviou animadas
mensagens de texto a duas amigas para dizer que estava com o australiano. “Ele
olhou para mim!”, escreveu numa delas. E aproveitou a oportunidade para falar
com ele. “Ele estava comendo uma fatia de pão com um pouco de queijo, ela
perguntou se estava bom, ele pegou um pedaço e deu na boca dela. Mais tarde,
ele comentou que precisava de um carregador para o laptop e ela se ofereceu
para ajudar, pois já tinha arrumado o cabo antes. Ele a segurou pela cintura e
disse: ‘É, você me deu o cabo’. Katrin achou lisonjeiro e percebeu que ele estava
flertando com ela.”
No entanto, os advogados de Assange alegam que foi Katrin quem “flertou
com Julian”. Boström afirma: “Depois que os jornalistas foram embora, ficou
essa mulher, que eu nunca tinha visto antes. Fiquei com a impressão de que ela
era uma dessas, como posso dizer, tietes [...] que são atraídas pela aura de
mistério de Julian. Na verdade, acho que ela não falou muito, exceto quando lhe
perguntei como ela entrara em contato com Sonja. Por isso, não dei muito mais
atenção, apenas pensei que parecia interessante. Ela e Julian se sentaram de
frente um para o outro e conversaram um pouco [...]. Fiquei com a impressão de
que ela estava fascinada por ele”.
Depois do almoço, Weiss se ofereceu para levá-lo até o computador do
trabalho dela. Quando Assange finalmente se cansou de surfar na rede e procurar
tuítes sobre si mesmo no computador de Katrin, no museu, eles foram ao
cinema. “No caminho, Julian parou para fazer carinho em alguns cachorros, e
Katrin achou aquilo encantador.” Ele pegou a mão dela, a beijou e acariciou na
escuridão da última fila. Antes que ele pegasse um táxi para ir à festa do
lagostim de Braun, trocaram números de telefone. Ele a abraçou, disse que não
queria ir embora e que gostaria de vê-la de novo.
Naquela noite, a festa do lagostim no apartamento de Braun parece ter tido
momentos difíceis. Uma amiga disse à polícia que “perguntou a Sonja se ela
tinha dormido com Julian [...] e ela respondeu: ‘Sim!’ parecendo bastante
orgulhosa disso”. Braun então tuitou, aparentemente entusiasmada: “Sentada ao
ar livre às duas da manhã, quase congelando, com as pessoas mais legais e
inteligentes do mundo”. Mas, nesse meio-tempo, Assange falava discretamente
ao telefone com Weiss. De acordo com outra amiga ouvida pela polícia, Kajsa,
Assange tentava, ao mesmo tempo, se aproximar dela, fato de que Braun não
gostou muito: “[Kajsa] percebeu a estranha tensão entre Sonja e Julian, [que]
flertava com ela e com outras garotas. Kajsa perguntou a Sonja se ela iria dormir
com Julian. Sonja falou que já o fizera e que fora o pior sexo de sua vida. E disse
a Kajsa que ela podia ficar com ele”. Supostamente, Braun disse algo mais:
“Julian prendera as mãos dela quando eles fizeram sexo e aquilo tinha sido
desagradável. Além de ter sido a pior transa do mundo, também foi violenta”. Às
três da manhã, segundo Kajsa, Assange tentou deixar a festa com ela, que afirma
ter recusado.
Os defensores de Assange têm uma versão diferente. Eles dizem que Braun
era “cordial” em relação a ele. Segundo os advogados, quando perguntaram se
ela queria que Julian saísse do apartamento, ela “insistiu que ele ficasse [...] e
disse: ‘Não tem problema nenhum, ele é muito bem-vindo aqui’”.
Donald Boström também estava na festa, mas não pôde ajudar a esclarecer os
fatos. Ele estava mais preocupado com os crustáceos: “Durante a festa do
lagostim, passei a maior parte do tempo sentado, comendo. Eu gosto muito de
comer. Houve uma conversa sobre Julian sair do apartamento e ficar com outro
casal, mas a impressão geral era de que ele ficaria com Sonja”.
Naquela noite, Braun dividiu a cama novamente com Assange, mas, durante o
fim de semana, o criticou para outra amiga, Petra. No domingo, contou à amiga
que “eles não transavam mais porque Julian ultrapassara todos os limites [...].
Ela não se sentia segura [...]. Julian fora violento e quebrara seu colar. Ela
achava que ele havia rasgado [a camisinha] de propósito”. Petra acrescentou que
a amiga lhe contou um monte de outras informações incômodas, por exemplo,
“que Julian não tomava banho e não dava descarga”.
Os defensores de Assange contam outra história. Eles dizem que Sonja
organizou um jantar em homenagem a Assange no domingo à noite. Ela falou
muito bem dele e novamente recusou as ofertas de hospedá-lo em outro local.
No dia seguinte, telefonou para Boström – afirmam eles – e brincou,
desanimada, que Assange se tornara “seu primeiro filho adotivo”, porque ela
insistia em lavar suas roupas e fazer com que ele se alimentasse bem, como se
fosse sua madrasta. Não houve mais relações sexuais, apesar das tentativas de
Assange.
Enquanto isso, Weiss tentava em vão entrar em contato com Assange, visto
que o celular dele frequentemente estava desligado. Entre outras coisas, ele
estivera ocupado tentando descobrir como poderia conseguir residência sueca e
credenciais jornalísticas. Na noite de terça-feira, 17 de agosto, eles voltaram a se
encontrar. Mais tarde, Weiss forneceria à polícia um relato do que acabou se
transformando numa infeliz aventura de uma noite: “Ela concordou em esperar
por ele e, depois de sair do trabalho, andou um pouco pela cidade. Às nove da
noite, ainda não tivera notícias dele, então telefonou e ele disse que precisava ir a
mais uma reunião e que ela devia encontrar com ele lá”. Quando Assange
finalmente saiu, eles concordaram em pegar o trem para Enköping, a pequena
cidade onde ela morava, a oitenta quilômetros dali. Ele pediu a Katrin que
pagasse as passagens, pois era muito perigoso para ele usar o cartão de crédito.
Weiss disse à polícia que, no trem, ele admitiu que dormira na cama de Braun
após a festa do lagostim, mas fez o improvável comentário de que “Sonja
gostava de garotas – que ela era lésbica”.
Era meia-noite quando finalmente chegaram à casa de Weiss. “Eles tiraram os
sapatos, mas o relacionamento parecia ter esfriado. A paixão e a excitação
tinham desaparecido [...]. Escovaram os dentes juntos, o que parecia rotineiro e
entediante.” Assange a empurrou vigorosamente na cama, “para mostrar que era
homem de verdade”, disse Weiss à polícia, mas seu coração simplesmente não
estava lá. Subitamente ele se virou, dormiu e começou a roncar.
Weiss afirma que se sentiu “rejeitada e chocada” e que ficou acordada,
deprimida, trocando mensagens de texto com a amiga, Maria. Esta se lembra de
que acordou “com um monte de mensagens de Katrin que não eram positivas. O
sexo tinha sido ruim e Julian não tinha sido gentil. Ela disse que teria que ser
examinada por causa das longas preliminares”. As coisas pioraram um pouco
mais durante a noite. Julian acordou e fez sexo com Katrin, reclamando da
insistência dela em usar camisinha. Ele “murmurava que preferia ela ao látex”.
De manhã, começou a lhe dar ordens, exigindo que ela lhe trouxesse água e suco
de laranja e, em seguida, mandando-a comprar o café da manhã. Weiss declarou
que não gostava da ideia de deixá-lo sozinho no apartamento. Ao sair, pediu que
ele fosse “bonzinho”, deixando-o nu e esparramado na cama, feito um
imperador, segurando um de seus celulares. E ele respondeu: “Sou sempre mau!”
Enquanto comprava o café da manhã, Weiss aproveitou para ligar para a
amiga, Maria: “Katrin disse que não iria comprar todas aquelas coisas e lhe dar
tudo na mão”. Mas ela voltou para casa, lhe preparou um mingau, foi para a
cama e eles transaram novamente, com camisinha, declarou a amiga. “Eles
dormiram de novo, e ela acordou ao perceber que ele a penetrava. Ela perguntou:
‘Você está usando alguma coisa?’, e ele respondeu: ‘Você’. Então ela disse:
‘Espero que você não tenha HIV’, e ele respondeu: ‘É claro que não tenho’. Ela
sabia que era tarde demais, que ele já a penetrara, então deixou que ele
continuasse. Ela nunca tinha feito sexo sem proteção antes. Então ela lhe
perguntou: ‘E se eu engravidar?’ Ele respondeu que a Suécia era um bom lugar
para criar uma criança. Ela o encarou, chocada.”
Segundo o depoimento da amiga, ele acrescentou, de maneira irreverente, que
eles poderiam chamar o bebê de “Afeganistão”. O relatório da polícia expõe um
comentário estranho e perturbador de Katrin: “Ele também disse que sempre
tinha pílulas do dia seguinte, mas que, na verdade, eram pílulas de açúcar”. O
que ele queria dizer com isso? Não raro Assange parecia curiosamente orgulhoso
de seu talento como pai. Nessa época, contou aos amigos que recentemente
engravidara uma coreana que conhecera em Paris e que ela estava perto de ter o
bebê.
Essa única noite passada com Katrin é a base da acusação de estupro contra
Assange. Fazer sexo com uma mulher inconsciente ou adormecida é crime, tanto
na Suécia quanto no Reino Unido. Mais tarde, a investigação colheu o
depoimento do ex-namorado de Weiss, que afirmou que ela se preocupava muito
em evitar os riscos do sexo sem proteção e que nunca o permitia. Depois que
Assange voltou para Estocolmo (ela precisou pagar a passagem dele
novamente), Weiss trocou os lençóis manchados, que considerava “nojentos”, e
comprou a pílula do dia seguinte na farmácia. “Quando ela contou às amigas,
percebeu que fora vítima de um crime. Foi até o Hospital Universitário de
Danderyd e de lá para o Södersjukhuset (Hospital Geral do Sul de Estocolmo),
onde foi examinada com o chamado kit de estupro.”
Hanna, amiga de Katrin, uma das pessoas que ela disse ter contatado naquela
manhã, resume a história: “Ela disse que não foi bom e que só queria que ele
fosse embora [...]. A personalidade de Assange mudou quando ele chegou ao
apartamento, e Katrin se arrependeu de tê-lo deixado ficar lá [...]. O que a irritou
foi que Assange fez sexo sem proteção com ela, enquanto ela estava dormindo.
Ele também tentou repetidas vezes fazer sexo sem proteção durante a noite.
Hanna perguntou por que Katrin não o empurrou quando soube que ele não
estava usando camisinha, e Katrin disse que estava muito chocada e paralisada e
não sabia realmente o que estava acontecendo. Hanna tem certeza de que ela não
deixou isso acontecer porque ele é famoso, embora possa ter importância o fato
de ser mais velho. Hanna disse que Katrin queria que Assange fizesse um teste
para detectar doenças sexualmente transmissíveis”.
O relato dos defensores de Assange contradiz a versão dos fatos fornecida por
Weiss em pelo menos um aspecto importante. Ela afirma que comprou o café da
manhã antes de ocorrer o suposto estupro. Eles declararam no tribunal britânico
que as compras para o café da manhã não foram feitas antes, mas “depois que
Assange a penetrou sem camisinha”. Assange não nega que tenha feito sexo sem
camisinha enquanto a parceira estava, como ele diz, “sonolenta”.
De volta a Estocolmo, depois de ter passado a noite toda fora, Assange agora
precisava retornar à casa de Sonja Braun, onde estava hospedado. De acordo
com Braun, que evidentemente percebeu que ele passara a noite com outra
mulher, sua abordagem da delicada situação foi bastante incomum: “Assange
subitamente tirou a calça e a cueca e esfregou o pênis ereto em Sonja. Ela afirma
que considerou esse comportamento estranho e desagradável. Ela não queria
mais que Assange ficasse no apartamento, fato que ele ignorou”.
Como resultado desse suposto incidente, Assange foi acusado pelos suecos de
assédio sexual. Braun afirma que dormiu num colchão naquela noite, e a
seguinte, passou com amigos.
A amiga Petra acrescenta que, na quarta-feira, “apesar de Sonja querer que
Julian saísse do apartamento, ele não saía”. No entanto, Braun não parecia
assustada: “Ele não era agressivo ou perigoso; ela só queria que ele fosse
embora”. Entretanto, Boström recorda: “Na quarta-feira, Sonja me disse: ‘Quero
que ele vá embora’. Diga isso a ele’, respondi, ao que ela retrucou: ‘Eu já disse,
mas ele não vai’. Então falei com Julian: ‘Sonja quer que você saia do
apartamento e diz que já lhe pediu isso’. Ele pareceu surpreso e disse que ela não
tinha falado nada. Então é como um estéreo: um canal diz uma coisa, o outro diz
outra”. A versão de Assange é completamente diferente: “Boström continua
tendo contato com Braun. Ela fala de Julian com carinho e insiste que ele fique
lá com ela”.
Por trás da prosa indistinta do depoimento à polícia, traduzida grosseiramente
do sueco, pode-se ver como a situação se tornara tensa. Só era preciso juntar as
peças. Se Braun e Weiss se encontrassem, poderiam começar a comparar
informações. E haveria confusão.
No dia seguinte, Katrin Weiss enviou uma mensagem de texto a Sonja Braun.
Preocupada de ter contraído alguma doença, Weiss tentava ansiosamente falar
com Assange e achou que Braun pudesse saber onde encontrá-lo. Segundo
Kajsa, amiga íntima de Braun, “Sonja entendeu o que acontecera e elas se
encontraram”. De acordo com essa testemunha, “Sonja disse que a outra garota
decidira ir à polícia para denunciar Julian por estupro e que Sonja a
acompanharia para apoiá-la”.
Outra amiga de Braun, Petra, declarou, em termos semelhantes, que Braun
telefonou “e comentou que encontrara a garota que dizia ter sido violentada por
Julian. Elas descobriram muitas semelhanças entre a experiência dela e a de
Sonja e que Julian queria fazer sexo com a outra garota sem camisinha. Sonja
afirmou que não queria acusar Julian, só queria dar um apoio para a outra garota.
Petra declarou que a história estava ficando cada vez mais confusa”.
Boström assustou-se ao receber um telefonema de Braun: “Pude perceber pela
voz dela que era algo sério; ela declarou: ‘Não é verdade o que eu disse [antes];
nós fizemos sexo’. Então ela disse que a outra mulher – Katrin – a procurara e
dissera a ela que Julian estivera lá e transara com ela. Nas duas ocasiões, havia
sido voluntário [...] Katrin contou a ela que, na manhã seguinte, Julian continuou
querendo transar com ela sem camisinha. E que ela não quis e protestou, mas,
Julian continuou, apesar das negativas. ‘OK’, respondi, meio espantado com a
conversa. E Sonja continuou: ‘Tenho de lhe dizer que fizemos sexo antes no
apartamento e que, para minha surpresa, ele rasgou a camisinha [...]. Ele rasgou
a camisinha e continuou, contra a minha vontade’”.
Boström afirma: “Acredito que Sonja é uma pessoa muito, muito confiável,
então não podia desconsiderar sua história sem falar com Julian e confrontá-lo –
o que, diabos, ele pensava que estava fazendo [...]. Elas queriam que Julian
fizesse um teste de aids, caso contrário o denunciariam. Mas não queriam falar
com ele. Então Braun saiu com Katrin, falamos ao telefone umas poucas vezes e
trocamos mensagens de texto. Liguei para Julian algumas vezes”.
Boström confrontou Assange firmemente. “E sua reação foi de choque. Ele
não entendia [...]. [E dizia:] ‘Katrin não fez nenhuma objeção’; eles ‘se
divertiram’ [...]. Então tentei pressioná-lo: ‘Você tirou a camisinha, você rasgou a
camisinha?’ Ele não conseguia entender [...]. Portanto, há duas histórias, e não
posso chegar a nenhuma conclusão [...]. Julian afirma que não entende o que está
acontecendo e que eles fizeram sexo normalmente.” Quando soube que Katrin
alega ter protestado sobre a falta de camisinha, “Julian ficou furioso várias
vezes, dizendo que eles fizeram sexo normalmente [...]. ‘Ela não [reclamou] [...].
É tudo mentira! Mentira! Mentira!’” Mais tarde, Assange garantiu a Boström
que havia falado com Katrin e que achava que aquilo não passava de uma reação
exagerada, “mas eu disse a Julian que, se ele fizesse o teste, elas não o
denunciariam, mas, se não o fizesse, elas o denunciariam sim”.
Ambas as partes confirmam que Assange, num primeiro momento, se recusou
a fazer o teste de HIV. Se ele tivesse concordado, é improvável que o drama
policial que se seguiu tivesse acontecido. O irmão caçula de Katrin afirma que
Assange conversou com ela sobre isso: “Ela pediu a Julian que fizesse o teste,
mas ele alegou que não tinha tempo”. Supostamente, ele disse a Weiss que ela
teria que acreditar em sua palavra quando ele dizia que não tinha nenhuma
doença. Os advogados de Assange negam essa versão. De acordo com eles, o
australiano disse: “Posso fazer o teste, mas não quero ser chantageado [...].
Preferiria fazer voluntariamente”.
Mais tarde, Boström disse ao The Guardian: “Eu era uma espécie de
intermediário – telefonando para ela, para Julian. Isso continuou por horas a fio”.
No fim da tarde de sexta-feira, Assange finalmente aceitou fazer o teste. Mas era
tarde demais. As clínicas já estavam fechadas para o fim de semana. Braun
telefonou para Boström e disse que elas haviam estado na polícia e lá souberam
que não poderiam simplesmente pedir a Assange para fazer o teste. A polícia
insistiu que as declarações delas fossem transmitidas ao promotor de plantão, e
foi emitido um pedido de prisão preventiva de um réu estrangeiro: Julian
Assange.
Naquela noite, a história sobre as acusações contra o homem por trás do
WikiLeaks vazou para o tabloide sueco Expressen. Quem vazou? Não se sabe. A
promotora, que mais tarde se complicou ao confirmar essa informação, afirma
que foi avisada pelo jornal, que aparentemente recebera a dica de uma fonte.
Em consequência dessa sexta-feira agitada, na madrugada seguinte, sábado,
21 de agosto, começou a ser divulgado em todo o mundo que Assange era
procurado pela polícia por “estupro”. Na aldeia global eletrônica, todos podem
ter seus quinze minutos de fama. Assange estava numa situação difícil e
inesperada, e sua convicção de que não “estuprara” ninguém talvez seja
compreensível. Mas seu novo status de celebridade internacional, de “homem
mais famoso do mundo”, mostrava agora ser uma cruel faca de dois gumes. Os
jornalistas exigiam uma reação.
Às 9h15 da manhã, ele tuitou usando o nome do WikiLeaks: “Fomos avisados
de que devíamos esperar ‘truques sujos’. Vemos o primeiro agora”. E, na manhã
seguinte: “Lembrete: desde 2008 a inteligência norte-americana planeja destruir
o WikiLeaks”. Numa entrevista, o tabloide sueco Aftonbladet perguntou se ele
fizera sexo com as duas mulheres que o acusavam. Ele respondeu: “Suas
identidades são mantidas anônimas, então não tenho ideia de quem elas sejam”.
E acrescentou: “Fomos avisados de que o Pentágono, por exemplo, estava
planejando truques sujos para nos arruinar”. Ainda assim, Assange deve ter
imaginado quem eram as duas mulheres que o haviam denunciado à polícia.
Mas essa linha de ataque se mostrou imprudente. Ele deve ter percebido que,
na melhor das hipóteses, suas declarações eram altamente equivocadas. Sua
teoria conspiratória de uma “armadilha sexual” do Pentágono era arriscada e
parece também ter enfurecido as duas mulheres. A entrevista de Assange no
Aftonbladet foi publicada em 22 de agosto. Quando saiu, Maria, amiga de Weiss,
disse à polícia: “Katrin ficou chateada com a confusão e com muita raiva de
Assange”. Sonja também parecia irritada, ao dizer para o Aftonbladet: “As
acusações certamente não foram orquestradas pelo Pentágono nem por qualquer
outra pessoa. A responsabilidade pelo que aconteceu a mim e à outra garota é de
um homem que tem um comportamento deturpado em relação às mulheres e não
sabe ouvir ‘não’ como resposta”. E acrescentou: “Ele não é violento e não me
sinto ameaçada por ele”.

Passaram-se quatro meses de silêncio absoluto antes de Assange admitir em


público que não havia evidências de uma “armadilha sexual”. Seu advogado,
Mark Stephens, que havia usado a expressão, fora citado indevidamente,
explicaria Assange ao Today, programa da BBC, em 21 de dezembro; “aquelas
coisas clássicas russas, de Moscou [...], não são prováveis”. Embora ainda
alegasse que “interesses poderosos” poderiam estar por trás da calúnia,
finalmente admitiu: “Isso não significa que eles estejam lá desde o início e que
tenham inventado tudo”.
O que parecia ser o plano B veio em seguida: descrever as acusações das
mulheres, se não como declarações induzidas pela CIA, pelo menos como um
ataque de misandria. Escondido em Londres, Assange falou tristemente com
amigos sobre a abordagem severa dos burocratas suecos em relação às acusações
sexuais. “A Suécia é a Arábia Saudita do feminismo fundamentalista”, queixou-
se. “Uma das mulheres escreveu vários artigos sobre vingar-se dos homens por
infidelidade e é uma conhecida feminista radical”, disse ao The Times, de
Londres. Seus advogados acrescentaram à conspiração insinuações infundadas
sobre interesses financeiros: “Suas mensagens de texto [...] falam de vingança e
da oportunidade de ganhar muito dinheiro”.
As acusações de Assange envolvendo dinheiro se conectam de modo
significativo à declaração de uma das testemunhas oficiais de Weiss, sua amiga
Maria, que pode dar uma explicação mais inocente: “Maria lembrou que elas
falaram sobre ir até o [tabloide rival] Expressen, porque Julian falara com o
Aftonbladet. Mas isso foi algo que elas apenas mencionaram e não tinham a
intenção de fazer. Maria disse que Katrin havia sido contatada por um jornal
americano e elas brincaram dizendo que ela deveria ser bem paga”.
Aparentemente, nenhuma das mulheres vendeu a história. De qualquer modo,
essas conversas ocorreram depois que elas já tinham ido à polícia.
Assange então mudou para o que parecia ser o plano C: caracterizar as
mulheres que o acusavam como tolas que “ficaram nervosas” e foram
“enganadas”: “Supõe-se que elas foram à polícia em busca de orientação e que
não queriam prestar queixa. O que elas dizem é que descobriram que ambas
haviam sido minhas amantes ao mesmo tempo, que fizeram sexo sem proteção,
ficaram nervosas com a possibilidade de contrair alguma doença sexualmente
transmissível e foram até a polícia para fazer o teste [...]. E ir até a polícia por
causa disso foi uma coisa ridícula”, ele disse ao Today. “Uma das testemunhas,
amiga de uma das mulheres, afirma que ela declara ter sido enganada e levada a
isso pela polícia e por outras pessoas. Essas mulheres podem ser vítimas nesse
processo.”
Os promotores suecos foram posteriormente criticados pelo tratamento
desastrado, e mesmo sinistro, do caso. Um promotor de plantão ordenou a prisão
de Assange na própria noite de sexta-feira. Durante o fim de semana, a
promotora Eva Finne, de Estocolmo, retirou as acusações de estupro envolvendo
as duas mulheres e, em 24 de agosto, substituiu-as por uma acusação menos
grave e sem pena de prisão, equivalente a assédio sexual, restrita apenas ao caso
de Sonja Braun. Em 30 de agosto, ou seja, dez dias depois do início da
tempestade, Assange compareceu voluntariamente para um depoimento formal à
polícia sobre sua breve e, no fim das contas, desastrosa estada na casa de Braun.
Estavam presentes um detetive, Mats Gehlin, da Unidade de Violência
Doméstica da Delegacia de Polícia de Klara, e um advogado.
Assange: Se entre 13 e 14 de agosto, eu, como vocês dizem, deliberadamente rasguei uma camisinha
durante uma relação sexual?
Polícia: Como você reage diante disso?
Assange: Não é verdade.

Ele admitiu que houve algum comentário na ocasião, de acordo com o


relatório da polícia. “Sonja olhou para o lençol, viu que estava molhado e disse:
‘Olhe isso’, e Julian respondeu: ‘Deve ter sido você’ [...]. Julian pensou que ela
estava mostrando aquilo querendo dizer que o sexo tinha sido bom, embora
falasse como se fosse algo dele [...]. Depois, não tocaram mais no assunto.” Ele
admitiu que não houve mais relações sexuais durante a semana que se seguiu
àquele fato, “mas que houve outros atos sexuais”.
Aos interrogadores, disse que Braun o confrontou apenas no fim da semana
que ele passou em seu apartamento: “Ela me acusou de várias coisas [...], muitas
delas falsas [...]. Que eu tirei a camisinha durante o sexo. Foi a primeira vez que
ouvi isso”. Uma amiga dela, Klara (nome fictício), entrou em contato, e Assange
tentou se encontrar com ela no dia seguinte para conversar sobre “mentiras
inacreditáveis” que ele soubera que estavam sendo contadas a seu respeito. Ele
não achava que Braun estivesse planejando fazer uma acusação formal e ficou
“realmente surpreso” ao descobrir que ela fora a um hospital e que falara sobre
DNA e polícia: “Eu esperava que tudo estivesse resolvido, até que ouvi as
notícias do Expressen”.
A história poderia ter acabado aí. Mas as duas mulheres ressentidas
contrataram um importante advogado para representá-las, Claes Borgström, ex-
ombudsman pela igualdade de oportunidades e proeminente político social-
democrata. Ele reabriu os dois casos, como permitido pela lei, recorrendo à
procuradora-geral de justiça Marianne Ny, especialista em crimes sexuais. Às
agências de notícias, Borgström disse que as mulheres não sabiam que era
possível recorrer da decisão de um promotor até que ele as aconselhasse a fazer
isso. “Li os relatórios da polícia, vi minhas clientes e ouvi suas histórias”, ele
declarou. “Em minha opinião, foi estupro e tentativa de estupro ou assédio
sexual.” E acrescentou: “Temos leis mais rígidas que as de outros países no que
se refere à igualdade de gêneros [...]. Isso significa que, aqui, as mulheres não
aceitam certas coisas, do modo como o fazem em outros países”.
Não é de surpreender que Assange tenha ficado consternado. Com a
perspectiva de enfrentar mais um interrogatório sobre a infeliz aventura de uma
noite com a segunda mulher, Katrin Weiss, decidiu sair da cidade. Disse aos
amigos que temia ser preso e exibido diante de um circo da mídia. Mais tarde,
aventou a ideia de que o pedido resultante de sua extradição era consequência da
pressão velada do governo norte-americano, que queria pôr as mãos nele por
causa das façanhas do WikiLeaks. Nenhuma evidência concreta veio ainda à
tona para sustentar essa teoria, embora os Estados Unidos tenham afirmado
repetidamente que tentariam apresentar denúncias contra Assange por crimes de
informação. A acusação certamente turvou as águas do WikiLeaks, pois teorias
conspiratórias começaram a aparecer na internet.
Naquele verão, contemplando de longe a confusão na Suécia, os repórteres do
The Guardian, em Londres, também estavam abalados. Leigh e Davies
decidiram que, apesar de tudo, tinham a obrigação de garantir que o The
Guardian fosse firme – e o primeiro, aliás – na divulgação dos fatos. O que
aconteceu em Estocolmo pode ter sido complexo e confuso, mas alguns
encontros sexuais duvidosos certamente ocorreram, e não havia evidências que
confirmassem as alegações de “truques sujos” e “armadilhas sexuais”. Os
jornalistas estavam profundamente conscientes de que ignorar a recente
controvérsia que surgira em torno de seu novo colaborador somente aumentaria
o risco de que o WikiLeaks como um todo tivesse seu nome manchado.
13
Parceiros incômodos
Escritório do editor, The Guardian, Kings Place, Londres
1º DE NOVEMBRO DE 2010

“Sou uma pessoa muito combativa.”

J ASSANGE, CONFERÊNCIA TED, OXFORD, 2010


– ULIAN

OS TRÊS JORNAIS PARCEIROS decidiram que era hora de um encontro com Julian
Assange. Tudo estava ameaçando ficar bastante confuso. O controverso
fundador do WikiLeaks agora queria que os americanos fossem excluídos do já
bem atrasado acordo para publicar os telegramas diplomáticos em conjunto –
uma punição, como foi dito, pela recente publicação de seu perfil, escrito pelo
veterano correspondente do The New York Times em Londres, John F. Burns.
Assange não gostara nem um pouco da matéria.
Os britânicos estavam inquietos porque uma cópia dos telegramas
aparentemente fora parar nas mãos de Heather Brooke, jornalista americana que
vive em Londres e é ativista da liberdade de informação. E os alemães
demonstravam preocupação com o fato de que as coisas poderiam ficar difíceis
em todos os aspectos, a menos que os editores tivessem um encontro para aclarar
a situação com o que restara do WikiLeaks.
Acreditava-se que havia pelo menos três cópias dos telegramas em circulação:
uma com Brooke, no Reino Unido; uma com Daniel Ellsberg – famoso pelos
Papéis do Pentágono –, nos Estados Unidos; e outra com Smári McCarthy, ex-
programador islandês do WikiLeaks, que, segundo Assange, repassara uma cópia
a Brooke. David Leigh comunicara ao The New York Times que estava disposto a
repassar-lhes uma cópia, se Assange não cooperasse. Mas nem uma fração do
imenso cache secreto de despachos do Deparcomo originalmente planejado. Será
que o audacioso projeto terminaria mal?
O encontro foi marcado para o dia 1º de novembro, nos escritórios do The
Guardian, em Londres, próximo à Estação de King’s Cross, com uma reunião
inicial para examinar o material em detalhes e chegar a um acordo sobre a
possível ordem de publicação, dia a dia. Assange deveria chegar por volta de
seis da tarde – mas uma série de mensagens de texto enviadas ao editor
assistente Ian Katz indicava que ele se atrasaria. Por volta de sete da noite, o
telefone de Alan Rusbridger tocou. Era Mark Stephens, advogado britânico
especialista em causas de difamação, que ele conhecia havia anos. O advogado
tinha algo para lhe dizer e perguntou se poderia passar no escritório. Vinte
minutos depois do telefonema, Stephens irrompeu pela porta da sala do editor,
acompanhado de Assange, do sisudo colaborador islandês Kristinn Hrafnsson e
de uma jovem, mais tarde apresentada como advogada do escritório de Stephens,
Jennifer Robinson. Parecia – e era – uma cilada.
Mal se sentou, Assange começou a censurar duramente o The Guardian. O
The New York Times tinha os telegramas? Como eles haviam conseguido? Quem
lhes dera? O clima era de desconfiança. Assange falava alto e com raiva. Sempre
que Rusbridger tentava responder, ele lançava outra pergunta. Quando
finalmente parou para tomar fôlego, Rusbridger observou que o pessoal da Der
Spiegel e outros executivos do The Guardian estavam esperando. “Por que não
os chamamos para continuar a discussão?” Mas a fúria de Assange era
implacável: a questão tinha de ser resolvida primeiro. Ele precisava saber a
verdade sobre o The New York Times. “Sentimos que uma grande organização
está tentando encontrar maneiras de driblar nosso acordo de cavalheiros. Não
estamos gostando disso.”
Rusbridger explicou que as coisas haviam mudado. O próprio WikiLeaks dera
origem a um vazamento. Os telegramas haviam caído nas mãos de Heather
Brooke. As coisas em breve começariam a fugir do controle, a menos que eles
decidissem agir rapidamente. Assange não parecia bem – estava pálido, suava e
tossia muito. Rusbridger continuou afirmando que não repassara os telegramas a
ninguém – o que era verdade – e, finalmente, convenceu Assange de que era
melhor tratar com o grupo todo.
Mas David Leigh imediatamente se opôs à presença de Stephens e Robinson.
“É uma reunião editorial”, protestou. Se os advogados de Assange ficassem ali,
o The Guardian também precisaria dos seus. Rusbridger saiu para tentar arrumar
um advogado. O chefe do departamento jurídico do The Guardian estava
voltando de bicicleta para casa e não ouviu o BlackBerry tocar, então Geraldine
Proudler, da firma de advogados Olswang, que já lutara em muitas batalhas a
favor do jornal no passado, foi chamada no meio de sua aula de ginástica e,
pouco depois, já entrava num táxi.
A discussão – nesse momento, sem os advogados – começou novamente com
a equipe da Der Spiegel: o editor-chefe Georg Mascolo, Holger Stark e Marcel
Rosenbach. Assange, porém, parecia obcecado pelo The New York Times e
começou a fazer repetidas acusações contra o jornal: “Eles publicaram uma
história de primeira página – de primeira página! – que era apenas um ataque
sujo contra mim e outras partes da organização, baseado em mentiras. Não eram
sequer críticas genuínas, reunidas de maneira isenta. O objetivo é fazê-los
parecer imparciais. Não é suficiente simplesmente ser imparcial. Não é
suficiente simplesmente dizer: ‘A história é esta’ e apresentá-la – eles têm que
ser ativamente hostis contra nós e demonstrar isso na primeira página, senão
seriam acusados de algum tipo de simpatia”.
O perfil escrito por Burns insistira, entre outras coisas, na investigação
policial sobre as acusações sexuais na Suécia. Assange fora citado dizendo:
“Eles me chamaram de James Bond do jornalismo. Eu arrumei muitas fãs, e
algumas delas acabaram me criando problemas”.
Burns escrevera que a equipe do WikiLeaks se voltou contra Assange quando
surgiu o escândalo. Segundo o jornalista, eles reclamavam que “a crescente
celebridade [do fundador] associara-se a um estilo cada vez mais ditatorial,
excêntrico e caprichoso”. Para um dos desertores, o islandês Herbert Snorrason,
de 25 anos, Assange enviara uma mensagem: “Se você tem problemas comigo,
se manda!” E anunciou: “Eu sou o coração e a alma desta organização: o
fundador, o filósofo, o porta-voz, o codificador original, o organizador, o
financiador e todo o resto”. Ao que Snorrason respondeu, determinado: “Ele não
está em seu juízo perfeito”.
O texto de Burns, na verdade, omitia parte da história: o principal colaborador
de Assange, Daniel Domscheit-Berg, também estava denunciando o “culto ao
estrelato” do fundador. Mais tarde, o alemão escreveria: “Não é à toa que muitos
que saíram se referem a ele como ‘ditador’. Ele se acha o governante autocrático
do projeto e acredita que não precisa prestar contas a ninguém. As críticas
justificadas – mesmo as internas –, tanto sobre suas relações com as mulheres
quanto sobre a falta de transparência de suas ações, são dispensadas com a frase:
‘Estou ocupado, existem duas guerras que preciso encerrar’, ou atribuídas às
campanhas de difamação dos serviços secretos”.
Agora, em volta da mesa do editor do The Guardian, os outros jornalistas se
sentavam em silêncio enquanto Assange atacava Burns e o The New York Times,
no estranho tom de barítono, antiquado e declamatório, que ele usava quando
estava zangado. E voltou a perguntar: “Eles têm os telegramas? Como?”
O problema – interrompeu Rusbridger – era que o jornal tinha uma segunda
fonte para os telegramas. Ele estava negociando com Heather Brooke para que
ela se juntasse à equipe do The Guardian. Caso contrário, ela estaria livre para
oferecê-los a qualquer outro jornal – o que significaria que o The Guardian
perderia todo o acesso, o controle e a exclusividade. Assange explodiu
novamente. Aquela não era uma segunda fonte. Brooke roubara os telegramas.
Isso fora feito “através de roubo, fraude [...] certamente meios pouco éticos”. Ele
sabia o suficiente sobre o modo como ela operara para “poder destruí-la”. O
clímax foi quando Assange – o informante clandestino de segredos ilegais – os
ameaçou, dizendo que seus advogados processariam o jornal por perdas
“financeiras” do WikiLeaks.
“Estou ansioso por um processo desses”, disse o editor do The Guardian com
um sorriso. Nada naquela diatribe fazia sentido para ele. Brooke era uma
jornalista profissional e não havia roubado nada. E, mais especificamente, ou o
The Guardian tinha uma segunda fonte – e não precisava mais da cópia de
Assange – ou tudo se originara, como o australiano alegava, de uma única fonte:
o WikiLeaks – e, nesse caso, a organização quebrara o acordo de fazer uma
cópia apenas para o The Guardian, o que não deixava Assange em posição de
criticar os outros.
Katz perguntou que outras cópias existiam da base de dados. Por exemplo, era
verdade que Ellsberg tinha uma? Ao que Assange retorquiu: “A cópia de Daniel
Ellsberg é um backup criptografado da base de dados, que ele ia oferecer ao New
York Times numa encenação política”.
Assange voltou ao seu tema favorito de como um informante cavalheiro
deveria se comportar: “Pessoas que não estão se comportando como cavalheiros
deveriam começar. Supondo que o The Guardian tenha repassado os telegramas
ao New York Times, por que deveríamos colaborar com o Guardian?”
E começou a sugerir acordos com outros jornais americanos. O The
Washington Post queria o material. Questionado, ele falou um pouco mais,
admitindo que já discutira uma possível cooperação tanto com o Post quanto
com o grupo jornalístico americano McClatchy. Depois recomeçou com o NYT:
“A estratégia que o New York Times desenvolveu não é muito cavalheiresca [...].
Eles escreveram um texto horrível sobre Bradley Manning e agora este texto
muito, muito ruim de John F. Burns sobre mim, na primeira página do jornal. Ele
disse que nunca foi tão duramente criticado em toda sua carreira jornalística
como no caso desse texto, e há uma razão para isso. Estamos dispostos a nos
empenhar na Realpolitik se necessário, mas essa é uma organização cujo modus
operandi é se proteger, nos destruindo. Aconselho-o a ler aquele texto. É óbvio
para qualquer um que o leia que ele foi escrito com a intenção de difamar,
usando fontes anônimas para citar pessoas ao acaso, que nunca tiveram nada a
ver com a organização, salvo em salas de bate-papo, dizendo que eu sou louco
etc. etc. Isso é mau jornalismo. Não estou pedindo muito. Só estamos pedindo
que o Times siga os próprios padrões. Os padrões que ele segue para outras
pessoas – porque são válidos –, e que não desvie de seu caminho para produzir
um ataque sujo e colocá-lo na primeira página”.
Katz perguntou-lhe diretamente até onde haviam ido as negociações com o
The Washington Post, e Assange respondeu: “Não fiz acordo, embora ache que
provavelmente nos entenderemos com o Post, a menos que haja uma
contraproposta muito boa, porque o Times violou nosso relacionamento”.
Rusbridger sugeriu um breve intervalo. Quando eles voltaram a se reunir,
ainda sem os advogados (Stephens e Robinson estavam sentados do lado de fora
da sala, e Proudler, no corredor), a temperatura baixara um pouco. Rusbridger
sugeriu que eles analisassem alguns dos problemas referentes à ordenação das
histórias. Ian Katz mostrou a Assange o trabalho feito anteriormente naquele dia
sobre a ordem em que os itens deveriam ser publicados. O australiano o ouviu
calmamente. A agressividade e o dedo em riste deram lugar a um novo empenho
– como se o cérebro dele tivesse acionado as áreas racionais e altamente
estratégicas que haviam ficado de fora da discussão anterior.
Contudo, ele ainda insistia em adiar a publicação. Os jornalistas perguntaram
como o WikiLeaks divulgaria os telegramas, ao que ele respondeu: “O ideal é
esperar até o ano que vem. Qualquer coisa antes de um mês será semiletal,
mesmo em condições de emergência. Nós despertamos um gigante ao atingirmos
uma de suas pernas [o Departamento de Defesa norte-americano], e a divulgação
desse material fará com que a outra perna [o Departamento de Estado] se
levante. Estamos reunindo toda a artilharia que podemos, mas não podemos
reunir mais”. E enfatizou que queria que os telegramas fossem divulgados de
modo organizado e não como um “grande despejo”. Idealmente, uma
“divulgação gradual, durante dois meses”. Mas disse que estava disposto a fazer
o lançamento dentro de trinta dias: “Em um mês, podemos avançar até uma
posição em que possamos sobreviver”.
Assange já havia falado, em tom de brincadeira, da necessidade de ter um
refúgio seguro em Cuba antes da publicação dos telegramas. Agora dizia que a
ordem de publicação tinha de ser organizada de modo que não parecesse
antiamericano (ele não queria que o WikiLeaks parecesse obcecado pelos
Estados Unidos). As histórias nos telegramas tinham um significado muito maior
– por isso, era importante estabelecer uma ordem para que as pessoas
entendessem que não se tratava apenas dos Estados Unidos. “Há revelações
sobre segurança e abusos de outros países, dos países árabes maus ou da
Rússia”, ele afirmou. “Isso dará o sabor inicial do material. Não devemos expor,
por exemplo, Israel nesta fase inicial, nas primeiras semanas. É melhor deixar o
contexto geral ser apresentado primeiro. A exposição desses outros países maus
vai definir o tom da opinião pública norte-americana. Nas primeiras semanas,
daremos o contexto que matizará o restante”.
Então Assange fez outro anúncio surpreendente: queria incluir outros jornais
de “línguas românicas”, para ampliar o impacto geopolítico. E mencionou o El
País e o Le Monde. As pessoas na sala trocaram olhares. Isso duplicaria as
complexidades do arranjo, que já era bastante difícil de coordenar. Como eles
poderiam fazer um acordo com um jornal norte-americano, num fuso horário
diferente, um jornal vespertino francês, um jornal matutino espanhol e um
semanário alemão?
Mas agora havia pelo menos uma negociação sobre os meios para avançar.
Eram aproximadamente dez da noite. As discussões já se estendiam
implacavelmente por quase três horas. Rusbridger arrumou algumas garrafas de
Chablis. Os ânimos se acalmaram, e todos concordaram prontamente que tudo
poderia ser arranjado durante o jantar, no restaurante Rotunda, no andar térreo do
Kings Place. Os jornalistas saíram e encontraram Mark Stephens, Geraldine
Proudler e Jennifer Robinson ainda sentados pacientemente do lado de fora do
escritório do editor.
O jantar foi mais relaxado, embora Assange ainda estivesse obcecado com o
The New York Times e seu comportamento. Quando lhe perguntaram em que
condições ele trabalharia com os americanos, disse que consideraria a questão se
o jornal concordasse em não publicar mais material negativo sobre ele e lhe
oferecesse direito de resposta ao texto de Burns, com o mesmo destaque. “Boas
relações são oferecidas a boas pessoas, não às más. A menos que vejamos uma
contraproposta muito séria [do The New York Times], eles perderam a
exclusividade [...]. O NYT é uma causa perdida ou um veículo de comunicação
confiável? Será que as coisas chegaram a esse ponto?”
Os outros decidiram ignorar essa questão naquele momento. Conversaram
mais detalhadamente sobre como poderiam elaborar um cronograma de
publicação com os temas combinados para cada dia. Assange queria que o
período de exclusividade se estendesse além do Ano Novo, ou do “calendário
cristão”, como ele costumava dizer. E comentou que o WikiLeaks já editara os
telegramas, “e, se houver um ataque crítico contra nós, publicaremos todos”.
À meia-noite, o restaurante já estava vazio, quase fechando. Ficou decidido
que Rusbridger telefonaria para Bill Keller, em Nova York, enquanto os outros
jornalistas voltariam – levando o vinho com eles – para o The Guardian, em
outra sala de reuniões. Rusbridger conhecia Keller havia cerca de dez anos, o
que o ajudou a resumir o que seria uma conversa ligeiramente surreal.
“Vou lhe dizer o que Assange quer”, disse Rusbridger. “Sei o que você vai
dizer, mas tenho que voltar e dizer a ele que falei com você.”
“Continue”, disse Keller.
“OK, ele quer uma réplica ao texto de Burns na primeira página e também
quer garantias de que vocês não publicarão mais nenhum ataque sujo contra ele.”
Keller bufou. “Ele pode escrever uma carta”, falou sumariamente.
“Estritamente falando, esse não é meu departamento, mas eu certamente posso
usar minha influência para recomendar sua publicação. E... Qual era a segunda
questão? Bem, você pode garantir a ele que não estamos pensando em nenhum
ataque sujo.”
Rusbridger voltou para a sala e repassou a mensagem de Keller. Como temia,
Assange reagiu de modo furioso, dizendo que aquilo não era o bastante e que
naqueles termos não havia mais acerto. E anunciou que, dali em diante, tanto o
The New York Times quanto o The Guardian estavam fora do acordo.
Então foi a vez de Georg Mascolo falar, deliberada e firmemente. Os três
veículos estavam associados. Se Assange rompesse com os outros dois, a Der
Spiegel também estaria fora.
Era por volta de 1h30 da manhã. A discussão não avançava, então Rusbridger
se virou para Assange e resumiu a situação: “Vejo que você tem três opções.
Primeira: não chegamos a um acordo; segunda: você substitui o New York Times
pelo Washington Post; terceira: você faz um acordo com nós três. A primeira e a
segunda não vão funcionar, porque você perdeu o controle do material e isso
acabará se transformando num caos. Assim, não vejo outra opção para você além
da terceira. Você vai ter que continuar conosco. E isso é bom. Temos sido bons
parceiros. Tratamos o material com responsabilidade. Dedicamos imensos
recursos para isso. E somos bons trabalhando juntos; gostamos uns dos outros,
nos comunicamos bem com sua equipe. E tudo tem dado certo. Por que, diabos,
jogar tudo isso fora?”
Se Assange se convenceu, não iria demonstrar. Pelo menos não aquela noite.
Rusbridger sabia que, fazendo as coisas do modo de Assange, ainda teria alguns
rounds pela frente antes do amanhecer. Quando o capo di tutti capi* do
WikiLeaks levantou para ir embora, ainda tossindo, apertou as mãos de David
Leigh, com quem havia trabalhado de maneira tão próxima, fitou-o
significativamente e disse em voz baixa e marcante: “Tome cuidado”.
No dia seguinte, Rusbridger enviou a Mark Stephens dez pontos para ser
transmitidos a Assange:
• Publicar em 29 de novembro de forma coordenada.
• Publicar durante duas semanas ou mais, até pouco antes do Natal.
• Exclusividade para G, NYT, DS (mais El País e ? Le Monde).
• Os temas deverão ser coordenados entre os parceiros, e inicialmente certos assuntos ficam de
fora. Não há proibição para ninguém em relação aos temas cobertos durante a série toda (depois de
jan.). WL publicará os documentos mencionados simultaneamente.
• Depois do Natal, a exclusividade continua por mais uma semana, iniciando em 3/4 de janeiro.
• A partir daí, WL começará a compartilhar as histórias regionalmente, entre quarenta jornais sérios
em todo o mundo, que terão acesso a “porções” de material relacionado a sua própria região.
• G contratará HB [Heather Brooke] com exclusividade.
• Em caso de ataque “crítico” ao WL, eles divulgarão tudo imediatamente.
• Se o material for vazado/compartilhado com outra organização noticiosa, em quebra a este
acordo, não haverá mais acerto.
• Em caso de acordo, a equipe começará a trabalhar numa série de histórias para a primeira fase.

Em 24 horas, Stephens telefonou para dizer que Assange aprovara o acordo.


Independentemente de satisfazer ou não os critérios do australiano para um
“acordo de cavalheiros”, pelo menos era um acordo.

Cinco dos jornais mais respeitados do mundo estavam agora comprometidos a


selecionar, editar e publicar, numa escala sem precedentes, o vazamento de
despachos diplomáticos secretos de uma superpotência. Era um projeto
extremamente audacioso, que poderia redefinir o jornalismo na era da internet.
Mas, enquanto os jornais trabalhavam para agir de maneira responsável, Assange
continuava a fazer as coisas a seu modo.
Disfarçado de senhora, como descrito no capítulo 1, ele transferiu as
operações para seu refúgio em Ellingham Hall, na zona rural de Norfolk. Lá, a
segurança dos telegramas, que ele já mencionara que valiam pelo menos cinco
milhões de dólares para qualquer agência estrangeira de inteligência, não parecia
nada sólida. Membros da equipe dizem que Assange entregava lotes deles para
jornalistas estrangeiros, incluindo alguém que se apresentara simplesmente como
“Adam”. “Parecia um senhor inofensivo”, comentou um dos colaboradores,
“salvo pelo hábito de ficar muito perto de nós e bisbilhotar o que estava escrito
na tela do computador.” Ele foi apresentado como pai do colega sueco de
Assange, o jornalista Johannes Wahlström, e levou cópias dos telegramas da
Rússia e dos Estados pós-soviéticos. De acordo com uma pessoa do grupo,
também pediu cópias dos telegramas sobre “os judeus”.
Esse homem, associado ao WikiLeaks, era mais conhecido como Israel
Shamir. Ele alega ser um judeu russo renegado, nascido em Novosibirsk, mas
atualmente pertencente à Igreja Ortodoxa grega. Famoso por negar o Holocausto
e publicar uma série de artigos antissemitas, em 2005 criou controvérsia no
Reino Unido, no lançamento de um livro parlamentar organizado por Lord
Ahmed, ao afirmar: “Os judeus [...] detêm, controlam e editam boa parte dos
veículos de comunicação de massa”.
Documentos internos do WikiLeaks, vistos pelo The Guardian, mostram que
Shamir não apenas recebeu os telegramas como também cobrou dois mil euros
do WikiLeaks, a ser depositados numa conta-corrente em Tallinn, por “serviços
prestados – jornalismo”. Que serviços? Ele afirma: “O que fiz para o WikiLeaks
foi ler e analisar os telegramas de Moscou”.
A assinatura de Shamir aparece em dois artigos anteriores que ridicularizam as
suecas que acusavam Assange. Em 27 de agosto, na Counterpunch, uma
pequena publicação radical norte-americana, Shamir afirma que Assange fora
incriminado por “espiãs de Langley”* e “feministas loucas” e que fora vítima de
uma “armadilha sexual”. Em 14 de setembro, ele atacou as “feministas
castradoras e os serviços secretos”, escrevendo que uma das mulheres
envolvidas, a quem deliberadamente mencionou, já discutira a oposição cubana a
Castro numa publicação acadêmica sueca “associada a” alguém com “ligações
com a CIA”.
Em seguida, Shamir apareceu em Moscou. De acordo com um repórter do
jornal russo Kommersant, ele se oferecia para vender artigos baseados nos
telegramas por dez mil dólares. E já repassara alguns para a publicação Russian
Reporter, que recebe apoio estatal. Depois viajou até Belarus, governado pelo
ditador ao estilo soviético Alexander Lukashenko, onde se encontrou com
autoridades do regime. A agência Interfax noticiou que Shamir era o
“representante russo” do WikiLeaks e “confirmara a existência do dossiê sobre
Belarus”. Segundo Shamir, o WikiLeaks tinha milhares de documentos secretos
“interessantes”. Em seguida, ele escreveu um artigo de propaganda servil pró-
Lukashenko na Counterpunch, afirmando que “as pessoas estão felizes,
empregadas e satisfeitas com o governo”.
Posteriormente, Assange afirmaria que teve apenas uma “breve interação”
com Shamir: “O WikiLeaks trabalha com centenas de jornalistas de diversas
regiões do mundo. Todos têm que assinar acordos de não divulgação e, em geral,
têm acesso limitado ao material relacionado a sua região”.
Pode-se apenas especular a que interesses Shamir estava servindo com suas
diversas publicações agressivas. Talvez seus interesses pessoais tenham sempre
estado na dianteira. Mas, enquanto os jornais elaboravam um acordo para tratar
dos telegramas com responsabilidade, as bufonarias secretas de Shamir
certamente fizeram o WikiLeaks parecer um tanto menos responsável.
Notas

*“Chefão dos chefões”. (N. da T.)


* Langley é a sede da CIA, na Virgínia. (N. da T.)
14
Antes do dilúvio
Jornal El País, Calle de Miguel Yuste, Madri
14 DE NOVEMBRO DE 2010

“Era um caça-níqueis. Bastava segurar


o chapéu embaixo dele por um tempo.”

– ALAN RUSBRIDGER, THE GUARDIAN

VISTAS NA TELA, as silhuetas despenteadas pareciam reféns mantidos no subsolo


do esconderijo de um grupo terrorista. Uma das figuras subterrâneas, com a
barba por fazer, aproximou-se da câmera e levantou uma folha de papel. Nela,
estava escrito um misterioso número de seis dígitos. Seria uma conta bancária
secreta na Suíça? Um número de telefone? Alguma coisa relacionada a O código
Da Vinci?
As figuras indistintas não tinham, na verdade, sido capturadas por nenhuma
facção radical, mas eram um grupo de jornalistas do El País, da Espanha. E a
anotação também não era um pedido de resgate. Era o número de referência de
um dos mais de 250 mil telegramas. Desde que fora convidado a se juntar ao
consórcio Reino Unido-EUA-Alemanha – ou “aliança tripartite”, como Bill
Keller, do The New York Times, apelidara –, o El País não perdera tempo e
montara sua própria sala subterrânea de pesquisa.
O jornal – assim como o Le Monde, da França – juntara-se tardiamente ao
grupo do WikiLeaks e tinha apenas duas semanas para examinar os telegramas,
antes do Dia D da publicação. O The Guardian ficara na confortável posição de
ter o mesmo material durante vários meses. O editor-chefe do El País, Javier
Moreno, e o executivo Vicente Jiménez convocaram com urgência a Madri os
correspondentes estrangeiros. Sentados no bunker do jornal, próximos a uma
infinidade de copos de café descartáveis, eles avançavam pela base de dados.
Os jornalistas podem ter ficado animados ao ler que, de acordo com um
telegrama secreto das autoridades norte-americanas em Madri, com data de 12
de maio de 2008, o El País era o “jornal oficial” da Espanha. Aparentemente,
também era, “em geral, pró-governo”. Mas eles também encontraram um
material sensacional – a embaixada norte-americana em Madri tentara
influenciar juízes, o governo e promotores em casos que envolviam cidadãos
norte-americanos. Um deles envolvia um preso na baía de Guantánamo; outro
cobria voos de rendição secretos na Espanha; e outro era sobre o assassinato de
um jornalista espanhol num ataque norte-americano em Bagdá. Histórias da
América Latina – México, Argentina, Colômbia e Venezuela – também vieram à
tona.
Desde o início, os jornais concordaram em trabalhar de modo colaborativo.
Eles compartilhavam descobertas dos telegramas e até faziam circular listas de
possíveis histórias. Mais tarde, Assange afirmou, num documentário da TV
sueca, que era ele quem pessoalmente mexia os pauzinhos dos veículos de
comunicação conservadores. Ele disse: “A novidade é que forçamos a
cooperação entre organizações competitivas, que, de outro modo, seriam rivais,
para fazer o melhor pela história, em oposição a simplesmente fazer o melhor
pelas próprias organizações”.
Na verdade, essa era uma técnica de cooperação que o The Guardian, com
outros veículos de comunicação internacionais, há muito vinha construindo. No
ano anterior, por exemplo, o jornal afugentara com sucesso os advogados da
empresa Trafigura, que havia despejado lixo tóxico, trabalhando em conjunto
com o Newsnight, da emissora de TV BBC, o jornal holandês Volkskrant e a
emissora de TV norueguesa NRK. A gigante bélica britânica BAE também
chegara a um acordo de quatrocentos milhões de dólares com o Departamento de
Justiça norte-americano em relação às acusações de corrupção, após uma
campanha em que o The Guardian cooperou com outros veículos impressos e
televisivos, em países como Suécia, Romênia e Tanzânia.
O pioneiro mais ilustre dessa forma de investigação globalizada foi,
provavelmente, Charles Lewis, fundador do Center for Public Integrity (Centro
para a Integridade Pública), em Washington, D.C., que, uma década antes,
organizara a divulgação massiva da conivência da empresa British American
Tobacco no contrabando de cigarros, com publicação simultânea por veículos de
comunicação na Colômbia, em Londres e nos Estados Unidos.
Assim, o atual consórcio entre os cinco veículos de comunicação não era uma
invenção. Foi – ou seria, se funcionasse – a culminação de uma tendência cada
vez maior nos veículos de comunicação. E o que tornou essa tendência possível
também a fez necessária: o crescimento tecnológico das comunicações globais
massivas e quase instantâneas. Se os grupos midiáticos não aprendessem a
trabalhar nas histórias através das fronteiras, as histórias os deixariam para trás.
Antes do Dia D dos telegramas, Ian Katz, editor assistente e coordenador
dessas complexas relações, manteve conversas regulares pelo Skype com as
contrapartes multilíngues. “Eram conversas hilárias”, recorda Katz. A razão pela
qual os espanhóis estavam mostrando pela webcam o número de um telegrama
do Departamento de Estado norte-americano era a segurança – eles haviam
concordado que nenhuma menção confidencial seria feita por telefone ou e-mail.
Em Berlim, Marcel Rosenbach, da Der Spiegel, foi o primeiro a descobrir um
telegrama com o título enganosamente insípido: “Diretiva da Coleção Nacional
de HUMINT* sobre as Nações Unidas”. Na verdade, ele revelava que o
Departamento de Estado norte-americano (em nome da CIA) ordenara que seus
diplomatas espionassem autoridades de alto escalão da ONU e coletassem
“informações biométricas detalhadas”. Eles também deveriam pesquisar
“números de cartão de crédito; número da conta de passageiros que viajam de
avião com frequência; horários de trabalho e outras informações biográficas
relevantes”. O telegrama, de número 219058, era dinamite geopolítica. Ninguém
mais o vira. “Marcel escreveu o número. Eu só podia ver metade dele. E tinha de
lhe dizer: ‘Um pouco mais para a esquerda, um pouco mais para a esquerda’”,
recorda Katz.
Para Julian Assange – tal como Jason Bourne, o agente secreto de Hollywood
que foge constantemente da CIA –, elaboradas medidas de segurança podem ser
quase instintivas. Mas, para jornalistas acostumados a revelar segredos no bar
depois de uma ou duas doses, elas eram uma nova forma de arte, difícil de
dominar. Katz e Rusbridger se inspiraram em A escuta, série cult norte-
americana filmada em meio aos arranha-céus e traficantes de drogas de
Baltimore. A série era popular entre alguns membros da equipe do The
Guardian; nela, os traficantes sempre usavam celulares pré-pagos para enganar
os policiais.
Por isso, Katz pediu que seu assistente comprasse vinte celulares pré-pagos
para os principais membros da equipe dos telegramas. Agora o The Guardian
tinha sua própria rede à prova de vazamentos. Infelizmente, ninguém conseguia
lembrar o número do celular. Em determinado momento, Alan Rusbridger
enviou uma mensagem de texto de seu celular pré-pago para o celular
convencional de Katz – um erro básico que, em A escuta, certamente teria feito
os policiais o atacarem. O editor do The Guardian comprou outro celular pré-
pago durante uma viagem de cinco dias para a Austrália. Quando retornou a
Londres, Katz telefonou para o número. A conversa foi cortada depois de apenas
três minutos, quando acabaram os créditos de Katz. “Nós éramos completamente
inúteis com essas coisas de espionagem”, confessa Katz.
Como o El País, o The Guardian alocara uma equipe de especialistas e
correspondentes estrangeiros para uma análise final completa dos telegramas.
Alguns – como o correspondente em Moscou do The Guardian, Luke Harding –
foram trazidos para Londres, por razões de segurança. A equipe estrangeira
acessava os telegramas através de uma VPN (virtual private network, rede
privada virtual). Ian Traynor, em Bruxelas, examinou os telegramas que faziam
referência à União Europeia, à Otan e aos Bálcãs; Declan Walsh, correspondente
do The Guardian em Islamabad, analisou o Afeganistão e o Paquistão; David
Smith, a África, e Jason Burke, a Índia.
Outros repórteres incluíam Ewen MacAskill, correspondente em Washington,
e Rory Carroll, correspondente latino-americano em Caracas. (A conexão VPN
de Carroll rapidamente falhou, tornando impossível ver os telegramas sobre
Chávez.) Simon Tisdall, Ian Black e Jonathan Steele, todos muito experientes,
examinaram os telegramas referentes ao Oriente Médio e ao Afeganistão. A
extensão total de expertise jornalística que os cinco principais jornais
internacionais estavam depositando na base de dados talvez demonstrasse o
valor dos grandes veículos de comunicação no mundo. Eles poderiam ser os
verdadeiros profissionais da informação, destacando-se num universo de
efervescência da internet que de outro modo não teria valor.
Sentados no bunker do quarto andar, Harding e um colega, o repórter Robert
Booth, estavam entre os que passariam longas horas olhando, cada vez mais
zonzos, para os despachos. Em pouco tempo, tornou-se claro que havia uma arte
para pesquisar a base de dados. Se o termo de busca fosse muito generalizado –
por exemplo, “Grã-Bretanha” ou “corrupção” –, o resultado seria imenso. O
mecanismo de busca avisaria: “Mais de mil itens retornaram”. O truque era usar
um nome relativamente incomum. Melhor ainda era experimentar com algo
estranho e até um pouco maluco. Digitar “Batman”, por exemplo, produzia
apenas dois resultados. Mas um deles era um telegrama delicioso em que um
diplomata norte-americano comentava que “Dmitri Medvedev continua a ser o
Robin para o Batman de Putin”. A comparação entre o presidente da Rússia e
seu primeiro-ministro correria o mundo e levaria um irritado Vladimir Putin a
acusar os Estados Unidos de “arrogância” e comportamento antiético.
Do mesmo modo, digitar o termo de busca “vodca” produzia resultados
inesperados: reuniões alcoolizadas entre embaixadores norte-americanos e
déspotas da Ásia central; um memorável casamento no Daguestão, em que o
presidente da Chechênia – o sanguinário Ramzan Kadyrov – dançou com um
revólver folheado a ouro enfiado na calça; e a festa sexual de um saudita que
dizia muito sobre a hipocrisia da elite nobre do país árabe.
Em contraste com o jargão descontínuo dos diários de guerra, os telegramas
eram escritos numa prosa que se esperaria ler em Harvard ou Yale. Harold
Frayman havia improvisado o mecanismo de busca original usado para filtrar os
diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, que eram bem menores. Agora ele
aprimorara a técnica. “Sou jornalista. Eu sabia o que estávamos procurando”,
explica. “Os diplomatas eram muito mais eloquentes que os soldados rasos em
campo. Eles conheciam palavras maiores.”
O conjunto de dados continha mais de duzentos milhões dessas palavras.
Originalmente, Frayman usou a linguagem de programação Perl para criar as
bases de dados do Afeganistão e do Iraque. Ele a descreve como um “conjunto
muito bem desenvolvido de bits de software [...]. Ela faz pequenos serviços de
forma muito organizada”. Para os telegramas, ele acrescentou melhorias. Os
jornalistas podiam pesquisar os telegramas enviados por embaixadas específicas.
No caso do Irã, que desde os anos 70 não tinha uma missão norte-americana, a
maior parte da conversa diplomática relevante vinha da embaixada dos Estados
Unidos em Ancara. Assim, era útil poder pesquisar rapidamente as informações
da embaixada na capital turca.
Dos arquivos, 40% eram classificados como confidenciais, e 6%, como
secretos. Frayman criou um sistema de busca por cinco categorias específicas:
secretos/NOFORN (isto é, arquivos que não poderiam ser lidos por não
americanos); secretos; confidenciais/NOFORN; confidenciais; e não
classificados. Não havia nenhum arquivo ultrassecreto – tais materiais super-
reservados foram omitidos da base de dados original, a SIPRNet, ao lado de um
grande número de despachos que o Departamento de Estado, em Washington,
considerava inadequados para ser compartilhados com os colegas das Forças
Armadas ou de qualquer outro lugar. Havia idiossincrasias nos dados: por
exemplo, parecia haver muito pouco material de Israel, sugerindo que a
embaixada norte-americana não desempenhava um papel importante nas
interações recíprocas entre Tel Aviv e Washington, permanecendo afastada na
maioria das vezes.
“Secreto” foi o termo pelo qual os jornalistas começaram a investigar.
Algumas das buscas produziram furos memoráveis. Muitas, porém, não
produziram nada. A categoria “secreto” – logo se percebeu – tendia a cobrir um
número limitado de temas: proliferação de material nuclear e instalações
nucleares; exportações militares para o Irã, a Síria e outros países considerados
“desagradáveis”; negociações envolvendo militares norte-americanos de alto
escalão. De longe, o maior número de histórias vinha de documentos com
classificação inferior.
Como os outros repórteres, Harding e Booth logo se viram desenvolvendo
técnicas peculiares de busca. Eles descobriram que, muitas vezes, era útil
começar de baixo, trabalhando de trás para frente, desde os telegramas mais
recentes de um país, escritos até 28 de fevereiro de 2010. Porém, essas buscas se
tornaram um exercício de resistência; depois de ler um lote de mais de quarenta
telegramas, eles precisavam parar. Ao lado do bunker secreto, havia uma
máquina de café gratuita e uma sala de relaxamento. “Ali, depois de uma longa
sessão de ataque aos telegramas, você podia ao menos colocar o aviso de
ocupado, pegar uma almofada, deitar no chão e roncar”, diz Harding. Mas,
mesmo com as despesas de massagem pagas pela empresa, nenhum dos
incansáveis leitores de telegramas tinha tempo a perder.
Para o editor-chefe, Alan Rusbridger, no início as abundantes revelações que
brotavam dos telegramas norte-americanos eram como se um jogador tirasse
sempre a sorte grande no cassino. Ele se lembra de como Leigh, surpreso e
risonho, após ler o material durante algumas semanas no verão, voltara com
histórias suficientes para dez matérias de destaque, artigos que poderiam estar na
primeira página do jornal. “Era um caça-níqueis. Bastava segurar o chapéu
embaixo dele por um tempo”, observa Rusbridger.
A analogia é boa. Mas talvez faça a tarefa parecer simples demais. Para
examinar os dados, equipes de funcionários do The Guardian tiveram de ser
recrutadas. Os repórteres, sobretudo os correspondentes estrangeiros, trouxeram
muitas contribuições: contextualização, conhecimento especializado e certo grau
de espírito empreendedor para adivinhar o que estavam procurando. Todas essas
habilidades foram necessárias para transformar os telegramas em histórias
jornalísticas significativas.
Leigh enviou um memorando a Rusbridger:
Chegamos agora à etapa de seleção das histórias no projeto 3. Os exercícios anteriores (Iraque e
Afeganistão) funcionaram bem politicamente, eu acho, porque Nick e eu conseguimos concentrar a
cobertura [e a cobertura global resultante] nos elementos que o público estaria mais interessado em
saber.
Com o Afeganistão, eram as baixas civis. Com o Iraque, era a tortura. Dessa vez, acho que também é
importante tentarmos nos concentrar em histórias que sejam do interesse do público. Foi nisso que
me baseei quando tentei, inicialmente, reunir as primeiras doze histórias.
São histórias importantes que revelam corrupção, crime (Rússia, Berlusconi etc.) e comportamento
impróprio (por exemplo, pressão injustificada dos Estados Unidos sobre outros países, vazamento
não autorizado para os Estados Unidos por outras autoridades do país). Será que essa posição vai nos
ajudar a defender todos os fronts da melhor maneira?

A quantidade de artigos publicáveis começou a aumentar. A tarefa de prepará-


los para publicação recaiu sobre Stuart Millar, editor de notícias online do The
Guardian, que diz que se sentia como um cowboy atormentado: “Eu estava
tentando laçá-los em algum tipo de formato”. Esse era um problema de produção
muito mais complicado do que no caso dos diários de guerra do Iraque e do
Afeganistão. Primeiro, parecia que os telegramas produziriam apenas um
amontoado de histórias. Na véspera do Dia D, os jornalistas do The Guardian já
haviam elaborado mais de 160 artigos, e o tempo todo surgiam mais: “As
matérias apareciam em grande quantidade e de forma absurda”, lembra Millar.
Para ele, um especialista em web, era muito claro que o surgimento da imensa
base de dados de telegramas marcava o fim dos segredos de Estado, no sentido
antiquado, como na época da Guerra Fria. “A internet transformou tudo em
história”, reflete. “Para nós, havia uma responsabilidade especial em lidar
cuidadosamente com o material e contextualizar as histórias, em vez de
simplesmente divulgá-las.”
Havia outras preocupações. A intenção era que o texto integral dos telegramas
fosse divulgado online, com as reportagens individuais. Essa prática – que
Assange chamou de “jornalismo científico” – era algo que o The Guardian e
alguns outros jornais já adotavam havia muitos anos, desde que a tecnologia
permitira.
Cada repórter era responsável agora por editar os próprios telegramas,
apagando do original as fontes que pudessem ser postas em risco se tivessem
seus nomes publicados. Chefes de Estado, políticos conhecidos, pessoas de vida
pública de modo geral eram alvos legítimos. Porém, em algumas partes do
mundo – Oriente Médio, Rússia e Ásia central, Iraque, Afeganistão e Paquistão
–, apenas ser visto conversando com norte-americanos já era um negócio
arriscado.
A equipe que trabalhava com os telegramas agia de modo conservador. Se
houvesse risco de alguém se comprometer, o nome era riscado. Às vezes, isso
era frustrante: longos telegramas informativos eram reduzidos a uns poucos
parágrafos monótonos. Mas a alternativa era muito pior. Os textos editados eram
enviados a Jonathan Casson, o aparentemente milagroso chefe de produção, e
sua esforçada equipe, que montou acampamento numa sala vizinha, no quarto
andar, normalmente usada como sala de treinamento. Rusbridger sugeriu
inicialmente que cada jornal indicasse um “editor para a preparação do texto”, a
fim de proporcionar um método garantido e seguro de proteção às fontes. Casson
trabalhou arduamente, durante longos dias, comparando as decisões de edição do
The Guardian com as das outras partes e estudando as descrições de telegramas
particulares do Departamento de Estado norte-americano, passadas pelo The
New York Times. A tarefa se tornou muito mais difícil pela determinação dos
jornalistas de não falar sobre os telegramas por telefone ou e-mail. Depois da
rodada diária de ligações via Skype para os parceiros internacionais, Casson
alterava meticulosamente o tom de alguns dos cerca de setecentos telegramas
relacionados numa imensa planilha do Google, que apenas ele podia entender.
Ele parecia estar à beira de um ataque de nervos.
E depois havia os riscos legais. Será que o The Guardian poderia ser
processado por violação da Lei de Segredos Oficiais britânica ou da Lei de
Espionagem americana? E, nesse caso, será que o jornal teria de entregar os e-
mails e documentos internos? Rusbridger já pedira a opinião de Alex Bailin,
conselheiro da rainha especializado em questões de sigilo, antes da publicação
dos diários de guerra do Afeganistão. Não houve processo. Mas isso não
significava que a Casa Branca concordaria com a publicação, muito mais
prejudicial, dos telegramas secretos do Departamento de Estado norte-
americano.
Geraldine Proudler, da firma de advogados Olswang, que atende o The
Guardian, tivera muitos presságios. Antes da publicação dos diários de guerra do
Afeganistão e do Iraque, ela sugerira que era “perfeitamente possível” que os
Estados Unidos processassem o jornal com base na Lei de Espionagem – embora
um ataque aos parceiros de mídia internacionais parecesse improvável. Também
era possível que os americanos tentassem pôr as mãos em Rusbridger. “Na pior
das hipóteses, não podemos excluir tentativas de extradição.” De qualquer modo,
era “muito provável” que os Estados Unidos obtivessem uma liminar exigindo
que o The Guardian entregasse o material após a publicação, ela informara.
Além de se preocupar com os riscos de possíveis liminares baseadas na Lei de
Segredos Oficiais e na Lei de Espionagem, Gill Phillips, chefe do departamento
jurídico do The Guardian, passara muitas horas avaliando aqueles relacionados a
difamação e a invasão de privacidade – ambos eram grandes problemas no Reino
Unido, pois o país não tem a mesma proteção à liberdade de imprensa,
considerada sagrada pela Constituição norte-americana. Os telegramas eram
fascinantes e verossímeis como documentos – revelavam desonestidade e traição
internacionais, entre outras coisas. Mas o fato de ter sido escritos por diplomatas
norte-americanos não os tornava isentos de difamação. Alguns dos telegramas da
antiga União Soviética, do Paquistão e do Afeganistão faziam afirmações
alarmantes de corrupção nos altos escalões, mas será que eles podiam enquadrar
o The Guardian com um mandado oneroso? Tudo tinha de ser tratado com
cuidado.
Até certo ponto, Phillips poderia se basear no caso Reynolds, seguindo uma
celebrada sentença de 1999 de que os jornalistas poderiam publicar declarações
importantes que não podiam ser provadas, desde que o material fosse de
interesse público, o jornal agisse com responsabilidade e seguisse procedimentos
jornalísticos adequados. (O caso recebeu esse nome depois que Albert Reynolds,
premier irlandês, processou o The Sunday Times, de Londres.) Mas o julgamento
do caso Reynolds não significava um cartão de passe livre da prisão; em alguns
casos, o The Guardian precisaria, se necessário, ser capaz de provar nos
tribunais a verdade do que havia publicado.
Silvio Berlusconi era um bom exemplo. Os telegramas afirmavam que o
polêmico primeiro-ministro italiano se beneficiara, “pessoal e
consideravelmente”, de um relacionamento íntimo – segundo os telegramas,
excessivamente íntimo – com Vladimir Putin, o primeiro-ministro e ex-
presidente da Rússia. Mas Berlusconi poderia processar o The Guardian, em
Roma?, perguntava-se Phillips. Na ocasião da publicação, os jornais italianos
saíram na frente do The Guardian e divulgaram as afirmações detalhadas no
mundo todo.
Havia outras considerações. Jornalistas responsáveis normalmente entram em
contato com a pessoa sobre a qual estão escrevendo, antes da publicação, dando-
lhe a oportunidade de um comentário ou mesmo de uma refutação. Nesse caso,
porém, havia um grande risco. Isso revelaria que o The Guardian tinha os
telegramas; a outra parte, alertada, poderia imediatamente recorrer a uma
liminar, baseada no fato de que o jornal estava na posse ilegal de documentos
confidenciais. Uma ordem de proibição de publicação poderia ser desastrosa
para o jornalismo do The Guardian – poderia destruir todo o projeto dos
telegramas.
Jan Thompson, editora executiva do The Guardian, e Gill Phillips tiveram
acaloradas reuniões com o calejado David Leigh. O objetivo de Leigh era
publicar as melhores histórias possíveis. A tarefa da igualmente experiente
advogada era manter o jornal fora dos tribunais e o editor fora da prisão. Leigh
propôs o que considerava soluções engenhosas para o problema da difamação.
Algumas vezes, a advogada concordou. Era uma linha muito tênue. “Fomos
incrivelmente cuidadosos e responsáveis, do ponto de vista legal”, afirma
Phillips. Mas “legalizar” as histórias dos telegramas do The Guardian foi
“estimulante”, acrescenta. “Foi preciso se envolver totalmente. E subitamente se
tornar especialista em todos os governos do mundo.” Phillips, no fim, estava
confiante. Contudo, fez com que um conselheiro da rainha e um advogado da
Suprema Corte ficassem de prontidão na noite da publicação dos telegramas.
Adversários jurídicos do The Guardian ficaram conhecidos no passado por
acordar juízes britânicos, totalmente preparados para emitir ordens de proibição
de publicação contra o jornal, mesmo que estivessem de pijamas.
Houve uma grande reunião final de todas as partes em Londres, na quinta-
feira, 11 de novembro, para ajustar a elaborada grade de publicação diária das
histórias dos telegramas. Dessa vez, Assange chegou ao escritório do The
Guardian vestido em estilo executivo, com um terno azul elegante e bem
cortado. Sua advogada australiana, Jennifer Robinson, estava a seu lado. Os
representantes da Der Spiegel, do El País e do Le Monde chegaram com Ian
Fisher, subeditor internacional do The New York Times. Em contraste com a
atmosfera difícil do último encontro, Assange era um exemplo de charme e
cordialidade. Leigh, com quem trocara palavras inflamadas anteriormente,
preferiu não comparecer, em virtude do que alguns suspeitavam ser um caso de
gripe diplomática. O encontro foi surpreendentemente tranquilo.
Depois, os parceiros novamente foram jantar no restaurante Rotunda, no
térreo do prédio do The Guardian. Lá, enquanto os jornalistas tomavam cerveja,
Assange confidenciou que estava pensando em ir para a Rússia. A Rússia era
uma escolha estranha – especialmente à luz dos telegramas que em breve seriam
publicados e que descreviam o país como “um Estado praticamente mafioso”.
Contudo, ele não deu detalhes do relacionamento que iniciara com o novo
“representante russo” do WikiLeaks, o estranho personagem Israel Shamir.

Até que ponto o governo dos Estados Unidos sabia desse planejado desafio a
seus segredos? Os jornalistas supunham que a CIA havia seguido cada
reviravolta do projeto. O Exército norte-americano certamente sabia dos
milhares de telegramas diplomáticos desviados desde o verão, quando o soldado
raso Bradley Manning fora especificamente acusado de roubá-los. Mas a
administração Obama, extraordinariamente, parecia desconhecer que telegramas
o WikiLeaks e os veículos de comunicação parceiros tinham em sua posse.
Na semana anterior à publicação, o Departamento de Estado advertiu muitos
de seus aliados sobre o conteúdo embaraçoso dos telegramas. Mas eles não
pareciam saber que os telegramas vazados terminavam no fim de fevereiro e
acreditavam que alguns eram mais recentes. Circulavam rumores de que
Washington não se impressionara com David Cameron e com a nova coalizão
governamental britânica, que assumira o poder em maio. O embaixador norte-
americano em Londres, Louis B. Susman, supostamente dissera isso num
telegrama pós-eleição. Agora os americanos haviam timidamente informado seu
conteúdo para Downing Street.* Eles acreditavam que os telegramas vazados
iam até junho de 2010, mês em que Manning fora preso.
O The Guardian não tinha o telegrama sobre Cameron. Assim, o primeiro-
ministro sobreviveu ao drama do WikiLeaks relativamente ileso. “Ficamos
surpresos com o pouco que os Estados Unidos sabiam sobre o que estávamos
fazendo”, afirma Katz. “Eles não tinham ideia do conjunto de dados que
tínhamos. E deram informações massivas sobre o que estava nos telegramas.”
O The New York Times decidira prevenir o Departamento de Estado sobre os
telegramas que pretendia publicar. O The Guardian – que atuava na Grã-
Bretanha, sob um regime legal particularmente opressivo – não seguiria o
exemplo dos norte-americanos. O jornal estava disposto a ouvir, mas já fizera
tudo que estava a seu alcance, sem aviso oficial, a fim de proteger de represálias
contatos confidenciais e de não publicar nada de modo irresponsável.
Poucos dias antes da publicação dos telegramas, duas personalidades do alto
escalão da embaixada americana em Londres telefonaram para o escritório do
The Guardian para conversar. A discussão levou a um surreal telefonema
intercontinental na sexta-feira, 26 de novembro – dois dias antes do Dia D. Da
grande mesa circular de seu escritório, Rusbridger concordou em telefonar para
Washington. Do outro lado da linha, estava P.J. Crowley, porta-voz do
Departamento de Estado norte-americano. A conversa começou assim: “Muito
bem, aqui é P.J. Crowley. Queria que você soubesse que aqui conosco estão a
assessora de Hillary Clinton, secretária de Estado, representantes do DdD,* das
agências de inteligência e do Conselho de Segurança Nacional”. Tudo que
Rusbridger conseguiu responder foi: “E conosco está nossa chefe de redação...”
Crowley então descreveu como as camadas mais altas do governo americano
viam o escândalo dos telegramas: “Obviamente, para nós, trata-se de
documentos roubados. Eles revelam segredos e endereços militares confidenciais
que expõem pessoas a riscos de segurança”.
Crowley fez sua oferta. Afirmou que o governo americano estava “disposto a
ajudar” o The Guardian, se o jornal estivesse preparado para “compartilhar os
documentos” que tinha – em outras palavras, prevenir o Departamento de Estado
sobre os telegramas que pretendia publicar. Rusbridger foi evasivo e disse: “Não
acho que vamos chegar a um acordo, sendo assim, por que não falamos disso
depois?”
Crowley argumentou que as operações e negociações das forças especiais com
alguns países eram delicadas. Em seguida, pediu uma pausa. Poucos minutos
depois, declarou: “Sr. Rusbridger, não achamos que esta conversa esteja sendo
útil para nós, pois, no momento, só oferecemos um monte de histórias e não
recebemos nada em troca”.
A assessora de Clinton interrompeu, dizendo: “Tenho uma pergunta direta
para o senhor, sr. Rusbridger. Vocês, jornalistas, gostam de fazer perguntas
diretas e sei que esperam respostas diretas. Por isso, farei uma pergunta direta. O
senhor vai nos dar os números dos telegramas ou não?”
“Não, não vou.”
“Muito obrigada.”
Rusbridger decidiu contar aos americanos o cronograma de publicação
completo do The Guardian: “No primeiro dia trataremos do Irã; no segundo, da
Coreia do Norte e, no terceiro, do Paquistão”. Em seguida, a conversa terminou.
Na Alemanha, o editor-chefe da Der Spiegel recebeu um telefonema do
embaixador americano. Ele disse a Georg Mascolo que havia grande
preocupação com a segurança das fontes nos “níveis mais altos” – “Vidas podem
estar em jogo”. Mascolo respondeu que a Der Spiegel fizera tudo que estava a
seu alcance para proteger as fontes que pudessem estar em perigo. E convidou o
Departamento de Estado a compartilhar com ele as áreas de preocupação.
O The New York Times mantinha suas próprias negociações, algumas vezes
tensas, com as autoridades do governo americano. Os advogados do jornal
estavam confiantes de que ele podia divulgar os documentos secretos sem
infringir a legislação do país. Mas Bill Keller sentia que tinha grande
responsabilidade ética e moral em usar o material de modo sensato: “Embora
julgássemos ter pouca ou nenhuma capacidade de influenciar o que o WikiLeaks
fazia, sem falar no que poderia acontecer quando o material fosse liberado na
câmara de ressonância da blogosfera, isso não nos isentava da obrigação de
exercer com cuidado o jornalismo. Desde o início, determinamos que em nossos
artigos, e em quaisquer documentos do arquivo secreto que publicássemos,
descartaríamos todo material que pudesse pôr vidas em risco”, escreveu mais
tarde.
A política do The New York Times era pecar por excesso de cuidado. Nos
diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, o jornal editara os nomes de todas
as fontes que haviam falado com soldados e diplomatas norte-americanos e
detalhes que poderiam ter revelado operações da inteligência ou táticas militares.
Mas, em virtude da extensão do material e da extrema suscetibilidade própria
dos atos diplomáticos, Keller considerava os telegramas da embaixada mais
potencialmente explosivos que os diários de guerra.
Dean Baquet, chefe da sucursal de Washington do The New York Times, deu à
Casa Branca um aviso em 19 de novembro. Cinco dias depois, na véspera do Dia
de Ação de Graças, Baquet e três colegas foram convidados para uma reunião a
portas fechadas no Departamento de Estado. Dela participavam representantes
da Casa Branca, do Departamento de Estado, do diretor de Inteligência Nacional,
da CIA, da Agência de Defesa de Inteligência, do FBI e do Pentágono, reunidos
em torno de uma mesa de reuniões. De pé, próximos à parede, convidados que
não se apresentaram. E, digitando no computador, um solitário escrivão.
A reunião era extraoficial, mas é justo dizer que o clima estava tenso. Scott
Shane, um dos repórteres que participaram do encontro, descreveu “um clima de
frustração e revolta reprimidas”. As reuniões e os telefonemas que se seguiram
foram menos espinhosos e mais objetivos, afirma Keller. O governo dos Estados
Unidos se preocupava com três aspectos. Primeiro, queria proteger os indivíduos
que haviam falado abertamente com diplomatas norte-americanos em países
opressivos – algo que o The New York Times estava feliz em fazer. Segundo,
queria remover referências a programas secretos americanos relacionados à
inteligência. E, terceiro, não queria que o jornal revelasse as sinceras declarações
feitas por chefes de Estado ou outras autoridades estrangeiras de alto escalão,
temendo que sua publicação prejudicasse as relações com outros países. “Na
maior parte, não estávamos convencidos”, recorda Keller.
Essa, claro, não era a primeira vez que o The New York Times publicava
segredos que constrangiam o governo norte-americano. Antes dos
acontecimentos envolvendo o WikiLeaks, nada que o jornal fizera sob a
supervisão de Keller havia causado tanta agitação quanto dois artigos publicados
pelo jornal sobre as táticas empregadas pela administração Bush após os ataques
de 11 de setembro de 2001. Um deles, publicado em 2005 e ganhador de um
prêmio Pulitzer, revelava que a Agência de Segurança Nacional havia instalado
escutas em telefones e e-mails particulares sem ter um mandado para isso. O
outro, publicado em 2006, descrevia um imenso programa do Departamento do
Tesouro para proteger registros bancários internacionais.
O editor tinha vívidas lembranças de se sentar no Salão Oval enquanto o
presidente George W. Bush tentava dissuadi-lo de publicar o artigo sobre as
escutas. Bush dissera a ele que, se o jornal o publicasse, deveria dividir a culpa
pelo próximo ataque terrorista. Pouco convencido, o jornal foi em frente, e a
reação do governo, e dos comentaristas conservadores em particular, foi
estrondosa.
Dessa vez, a reação do governo americano foi diferente. Na maior parte do
tempo, foi sóbria e profissional. A Casa Branca de Obama, enquanto condenava
o WikiLeaks por tornar os documentos públicos, não procurou obter uma liminar
para evitar a publicação. Não houve reprimendas no Salão Oval nem apelos a
Keller para que não escrevessem sobre os documentos. “Ao contrário, em nossas
discussões antes da publicação dos artigos, os funcionários da Casa Branca,
apesar de contestarem algumas das conclusões que tiramos do material, nos
agradeceram pelo cuidadoso tratamento dos documentos. Os secretários de
Estado e de Defesa e o procurador-geral resistiram à oportunidade de incentivar
uma orgia popular de acusações à imprensa”, afirma Keller, acrescentando:
“Embora a publicação dos documentos fosse terrivelmente embaraçosa, as
agências de governo colaboraram conosco, na tentativa de evitar a divulgação de
material genuinamente prejudicial a indivíduos inocentes ou aos interesses
nacionais”.
De seu refúgio secreto em Ellingham Hall, Assange tentava abrir o próprio
canal de negociações, enviando uma carta, em 26 de novembro, à embaixada
norte-americana em Londres. Com o cabeçalho “Julian Assange, editor-chefe,
WikiLeaks”, iniciava: “Prezado embaixador Susman, remeto às recentes
declarações públicas de autoridades governamentais dos Estados Unidos
demonstrando preocupação com a possível publicação, pelo WikiLeaks e outras
organizações midiáticas, de informações supostamente derivadas de registros
governamentais norte-americanos”.
Assange convidava o governo dos Estados Unidos a “indicar em particular”
exemplos de situações em que a publicação de um telegrama pudesse expor um
indivíduo “a risco significativo”. Ele prometia que o WikiLeaks rapidamente
consideraria qualquer envio do governo norte-americano antes da publicação dos
telegramas. O assessor jurídico do Departamento de Estado, Harold Koh,
respondeu com uma carta intransigente, em que afirmava que os telegramas
“foram fornecidos em violação à legislação norte-americana e sem considerar as
graves consequências desse ato”. Sua publicação “poria em risco a vida de
inúmeros indivíduos”, ameaçaria as atuais operações militares e a cooperação
entre os Estados Unidos e os aliados e parceiros. E também atrapalharia a
cooperação em “desafios comuns, como o terrorismo, as pandemias e a
proliferação nuclear”.
A carta exigia que Assange interrompesse os planos de publicar os telegramas,
devolvesse os arquivos roubados e “destruísse todos os registros do material nas
bases de dados do WikiLeaks”.
Assange escreveu a Susman novamente em 28 de novembro. Esclareceu que o
WikiLeaks não tinha intenção de pôr ninguém em risco, “nem queremos
prejudicar a segurança nacional dos Estados Unidos”. E continuou: “Entendo
que o governo dos Estados Unidos preferia que essas informações não fossem
divulgadas ao domínio público e que não seja a favor da abertura. Dito isso, ou
há um risco ou não há. O senhor escolheu responder de uma maneira que me
leva a concluir que os riscos são inteiramente imaginários e que, em vez disso,
está preocupado apenas em remover evidências de abusos de direitos humanos e
outros comportamentos criminosos”.
As negociações com o Departamento de Estado – se é que era disso que se
tratava – estavam, portanto, encerradas. Só restava se preparar para a publicação
simultânea do maior vazamento da história. O que poderia sair errado?
Notas

* Human intelligence ou “inteligência humana”, isto é, um dos métodos de coleta de informações. (N. da T.)
* Departamento de Defesa. (N. da T.)
* Rua onde se localiza a residência oficial do primeiro-ministro britânico. (N. do E.)
15
O dia da publicação
Estação de trem da Basileia, Suíça
28 DE NOVEMBRO DE 2010

“Publica! Publica! Publica!”

– REDAÇÃO DO THE GUARDIAN

ERA DOMINGO DE MANHÃ na sonolenta Badischer Bahnhof. Havia poucas


pessoas por perto. A estação fica exatamente na fronteira entre a Alemanha e a
Suíça. Um clássico exemplo de cooperação europeia: os alemães fornecem os
trens, os suíços administram os cafés e bancas de jornais. Naquela manhã,
porém, a estação seria rapidamente conhecida por outra coisa: uma falha
gigantesca.
Logo cedo, a van chegou, trazendo quarenta cópias da revista alemã Der
Spiegel. O semanário normalmente começa a distribuir cópias aos jornaleiros
durante o fim de semana, com os boêmios de Berlim podendo comprá-lo no
sábado de madrugada, na volta para casa. Mas, nessa ocasião – como quando da
publicação dos diários de guerra do Afeganistão –, a Der Spiegel deveria ter
segurado todas as cópias dessa edição. A divulgação internacional dos
telegramas da embaixada norte-americana fora meticulosamente coordenada
para as 21h30 (hora de Greenwich) do domingo. O The Guardian, o The New
York Times, o El País e o Le Monde aguardavam ansiosamente para apertar o
botão do maior vazamento do mundo. A Der Spiegel concordara em divulgar as
histórias ao mesmo tempo no site, com a revista sendo publicada na manhã
seguinte de segunda-feira. Todos conheciam o roteiro.
Mas os deuses das notícias decidiram fazer as coisas de modo diferente. Por
volta das 11h30 da manhã, Christian Heeb, editor-chefe da Rádio Basel, uma
emissora local, encontrou uma cópia da Der Spiegel na estação. A data era de 29
de novembro de 2010. O preço, 3,80 euros. A capa era simplesmente
sensacional: “Revelado: como a América vê o mundo”. O subtítulo confirmava:
“Os despachos secretos do Ministério das Relações Exteriores norte-americano”.
Contra um fundo vermelho, via-se uma galeria de fotografias dos líderes
mundiais, cada uma acompanhada por uma citação selecionada dos telegramas
norte-americanos. Angela Merkel, chanceler alemã cada vez menos popular, era
“avessa a riscos e raramente criativa”. Guido Westerwelle, o desastroso ministro
das Relações Exteriores de Merkel, era “agressivo”. E havia outros. Vladimir
Putin? “Cão alfa.” Dmitri Medvedev? “Pálido e hesitante.” Silvio Berlusconi?
“Festas selvagens.” Mahmoud Ahmadinejad? “Hitler.” Próximo à Líbia de
Muammar Kadafi estavam as atraentes palavras “exuberante enfermeira loura”.
E ainda eram prometidas mais revelações extraordinárias dentro da revista.
A emissora de Heeb começou a transmitir as notícias, dizendo que umas
poucas cópias da Der Spiegel estavam disponíveis na estação da Basileia. Nesse
momento, um usuário anônimo do Twitter, chamado Freelancer_09, resolveu
checar por si mesmo. E tuitou: “Der Spiegel zu früh am Badischen Bahnhof
Basel! Mal schaun was da steht” (Der Spiegel cedo demais na estação da
Basileia! Vamos ver o que está acontecendo.) Freelancer_09 conseguiu obter
uma das duas ou três últimas cópias do lote, no momento em que executivos, em
pânico na sede da revista em Berlim, percebiam que algo saíra terrivelmente
errado: uma das vans de distribuição enviadas para cruzar a Alemanha saíra para
a Suíça 24 horas antes do programado.
A Rádio Basel, na Suíça, recebeu um telefonema apressado da Alemanha.
Será que eles sairiam do ar em troca de ajuda posterior com a história? Mas era
tarde demais. Freelancer_09 já estava trabalhando: em poucos minutos, ele
começou a tuitar o conteúdo da revista. Merkel tinha um relacionamento melhor
com o presidente americano George W. Bush do que com o sucessor, Barack
Obama! Diplomatas americanos têm uma opinião negativa dos políticos locais
alemães! Os americanos acham que Westerwelle é um idiota! No início da
manhã, Freelancer_09 tinha a escassa contagem de quarenta seguidores no
Twitter. Suas opiniões políticas pareciam bastante claras – alternativas,
contraculturais, até anarquistas –, a julgar pelos usuários de esquerda que ele
seguia e pela foto de seu perfil, uma criança gritando em um megafone as
seguintes palavras: “Estado policial”. Não se sabe ao certo quem ele era. (Sua
identidade continuou misteriosa, pois, algumas semanas depois, sua conta no
Twitter foi desativada.)
Em pouco tempo, espalhou-se pela blogosfera a notícia de que um jornalista
anônimo da Basileia encontrara o Santo Graal. Outros jornalistas alemães
começaram a retuitar suas mensagens. A Der Spiegel enviava desesperadamente
mensagens para que ele entrasse em contato, mas ele as ignorava. “Rapidamente
seus seguidores no Twitter aumentaram, como uma bola de neve. Podíamos ver
que aquilo estava se transformando num problema sério”, admite Holger Stark,
da Der Spiegel. “Enquanto tentávamos consertar as coisas, ele tinha conseguido
uma cópia da revista.”
Em Londres, sentado sem poder fazer nada, Alan Rusbridger percebeu que o
embargo das 21h30 (hora de Greenwich) para a divulgação dos telegramas
parecia ter sido furado. “Você tem cinco das organizações noticiosas mais
poderosas do mundo e tudo é paralisado por um pequeno freelancer.
Começamos a ter reuniões de hora em hora e nos perguntávamos o que fazer”,
ele afirma. E havia outras más notícias. Veículos de comunicação alemães rivais
contataram Freelancer_09 e pediram a ele que começasse a escanear páginas
inteiras da edição da Der Spiegel. Por volta de três da tarde, ele já tinha 150
seguidores e, a cada minuto, outros tantos se juntavam. Às quatro da tarde, os
artigos proibidos, já escaneados, eram enviados pela internet. Seus seguidores
chegaram a cerca de seiscentos. Um site-espelho francês começou a traduzir as
mensagens de Freelancer_09. “Percebemos que a história não ia parar. Nós
mesmos tínhamos dado origem a um vazamento”, recorda Rusbridger com
sarcasmo. Era uma grande ironia. Rusbridger fora um partidário precoce do
Twitter, encorajando incessantemente os jornalistas do The Guardian a se
registrarem no site de microblogging de San Francisco. Agora o Twitter se
voltava contra ele e – falando em linguagem figurada – o jogava para escanteio.
Na véspera, sábado, por volta das cinco da tarde, um técnico alemão do
serviço online da Der Spiegel, em Hamburgo, cometera um primeiro erro: ele
entrou no site em tempo real com um trecho da edição da revista. E forneceu os
primeiros detalhes intrigantes: havia 251.287 telegramas; um deles datava de
1966, mas a maioria era recente, a partir de 2004; 9.005 documentos datavam
dos primeiros dois meses de 2010. Stark desculpou-se pelo incidente e disse que
o link alemão fora apagado assim que descoberto. As capturas de tela circularam
pela net durante algum tempo. Então, no domingo à tarde, mais material
apareceu no popular site da Der Spiegel em inglês. Agora os rumores estavam se
espalhando febrilmente pelo Twitter. A expectativa era máxima.
Em pouco tempo, o The New York Times identificou a matéria online da Der
Spiegel. Os diretores do jornal disseram que o embargo estava acabado – agora
efetivamente não fazia sentido. “O que foi incrível foi a ironia de ver justamente
os alemães estragarem tudo”, afirmou Katz, nem sempre o representante mais
politicamente correto do The Guardian. Até aquele momento, somente os
alemães – sempre impecavelmente éticos – haviam conseguido evitar as
recriminações lançadas livremente por Assange, tanto aos norte-americanos
quanto aos britânicos. Janine Gibson, editora do guardian.co.uk, o site do The
Guardian, comparou a divulgação antecipada dos telegramas ao Grand National
de 1993 na Grã-Bretanha – a caótica etapa da histórica corrida de cavalos foi
vergonhosamente cancelada depois de duas largadas falsas.
“Tudo ficou terrivelmente bagunçado”, afirma Rusbridger. “Foi a coisa mais
complicada que já fizemos: coordenar um jornal matutino espanhol, um jornal
vespertino francês, um semanário alemão e um [jornal] americano, num fuso
horário diferente e com um monte de anarquistas num bunker que só se
comunicavam via Jabber [serviço de mensagens instantâneas online].”
Às seis da tarde, o The Guardian e todos os outros concordaram em publicar.
Como se estivesse no Centro de Controle de Missões da Nasa, em Houston, a
equipe de produção do The Guardian estava preparada, no escritório do jornal,
em King’s Cross, diante de uma fileira de telas brilhantes. O chefe de produção,
Jon Casson, perguntou: “Vamos publicar?” E Katz respondeu: “PUBLICA!” A
palavra foi repetida e instantaneamente se espalhou pelas cadeiras do fundo da
sala. Então, a redação fez coro: “Publica! Publica! Publica!” O maior vazamento
do mundo tornava-se público.
A matéria de primeira página do The Guardian tornou evidentes as dimensões
históricas das informações. Assinada por David Leigh, ela apareceu no
guardian.co.uk às 18h13. A manchete dizia: “Vazamento de telegramas da
embaixada norte-americana produz crise diplomática global”. E começava:
Os Estados Unidos foram lançados em uma crise diplomática mundial hoje com o vazamento, para o
The Guardian e outros veículos de comunicação internacionais, de mais de 250 mil telegramas
confidenciais de suas embaixadas, muitos enviados em datas recentes, como em fevereiro deste ano.
Com o início de uma série de trechos diários dos telegramas da embaixada norte-americana – muitos
designados “secretos” –, o The Guardian pôde revelar que líderes árabes estavam secretamente
encorajando um ataque aéreo ao Irã, e que oficiais americanos foram instruídos a espionar a liderança
das Nações Unidas.

A história continuava: “Essas duas revelações, sozinhas, provavelmente teriam


repercussão no mundo todo. Mas os despachos secretos, obtidos pelo WikiLeaks
– o site de informantes –, também revelam a avaliação sobre Washington sobre
muitos outros temas internacionais extremamente delicados”.
Às 18h15, o The Guardian publicou um blog em tempo real do WikiLeaks,
para registar as reações à medida que chegassem. Mais blogs em tempo real se
seguiriam – se tornariam uma parte inovadora da cobertura dos telegramas. As
revelações na reportagem de Leigh foram as primeiras de muitas, feitas durante
as quatro semanas seguintes. Apesar da publicação fragmentada, a divulgação
dos telegramas do Departamento de Estado norte-americano equivalia ao maior
vazamento desde 1971, quando Daniel Ellsberg repassou os Papéis do Pentágono
ao The New York Times, provocando um processo histórico e revelando os
segredos sujos da Casa Branca no Vietnã. O vazamento atual de dados era muito
maior – uma divulgação sem precedentes de informações secretas vindas do
coração da única superpotência mundial.
Ninguém poderia pensar numa história mais importante – ainda mais sendo
escrita pelos próprios veículos de comunicação. “Podia-se dizer que o ataque ao
World Trade Center ou a Guerra do Iraque eram histórias maiores. Mas, em
termos de jornais, em que, ao publicar uma história, você a revela e em seguida
ela é discutida em cada canto do planeta – e você é uma das poucas pessoas que
a conhecem e a publicam diariamente; bom, isso é excepcional”, observa
Rusbridger.
A essa altura, o Departamento de Estado norte-americano já reunira uma
equipe de 120 pessoas para varar a noite e tentar descobrir que telegramas
provavelmente seriam revelados. O departamento também emitiu uma
declaração condenatória, que dizia:
Antecipamos a revelação, no domingo à noite, do que supostamente são centenas de milhares de
telegramas confidenciais do Departamento de Estado, que detalham discussões diplomáticas privadas
com governos estrangeiros. Por sua natureza, os relatórios de campo para Washington são
informações verdadeiras, mas muitas vezes incompletas. Não são expressão da política e nem sempre
configuram as decisões finais da política. Contudo, esses telegramas podem comprometer discussões
privadas com governos estrangeiros e líderes da oposição e, quando o conteúdo de conversas
privadas é impresso nas primeiras páginas dos jornais em todo o mundo, pode influenciar
profundamente não apenas os interesses da política estrangeira norte-americana, mas os de nossos
aliados e amigos em todo o mundo.
A divulgação dos telegramas era uma “ação incauta e perigosa”. E punha
vidas em risco, declarou a Casa Branca.
A declaração foi um exercício de contenção de danos. Mesmo os adversários
do WikiLeaks tinham de reconhecer que algumas das revelações – por exemplo,
a de que os Estados Unidos espionaram oficiais das Nações Unidas e buscaram
reunir números de cartões de crédito – eram essencialmente de interesse público.
Além disso, a Casa Branca muitas vezes expressou preocupação quando outros
regimes autoritários impuseram restrições à liberdade de expressão. Essa
resposta irritada, na ocasião em que o vazamento ocorreu no interior de sua
imensa máquina governamental, levaria russos, chineses e muito mais gente a
acusar Washington de usar dois pesos e duas medidas.
O The Guardian publicou uma réplica, destacando que o jornal editara
cuidadosamente muitos telegramas. E isso fora feito “para proteger várias fontes
citadas e, portanto, para não revelar certos detalhes das operações especiais”.
O The New York Times também defendeu vigorosamente a decisão de
publicar:
Os telegramas contam a história, sem retoques, de como o governo toma suas principais decisões,
que custam ao país, sobretudo, vidas e dinheiro. Eles esclarecem as motivações – e, em alguns casos,
a duplicidade – dos aliados no outro extremo do ‘galanteio’ e do auxílio internacional norte-
americano. Eles iluminam a diplomacia em torno de duas guerras atuais e de diversos países, como o
Paquistão e o Iêmen, onde cresce o envolvimento das Forças Armadas norte-americanas. Por mais
assustador que seja publicar tal material contra as objeções oficiais, seria arrogância concluir que os
americanos não têm o direito de saber o que está sendo feito em seu nome.

Franco Frattini, ministro das Relações Exteriores italiano, foi um dos


primeiros políticos a perceber que o vazamento não poderia ser desfeito,
chegando a ponto de mudar o jogo. “Será o 11/9 da diplomacia mundial”,
exclamou. Pela primeira vez, a comparação não parecia um exagero. “O
vazamento estava sendo discutido na Casa Branca, no Kremlin, no Élysée, por
Berlusconi e pela ONU, por Chávez, em Camberra e em cada capital do mundo”,
afirmou Rusbridger. “Onde ele não estava sendo discutido, sabíamos que eles
estavam se preparando para isso. Tinha-se a sensação de completa confusão.
Todas aquelas pessoas incrivelmente poderosas, as mais poderosas do mundo,
estavam brigando em reuniões de emergência.”

Em Kings Place, a reunião editorial do dia seguinte estava mais cheia que o
normal. As reuniões matutinas são um ritual no The Guardian: os chefes das
editorias – nacional, estrangeira, cidades, esportes, assim como a de reportagens
especiais, comentários e arte – fazem um breve relatório das contribuições do
dia. A equipe toda pode participar, e qualquer um pode falar. A organização das
cadeiras reflete a hierarquia velada do The Guardian: Rusbridger senta-se no
meio de um sofá amarelo e comprido; a equipe de novatos senta-se, sem nenhum
conforto, nos bancos próximos às paredes de vidro. Depois da rodada de
notícias, o editor normalmente diz: “Mais alguma coisa?” Muitas vezes há um
silêncio. Alguém corajoso, ou tolo, inicia o debate; às vezes o silêncio se estende
embaraçosamente por dez segundos. Nessa manhã, porém, não houve hesitação.
A sala estava lotada; a atmosfera era de agitação e espanto pelo fato de que o The
Guardian conseguira, com umas poucas falhas, publicar a história.
Um dos rostos desconhecidos ali era o de Luke Harding, correspondente do
The Guardian em Moscou, que examinara os telegramas à procura de uma série
de histórias sobre a Rússia e que, recém-chegado de Moscou, estava de pé
próximo à porta, com a barba por fazer, atordoado com a mudança de fuso
horário. Ian Katz recordou os eventos dramáticos do domingo e explicou a
decisão de prosseguir com a publicação, quando ficou claro que o próprio
Cablegate originara um vazamento. Katz descreveu as cômicas discussões do
The Guardian com seus muitos parceiros europeus: “Era um misto de liderar um
comitê em Bruxelas com um episódio de ’Allo ’Allo”.* Ele propôs uma analogia
um tanto rococó: era “como ser uma espécie de controlador de tráfego aéreo,
com diversos pequenos acidentes de avião em Stansted, mas conseguindo
aterrissar alguns jatos dos grandes em Heathrow”.
O site do The Guardian tinha ficado “completamente confuso”, informou
Janine Gibson. A história produziu um tráfego incrível: 4,1 milhões de usuários
únicos, o número mais elevado de todos os tempos. Números recorde
continuariam, com 9,4 milhões de navegadores exibindo as histórias do
WikiLeaks entre 28 de novembro e 14 de dezembro. Cerca de 43% vinham dos
Estados Unidos. A equipe do The Guardian projetara um gráfico interativo que
permitia aos leitores realizarem suas próprias buscas na base de dados dos
telegramas. Esse gráfico se tornou o aspecto mais popular da cobertura do The
Guardian. Pessoas no mundo todo podiam ver o que os oficiais norte-
americanos haviam escrito de forma privada sobre seus governantes. “Era
realmente agradável”, afirma Gibson. “As pessoas pesquisavam e se envolviam
com os telegramas, não estavam apenas ‘assangeando’.”
À medida que os telegramas apareciam diariamente, um retrocesso
desagradável, e muitas vezes desordenado, ocorria nos Estados Unidos. Um coro
vingativo surgiu, sobretudo entre os republicanos. O congressista de Nova York
Peter King, que assumiria a presidência do Comitê de Segurança Interna, falou
em “traição” e sugeriu que o WikiLeaks fosse designado como “uma
organização terrorista estrangeira”. Evitando qualquer risco de meias-palavras,
ele disse: “O WikiLeaks representa um perigo claro e presente para a segurança
nacional dos Estados Unidos”.
Foi noticiado que o congressista Pete Hoekstra, de Michigan, exigia
execuções: “Evidentemente podemos ir atrás da pessoa que vazou a informação
ou a hackeou em nossos sistemas, e podemos prendê-la por espionagem ou
traição. Se formos atrás dela – e pudermos condená-la por traição –, então a pena
de morte se torna uma opção”.
Seu colega Mike Rogers, também de Michigan, não fez por menos. Ele disse a
uma estação local de rádio: “Afirmo que a pena de morte deve ser considerada
nesse caso. Ele claramente ajudou o inimigo, o que pode resultar na morte de
soldados ou colaboradores norte-americanos. Se esse não é um delito passível de
pena de morte, eu não sei o que é”.
A ex-governadora do Alasca Sarah Palin, queridinha da direita insana,
denunciou “a espionagem doentia e antiamericana” de Assange e quase incitou
seu assassinato: “Por que ele não foi perseguido com a mesma urgência com que
perseguimos os líderes do Talibã e da Al Qaeda? [...] Ele é um espião
antiamericano com sangue nas mãos”.
Mas veio do senador Joe Lieberman, presidente do Comitê de Segurança
Interna do Senado, um gavião da política estrangeira e democrata dissidente, a
crítica mais voraz e objetiva contra o WikiLeaks. Lieberman descreveu o
vazamento em termos apocalípticos, como “uma ação ultrajante, incauta e
desprezível, que minará a capacidade de nosso governo e de nossos parceiros de
manter o povo seguro e de colaborar para defender nossos interesses vitais”. Ele
não chegou a denunciar Assange como “terrorista”, mas afirmou: “O que o
WikiLeaks fez foi terrível. Espero que estejamos fazendo o possível para tirar o
site deles do ar”.

No domingo, primeiro dia de publicação dos telegramas, o WikiLeaks foi


vítima de um ataque hacker massivo. O tráfego da net para o site saltou de 13
gigabits (milhares de milhões de bits) por segundo para cerca de 17 Gbps,
chegando ao nível máximo de 18 gigabits por segundo. O WikiLeaks estava
acostumado a ataques DDOS (distributed denial of service – negação de serviços
distribuídos). No controle de um botnet de dezenas de milhares de PCs com
Windows, havia alguém aparentemente os orquestrando, numa tentativa de fazer
com que o wikileaks.org ficasse sobrecarregado.
Num ataque DDOS normal, os PCs tentam se comunicar com o site-alvo. Um
método típico é enviar uma solicitação ping, com uns poucos pacotes de dados.
É como tocar a campainha da porta da frente do site. Em geral, o site responde,
confirmando que os dados chegaram. É fácil um site lidar com uma solicitação
ping. Mas, quando um monte delas chega continuamente do mundo inteiro,
torna-se impossível para o site fazer algo proveitoso, pois ele está muito ocupado
tentando responder às solicitações.
O ataque DDOS que atingiu o WikiLeaks naquela tarde era oito vezes maior
que os anteriores. O hacker por trás dele parecia ser um curioso patriota de
direita chamado “The Jester”, ou, na linguagem que ele usava, “th3j35t3r”. The
Jester se autodenominava um “hacktivista do bem”. Seu objetivo, de acordo com
sua conta do Twitter, era obstruir “as linhas de comunicação de terroristas,
simpatizantes, montadores, facilitadores, regimes opressivos e caras maus em
geral”. Enquanto os ataques continuaram a atingir o WikiLeaks, ele tuitou,
animado: “www.wikileaks.org – TANGO DOWN – por tentar pôr em risco a
vida das nossas tropas, ‘outros bens’ & as relações internacionais”.
Normalmente, The Jester preferia derrubar sites que ele considerava que eram
usados por grupos jihadistas e outros revolucionários islâmicos; sempre que
conseguia, enviava a mesma mensagem satisfeita: “TANGO DOWN”.
Supostamente um ex-recruta das Forças Armadas norte-americanas, The Jester
parecia ter decidido que Assange era o alvo da vez.
O ataque de The Jester foi o primeiro combate intrigante de uma séria
ciberluta. Grandes corporações norte-americanas tentavam tirar Assange da
internet. Mas em sua defesa acorria um grupo engajado de libertários online e
cyber-freaks menores de idade. Nessa guerra, alguns discerniam o princípio de
um movimento de protesto global descentralizado. Outros a desprezavam como
travessuras de um bando de jovens sexualmente frustrados. Mas não havia
dúvidas de que o WikiLeaks estava cercado.
Para esquivar-se dos ataques DDOS, Assange desviou a página principal do
WikiLeaks – mas não a dos telegramas diplomáticos – para que funciosse no
serviço EC2, ou “Elastic Cloud Computing”, da Amazon. O diretório
cablegate.wikileaks.org e seu conteúdo permaneceram fora da Amazon, num
servidor localizado na França. O serviço comercial da Amazon era grande o
bastante para absorver os ataques DDOS. Na terça-feira, 30 de novembro, houve
mais ataques contra o site principal da Amazon e o site do WikiLeaks com os
telegramas, hospedado na França. Usando máquinas da Rússia, da Europa
oriental e da Tailândia, os ataques eram maiores e mais sofisticados. Apesar
disso, o WikiLeaks conseguiu conter a tempestade, com o auxílio dos poderosos
servidores EC2 da Amazon. Assange divulgou que iria contratá-los.
O senador Lieberman intensificou a campanha: contatou a Amazon e exigiu
que deixassem de hospedar o WikiLeaks. A intimidação de Lieberman funcionou
– a Amazon removeu o WikiLeaks de seus servidores. Em vez de admitir que
cedera à pressão política, a empresa alegou, de modo evasivo, que o WikiLeaks
violara os “termos de serviço”. “Está claro que o WikiLeaks não é proprietário
de todos os direitos do conteúdo confidencial nem os controla”, afirmou a
Amazon. “Além disso, não parece verossímil que o extraordinário volume de
250 mil documentos confidenciais que o WikiLeaks está publicando possa ter
sido cuidadosamente editado, de modo que se possa garantir que eles não estão
pondo pessoas inocentes em risco.”
Essa declaração da Amazon não se baseava em evidências concretas. Apenas
uma pequena parcela dos 250 mil telegramas havia sido publicada, e cada um
estava, de fato, sendo cuidadosamente editado. Parecia que os executivos da
Amazon estavam apenas regurgitando frases ditadas a eles pelos políticos.
O senador saudou a “decisão certa” da Amazon e incitou “qualquer outra
empresa ou organização que esteja hospedando o WikiLeaks a imediatamente
cessar o relacionamento com eles”. E continuou: “Os atos ilegais, ultrajantes e
incautos do WikiLeaks comprometeram a segurança nacional e puseram vidas
em risco em todo o mundo. Nenhuma empresa responsável – norte-americana ou
estrangeira – deveria auxiliar o WikiLeaks em seus esforços para disseminar o
material roubado”.
A equipe do WikiLeaks usara um software livre para gerar um gráfico que
exibia uma visão geral da classificação, do número e de outros dados gerais dos
telegramas. A pequena empresa que o licenciava – Tableau Software – removeu
o gráfico do site público, também pressionada (embora não tenha havido contato
direto) pelo gabinete de Lieberman. Os dominós começaram a cair. A empresa
EveryDNS, que fornece serviços de roteamento gratuitos (traduzindo endereços
de leitura amigável, como wikileaks.org, em endereços de internet lidos pelo
sistema, por exemplo, 64.64.12.170), excluiu o nome de domínio wikileaks.org e
também apagou todos os endereços eletrônicos associados a ele. Para justificar a
ação, a EveryDNS afirmou que os constantes ataques de hackers ao WikiLeaks
estavam prejudicando os outros clientes.
Com efeito, o WikiLeaks agora desaparecera da web para qualquer um que
não soubesse como descobrir um endereço numérico para o site. O WikiLeaks
transferiu-se para um endereço alternativo, www.wikileaks.ch, registrado na
Suíça, mas hospedado num abrigo sueco para resistir a uma guerra nuclear.
Novos problemas surgiram: o PostFinance, o sistema postal suíço, encerrou a
conta bancária de Assange, baseado no fato de que ele não morava em Genebra,
como solicitado nas regras. O PayPal, do site de leilões norte-americano eBay,
afirmou que suspenderia a conta do WikiLeaks em virtude de “violação da
política de uso aceitável do PayPal”. Um porta-voz afirmou que a conta “não
pode ser usada para atividades que encorajem, promovam, facilitem ou instruam
terceiros a participar de atividade ilegal”. Mais tarde, foi revelado que o
Departamento de Estado norte-americano escrevera à empresa em 27 de
novembro – véspera da publicação dos telegramas – declarando que o
WikiLeaks era considerado ilegal nos Estados Unidos. Na segunda-feira, 6 de
dezembro, a gigante dos cartões de crédito MasterCard tomou a mesma decisão,
afirmando que o WikiLeaks “transgredira as regras”. Na terça-feira, a Visa
europeia fez o mesmo. Esses eram métodos fáceis e populares de doação online;
quando as duas empresas encerraram as operações, grande parte dos fundos do
WikiLeaks foi bloqueada. (Os críticos assinalaram que, enquanto as doações
para o WikiLeaks estavam suspensas, o site da Ku Klux Klan continuava
direcionando os doadores a um site que aceitava ambos os cartões, MasterCard e
Visa.) Foi um golpe mortal, que deixou Assange com dificuldades para pagar
suas despesas jurídicas e as do WikiLeaks, que não paravam de crescer.
Esses ataques contra o WikiLeaks não ficaram sem resposta: fizeram crescer a
fúria online por tal demonstração de pressão política e de interesse próprio
corporativo americano. Enquanto as pesquisas sugeriam que muitos americanos
apoiavam o bloqueio do WikiLeaks, outros estavam irritados pela supressão da
liberdade de expressão, e outros ainda pensavam que a ruína da empresa eram
um mau presságio para a liberdade de expressão na internet.
Nesse cenário, surgiu o Anonymous, um grupo de cerca de três mil pessoas.
Alguns eram hackers, especialistas no controle de botnets de pequena escala;
outros eram novatos na net, que buscavam uma causa para apoiar. Tratava-se de
uma comunidade livre, formada sobretudo por adolescentes, que tinham tempo
de sobra, e pessoas mais velhas (quase todas homens), com mais bom senso e
habilidades técnicas. A multidão do Anonymous era um grupo apenas em
sentido amplo, escreveu o editor de tecnologia do The Guardian, Charles Arthur:
“É mais como um rebanho em fuga, sem saber ao certo o que quer, mas certo de
que não haverá obstáculos, até que eles chegam a um entrave insuperável e
procuram outra coisa”.
O Anonymous – que surgiu do igualmente caótico fórum “/b/”, no site de
discussões 4chan.org – no passado atormentara cientologistas, republicando
vídeos e vazando documentos secretos que a seita queria esconder. A ampla
bandeira do Anonymous é lutar contra a supressão da informação – mas seus
membros também praticavam atos infantis simplesmente para chatear e frustrar
usuários da web, para sua própria diversão (atos conhecidos como “doing it for
the lulz”*). De vez em quando, simpatizantes do Anonymous apareciam em
manifestações – alguns usando a mesma máscara assustadora de Guy Fawkes
que decorava a página do Twitter do grupo, Anony_Ops. “É complexo, pueril,
bizarro e caótico”, falou um deles a Arthur.
A Operação Vingança do grupo fora anteriormente dirigida contra os websites
das firmas de advogados que perseguiam piratas de música online, assim como
contra a Associação da Indústria Fonográfica da América. Agora era a vez das
empresas de pagamento online. Apesar de não haver uma hierarquia ou um líder
identificáveis, na quarta-feira, 8 de dezembro, os hackers do Anonymous tiraram
do ar, durante várias horas, o site da MasterCard e interromperam
temporariamente a conta do cartão de crédito de Sarah Palin. O Anonymous
também afirmou ter atingido o site do PostFinance e do gabinete da promotoria
sueca. Alguns simpatizantes do Anonymous divulgaram um “manifesto”:
“Defendemos o livre fluxo de informações. O Anonymous está ativamente em
campanha para alcançar esse objetivo de todas as formas. Isso exige liberdade de
expressão para a internet, para o jornalismo, para os jornalistas e para os
cidadãos do mundo. Embora reconheçamos que vocês podem discordar,
acreditamos que o Anonymous está em campanha para que vocês nunca tenham
que silenciar”.
Não se sabe ao certo que efeito o ataque teve nas operações financeiras da
MasterCard – a empresa não divulgou que transações (que eram transmitidas por
linhas seguras para os computadores principais) foram afetadas. De modo geral,
ela ignorou o ataque, esperando não instigar outros hackers. A tática funcionou:
o Anonymous em seguida voltou sua ira contra a Amazon e o PayPal, mas a
natureza desorganizada do grupo significava que eles não poderiam reunir poder
de fogo suficiente para atingir os sites off-line – a Amazon era muito grande, e o
PayPal resistiu a alguns ataques. Comentava-se que os poderosos hackers que
haviam atacado a MasterCard não queriam prejudicar a si mesmos derrubando o
PayPal, que eles usavam constantemente.
Esse evento foi algo novo – o equivalente, na internet, a uma manifestação
política barulhenta. O que começara com alguns nerds adolescentes
transformara-se numa ciber-revolta contra as tentativas de limitar a informação.
Como eles disseram num profético vídeo do YouTube, com o som de guitarras
ao fundo: “Nós estamos em toda parte”. Certamente estavam na Holanda, onde,
em dezembro, a polícia prendeu dois adolescentes, de 16 e 19 anos. Alguns
simpatizantes do Anonymous sem habilidades informáticas não se deram conta
de que o software – chamado LOIC – que lhes fora oferecido para os ataques
forneceria sua localização na internet. A polícia poderia, a qualquer momento,
associá-la a um usuário.
Contudo, por trás de toda a efervescência online, estava em andamento um
jogo muito mais sério. O procurador-geral do presidente Obama, Eric Holder,
convocou uma entrevista coletiva para anunciar que havia uma “investigação
criminal ativa e permanente” sobre o vazamento de informações confidenciais. E
prometeu fazer com que todos que infringissem a lei nos Estados Unidos
“respondessem por isso”. Ele afirmou: “Na medida em que existam lacunas nas
leis, nos aproximaremos dessas lacunas, o que não significa dizer que alguém,
nesse momento, por sua cidadania ou local de residência, deixa de ser um alvo
ou de estar submetido a uma investigação em andamento”. Em Alexandria, na
Virgínia, perto de Washington, começaram a correr rumores de que um grande
júri secreto fora montado e de que muitas liminares seriam expedidas. Bradley
Manning, o jovem soldado que estava havia sete meses praticamente em
confinamento solitário, só veria um fim para o seu duro tratamento – segundo a
opinião de seus amigos – se estivesse disposto a implicar Julian Assange e o
WikiLeaks em alguns crimes graves.
Parecia claro que processar Assange – um cidadão australiano que vivia no
Reino Unido – por espionagem ou conspiração seria um caso difícil,
especialmente por causa da natureza obsoleta da Lei de Espionagem norte-
americana. Mas também ficou claro que a Casa Branca, exasperada, queria ser
vista perseguindo energicamente essa opção. Será que o Departamento de Justiça
tentaria retirar Assange à força de seu refúgio, na zona rural inglesa? E não havia
ainda uma investigação policial não solucionada sobre seu comportamento na
Suécia? A ameaça de extradição – e a possibilidade de muitas décadas numa
prisão de segurança máxima nos Estados Unidos – começou a tomar forma para
Assange, enquanto o restante do mundo tentava digerir o significado da
montanha de documentos que ele revelara.
Notas

* Série de TV britânica, transmitida entre 1982 e 1992, que retratava a França ocupada. (N. da T.)
* Essa expressão constitui uma variante de LOL (laughing out loud) e pode ser traduzida como “tirando
sarro da cara (de alguém)”. (N. da T.)
16
O maior vazamento da história
Ciberespaço
30 DE NOVEMBRO DE 2010

“É o sonho do historiador. E é o pesadelo do diplomata.”

– TIMOTHY GARTON ASH, HISTORIADOR

O QUE NÓS APRENDEMOS COM O WIKILEAKS? A pergunta – assim como tudo que
se relacionava aos vazamentos – é polarizante. Havia, desde o início, um
desinteresse dos bien pensants* das metrópoles, que achavam que sabiam de
tudo. Os árabes não gostam do Irã? O governo russo é corrupto? Alguns países
africanos são cleptocracias? Continuem, surpreendam-nos. Só falta vocês nos
dizerem que o papa é católico.
Segundo essa crítica, as revelações diziam o óbvio e se resumiam a
“entediantes confidências diplomáticas”. (Essa frase foi extraída da London
Review of Books. O acadêmico Glen Newey afirmou que não se impressionara
com a revelação de que o líder francês, Nicolas Sarkozy, “é um homem baixinho
com complexo de Napoleão”.)
Depois, havia as pessoas que afirmavam que os telegramas não revelavam o
suficiente sobre o mau comportamento americano. Para a esquerda, isso era
motivo de decepção e, algumas vezes, de suspeita. Um pequeno grupo de
conspiradores começou a analisar os telegramas atrás de provas de edição ou
censura ideológica. E por que tão pouco sobre Israel? Para a direita e o governo,
isso servia de combustível para o argumento de que não havia interesse público
na divulgação do material. Não era como os Papéis do Pentágono, eles
justificavam. Havia pouca ilegalidade na política estrangeira norte-americana
revelada nos documentos; onde estava, portanto, a justificativa para revelar
tudo? Depois, lá estava o governo dos Estados Unidos, que insistia que os
vazamentos estavam pondo vidas em risco, destruindo a capacidade de
Washington de fazer negócios com os aliados e parceiros e ajudando os
terroristas.
O que esses argumentos não levavam em conta era o anseio pelos telegramas
em países que não tinham democracia em pleno funcionamento ou o tipo de
liberdade de expressão desfrutado em Londres, Paris ou Nova York. Pouco
depois da divulgação dos primeiros telegramas, o The Guardian começou a
receber um fluxo constante de solicitações de editores e jornalistas de todo o
mundo, querendo saber o que os despachos revelavam sobre seus próprios países
e governantes. Era mais fácil chamar as revelações de previsíveis e até mesmo
maçantes quando se vivia na Europa ocidental, e não em Belarus, na Tunísia ou
em qualquer outro regime opressor.
Tratava-se de um argumento poderoso a favor das revelações do WikiLeaks.
Não era particularmente edificante ver comentaristas e políticos ocidentais
desprezando o interesse público na divulgação daquelas informações, que eram
ávida e desesperadamente buscadas por pessoas em países distantes, dos quais,
sem dúvida, eles sabiam muito pouco. Quem poderia dizer que efeito as
revelações teriam, mesmo que elas divulgassem coisas que, de algum modo, já
eram conhecidas? Muitas vezes a publicação em si servia como autenticação e
verificação daquilo de que já se suspeitava.
De fato, longe de ser rotineiro, o vazamento não tinha precedentes, pelo
menos em tamanho. O WikiLeaks chamava-o, corretamente, de “o maior
conjunto de documentos confidenciais já divulgados publicamente”. Havia
251.287 comunicados internos do Departamento de Estado, escritos por 280
embaixadas e consulados, em 180 países. Entre eles, havia avaliações
transparentes e, muitas vezes, nem um pouco lisonjeiras de líderes mundiais;
análises – muitas de boa qualidade; comentários, relatórios de reuniões, súmulas
e fofocas. Havia relatos de jantares regados a vodca, reuniões com oligarcas,
encontros em restaurantes chineses e até de uma festa sexual na Arábia Saudita.
Alguns dos telegramas eram longos ensaios, que ofereciam uma reflexão
original sobre problemas complexos do ponto de vista histórico, como no caso
da Chechênia; outros eram meras solicitações a Washington.
Eles enfatizavam interesses e preocupações geopolíticas da superpotência
norte-americana: a proliferação nuclear, a suposta ameaça do Irã, a situação
militar de difícil controle em Cabul e Islamabad. Os telegramas da embaixada
norte-americana vinham de importantes centros de poder (Londres e Paris), mas
também da periferia distante (Asgabate, Ierevan e Bishkek). E não eram
entediantes – ao contrário, ofereciam um mosaico incomparavelmente detalhado
da vida e da política no início do século XXI. Mas, mais importante que isso,
incluíam a revelação de coisas que os cidadãos têm o direito de saber. E isso vale
tanto para os americanos quanto para os não americanos. Os telegramas
discutiam casos de abuso aos direitos humanos, corrupção e ligações financeiras
duvidosas entre os líderes do G8. Falavam de espionagem corporativa, golpes
baixos e contas-correntes secretas. Em suas conversas privadas, os diplomatas
norte-americanos dispensam as superficialidades que caracterizam o serviço
público e fazem avaliações relativamente sinceras e imediatas, oferecendo um
vislumbre da mentalidade que rege o alto escalão do poder nos Estados Unidos.
De certo modo, os telegramas eram a verdade.
O princípio constante que fundamentou a seleção do The Guardian – o que
seria ou não impresso – era se o telegrama continha material de interesse público
mais amplo. Em nenhum lugar isso foi mais nítido do que em uma diretiva
confidencial, de julho de 2009, que revelava que o governo dos Estados Unidos
estava espionando as Nações Unidas e seu discreto secretário-geral sul-coreano,
Ban Ki-moon. O telegrama começava solicitando informações diplomáticas
previsíveis sobre posições e opiniões em temas controversos, como Darfur,
Somália, Afeganistão, Irã e Coreia do Norte. Mas, lido com mais atenção,
claramente obscurecia a linha entre diplomacia e espionagem.
A diretiva de Washington pedia informações confidenciais: senhas, códigos de
criptografia. Solicitava dados biométricos detalhados “sobre os principais
funcionários da ONU, incluindo subsecretários, chefes de agências
especializadas e seus conselheiros, auxiliares de alto escalão do SG [secretário-
geral], chefes de operações de paz e missões de campo políticas, incluindo os
comandantes das forças”, assim como informações de inteligência sobre “o
estilo de gestão e de tomada de decisões e a influência [de Ban] na secretaria”.
Washington também queria números de cartões de crédito, endereços
eletrônicos, números de telefone, fax e pager e números de programas de milhas
de personalidades da ONU. Buscava ainda “informações biográficas e
biométricas sobre os representantes permanentes do Conselho de Segurança das
Nações Unidas”.
A “diretiva da coleção nacional de inteligência humana” foi distribuída para
missões norte-americanas na ONU em Nova York, Viena e Roma, e para 33
embaixadas e consulados, incluindo as de Londres, Paris e Moscou. Em todas as
principais agências de inteligência de Washington – o serviço clandestino da
CIA, o Serviço Secreto Norte-Americano e o FBI –, assim como no
Departamento de Estado, circulavam essas “necessidades de coleta e
informação”.
Há muito tempo a ONU tem sido vítima de operações de escuta e espionagem.
Diplomatas veteranos estão acostumados a conduzir as discussões mais
delicadas extramuros, e nem todos foram pegos de surpresa por essas revelações.
Robert Baer, ex-oficial de campo da CIA no Oriente Médio, observou: “Existe
uma razão para que a base da CIA esteja normalmente ligada à seção política nas
embaixadas. Existem embaixadores que adoram essas coisas. No sistema
americano, isso espirra para todo lado”.
Mas o telegrama – assinado “CLINTON” – iluminou uma cínica campanha de
espionagem. A equipe diplomática norte-americana tem imunidade e pode agir
sem levantar suspeitas. O historiador britânico e colunista do The Guardian
Timothy Garton Ash foi um dos que ficaram perturbados com a diretiva. Ele
observou que “diplomatas americanos estão sendo solicitados a fazer coisas que
normalmente se espera de espiões de baixo escalão”.
Especialistas em legislação internacional também ficaram indignados. O
telegrama parecia expor a violação, por parte dos Estados Unidos, de três
tratados fundamentais das Nações Unidas. O porta-voz de Ban, Farhan Haq,
enviou uma carta lembrando aos Estados-membros que respeitassem a
inviolabilidade da ONU: “A Carta das Nações Unidas, o Acordo de Sede e a
Convenção de 1946 contêm disposições relacionadas aos privilégios e
imunidades da organização. A ONU confia na adesão dos Estados-membros a
essas diversas obrigações”.

Os telegramas norte-americanos continham inúmeros outros segredos que


deveriam ser revelados para o público. Incontáveis memorandos das bases
americanas no Oriente Médio expunham amplamente as pressões dos bastidores
para conter o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, que os Estados Unidos,
os Estados Árabes e Israel acreditavam estar perto de obter armas nucleares.
Surpreendentemente, os telegramas mostravam o rei Abdullah, da Arábia
Saudita, encorajando os Estados Unidos a atacarem o Irã e destruírem o
programa nuclear do país. Outros aliados árabes também estavam incitando
secretamente a ação militar contra Teerã. Bombardear as instalações nucleares
do Irã até então era considerado publicamente uma medida extrema e
desesperada, que poderia dar início a uma guerra muito mais ampla – a qual não
estava seriamente na pauta diplomática de ninguém, exceto, talvez, a dos
israelenses.
De acordo com os telegramas, o rei saudita “frequentemente exortava os
Estados Unidos a atacarem o Irã e porem um fim em seu programa de armas
nucleares”. Segundo o relatório da reunião de Abdullah com o general norte-
americano David Petraeus, em abril de 2008, Adel al-Jubeir, embaixador saudita
em Washington, comentou que o rei incentivava os americanos a “cortar a
cabeça da cobra”.
Os telegramas também destacavam a ansiedade de Israel em preservar o
monopólio nuclear na região, sua disposição em agir de forma independente
contra o Irã e as tentativas contínuas de influenciar a política norte-americana. O
ministro da Defesa, Ehud Barak, alegou, por exemplo, em junho de 2009, que
havia uma janela “de seis a dezoito meses a partir de agora na qual ainda pode
ser viável impedir que o Irã obtenha armas nucleares”. Depois disso, Barak
afirmou, “qualquer solução militar resultará em danos inaceitáveis”.
A verdadeira escala do envolvimento militar secreto dos Estados Unidos no
Iêmen – a nação mais pobre do mundo árabe – também foi revelada. A
preocupação de Washington de que o Iêmen se tornasse um refúgio para a Al
Qaeda na Península Arábica (Aqap) era compreensível. O grupo realizara uma
série de ataques a alvos ocidentais, incluindo uma tentativa fracassada de
bombardear um avião de carga, em outubro de 2010, e, no ano anterior, uma
investida para derrubar um avião de passageiros em Detroit. Menos justificável,
talvez, fosse o motivo de os Estados Unidos terem concordado com um acordo
secreto com o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, para apresentar ataques
americanos a alvos da Al Qaeda como sendo seus.
Os telegramas mostravam que Saleh ofereceu aos americanos uma “porta
aberta” para conduzir missões contraterroristas no Iêmen e lançar ataques de
mísseis de cruzeiros no território iemenita. O primeiro, em dezembro de 2009,
matou dezenas de civis, assim como supostos militantes. Saleh o apresentou
como obra do próprio Iêmen, auxiliado pela inteligência norte-americana. Numa
reunião com o general Petraeus, chefe do Comando Central americano, Saleh
admitiu ter mentido à população sobre os ataques e enganado o Parlamento:
“Continuaremos a dizer que as bombas eram nossas, e não suas”, disse a
Petraeus. Era uma mentira que os Estados Unidos pareciam prontos a aceitar.

Como Bill Keller, do The New York Times, afirmou, os documentos


promoveram nosso conhecimento do mundo não em grandes saltos, mas em
pequenos passos. Para quem se interessa por política externa, eles ofereciam
nuances, texturas e dramas. Quem acompanhava as histórias com mais
distanciamento era capaz de entender as relações internacionais de forma mais
dinâmica. Mas os telegramas também incluíam alguns momentos assombrosos,
quando uma cortina parecia se abrir e revelar a verdadeira face de um país.
A mais dramática dessas revelações não veio do Oriente Médio, mas da
Rússia. É amplamente conhecido o fato de que a Rússia – teoricamente
controlada pelo presidente Dmitri Medvedev, mas na verdade governada pelo
primeiro-ministro Vladimir Putin – é corrupta e antidemocrática. Mas os
telegramas iam muito além. Eles pintavam um quadro lúgubre e desesperador de
uma cleptocracia centrada na liderança de Putin, em que autoridades, oligarcas e
o crime organizado estão ligados num “Estado praticamente mafioso”.
Tráfico de armas, lavagem de dinheiro, enriquecimento pessoal, proteção a
gângsteres, extorsões e subornos, malas cheias de dinheiro e contas secretas no
exterior – os telegramas da embaixada americana desatavam um sistema político
em que o suborno chegava a trezentos bilhões de dólares ao ano, sendo muitas
vezes difícil distinguir entre as atividades do governo e as do crime organizado.
Lida em conjunto, a coleção de telegramas oferecia um raro momento de
verdade sobre um regime ao qual normalmente se atribuía respeitabilidade
internacional.
Apesar da melhora das relações Estados Unidos-Rússia, desde que o
presidente Obama assumiu o poder, os americanos não tinham ilusões sobre seus
interlocutores russos. Os telegramas afirmavam que espiões usavam chefões
veteranos da máfia para executar operações criminosas, como tráfico de armas.
Enquanto isso, as agências responsáveis pelo cumprimento da lei, tais como a
polícia, as agências de espionagem e a promotoria praticavam um esquema de
extorsão para as redes criminosas. O ex-prefeito de Moscou, Yuri Luzhkov,
afastado em 2010 por Medvedev, por razões políticas, presidia uma “pirâmide de
corrupção”, sugeriam as autoridades americanas. (A bilionária esposa de
Luzhkov, Yelena Baturina, descartou as acusações como uma “baboseira
completa”.)
A burocracia russa é tão corrupta que opera o que é, com efeito, um sistema
fiscal paralelo para o enriquecimento privado da polícia, de autoridades e do
sucessor da KGB, o Serviço de Segurança Federal (FSB), afirmam os
telegramas. Há anos correm rumores de que Putin acumulou em proveito próprio
uma fortuna secreta, escondida no exterior. Os telegramas deixam claro que os
diplomatas norte-americanos tratavam esses rumores como verdadeiros – eles
especulam que Putin escolheu deliberadamente um sucessor fraco quando
deixou a presidência da Rússia, em 2008, pois poderia estar preocupado com a
perda dos “procedimentos ilícitos” em investigações da polícia. Enquanto isso,
em Roma, diplomatas norte-americanos lançavam suspeitas de que o primeiro-
ministro italiano, Silvio Berlusconi, poderia estar “lucrando, pessoal e
consideravelmente”, ao tomar um atalho nos acordos com Putin para energia
clandestina.
Um telegrama particularmente incriminador sobre a Rússia foi enviado de
Madri. Com data de 8 de fevereiro de 2010, comunicava a Washington um
informe de um promotor espanhol. José González passou mais de uma década
tentando desemaranhar as atividades do crime organizado russo na Espanha.
Encontrando-se com autoridades norte-americanas em janeiro, disse-lhes que a
Rússia se transformara num “Estado praticamente mafioso”, em que “não se
pode diferenciar entre as atividades do governo e dos grupos de CO [crime
organizado]”. González afirmava ter evidências – foram feitas milhares de
escutas telefônicas nos últimos dez anos – de que certos partidos políticos na
Rússia trabalhavam de mãos dadas com gangues mafiosas. Ele disse que oficiais
da inteligência orquestraram carregamentos de armas para grupos curdos para
desestabilizar a Turquia e estavam mexendo os pauzinhos num caso de 2009
referente ao navio de carga Arctic Sea, suspeito de carregar mísseis destinados
ao Irã. Os gângsteres desfrutavam de apoio e proteção e, com efeito,
trabalhavam “como um complemento às estruturas estatais”, comunicou às
autoridades americanas.
González afirmou que o insatisfeito oficial dos serviços de inteligência russa,
Alexander Litvinenko, encontrou-se secretamente com oficiais de segurança
espanhóis em maio de 2006, seis meses antes de ser assassinado em Londres
com polônio radioativo. Litvinenko notificou a Espanha de que os serviços de
inteligência e segurança russos controlavam a rede de crime organizado do país.
Um telegrama separado de Paris, datado de dezembro de 2006, revelava que os
diplomatas norte-americanos acreditavam que Putin provavelmente sabia sobre o
assassinato de Litvinenko. Daniel Fried, na época o diplomata americano mais
antigo na Europa, afirmou que seria incrível se o líder da Rússia não soubesse
nada sobre o assunto, em virtude de sua “atenção a detalhes”. Os russos se
comportavam com uma “autoconfiança tão grande que beira a arrogância”,
observou Fried.
O The Guardian publicou as revelações do WikiLeaks sobre a Rússia em 2 de
dezembro de 2010, em um total de cinco páginas, com o impressionante título:
“Por dentro do ‘Estado mafioso’ de Putin”. A foto de primeira página mostrava
Putin, um ex-oficial de inteligência estrangeira da KGB, com um par de óculos
escuros. Para muitos, as revelações do WikiLeaks sobre a Rússia foram as mais
intensas. Janine Gibson, editora do site do The Guardian, ficou impressionada
com a resposta online: “O dia da Rússia foi brilhante e muito lido. Foi o melhor
dia. Pudemos dizer tudo que queríamos, mas nunca havíamos dito porque
tínhamos medo. Foi extraordinário”. E continuou: “Você pode ver o que a
internet pensa sobre as coisas. Dava para perceber o que todos pensavam. Havia
uma enorme sensação de ‘Ah-há!’”
(Do outro lado do Atlântico, porém, como se estivesse determinado a
consolidar sua reputação de atenuar os fatos, o The New York Times publicou o
mesmo material com uma manchete propositalmente tímida: “Em telegramas,
Estados Unidos desaprovam a Rússia”. O contraste entre as práticas jornalísticas
do Estados Unidos e do Reino Unido poderia dar o que pensar aos estudantes de
comunicação.)
Sem dúvida, os telegramas mostravam a natureza anômala do moderno Estado
russo. Mas mostravam também a força literária do Departamento de Estado.
Entre os muitos bons escritores do serviço estrangeiro norte-americano, William
Burns, embaixador em Moscou e hoje o principal diplomata do país, revelou-se
o mais talentoso. Sua mente é como um Rolls Royce. Suas mensagens sobre os
mais diversos assuntos, de Stálin a Soljenítsin, são emocionantes, precisas e
nuançadas, combinando análise extensa com profundidade histórica. Não fosse
pelo fato de que deveriam ser secretas, suas reflexões mereceriam um prêmio
Pulitzer.
Num despacho glorioso, Burns descreve como o governante da Chechênia,
Ramzan Kadyrov, convidado de honra num tumultuado casamento no
Daguestão, “dançou desajeitadamente com a automática folheada a ouro enfiada
na parte de trás do jeans”. Durante a “opulenta” recepção, Kadyrov ofereceu
notas de cem dólares aos dançarinos e deu ao feliz casal um presente pouco
comum: “um bloco de ouro de cinco quilos”. O embaixador era um dos mais de
mil convidados do casamento do filho de Gadzhi Makhachev, político local e
poderoso presidente da estatal petrolífera da região.
Burns foi ao jantar na “imensa casa de veraneio [de Gadzhi], no aprazível
litoral do mar Cáspio“. A lista de convidados que ele descreve é quase digna de
Evelyn Waugh,* e incluía um comandante checheno (assassinado mais tarde),
celebridades do esporte e da cultura, “camponeses pardos encarquilhados”, um
nanofísico, um “lutador bêbado” chamado Vakha e um capitão de submarino.
Alguns eram refinados, ele observou, mas outros, “jurássicos”.
“A maioria das mesas estava disposta com os pratos tradicionais, além de
esturjões assados inteiros e carneiro. Mas, às oito da noite, a área foi invadida
por dezenas de mujahidin* fortemente armados para a entrada do líder checheno
Ramzan Kadyrov, vestindo jeans e camiseta e parecendo mais baixo e menos
forte que nas fotos, com uma expressão um tanto estrábica no rosto”. Kadyrov e
seus acompanhantes sentaram-se à mesa para comer e ouvir “Bênia, o rei do
acordeão”, informou Burns. Houve uma exibição de fogos de artifício, seguida
pela lezginka – a dança tradicional do Cáucaso, realizada por duas meninas e três
meninos pequenos. “Primeiro, Gadzhi juntou-se a eles, depois Ramzan [...]. Os
dois jogaram notas de cem dólares às crianças; os dançarinos provavelmente
pegaram mais de cinco mil dólares do chão.”
Isso divertia e descrevia fatos de uma região – o norte do Cáucaso – que saíra
do radar do mundo. Era uma reportagem das melhores.
Mas também havia revelações de outras áreas problemáticas, que eram de
grande preocupação em Washington. Longe de ser aliados naturais e estáveis,
como muitas pessoas supunham, a China tinha uma relação surpreendentemente
turbulenta com a Coreia do Norte. Pequim já sinalizara a disposição em aceitar a
reunificação das Coreias e estava secretamente se distanciando do regime da
Coreia do Norte, como mostravam os telegramas. Ao que parecia, os chineses
não estavam mais dispostos a oferecer apoio à bizarra ditadura de Kim Jong-il.
A posição emergente da China foi revelada em discussões confidenciais entre
Kathleen Stephens, embaixadora norte-americana em Seul, e o vice-ministro das
Relações Exteriores da Coreia do Sul, Chun Yung-woo. Citando dois oficiais
chineses de alto escalão, Chun disse à embaixadora que os líderes mais jovens
do Partido Comunista Chinês não consideravam mais a Coreia do Norte um
aliado útil ou confiável. Além disso, eles não se arriscariam a renovar o conflito
armado na península, afirmou. O telegrama dizia: “Os dois oficiais, de acordo
com Chun, estão prontos para ‘encarar a nova realidade’ de que a DPRK [Coreia
do Norte] agora tem pouco valor para a China como um Estado-tampão – uma
opinião que, desde o primeiro teste nuclear da Coreia do Norte, em 2006,
supostamente avançou entre os líderes mais antigos da RPC [República Popular
da China]”.
É espantoso ver a posição chinesa descrita desse modo. Prevendo o colapso da
Coreia do Norte, o telegrama afirmava: “a RPC estaria confortável com uma
Coreia reunificada, controlada por Seul e ancorada nos Estados Unidos, numa
‘aliança benigna’ – desde que a Coreia não fosse hostil em relação à China”. Em
resumo, os chineses estavam fartos dos problemáticos vizinhos norte-coreanos.
Em abril de 2009, Pyongyang lançou um míssil de longo alcance que sobrevoou
parte do Japão antes de cair no oceano Pacífico, num ato de pura beligerância. O
vice-ministro das Relações Exteriores da China, He Yafei, não se deixou
impressionar – disse aos oficiais da embaixada americana que os norte-coreanos
estavam se comportando como “crianças mimadas” para chamar a atenção de
Washington. Isso era novidade.
Os telegramas também revelaram, de maneira preocupante para o futuro da
internet, que o Google fora forçado a se retirar da China continental por causa de
um acaso infeliz. Um membro veterano do Partido Comunista usou o mecanismo
de busca para pesquisar o próprio nome e não ficou satisfeito com o que
encontrou – diversos artigos que o criticavam pessoalmente. Consequentemente,
o Google foi forçado a deixar um link do mecanismo de busca em chinês para a
página Google.com não censurada, e – como se lia no telegrama – a “se afastar
de um mercado potencial de quatrocentos milhões de usuários de internet”.

No que se referia ao Reino Unido, os telegramas constituíam uma leitura


nitidamente desconfortável. Americanos cultos muitas vezes consideram a
família real britânica com um divertido desprezo, como um retorno à Ruritânia.
Rob Evans, do The Guardian, percebeu isso e rapidamente descobriu um perfil
que lançava uma incômoda luz sobre o príncipe Andrew, um dos filhos da
rainha. Andrew, que regularmente viajava o mundo como “representante
comercial especial”, à custa dos pagadores de impostos britânicos, era o tema de
um ácido telegrama enviado a Washington do distante Quirguistão. Descrito
como rude, apareceu gabando-se e rindo do suborno local, e – para o choque e o
deleite dos repórteres do The Guardian – altamente ofensivo em relação às
revelações de corrupção feitas pelo jornal. O embaixador norte-americano o
citou denunciando “os (malditos) repórteres, em especial os do National [sic]
Guardian, que enfiam o nariz em tudo e que (provavelmente) tornaram as coisas
mais difíceis para os homens de negócios britânicos fazerem negócios”.
Menos cômico era o tom adotado pelos americanos em relação a seus aliados
do Reino Unido, que desejavam uma “relação especial”. Enquanto havia
evidências por toda parte da intimidade e do intercâmbio de inteligência que
ocorria no mundo todo entre os dois países anglófonos, havia também sinais de
uma atitude condescendente. Os telegramas mostraram que a superpotência
norte-americana estava interessada, sobretudo, em suas próprias prioridades:
queria o uso irrestrito das bases militares britânicas; que políticos britânicos
enviassem tropas para suas guerras e ajudassem nas campanhas de sanções, em
particular contra o Irã; e que o Reino Unido comprasse armas e produtos
comerciais norte-americanos. Richard LeBaron, o encarregado de negócios
norte-americano na embaixada, em Londres, recomendou que os Estados Unidos
continuassem a satisfazer as fantasias britânicas de que a relação entre os dois
países era especial: “Embora seja tentador afirmar que manter o GSM [Governo
de Sua Majestade] confuso sobre sua atual posição conosco possa tornar Londres
mais disposta a responder favoravelmente quando pressionada por auxílio, a
longo prazo não é do interesse dos Estados Unidos que o público britânico
conclua que a relação está enfraquecendo, de nenhum dos lados. A promessa de
recursos britânicos – financeiros, militares, diplomáticos –, em apoio às
prioridades globais norte-americanas, continua sem paralelos”.
Nos telegramas vazados, era visível a relação desigual entre os dois parceiros.
Quando o ministro das Relações Exteriores britânico, David Miliband, tentou
impedir voos espiões secretos norte-americanos da base britânica em Chipre, foi
categoricamente posto em seu lugar. Do mesmo modo, quando a Grã-Bretanha
pensou em impedir bombas de fragmentação americanas em seu território em
Diego Garcia, os Estados Unidos imediatamente botaram um ponto final na
questão. A Grã-Bretanha chegou a se oferecer para declarar a área ao redor da
base americana em Diego Garcia uma reserva de vida marinha, para que os
habitantes saídos de lá não pudessem voltar. Entretanto, quando Gordon Brown,
na época primeiro-ministro britânico, implorou pessoalmente por compaixão
para Gary McKinnon, um jovem hacker britânico procurado para extradição, o
pedido foi ignorado de modo humilhante. A nova administração conservadora
britânica, liderada pelo ministro das Relações Exteriores William Hague, se
alinhou covardemente para prometer ao embaixador norte-americano um
“regime pró-Estados Unidos”.

Pesquisando nessa imensa base de dados de documentos diplomáticos, era


difícil não sair com uma opinião deprimente sobre a natureza humana. A
humanidade, em todo o mundo, parecia revelar-se uma espécie indigna e voraz.
Muitos líderes políticos mostravam ganância e corrupção notáveis. Um dos
exemplos mais chocantes foi o de Omar al-Bashir, presidente do Sudão. A
informação era de que ele desviara nove bilhões de dólares do país e guardara
grande parte do dinheiro em bancos londrinos. Uma conversa com o procurador
de justiça da Corte Penal Internacional mostrou que alguns dos fundos poderiam
estar guardados no Lloyds Bank, de Londres. O banco negou qualquer ligação
com o governante.
Uma história semelhante ocorreu no Afeganistão, um regime que – como a
Rússia – estava se transformando numa cleptocracia. Os telegramas mostram
temores de corrupção governamental desenfreada; os Estados Unidos
aparentemente não podiam fazer nada. Num incrível incidente em outubro de
2009, diplomatas norte-americanos alegaram que o então vice-presidente,
Ahmad Zia Massoud, fora barrado e interrogado em Dubai depois de voar para o
emirado com 52 milhões de dólares em dinheiro. Oficiais que tentavam
interromper a lavagem de dinheiro o interrogaram e o liberaram. (Massoud nega
que isso tenha ocorrido.)
Os Estados Unidos também estavam profundamente frustrados com Hamid
Karzai, presidente do Afeganistão. Eles o consideravam instável, sensível,
suscetível a acreditar em teorias conspiratórias – e ligado a militares criminosos.
Diplomatas americanos explicitaram sua convicção de que Ahmed Wali Karzai,
meio-irmão caçula do presidente e uma personalidade importante em Kandahar,
era corrupto.
Algumas das maiores empresas do mundo também se envolveram em práticas
duvidosas e golpes baixos, afirmavam os comunicados. O vice-presidente da
Shell para a África subsaariana gabava-se de que a gigante do petróleo
conseguira introduzir membros de sua equipe em todos os principais ministérios
do governo da Nigéria. A Shell estava tão bem posicionada que sabia dos planos
do governo para abrir concorrência para concessões de petróleo. A executiva da
Shell Ann Pickard disse ao embaixador norte-americano, Robin Renee Sanders,
que a Shell havia alocado funcionários em cada departamento do governo, assim
eles sabiam “tudo o que estava sendo feito nos ministérios”.
As revelações pareciam confirmar o que os veteranos há muito diziam: que
havia ligações cruzadas entre a gigante do petróleo e políticos, num país onde,
apesar dos bilhões de dólares de receita do petróleo, 70% das pessoas ainda
viviam abaixo da linha de pobreza.
A Pfizer, a maior empresa farmacêutica do mundo, também era citada em
despachos da África. De acordo com um telegrama vazado da embaixada norte-
americana em Abuja, capital da Nigéria, a Pfizer contratou investigadores para
descobrir evidências de corrupção contra o procurador-geral do país. A empresa
queria pressioná-lo a retirar os processos contra um controverso experimento
clínico que envolvia crianças com meningite. A Pfizer nega que houve delito e
afirma que solucionou um caso de 2009 levantado pelo governo da Nigéria e do
estado de Kano, onde o medicamento foi usado durante uma epidemia de
meningite.
O que esse padrão mundial de segredos diplomáticos significa? Alguns
comentadores o consideraram prova de que os Estados Unidos estavam lutando
para encontrar seu caminho no mundo, como uma superpotência entrando num
longo período de relativo declínio. Outros achavam que as revelações pelo
menos mostravam a burocracia do Departamento de Estado sob uma luz
relativamente positiva. No The Guardian, Timothy Garton Ash confessou que se
impressionara com o profissionalismo do corpo diplomático norte-americano –
um grupo comprometido e diligente. “Minha opinião sobre o Departamento de
Estado melhorou muito”, escreveu. “Na maioria das vezes [...] o que vejo aqui
são diplomatas fazendo seu trabalho direito: descobrindo o que está acontecendo
nos lugares para os quais foram designados, trabalhando para promover os
interesses nacionais e as políticas governamentais.”
Alguns líderes mundiais ignoraram as embaraçosas revelações – pelo menos
em público –, enquanto outros partiram para o ataque. O presidente do Irã,
Mahmoud Ahmadinejad, que ficou numa posição desfavorável com a revelação
de sua impopularidade regional, tachou o vazamento de dados do WikiLeaks de
“guerra psicológica”. Ele alegou que os Estados Unidos vazaram
deliberadamente os próprios arquivos num complô para desacreditá-lo. O
primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdog an, reagiu furiosamente aos
telegramas, que sugeriram que ele era um islamista enrustido corrupto. Mas, nos
países onde não há liberdade de imprensa – a Eritreia é um bom exemplo, mas
há muitos deles –, não houve reação alguma, apenas silêncio.
Os russos realizaram uma notável manobra. Primeiro, o presidente Medvedev
descartou os telegramas da Rússia como “indignos” de comentário. Mas, quando
ficou claro que, a longo prazo, o vazamento era muito mais prejudicial para os
Estados Unidos e seus interesses multilaterais, um dos auxiliares de Medvedev
propôs, ironicamente, que Julian Assange fosse indicado ao Prêmio Nobel da
Paz.
Na Austrália, o próprio Assange dominava a cobertura da imprensa. O The
Sydney Morning Herald o saudava como o “Ned Kelly da era da internet”, em
referência ao popular herói australiano fora da lei do século XIX. Entretanto, a
primeira-ministra australiana, Julia Gillard, agiu como o restante dos líderes
mundiais irritados: condenou a publicação como ilegal e as ações de Assange
como “brutalmente irresponsáveis”. Os telegramas revelaram uma visão nem um
pouco lisonjeira da classe política australiana. O ex-primeiro-ministro e atual
ministro das Relações Exteriores, Kevin Rudd, foi chamado de “controlador”
ofensivo e impulsivo, que liderara uma série de fiascos de política estrangeira.
Será que o Grande Vazamento dos telegramas estava mudando alguma coisa?
O ano estava terminando e ainda era muito cedo para dizê-lo. O efeito a curto
prazo certamente foi rápido em alguns casos, com diplomatas afastados e oficiais
andando na corda bamba. A Der Spiegel noticiou que uma “fonte segura” no
Partido Democrático Liberal vinha informando a embaixada norte-americana
sobre negociações secretas da coalizão imediatamente após o resultado das
eleições de 2009 na Alemanha. O misterioso homem foi rapidamente revelado
como sendo Helmut Metzner, chefe do gabinete do presidente do partido e vice-
chanceler Guido Westerwelle. Metzner perdeu o emprego.
Em janeiro de 2011, Washington foi forçado a retirar o embaixador Gene
Cretz da Líbia. O coronel Kadafi estava nitidamente magoado com os
comentários a respeito de sua enfermeira ucraniana de longo tempo – uma
“voluptuosa loura”, como dissera Cretz. Outra equipe diplomática norte-
americana também foi aconselhada a arrumar as malas e ir embora. Sylvia Reed
Curran, a encarregada de negócios em Asgabate, foi transferida depois de
escrever um perfil bastante crítico do presidente do Turcomenistão, Gurbanguly
Berdymukhamedov. Ela o descreveu como “vaidoso, desconfiado, cauteloso,
severo, muito conservador”, “controlador” e “experiente mentiroso”. E
acrescentou, de modo memorável: “Berdymukhamedov não gosta de pessoas
mais inteligentes que ele. E como ele não é muito inteligente – afirmou nossa
fonte –, desconfia de muita gente”.
O destino de Curran? Vladivostok, onde o sol raramente brilha.
Alguns outros desenvolvimentos foram positivos e sugeriam que a missão do
WikiLeaks de revelar segredos poderia ajudar a trazer resultados. Um telegrama
da embaixada norte-americana em Bangladesh mostrou que o governo britânico
estava treinando uma força paramilitar, condenada por organizações dos direitos
humanos como um “esquadrão da morte governamental” e considerada
responsável por centenas de assassinatos. Revelou-se que os britânicos estavam
treinando o “Batalhão de Ação Rápida” em técnicas de interrogatório e “leis de
combate”. Desde a divulgação dos telegramas, nenhuma morte foi anunciada.
Na Tunísia, o ditador do país, Zine El Abidine Ben Ali, bloqueou o site de um
jornal libanês que publicou telegramas sobre o regime. Os relatórios da
embaixada norte-americana em Túnis eram extremamente desfavoráveis e não
usavam eufemismos para descrever o estado decrépito do pequeno país do
Magreb, considerado amplamente um dos mais repressivos numa região
repressiva. “O problema é evidente”, escreveu o embaixador Robert Godec em
julho de 2009, num despacho secreto divulgado pelo jornal al-Akhbar, de
Beirute. “A Tunísia é governada há 22 anos pelo mesmo presidente. Ele não tem
sucessor. E, enquanto o presidente Ben Ali merece crédito por continuar muitas
das políticas progressistas do [antecessor], o presidente Bourguiba, ele e o
regime perderam contato com o povo da Tunísia. Eles não toleram conselhos ou
críticas, domésticas ou internacionais. Cada vez mais, dependem da polícia para
controlar e se concentram em preservar o poder.”
O telegrama continuava: “A corrupção dentro do país está crescendo. Os
tunisianos estão intensamente conscientes dela, e o coro de reclamações vem
aumentando. Eles detestam – chegam mesmo a odiar – a primeira-dama Leila
Trabelsi e sua família. Em particular, os oponentes do regime a ridicularizam, e
até os mais próximos do governo mostram preocupação com seu
comportamento. Enquanto isso, cresce a revolta na Tunísia, pelo elevado nível
de desemprego e pelas desigualdades regionais. Consequentemente, os riscos à
estabilidade do regime, a longo prazo, estão aumentando”.
Os comentários do embaixador eram visionários. Um mês depois da
publicação dos telegramas, a Tunísia estava próxima do que alguns chamaram de
a primeira revolução do WikiLeaks.
Notas

* “Conservadores”. (N. da T.)


* Escritor inglês cujos romances eram uma crônica detalhada da aristocracia inglesa. (N. do E.)
* “Combatentes sagrados”, em árabe. (N. da T.)
17
A balada da prisão de Wandsworth
Corte de Magistrados de Westminster, Horseferry Road, Londres
7 DE DEZEMBRO DE 2010

“Eu caminhava, com outras almas em sofrimento.”

– OSCAR WILDE, BALADA DO CÁRCERE DE READING

SE ALIENÍGENAS ATERRISSASSEM sua nave espacial do lado de fora do edifício,


poderiam muito bem supor que um dos santos de Deus estava prestes a ascender.
Para muitos, Julian Assange acabara de se transformar no são Sebastião da era
da internet, um mártir perfurado pelas muitas flechas dos incrédulos. Uma fileira
de cameramen amontoava-se nos portões da Corte de Magistrados de
Westminster. Na calçada, uma poliglota multidão de jornalistas esperava
impacientemente para entrar. Alguns repórteres tentavam se infiltrar,
aglomerando-se em torno da entrada do andar térreo.
Na noite anterior, os promotores suecos haviam decidido expedir um mandado
de prisão para Assange, relacionado à investigação, ainda não solucionada, das
acusações de que ele havia assediado duas mulheres em Estocolmo. Ele estava
na lista de procurados da Interpol – procurado, segundo a advertência da Lista
Vermelha, por “crimes sexuais”. Naquela noite, sentado no ambiente em estilo
georgiano de Ellingham Hall e vendo suas opções rapidamente se reduzirem,
Assange concluíra que teria de se entregar. Mal conseguira dormir nos últimos
dias – estava sob o cerco dos veículos de comunicação, e o caminho a seguir
deve ter lhe parecido árduo e complicado. Segundo colaboradores do WikiLeaks,
depois de tomar a decisão de ir à polícia, Assange finalmente conseguiu dormir.
Logo cedo, foi de carro até Londres. Lá, às 9h30 da manhã, encontrou-se com
oficiais da unidade de extradição da polícia metropolitana. O encontro fora
arranjado com antecedência. Assange estava acompanhado de Mark Stephens e
Jennifer Robinson, seus advogados. Os oficiais imediatamente o prenderam –
estavam agindo em nome das autoridades suecas, que haviam expedido um
mandado de prisão europeu, válido na Grã-Bretanha, o qual acusava Assange
por uma alegação de coerção ilegal, duas alegações de assédio sexual e uma
alegação de estupro, todas supostamente cometidas em agosto de 2010. A Corte
de Magistrados de Westminster decidiria, naquela tarde, se lhe concederia fiança.
A notícia de sua prisão estimulou alguma comemoração em Washington, que
encontrara pouca coisa para celebrar nos últimos dias, pois o conteúdo das
mensagens diplomáticas privadas havia sido divulgado no mundo inteiro. “Isso
soa como uma boa notícia para mim”, afirmou o secretário de Defesa norte-
americano, Robert Gates, no Afeganistão, com um largo sorriso no rosto.
Às 12h47, Assange entrou no tribunal pela porta dos fundos. Stephens disse
aos veículos de comunicação que o aguardavam que seu cliente estava “bem”.
Ele tivera um encontro bem-sucedido com a polícia. “O encontro foi muito
cordial. Os policiais confirmaram a identidade de Assange, e estamos prontos
para ir ao tribunal.” Mas o restante dos procedimentos da tarde não saiu como
planejado. Numa sala de audiência bege, no andar de cima, o juiz Howard
Riddle perguntou a Assange se ele concordava com a extradição para a Suécia e
se estava pronto para responder às acusações referentes a seu mandado de prisão.
“Eu entendo, mas não concordo”, respondeu Assange. O juiz então perguntou
seu endereço. A resposta foi: “Caixa postal 4080”.
Era o tipo de resposta aparentemente irreverente que se esperaria de um
nômade global. Afinal de contas, Assange era um homem cheio de mistérios,
que mudava constantemente de país, carregando apenas algumas mochilas com
equipamentos de informática e uma camiseta levemente fedida. Como seus
amigos sabiam muito bem, localizar Assange era excepcionalmente difícil. Mas,
na verdade, a resposta pode não ter sido tão irreverente quanto pareceu. Ele não
sabia o que esperar na sala de audiência e estava nervoso por ter que revelar
publicamente seu paradeiro, pois temia inimigos. Deveria ter sido aconselhado a
pedir para escrever seu endereço atual num pedaço de papel, o que teria sido
perfeitamente normal.
Aparentemente, a resposta divertiu a plateia, mas desagradou o tribunal.
Riddle esclareceu que não estava ali para julgar a batalha maniqueísta de
Assange contra o Pentágono ou outras forças obscuras. “Este caso não envolve o
WikiLeaks.” Depois de ouvir um breve resumo dos fatos ocorridos na Suécia, o
juiz concluiu que os vínculos sociais de Assange no Reino Unido eram fracos. A
promotoria também alegou – sem razão, como foi demonstrado posteriormente –
que não estava claro como Assange entrara na Grã-Bretanha. Riddle concluiu
que havia risco de que Assange não se apresentasse para a audiência de
extradição – ou, em linguagem coloquial, de que ele fugisse. E recusou a fiança.
A decisão, pronunciada às 15h30, foi um golpe inesperado. Assange estava
confiante de que estaria livre para sair do tribunal. Ele nem sequer havia levado
uma escova de dentes. Não haveria nenhuma entrevista coletiva triunfante; em
vez disso, Assange foi conduzido numa viatura para a prisão de Wandsworth,
seu novo lar. O sombrio conjunto de prédios cinzentos, em estilo vitoriano,
poderia ter saído das páginas de Charles Dickens – e seria um excelente cenário
para o que certamente se tornaria a cine-biografia de Assange. A história de sua
vida já tinha a trajetória de um thriller. Mas agora havia uma mudança de rumo,
com uma sequência mostrando o sofrimento e o martírio do protagonista. Nelson
Mandela, Oscar Wilde, Alexander Soljenítsin (o herói de Assange), todos
haviam passado um tempo na prisão e usaram o confinamento para meditar e
refletir sobre a natureza transitória da existência humana e, no caso de
Soljenítsin, sobre as brutalidades do poder soviético. Agora era a vez de Assange
ser encarcerado, segundo a opinião de alguns, num úmido gulag britânico.
A situação de Assange atraiu um grupo de glamourosos assangistas de
esquerda, muitos inicialmente reunidos pelos advogados para oferecer garantias
para a fiança. Entre eles estavam John Pilger, militante e jornalista australiano,
que vive no Reino Unido; o cineasta britânico Ken Loach; e Bianca Jagger (ex-
mulher de Mick Jagger), ex-modelo e ativista dos direitos humanos. Também
estava presente Jemima Goldsmith, descrita, de modo geral, como socialite. A
respeito dessa denominação, ela tuitou, indignada: “’Socialite’ é um insulto a
qualquer pessoa que se preze”. Dos Estados Unidos, o documentarista de
esquerda Michael Moore comprometera-se a contribuir com vinte mil dólares
para a fiança, enquanto encorajava os observadores a “não serem ingênuos sobre
o modo como o governo age quando decide ir à caça”. Outro simpatizante que
iria às audiências posteriores no tribunal era Gavin MacFadyen, ex-produtor de
tevê da Agência de Jornalismo Investigativo da Universidade da Cidade, que,
durante o verão, oferecera hospedagem a Assange em sua residência em
Londres. Alguns conheciam o australiano pessoalmente; outros, não. Alguns
pareciam convencidos de que o processo não tinha ligação com o que ocorrera
num quarto sueco. Em vez disso, achavam que aquela era uma tentativa de
prendê-lo pelo crime “real”: divulgar documentos secretos que humilhavam os
Estados Unidos.
Para alguns radicais, Assange tinha um charme extraordinário: ele era
corajoso, intransigente e perigoso. Será que Pilger e Loach viam em Assange os
fantasmas de sua própria juventude revolucionária? Os alvos do australiano eram
os mesmos contra os quais os radicais dos anos 60 haviam combatido: em
primeiro lugar, o imperialismo norte-americano, na época no Vietnã, mas agora
no Afeganistão e no Iraque. Também havia outros abusos secretos revelados por
Assange: a crueldade das Forças Armadas norte-americanas e o amplo uso de
tortura. Mas o processo em Horseferry Road tinha, estritamente falando, pouco a
ver com isso.
Muitas das emissoras do lado de fora do tribunal também estavam confusas
com o aparecimento espontâneo de tantas celebridades. Quando o grisalho
Loach saiu da corte, repórteres da CNN, em transmissão ao vivo, não tinham
ideia de quem ele era. “Quem é esse senhor? Pode ser o advogado de Julian
Assange; vamos tentar descobrir”, disse o desconcertado âncora da CNN. A
presença de Jemima Goldsmith era ainda mais estranha. Ela admitiu que não
conhecia Assange, mas estava lhe oferecendo ajuda porque era uma defensora da
liberdade de imprensa. Essa causa não fora do agrado de seu falecido pai, James
Goldsmith, um excêntrico bilionário de direita com uma queda por ameaças de
processos por difamação.
Para alguns dos defensores de Assange, a série de ações de extradição e fiança
iniciadas pela Suécia parecia evidência da conspiração norte-americana. Seu
advogado, Mark Stephens, insinuou isso, mais tarde, nos degraus do tribunal.
Comparando a procuradora sueca Marianne Ny ao ogro soviético homicida
Lavrenti Béria,* Stephens descartou as acusações sexuais como “realmente
muito tênues”. Posteriormente, afirmou que Assange estava sendo preso na
mesma cela que, no século XIX, fora ocupada pelo dramaturgo Oscar Wilde,
vítima de sua sexualidade. Mais tarde, o homossexual Wilde foi enviado a uma
segunda prisão, onde escreveu a famosa Balada do cárcere de Reading. Stephens
disse que muitas pessoas acreditavam que as acusações contra Assange tinham
motivação política. Ele também fez referência a uma “armadilha sexual”,
sugerindo que Assange fora vítima de uma armação. O próprio Assange
censurou o que chamou de constelação invisível de interesses – pessoais,
domésticos e estrangeiros –, os quais ele sentia que estavam conduzindo o caso.
A recusa do juiz em conceder fiança provocou um turbilhão de revolta online
mais ou menos desinformada.
Aos olhos dos críticos, a equipe de Assange estava armando uma estratégia de
relações públicas. O efeito era desviar a atenção da batalha de Assange para
fazer com que os governos prestassem contas (o que era uma coisa boa) com as
acusações de comportamento sexual impróprio (o que era um assunto
completamente separado para os tribunais). Durante os meses seguintes, essas
duas questões sem ligação – o princípio universal da liberdade de expressão e a
batalha pessoal de Assange para evitar a extradição para a Suécia – se
confundiriam. Essa confusão pode ter servido aos interesses de Assange. Mas
falar de armadilhas sexuais tinha um aspecto sórdido: abastecia uma campanha
global de difamação contra as duas suecas que o acusavam – e que tiveram sua
identidade rapidamente conhecida em todo o mundo.

Em Wandsworth, Assange fez o melhor para se ajustar à nova vida de


presidiário. Ele ficou preso durante uma semana. Para um homem que passava
dezesseis horas por dia em frente ao laptop, o eco dos corredores subterrâneos e
das celas vitorianas deve ter sido uma experiência desesperadora. A equipe
jurídica foi embora esperando conceber uma linha de ataque mais bem-sucedida.
A tarefa era libertar Assange da prisão o mais rápido possível, certamente antes
do Natal.
A fama de Assange alcançara o que parecia proporções galácticas na segunda
vez em que compareceu ao tribunal, em 14 de dezembro, quando um membro
independente da elite britânica finalmente foi em seu socorro. A multidão do
lado de fora da Corte de Westminster era ainda maior, e os primeiros repórteres
montaram seus equipamentos de madrugada. Obter um passe para a audiência
era um pouco como pôr as mãos em um dos bilhetes dourados de Willy Wonka.
O tradicional humor e a solidariedade tribal entre os jornalistas deram lugar a um
nítido empurra-empurra. O tribunal estava lotado quando Assange – ladeado por
dois guardas da empresa privada Serco – foi escoltado para o banco dos réus,
com um painel de vidro na frente. Ele fez sinal de positivo, erguendo o polegar,
para Kristinn Hrafnsson, seu leal colaborador. Mas, durante a audiência,
permaneceu sentado, em silêncio.
Gemma Lindfield, representando as autoridades suecas, estabeleceu
novamente as acusações. E concluiu: “Ele [Assange] continua em risco
significativo de fuga”. Então foi a vez do conselheiro da rainha Geoffrey
Robertson, conhecido advogado australiano dos direitos humanos recém-
contratado por Assange. De pé para se dirigir ao juiz, Robertson começou a falar
de modo sedutor. Num tom de voz melodioso, descreveu o fundador do
WikiLeaks como um “filósofo e orador da liberdade de expressão”. A ideia de
que ele tentaria fugir era ridícula, afirmou. Robertson anunciou que Vaughan
Smith, do Frontline Club, o anfitrião do antigo refúgio secreto de Assange
durante o mês de novembro, estava disposto a responsabilizar-se por seu bom
comportamento. O “capitão Smith”, como Robertson triunfantemente o
descreveu, estava preparado para abrigar Assange novamente em Ellingham
Hall, em Norfolk, se o juiz concordasse em conceder a fiança.
A saga da prisão do fundador do WikiLeaks até então não produzira nenhuma
piada. Mas Robertson tinha uma pronta. Não seria tanto uma “prisão domiciliar,
mas uma prisão em mansão”, brincou. E não apenas isso, mas era inconcebível
que Assange tentasse fugir, “porque a noite começa muito cedo naquela região
da Grã-Bretanha”. Ademais, o réu estava disposto a entregar o passaporte
australiano e usar uma tornozeleira eletrônica. Por fim, provavelmente não
conseguiria ir muito longe, porque sua “exposição à mídia” o tornara “muito
conhecido em todo o mundo”.
Robertson convidou Smith a fazer sua avaliação do controverso fundador do
WikiLeaks. “Ele é uma pessoa honrada, tremendamente corajosa, altruísta e
cordial. Não são coisas sobre as quais se lê”, afirmou, com sinceridade, o capitão
Smith.
Depois de estabelecer que Smith era ex-oficial dos Granadeiros e ex-capitão
de artilharia do Exército britânico, o conselheiro da rainha pediu detalhes de sua
propriedade familiar. Parecia que esse era o argumento final. “Ela tem dez
quartos e sessenta acres.” Melhor ainda, havia até uma delegacia de polícia lá
perto: “De bicicleta, vou até lá em quinze minutos [...] cerca de um quilômetro e
meio de casa. Talvez um pouco mais”. Smith acrescentou, para ajudar: “É um
lugar onde ele estaria cercado. Temos empregados. Meus pais moram próximos
também. Meu pai foi mensageiro da rainha e coronel dos Granadeiros. Ele
patrulha a propriedade”. Smith acrescentou que sua governanta também poderia
manter o australiano sob sua vista. “Meus funcionários me manterão informado,
senhor.”
Se o juiz tinha instinto de classe, dificilmente haveria um apelo mais
apropriado. A essa altura, a promotoria também admitira que Assange havia
chegado legitimamente à Grã-Bretanha, vindo da Suécia, em 27 de setembro. Do
lado de fora da sala lotada, os defensores famosos reuniam-se no segundo andar,
próximos a uma máquina de café. Pilger, Goldsmith e Loach estavam lá
novamente – Bianca Jagger conseguira um lugar na sala de audiência. Depois,
Jagger comentou com amigos que as fãs também haviam sido um problema para
o ex-marido famoso: “Era muito pior com Mick. Quando você é conhecido
mundialmente, as mulheres se jogam em cima de você”, ponderou. Apesar da
demonstração de apoio, a presença das celebridades era muito menos importante
que o dinheiro delas. Todos ofereceram garantias de vinte mil libras esterlinas.
Dentro da sala de audiência, Robertson passou a descrever uma imagem do
período de Assange na prisão. As condições em Wandsworth eram um
verdadeiro inferno: “Ele não pode ler outro jornal que não seja o Daily Express!
Esse é o tipo de situação vitoriana em que ele se encontra”. E continuou: “A
revista Time enviou um exemplar com a foto dele na capa, mas tudo que lhe
permitiram ter foi o envelope!”
O juiz anunciou que a fiança seria “concedida sob certas condições”, que se
mostraram relativamente onerosas: tornozeleira eletrônica, toque de recolher à
tarde e à noite e a exigência de comparecer a delegacia de polícia de Bungay,
próximo a Ellingham, entre seis da tarde e oito da noite, diariamente. Ah, e
duzentas mil libras em espécie. Os advogados de Assange perguntaram se o
tribunal aceitaria cheques. Não – a soma deveria ser paga em dinheiro.
A notícia da fiança de Assange – comunicada via Twitter, é claro – fez com
que 150 pessoas, reunidas do outro lado do tribunal, aclamassem seu herói e
agitassem bandeiras e cartazes para o mundo. Em um deles, podia-se ler:
“Crimes sexuais uma ova!” Em outro: “É exatamente disso que precisamos –
outro inocente na cadeia”. E um terceiro: “Suécia: fantoche dos EUA”. Três
jovens ativistas estavam tão emocionados que começaram um coro improvisado
de We Wish You a Leaky Christmas.
A comemoração foi prematura. Lindfield e a Promotoria da Coroa
previsivelmente recorreram da decisão do juiz no Supremo Tribunal, deixando
Assange ainda temporariamente na prisão. Mas, no banco dos réus, ele parecia
bem-humorado. Quando os guardas o levaram, tentou fazer um sinal de positivo,
erguendo o polegar para uma repórter de tevê turca de cabelos escuros. Ela se
gabou: “Fiz uma entrevista exclusiva com ele há um mês”.
Dois dias depois, em 16 de dezembro, todos se reuniram novamente no
Tribunal Real de Justiça, em Strand, para a terceira audiência de Assange. Do
lado de fora do tribunal, vários jornalistas aguardavam numa fila mais
organizada que antes, tomando café e folheando os jornais matutinos. Entre eles,
estava um grupo de repórteres australiano que, em tom de voz nasalado,
lamentava a derrota da seleção do país, durante a noite, nas mãos da Inglaterra
no torneio The Ashes.* Mas as chances de Assange pareciam melhores. Às
11h30 da manhã, o juiz Ouseley caminhou até a sala de audiência, decorada com
livros jurídicos encadernados em couro e um solene acabamento de madeira em
estilo gótico.
Sua primeira preocupação não era Assange, mas o quarto poder – mais
especificamente, os jornalistas internacionais sentados nos abarrotados bancos
de madeira diante dele. Muitos já estavam usando furtivamente o BlackBerry. E
comentavam sobre a audiência, ao vivo, para todo o mundo. O juiz havia
deixado claro que eles não poderiam tuitar no tribunal – apesar de isso ter sido
permitido por Howard Riddle, dois dias antes, na audição anterior de Assange. O
Twitter estava proibido, segundo as palavras do juiz. Imediatamente, vários
jornalistas tuitaram a decisão. Provavelmente, foi o ato de desacato ao tribunal
mais rápido na história da justiça.
Lindfield repetiu as acusações, advertindo que, se Assange fosse libertado sob
fiança, talvez não saísse do país, mas simplesmente desaparecesse no Reino
Unido. O juiz não se mostrou convencido. Ele parecia aceitar a alegação de que
o promotor de Estocolmo originalmente decidira que não havia nenhum caso a
responder, antes de o segundo promotor concordar em continuar com as
acusações. “O histórico do modo como isso foi tratado pelo promotor sueco
daria ao sr. Assange alguma base para que ele fosse absolvido após o
julgamento.” Para Assange, sentado no banco dos réus, atrás de barras
decoradas, isso foi muito encorajador.
Robertson levantou-se novamente. Perto dele, estavam muitos dos defensores
de Assange: Smith, Loach, Pilger e a marquesa de Worcester, ex-atriz que se
transformara em ecoativista. Na terceira fila, estava sentada a mãe de Assange,
com os cabelos frisados, vinda da Austrália. Robertson declarou ser mera
especulação que Assange tentaria fugir ou que defensores ricos o tirariam da
Grã-Bretanha. “Foi realmente sugerido que o sr. Michael Moore vai passar pela
alfândega usando um boné de beisebol, ir até Norfolk no meio da noite e levar
este cavalheiro para um lugar qualquer?”
Era ridículo descrever Assange como “uma espécie de Houdini”. Mesmo que
ele tentasse sair de Ellingham Hall, não iria longe, com os “guarda-caças
procurando por ele e pelo sr. Smith”. Robertson alegou que Assange cooperara
com os investigadores suecos. Ele também definiu três categorias de estupro, de
acordo com a legislação sueca: estupro grave, de quatro a dez anos de prisão;
estupro comum, de dois a seis anos; e estupro menos grave, no máximo quatro
anos. Assange fora acusado de estupro menos grave, afirmou. Se fosse
condenado, provavelmente pegaria de “oito a doze meses, com dois terços da
pena cumpridos em liberdade condicional por bom comportamento”.
O juiz declarou que se preocupava com o fato de que alguns dos defensores de
Assange pudessem pensar que escondê-lo era uma “resposta legítima” às
dificuldades: “Estou preocupado com até que ponto o apoio [a Assange] se
baseia no apoio ao WikiLeaks”. Mas, pouco antes do almoço, o juiz Ouseley
decidiu que Assange poderia retornar a Ellingham Hall. Ele confirmou a decisão
da Corte de Magistrados de Westminster de conceder a fiança. Mas também o
advertiu de que ele provavelmente seria enviado à Suécia no fim da audiência de
extradição, marcada para 7 e 8 de fevereiro de 2011.*
O juiz impôs rigorosas condições. (Surgiu a notícia de que a delegacia de
polícia mais próxima à propriedade de Smith, na cidade de Bungay, fechara
permanentemente. Assim, Assange teria de comparecer a Beccles, onde a
delegacia abria apenas à tarde – e permaneceria fechada durante todo o Natal e o
Ano Novo.) As condições da fiança eram um depósito de duzentas mil libras
esterlinas em espécie, mais quarenta mil em dois depósitos.
Durante as horas seguintes, iniciou-se uma corrida para encontrar fiadores que
cedessem o dinheiro, sem o qual Assange passaria mais uma noite em
Wandsworth. A equipe jurídica propôs cinco novos fiadores: o ilustre jornalista
investigativo aposentado, autor de The First Casualty [A primeira baixa], Sir
Phillip Knightley; o milionário editor de revistas Felix Dennis; o vencedor do
Prêmio Nobel Sir John Sulston; o ex-ministro do Trabalho e presidente da
editora Faber & Faber, Lord Matthew Evans; e a professora universitária
aposentada Patricia David.
A equipe do WikiLeaks saiu do tribunal britânico, de arquitetura gótica, com
ótimo humor. Vaughan Smith prometeu a Assange um jantar rústico de cozido e
bolinhos de carne, e disse que não havia chance de ele escapar da propriedade de
Norfolk: “Ele não é bom em ler mapas. Não tem boa orientação espacial. Se
correr para o bosque, eu o encontrarei”. Kristinn Hrafnsson, colaborador de
Assange, também comemorou a libertação: “Estou contente com a decisão. Será
ótimo ter Julian de volta”. Mas, entre os defensores do australiano, foi Pilger
quem manifestou a maior preocupação de todas: que os Estados Unidos o
acusassem de espionagem. Pilger – que fora rejeitado pelo juiz como fiador
porque era “outro australiano peripatético” – saudou a concessão da fiança como
“um vislumbre de justiça britânica”. Mas, continuou, “acho que não deveríamos
olhar tanto para a extradição para a Suécia, e sim para os Estados Unidos. Isso é
o que ainda não foi dito neste caso. O fantasma que todos conhecemos é que ele
pode terminar em alguma prisão de segurança máxima nos Estados Unidos. É
uma possibilidade real”.
Pouco antes do encerramento do expediente, as condições da fiança foram
satisfeitas. Às 17h48, Assange surgiu nos degraus do Supremo Tribunal para os
flashes das câmeras de tevê e dos fotógrafos, segurando os papéis da fiança, com
o braço direito erguido em triunfo. Ouviram-se gritos e saudações de seus
defensores. Ele ficou preso por apenas nove dias. Mas o clima era como se
tivesse feito uma longa caminhada até a liberdade, assim como Nelson Mandela.
Dirigindo-se à multidão, declarou:
É muito bom sentir [o] ar fresco de Londres novamente... Em primeiro lugar, alguns agradecimentos.
A todas as pessoas, no mundo inteiro, que acreditaram em mim e apoiaram minha equipe enquanto
estive afastado. Aos meus advogados, que empreenderam uma luta corajosa e, em última análise,
bem-sucedida, aos nossos fiadores e às pessoas que deram dinheiro diante de grande dificuldade e
aversão. Aos membros da imprensa, porque nem todos foram enganados e decidiram analisar mais
profundamente seu trabalho. E, finalmente, ao sistema judiciário britânico, porque, se a justiça não é
sempre o resultado, pelo menos o sistema ainda não está morto.
Durante o tempo em que estive em confinamento solitário, no fundo de uma prisão vitoriana, tive
tempo de refletir sobre as condições das pessoas em todo o mundo que também estão em
confinamento solitário, que também estão sob prisão preventiva, em condições mais difíceis do que
as que enfrentei. Essas pessoas precisam de sua atenção e apoio. E, com isso, espero continuar meu
trabalho e continuar a alegar inocência nesta questão, e revelar, assim que as obtivermos, o que não
conseguimos ainda, as evidências dessas acusações. Obrigado.

Foi um discurso estranho, executado em frases curiosamente reiteradas e


numa sintaxe singular. Mas, como texto de dramaturgia televisiva, era perfeito –
com Assange se identificando com a liberdade e a justiça, ao mesmo tempo em
que manifestava preocupação virtuosa pelos semelhantes. Os advogados estavam
a seu lado – Robertson, Robinson e Stephens – e pareciam tentar irradiar, ao
mesmo tempo, solenidade e contentamento. No fim das contas, a decisão do
tribunal não deveria mudar muita coisa: Assange ainda teria de enfrentar seus
acusadores na Suécia, e a chance de extradição para os Estados Unidos se
aproximava como um fantasma obscuro. Mas, no momento, Assange e o
WikiLeaks estavam de volta.
Ele saiu do tribunal no antigo Land Rover blindado de Smith, anteriormente
dirigido por este durante o trajeto de volta da Bósnia e normalmente estacionado
– algumas vezes com um pneu furado – em frente ao Frontline Club. Com a neve
começando a cair, o oficial da Guarda e o subversivo da internet partiram juntos
para a última fase de sua grande aventura. Smith já estivera nos Bálcãs, no
Iraque e nas montanhas do Afeganistão central, onde as temperaturas caíam
abaixo de zero durante a noite. Mas isso era algo novo, que também tinha
ingredientes em comum com guerras e reportagens de guerra. Havia um clima de
muita adrenalina, uma sensação de viver o momento. Mas, acima de tudo, havia
um clima de incerteza no ar, pois ninguém sabia muito bem o que iria acontecer.
Notas

* Lavrenti Pavlovich Béria, líder do NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), a polícia
secreta do Partido Comunista, foi um dos homens mais temidos da União Soviética no período Stálin. (N.
da T.)
* Torneio de críquete, disputado por Austrália e Inglaterra. (N. da T.)
* Uma nova audiência foi marcada para o dia 24 de fevereiro pelo juiz Howard Riddle. (N. do E.)
18
O futuro do WikiLeaks
Ellingham Hall, Norfolk, Inglaterra
NATAL DE 2010

“Julian é um showman espetacular para os jovens da era


da internet, que estão insatisfeitos com os mais velhos.”

J
– OHN YOUNG, CRYPTOME.ORG, 15 DE JULHO DE 2010

SENTADO NA COZINHA DA casa de campo provisória com Ian Katz e Luke


Harding, do The Guardian, Assange contemplou o futuro incerto do WikiLeaks.
Ele parecia melhor – ainda um pouco exausto depois da breve provação na
prisão de Wandsworth, porém sereno e bem-disposto. Era uma agradável cena
inglesa: queijo Stilton e bolo de frutas sobre a mesa; duas cozinheiras
preparando a carne que seria servida no jantar; o pai do anfitrião, Vaughan
Smith, dando por terminada a ronda na região, com seu rifle e seu chapéu de
caçador; e sacos repletos de cartões de Natal e cartas de fãs para Assange, que
pousavam diariamente no console da lareira.
Mas a ansiedade persistia. Na noite anterior, outro arrogante comentarista da
Fox News pedira a cabeça de Assange. “Na verdade, é muito perigoso. Eles
sabem onde estou e quando”, ele disse, lançando, da janela, um olhar para a
propriedade. Pensando a respeito de sua vida numa prisão nos Estados Unidos,
se eles tentassem extraditá-lo, admitiu: “É bem possível que eu fosse assassinado
numa prisão norte-americana, ao estilo de Jack Ruby, graças aos veteranos e
influentes políticos dos Estados Unidos que querem me ver morto”.
Mesmo nos momentos de melancolia, Assange não resistia a pintar a si
mesmo numa tela de importância histórica – em 1963, Jack Ruby matou Lee
Harvey Oswald, dias depois de Oswald ter sido preso pelo assassinato do
presidente John F. Kennedy. Na época, muitas pessoas pensaram que Oswald
teve de ser silenciado porque sabia demais.
O advogado de Assange, Geoffrey Robertson, era ainda mais radical em suas
previsões. Ele falou no tribunal britânico: “Há um risco real [...] de que ele seja
detido na baía de Guantánamo [...]. Há um risco real de que ele possa ser
condenado à pena de morte”.
No Natal, havia, de fato, razões para suspeitar que o fenômeno WikiLeaks
talvez estivesse no fim. Fora um breve cometa que riscara o céu em 2010, graças
a um ato extraordinariamente audacioso de um jovem soldado, mas que agora
parecia se extinguir? O suposto informante do tsunami de documentos, Bradley
Manning, só podia esperar pela corte marcial na primavera, seguida, sem dúvida,
de muitos anos difíceis numa cela norte-americana. Enquanto isso, qualquer um
que digitasse o URL “wikileaks.org” recebia a mensagem de que a operação não
estava em funcionamento: “No momento, o WikiLeaks não está aceitando novos
envios”.
Havia incertezas financeiras também. A Fundação Wau Holland, sediada na
Alemanha – o principal braço financeiro do WikiLeaks –, pela primeira vez
divulgou dados sobre a receita proveniente de doações, no fim do ano. Os dados
mostraram que Assange estava tentando deixar a equipe numa situação mais
regular, com salários para funcionários-chave que somavam cem mil euros por
ano, incluindo 66 mil euros anuais para ele. Outros 380 mil euros iam para as
despesas, incluindo equipamentos e viagens. Graças à publicidade global gerada
pela parceria com os jornais, o WikiLeaks recebeu a impressionante soma de um
milhão de euros em doações no ano de 2010. Mas uma análise cuidadosa
mostrou que elas haviam diminuído significativamente no segundo semestre –
até agosto, o site arrecadara cerca de 765 mil euros, o que significa que, no
restante do ano, coletou apenas cerca de 235 mil euros.
Assange acusou a “interferência política” dos Estados Unidos, que fizera com
que corporações como Visa e MasterCard bloqueassem doações para o
WikiLeaks, de dar um golpe na organização. De acordo com ele, tratava-se de
“censura econômica fora do sistema judiciário”. Segundo seus cálculos, cortar
essas conexões financeiras custou ao WikiLeaks meio milhão de euros em
doações – um fundo de guerra que poderia ter financiado as operações do site
por mais seis meses. Assange acrescentou que o próprio fundo destinado à sua
defesa fora “totalmente paralisado”. “Não temos dinheiro suficiente para pagar
as despesas legais”, afirmou. Nesse momento, os custos legais estimados do
WikiLeaks chegavam a duzentas mil libras esterlinas, e suas despesas legais
pessoais somavam outras duzentas mil. Só a tradução do processo, do sueco para
o inglês, lhe custou dezesseis mil libras, segundo ele.
As dificuldades legais com o caso de assédio sexual na Suécia representavam
outro entrave ao futuro do WikiLeaks. O nômade Assange agora estava
paralisado. Em virtude das condições da fiança, estava quase literalmente
acorrentado a Ellingham Hall, sendo obrigado a usar uma tornozeleira eletrônica
mesmo durante o banho. Ele odiava aquilo, a que chamou, numa entrevista à
revista Paris Match, de “emasculador” e “cinto de castidade”. Também tinha de
comparecer todos os dias à delegacia de polícia local. O futuro guardava a
possibilidade de uma cansativa disputa legal para evitar sua extradição para a
Suécia e, talvez, uma sombra duradoura sobre sua reputação, visto que ele não
queria enfrentar quem o acusava.
Com outra audiência no tribunal marcada para o ano vindouro, Assange ainda
estava enfurecido com a má publicidade e ressentido com o que caracterizou
como uma armação para acabar com ele, quando se encontrou com os dois
jornalistas do The Guardian. O relatório do promotor sueco, que continha
declarações das testemunhas sobre seus encontros com as duas mulheres, vazara.
O dossiê não apoiava a ideia de uma “armadilha sexual da CIA”. Nick Davies,
do The Guardian, publicara um artigo em dezembro expondo todos os detalhes –
para o desgosto de Assange e o pesar de seus célebres defensores.
John Humphrys, o veterano âncora do programa Today, da BBC Radio 4 – o
qual exerce grande influência sobre a opinião pública –, perguntou a Assange se
ele era um “predador sexual”. Ele respondeu: “É claro que não”. Humphrys
tentou ir além: “Com quantas mulheres você já dormiu?” Assange, meio
intimidado, respondeu: “Isso um cavalheiro não conta!”
Ele descreveu o encontro com Humphrys como “terrível”, mais uma prova de
sua insistência maniqueísta de que havia apenas dois tipos de jornalistas – os
“honestos” e os “desonestos”.
Talvez de modo ameaçador para o futuro da criação de Assange, também
parecia haver um risco de que o WikiLeaks perdesse o monopólio dos
cibervazamentos, graças ao surgimento de uma multidão de imitadores. Na
Alemanha, em dezembro de 2010, o ex-número 2 do WikiLeaks, Daniel
Domscheit-Berg, lançou o OpenLeaks, uma plataforma rival. Domscheit-Berg
havia se desentendido com Assange, acusando-o de comportamento autoritário.
O controle pessoal da organização por parte de Assange criara “gargalos”
técnicos, ele afirmava, com dados que não eram corretamente analisados ou
publicados. Em sua apresentação em Berlim, no mês de dezembro, Domscheit-
Berg prometeu que o OpenLeaks seria mais transparente e democrático. E se
ofereceu para trabalhar sistematicamente com os grandes veículos de
comunicação, com um objetivo relativamente modesto e lógico para sua
“organização transparente”. Dessa perspectiva, o OpenLeaks.org poderia limitar
as atividades técnicas à “limpeza” dos vazamentos, para que eles pudessem ser
enviados online de modo seguro e anônimo. Uma vez realizada essa tarefa, as
informações seriam enviadas a jornais e emissoras de rádio e tevê, que então
fariam aquilo que os veículos de comunicação sabem fazer, isto é, produzir
recursos, análise e contexto. E, finalmente, os vazamentos seriam publicados.
Domscheit-Berg argumentou que era razoável que os grandes veículos de
comunicação publicassem o material vazado primeiro, para compensar o tempo
e o esforço gastos com sua edição.
A organização dissidente foi descrita por um site de tecnologia como
“planejando fazer o que o WikiLeaks tenta, mas sem o drama”. Se Domscheit-
Berg ou outros imitadores conseguirem desenvolver clones operacionais do
WikiLeaks, há pouca dúvida de que muitos grandes editores serão atraídos para
eles.
Enquanto isso, apesar de toda a fama, o WikiLeaks carecia de uma
organização coerente. Kristinn Hrafnsson, um dos colaboradores mais leais,
voltou para a Islândia no Natal. A equipe de Assange estava apenas lentamente
se afastando de suas origens como uma revolução caótica e se movendo rumo a
uma organização mais estruturada. Convencido pelos amigos a recrutar ajuda
profissional, ele convidou o relações-públicas Mark Borkowski, de Londres,
para preparar um plano de comunicação para ele. Depois de um dia em
Ellingham Hall, porém, o plano de Borkowski não se concretizou. Assange
comprometeu-se a tentar arrumar porta-vozes próprios para lidar com a torrente
de solicitações dos veículos de comunicação. Em janeiro, anunciou novas vagas:
“Procuram-se quatro profissionais para compor a nova assessoria de imprensa do
WikiLeaks. Remuneração compatível. Os candidatos devem ser disciplinados,
articulados, inteligentes, capazes de realizar múltiplas tarefas e acostumados a
dormir pouco. É essencial que o início seja imediato”.

Assim, quando se sentou à mesa no dia de Natal, com Vaughan Smith e sua
família, Assange enfrentava uma assustadora lista de desafios – embora isso não
transparecesse ao vê-lo vestido de Papai Noel, brincando com a lente da câmera
para uma sessão de fotos da revista Newsweek.
Contudo, o homem que causara comoção mundial não perdera suas forças.
Conseguiu rapidamente um contrato para escrever suas memórias, por mais de
um milhão de libras esterlinas (1,6 milhão de dólares). O negócio, intermediado
pela agente literária Caroline Michel, com a Knopf, nos Estados Unidos, e a
Canongate, no Reino Unido, além de vários editores estrangeiros, diminuiu
algumas de suas preocupações financeiras. “Não quero escrever este livro, mas
tenho de fazê-lo”, explicou. Ele recebeu imediatamente mais de 250 mil libras de
adiantamento, embora uma quantia de seis dígitos tenha sido reservada para
contratar um ghostwriter. A agência de Michel também organizou um encontro
com Paul Greengrass, o elogiado diretor de O ultimato Bourne, com o objetivo
de transformar a história de Assange numa aventura digna de agente secreto. O
livro, WikiLeaks versus the World: My Story (WikiLeaks contra o mundo: minha
história), está programado para sair em abril de 2011 – um prazo ambicioso.
Outra boa notícia era a possibilidade reduzida de que Assange fosse vítima de
algum tipo de contra-ataque vingativo dos Estados Unidos. Em 14 de dezembro,
o Departamento de Justiça norte-americano emitira liminares secretas para as
contas do Twitter de Manning, Assange e amigos. Isso gerou publicidade
indesejada quando o Twitter corajosamente foi até os tribunais e conseguiu
anular o sigilo da liminar. A parlamentar islandesa e defensora do WikiLeaks,
Birgitta Jónsdóttir, fez um estardalhaço político: “Parece que eles estão bastante
desesperados”, afirmou. A investigação foi inútil, ela acrescentou, porque
“nenhum de nós usaria o sistema de mensagens do Twitter para dizer algo
confidencial”. Se os Estados Unidos não tinham outra opção a não ser
bisbilhotar tuítes, a perseguição legal do país parecia um pouco menos
ameaçadora.
Contrariamente às terríveis alegações feitas em público sobre os crimes do
WikiLeaks, os oficiais do Departamento de Estado parecem ter concluído, em
meados de janeiro, que os controversos vazamentos divulgados pelo site
causaram poucos danos reais e duradouros à diplomacia norte-americana. Em 19
de janeiro, a agência de notícias Reuters publicou que, em informes privados ao
Congresso, diplomatas americanos de alto escalão admitiram que os efeitos
colaterais da divulgação de milhares de telegramas diplomáticos privados em
todo o mundo não foram particularmente ruins. Um funcionário do Congresso
disse à Reuters que o governo se sentia forçado a dizer publicamente que as
revelações haviam prejudicado os interesses norte-americanos para apoiar os
esforços em bloquear o site do WikiLeaks e acusar criminalmente os
informantes. “Acho que eles querem apresentar a face mais dura que podem
exibir”, ele afirmou.
A retratação tácita da sombria afirmação de Hillary Clinton de que a
divulgação dos telegramas do WikiLeaks fora um ataque a toda a comunidade
internacional seguiu-se à admissão igualmente sóbria de que Assange, de fato,
não tinha “sangue nas mãos” pela divulgação dos diários de guerra do Iraque e
do Afeganistão.
Mas a publicidade – e a controvérsia – renderam a ele algo muito valioso. Em
razão das disputas, o WikiLeaks tornou-se uma imensa marca global. No The
New York Times, Evgeny Morozov, ciberanalista da Universidade de Stanford,
escreveu que antevia um maravilhoso futuro para o site, argumentando que ele
tem duas grandes vantagens sobre qualquer um de seus imitadores: uma marca
ampla e facilmente reconhecida e uma enorme rede de contatos nos meios de
comunicação. Após anos em “relativa obscuridade”, a criação de Assange agora
é a “queridinha da mídia”, podendo “se transformar num gigantesco
intermediário de mídia”, uma central de troca de informações jornalísticas.
“Seguindo esse modelo, a equipe do WikiLeaks agiria como vendedora de
ideias, contando com um impressionante estoque digital.”
Ian Katz, editor assistente do The Guardian, manifestou fortemente sua
posição num debate organizado pelo Frontline Club, em meados de janeiro:
“Acho que Julian usou seu perfil de maneira muito inteligente, e o que ele está
tentando fazer é se tornar a marca, por assim dizer, sinônimo de vazamentos [...].
Se você é um analista nas [Forças Armadas] ou em algum outro lugar, está
aborrecido e tem algo que quer compartilhar com o mundo, ele quer que você
pense: ‘Enviarei ao tal Assange, não ao The Guardian’. O que levanta uma
questão muito interessante para os parceiros dos veículos de comunicação
tradicionais, como nós – será que ajudamos a criar, por assim dizer, uma marca à
qual as pessoas vão recorrer no lugar dos veículos de comunicação
tradicionais?”
O WikiLeaks também gerou uma enorme quantidade de sites clones, que não
eram tanto rivais, mas mais homenagens: IndoLeaks, BrusselsLeaks,
BalkanLeaks, ThaiLeaks, PinoyLeaks. Alguns republicavam telegramas das
embaixadas norte-americanas, outros publicavam material de suas próprias
fontes. A ideia de Assange, de um site para ativistas vazarem informações
anonimamente, parecia ter-se tornado viral – como, talvez, ele sempre tenha
acreditado que seria –, enquanto prosseguia com seu plano de passar meses
enviando telegramas vazados para jornalistas, em um número cada vez maior de
países.
Um dos resultados positivos imediatos mais interessantes – e sutis – da saga
do WikiLeaks surgiu em um daqueles países normalmente obscuros. Após a
publicação de telegramas vazados da missão norte-americana na Tunísia, que
denunciavam a corrupção e os excessos da família governante, dezenas de
milhares de manifestantes se ergueram e derrubaram o odiado presidente do país,
Zine El Abidine Ben Ali.
Será que foi uma revolução causada pelo WikiLeaks? Não exatamente. Tudo
começou depois que um universitário de 26 anos, Mohamed Bouazizi,
desempregado e impedido pelas autoridades de vender frutas e legumes nas ruas,
desesperadamente ateou fogo em si mesmo. Sua morte provocou protestos em
todo o país contra a repressão política e o desemprego. O que estava por trás da
revolta eram as frustrações latentes contra o regime de Ben Ali. Os tunisianos
foram o primeiro povo no mundo árabe a tomar as ruas e derrubar um líder que
há muito estava no poder. Mas eles já sabiam que a família governante era
corrupta e não precisaram do WikiLeaks para isso.
Há, porém, um efeito verdadeiramente extraordinário causado pelo Wikileaks.
“Sam”, pseudônimo de um jovem tunisiano que escreveu no site Comment is
Free, do The Guardian, em meados de janeiro, citou especificamente o
WikiLeaks ao descrever como o cinismo resignado em relação ao regime sob o
qual ele crescera se transformou em esperança:
A internet está bloqueada, e páginas censuradas são mencionadas como “não encontradas” – como se
nunca tivessem existido. Crianças em idade escolar estão trocando proxies, e a palavra se tornou
cult: “Você tem um proxy que funciona?” [...] Amamos nosso país e queremos que as coisas
funcionem, mas não existe um movimento organizado: a tribo está disposta, mas falta o líder. A
corrupção, o suborno – nós simplesmente queremos ir embora. Começamos a nos candidatar para
estudar na França ou no Canadá. É covardia, e sabemos disso. Deixar o país para “o restante deles”.
Vamos para a França e esquecemos, então voltamos para os feriados. Tunísia? São as praias de
Sousse e Hammamet, os clubes noturnos e restaurantes. Um Club Med gigante.
E então o WikiLeaks revela o que todos estavam cochichando. E, em seguida, um jovem se sacrifica.
E vinte tunisianos são assassinados em um dia. Pela primeira vez, vemos a oportunidade de nos
rebelar, de nos vingar da família “real”, que já levou tudo; de acabar com a ordem estabelecida que
acompanhou nossa juventude. Uma juventude educada, cansada e disposta a sacrificar todos os
símbolos da antiga Tunísia autocrática com uma nova revolução: a Revolução de Jasmim – a
verdadeira.

Paradoxalmente, os comentários vazados do embaixador norte-americano na


Tunísia, amplamente lidos em toda a região, desempenharam um importante
papel na difusão da imagem de Washington pelas ruas árabes. Tunisianos
comuns gostaram do jeito como os norte-americanos – diferentemente dos
franceses – destacaram de modo tão sincero a corrupção. Agora eles queriam
que os Estados Unidos apoiassem a Revolução de Jasmim em curso. E pediram a
Washington que pressionasse os líderes árabes vizinhos e evitassem sua
interferência.
Muammar Kadafi, o déspota da vizinha Líbia, não teve dificuldade em
reconhecer a ligação entre os eventos em Túnis e o WikiLeaks – uma ligação
satânica, na opinião dele. Kadafi disse que estava triste pela derrubada de Ben
Ali e “preocupado com o povo da Tunísia, cujos filhos morrem diariamente”. E
avisou aos tunisianos que não se deixassem enganar pelo WikiLeaks, “que
publica informações escritas por embaixadores mentirosos para criar o caos”.
A secretária de Estado americana, Hillary Clinton, criticara anteriormente o
vazamento dos telegamas porque isso “minava nossos esforços de colaboração
com outros países para resolver problemas comuns”. Mas o mesmo vazamento
ajudava agora a reparar a reputação desgastada dos Estados Unidos no Oriente
Médio, prejudicada pela Guerra do Iraque, e a promover os grandiosos objetivos
da Casa Branca de democratização e modernização. Assange podia considerar os
Estados Unidos seu inimigo, mas, nesse caso, ele involuntariamente ajudara a
restaurar a influência norte-americana num lugar onde o país havia perdido a
credibilidade. Era irônico. Ao aumentar a quantidade de informação no sistema,
o WikiLeaks gerou efeitos imprevisíveis.

A despeito das ironias e ambiguidades de sua causa e da natureza


problemática de sua personalidade, o próprio Assange parece ter conquistado
uma ampla base mundial de fãs – de qualquer modo, fora dos Estados Unidos.
Apesar da hostilidade das autoridades governamentais e das “luvas de látex”
(como afirmou a revista Vanity Fair) com que os grandes veículos de
comunicação o têm tratado, grande parte do mundo sente admiração pelo
WikiLeaks e por Julian Assange. Na Austrália, sua terra natal, e em toda parte,
ele é considerado por muitos um herói, alguém cuja guerra contra os segredos de
Estado criou algo genuinamente novo e excitante.
Suas próprias preferências continuam subversivas. Ele ajudou pessoalmente a
financiar um cômico vídeo de rap sobre o WikiLeaks, que coloca para os
visitantes em Ellingham Hall assistirem, digitando o endereço em seu MacBook
Pro. O vídeo foi feito por Robert Foster, um poeta performático que mora na
Austrália, e a paródia de noticiário tem como título “RAP NEWS – WikiLeaks’
Cablegate: The Truth Is Out There” (Cablegate do WikiLeaks: a verdade está lá
fora). Foster canta o rap enquanto assume diversos papéis: âncora de tevê,
Hillary Clinton, Silvio Berlusconi e Kadafi, assim como o teórico da conspiração
de direita e apresentador de rádio norte-americano Alex Jones. Uma voluptuosa
enfermeira loura se aproxima de Kadafi com um estetoscópio, enquanto
Berlusconi, ladeado por duas jovens em roupas íntimas, diz: “Ei, Robert, quanto
quer pelo seu noticiário? Eu pago em dinheiro! Acabei de ganhar uns rublos!”
Assange adora – enquanto o vídeo passa na tela, ele sorri e balança os pés,
seguindo a música. Tem outra coisa que também lhe dá prazer: recentemente a
revista Rolling Stone italiana o colocou na capa, sem camisa, com a seguinte
legenda, que remete a David Bowie: “O homem que caiu (da web) na Terra [...]
um vilão platinado que ameaça os poderosos do planeta, passando-se por um
cyberpunk”. A revista o elegeu o “astro de rock do ano”.
APÊNDICE
Telegramas diplomáticos
americanos*
Tradução
Marcos Malvezzi Leal
Nota

* Para ler (em inglês) todos os telegramas publicados pelo The Guardian, acesse
<www.guardian.co.uk/wikileakscablesdatabase>.
Tunísia – um enigma nas relações exteriores dos Estados
Unidos
Sexta-feira, 17 de julho de 2009, 16h19
SEÇÃO SECRETA 01 DE 05 TÚNIS 000492
NOFORN
SIPDIS*
DEPT PARA NEA AA/S FELTMAN, DAS HUDSON, EMBAIXADOR NOMEADO GRAY, E
NEA/MAG* DO EMBAIXADOR
EO* 12958 DECL:* 13/07/2029
TAGS PREL, PGOV, ECON, KPAO, MASS, PHUM, TS
ASSUNTO: TUNÍSIA PROBLEMÁTICA: O QUE FAZER?
Classificado pelo embaixador Robert F. Godec como E.O. 12958 razões 1.4 (b) e (d).

Resumo

1. (S/NF*) Por muitas razões, a Tunísia deveria ser um forte aliado dos Estados Unidos, mas não é. Embora
tenhamos em comum alguns valores-chave e o país tenha um sólido registro de desenvolvimento, a Tunísia
tem muitos problemas. O presidente Ben Ali está envelhecendo, seu regime é caquético e não há sucessor
evidente. Muitos tunisianos se sentem frustrados pela falta de liberdade política e irritados com a corrupção
da Primeira Família, com o alto índice de desemprego e com as desigualdades regionais. O extremismo é
uma ameaça constante. Para aumentar os problemas o GDT* não tolera conselhos nem críticas, sejam de
natureza doméstica ou internacional. Pelo contrário, se empenha em impor um controle ainda maior,
geralmente por meio da polícia. Resultado: a Tunísia é problemática, e nossas relações também.

2. (S/NF) Nos últimos três anos, a missão americana em Túnis respondeu oferecendo maior cooperação nas
áreas em que os tunisianos afirmam mais precisar, não deixando de evidenciar, porém, a necessidade de
mudança. Tivemos algum sucesso, principalmente em áreas comerciais e de assistência militar, mas também
tivemos fracassos. Fomos barrados, em parte, pelo ministro das Relações Exteriores que tenta controlar
todos os nossos contatos no governo e em muitas outras organizações. O GDT frequentemente prefere a
ilusão de comprometimento ao difícil trabalho da verdadeira cooperação. Mudanças importantes na Tunísia
terão de esperar pela saída de Ben Ali, mas o presidente Obama e suas políticas criam oportunidades neste
momento. Como podemos tirar proveito delas?
Recomendamos:
– manter foco sólido na reforma democrática e no respeito aos direitos humanos, mas mudando nosso modo
de promover tais metas; – tentar envolver o GDT em um diálogo sobre questões de interesse mútuo,
incluindo comércio e investimento, paz no Oriente Médio e maior integração em Magrebe; – oferecer aos
tunisianos (principalmente aos jovens) mais educação na língua inglesa, intercâmbios educacionais e
programas culturais; – afastar nossa assistência militar do FMF,* mas procurar novos modos de promover a
segurança e a cooperação de inteligência; – aumentar contatos de alto nível, mas enfatizar que uma
cooperação mais profunda por parte dos Estados Unidos depende de um real comprometimento tunisiano.
Fim do resumo.

Pano de fundo: relações históricas e valores comuns

3. (SBU) Os Estados Unidos e a Tunísia têm duzentos anos de sólidos vínculos e interesses comuns,
incluindo o avanço da paz regional, o combate ao terrorismo e o desenvolvimento da prosperidade. Desde a
independência, a Tunísia merece crédito pelo progresso econômico e social. Sem os recursos naturais de
seus vizinhos, o país se concentrou no povo e diversificou sua economia. Com um raro sucesso, o GDT é
eficaz na prestação de serviços (educação, assistência médica, infraestrutura e segurança) à população. O
governo tem procurado construir uma “economia do conhecimento” para atrair investimento estrangeiro
direto, o que criará empregos com alto valor agregado. Como resultado, o país tem desfrutado, na última
década, de um crescimento real de 5% do PIB. Em relação aos direitos da mulher, a Tunísia é modelo, e tem
longo histórico de tolerância religiosa, como demonstrado na forma como trata sua comunidade judaica.
Apesar dos desafios significantes (sobretudo os 14% no índice de desemprego), a Tunísia está melhor que a
maioria dos países da região.

4. (SBU) Na política externa, a Tunísia vem desempenhando papel de moderação (embora recentemente sua
meta seja “se dar bem com todos”). O GDT rejeita o boicote imposto pela Liga Árabe aos produtos
israelense. Apesar do rompimento com Israel em 2000, o GDT tem tido discussões esporádicas com oficiais
israelenses. O GDT também apoia a liderança de Mahmoud Abbas da Autoridade Palestina. A Tunísia
participou da Conferência de Anápolis e tem apoiado nossos esforços em promover negociações entre
israelenses e palestinos. O GDT tem ainda a mesma posição que nós em relação ao Irã, trata-se de um
aliado na luta contra o terrorismo e tem uma embaixada no Iraque. Além disso, a Tunísia recentemente
assinou um tratado de anistia de dívida com o governo do Iraque nos termos do Clube de Paris, sendo o
primeiro país árabe a fazer isso.

5. (SBU) Por fim, embora os tunisianos estejam profundamente zangados com a Guerra do Iraque e tenham
percebido a parcialidade americana em relação a Israel, a maioria ainda admira o “sonho americano”. A
despeito da raiva dirigida contra a política externa norte-americana, vemos um crescente desejo pelo
aprendizado da língua inglesa, maior procura por intercâmbios educacionais e

TÚNIS 00000492 002 DE 005

científicos e crença na cultura americana da inovação. Os tunisianos percebem a importância disso para seu
futuro.

O problema: um regime caquético e a crescente corrupção

6. (C) Apesar do progresso econômico e social da Tunísia, seu histórico de liberdade política é fraco. A
Tunísia é um Estado policial com pouca liberdade de expressão ou de associação e sérios problemas de
direitos humanos. O GDT pode pontuar algum progresso político na última década, incluindo o fim das
análises prévias de livros e o acesso do ICRC* a muitas prisões. Mas para cada passo adiante, outro tem
sido dado para trás, como a recente apropriação de importantes veículos de mídia privados por pessoas
próximas ao presidente Ben Ali.

7. (C) O problema é evidente: a Tunísia é governada há 22 anos pelo mesmo presidente. Ele não tem
sucessor. E, enquanto Ben Ali merece crédito por continuar muitas das políticas progressistas do ex-
presidente Bourguiba, ele e o regime perderam contato com o povo da Tunísia. Eles não toleram conselhos
ou críticas, domésticas ou internacionais. Cada vez mais, dependem da polícia para controlar e se
concentram em preservar o poder. E a corrupção dentro do país está crescendo. Os tunisianos estão
intensamente conscientes dela, e o coro de reclamações vem aumentando. Eles destetam – chegam mesmo a
odiar – a primeira-dama Leila Trabelsi e sua família. Em particular, os oponentes do regime a ridicuralizam,
e até os mais próximos do governo mostram preocupação com seu comportamento. Enquanto isso, cresce a
revolta na Tunísia pelo elevado nível de desemprego e pelas desigualdades regionais. Consequentemente, os
riscos à estabilidade do regime, a longo prazo, estão aumentando.

O que fazer, então?

13. (C) Apesar das frustrações de se fazer negociações por aqui, não podemos ignorar a Tunísia. Há muita
coisa em jogo. Temos interesse em impedir que a Al Qaeda no Magrebe islãmico e outros grupos
extremistas estabeleçam uma cabeça-de-ponte aqui. Temos interesse em manter as Forças Armadas
tunisianas profissional e neutra. Desejamos também promover maior abertura política e respeito pelos
direitos humanos. Também é de nosso interesse possibilitar a prosperidade e o desenvolvimento da classe
média do país, a base para a estabilidade duradoura da Tunísia. Além disso, precisamos aumentar o
entendimento mútuo com o intuito de melhorar a imagem dos Estados Unidos e assegurar maior cooperação
para os nossos vários desafios regionais.

Os Estados Unidos precisam de ajuda na região para promover nossos valores e políticas. A Tunísia é o
lugar onde, com o tempo, poderemos encontrar essa ajuda.

Uma mão estendida

14. (C) Desde a posse do presidente Obama, os tunisianos têm sido mais receptivos aos Estados Unidos.
Oficiais superiores do GDT ouvem de bom grado as declarações e falas de Obama. Seu discurso no Cairo
atraiu especial elogio, levando o ministro das Relações Exteriores a chamá-la de “corajosa”. Ao mesmo
tempo, alguns contatos da sociedade civil que vinham boicotando funções da embaixada em oposição à
Guerra do Iraque começam a rever suas posições. De modo geral, a metáfora da “mão estendida” no
discurso de posse de Obama teve uma repercussão poderosa em meio aos tunisianos. Concretamente, eles
têm dado as boas-vindas a muitas ações da administração do presidente americano, entre as quais a decisão
de fechar o centro de detenção da baía de Guantánamo, bem como os planos de retirada de algumas tropas
do Iraque. Acima de tudo, os tunisianos gostam do tom, das declarações e das ações do presidente (até
agora) em relação ao Oriente Médio.

...
GODEC
Notas

* Termo utilizado para documentos que devem ser distribuídos por meio da SIPRNet (Rede de Roteadores
do Protocolo Secreto de Internet). (N. do E.)
* Escritório de assuntos do Magrebe. (N. do E.)
* Special Delivery Official, sigla para fins postais. (N. do E.)
*Declassify, tornar público em. (N. do E.)
*Secret/No Foreign, sigilo, não pode ser divulgado a estrangeiros. (N. do E.)
* Governo da Tunísia. (N. do T.)
* Foreign Military Finance, programa norte-americano de financiamento militar no exterior. (N. do. T.)
* International Committee of the Red Cross, Comitê Internacional da Cruz Vermelha. (N do T.)
O estilo de vida “exagerado” do genro do presidente da
Tunísia, que inclui um tigre de estimação
Segunda-feira, 27 de julho de 2009, 16h09
SECRETO TÚNIS 000516
SIPDIS
NEA/MAG; INR/B
EO 12958 DECL: 28/02/2017
TAGS PREL, PTER, PGOV, PINR, ENRG, EAID, TS
ASSUNTO: TUNÍSIA – JANTAR COM SAKHER EL MATERI
REF: TÚNIS 338
Classificado como confidencial pelo embaixador Robert F. Godec por razões 1.4 (b) e (d)

Resumo

1. (S) O embaixador e sua esposa jantaram com Mohamed Sakher El Materi e sua esposa, Nesrine Ben Ali
El Materi, na casa dos El Materi em Hammamet, em 17 de julho. Durante o farto jantar, El Materi levantou
a questão da Escola Cooperativa Americana de Túnis e disse que tentaria “resolver o problema antes da
partida do embaixador”, como um gesto “amigo”. Elogiou as políticas do presidente Obama e defendeu
uma solução de dois estados para Israel e os palestinos. Também expressou interesse em abrir uma franquia
do McDonald’s e se queixou do atraso por parte do governo em aprovar uma lei de franquias. Falou do
orgulho de sua rádio islâmica de Zaitona e das entrevistas com líderes de partidos da oposição publicadas
por seu recém-adquirido grupo de jornais. Ao longo da noite, El Materi alternava entre difícil e gentil. Às
vezes, parecia desejar aprovação. Vive, porém, em grande riqueza e ostentação, ilustrando um dos motivos
pelos quais vem aumentando no país o ressentimento em relação aos parentes do presidente Ben Ali. Fim
do resumo.

A situação da ECAT

2. (S) Genro do presidente e rico empresário, Mohamed Sakher El Materi, e a mulher, Nesrine Ben Ali El
Materi, receberam o embaixador e sua esposa para um jantar em sua residência na praia de Hammamet, em
17 de julho. El Materi levantou a questão da Escola Cooperativa Americana de Túnis (ECAT), perguntando
o que estava acontecendo. O embaixador explicou a situação e enfatizou que há irritação e preocupação em
Washington e na comunidade americana de língua inglesa em Túnis. Disse que se a escola fosse fechada,
haveria sérias consequências em nossas relações. El Materi disse que poderia ajudar e tentaria resolver a
situação imediatamente, ou seja, antes de o embaixador ir embora. Explicou que gostaria de fazer isso por
um “amigo”. Acrescentou que havia ajudado o embaixador do Reino Unido a marcar vários encontros
(incluindo um almoço com o primeiro-ministro) para o príncipe Andrew do Reino Unido durante visita
recente. Antes de sua intervenção, disse El Materi, o príncipe teve apenas um encontro com um único
ministro.

Liberdade de expressão

3. (S) O embaixador mencionou a necessidade de liberdade de expressão e de associação na Tunísia. El


Materi concordou. Queixou-se do fato de ter, como novo proprietário do Dar Assaba, o maior grupo privado
de jornais do país, recebido telefonemas do ministro das Comunicações reclamando dos artigos que está
publicando (Comentário: Isso é duvidoso). Riu e sugeriu que, às vezes, tem vontade de “devolver o Dar
Assaba”. El Materi comentou as entrevistas com líderes da oposição publicadas em seus jornais (mencionou
o secretário-geral do FDTL,* Mustapha Ben Jaafar). Mostrou-se visivelmente orgulhoso das entrevistas.

4. (S) El Materi disse ser importante ajudar os outros, acrescentando que esse fora um dos motivos pelos
quais adotou uma criança. O embaixador mencionou os projetos de assistência humanitária da embaixada,
comentando que não tinham tido cobertura da mídia. O genro do presidente disse, com veemência, que
seriam divulgados, que era importante a embaixada buscar tal espaço na imprensa. Disse ainda que
combateria parte da imagem negativa dos Estados Unidos. O embaixador perguntou se El Materi enviaria
jornalistas para escrever matérias sobre os projetos assistenciais dos Estados Unidos. El Materi disse que
certamente faria isso.

5. (S) O genro do presidente reclamou extensivamente da burocracia tunisiana, dizendo que era difícil fazer
qualquer coisa. Disse que a comunicação burocrática é terrível. Comentou que as pessoas com frequência
“levam informações erradas” ao presidente, o que faz com que às vezes ele tenha de intervir para que as
coisas sejam corrigidas.

El-Materi revelado: vida pessoal

11. (S) A casa de El Materi é ampla e fica logo acima da praia pública de Hammamet. O complexo é grande
e vigiado por seguranças do governo. Fica próximo ao centro de Hammamet, com vista para o forte e para a
parte sul da cidade. A casa foi reformada recentemente e inclui uma piscina imensa e um terraço de talvez
cinquenta metros. Embora a construção seja em estilo moderno (e predominantemente branca), há artefatos
antigos por toda parte: colunas romanas, afrescos e até uma cabeça de leão da qual jorra água para a piscina.
El Materi afirmou que as peças são reais. Ele espera se mudar para sua nova (e palacial) residência em Sidi
Bou Sadi entre oito e dez meses.

12. (S) O jantar incluiu talvez doze pratos, entre peixe, bife, peru, polvo, cuscuz de peixe e muito mais. A
quantidade era suficiente para um grande número de convidados. Antes do jantar, uma variedade enorme de
petiscos foi servida, regada a três tipos de suco diferentes (incluindo kiwi, normalmente não encontrado por
ali). Depois do jantar, foram servidos sorvete e frozen yogurt, trazidos de avião de Saint-Tropez,
acompanhados de mirtilos e framboesas, além de frutas frescas e bolo de chocolate. (NB. El Materi e
Nesrine tinham acabado de voltar de Saint-Tropez em seu jato particular após duas semanas de férias. El
Materi estava preocupado em acomodar o piloto americano no país. O embaixador disse que teria prazer em
convidar o piloto para eventos da comunidade americana para que se enturmasse.)
13. (S) El Materi tem um grande tigre (“Pasha”) no complexo, que vive em uma jaula. Adquiriu o animal
quando este tinha poucas semanas de vida. O tigre come quatro frangos por dia. (Comentário: A situação
lembrou o embaixador da jaula de leão de Uday Hussein, em Bagdá.) El Materi tinha funcionários por todo
lado. Havia pelo menos doze pessoas, incluindo um mordomo de Bangladesh e uma babá da África do Sul.
(NB. Isso é extraordinariamente raro e caro na Tunísia.)

14. (S) O casal têm três filhos: duas meninas e um menino. Leila tem 4 anos e a outra menina tem 10 meses.
O menino foi adotado e tem 2 anos. A filha mais nova é cidadã canadense, pois nasceu no Canadá. O
destino favorito para as férias da família são as Ilhas Maldivas.

15. (S) El Materi disse que havia começado um programa de exercícios e dieta. Comentou que perdeu peso
recentemente (o que é visível). O genro do presidente afirmou que come de maneira “equilibrada”. Tinha
acabado de passar uma hora pedalando, disse. Nesrine afirmou não praticar exercícios.

16. (S) O casal fala inglês, embora ambos tenham vocabulário e gramática limitados. Estão claramente
interessados em aprimorar o idioma. Nesrine disse que adora a Disney, mas adiou uma viagem para lá este
ano por causa da gripe H1N1. Por algum tempo, ela manteve o Tamiflu sempre por perto (tomando-o em
algumas viagens). A princípio, tinha o remédio por medo da gripe aviária. Ela põe o medicamento também
na mala de El Materi quando ele viaja. Nesrine disse que visitou várias cidades dos Estados Unidos. Já seu
marido só esteve em Illinois recentemente, numa conexão para a compra de um avião.

Comentário

17. (S) No decorrer da noite, El Materi deixou ao embaixador a impressão de ser exigente, vaidoso e difícil.
Ele tem plena consciência de sua riqueza e poder, e suas ações refletem pouca delicadeza. Repetidamente,
apontou para a magnífica vista da casa e corrigiu várias vezes os empregados, dando ordens e
repreendendo-os com severidade. Apesar disso, El Materi tinha consciência do efeito que causava nas
pessoas à sua volta e às vezes se mostrava gentil. Foi extraordinariamente solícito e prestativo para com a
mulher do embaixador, deficiente física. De vez em quando, parecia estar à procura de aprovação. Um
embaixador ocidental em Túnis, que conhece El Materi, comentou que ele tem habilidades políticas no
estilo ocidental na disposição para se envolver com cidadãos comuns. Trata-se de um traço incomum por
aqui.

18. (S) Nos últimos meses, El Materi tem sido mais visto na comunidade diplomática local. É evidente que
ele decidiu (ou lhe recomendaram) servir como ponto de contato entre o regime e os principais
embaixadores. Nesrine, 23 anos, pareceu amigável e interessada, porém ingênua e inocente. Ela reflete a
vida rica, privilegiada e protegida que tem vivido. Quanto ao jantar propriamente, foi parecido com o que
poderíamos esperar em um país do Golfo, e fora do comum para a Tunísia.

19. (S) O mais surpreendente, no entanto, foi a riqueza na qual vive o casal. A residência em Hammamet é
impressionante, com o tigre aumentando a impressão de “estilo exagerado” de viver. Ainda mais
extravagante é a casa em construção em Sidi Bou Said. Essa residência, a julgar pela aparência externa, será
mais próxima a um palácio. Ela domina a linha do horizonte a partir de determinados locais de vista
privilegiada e já foi alvo de muitos comentários críticos particulares. A opulência em que vivem El Materi e
Nesrine e o comportamento deles deixam claro por que alguns tunisianos detestam ou mesmo odeiam os
dois e outros membros da família de Ben Ali. Os excessos da família do presidente estão aumentando.

Visite o site confidencial da embaixada da Tunísia em:


http://www.state.sgov.gov/p/nea/tunis/index.c fm GODEC
Nota

* Fundo Democrático pelo Trabalho e as Liberdade. (N. do T.)


Rei saudita nos pressiona para atacar Irã
Domingo, 20 de abril de 2008, 08h47
SEÇÃO SECRETA 01 DE 03 RIAD 000649
SIPDIS
SIPDIS
CASA BRANCA PARA OVP, DEPARTMENTO PARA NEA/ARP E S/I
SATTERFIELD
EO 12958 DECL: 19/04/2018
TAGS EAID, ECON, EFIN, IZ, PGOV, PREL, MOPS, SA, IR
ASSUNTO: REI SAUDITA ABDULLAH E PRÍNCIPES NA QUESTÃO DA POLÍTICA SAUDITA EM
RELAÇÃO AO IRAQUE
Classificado como confidencial por: CDA* Michael Gfoeller, razões 1.4 (b, d)

1. (S) Resumo: O embaixador norte-americano no Iraque, Ryan Crocker, e o general David Petraeus
reuniram-se com o rei da Arábia Saudita, Abdullah bin Abd al-Aziz, o ministro das Relações Exteriores
príncipe Saud al-Faisal, o chefe geral de inteligência da presidência príncipe Muqrin bin Abd al-Aziz e o
ministro do Interior Nayif bin Abd al-Azis durante visita a Riad nos dias 14 e15 de abril. O rei saudita e os
príncipes avaliaram em detalhes a política saudita em relação ao Iraque, todos apresentando basicamente as
mesmas posições. Disseram que o reino não enviará um embaixador a Bagdá nem abrirá uma embaixada
enquanto o rei e os oficiais superiores sauditas não estiverem convencidos de que a situação de segurança
melhorou e de que o governo do Iraque tem implementado políticas que beneficiem todos os iraquianos,
reforçando a identidade árabe iraquiana e resistindo à influência iraniana. Os sauditas revelam de certa
forma maior flexibilidade em relação às questões de assistência econômica e humanitária ao Iraque e anistia
da dívida. Em conversa com o encarregado de negócios em 17 de abril, o embaixador saudita nos Estados
Unidos, Adel al-Jubeir, ressaltou que o rei ficou muito impressionado com a visita do embaixador Crocker e
do general Petraeus, e al-Jubeir deu a entender que o governo saudita pode anunciar mudanças na política
com o Iraque antes da visita do presidente a Riad, em meados de maio. Fim do resumo.

Sinais positivos no Iraque

2. (S) Em todos os encontros com membros da família real saudita, tanto o embaixador Crocker quanto o
general Petraeus transmitiram o progresso no Iraque e confirmaram o papel negativo do Irã nesse país.
Caracterizaram como devastadores os efeitos das recentes operações lideradas pelas forças internas de
segurança contra as milícias xiitas em Basra e Bagdá; entre eles, o mais importante foi o fato de voltar a
opinião púbica contra as milícias. Embora a decisão do primeiro-ministro Nuri al-Maliki de partir para a
ação contra as milícias tenha sido descrita como precipitada e mal planejada, o embaixador Crocker e o
general Petraeus enfatizaram que todas as falhas táticas foram ofuscadas pelo efeito positivo maior de
unificar o Iraque e demonstrar a resolução determinada do GDI,* particularmente de al-Maliki, de dominar
as milícias xiitas, principalmente Jaysh al-Mahdi. Ao mesmo tempo, essas operações demonstraram de
maneira inequívoca as atividades subversivas do Irã no Iraque e suas ambições regionais maiores. Durante
todas as discussões, o embaixador e o general enfatizaram a importância e a necessidade urgente de os
sauditas se juntarem a nós no apoio ao Iraque.

A questão da embaixada saudita

3. (S) O rei Abdullah, o ministro das Relações Exteriores e o príncipe Muqrin afirmaram que o governo
saudita não enviaria embaixador a Bagdá nem abriria ali uma embaixada em futuro próximo, citando como
motivo para isso a questão da segurança. O ministro das Relações Exteriores afirmou que havia considerado
a possibilidade de despachar um embaixador e tinha enviado diplomatas sauditas a Bagdá para encontrar
um local para a embaixada. Entretanto, disse ele, “o rei simplesmente nos proibiu de seguir adiante”. O rei
Abdullah confirmou o relato em reunião separada com o embaixador Crocker e o general Petraeus. Afirmou
que a segurança em Bagdá era frágil demais para expor o envio de um embaixador saudita. “Ele se tornaria
alvo imediato para os terroristas e as milícias”, disse.

4. (S) O rei também rejeitou a ideia de que, ao enviar um embaixador saudita a Bagdá, poderia dar apoio
político essencial ao governo iraquiano, enquanto este se empenha em resistir à influência e à subversão
iranianas. Ele expressou dúvida perene quanto à disposição do governo do Iraque de resistir ao Irã. Também
repetiu suas dúvidas frequentemente expressas acerca do primeiro-ministro iraquiano, al-Maliki, aludindo a
suas “conexões iranianas”. O monarca saudita afirmou não confiar em al-Maliki porque este já “mentiu”
para ele no passado, prometendo tomar certas providências que não tomou. O rei não disse exatamente
quais seriam essas supostas promessas não cumpridas. Repetiu sua já conhecida visão de que al-Maliki
governa o Iraque em nome de sua seita xiita, e não de todos os iraquianos.

5. (S) Entretanto, em um gesto potencialmente significativo, o rei não rejeitou completamente a ideia de
despachar um embaixador saudita para Bagdá. Disse que levaria em conta

RIAD 00000649 002 DE 003

essa possibilidade depois das eleições provinciais no Iraque, realizadas no outono. A direção dessas eleições
indicaria se o governo do Iraque está de fato interessado em governar em nome dos iraquianos ou apenas
em apoio aos xiitas, afirmou o rei Abdullah.

Reconhecimento a contragosto da mudança no Iraque

6. (S) O ministro das Relações Exteriores assinalou outro potencial abrandamento na política saudita,
dizendo que o problema do reino não era com al-Maliki como pessoa, mas com a conduta do governo
iraquiano. O próprio rei admitiu que o comportamento do governo desse país tem melhorado nos últimos
meses e, embora a contragosto, reconheceu que al-Maliki e suas forças de segurança têm realmente
combatido extremistas, especificamente os xiitas em Basra e Bagdá, bem como extremistas sunitas e a Al
Qaeda em Mosul. No entanto, o rei e os príncipes disseram precisar de mais tempo para julgar se a recente
mudança de comportamento é duradoura e sincera. O rei sugeriu que boa parte do progresso da atuação do
governo iraquiano se atribui mais à interferência dos Estados Unidos do que a uma mudança nas atitudes do
Iraque.

7. (S) O ministro das Relações Exteriores também sugeriu que o governo dos Estados Unidos deveria
insistir para o que o aiatolá Sistani se pronuncie a favor de um Iraque unificado e da reconciliação nacional
entre diferentes seitas e grupos. “Vocês pagaram um preço alto em sangue e tesouro, e Sistani e seu pessoal
têm se beneficiado diretamente disso. Têm todo o direito de exigir isso dele”, disse o príncipe Saud al-
Faisal.

Possível assistência econômica saudita

8. (S) O rei, o príncipe Muqrin e o ministro das Relações Exteriores deram a entender que o governo da
Arábia Saudita estaria disposto a considerar a provisão de assistência econômica e humanitária ao Iraque. O
príncipe Muqrin pediu que o embaixador Crocker e o general Petraeus lhe enviassem uma lista das formas
de assistência que o governo americano gostaria que o reino oferecesse ao Iraque. Posteriormente, al-Jubeir
disse ao encarregado de negócios que essa assistência seria separada do um bilhão de dólares que o governo
saudita prometeu na Conferência de Madri, mas que ainda não entregou por preocupações relativas à
segurança. Ele disse que o compromisso de Madri consistia em quinhentos milhões de dólares em créditos
comerciais e quinhentos milhões em assistência a projetos com estrita condicionalidade, de acordo com os
ditames do Banco Mundial. Al-Jubeir acrescentou ainda que a assistência possivelmente oferecida pelo
governo saudita por meio do príncipe Muqrin seria, inicialmente, algo entre 75 e trezentos milhões de
dólares.

Possível amortização da dívida

9. (S) O rei observou que o alívio da dívida do Iraque “virá em algum momento”, embora não tenha dito
quando. Al-Jubeir disse ao encarregado de negócios que o alívio da dívida é uma possibilidade real.
Também comentou que o governo saudita poderá realizar mudanças na política em relação ao Iraque, talvez
incluindo tanto a assistência quanto o alívio da dívida, antes da visita do presidente a Riad.

A necessidade de resistência ao Irã

10. (S) O rei, o ministro das Relações Exteriores, o príncipe Muqrin e o príncipe Nayf concordaram que o
reino precisa cooperar com os Estados Unidos para resistir e rechaçar a influência e a subversão iranianas
no Iraque. O rei insistiu muito nesse ponto, sendo apoiado pelos príncipes. Al-Jubeir enfatizou as frequentes
exortações do rei aos Estados Unidos para que ataquem o Irã, pondo fim ao programa de armas nuclear do
país. “Ele lhes pediu para cortar a cabeça da cobra”, lembrou ao encarregado de negócios, acrescentando
que o trabalho junto aos Estados Unidos para rechaçar a influência iraniana no Iraque é prioridade
estratégica para o rei e seu governo.

11. (S) O ministro das Relações Exteriores, por outro lado, solicitou sanções norte-americanas e
internacionais mais severas contra o Irã, incluindo proibição de viagens e maiores restrições a empréstimos
bancários. O príncipe Muqrin concordou, enfatizando que algumas sanções poderiam ser implementadas
sem a aprovação das Nações Unidas. O ministro das Relações Exteriores afirmou também que o uso de
pressão militar contra o Irã não deve ser descartado.

RIAD 00000649 003 DE 003


12. (S) Comentário: As atitudes sauditas em relação ao Iraque, do rei para baixo, continuam marcadas pelo
ceticismo e pela desconfiança. Dito isso, os sauditas têm acompanhado eventos recentes no Iraque e estão
ansiosos por trabalhar com os Estados Unidos na resistência e reversão do avanço furtivo iraniano no país.
O rei ficou impressionado com a visita do embaixador Crocker e do general Petraeus, assim como o
ministro das Relações Exteriores, o chefe da inteligência e o ministro do Interior. Cautelosos como de
costume, os sauditas podem, no entanto, estar dispostos a considerar novas medidas nas áreas de assistência
e alívio da dívida, embora mais discussões sejam necessárias até que tal ideia se transforme em realidade.
Fim do comentário.

13. (U) Este telegrama foi analisado e autorizado pelo embaixador Crocker e o general Petraeus.
GFOELLER
Notas

* Communications Decency Act, código de ética na internet. (N. do E.)


* Governo do Iraque. (N. do T.)
China “aceitaria” reunificação coreana
SECRETO SEUL 000272
SIPDIS
EO 12958 DECL: 22/02/2034
TAGS PREL, PGOV, KNNP, ECON, SOCI, KS, KN, JA”>JA”>JA, CH
ASSUNTO: VMRE CHUN YUNG-WOO NA QUESTÃO DAS RELAÇÕES SINO-NORTE-COREANAS
Classificado pela embaixadora Kathleen Stephens. Razões 1.4 (b/d).

Resumo

1. (S) O vice-ministro das Relações Exteriores Chun Yung-woo disse à embaixadora, em 17 de fevereiro,
que a China não poderia impedir o colapso da Coreia do Norte após a morte de Kim Jong-il (KJI). A
RDPC,* disse Chun, já caíra economicamente e sofreria um colapso político dois ou três anos após a morte
de Kim Jong-il. Chun descartou informações veiculas pela mídia da República da Coreia de que empresas
chinesas teriam concordado em injetar dez bilhões de dólares americanos na economia do Norte. Beijing
“não estava disposta” a usar sua modesta influência econômica para forçar uma mudança nas políticas de
Pyongyang – caracterizado pela RDPC como “o mais incompetente funcionário na China” – e tinha
mantido sua posição como chefe da 6PT da República Popular da China. Ao descrever uma diferença de
geração nas atitudes chinesas em relação à Coreia do Norte, Chun afirmou que XXXXXXXXXXX
acreditava que a Coreia deveria ser unificada sob controle da República da Coreia. Chun reconheceu a
posição da embaixadora de que uma relação sólida entre a RDC e o Japão ajudaria Tóquio a aceitar uma
Península Coreana reunificada. Fim do resumo.

VMRE Chun na questão das relações sino-norte-coreanas...

2. (S) Durante almoço oferecido pela embaixadora Stephens, em 17 de fevereiro, no qual vários assuntos
foram abordados, o vice-ministro das Relações Exteriores da RDC e ex-chefe de delegação da Six Party-
Talks (6PT), Chun Yung-woo, previu que a China não seria capaz de impedir o colapso da Coreia do Norte
após a morte de Kim Jong-il (KJI). A RDPC, disse Chun, já ruíra economicamente e, após a morte de KJI, o
país sofreria um colapso político em “dois ou três anos”. Chun descartou relatos da mídia da RDC que
afirmavam que empresas chinesas teriam concordado em injetar dez bilhões de dólares na economia do
Norte. Tais relatos “não têm substância”, disse. O VMRE também ridicularizou a “apresentação” do
ministro das Relações Exteriores chinês à embaixada da RDC em Beijing sobre a visita de Wang Jiarui à
Coreia do Norte. O apresentador não identificado “basicamente leu um comunicado à imprensa da Xinhua”.
Chun lamentou o fato de o interlocutor da RPC não estar disposto a responder perguntas simples, como se
Wang tinha ido a Hamhung de avião ou tomado um trem para se encontrar com KJI.

3. (S) O VMRE comentou que a China teve muito menos influência na Coreia do Norte do que “muita
gente pensa”. Beijing não teria “a menor vontade” de usar sua influência econômica para forçar uma
mudança nas políticas de Pyongyang, e a liderança da RDPC “sabe disso”. Chun reconheceu que os
chineses realmente querem que a Coreia do Norte seja desnuclearizada, mas a RPC também está satisfeita
com o status quo. A menos que a China force a Coreia do Norte até o “ponto de colapso”, a RDPC
provavelmente continuaria se recusando a tomar medidas significativas em relação à desnuclearização.
XXXXXXXXXXX

4. (S) Quanto ao Six Party-Talks, Chun disse que era “muito ruim” o fato de Wu Dawei manter sua posição
como chefe da delegação da RPC. XXXXXXXXXX disse que pareceu que a RDPC “deve ter intercedido
de maneira extremamente dura” para que o já aposentado Wu continuasse como chefe da China na 6PT.
XXXXXXXXXX reclamou que Wu é XXXXXXXXXX um ex-guarda vermelho, cria marxista da RPC,
que “nada sabe a respeito da Coreia do Norte, nem da não proliferação, e tem dificuldade em se comunicar
porque não fala inglês”. Wu também era nacionalista convicto, que proclamava em altos brados – para
quem quisesse ouvir – que a ascensão econômica da RPC representava um “retorno à normalidade”, com a
China como grande potência mundial.

... A “nova geração” chinesa de força de trabalho coreana...

5. (S) Oficiais chineses sofisticados XXXXXXXXXX revelam marcante contraste em relação a Wu,
segundo o VMRE Chun. XXXXXXXXXX Chun afirmou XXXXXXXXXX acreditar que a Coreia deveria
ser unificada sob o controle da RDC. XXXXXXXXXX, de acordo com Chun, estavam prontos para
“encarar a nova realidade”, de que a RDPC agora tem pouco valor para a China como um Estado-tampão –
uma opinião que, desde o teste nuclear da Coreia do Norte, em 2006, supostamente avançou entre os líderes
mais antigos da RPC.

... Ações da RPC em um cenário de colapso da RDPC...

6. (S) Chun argumentou que, na eventualidade de um colapso norte-coreano, a China decididamente “não
veria com bons olhos” qualquer presença militar americana no norte da ZDM.* XXXXXXXXXX Chun
XXXXXXXXX disse que a RPC se sentiria confortável com uma Coreia reunificada sob controle de Seul e
ancorada nos Estados Unidos em “aliança benigna” – desde que a Coreia não fosse hostil para com a China.
Oportunidades significativas de comércio e exportação de mão de obra para as empresas chinesas, disse
Chun, também ajudariam a aliviar as preocupações da RPC com relação ao convívio com uma Coreia
reunificada. Chun descartou a possibilidade de intervenção militar por parte da RPC no caso de um colapso
da RDPC, observando que os interesses econômicos estratégicos da China se concentram hoje nos Estados
Unidos, no Japão e na Coreia do Sul, não na Coreia do Norte. Além disso, comentou Chun, uma
intervenção militar flagrante da RPC em uma crise interna da RDPC poderia “fortalecer as forças
centrífugas em áreas minoritárias chinesas”.

... e Japão

7. (S) Chun reconheceu a posição do embaixador de que um relacionamento sólido entre RDC e Japão
ajudaria Tóquio a aceitar uma Península Coreana reunificada sob controle de Seul. Chun afirmou que,
embora a “preferência japonesa” seja manter a Coreia dividida, Tóquio não tem influência para impedir a
reunificação no caso de a RDPC entrar em colapso. STEPHENS
Notas

* República Democrática Popular da Coreia. (N. do T.)


* Zona desmilitarizada. (N. do T.)
Uma festa de casamento à moda do Cáucaso
Quinta-feira, 31 de agosto de 2006, 06h39
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 05 MOSCOU 009533
SIPDIS
SIPDIS
EO 12958 DECL: 30/08/2016
TAGS PGOV, ECON, PINR, RS”>RS
ASSUNTO: UMA FESTA DE CASAMENTO NO CÁUCASO
Classificado pelo subcomandante de Missão Daniel A. Russell. Razão 1.4 (b, d)

Resumo

1. (C) Os casamentos são sofisticados no Daguestão, a maior autonomia no Cáucaso do Norte. Em 22 de


agosto, fomos a uma festa de casamento em Makhachkala, capital do país. O filho de Gadzhi Makhachev,
membro da Duma e presidente da companhia de petróleo do Daguestão, se casou com uma colega de classe.
A festa suntuosa e a bebedeira intensa ocultavam a extremamente séria política de terras, etnias, clãs e
aliança do Cáucaso do Norte. A lista de convidados incluía toda a estrutura de poder da região – estrelando
o líder checheno Ramzan Kadyrov – e assinalava até que ponto a política da região pode ser pessoal. Fim
do resumo.

2. (C) As festas de casamento no Daguestão são um negócio sério: palco para mostrar respeito, fidelidade e
aliança entre famílias; os noivos em si são pouco mais que peças de exibição. As cerimônias acontecem por
três dias em locais discretos. No primeiro, as famílias do noivo e da noiva dão recepções separadas e
simultâneas. No decorrer da recepção, o noivo conduz uma delegação à recepção da noiva e a leva até a
recepção dele, quando então ela passa a fazer parte da nova família e abdica da sua e de seu clã. No dia
seguinte, os pais do noivo dão outra recepção, agora para a família e os amigos da noiva, que podem
“inspecionar” a família à qual deram sua filha. No terceiro dia, a família da noiva realiza uma terceira
recepção para os pais e familiares do noivo.

Pai do noivo

3. (C) Em 22 de agosto, Gadzhi Makhachev realizou o casamento do filho de 19 anos, Dalgat, com Aida
Sharipova. A cerimônia em Makhachkala, à qual estivemos presentes, foi um microcosmo das relações
sociais e políticas do Cáucaso do Norte, a começar pela própria biografia de Gadzhi. Ele começou como
líder do clã Avar. Enver Kisriyev, autoridade intelectual da sociedade, nos disse que, quando a potência
soviética se retirou do Daguestão, no fim da década de 80, a complexa sociedade retrocedeu para o que era
antes da estrutura russa. A unidade estrutural básica é a monoétnica “jamaat”; a melhor tradução para o
termo é “cantão” ou “comunidade”. Os grupos étnicos são um constructo russo: confrontados com centenas
de jamaats, os conquistadores russos do século XIX aglutinaram cantões de dialetos próximos e os
chamaram de “Avar”, “Dargin” etc., para reduzir o número de “nacionalidades” do Daguestão para 38.
Desde então, os jamaats dentro de cada grupo étnico têm competido pela liderança do grupo. Essa
concorrência é acentuada principalmente entre os avars, a maior nacionalidade do Daguestão.

4. (C) Com o afrouxamento do poder russo, cada cantão organizou, tanto nas montanhas quanto na capital,
Makhachkala, uma milícia para defender seu povo. Gadzhi tornou-se líder de seu cantão nativo, Burtunay,
em Kazbek Rayon. Posteriormente, declarou suas ambições pan-avar fundando a Frente Popular Imam
Shamil – que leva o nome do grande líder avar da resistência montanhesa aos russos –, para promover os
interesses avars e o papel de Burtunay dentro do grupo étnico. Entre suas aventuras, destacam-se o papel na
defesa militar do Daguestão contra a invasão, em 1999, da Chechênia por parte de Shamil Basayev e al-
Khattab, e a defesa política de aldeias avar sob pressão na Chechênia, na Geórgia e no Azerbaijão.

5. (C) Gadzhi investiu no capital social que criou a partir do nacionalismo, convertendo-o em capital
financeiro e político – como presidente da companhia de petróleo do Daguestão e como único representante
oficial de Makhachkala na Duma, na Rússia. Suas negociações no ramo petrolífero – incluindo cerrada
cooperação com empresas dos Estados Unidos – o deixaram suficientemente abastado para adquirir
luxuosas residências em Makhachkala, Kaspiysk, Moscou, Paris e San Diego, além de uma grande coleção
de automóveis de luxo, incluindo um Rolls Royce Silver Phantom, no qual Dalgat trouxe Aida da recepção
dos pais dela. (Gadzhi, certa vez, nos deu uma carona no Rolls Royce em Moscou, mas o espaço ficou um
pouco restrito pela presença de uma AK7 aos nossos pés. Gadzhi sobreviveu a diversas tentativas de
assassinato, e o mesmo acontece com a maioria dos líderes ainda vivos do Daguestão. Ali, ele sempre se
locomove em uma BMW blindada, com um ou dois carros atrás, cheios de seguranças armados e
uniformizados.)

6. (C) Gadzhi foi além de sua base avar, implementando uma política multiétnica para criar uma rede de
seguidores leais. Enviou jovens do país, inclusive seus filhos, a um tipo de colégio militar perto de San
Diego (conhecemos um estudante, um garoto judeu de Derbent hoje estudando em San Diego. Ele não tem
planos de entrar para as Forças Armadas russas.)

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A política multiétnica de Gadzhi ilustra o que nos disse o editor do Chernovik, um jornal do Daguestão, que
nos últimos anos o desenvolvimento de clãs empresariais interétnicos tem desgastado as tradicionais
lealdades jamaat.

7. (C) Mas o simbolismo avar ainda é forte. O irmão de Gadzhi, um artista de São Petersburgo, enviou
como presente de casamento uma estátua em tamanho real de Imam Shamil. Shamil é o símbolo icônico
nacional, apesar do caráter sério e inflexível (retratado em Khadji-Murát, de Tolstói, como o equivalente
tirânico das montanhas ao czar absolutista). Hoje em dia, a ligação com Shamil significa nobreza entre os
avars. Gadzhi frequentemente menciona que descende, pelo lado materno, de Gair-Bek, um dos
representantes de Shamil.

O dia anterior
8. (C) A imensa casa de veraneio de Gadzhi, em Kaspiysk, fica no aprazível litoral do mar Cáspio. Conta
essencialmente com uma grande sala de recepção circular – como um amplo restaurante – atrelada a uma
torre de controle verde de quarenta metros de altura, acessível apenas por elevador, com alguns dormitórios,
uma sala de recepção e uma gruta cujo piso de vidro é o teto de um enorme aquário. O complexo,
fortemente vigiado, também conta com uma segunda casa, alas anexas, quadra de tênis e dois píeres que
dão para o mar, um deles com plataforma para jet ski. Na tarde de 21 de agosto, a casa ficou cheia de
convidados de toda parte do Cáucaso. O chefe do Parlamento da República da Inguchétia chegou com dois
colegas de carro; entre os visitantes de Moscou, havia políticos, empresários e um técnico de futebol avar.
Muitos dos visitantes cresceram com Gadzhi em Khasavyurt, incluindo um lutador olímpico da Inguchétia,
Vakha, que parecia incessantemente bêbado. Outro grupo de amigos da juventude de Gadzhi em Kahsavyurt
chegou, conduzido por um homem parecido com Shamil Basayev em um dia de folga – chinelo, camiseta,
boné de beisebol, barba por fazer –, que se revelou rabino chefe de Stavropol. Ele nos disse ter doze mil
correligionários na província, oito mil deles na capital, Pyatigorsk. Setenta por cento são como ele, judeus
do Cáucaso que falam persa; o restante é uma mistura de europeus, georgianos e bucarianos.

9. (C) Também estava presente o membro da Duma da Chechênia, Khalid (também conhecido como
Ruslan) Yamadayev, irmão do comandante do notório batalhão Vostok. Na ocasião, ele estava reservado,
mas, em diálogo posterior em Moscou em 29 de agosto (favor proteger), queixou-se de que a Chechênia, na
ausência de especialistas para desenvolver programas de recuperação econômica, está simplesmente
exigindo e descartando dinheiro do governo central. Quando insistimos no assunto dos desaparecimentos,
ele admitiu que alguns de fato ocorreram, mas afirmou que frequentemente pais alegavam que seus filhos
haviam sido sequestrados, quando, na verdade, tinham fugido para se juntar a guerrilheiros ou – num caso
ocorrido na semana anterior – haviam assassinado a filha num ato sacrifical. Mencionamos o sequestro da
viúva de Basayev, supostamente para se ter acesso ao dinheiro dele. Khalid disse não ter conhecimento do
caso, mas sabia que Basayev não tinha interesse em riqueza; ele pode ter sido um fanático religioso, mas era
uma pessoa “normal”. Os guerrilheiros remanescentes não são uma força militar séria, na visão de Khalid, e
muitos se renderiam sob termos apropriados e imunidade. Ele mesmo estava providenciando a imunidade
de um oficial superior da era Maskhadov, cujo nome não revelaria.

10. (C) Durante o almoço, Gadzhi recebeu um telefonema congratulatório do presidente do Daguestão,
Mukhu Aliyev. Gadzhi disse a Aliyev que ficaria honrado se ele pudesse comparecer à festa do casamento.
Houve certa tensão na conversa, que se deu entre duas figuras que implicitamente reivindicavam o manto da
liderança dos avars. Na ocasião, Aliyev esnobou Gadzhi e não compareceu à recepção, embora os demais
líderes políticos do Daguestão o tenham feito.

11. (C) Apesar de a casa de Gadzhi não ter sido o local da recepção principal, ele assegurou que todos os
convidados fossem constantemente supridos de comida e bebida. Os cozinheiros pareciam deixar bois e
carneiros inteiros fervendo em caldeirão dia e noite, colocando pedaços de carcaças sobre a mesa sempre
que alguém adentrava o recinto. Os dois chefes de cozinha de Gadzhi mantiveram vasta variedade de pratos
raros em circulação (além da onipresente carne cozida e caldo gorduroso). O consumo de álcool antes,
durante e depois do casamento muçulmano foi estupendo. Em meio a um déficit de álcool, Gadzhi mandou
trazer dos Urais, de avião, milhares de garrafas de vodca Beluga Export (“Melhor consumida com caviar”).
Também tivemos alguns espetáculos, começando já naquele dia com artistas de renome tanto na recepção
quando na casa de veraneio de Gadzhi. A principal atração de Gadzhi, um cantor nascido na Síria chamado
Avraam Russo, não pôde comparecer porque levou um tiro alguns dias antes do casamento, mas havia

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um trupe “cigana” de São Petersburgo, alguns astros pop do Azerbaijão; e, de Moscou, Bênia, o rei do
acordeão, com sua família de cantores. Diversas bandas locais, cantando em avar e dargin, completaram o
constante espetáculo.

10. (C) A principal atividade do dia foi comer e beber – tendo início às quatro horas da tarde, com duração
de cerca de oito horas – seguida, após todos já terem se fartado o suficiente – de passeios de jet ski no mar
Cáspio. De qualquer forma, depois do jantar, a primeira banda iniciou uma apresentação livre – bateria,
acordeão e clarinete tocando a lezginka, dança típica do Cáucaso. Para o ocidental não iniciado, a música
parece um bloco indiferenciado de som. Era sinal para dar início à dança: um a um, cada um dos homens
dramaticamente barrigudos (não havia mulheres presentes) entrava na arena e exibia sua própria lezginka
até o limite de sua duração, geralmente algo em torno de trinta segundos e um minuto. Cada grupo étnico
possui uma lezginka diferente – a do Daguestão é a mais energética, a da Chechênia a mais agressiva e
hostil, e da Inguchétia a mais suave.

Primeiro dia de cerimônia

11. (C) Uma hora antes de a recepção começar, o salão Marrakech estava repleto de convidados – homens
tomavam ar do lado de fora e mulheres já ocupavam várias mesas ali dentro, as mais velhas com lenços na
cabeça, acompanhando dezenas de garotas adolescentes. Um parlamentar do Daguestão explicou que as
cerimônias de casamento são um dos principais eventos para os jovens – e, ainda mais importante, para seus
pais – se observarem com a intenção futuros enlaces. A segurança era intensa: a polícia estava presente na
propriedade e havia atiradores posicionados no telhado de um prédio adjacente. Gadzhi designou um de
seus guardas como nosso guarda-costas durante a recepção. O gerente disse a Gadzhi que havia cadeiras
para mais de mil convidados. No auge da recepção não havia mais assentos.

12. (C) Exatamente às duas da tarde, os convidados homens começaram a formar fila. Variavam de políticos
a oligarcas de todos os tipos – de modernos a jurássicos; camponeses pardos e encarquilhados de Burtunay;
e celebridades do mundo do esporte e da cultura do Daguestão. Khalid Yamadayev comandava uma mesa
de políticos no menor dos dois salões (a música tocava no outro), com Vakha, o lutador bêbado,
parlamentares da Inguchétia, um membro do Conselho da Federação, que também é nanofísico e já proferiu
palestras no Vale do Silício, e Ismail Alibekov, primo de Gadzhi, capitão de mar e guerra e submarinista de
primeira patente, hoje servindo ao Estado-maior em Moscou. O ambiente próprio do Daguestão parece ser
do tipo em que altamente instruídos e indivíduos armados podem facilmente se misturar – e frequentemente
são a mesma pessoa.

13. (C) Cerca de duas horas depois, o comboio de Dalgat voltou buzinando com Aida. Os noivos desceram
do Rolls Royce e foram recepcionados ao som de serenata no salão, e no seio da família Makhachev, com
um coro de meninos perfilados dos dois lados do tapete vermelho, vestidos em trajes que imitavam
armaduras medievais do Daguestão, com pequenos escudos e espadas. A entrada do casal foi o sinal para o
mestre de cerimônias partir para a ação, e, após alguns brindes, os “ciganos” Piter deram início à
apresentação. (No dia seguinte, um dos convidados que estavam na casa de Gadzhi zombou. “Belos
ciganos! O líder da banda certamente era judeu e os outros eram loiros.” Ele tinha razão, mas pelo menos as
duas dançarinas pareciam ciganas.)

14. (C) Enquanto as bandas tocavam, garotas casadouras dançavam a lezginka, dando passos que pareciam
uma lenta conga giratória perfilada, enquanto rapazes se sentavam juntos às mesas, as observando
atentamente. Todos os garotos usavam camisa branca e calça preta, enquanto as meninas trajavam uma
grande variedade de vestidos de festa coloridos e elegantes. De vez em quando, alguém fazia chuva de
dinheiro sobre as dançarinas – havia milhares de notas de rublos, mas as notas preferidas eram as de cem
dólares. O chão estava repleto delas. Crianças recolhiam o dinheiro para distribuir entre as dançarinas.

15. (C) Gadzhi assumiu plenamente o papel de anfitrião. Cumprimentou pessoalmente cada convidado que
entrou no salão – se falhasse nisso, causaria grande insulto – e depois foi de mesa em mesa brindando com
todos. Os 120 drinques que calculou ter ingerido teriam matado qualquer um, beberrão inveterado ou não,
mas Gadzhi tinha seu próprio garçom afegão, Khan, acompanhando-o com uma garrafa de vodca especial
que continha água. Mesmo assim, ele estava esgotado no fim da noite. Em determinado momento, o
flagramos dançando com duas russas seminuas, que pareciam estar muito longe de casa. Uma delas,
descobrimos, era uma poetisa de Moscou (que mais tarde recitaria um poema incompreensível em
homenagem a Gadzhi) que

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estava na cidade com um diretor de cinema para elaborar um roteiro para um filme imortalizando a defesa
do Daguestão de Gadzhi contra Shamil Basayev. Às seis da tarde, a maioria dos convidados hospedadas na
casa havia retornado para lá para nadar e andar de jet ski. Mas, às oito da noite, o restaurante da casa de
veraneio estava cheio mais uma vez, com comida e bebida abundantes, os mesmos aristas agora se
apresentando em versão acústica e alguns convidados estupendamente gordos exibindo sua lezginka para
entreter as duas russas visitantes, que haviam deixado a recepção.

Segundo dia de cerimônia: Entra O homem

16. (C) A recepção do dia seguinte no Marrakeck foi o tributo de Gadzhi à família de Aida, e logo depois
disso todos nós voltamos para um jantar na casa de veraneio do anfitrião. A maioria das mesas estava
disposta com os pratos tradicionais, além de esturjões assados inteiros e carneiro. Mas, às oito da noite, a
àrea foi invadida por dezenas de mujahidin fortemente armados para a entrada do líder checheno Ramzan
Kadyrov, vestindo jeans e camiseta e parecendo mais baixo e menos forte que nas fotos, com uma
expressão um tanto estrábica no rosto. Após cumprimentar Gadzhi, Ramzan e cerca de vinte pessoas de seu
séquito sentaram-se às mesas e começaram a comer e beber ao som de Bênia, o rei do acordeão. Gadzhi
então anunciou uma exibição de fogos de artifício em homenagem ao aniversário do falecido pai de
Ramzan, Ahmat-Hadji Kadyrov. Os fogos tiveram início com um forte estrondo que fez com que Gadzhi e
Ramzan hesitassem. Desde o começo, o anfitrião havia pedido que nenhum dos convidados, a maioria
armada, disparassem suas armas em comemoração. Durante toda a celebração, eles obedeceram, não
disparando um único tiro nem mesmo durante a magnífica exibição de rojões.

17. (C) Após os fogos, os músicos tocaram a lezginka no pátio, e um grupo de duas meninas e três meninos
– um com não mais de 6 anos – apresentaram versões em ginástica da dança. Primeiro Gadzhi se juntou a
eles, depois Ramzan dançou desajeitadamente com a automática folheada a ouro enfiada na parte de trás do
jeans (mais tarde, um dos convidados da casa diria que o revestimento em ouro eliminava qualquer uso
prático da arma, mas zombou acrescentando que Ramzan provavelmente não saberia usá-la de qualquer
maneira). Os dois jogaram notas de cem dólares às crianças; os dançarinos provavelmente pegaram mais de
cinco mil dólares do chão de pedra. Gadzhi nos disse depois que Ramzan havia comprado para o feliz casal
“um bloco de cinco quilos de ouro” como presente de casamento. Após a dança e um rápido passeio pela
propriedade, Ramzan e seu exército voltaram à Chechênia. Perguntamos por que Ramzan não passou a
noite em Makhachkala, e ouvimos a seguinte resposta: “Ramzan nunca passa a noite em lugar nenhum”.

18. (C) Após a partida de Ramzan, o jantar e as bebidas – estas principalmente – continuaram. Um coronel
FSB avar, sentado ao nosso lado, completamente embriagado, ficou muito ofendido quando não o deixamos
colocar “conhaque” no nosso vinho. “É praticamente a mesma coisa”, ele insistiu, até que um general FSB
russo, sentado de frente para ele, mandou que parasse. De qualquer forma, estávamos inclinados a dar uma
chance ao coronel – ele é chefe da unidade de combate ao terrorismo no Daguestão, e Gadzhi nos disse que
cedo ou tarde os extremistas matam todos que entram para a unidade. Ficamos mais preocupados quando
um amigo de guerra afegão do coronel, reitor da Escola de Direito da Universidade do Daguestão, bêbado
demais para se sentar, ainda mais para ficar de pé, puxou a pistola e perguntou se precisávamos de proteção.
Nesse momento, Gadzhi e seu pessoal se aproximaram, apoiaram o reitor em seus ombros e nos deixaram
fora da mira da pistola.

Pós-escrito: usos práticos de uma cerimônia de casamento no Cáucaso

19. (C) A presença de Kadyrov foi sinal de respeito e aliança, resultado de um cultivo cauteloso de Gadzhi –
que remonta à amizade pessoal com o pai de Ramzan. Trata-se de uma ferramenta política necessária em
uma região em que as dificuldades só podem ser resolvidas por meio de relacionamentos pessoais para se
chegar a acordos informais ad hoc. Um exemplo estava bem à vista: em 22 de agosto, o presidente do
Parlamento checheno, Dukvakha Abdurakhmanov, concedeu uma entrevista na qual fez reivindicações
territoriais específicas às regiões de Kizlyar, Khasavyurt e Novolak, no Daguestão. As duas primeiras têm
populações chechena-akkin significativas, e a última fez parte da Chechênia até a deportação de 1944,
quando Stálin realocou ali o grupo étnico dos laks (uma nacionalidade do Daguestão) pelo uso da força.
Gadzhi disse que teria de responder a Abdurakhmanov e trabalhar com Ramzan para reduzir as tensões que
“aquele idiota” havia causado. Quando lhe perguntaram por que ele levava tais relatos a sério, ele nos disse
que no Cáucaso todas as disputas giram em torno da terra, e tais reivindicações nunca podem ser

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descartadas. Reivindicações de terra não solucionadas são o “pavio” que o centro russo sempre mantém
pronto para acender quando necessário. Perguntamos por que tais reivindicações estavam surgindo agora, e
ele respondeu que se tratava pura e simplesmente de euforia. Depois de tudo que haviam recebido, os pés da
liderança chechena estavam a quilômetros do solo. (Um contato checheno bem relacionado nos disse mais
tarde que achava que o irredentismo nacionalista crescente era parte do esforço de Abdurakhmanov de
ganhar uma base política independente de Kadyrov.)

20. (C) O “poder horizontal” representado pela relação de Gadzhi com Ramzan é a antítese do “poder
vertical” imposto por Moscou. Sócio de Gadzhi nos negócios e chefe da Rosneft-Kaspoil, Khalik Gindiyev,
queixou-se de que Moscou deveria deixar os caucasianos locais, e não os russos – “Magomadovs e Aliyevs,
não Ivanovs e Petrovs” – resolverem os conflitos da região. A verticalidade do poder, disse ele, não é
aplicável ao Cáucaso, uma região que burocratas de Moscou como PolPred Kozak nunca entenderiam. O
Cáucaso precisa ter margem de ação para resolver seus próprios problemas. Mas isso não seria abertura para
a democracia. Gadzhi nos disse que a democracia sempre fracassaria na região, onde a concepção de Estado
é uma extensão da família caucasiana, na qual a palavra do pai é a lei. “Onde há espaço para democracia
nisso?”, perguntou. Parafraseamos Hayek: Se você administra uma família como administra um Estado,
destrói a família. Administrar um Estado como se administra uma família destrói o Estado – laços de
parentesco e amizade sempre derrubam a regra da lei. O sócio de Gadzhi concordou, balançando tristemente
a cabeça. “Essa é uma questão para as próximas gerações”, disse.

BURNS
Príncipe Andrew desabafa contra a França, o SFO e o
The Guardian
Quarta-feira, 29 de outubro de 2008, 12h07
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 04 BISHKEK 001095
CÓPIA CORRIGIDA (DESTINATÁRIO)
Classificado pela embaixadora Tatiana Gfoeller, razão 1.4 (b) e (d).

1. (C) RESUMO: Em 28 de outubro, a embaixadora participou de um brunch de duas horas para passar
algumas informações ao honorável duque de York antes das reuniões que ele teria com o primeiro-ministro
do Quirguistão e outros oficiais de alta patente. Ela era a única cidadã não súdita do Reino Unido ou do
Commonwealth convidada pelo embaixador britânico na República do Quirguistão. Entre os outros
participantes estavam grandes investidores britânicos no país e o empresário canadense da mina de Kumtor.
A discussão abordou o clima de investimento para firmas ocidentais na República do Quirguistão, o
problema da corrupção, a retomada do “Grande Jogo”, as influências russa e chinesa no país e a visão
pessoal do príncipe quanto à promoção de interesses econômicos britânicos. Espantosamente franca, a
discussão chegou a ser rude em determinados momentos (pelo lado britânico). Fim do resumo.

2. (C) O embaixador britânico na República do Quirguistão, Paul Brummell, convidou a embaixadora para
participar da preleção a Sua Alteza Real príncipe Andrew, duque de York, antes das reuniões em 28 de
outubro com o primeiro-ministro do Quirguistão, Igor Chudinov, e outros oficiais de alta patente. O príncipe
estava no Quirguistão para promover interesses econômicos britânicos. Originalmente marcada para durar
uma hora no decorrer do brunch, a preleção teve duração de duas horas, graças às perguntas aguçadas do
superengajado príncipe. A embaixadora era a única presente que não era súdita britânica ou ligada ao
Commonwealth. A ausência de seus colegas franceses e alemães foi notada. Aparentemente, eles não foram
convidados, apesar de também serem membros da União Europeia. Outros convidados eram alguns grandes
investidores britânicos no Quirguistão e o empresário canadense da mina de Kumtor.

“VOCÊ TEM DE ACEITAR TANTO OS PONTOS POSITIVOS QUANTO OS NEGATIVOS”

3. (C) A discussão foi iniciada pelo presidente da mina de Kumtor, administrada pelo Canadá, que
descreveu detalhadamente os percalços da empresa na tentativa de negociar uma concessão revista de
mineração que determine ao governo do Quirguistão maior participação na matriz de Kumtor, em troca de
regime de taxação mais simples e concessão expandida. A fala foi seguida pela do representante do
proprietário britânico da Kyrgyzneftigas, que explicou o papel da empresa na exploração e produção de
petróleo no Quirguistão; ele também se queixou de ser importunado pelas autoridades tributárias do país.
Deu como exemplo o caso de um acionista quirguistanês que estava processando a empresa, alegando que
seus “direitos humanos” estavam sendo violados segundo os termos do acordo de acionistas

4. (C) O príncipe reagiu com desmedido fervor patriótico. Em um gesto louvável, ele diligentemente
empenhou-se em compreender o ponto de vista quirguistanês. Entretanto, quando os participantes
explicaram que alguns quirguistaneses sentem que foram injustamente “induzidos”, nos anos 90, a assinar
contratos desfavoráveis com ocidentais, ele não demonstrou o menor sinal de solidariedade. “Um contrato é
um contrato”, insistiu. “Você tem de aceitar tanto os pontos positivos quanto os negativos.”

“TUDO ISSO ESTÁ SE PARECENDO MUITO COM A FRANÇA”

5. (C) Após terem, sem muito empenho, rodeado o assunto por algum tempo, mencionando, de maneira
obtusa, apenas “interesses pessoais”, os representantes empresariais passaram a descrever o que veem como
um espantoso estado de corrupção na economia do Quirguistão. Embora tenham afirmado que nunca
aceitaram nem pagaram propina, um dos representantes de uma empresa de médio porte declarou que “às
vezes a tentação é grande”. Em extraordinária demonstração de franqueza, em um hotel público onde
estávamos tomando o brunch, todos os empresários disseram, quase em coro, que nada dá certo no
Quirguistão se XXXXXXXXXX não receber “sua cota”. O príncipe Andrew se inflamou durante a
conversa, dizendo que está sempre ouvindo o nome XXXXXXXXXX “repetidas vezes”, sempre que
discute negócios no país. Encorajado, um empresário disse que fazer negócios aqui é “como fazer negócios
no Yukon” no século XIX, ou seja, só as pessoas dispostas a participar das práticas corruptas locais são
capazes de ganhar dinheiro. Seus colegas concordaram prontamente, sendo que um deles apontou para o
fato de que “nada muda aqui. Antes, só ouvíamos o nome do filho de Akayev. Agora é o nome
XXXXXXXXXX”. Nesse instante, o duque de York riu a valer, dizendo que: “Tudo isso está se parecendo
muito com a França”.

6. (C) O príncipe, então, se voltou para a embaixadora, querendo ouvir a posição americana na situação. A
embaixadora descreveu os interesses comerciais americanos no país, que vão desde grandes investimentos
como o hotel Hyatt e a empresa de telecomunicações Katel, até investimentos menores em uma variedade
de setores. Ela afirmou que parte do problema com as condições empresariais no Quirguistão era a rápida
rotatividade nos postos do governo. Alguns reagiam aos curtos mandatos de maneira corrupta, querendo
“roubar enquanto podem” até serem depostos. Após mencionar a necessidade de maior transparência nas
negociações empresariais, ela afirmou que havia presidido o Dia do Associado da Câmara do Comércio na
semana anterior (frequentada pelo ministro das Relações Exteriores e o vice-ministro das Relações
Comerciais), que contou com presença maciça e foi um sucesso estrondoso (ver telegrama referente). Em
seguida, descreveu o impacto benéfico na economia do Quirguistão da base aérea da coalizão no aeroporto
Manas.

“A PRÓPRIA PESSOA TEM DE QUERER SE CURAR DA ANOREXIA”

7. (C) Com um falso lamento, o duque de York, então, exclamou: “Meu Deus, o que devo dizer a essas
pessoas?!” Depois, mais sério, pediu aos convidados que sugerissem meios de melhorar o futuro econômico
e a atratividade do Quirguistão. Todos concordaram que nos diálogos com o primeiro-ministro e com outras
pessoas, ele deveria enfatizar a regra legal e a estabilidade em longo prazo.

8. (C) Concordando com a posição da embaixadora em relação à rápida rotatividade no governo, insistiram
para que ele convencesse seus anfitriões a respeito da previsibilidade e da inviolabilidade dos contratos,
com o intuito de atrair mais investimento ocidental. Ao mesmo tempo, acrescentaram que nada disso seria
necessário para atrair investimentos russos, chineses ou cazaquistaneses. Parecia-lhes que os
quirguistaneses estavam satisfeitos com o nível destes, e estavam prestes a “não se incomodar” em realizar
as melhorias necessárias para atrair investimentos ocidentais. Retornando ao que obviamente parecia ser seu
assunto favorito, o príncipe Andrew zombou: “Também não precisarão fazer mudança alguma para atrair os
franceses!” Pensativo mais uma vez, o príncipe refletiu que quem é de fora pouco poderia fazer para mudar
a cultura de corrupção local. “Eles próprios têm de mudar a atitude. Assim como uma pessoa tem de querer
se curar da anorexia. Ninguém pode fazer isso por ela."

NO GRANDE JOGO (POR EXTENSÃO, OS AMERICANOS TAMBÉM)

9. (C) Dirigindo-se diretamente à embaixadora, o príncipe Andrew mencionou as políticas regionais.


Afirmou abertamente que "o Reino Unido, a Europa Ocidental (e, por extensão, os americanos)" estavam
agora de volta ao Grande Jogo. Mais animado do que nunca, afirmou, presunçoso: "E dessa vez queremos
ganhar!" Sem contradizê-lo, a embaixadora delicadamente relembrou que os Estados Unidos não veem sua
presença na região como uma continuação do Grande Jogo. Apoiamos a independência e a soberania do
Quirguistão, mas também vemos de modo favorável as boas relações entre esse país e todos os seus
vizinhos, inclusive a Rússia.

10. (C) O príncipe precipitou-se ao som desse nome. Disse à embaixadora que visitava frequentamente a
Ásia Central e o Cáucaso, e vinha notando um acentuado aumento na pressão russa e concomitante
ansiedade entre os habitantes quanto aos eventos pós-agosto na Geórgia. Ele contou a seguinte história, que
lhe havia sido recentemente relatada pelo presidente do Azerbaijão, Aliyev. Aliyev tinha recebido uma carta
do presidente Medvedev informando que se o Azerbaijão apoiasse na ONU a designação da fome artificial
bolchevique na Ucrânia de “genocídio”, “então você pode se esquecer de ver novamente Nagorno-
Karabakh”. O príncipe Andrew acrescentou que todo presidente da região lhe afirmara ter recebido
semelhante “diretiva” de Medvedev, exceto Bakiyev. Ele perguntou à embaixadora se Bakiyev havia
recebido uma carta do tipo. Ela afirmou desconhecer a existência de tal carta.

11. (C) Em seguida, o duque afirmou que estava preocupado com o ressurgimento da Rússia na região.
Como exemplo, citou o recente acordo de troca de energia e água (telegrama separado), que sabia ter sido
“engendrado pela Rússia, que finalmente deu um murro na mesa e mandou que todos entrassem em fila”.
(NOTA: Interessante observar que o embaixador da Turquia na República do Quirguistão descreveu
recentemente sua análise do acordo à embaixadora usando linguagem incrivelmente semelhante. FIM DA
NOTA.)

12. (C) Mostrando que é participante do Grande Jogo com iguais oportunidades, Sua Alteza voltou ao
assunto da China. Relatou que quando questionou recentemente o presidente do Tajiquistão a respeito do
que ele achava da crescente influência chinesa na Ásia Central, o presidente respondeu “com palavras que
não usarei diante de senhoras”. Seus interlocutores disseram ao príncipe que, enquanto os russos costumam
ser vistos com simpatia por toda a região, os chineses não. Ele assentiu com a cabeça, dizendo que expansão
econômica e possivelmente outras formas de expansão na região eram “provavelmente inevitáveis, mas
uma ameaça”.

LINGUAGEM RUDE À MODA BRITÂNICA


13. (C) O brunch já durava quase o dobro do planejado, mas o príncipe parecia estar apenas começando.
Finalizado o assunto do Quirguistão, ele se voltou para a questão geral de promover os interesses britânicos
no exterior. Vociferou contra os investigadores anticorrupção britânicos, que cometeram a “idiotice” de
quase desfazer o acordo Al-Yamama com a Arábia Saudita. (NOTA: O duque fazia referência a uma
investigação, encerrada em seguida, de supostas propinas que um membro importante da casa real saudita
havia recebido em troca de um longo e lucrativo contrato com a BAE Systems para fornecer equipamento e
treinamento para as forças de segurança sauditas. FIM DA NOTA.) Os súditos de sua mãe sentados à mesa
expressaram estrondosa aprovação. Em seguida, ele falou “desses (malditos) repórteres, em especial os do
National Guardian, que enfiam o nariz em tudo” e (provavelmente) tornaram as coisas mais difíceis para os
homens de negócios britânicos fazerem negócios. A multidão aplaudiu. Ele encerrou com um comentário
mordaz: tripudiando sobre “nossos estúpidos governos britânico e americano, que fazem um planejamento
de no máximo dez anos enquanto os povos dessa parte do mundo planejam séculos”. Agora todos o
solicitavam no salão privado do brunch. Infelizmente para os súditos britânicos reunidos, seu amado
príncipe estava atrasado para o encontro com o primeiro-ministro. Desculpou-se por ter de se despedir. Na
saída, um deles confessou à embaixadora: “Que representante maravilhoso do povo britânico! Não
podíamos estar mais orgulhosos de nossa família real!”

COMENTÁRIO

14. (C) COMENTÁRIO: O príncipe Andrew dirigiu-se à embaixadora com respeito e cordialidade,
evidentemente valorizando os pontos de vista dela. Entretanto, reagia quase com um patriotismo nevrálgico
sempre que era feita qualquer comparação entre Estados Unidos e Reino Unido. Por exemplo, um
empresário britânico observou que, apesar do “esmagador poder da economia americana em comparação à
nossa”, a quantidade de investimento americano e britânico no Quirguistão era semelhante. O duque
interveio: “Não me surpreende. Os americanos não entendem de geografia. Nunca entenderam. No Reino
Unido, temos os melhores professores de geografia do mundo!” FIM DO COMENTÁRIO. GFOELLER
Mervyn King expressa dúvida quanto a David Cameron e
George Osborne
Histórico de artigo
17-02-2010 EMBAIXADA DE LONDRES CONFIDENCIAL/NOFORN
ASSUNTO: GOVERNADOR DO BANCO DA INGLATERRA: PREOCUPAÇÃO COM A
RECUPERAÇÃO
Classificado pelo embaixador Louis B. Susman

1. (C/NF) Resumo. Controlar a dívida do Reino Unido será o maior desafio do partido que vencer a
esperada eleição geral de 6 de maio, disse o governador do Banco da Inglaterra, Mervyn King, ao
embaixador em reunião em 16 de fevereiro. Embora nenhum dos partidos tenha suficientemente detalhado
os planos para reduzir o déficit, King expressou grande preocupação com a falta de experiência do líder dos
Conservadores e afirmou que o líder do partido, David Cameron, e o chanceler-sombra, George Osborne,
não se deram conta das pressões de diferentes grupos que enfrentarão quando tentarem cortar custos. King
também demonstrou preocupação quanto à recuperação da economia global, argumentando que o
crescimento global em 2010 seria anêmico, e ainda havia a possibilidade de uma recessão profunda. Os
sérios problemas econômicos da Grécia desencadearão maior consolidação no poder dentro da zona do
euro, com Alemanha e França provavelmente impondo o direito de inspecionar se não exercer certo
controle sobre as contas do governo grego em troca de garantia implícita ou explícita, previu. O Reino
Unido tem participado indiretamente do debate em torno da Grécia e poderia ter menor influência na União
Europeia, enquanto Alemanha e França buscam maior coesão política na zona do euro após a crise grega,
afirmou.

Reino Unido sombrio e cenário econômico global

2. (C/NF) Nos próximos dez meses, o Reino Unido enfrentará o desafio de adotar medidas de redução do
déficit, controlando a inflação e lidando com o desemprego crescente... Empresas cortarão postos de
trabalho mais rapidamente este ano e eliminarão muitos empregos de meio período, na medida em que os
empregadores perceberem que a recuperação econômica será um longo e exaustivo processo, disse King...

Conservadores – Não preparados

4. (C/NF) Os líderes conservadores David Cameron e George Osborne não compreendem totalmente as
pressões que enfrentarão quando tentarem reduzir custos, quando “centenas de funcionários do governo
tentarem justificar por que seus orçamentos não podem ser reduzidos”, afirmou King. Em reuniões recentes
com eles, pressionou para que lhe dessem detalhes de como planejam lidar com a dívida, mas recebeu
apenas respostas gerais. Tanto Cameron quanto Osborne têm a tendência de pensar nas questões apenas em
termos políticos, e em até que ponto elas podem afetar a capacidade de eleição do Tory. King também
expressou preocupação com o fato de que as funções duais de Osborne como chanceler-sombra do
Exchequer e coordenador geral de eleições do partido possam criar potenciais problemas no trato de
questões econômicas.

5. (C/NF) King também se disse preocupado com a falta de profundidade do partido Tory. Cameron e
Osborne têm poucos conselheiros, e pareciam resistentes a se aventurar fora de seu pequeno círculo. A
parceria Cameron/Osborne não é diferente da equipe Tony Blair/Gordon Brown dos primeiros anos do New
Labour, quando ambos trabalhavam bem juntos como parte do partido de oposição, mas, por várias razões,
fissuras surgiram quando os Trabalhistas assumiram o poder. Tensões semelhantes podem ocorrer se
Cameron e Osborne discordarem quanto ao modo de lidar com o déficit.

7. (C/NF) A mudança na zona do euro para maior coesão política pode trazer algumas desvantagens ao
Reino Unido, especulou King. Durante reunião da ECOFIN em 16 de fevereiro, os governos da zona do
euro educadamente escutaram o chanceler Darling quando este comentou sobre a situação na Grécia, mas
ele não foi convidado a participar das discussões internas, já que o Reino Unido não é parte da zona do
euro. Seria vital para o Reino Unido mostrar que o país tem algo a dizer e se engajar construtivamente na
União Europeia, caso de fato ocorra essa maior coesão política entre os governos da zona do euro,
comentou King.
Nicolas Sarkozy atemoriza seus conselheiros
Sexta-feira, 04 de dezembro 2009, 11h49
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 04 PARIS 001638
NOFORN
Classificado pelo embaixador Charles Rivkin por razões 1.4(b) e (d).

1. (C/NF) Resumo. No meio de seu mandato de cinco anos, o presidente da França, Sarkozy, continua sendo
a força política dominante, praticamente sem questionamento, do país. Lento com as reformas internas
devido a interesses arraigados e à crise financeira mundial, Sarkozy concentra-se cada vez mais em
alavancar a influência da política externa francesa sobre o cenário mundial. Ambicioso e prático, o
presidente francês não hesita em romper com políticas tradicionais francesas e buscar novos parceiros,
desde Arábia Saudita e Síria até Índia e Brasil. Sua impaciência por resultados e desejo de agarrar a
iniciativa – com ou sem o apoio de parceiros internacionais e de seus próprios conselheiros – nos desafia a
voltar suas propostas impulsivas para direções construtivas, com o olhar voltado para resultados de longo
prazo. O próprio Sarkozy está firmemente convencido da necessidade de uma sólida parceria transatlântica,
e há muito deseja ser O principal parceiro dos Estados Unidos na Europa, seja nas questões de mudança
climática e de não proliferação ou do Irã e Oriente Médio. Nosso esforço em assegurar maior contribuição
francesa no Afeganistão oferece uma perspectiva interessante da centralização dos poderes da tomada de
decisões-chave do presidente francês e de como trabalhar melhor com Sarkozy como parceiro valoroso e
valioso. Com eventos importantes, como o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) pré-
agendado para a próxima primavera, e Sarkozy se preparando para conduzir a liderança da França no G-
8/G-20 em 2011, acreditamos poder melhor assegurar nossos interesses por meio de uma frente ampla, com
consultas continuas a nossos parceiros franceses (inclusive, e talvez particularmente, nos níveis mais altos),
de olho na promoção da forte posição política de Sarkozy, em seu desejo por ação e em sua disposição para
converter decisões difíceis em multiplicadores de força para nossos interesses de política externa. Fim do
resumo.

DRAMA INTERNO, MAS NENHUMA OPOSIÇÃO INTERNA

2. (C/NF) A posição nacional de Sarkozy praticamente não sofre questionamento, apesar de as pesquisas de
opinião indicarem índice de aprovação de apenas 39%. Seu partido de centro-direita, o UMP, controla as
duas casas do Parlamento, e os líderes da oposição passaram os últimos dois anos brigando entre si, em vez
de impor um sério desafio político ao presidente. A política de “abertura” de Sarkozy, nomeando políticos
da oposição para cargos importantes, tem contribuído para drenar a liderança da esquerda. O presidente do
FMI, Dominique Strauss-Kahn, e o ministro das Relações Exteriores, Kouchner, são dois exemplos dessa
bem-sucedida manobra política. Apesar da segurança política – ou talvez por causa dela – há certo
descontentamento interno a respeito do estilo impetuoso de Sarkozy dentro do próprio partido, revelado
pela recente tentativa de nomear o filho universitário de 23 anos, Jean Sarkozy, para um cargo na direção da
mais prestigiosa comissão de desenvolvimento empresarial de Paris. Brilhante estrategista político, o
presidente está levantando o perfil das eleições regionais de março de 2010 para assegurar sua base e roubar
votos da extrema direita, como parte de um estratagema para sua candidatura à reeleição em 2012. Embora
isso o torne mais sensível ao impacto político nacional em curto prazo de certas questões de política externa
(como o Afeganistão), seu prestígio nacional permanece fundamentalmente seguro, liberando-o para se
concentrar em sua meta de alavancar o poder francês na Europa e no globo.

SUCESSOS E DESAFIOS DA POLÍTICA EXTERNA

3. (C/NF) O resultado do domínio de Sarkozy no cenário político nacional é o fato de também ser um dos
líderes mais sólidos da Europa, sem nenhuma coalizão inoportuna ou eleições presidenciais iminentes para
distrai-lo ou atrapalhá-lo. Sarkozy reconhece que para ser ouvido no cenário mundial – seja em questões
estratégicas ou na crise financeira global – a voz da França é amplificada quando em sintonia com outras. O
presidente francês tem trabalhado arduamente para converter a complicada relação pessoal com a chanceler
alemã, Merkel, em um

PARIS 00001638 002 DE 004

tandem bem coordenado que impulsione grande parte da política europeia. Do mesmo modo, vai se aliar
com frequência a Merkel e ao primeiro-ministro do Reino Unido, Brown, para adicionar a influência
necessária a mensagens em Bruxelas e Washington. A habilidade de Sarkozy em potencializar sua voz (e da
França) no cenário mundial por meio de parcerias estratégicas é uma de suas maiores forças. Uma de suas
maiores fraquezas, porém, pode ser a impaciência e a propensão a lançar propostas sem consultar
adequadamente outros grandes jogadores.

4. (C/NF) Os sucessos mais evidentes de Sarkozy são, em grande parte, no domínio das relações exteriores,
com suas maiores conquistas na Europa. Nos primeiros meses no poder, ele defendeu o Tratado de Lisboa,
ajudando a acabar com o impasse em torno da reforma das instituições da União Europeia. A isso se seguiu
a liderança da presidência rotativa da UE na segunda metade de 2008, que incluiu a criação da União para o
Mediterrâneo (UPM), o lançamento da operação antipirataria da UE e a negociação de um cessar-fogo após
a invasão russa da Geórgia. Tipicamente, não hesita em negligenciar sensibilidades europeias ao tentar
conservar a liderança em portfólios específicos, como quando duvidou da habilidade da República Tcheca
em continuar com a necessária liderança na UE após Praga ter assumido a presidência rotativa em janeiro
de 2009. Nas questões de segurança, Sarkozy é igualmente audaz. Autorizou pessoalmente o enviou de
mais tropas francesas para o Afeganistão na reunião de cúpula da OTAN em Bucareste, em 2008, e este ano
lutou para recolocar a França no comando militar integrado da OTAN, revertendo mais de quarenta anos de
política bipartidária francesa, apesar do forte ceticismo dentro de seu partido e da intensa oposição.

NOVOS PARCEIROS, NOVAS IDEIAS

5. (C/NF) Diferentemente de líderes franceses anteriores, Sarkozy também tem voltado esforços para
acordos bilaterais com países como Israel, Arábia Saudita e Síria, reconhecendo que são os principais
protagonistas no Oriente Médio, onde as ambições francesas têm sido frustradas. Oficiais franceses estão
convencidos de que a aproximação de Sarkozy com a Síria fez com que o presidente sírio, al-Assad, se
tornasse um parceiro mais produtivo na resolução de questões do Oriente Médio (embora tenham
dificuldade em dar exemplos concretos de mudança). Sarkozy reconhece plenamente o papel crescente de
potências emergentes como o Brasil (ele se reuniu com o presidente Lula nove vezes nos últimos dois anos)
e a Índia (cujas tropas convidou para estrelar no desfile militar de 14 de julho de 2009). Fez um bem-
sucedido lobby para a reunião do G-20 em Washington, cuja pauta era a crise financeira global, e apoia um
Conselho de Segurança da ONU expandido, conquistando com isso mais popularidade entre os países
emergentes. Os franceses também veem o Brasil como parceiro para as negociações sobre mudanças
climáticas e como comprador de equipamentos de defesa franceses – incluindo a primeira venda além-mar
em potencial de caças Rafale. Todos esses esforços de aproximação são resultantes de convicções genuínas,
bem como de um olhar na imagem da França no centro de uma rede global de líderes influentes.

6. (C/NF) Sarkozy tende a decepcionar quando, em sua impaciência por ação, acaba “passando à frente” de
outros atores-chave e dos próprios conselheiros. O presidente da França tem total convicção de que os
problemas diplomáticos mais resistentes só podem ser resolvidos quando os líderes se reúnem
pessoalmente, ignorando a papelada burocrática, e tomam decisões corajosas – daí sua predileção por
propostas de reuniões de cúpula. Não tem muita paciência para os passos gradativos da diplomacia e
quando se apega a uma ideia, não quer abrir mão dela. Impaciente de ver progresso no Oriente Médio,
procurou meios de tornar a França ator de peso, primeiramente por meio da criação da UPM e depois com a
defesa de uma cúpula, ou dentro da UPM ou agora por meio de outros parceiros (como os Estados Unidos,
o Quarteto etc.) para alcançar suas metas. Em outro exemplo, seu anúncio-surpresa em junho passado, em
apoio a um novo tratado sobre arquitetura de segurança europeia, pegou muitos de seus aliados e sua
própria equipe desprevenidos. Embora o debate tenha sido direcionado para o processo de Corfu na
Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) no presente, Sarkozy já se irrita com aquilo
que considera falta de progresso nessa questão estratégica, e pressiona sua equipe para que apresentem
novas propostas que abordem o impasse da CFE, melhorem as relações com a Rússia e ofereçam outras
ideias para superar iniciativas obstruídas.

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NINGUÉM DIZ “NÃO”

7. (C/NF) Sarkozy tem poucas restrições – políticas, pessoais ou ideológicas – que refreiem suas ambições
globais. Em âmbito nacional, recompensa líderes de partidos dispostos a adotar suas políticas e marginaliza
quaisquer oponentes com visão diferente. Vários ministros de gabinete “favorecidos” e bem-vistos no início
de sua administração – como Rama Yade e Rachida Dati – foram demovidos para cargos secundários após
terem discordado de Sarkozy. Por outro lado, o secretário de Estado para assuntos europeus, Pierre
Lellouche, não hesitou em retirar seu antigo apoio declarado à entrada da Turquia na União Europeia em
troca de seu posto atual. Enquanto o conselheiro diplomático (equivalente à NSA) Jean-David Levitte
continua sendo um ator-chave, com extenso background em diplomacia e personalidade calma, outros
conselheiros como o secretário-geral Claude Guéeant têm desempenhado papel cada vez mais público.
Apesar de receberem a atenção de Sarkozy em vários aspectos, poucos parecem exercer qualquer influência
significativa sobre o presidente ativista.

8. (C/NF) Os próprios conselheiros de Sarkozy também demonstram pouca independência e parecem ter
pouco efeito na hora de conter o hiperativo presidente, mesmo quando ele está mais inconstante. Contatos
no país nos informam a respeito do esforço desses conselheiros para não desagradá-lo nem provocar sua ira
– chegando ao ponto de recentemente desviar o trajeto do avião presidencial para que ele não visse a Torre
Eiffel iluminada com as cores turcas quando da visita do primeiro-ministro Erdogan (decisão tomada pela
prefeitura de Paris). Após dois anos no poder, muitos oficiais do governo estão saindo para assumir tarefas
prestigiosas como recompensa pelo empenho, levantando a questão de se um novo rosto estaria mais
disposto a apontar quando o imperador não estiver totalmente vestido.

TRABALHANDO JUNTOS NO FUTURO

9. (C/NF) Quando eleito, em 2007, Sarkozy foi um dos primeiros líderes franceses a abraçar abertamente os
Estados Unidos, apesar de, na época, a administração americana ser bastante impopular na Europa. Isso se
deveu à convicção do presidente de que a França pode alcançar mais em cooperação com os Estados Unidos
do que contrário a eles. Quando o então senador e candidato à presidência Obama foi à França em julho de
2008, Sarkozy liberou sua agenda para se encontrar com ele e, além disso, quebrou as regras de seu próprio
protocolo, realizando uma coletiva de imprensa (privilégio normalmente reservado aos chefes de Estado em
visita). Sarkozy está disposto a ser o parceiro-chave dos Estados Unidos na Europa e espera ter contatos
regulares intensos com o presidente Obama (o que melhora o prestígio nacional de Sarkozy e, portanto,
eleva diretamente sua habilidade para tomar decisões difíceis). Jornalistas franceses têm apontado, com
cada vez mais frequência, que Sarkozy não visitou o presidente Obama na Casa Branca, e oficiais franceses
começam a expressar preocupação com a visível falta de visitas importantes e outras consultas regulares.
Jornalistas e oficiais do governo expressam a preocupação de que a França, e a Europa como um todo, pode
ter menos importância estratégica para os Estados Unidos hoje em dia (uma visão que, levando-se tudo em
conta, não aumenta os incentivos deles de trabalhar mais próximos de nós).

10. (C/NF) Quanto a questões estratégicas, Paris frequentemente se mostra disposta a apoiar posições norte-
americanas, mesmo diante da relutância europeia geral. Paris dá boas-vindas aos esforços dos Estados
Unidos de “rearranjar” as relações com a Rússia, e tem enfatizado o desenvolvimento de uma abordagem
comum com Washington em relação a Moscou. Em relação ao Irã, o presidente Sarkozy continua
pessoalmente engajado e se mostra disposto a trabalhar intensamente na Europa (tanto institucionalmente na
UE quanto por meio de esforços para persuadir países individuais a adotar medidas nacionais). Nas
questões de não proliferação e desarmamento, o GDF tem encorajado consultas regulares até a conferência
de revisão do TNP em 2010 e início das discussões de um tratado para o corte de material físsil (FMCT). O
mais importante para os oficiais franceses e para o próprio Sarkozy é sentir-se parte do processo de tomada
de decisão, e não que são convocados apenas para ratificar decisões já tomadas em Washington.

AFEGANISTÃO: UM CASO ILUSTRATIVO

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11. (C/NF) Nosso esforço em assegurar uma maior contribuição francesa nas questões do Afeganistão
assinala até que ponto o poder de decisão cabe ao presidente francês e como podemos trabalhar com ele
para alcançar os resultados desejados. No ano passado, a nosso pedido, Sarkozy foi contra todos os seus
conselheiros políticos e militares e enviou uma OMLT* para auxiliar as forças holandeses no Uruzgan, um
reforço importante de um aliado-chave. Foi também Sarkozy, sozinho, que tomou a decisão de enviar mais
setecentas tropas na cúpula de Bucareste, no ano passado – no momento do anúncio, nem mesmo os
membros-chefe tinham certeza de qual seria a decisão final. Neste ano, em intenso intercâmbio com todas
as principais figuras francesas, incluindo o ministro das Relações Exteriores, Kouchner, o equivalente da
ASN, Levitte, e o CHOD francês Georgelin, todos expressaram apoio à política norte-americana, mas
demonstraram dúvida quanto aos recursos adicionais financeiros ou militares da França, citando
frequentemente a afirmação anterior de Sarkozy de “nenhuma tropa adicional”.
12. (C/NF) Entretanto, em subsequente conversa direta com o presidente Obama, o presidente Sarkozy
abdicou da até então firme posição de “não” e deu um passo à frente mais rápido e proativo do que
havíamos previsto, abrindo “em tempo” a porta para reforços militares e prometendo maior assistência
financeira e treinamento. Embora nada tenha sido especificado, a aproximação pessoal ao presidente
Sarkozy fez a diferença entre obter uma resposta burocrática cautelosa e um compromisso genuíno por parte
de um aliado-chave quando precisamos. A imprensa francesa afirmou em suas matérias que Sarkozy foi o
primeiro líder estrangeiro na lista de visitas de Obama, aumentando assim a pressão sobre Sarkozy de reagir
favoravelmente.

COMENTÁRIO

13. (C/NF) Comentário: Como um dos líderes mais politicamente seguros no comando de um país com
significativa habilidade de contribuir mais com a resolução de problemas globais em vasto escopo, desde o
Afeganistão até a mudança climática, a estabilização econômica, o Irã e o processo de paz no Oriente
Médio, Sarkozy representa um ator-chave no cumprimento de nossas políticas compartilhadas. Nem sempre
estaremos de acordo; e as diferenças quanto a questões-chave (como a não proliferação e o desarmamento,
vistas como importantes para os interesses nacionais franceses) são avultantes. No entanto, por meio de
consulta aprimorada (incluindo – e talvez especialmente – aos níveis mais altos), acredito que podemos
lidar com essas diferenças, minimizar propostas inúteis e fomentar maior colaboração para melhor
alavancar os interesses franceses e cumprir os nossos. A França é um país de mentalidade parecida com a
nossa, uma importante economia e possui a segunda maior força diplomática e militar. Tocando a nota certa
em nossa relação bilateral, podemos potencializar as forças de Sarkozy, incluindo sua disposição de tomar
posição em assuntos nada populares e de ser um dos principais colaboradores das metas norte-americanas.
Também devemos reconhecer que Sarkozy tem um extraordinário grau de poder de tomada de decisão que
lhe é garantido como presidente da França. Sou da opinião de que será necessária periódica intervenção
presidencial para assegurar Sarkozy de nosso comprometimento como aliado e parceiro e, em muitos casos,
para fecharmos acordos. Sarkozy continuará sendo um poder com o qual contaremos na França e um
significativo condutor da Europa para o futuro próximo. É, sem dúvida, de nosso interesse trabalhar no
sentido de canalizar sua energia e iniciativas em uma forma construtiva de cooperação que aumente nossa
habilidade em solucionar em conjunto problemas globais. Fim do comentário. RIVKIN
Nota

* Operational Mentor and Liaison Team, equipe de transição militar. (N. do T.)
“A BP está roubando nosso petróleo”, diz o presidente do
Azerbaijão
Terça-feira, 9 de outubro de 2007, 14h14
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 03 BAKU 001227
SIPDIS
SIPDIS
VILNIUS POR FAVOR PASSE A MATT BRYZA
EO 12958 DECL: 09/10/2017
TAGS ENRG, PREL, PGOV, RS”>RS, TU, UP, KZ, PL, GG, LH, TX, AJ
ASSUNTO: PRESIDENTE ALIYEV NA QUESTÃO DA ENERGIA ANTES DA CÚPULA EM VILNIUS
REF: A. (A) BAKU 1224 B. (B) TBILISI 2498
Classificado pela embaixadora Anne E. Derse. Razão: 1.4 (B)(D)

1. (C) RESUMO: Em uma reunião de uma hora com a embaixadora, no dia 8 de outubro, o presidente
Aliyev esboçou, com frustração, os problemas de energia atuais, antes da reunião de cúpula em Vilnius. A
British Petroleum (BP) está “roubando nosso petróleo”, afirmou, taxativo, tentando pressionar o Azerbaijão
para postergar para 2010 o advento de uma divisão de lucros de 80/20 marcada para o ano que vem, sob o
Acordo de Partilha de Produção (APP) da empresa Azeri Chirag Guneshli (ACG), ameaçando diminuir o
fornecimento de petróleo para governo do Azerbaijão, do campo da ACG, de 3bmc para 1,4bmc.* “Só a
Geórgia sofrerá” se a BP continuar nesse caminho, alertou, ressaltando o compromisso do Azerbaijão de
ajudar a Geórgia com petróleo este ano. Ele disse que o primeiro-ministro da Geórgia havia lhe prometido
pedir a ajuda de Washington com a BP. Disse que a BP tinha pedido tempo, até 19 de outubro, para retomar
as discussões. Se não for encontrada uma solução, o Azerbaijão “fará uma denúncia pública de que a BP
está roubando nosso petróleo”, Aliyev afirmou. De modo semelhante, disse ele, os 15% da fixação de preço
netback da Turquia para trânsito de petróleo é “inaceitável”, pois exigiria que o Azerbaijão expusesse à
Turquia contratos de vendas com clientes da Europa e permitisse à Turquia vender 15% do petróleo do
Azerbaijão em mercados europeus. Um acordo de trânsito não “é tão urgente para que aceitemos as
condições injustificadas da Turquia”.

2. (C) Continuação do resumo: O Azerbaijão tem um MDE* com a Grécia, logo dará início a discussões
com a Itália e não permitirá à Turquia “obstruir a parceria Azerbaijão-Europa”. Ele disse que o
Turcomenistão parece desejar que a opção transcaspiana seja implementada, mas “para se esconder da
Rússia”. O Azerbaijão tem mostrado “máxima construtividade” – oferecendo sua infraestrutura ao
Turcomenistão e prometendo servir meramente como país de trânsito –, mas o Azerbaijão não dará os
passos seguintes com o Turcomenistão – “Não podemos desejar isso mais do que eles”. O Azerbaijão não
apoia o oleoduto Odessa-Brody-Plotsk por razões políticas (“Ucrânia, Polônia e Geórgia são países
amigos”) e apresentará um plano concreto com os próximos passos em uma reunião com a Ucrânia, Polônia
e Geórgia, em Vilnius, cujo objetivo será tornar o projeto comercialmente viável. Aliyev pediu aos Estados
Unidos que tentem dar à Turquia a mensagem de não aceitação da proposta de 15% de preço bruto. Ele
continua apoiando a ideia de Nazarbayev de uma cúpula a três com Cazaquistão, Azerbaijão e
Turcomenistão como sinal positivo e uma maneira de fortalecer as relações entre os três países, mas não
quer dar início à reunião. Fim do resumo.

Petróleo para o inverno da Geórgia

3. (C) O presidente Aliyev abriu a discussão sobre energia, dizendo que o Azerbaijão ajudará a Geórgia
neste inverno, como já fez no passado. Disse ter confirmado isso ao primeiro-ministro da Geórgia em visita
a Baku em 27 de setembro. O GDA, porém, está tendo certas dificuldades com a BP, disse. Como o GDA
suspendeu as negociações sobre o Acordo de Partilha de Produção (APP) e o desenvolvimento de Shah
Deniz, a BP está “tentando exercer pressão política sobre nós, cortando o fornecimento de petróleo para o
Azerbaijão, de 3bmc para 1,4bmc”. Mas “só a Geórgia sofrerá” com tal medida, porque o petróleo de Shah
Deniz que receberá do Azerbaijão não será suficiente”. “Se a BP reduzir o suprimento de petróleo para o
Azerbaijão, a Geórgia receberá menos.” O primeiro-ministro da Geórgia, disse Aliyev, havia lhe dito estar
ciente do perigo, e acrescentou que falaria com Washington para “pedir ajuda” (Ver Ref. A para
informações sobre as negociações entre Azerbaijão e BP).

4. (C) Aliyev continuou, afirmando que “essas coisas estão interligadas. Se a BP nos apoiar e nos ajudar,
não haverá problemas com o abastecimento da Geórgia”. Mas a situação com a BP é “desagradável – eles
estão nos ludibriando na questão da divisão de lucros do ADP, de acordo com nossos cálculos”. O GDA crê
que a divisão deveria ter sido alterada no segundo trimestre deste ano. “Eles estão roubando nosso petróleo
– estão unilateralmente mudando a fórmula da taxa de retorno (ROR – rate of return) para que a divisão de
lucros aconteça em 2010. A SOCAR* conversou com Bill Schrader (diretor da BP no Azerbaijão). A BP
pediu um tempo, até 19 de outubro, para retomar as discussões.”

BAKU 00001227 002 DE 003

(Comentário: Em 9 de outubro, a BP no Azerbaijão não tinha notícia de visita do CEO da empresa,


conforme Ref. B. Fim do comentário.) Se não houver uma resposta boa, “faremos uma denúncia pública de
que a BP está roubando nosso petróleo... petróleo que pertence ao Azerbaijão, porque ela quer que a divisão
de lucros de 80/20, que deveria ser feita no ano que vem, seja postergada para 2010”. A situação na
Geórgia, repetiu Aliyev, “está ligada a isso”.

Acordo de trânsito com a Turquia

5. (C) Aliyev disse que o Azerbaijão rejeita a proposta turca de 15% do preço bruto. A fórmula turca
exigiria que o Azerbaijão revelasse ao governo da Turquia seus acordos comerciais com a Grécia, com a
Itália e com outros países europeus – “qualquer lugar para onde vai nosso petróleo”. A proposta de preço
netback “não é aceitável – não existe em nenhum outro contrato de trânsito. Perderíamos dinheiro, e a
Turquia poderia vender 15% de nosso petróleo em nosso mercado. Isso não é justo. Pagaremos uma tarifa
de trânsito acordada. Queremos que isso seja feito com base na melhor prática internacional. Nossa posição
com a Turquia é bastante firme. Se eles obstruirem um acordo, serão os responsáveis. O ministro sempre diz
que a Turquia fará o necessário, mas nada faz. Não aceitaremos pressão”.
6. (C) Aliyev apontou para o fato de que são os consumidores turcos e europeus que precisam do acordo de
trânsito. “Não é tão urgente para nós a ponto de precisarmos concordar com condições injustificadas da
Turquia.” O Azerbaijão conta com mercados adequados para seu petróleo na Geórgia e na Turquia,
observou. Aliyev pediu aos Estados Unidos, “entreguem esta mensagem à Turquia (se possível). A Turquia
quer ter tudo”. A Turquia não entende que o Azerbaijão assinou um memorando de entendimento com a
Grécia e em breve dará início às negociações com a Itália. “A Turquia não pode barrar a parceria
Azerbaijão-Europa.” Aliyev disse ser boa a proposta do ministro das Finanças francês, Samir Sharifov, de
assistência técnica da USTDA* para reavaliar as melhores práticas internacionais em acordos de trânsito. O
Azerbaijão deseja que o acordo com a Turquia seja baseado na melhor prática internacional, e não que “algo
novo seja inventado”. Ele encorajou os Estados Unidos a considerar a assistência técnica.

Turcomenistão e o gasoduto transcaspiano

7. (C) Aliyev referiu-se à declaração do presidente do Turcomenistão, Berdimuhamedov, segundo a qual ele
“venderia petróleo à Europa na fronteira do Turcomenistão”, acrescentando, no entanto, que ele deixou de
especificar a qual fronteira estava se referindo – com a Rússia, o Irã, ou o mar Cáspio? Aliyev disse
acreditar que o Turcomenistão deseja que a opção transcaspiana seja implementada, mas “quer esconder
isso da Rússia”. O Azerbaijão, ele disse, demonstrou “máxima ação construtiva – oferecemos toda a nossa
infraestrutura, afirmamos que seríamos apenas um país de trânsito, não como a Turquia está tentando fazer.
Mas não ficaremos mais interessados do que eles. Não darei início a um encontro com Berdimuhamedov,
não é certo fazer isso”. O Azerbaijão, repetiu, “não iniciará negociações com o Turcomenistão, porque não
precisamos do petróleo deles – não podemos dar a impressão de precisar dela (a opção transcaspiana) mais
do que eles”.

Odessa-Brody-Plotsk

8. (C) O Azerbaijão finalizou seu plano energético, disse Aliyev. O Azerbaijão apoiou a reunião de cúpula
de Cracóvia e a proposta do oleoduto Odessa-Brody-Plotsk, “embora o projeto seja visto como antirrusso”,
porque a Ucrânia, a Polônia e a Geórgia são aliadas do Azerbaijão. Aliyev disse que o ponto-chave é que o
oleoduto Odessa-Brody-Plotsk seja “comercialmente viável”. Por essa razão ele pediu ao ministro da
Energia, Natiqu Aliyev, que preparasse uma proposta concreta a ser discutida em Vilnius, que incluirá a
participação do Azerbaijão como acionista no oleoduto Sarmatia e o lançamento de um estudo de
viabilidade. Além disso, será criada uma joint trade company para o petróleo do mar Negro. Com Supsa e
Novorossiysk há uma grande quantidade de petróleo disponível no mar Negro, disse Aliyev. O ponto-chave,
repetiu, é tornar o projeto Odessa-Brody-Plotsk comercialmente viável. O Azerbaijão o apoia
economicamente, “mais para demonstrar apoio político do que por uma necessidade urgente”.

BAKU 00001227 003 DE 003

Reunião de cúpula de mão tripla

9. (C) Aliyev disse que o primeiro-ministro da Lituânia, Adamkus, o informara no mês passado em Vilnius
que o Cazaquistão não participaria da reunião de cúpula de Vilnius. Ele disse, mais uma vez com certa
frustração, que a ideia de uma reunião de cúpula de mão tripla entre Azerbaijão, Turcomenistão e
Cazaquistão foi ideia de Nazarbayev, mas até onde ele sabia não houve progresso para levar a proposta
adiante. Com a implicação clara de que o Cazaquistão deveria levar a ideia adiante, Aliyev disse ainda
acreditar que essa reunião trilateral “seria um bom sinal, fortalecendo nossas relações, e que poderia ser
algo positivo”.

10. (C) Comentário: Aliyev estava claramente frustrado e atipicamente impetuoso ao falar sobre a Turquia,
o Turcomenistão e especialmente a BP, e desapontado com o que encara como um equívoco do
Cazaquistão. Durante a conversa, ele repetiu que o interesse do Azerbaijão em vender petróleo para a
Europa é estratégico, movido pelo desejo do país de aprofundar a parceria com a Europa. Salientou
também, em clara referência à Rússia, que o Azerbaijão “não pode ser visto” como se ocupasse a liderança
da região no que se refere às questões ligadas ao petróleo. É importante tranquilizar Aliyev em Vilnius a
respeito do compromisso do governo dos Estados Unidos no que se refere ao Corredor do Sul e ao trabalho
conjunto com o Azerbaijão para sua realização, e encorajá-lo a encontrar um caminho produtivo daqui em
diante, em termos práticos, com a Turquia, o Turcomenistão e a BP. Um telegrama a parte dará mais
informações sobre a BP e a SOCAR a respeito da situação das negociações entre governo do Azerbaijão-
AIOC* e a capacidade do país de fornecer petróleo à Geórgia no próximo inverno.
Fim do comentário.
Notas

* Bilhões por metros cúbicos. (N. do T.)


* Memorando de entendimento. (N. do. T.)
* Companhia Pública de Petróleo do Azerbaijão (State Oil Company of Azerbaijan Republic – SOCAR).
(N. do T.)
* Agência Norte-Americana para o Comércio e Desenvolvimento (em inglês: United States Trade and
Development Agency – USTDA). (N. do T.)
* Companhia Operacional Internacional do Azerbaijão (Azerbaijan International Operating Company). (N.
do. T.)
Temores quanto à segurança das armas nucleares do
Paquistão
Terça-feira, 22 de setembro de 2009, 14h13
SEÇÃO SECRETA 01 DE 05 LONDRES 002198
NOFORN
Classificado pelo conselheiro político Robin Quinville pelas razões 1.4 (b) e (d).

1. (S/NF) Resumo: A subsecretária Tauscher participou de reuniões em Londres, entre 2 e 4 de setembro, à


margem da Conferência P5 sobre a criação de medidas de segurança para o desarmamento nuclear, com o
ministro das Relações Exteriores David Miliband, Simon McDonald, chefe de gabinete da Secretaria de
Política Externa e de Defesa, Mariot Leslie, diretora-geral, Defesa e Inteligência, Ministério dos Negócios
Estrangeiros e do Commonwealth (FCO), e Jon Day, diretor-geral de políticas de segurança do Ministério
da Defesa. Os interlocutores do Reino Unido expressaram amplo apoio aos objetivos do governo dos
Estados Unidos no que se refere à não proliferação e ao desarmamento, e destacaram a necessidade de
definir a coordenação da P3 e da P5, preparando o caminho para a reunião de cúpula dos chefes de governo
do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da Conferência de Reavaliação (RevCon) do Tratado de
Não Proliferação Nuclear (TNP). Também previram que a política de controle de armamento do Reino
Unido não seria afetada nem pelas eleições do próximo ano, nem pela futura Reavaliação de Defesa
Estratégica. McDonald citou a necessidade de endurecer com o Irã se este não responder à proposta até o
fim de setembro. Tauscher expressou o contínuo compromisso com a ratificação do Tratado do Controle do
Comércio de Armas e afirmou estar trabalhando junto ao Senado para resolver questões relacionadas à
implementação. Fim do resumo.

Acolhendo a liderança dos Estados Unidos

2. (S/NF) Em visita a Londres para participar da Conferência P5 sobre a criação de medidas de segurança
para o desarmamento nuclear, em 3 e 4 de setembro, a subscretária teve reuniões particulares com o
ministro das Relações Exteriores David Miliband, Simon McDonald, chefe de gabinete da Secretaria de
Política Externa e de Defesa, Mariot Leslie, diretora-geral, Defesa e Inteligência, Ministério dos Negócios
Estrangeiros e do Commonwealth (FCO), e Jon Day, diretor-geral de políticas de segurança do Ministério
da Defesa. Os interlocutores afirmaram que o Reino Unido aceita a liderança dos Estados Unidos no
controle da não proliferação, desarmamento e controle de armas. O ministro das Relações Exteriores
expressou apreço pelo discurso do presidente Obama em Praga, observando que o processo para se chegar a
“um mundo próximo a zero no que se refere a armas nucleares não se trata de uma linha reta”, mas é longo
e complexo. McDonald disse que, nos últimos quarenta anos, os Estados com armas nucleares têm
menosprezado a obrigação de espalhar o poder nuclear civil e o desarmamento; a liderança do presidente
Obama representa uma oportunidade de mudar essa dinâmica. A DG Leslie observou que os tomadores de
decisão do Reino Unido estão “inflamados pelo modo como o presidente assumiu para si a agenda da não
proliferação”. O primeiro-ministro Brown quer “renovar e reformular” o Tratado de Não Proliferação
(TNP), disse ela. O DG Day disse que estava “muito feliz” pelo fato de os Estados Unidos terem
“reassumido a liderança” na não proliferação, no controle de armas e no desarmamento.

Mantendo unidade em P3 e P5

3. (S/NF) Leslie enfatizou que a posição do Reino Unido é “realmente muito semelhante à sua
administração em praticamente tudo”. A meta do Reino Unido é que a P5 trabalhe bem em conjunto, mas
que não deveríamos “assustar os cavalos”, o que significa “não assustar os franceses” e “manter os chineses
e russos a bordo”. Ela reconheceu ser “difícil reunir todos” para a Conferência P5 de 3 e 4 de setembro, mas
expressou esperança de que isso ajudaria a consolidar a unidade da P5 para a Conferência de Reavaliação
do TNP. Day reconheceu que a Conferência P5 não era um meio com o objetivo de fazer progresso “aos
trancos e barrancos”. Ele enfatizou que “o envolvimento é imprescindível” e ajudaria a consolidar a unidade
da P5.

4. (S/NF) Precisamos de um sinal forte, mas unânime, do Conselho de Segurança da ONU (CSONU) e dos
chefes de Estado da reunião de cúpula do CSONU, salientou Simon McDonald, observando que o primeiro
esboço de resolução foi uma decepção. Os interlocutores do Reino Unido concordaram a respeito da
importância da unidade da P5 na reunião, assim como a importância de definir a coordenação da P3 e da P5,
preparando o caminho para a reunião de cúpula e a RevCon do TNP. McDonald também observou que a
Líbia estava no CSONU e que a P5 deveria fazer uma observação positiva a respeito do fato de a Líbia ter
feito uma “mudança estratégica” na proliferação nuclear.

A França e a unidade da P3

5. (S/NF) A DG Leslie disse que o Reino Unido havia realizado “um trabalho árduo e expressado
compromisso com o desarmamento... e que os franceses estão se sentindo desconfortáveis com isso”. Leslie
disse que o Reino Unido “tem bom relacionamento” com os franceses, mas que eles estão “excessivamente
preocupados com o que veem como um desarmamento unilateral do Reino Unido”. Ela disse que as
discussões na P3 vão ajudar a manter a unidade da P3. “Precisamos tranquilizar a França”, afirmou. Leslie
caracterizou as relações mais próximas entre Estados Unidos e França como “extremamente saudáveis”.

6. (S/NF) A subsecretária, Leslie, e Day concordaram em manter reuniões regulares da P3, começando em
outubro, para ajudar a fortalecer a unidade da P3. Durante encontros bilaterais separados com Tauscher, os
interlocutores franceses também concordaram com a importância de consultas regulares à P3.

Defesa contra mísseis e a reavaliação da postura nuclear

7. (S/NF) A subsecretária Tauscher descreveu a reavaliação da Defesa contra mísseis, em processo em


Washington, com ênfase em opor-se à ameaça iraniana de mísseis contra a Europa com tecnologia
comprovada. Também descreveu a Reavaliação da Postura Nuclear (RPN) que substituiria a RPN 2002 e
abordaria questões como impedimento estendido e garantias de segurança. Seus interlocutores do Reino
Unido expressaram considerável interesse em ambas as reavaliações, e ela deixou claro que os Estados
Unidos consultarão de maneira bilateral e à OTAN assim que as reavaliações progredirem a tal ponto.

China, Paquistão

16. (S/NF) Leslie assinalou a “verdade inconveniente” de que “a China está construindo seu arsenal
nuclear”. Evocou uma corrida armamentista no Pacífico diante do programa nuclear indiano. Não obstante,
Leslie disse que estava otimista em relação ao comprometimento da China com a cooperação multilateral, e
sugeriu que os Estados Unidos e o Reino Unido impulsionem a China a progredir até que “digam ‘pare’”.
Ela observou que há um ano os chineses “de fato” afirmaram que se os Estados Unidos ratificassem o
CTBT,* a China faria o mesmo. Além do mais, a China “criticou” o Paquistão na Conferência para o
Desarmamento (CD), o que é um “bom sinal”. Tauscher encorajou a ação da P5 em fazer com que o
Paquistão pare de impedir o progresso da CD do Tratado de Redução de Materiais Físseis (TRMF).

17. (S/NF) O Reino Unido tem profundas preocupações acerca da segurança das armas nucleares do
Paquistão, e a China poderia desempenhar importante papel na estabilização do Paquistão, disse Leslie. O
Paquistão aceitou ajuda para a segurança nuclear, mas sob a bandeira da Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA) (apesar dos técnicos britânicos). Os paquistaneses temem que os Estados Unidos “venham
mais tarde e tomem suas armas”, disse Leslie.

18. (S/NF) Day expressou apoio pelo desenvolvimento de relação semelhante a uma “guerra fria” entre
Índia e Paquistão, o que “introduziria grau de certeza” entre os dois países em suas negociações. Ele
observou que informações recentes indicam que o Paquistão “não está caminhando em boa direção”. O
Paquistão vê o debate sobre o Afeganistão nos Estados Unidos e no Reino Unido como demonstração de
que os aliados não têm intenção de manter seus compromissos ali. Os paquistaneses também creem que
recentes sucessos contra extremistas no vale do Swat validam a convicção de que podem lidar com seus
problemas internos sem mudar a abordagem em relação à Índia. Day perguntou se os Estados Unidos
seriam “obrigados” a cortar relação com o Paquistão se os militares assumissem o controle novamente. Ele
disse que, da última vez que os militares assumiram o poder, o Reino Unido manteve vínculos militares.
Day também perguntou sobre perspectiva americana quanto a Nawaz Sharif, que descreveu como
“potencialmente menos mercenário” que outros líderes paquistaneses.

SUSMAN
Nota

* Tratado para a Proibição Completa de Ensaios Nucleares (Comprehensive Nuclear -Test-Ban Treaty –
CTBT). (N. do T.)
David Miliband ofereceu “raros momentos de poder de
estrela” para o partido sem Blair
Segunda-feira, 3 de março de 2008, 17h06
CONFIDENCIAL LONDRES 000639
SIPDIS
SIPDIS
NOFORN
Classificado pelo embaixador Robert Tuttle, razões 1.4 b, d

1. (C/NF) Resumo: A conferência de primavera do Partido Trabalhista, realizada de 27 de fevereiro a 2 de


março em Birmingham, foi caracterizada pela baixa energia, poucos presentes e pela falta de uma liderança
carismática, apesar de servir como pontapé inicial para a campanha do partido para as eleições locais de 1º
de maio na Inglaterra e no País de Gales. Em seu discurso de abertura em 2 de março, o primeiro-ministro
Brown enfatizou a necessidade de se preparar para a economia do futuro e levou em conta os custos de
oportunidade para a Grã-Bretanha de pobreza, educação abaixo do padrão e assistência médica deficitária,
prometendo que seu governo “resoluto e progressivo” continuaria a combater tais flagelos. A visão de
Brown não gerou oposição, mas tampouco causou entusiasmo em uma conferência pré-campanha que
contava com poucos frequentadores e, aparentemente, finanças restritas. Visando basicamente ativistas
locais do partido, a conferência enfocou o recrutamento de mulheres candidatas, melhor comunicação com
comunidades minoritárias e maior desempenho do Partido Trabalhista no governo local. A mídia se
concentrou na ironia do fato de a secretária de Comunidades e Governo Local Hazel Blears enaltecer o
prefeito Ken Livingstone por “revitalizar Londres” antes da corrida para a prefeitura em 1º de maio, sem se
lembrar de que, apenas ointo anos atrás, os Trabalhistas expulsaram Livingstone do partido por este ter
insistido em concorrer como independente. O ministro das Relações Exteriores David Miliband ofereceu
raros momentos de poder de estrela a um partido que parece sentir falta do carisma de Tony Blair. Fim do
resumo.

Brown: “Usar a oportunidade de poder”

2. (C/NF) A conferência de primavera, entre 27 de fevereiro e 2 de março, do Partido Trabalhista, marcada


como evento inaugural para as eleições locais em 1º de maio, teve como destaque o discurso de abertura do
primeiro-ministro Gordon Brown com a intenção de inflamar a crença no partido. Eloquente na articulação
de sua visão do propósito do partido o discurso não conseguiu arrancar do público mais do que aplausos de
polidez. Dando início à sua fala com o reconhecimento de que os últimos meses foram difíceis, Brown falou
da série de desafios que o governo enfrentou logo que assumiu o cargo: enchentes, febre aftosa, gripe
aviária e o encolhimento do crédito global. Ele não mencionou a decisão de não ir para as eleições
antecipadas que precipitaram a queda dos números do Partido Trabalhista (ver ref.). Em vez disso, Brown
falou da economia global do futuro, na qual trabalhadores qualificados e empresários teriam retornos
valiosos, e declarou que os padrões superiores de educação forneceriam o necessário aos britânicos para
obterem sucesso na economia globalizada do futuro. Enfatizou sua visão segundo a qual a pobreza,
particularmente entre crianças, era uma “cicatriz na Grã-Bretanha”, e expôs em gráficos os custos em
habilidade e empreendimentos à Grã-Bretanha quando o potencial é negligenciado por causa de saúde
debilitada e educação fraca. Um governo trabalhista “resoluto e progressivo” (Brown cometeu um ato falho
e disse “poderoso e progressivo”, mas se corrigiu) tinha de usar a “oportunidade de poder” para levar o
“poder da oportunidade” àqueles indivíduos da sociedade britânica em necessidade.

3. (SBU) Embora o discurso de Brown tenha abordado basicamente questões nacionais, ele estendeu sua
análise dos custos da pobreza para o restante do mundo, observando que 72 milhões de crianças não têm
acesso à escola e prometendo eliminar doenças como difteria, tuberculose e malária. Brown solicitou uma
extensão das sanções contra o Sudão e a libertação da dissidente birmanesa Aung San Suu Kyi.

4. (SBU) Em uma sessão de perguntas e respostas após as observações de Brown, muitas das perguntas do
público eram sobre a administração do governo trabalhista nas questões do padrão escolar e da assistência
médica – perguntas feijão com arroz para membros do Partido Trabalhista em nível local. (Comentário da
embaixada: A discussão sobre questões educacionais foi muito detalhada – um parlamentar de Birmingham
disse a Poloff que “o Partido Trabalhista é composto de professores”, explicando que suas preocupações de
classe tendem a dominar os eventos do partido. Fim do comentário.) Curiosamente, relatos da mídia em
torno de uma possível e iminente rebelião contra o governo por causa da legislação de segurança para
estender o período de detenção legal de 28 para 42 dias, as questões do terrorismo, poder policial e
liberdades civis não foram citados. Enquanto Brown atacou o partido Conservador pelos planos de cortes de
imposto e oposição ao plano de reforma da UE do Tratado de Lisboa, pouco se referiu às futuras batalhas
por conselhos locais que o partido Liberal Democrata apresenta como grande ameaça tanto aos Trabalhistas
quanto aos Conservadores. Um membro dos “estudantes do Partido Trabalhista” de Cardiff se levantou para
dizer que tinha 8 anos quando o Partido Trabalhista entrou no poder, e perguntou o que deveria dizer às
pessoas agora a respeito do que faz do partido uma força radical. Brown reiterou seu apelo para acabar com
a pobreza e eliminar a doença em nível global. Um palestino que perguntou o que Brown faria para acabar
com o conflito na Palestina provocou rara explosão de aplauso; Brown respondeu mencionando uma já
marcada conferência de investimentos.

As preocupações financeiras dos Trabalhistas

5. (C/NF) A falta de energia que pairava sobre o discurso de abertura era evidente também em outros
lugares, por causa dos poucos presentes ou das preocupações financeiras do partido. Membros do Partido
Trabalhista reclamaram que os organizadores da conferência escolheram um fim de semana ruim – os
membros do País de Gales não compareceram por causa do feriado de St. David, em 1º de março (St. David
é o padroeiro do País de Gales, e a comemoração de seu dia é um dever nacional). E o Dia das Mães na
Grã-Bretanha, em 2 de março, deixou muitos possíveis frequentadores na posição de ter de escolher entre o
Partido Trabalhista e sua “mãe”. A julgar pela frequência, as mães ganharam em muitos casos. Os
trabalhadores do Partido, que têm vivido com pouco dinheiro há vários anos, eram raros. Aqueles que
compareceram não estavam particularmente motivados: quando Poloff pediu uma cópia do discurso do
primeiro-ministro, um trabalhador do partido recomendou a versão na internet, que várias horas depois
ainda não havia sido atualizada a ponto de refletir extensas mudanças no conteúdo. Alguns membros,
cientes das dificuldades financeiras do partido, perguntaram por que tanto dinheiro havia sido gasto na
corrida para vice-presidente do Partido Trabalhista em 2007, observando que o dinheiro levantado pelos
candidatos teria sido mais bem aproveitado para apoiar as campanhas locais do partido este ano.

Recrutamento feminino

6. (C) Organizada em torno de três temas-chave, a conferência enfocou o recrutamento de mulheres


candidatas, melhor comunicação com as minorias e maior desempenho do Partido Trabalhista no governo
local. As três áreas foram selecionadas com a visão de se preparar para as eleições locais, mas parecia haver
discordância entre o estado desses esforços e a iminência das eleições de maio. Na questão da delegação de
poder às mulheres, a parlamentar Barbara Follett deu conselhos sobre como uma mulher pode efetivamente
se apresentar como candidata a um público de cerca de 25 mulheres que incluía uma possível, porém não
ativa, candidata. (Comentário da embaixada: Embora o Partido Trabalhista congratule a si próprio por ter
mais mulheres no Parlamento que os Tories, o processo de recrutamento/delegação na conferência parecia
estar ainda em estágios iniciais. Fim do comentário.) Organizações locais do partido e sindicatos, segundo
outros porta-vozes das questões da mulher, são os lugares em que as mulheres têm de subir sozinhas, sem
muita ajuda do aparato central do partido.

Buscando eleitores muçulmanos

7. (C) Dez pessoas (incluindo Poloff) compareceram a um evento com o objetivo de melhorar o alcance do
Partido Trabalhista em comunidades muçulmanas (Comentário da embaixada: Devido à perda de apoio dos
muçulmanos ao Partido Trabalhista, após a Guerra do Iraque, o baixo comparecimento de ativistas do
partido no evento foi inexplicável. Fim do comentário). O conselheiro de Manchester e ex-prefeito Afzal
Khan fez recomendações aos candidatos do Partido Trabalhista que buscam votos nas comunidades
muçulmanas, incluindo: usem “As Salam Aleikum” como saudação; não aperte a mão das mulheres;
participem de programas de rádio muçulmanos; envie cartões nos feriados religiosos muçulmanos; e
distribuam panfletos do lado de fora das mesquitas às sextas-feiras. O MPE* Gary Titley, de Bolton,
também deu um conselho importante aos candidatos, que evitem presumir que todos os muçulmanos têm a
mesma opinião e que é fundamental manter elos com organizações de comunidades de base. Um
muçulmano britânico de Nottingham descreveu o que considerava supressão de grande contingente
muçulmano em seu Partido Trabalhista local; Khan respondeu que havia um processo democrático e que os
muçulmanos em Nottingham deveriam usá-lo.

8. (SBU) A secretária de Comunidades e Governo Local Hazel Blears ressaltou as realizações do Partido
Trabalhista no governo local. O centro revitalizado de Birmingham, incluindo o centro onde ocorreu o
evento, foi apontado como uma conquista do Partido Trabalhista, assim como a “revitalização de Londres”
na administração do prefeito Ken Livingstone. Em grupos isolados, no entanto, houve uma sessão
desagradável de “efetiva oposição”. Os membros do Partido Trabalhista reclamaram que para os
conselheiros do partido – que estão na linha de frente, por assim dizer, enfrentando os conselhos dominados
pelos Tories e Liberais Democratas – há pouco ou nenhum apoio do partido tanto em termos de política
substantiva quanto de assistência pessoal.

O poder de estrela de Miliband


9. (C/NF) Por outro lado, em uma conferência-chave com poucas pessoas, a enorme excitação sempre que o
ministro das Relações Exteriores David Miliband aparecia era evidente. O evento do Partido Trabalhista do
Parlamento europeu, que aconteceu na hora do almoço, falou sobre o Tratado de Lisboa e teve Miliband
como palestrante, ficou lotado. Após a apresentação ele teve uma sessão com mais de cem estudantes do
Partido Trabalhista que claramente o idolatraram. Tropeçando em uma sessão que mais tarde foi revelada
como “particular”, Poloff ouviu Miliband esboçar seus critérios para um “país bem-sucedido” no futuro:
abertura, poder para toda a população e elos globais. Há uma distinção cada vez menor entre políticas
externas e internas, disse aos estudantes, e o desafio é mobilizar as pessoas para que mudem. As lições das
décadas de 80 e 90 foram que “coalizões arco-íris não funcionam”; para mobilizar “forças dinâmicas”, os
líderes políticos devem desenvolver uma narrativa unificadora de ideologia. A esse respeito, o Partido
Trabalhista deve decidir se é o partido da classe trabalhadora ou da classe média. Respondendo a perguntas
sobre política externa, Miliband apoiou a reforma das Nações Unidas e observou que a “questão real” na
ONU é seu fracasso em cumprir sua “responsabilidade de proteger”, porque a maioria das ameaças aos civis
vem de seus próprios governos e não de invasões estrangeiras. Ele defendeu a participação do Reino Unido
nos jogos olímpicos da China como oportunidade de jogar uma luz sobre a “verdadeira China, não obstante
seus defeitos e imperfeições”. Ele enfatizou que o Irã representa perigo não apenas no que se refere às
armas nucleares, mas nas próprias práticas internas de direitos humanos. Ele observou, por exemplo, que o
Irã era o país com maior índice per capita de pena de morte no mundo.

Comentário

10. (C/NF) Os membros do Partido Trabalhista cada vez mais perguntam a si mesmos o que levantou um
estudante de Cardiff: O que torna o Partido Trabalhista “radical” após onze anos no governo? Para um
partido que ainda contém grande elemento que se sente mais confortável na oposição, esse
autoquestionamento contribui para um sentimento de falta de direcionamento pós-Blair. Ainda que Blair
tenha se tornado impopular, ele era o sol em torno do qual o partido orbitava, e seus discursos,
independentemente do conteúdo, provocavam reação emocional. A visão sólida e louvável de Brown não
provoca oposição, mas também não causa grande entusiasmo. A dois meses das eleições locais, um Partido
Trabalhista limitado em termos financeiros dificilmente parece ser capaz de mobilizar-se para uma
campanha que não apenas determinará o destino do Partido Trabalhista em nível local, mas que também
poderá afetar o próprio mandato de Gordon Brown como líder. A conferência com baixo índice de
comparecimento não teve o furor que uma forte representação parlamentar do partido teria provocado e, não
obstante o poder de estrela de Miliband, nenhum possível desafiante de Brown surgiu. Mas a ironia no fato
de o partido manter Ken Livingstone como modelo de conquista do Partido Trabalhista, apenas oito meses
depois de sua expulsão por concorrer à prefeitura de Londres como candidato independente, não passou
despercebido na mídia do Reino Unido.
Nota

* MEP – Membro do Parlamento Europeu. (N. do T.)


Afirmam que o prefeito de Moscou lidera o sistema
corrupto
Sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010, 15h39
SEÇÃO SECRETA 01 DE 03 MOSCOU 000317
SIPDIS
EO 12958 DECL: 11/02/2020
TAGS PGOV, PREL, PHUM, PINR, ECON, KDEM, KCOR, RS”>RS
ASSUNTO: O DILEMA LUZHKOV
Classificado pelo embaixador John R. Beyrle. Razão: 1.4 (b), (d).

1. (C) Resumo: O prefeito de Moscou Yuriy Luzhkov permanece um membro leal do Partido Rússia Unida,
com reputação de garantir que a cidade tenha os recursos necessários para seu bom funcionamento. Cada
vez mais surgem questões acerca das ligações de Luzhkov com organizações criminosas e o impacto
causado no governo por elas. Luzhkov se mantém em posição firme devido a seu mérito como consistente
captador de votos para o partido governante. Infelizmente, o mundo obscuro de práticas de negócios
corruptas sob a administração Luzhkov continua em Moscou, com funcionários corruptos exigindo
subornos de empresas que tentam funcionar na cidade. Fim do resumo.

Visão geral: o dilema Luzhkov do Kremlin

2. (C) O prefeito de Moscou Yuriy Luzhkov é a personificação de um dilema político para o Kremlin.
Membro leal e fundador do Rússia Unida, além de confiável captador de votos e influência para o partido
político e seu líder, o primeiro-ministro Putin, as ligações de Luzhkov com a comunidade empresarial de
Moscou – a grande e legítima, assim como a marginal e corrupta – permitiram a ele pedir apoio sempre que
necessário para obter votos para o Rússia Unidaou garantir que a cidade tenha os recursos fundamentais
para seu bom funcionamento. A reputação nacional de Luzhkov como homem que governa o ingovernável,
limpa as ruas, mantém o metrô funcionando e a ordem na maior metrópole da Europa, com quase onze
milhões de pessoas, lhe assegura certa liberdade por parte dos líderes do governo e do partido. Em outubro,
ele supervisionou o que até os membros do Rússia Unida consideraram uma eleição suja, comprometida,
para a Duma em Moscou, e recebeu apenas um tapinha na mão do presidente Medvedev.

3. (C) Os moscovitas questionam cada vez mais os procedimentos-padrão de trabalho de seu chefe
executivo, um homem que, desde 2007, não elegem mais diretamente. As ligações de Luzhkov com o crime
organizado e o impacto que essas ligações causaram no governo e no desenvolvimento de Moscou são cada
vez mais questão de debate público. Embora Luzhkov tenha ganhado um processo judicial contra o líder da
oposição Boris Nemtsov pela recente publicação: “Luzhkov: An Accounting ”, Nemstov e seus aliados do
movimento Solidariedade ficaram encorajados com o fato de o juiz não ter dado a vitória com base nas
acusações de corrupção, mas pelo tecnicismo da difamação.

4. (C) Poucos acreditam que Luzhkov deixará voluntariamente o cargo antes de 2012, quando a Duma de
Moscou deve apresentar um lista de candidatos a prefeito a Medvedev para seleção. O Rússia Unida
provavelmente contará com a máquina política de Luzhkov e seu genuíno apoio político para obter votos
para os candidatos do partido nas eleições da Duma estadual em 2011, assim como para as eleições
presidenciais de 2012. Sem sucessor aparente, e com nenhuma ambição além de continuar sendo prefeito,
Luzkhov está em uma posição firme. A evidência de seu envolvimento, ou pelo menos associação, com a
corrupção permanece significativa. Este telegrama apresenta esse lado de Luzhkov – que envolve não
apenas ele e o modo como lida com os políticos locais, mas também Putin e Medvedev à medida que se
aproximam as eleições de 2012.

Uma visão geral do mundo do crime de Moscou

5. (C) A ligação direta do governo municipal de Moscou com a criminalidade faz com que alguns o
chamem de governo “disfuncional” e a afirmar que este funciona mais como cleptocracia do que como
governo. Os elementos criminais desfrutam de um “krysha” (termo do mundo do crime/da máfia que
significa literalmente “telhado” ou proteção) que permeia a polícia, o Serviço Federal de Segurança (FSB),
o Ministério do Interior russo (MVD), bem como toda a burocracia do governo municipal de Moscou.
Analistas identificam uma estrutura em três camadas do mundo do crime de Moscou. Luzhkov no topo, o
FSB, o MVD e a milícia no segundo nível e, por fim, criminosos comuns e oficiais corruptos no nível mais
baixo. Trata-se de um sistema ineficiente no qual grupos criminosos preenchem um vazio em algumas áreas
porque a cidade não fornece certos serviços.

6. (C) XXXXXXXXXX nos disse que grupos criminosos étnicos de Moscou fazem negócios e pagam em
troca. São as sedes dos partidos, não os grupos criminosos, que decidem quem participará da política.
XXXXXXXXXX afirmou que são os partidos políticos que têm a força política, portanto têm poder sobre
esses grupos criminosos.

MOSCOU 00000317 002 DE 003

Grupos criminosos trabalham com burocratas municipais, mas em nível baixo. Por exemplo, armênios e
georgianos tinham forte envolvimento em jogos de azar até que oficiais municipais fecharam as instalações
de jogos. Esses grupos étnicos precisavam de proteção contra as legislações impostas, por isso procuraram
cooperação com os burocratas municipais. Em tais cenários, grupos criminosos pagavam por proteção
policial.

As ligações de Luzhkov com figuras do crime

7. (S) XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

8. (S) Segundo XXXXXXXXXX, Luzhkov usou dinheiro do crime para apoiar sua ascensão ao poder e se
envolveu com suborno e acordos em torno de lucrativos contratos de construção por toda a Moscou.
XXXXXXXXXX nos disse que amigos e associados de Luzhkov (incluindo o mafioso russo Vyacheslav
Ivankov, morto recentemente, e o supostamente corrupto representante da Duma XXXXXXXXXX) são
“bandidos”. XXXXXXXXXX. XXXXXXXXXX disse que o governo de Moscou tem ligações com muitos
grupos criminosos e costuma receber propina de empresas. As pessoas subordinadas a Luzhkov mantêm
essas ligações criminosas. Recentemente, o líder do partido ultranacionalista da oposição PLDR (Partido
Liberal Democrata da Rússia), Vladimir Zhirinovskiy, criticou abertamente Luzhkov e pediu sua saída,
afirmando que seu governo era o “mais criminoso” na história da Rússia. Essa impressionante denúncia,
feita no Canal 1 de TV estatal, foi vista como uma repreensão indireta do Kremlin a Luzhkov.

9. (S) XXXXXXXXXX nos disse que sabe que as leis russas não funcionam. O sistema de Moscou se
baseia em permitir que os funcionários ganhem dinheiro. Os burocratas do governo, o FSB, o MVD, a
polícia e o Ministério Público recebem propinas. XXXXXXXXXX afirmou que tudo depende do Kremlin e
que achava que Luzhkov, bem como prefeitos e governadores, pagam a funcionários de dentro do Kremlin.
XXXXXXXXXX disse que o sistema vertical funciona porque as pessoas pagam propinas em todos os
níveis. Ele nos disse ainda que é comum testemunhar funcionários se dirigindo ao Kremlin com grandes
valises e guarda-costas, e especulou que essas valises estão repletas de dinheiro. Os governadores, em todas
as regiões, recebem dinheiro baseado em propinas, em um esquema parecido com o sistema de impostos.
XXXXXXXXXX descreveu que existem estruturas paralelas nas regiões em que as pessoas podem pagar
seus líderes. Por exemplo, o FSB, o MVD e a milícia têm sistemas próprios de recebimento de dinheiro.
Além disso, XXXXXXXXXX nos explicou que os deputados geralmente têm de comprar suas posições no
governo. Precisam de dinheiro para chegar ao topo, mas quando chegam ali, a posição se converte em
oportunidades bastante lucrativas de ganhar dinheiro. Os burocratas em Moscou são notórios por fazer toda
espécie de negócio ilegal para conseguir dinheiro extra.

10. (S) Segundo XXXXXXXXXX, Luzhkov está seguindo ordens do Kremlin para não perseguir grupos
criminosos de Moscou. Por exemplo, XXXXXXXXXX afirmou que o fechamento de casas de jogos não foi
nada mais do que um espetáculo de relações públicas de Putin. XXXXXXXXXX disse que não ver sentido
no fato de malas de dinheiro entrarem no Kremlin, já que seria muito mais fácil abrir uma conta secreta no
Chipre. Especulou que os chefes de polícia de Moscou possuem um orçamento de guerra secreto de
dinheiro. XXXXXXXXXX disse que esse dinheiro provavelmente é usado para resolver problemas
decididos pelo Kremlin, como fraudar as eleições. Esse fundo pode ser acessado como recurso quando
chegam ordens superiores, por exemplo, para propinas ou suborno de pessoas, quando necessário.
XXXXXXXXXX postulou que o Kremlin é capaz de dizer a um governador que ele pode governar
determinado território, mas em troca ele deve fazer o que o Kremlin manda.

11. (C) Apesar da posição sólida de Luzhkov, alguns de nossos contatos creem que sua armadura apresenta
ranhuras, devido

MOSCOU 00000317 003 DE 003

às atividades corruptas. XXXXXXXXXX nos disse que Luzhkov tem muitos inimigos, porque sua mulher
tem os acordos comerciais mais lucrativos de Moscou e muita gente acha que Luzhkov já ganhou dinheiro
demais. XXXXXXXXXXX. XXXXXXXXXX afirmou ainda que Luzhkov está “de saída”, embora tenha
reconhecido que o Kremlin ainda não identificou substituto adequado. Questões como a corrupção e o
congestionamento no trânsito até certo ponto desgastaram a popularidade de Luzhkov. Putin, disse
XXXXXXXXXX, provavelmente escolherá o indivíduo menos esperado para substituir Luzhkov.

Todos precisam de um “Krysha” em Moscou


12. (C) De acordo com muitos observadores, o clima sem lei na Rússia dificulta a sobrevivência de
empresas sem que tenham de pagar por algum tipo de proteção. XXXXXXXXXX explicou como as
propinas funcionam em Moscou: o dono de um café paga, em dinheiro, ao chefe da polícia local por meio
de um mensageiro. Ele precisa pagar certa quantia negociada, obtida de certos lucros. Os altos preços dos
produtos em Moscou cobrem esses custos ocultos. Às vezes, as pessoas recebem “má proteção”, no sentido
de que o “krysha” extorque uma quantia excessiva em dinheiro. O resultado disso é que não conseguem
arrecadar o suficiente para ter lucro e manter a empresa. Se alguém tenta sobreviver sem a proteção, acaba
fechando as portas imediatamente. Por exemplo, funcionários do serviço de combate a incêndio ou do
serviço sanitário aparecem na empresa e inventam alguma violação. Segundo XXXXXXXXXX, todos
aderiram a proteção em Moscou. Desse modo, isso virou norma. De maneira geral, os moscovitas têm
pouca liberdade para se pronunciar contra as atividades corruptas, e têm medo de seus líderes.

13. (C) XXXXXXXXXXX explicou que os empresários de Moscou entendem que é melhor obter proteção
do MVD e do FSB (em vez de grupos de crime organizado) porque eles não só possuem mais armas,
recursos e poder do que os grupos criminosos, como também são protegidos pela lei. Por isso, a proteção
concedida por gangues criminosas não tem mais uma demanda tão grande. A polícia e o MVD recebem
dinheiro das empresas pequenas enquanto o FSB recebe das empresas grandes. Segundo XXXXXXXXXX,
o “krysha” do FSB é supostamente a melhor proteção. Ele nos disse que, embora tanto o MVD quanto o
FSB tenham estreitas ligações com Solntsevo, o FSB é o verdadeiro “krysha” para Sointsevo. Esse sistema
não se trata de um incentivo para empresas menores e ninguém está imune; mesmo os ricos que pensam
estar protegidos são presos. De acordo com a pesquisa da Transparência Internacional de 2009, as propinas
custam trezentos bilhões de dólares por ano à Rússia, ou cerca de 18% de seu produto interno bruto.

XXXXXXXXXX argumentou que o sistema de “krysha” provocou um desgaste na disciplina interna da


polícia. Por exemplo, jovens oficiais da polícia gastam dinheiro comprando veículos luxuosos que um
trabalhador comum jamais poderia adquirir.

Comentário

14. (S) Apesar da declarada campanha anticorrupção de Medvedev, a corrupção em Moscou continua
generalizada, com Luzhkov no topo da pirâmide. Luzhkov lidera um sistema no qual parece que quase
todos, em todos os níveis, estão envolvidos em alguma forma de corrupção ou comportamento criminoso. O
dilema de Medvedev e Putin é decidir quando Luzhkov se tornará mais dívida do que lucro. Enquanto o
descontentamento da opinião pública com Luzhkov tem crescido desde as eleições “manchadas” em
outubro de 2009, a liderança do Rússia Unida sabe que ele tem sido um apoiador leal, capaz de obter votos.
Tirá-lo do posto antes da hora pode criar grandes dificuldades, porque ele pode ligar outras pessoas do
governo à corrupção. Embora uma mudança nas atividades questionáveis de Luzhkov pareça ser a atitude
correta, mantê-lo no governo administrando a cidade com eficiência é a melhor opção do Rússia Unida. No
fim, o tandem acabará tirando Luzhkov de cena, como já fez com outros líderes regionais havia muito no
poder, como o governador do oblast* de Sverdlovsk, Eduard Rossel, e o presidente da República do
Tartaristão, Mintimir Shaymiev.

BEYRLE
Nota

* Subdivisão administrativa e territorial em alguns países eslavos e ex-repúblicas soviéticas. (N. do T.)
Almoço regado a álcool ajudou as relações militares entre
Estados Unidos e Tajiquistão
Terça-feira, 01 de agosto de 2006, 12h12
SEÇÃO CONFIDENCIAL 01 DE 02 DUSHANBE 001464
SIPDIS
SIPDIS
DECLARADO PARA SCA/CEN, EUR/RUS, EUR/CARC, PM, S/P
EO 12958 DECL: 1/8/2016
TAGS PGOV, PREL, MARR, GG, RS”>RS, TI
ASSUNTO: OBSESSÃO DO MINISTRO DA DEFESA TAJIQUISTANÊS DA VELHA GUARDA
SOBRE A OTAN E A GEÓRGIA
DUSHANBE 00001464 001.2 DE 002
CLASSIFICADO POR: embaixador Richard E. Hoagland, embaixada de Dushanbe, Departamento de
Estado, RAZÃO: 1.4 (b), (d)

1.(C) RESUMO: O embaixador suportou um almoço de mais de três horas com o ministro da Defesa do
Tajiquistão, Sherali Khairulloyev, em 01 de agosto. Além da conversa geral, o ministro pediu desculpas
pelas relações anteriores que não atingiram as expectativas; falou repetidamente sobre a OTAN, a Geórgia e
Saakashvili; e afirmou que a Organização de Cooperação de Xangai deve se tornar um bloco militar para
enfrentar a OTAN. No fim do almoço regado a álcool, o ministro estava falando indistintamente e mal se
aguentava em pé. Suspeitamos que o presidente Rahmonov ordenou que o ministro fosse o anfitrião desse
almoço de despedida. Embora tenha sido incomum em muitos aspectos, acreditamos que o almoço nos
ajudou a dar mais um passo em direção às relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão. FIM DO
RESUMO.

2. (C) O ministro da Defesa Khairulloyev pediu desculpas várias vezes pelos “mal-entendidos e
oportunidades perdidas” no passado quanto às relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão.
Afirmou repetidas vezes que espera um relacionamento cada vez melhor e mais produtivo. Ele disse
entender que o Tajiquistão precisa de um número de parceiros iguais, não apenas um (a Rússia), se deseja
prosperar.

3. (C) O ministro Khairulloyev falou várias vezes sobre a OTAN e a Geórgia. Perguntou repetidamente:
“Por que a OTAN quer um país como a Geórgia? Nem o Pacto de Varsóvia incluiu perdedores!” Ele
perguntou se a OTAN vai melhorar a economia “sem esperança” da Geórgia. Perguntou por que os Estados
Unidos “favorecem o adolescente” presidente Saakashvili. A única explicação possível, afirmou o ministro,
é “enfiar o dedo no olho de Moscou”. Ele acrescentou: “Quando Stálin criou a República Socialista
Soviética da Geórgia, incluiu a Abcásia e a Ossétia do Sul, porque sozinhos os georgianos são
‘insignificantes’. “Sem a Abcásia e a Ossétia do Sul”, afirmou o ministro, “a Geórgia não tem esperança de
existir”.

4. (C) Khairulloyev explicou que a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) tem de se desenvolver
para se tornar um bloco militar “com um terço da população mundial” para enfrentar a OTAN. O
embaixador perguntou por que a Rússia e as ex-repúblicas soviéticas viam a OTAN como inimiga.
Khairulloyev levantou-se e declarou: “Quando o Bloco de Varsóvia se desintegrou, é claro que um novo
bloco surgiu para dominar o mundo. Essa é a dialética histórica. Agora é hora de enfrentar a OTAN”.

Cor

5. (C) Esse almoço aconteceu na sala de jantar particular do ministro Khairulloyev, em seu escritório
particular reformado recentemente. O ministro enfatizou que raramente recebe convidados em sua sala de
jantar particular e que apenas um outro embaixador em especial havia participado de um jantar ali – o ex-
embaixador russo Maksim Peshkov.

6. (C) O embaixador perdeu a conta dos brindes após o décimo. Havia vodca no copo do ministro e o copo
grande estava sempre cheio de uísque. Mais tarde, durante o almoço, o ministro falava indistintamente e não
conseguia andar em linha reta. Além disso, enquanto o embaixador tentava sair com elegância, o ministro
insistiu em lhe mostrar “salas secretas” no ministério. Cada “sala secreta” era apenas mais uma sala de
reunião com um grande vaso de flores e – mais uma vez – copos dispostos nas mesas para fazer brindes.

Comentário

6. (C) Esse evento bizarro foi curioso, porque as relações militares entre Estados Unidos e Tajiquistão têm
melhorado acentuadamente, principalmente com a Guarda Nacional, mas também com o Ministério da
Defesa russo-cêntrico. Khairulloyev continua deixando claro que serve à conveniência do presidente
Rahmonov e pode ser substituído após a eleição presidencial de novembro. Embora esse festival de
bebedeira tenha indicado como muitos da velha guarda das ex-repúblicas soviéticas fazem negócios
mútuos, foi bastante incomum para um convidado americano. Foi, até certo ponto, sinal de respeito. Não
ficaríamos surpresos se o presidente Rahmonov tivesse mandado Khairulloyev “fazer alguma coisa para o
embaixador que estava de partida”, e nos perguntamos se seria uma espécie de discurso de despedida de um
ministro de segurança da velha guarda que desconfia que seus dias de serviço estão contados. Seja como
for, ficamos felizes por Khairulloyev ter bebido. FIM DO COMENTÁRIO.

HOAGLAND
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Table of Contents
Ficha
Rosto
Créditos
Agradecimentos
Sumário
Lista de personagens
Introdução
A caça
Bradley Manning
Julian Assange
A ascensão do WikiLeaks
O vídeo do apache
As conversas com Lamo
O acordo
No Bunker
Os diários de guerra do Afeganistão
Os diários de guerra do Iraque
Os telegramas
O homem mais famoso do mundo
Parceiros incômodos
Antes do dilúvio
O dia da publicação
O maior vazamento da história
A balada da prisão de Wandsworth
O futuro do WikiLeaks
Apêndice | Telegramas diplomáticos americanos
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