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DIREITO E BIOETICA (*) Pelo Prof. Doutor José de Oliveira Ascenséo I — Delimitagao do tema Ocorre desde logo delimitar o tema. O conceito de bioética é extensissimo. Mas dispensa-se 0 esforco de tracar uma definicdo, alids bastante controvertida ('), porque seguramente ficaremos aquém das suas fronteiras. Interessa-nos apenas entrelacar vida humana, ética e direito; ou, se quisermos, as intervengdes sobre o homem como ser biolégico a luz da ética e do direito. Mesmo assim, é um grande dominio fervilhante, cujo con- teudo resulta antes de mais da histéria recente. Ha que estudar o homem ser biolégico na sua totalidade: desde o embriao, e antes ainda, desde o patriménio genético, até ao cadaver, e tudo valo- rar 4 luz da ética e do direito. E entao necessario um estudo interdisciplinar, em que é fun- damental o tripé constituido pela Biologia, a Etica e o Direito. Porém, advirto que tudo o que respeita 4 Sociologia e as Cién- (*) Texto-base da conferéncia pronunciada em 5-X1-90 no Curso sobre Direito da Sauide e Bioética, promovido pela Faculdade de Direito de Lisboa e pela Escola Nacional de Satide Publica. (©, Cfr. Cocoopalmerio, em Modificazioni genetiche e diritti dell'uomo, publi- cago do Instituto Internacional de Estudos dos Direitos do Homem, coordenada por Guido Gerin, Cedam (Pédua), 1987, 13 e segs.. 430 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO cias Médicas sera dado por conhecido, ou referido com toda a humildade de quem sé tem a aprender na matéria; e que a expo- si¢do sera conduzida para o ponto em que poderei trazer 0 con- tributo especifico — o Direito. De facto, em tudo o que respeita ao conhecimento e as pos- sibilidades de intervenc4o sobre o homem como ser biolégico tem havido avancos extraordinarios nos tempos recentes; esses avan- gos trazem também problemas extraordindrios 4 meditagao ética e a pratica juridica. Convém porém desdramatizar a situacdo, distinguindo o que ha de novo do que se repete. Os problemas sao na verdade extraor- dindrios; mas nao alteram a relacao qualitativa que sempre mediou entre as ciéncias da natureza e as ciéncias normativas. Sempre as descobertas cientificas trouxeram objecto de meditagao para a anilise filoséfica e juridica. Apenas, a aceleragao das desco- bertas cientificas obriga a uma aceleracdo dessa andlise; e as acres- cidas possibilidades de intervencdo sobre o ser humano obrigam a levar mais longe a meditacdo sobre a natureza essencial do homem. Mas hoje como ontem se responde 4 mesma necessidade fundamental de que marchem a par as ciéncias da natureza e as ciéncias normativas, para que o progresso se facga ao servico do homem, e nao em seu detrimento. Se a problematica ndo é assim dramatica na sua esséncia, é dramatica na instancia com que se coloca. Il — Etica O primeiro grande problema a apontar é porém o da fixa- gao do préprio critério ético de apreciacdo. Ha uma moral social, positivada através da sua aceitagéo generalizada na sociedade. Sera aquilo que se pratica ou é tido por moral em certo meio histérico. Tem necessaria influéncia no direito eéum critério de julgamento da adequacao das solucées trazidas pelo legislador. Por exemplo em pais onde predominem a promis- cuidade, ou a poligamia, ou a exploracdo do trabalho da mulher pelo marido, é impossivel legislar ignorando estas realidades. DIREITO E BIOETICA 431 Mas o debate sobre a bioética faz apelo a outra figuracdo da moral. Pressupde-se uma nogdo objectiva que iluminaria a rea- lidade ostentada pela ciéncia. Mesmo assim, ainda encontramos o obstaculo representado pelos varios entendimentos que da ética, mesmo nao positivada, se fazem. Particularmente importante foi ¢ continua a ser uma ética subjectivista ou voluntarista, que faria o ditame ético nas- cer da vontade do homem, como sua fonte, em vez de ser trazido ao homem do exterior. Nao € porém esse o acento que caracteriza genericamente © nosso tema. Fala-se numa moral absoluta — o que nao dizer imutdvel — que se fundaria na natureza; e muito particularmente, na natureza racional ou espiritual do homem. Em materia de bioética, esse parentesco é reforcado pela apro- xima¢ao que tem havido da doutrina dos direitos do homem. Pro- cura-se descobrir o que caracteriza essencialmente o homem e dai concluir sobre as exigéncias éticas. O apelo aos direitos naturais do homem — embora fosse susceptivel doutras leituras — leva a privilegiar 0 que se apresenta conforme com a natureza deste. Essa visdo implica o reptidio da concep¢io do homem como ser bioldgico. O homem nao é um mero ser biolégico que se explica € conduz num sentido de harmonia naturalistica, mas um ser ético, Porque a sua natureza é racional (melhor, espiritual). Tem os seus fins intrinsecos, e deve ser na sua totalidade, bioldgica e racio- nal, orientado no respeito da obtencdo desses fins. III — Valoragao constitucional Ha porém que perguntar se semelhante ética absoluta sera compativel com a Constituigao. Vivemos em tempo de pluralidade. A pluralidade implica diversidade. A diversidade parece implicar relativismo. As leis e a governacdo surgem-nos como o resultado de armis- ticios entre varias orientacdes, perguntando-se como € isso com- pativel com uma ética absoluta. Todavia, reflectindo um pouco, verificamos que nenhum pais, sobretudo numa civilizagdo antiga como a nossa, pode subsistir sem uma base fundamental de princtpios comuns. 432 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Para além de toda a diversidade, que atinge os aspectos mais concretos de actuacdo do poder, hé um nucleo de entendimento ético que provém justamente logo da cultura europeia. Na nossa Constituicdo, estes principios encontram expres- s&o através sobretudo do relevo que é dado aos direitos, liberda- des e garantias dos cidadaos, que representam limites da revisao constitucional (art. 288.°/d). Esses direitos nao sdo contingen- tes, porque exprimem uma visdo essencial de pessoa humana, que nao é criada pelo Direito mas servida por ele (). E a propria Constituigdo que impde pois uma andlise da problematica funda- mental a luz de consideragdes de ética absoluta. Nenhum principio, por mais absoluto, pode ter realizacdo pratica sendo através do espirito do homem. Essa passagem implica a possivel diversidade na aplicacao dos principios: formam-se maneiras distintas de ver, que ndo podemos do exterior conde- nar. Mas essas maneiras de ver colocam-se ao redor duma base objectiva, a pessoa humana, que a Constituicéo nos manda abso- lutamente observar. Debalde procuraremos na Constituigaéo a solugdo dos pro- blemas concretos de que se ocupa a Bioética (*). Nao ha porém que procurar na Constituigao solugdes concretas, mas grandes orientacdes. E essas hd que buscar, nao apenas a luz da nocao substancial de pessoa, mas pela andlise do conteido de direitos consagrados, como o direito a vida, a integridade pessoal e outros, na sua projeccdo possivel sobre o nosso tema. IV — Erica e direito Do caracter absoluto da ética nio se pode porém inferir que todo o seu contetido deva ser trasladado para o direito. Ja nao temos em conta tudo o que na ética é meramente intrassubjectivo, como o que se refere exclusivamente ao aperfei- @ € uma substancia, ndo apenas uma figura funcional e formal. A pessoa n&o se limita a ser sujeito de direito. ©) Cfr. Paladin, em Modificazioni (cfr. nt. 1) 80-82. DIREITO E BIOETICA 433 goamento da pessoa, sem reflexo directo na vida de relacéo. Para além disso, bem pode acontecer que, concluindo-se embora que a ética orienta num sentido, se deva concluir que o direito se deve abster de intervir. De ha muito que se afirmou que o direito seria um minimo ético, no sentido que s6 receberia da ética um minimo de orienta- ges, que todavia tivessem uma particular exigéncia de observan- cia na vida social. Seja ou nao inteiramente correcto (4), esta concepcao ilustra bem a distancia que vai da apreciacao ética a uma disciplina juridica (°). No caso da Bioética, ha numerosas outras razées que podem levar a que uma orientag&o, mesmo que firmemente estabelecida no plano ético, nao deva ter repercussdo no plano juridico. Basta pensar na vertiginosa evolugao dos fendmenos em anilise, na rela- tiva juventude desta problematica, ainda nao devidamente equa- cionada, e na vantagem de fazer prosseguir um debate que leve a formagdo de consensos. Tudo isto conduz a que possamos afirmar como um princi- pio de Politica Legislativa, nas condigdes actuais, o de um cardc- ter minimo da intervencdo do legislador. Mas isso nAo significa, por outro lado, um convite a inércia legislativa. Muitos problemas estao j4 completamente equacionados. A inércia sé conduz a prossecugdo de praticas condenaveis e a consolidacao de situagdes que amanha se tenderao a apresentar como «direitos adquiridos». Também se podem tirar conclusdes indevidas de certos tipos de intervengdes parcelares que se realizarem. Nao é pelo facto de s6 se terem banido ou virem a banir as situacdes mais chocan- tes que haverd que concluir que todas as outras sao licitas. (@ Cfr. 0 nosso O Direito — Introdugdo e Teoria Geral, 6.* ed., Almedina, 1990, n.° 41. ©) Valdrini, em Bioéthique et Droit, publicagéo do Centro Universitério de Estudos Administrativos e Politicos da Picardia, coordenada por Michele Harichaux, PUF, 1988, 231 e nt., refere-nos situacdes em que a Igreja Catélica opds objeccdes éticas, sem todavia considerar que existe violagdo dos direitos fundamentais e por- tanto se reclama uma protecc4o legislativa. 434 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Isso poderd estar ligado a certas regras penais. A criminali- zacdo é sempre uma ultima ratio, pelo que € quanto possivel res- trita. Imaginemos assim que se incrimina somente a eutandsia sem consentimento. Dai nao haverd que inferir que é licita a eutana- sia consentida, mas simplesmente que nao é objecto da reaccdo penal. Enfim, n4o penso que a disciplina legislativa se deve limitar Aqueles sectores em que as formas de intervengAo sdo ja possiveis a ciéncia actual. Pode bem ser necessdrio, em certos casos, andar a frente duma evolucdo previsivel, para prevenir males que, con- sumada ela, se pudessem verificar, ou mesmo para vedar cami- nhos para objectivos que poderiam ser trilhados na falta duma orientacdo. V — Problemas — A. Reprodugdo Um rdépido apanhado dos problemas que se tém susci- tado, com relag&o com este sector, mostra a riqueza da proble- matica, e imp6e que limitamos os temas sujeitos 4 nossa apre- ciagdo. Podemos dividir essa problematica, consoante respeita, quanto ao ser humano, a: — reproducao — existéncia — morte A reprodugao ou procriagéo abrange tudo o que concerne a funcdo reprodutiva, até ao nascimento. Sao assim referiveis: @) praticas anti-concepcionais. Aqui se entrelacaria com o tema, jd econdémico-social, do malthusianismo. b) profilaxia ¢) esterilizagéo, que pode ser eugénica ou espontanea. a) diagndstico pré-natal, que suscita problemas éticos e sociais DIREITO E BIOETICA 435 e) diagnéstico pré-matrimonial, que foi discutido, parti- cularmente quanto a obrigatoriedade () f) manipulacdo genética, que pode porém ser considerada mais tarde como um aspecto de engenharia genética. Vamos examinar em especial dois grandes aspectos: — procriacao artificial — estatuto do embriao VI — Procriagao artificial A — A inseminagao artificial é realizada pela introdugao de sémen: — na futura mae — numa hospedeira Se é na futura mae, ha que distinguir a inseminacao: — homédloga — heterdloga E homdloga se ha um casal na iniciativa da Procriagao e o sémen provém do varao. Nos outros casos é heterdloga: o sémen. provém dum dador. Se é numa hospedeira, sé releva aqui se o sémen for do vardo. Parece dever estar ligado a uma transferéncia de embrido, da hos- pedeira para a futura mae, o que nos faz cair nas hipdteses seguintes. B — Fecundacao artificial Toda a fecundacdo é artificialmente provocada. Pode porém a fecundacdo dar-se: — no utero da futura mae — in vitro — no utero duma hospedeira (®) Cfr. Albanese, em Modificazioni (v. nt. 1), 68. 436 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO Em qualquer caso, a fecundacdo resultaré da reuniéo dos elementos que se combinardo seguidamente no embriado. Também se pode distinguir a fecundacéo em: — homdloga — heterdloga (’) Analogamente, nao poderia colocar-se a hipdtese de uma fecundagdo artificial duplamente heterdloga. Se a fecundacdo se faz in vitro é necessdrio seguidamente implantar o embrido no utero. Mas esse aspecto sera conside- rado a propésito do embrido. O esperma e/ou os évulos utilizados na fecundagao artifi- cial podem ser: — frescos — congelados Deste modo, pode a fecundag&o s6 se dar muito tempo depois. Pode assim alguém ser gerado (formado o embrido) apés o fale- cimento dos progenitores biolégicos. Foram debatidas situagdes tipicas, que levaram, ou a autorizacao do tribunal para a utiliza- gao do sémen do marido falecido para fecundar a vitiva, ou (na Australia) 4 destruigdo de évulos fecundados para evitar que sur- gisse alguém que viesse a herdar de progenitores ja falecidos (°). Mais em geral, sempre que se ultrapassa artificialmente a vida dos progenitores, biolégicos ou de destino, surgem problemas. Ha um ser potencial condenado a orfandade. A situacdo é ané- mala no plano do estabelecimento da filiacao e do direito suces- sorio. Pode a ocorréncia estar ligada a vontade de uma pessoa de se prolongar para além da morte, ou a vontade da viuva de gerar um filho do marido falecido. Tende-se porém a considerar que, eticamente, tal vontade nao prevalece sobre o direito de todo © novo ser a ter quanto possivel uma vida familiar normal (°). (7) Com esta se associa a distingdo da fecundacdo artificial em essencial e inquinada, referida por Coccopalmerio (v. nt. J), 18, sendo a ultima caracterizada pela intervenc&o de elementos de pessoa estranha ao casal. @® Cfr. Ramon Martin Mateo, Bioética y Derecho, Ariel, 1987, 35. ©) Neste sentido de Clermont, Bioéthique (v. nt. 5), 236. DIREITO E BIOETICA 437 Da multidéo de problemas ético-sociais que se suscitam, vamos isolar apenas um: a relacdo, na fecundagao artificial hete- réloga, entre o dador e © novo ser. As posigdes vao desde a defesa do anonimato a afirmagao de paternidade do dador. O anonimato é defendido, entre outras TazGes, pela necessidade de consolidar o novo ser no meio que o desejou. Seria perturbadora a entrada dum estranho no meio familiar — sobretudo quando se trata dum casal e o estranho pode tomar func4o substitutiva em relagdéo a um dos membros deste. Para alcangar este desiderato vai-se desde a mistura de sémen de varios dadores, para nao ser possivel determinar qual foi afi- nal decisivo, até a obrigacdo de os intervenientes técnicos guar- darem segredo sobre a origem do sémen. E em consequéncia, na generalidade das leis nega-se a filiacio juridica em relagéo ao dador. Mas também ha orientacdes em sentido contrario. Invoca-se ent&o a necessidade médica do conhecimento dos antecedentes hereditarios e a necessidade psicolégica de cada um conhecer a sua estirpe. Desta posicdo descorre a necessidade dum registo dos dadores intervenientes. Mas pode conduzir ou nao a afirmacdo de um nexo juridico de filiago, como veremos depois. VII — Embrido e feto Sao numerosas as formas possiveis de intervencdo sobre o embrido e o feto (!%). Os grandes problemas surgem por o embrido poder ser sepa- rado da mae ou até formado ab initio no exterior. Neste ultimo caso, tanto pode ser introduzido imediatamente no titero como ser conservado por congelacao. E com isto pode ultrapassar a vida do casal de que geneticamente provém, ou a que se destinaria. Esta eventualidade é mais provavel quando se () Como exemplo de intervengao favoravel temos a injung4o, nos E.U.A., para a manutengdo artificial da vida da mde gravida, até tornar possivel o nasci- mento do filho: Martin (v. nt. 8), 11. 438 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO trata dos chamados embriGes excedentdrios, portanto os que apés uma fecundacdo artificial ndo se tornou necessdrio utilizar. A dilacgao cria problemas andlogos aos que referimos ja a Propésito da fecundacdo artificial. Tém-se formulado prazos den- tro dos quais a utilizacdo se deveria fazer (''). Subsiste porém o problema do destino a dar a estes embrides, quer seja determinado pelos «encomendantes» quer pela entidade de guarda. Mais genericamente, toda a fecundacdo artificial traz em todo o caso a problematica do embrido nao utilizado. Basta que a destinatdria falega entretanto, por exemplo. Mesmo que nao aplicado a experiéncias cientificas, qual o seu destino? Serd Pprovavelmente o aniquilamento, quando o embriao nao é utili- zado numa hospedeira. A possibilidade de realizacao de experiéncias cientificas com embrides humanos tem sido vivamente discutida. Quando séo admitidas ('7), ressalva-se que o embrido usado para experién- cias nao pode ser transferido para o corpo da mulher. Quereria isto dizer que, dos embrides, uns tantos seriam portadores de vida, outros seriam condenados. Por um outro prisma; nos casos da fecundacdo in vitro, o embrido deve ser implantado no utero. Mas pode sé-lo no utero: — de quem tomou a iniciativa da procriagdo — duma hospedeira Pode também haver transferéncia do embrido, do utero da mae biolégica para o duma hospedeira. A mie uterina nao surge pois necessariamente associada a fecundacdo artificial. Temos assim a figura das mdes de aluguer. Fala-se ainda em transferéncia autéloga, se o embrido é implantado no utero da mulher que forneceu o évulo, e em transferéncia heterdéloga no caso contrario ('3). ("") 10 anos, segundo o relatério Warnock (Her Majesty’s Stationery Office, Londres, 1984), findos os quais o embriao ficaria a disposicao da entidade de guarda: concls. 31 a 33. () Sete dos membros daquela comissao fizeram declaragdes dissidentes. (®) Franciska Buchli-Schneider, Kiinstliche Fortpflanzung aus zivilrechtlicher Sicht, Staempfli (Berna), 1987, 39-40. DIREITO E BIOETICA 439 Distingue-se com isto uma maternidade: — genética — uterina — social A genética corresponderia a proveniéncia bioldgica. A uterina caberia a quem traz o embrido e da a luz. A social assentaria na inserg4o do novo ser em meio que 0 cria e educa. Hoje em dia, os trés tipos de «maternidade» podem estar dissociados. Procedemos a estas distingdes porque a complexidade social implica a complexidade juridica. Adivinha-se a revolucdo que estes factores operam no estabelecimento da filiacdo. Deste falaremos a final. VIII — Aborto Surge enfim a problematica do aborto. Podemos distinguir 0 aborto por indicagao (!4): — terapéutica — eugénica — ética e criminolégica — econémico-social A Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, admitiu o aborto por indica- Ao terapéutica, eugénica e ética e criminolégica. Faremos depois a avaliacdo técnico-juridica. A discussdo sobre o aborto é vastissima, e nao podemos ter a pretensdo de a empreender aqui. Observamos apenas que, sendo um dos grandes argumentos a favor da legalizacao do aborto afas- tar as situacdes de clandestinidade, a lei afinal nao tem pratica- (Cir. A. Almeida ¢ Costa, Aborto e Direito Penal, Rev. Ord. Adv., ano 44, 556 s.. 440 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO mente nenhuma incidéncia nesse aspecto porque a grande maio- ria dos abortos é praticada por indicac4o econdémico-social, que nao é admitida. A defesa do novo ser deve estender-se ao embriao formado in vitro. Na sequéncia da posicéo que tomamos quanto a pes- quisa em embrides, acentuariamos que o embrido nao pode ser colocado ao servico de fins que sejam estranhos a poténcia de vida auténoma que representa. Mesmo excluindo a producao de embrides com fins cientificos, o problema suscita-se com parti- cular gravidade perante os embrides chamados excedentdrios ou supranumerérios, em relacdo a uma concreta utilizacao (1%). Tende-se a atribuir a decisfo sobre o seu destino primariamente aos pais ou beneficidrios ('*) mas esconde-se em geral, eufemis- ticamente, que esse destino sera frequentemente o aniquila- mento (!7). Surge assim a figura do embrionicidio, que se coloca parale- lamente a do aborto. Veremos depois qual a relagao. 1X — Existéncia Ao longo da existéncia humana, do nascimento a morte, suscitam-se também numerosos problemas do dominio bioético. Temos assim, a titulo de exemplo: a) Transplantes de Orgaos e tecidos ('8). b) Mudangas de sexo c) Contdgio, em especial sexual d) Intervencées no cérebro, que podem acarretar alteracdes de personalidade (!°) () Cfr. por exemplo Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 73. (9) Cfr. por exemplo De Clermont, Bioéthique (v. nt. 5), 237. (")_ Assim acontece no projecto portugués da «Comisséo para o Enquadra- mento das novas Tecnologias», de que falaremos mais tarde. Dizendo-se que o des- tino sera em ultima andlise decidido de acordo com o Parecer do Conselho Nacio- nal de Bioética (art. 37) omite-se a descricdo material desse destino. (°) Foram entre nés objecto da Lei n.° 1/70, de 20. II. (9) Veja-se uma referéncia a esta matéria em Albanese, Modificazioni (v. nt. J) 72. DIREITO E BIOETICA “1 e) Anélise genética, cuja divulgacdo pode ter graves reper- cuss6es sociais, nomeadamente em termos de em- prego (*) J) Investigacéo cientifica em seres humanos. A manipulacao genética, em parte, é uma manifestacdo da investigag4o cientifica em seres humanos (?'). Sera esta que exa- minaremos em particular. E neste dominio que se verificam as descobertas mais espan- tosas. Porque se torna possivel a manipulacdo genética, torna-se possivel actuar, nao sé sobre o individuo presente, como sobre a estirpe ou a espécie. Distinguiria com Luis Archer () cinco tipos de interven- goes: 1) terapia genética em células somaticas 2) terapia genética em células da linha germinal 3) terapia genética no embrido 4) reforco de caracteres humanos desejaveis 5) «melhoramento» da espécie humana Isto nao significa que todos estes dominios estejam imedia- tamente ao dispor da ciéncia no que respeita a actuac4o sobre humanos. Por indicagao pessoal do préprio Luis Archer, 0 1.° esta jd em execucao; 0 4.° também ja € tecnicamente factivel mas ainda nao foi posto em pratica por receios éticos; os restan- tes (incluindo o 2.°) nao esto ainda ao alcance do homem. Se situagdes como a referida em primeiro lugar, nao susci- tam preocupacao especial, diferente é 0 caso noutras situacdes, particularmente no melhoramento da espécie humana, onde se @) Relativiza todavia a possibilidade de abuso Luzzato, Modificazioni (v. nt.1), 91-92. ©) Cfr. Labrousse-Riou, Modificazioni (v. nt. 1), 31. Albanese, Modifica- zioni (v. nt. 1), 70-71, observava que h4 doengas que so unicamente humanas, pelo que em relagdo a elas a experimentaco teria de ser humana também. @) Depoimento no Parlamento Europeu sobre «Problemas éticos relativos & engenharia genética no homem» (1986); Questées éticas e sociais implicadas na andlise do genoma humano, em publicacdo na revista Arte Médica Portuguesa. 442 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO atriscam resultados aterradores, bem explorados pela literatura de ficg&o cientifica. Sobretudo por nao ser licito a uma geracao dispor das geragdes futuras. Neste dominio, o Conselho da Europa elaborou, em 1982, uma recomendacdo, considerando que os direitos 4 vida e a di; nidade humana protegidos pela Convencao Europeia dos Direi- tos do Homem implicam o direito a integridade dum patrimoénio genético que nao tenha sido artificialmente modificado. Fica de fora a terapia de doengas genéticas. Luis Archer questiona esta fronteira, que considera extre- mamente dificil de tragar; e propde como critério a contraposi- gdo do que represente alteracdes universalmente aceites como dese- javeis e todas as outras. X — Morte Enfim, a bioética confronta-se com a problematica da morte. E assim, poderemos referir problemas a: a) determinagéo do momento da morte b) técnicas de reanimagao c) suicidio (nomeadamente o auxilio ao suicidio) d) estatuto do cadaver, a nomeadamente a colheita de érgados € tecidos dos cadaveres e) a eutandsia, quer nas forma activa quer passiva. Acrescentaremos apenas duas breves observacdes. A determinagéo do momento da morte é importante, entre outros efeitos, como ponto de partida para a colheita de érgados e tecidos nos. cadaveres. O critério da morte cerebral permite considerar que a pessoa que mantém algumas fung6es orgdnicas, principalmente por estar ligada a uma maquina, pode ser nao obstante clinicamente consi- derada morta. Essa manutencao artificial torna-se desejdvel por melhorar as condicdes de colheita desses produtos. Se eticamente nada haverd a dizer, em todo 0 caso o pro- cesso cria problemas sociais e psicolégicos muito graves. DIREITO E BIOETICA 443, Sera muito dificil ver socialmente aceite como morta uma Pessoa que «vive» amarrada a uma maquina. Todos diréo que € quando se desliga a maquina que morre (quando «morre» sede Por outro lado, o processo sera sempre objecto de suspeita, sobre a correcedo da deciséo que declara a pessoa morta para 0 efeito de permitir a colheita de orgdos e tecidos em condicées ideais. A outra observacdo respeita a eutandsia. E sé uma reflexdo. Durante milénios, a dignidade da medicina baseou-se no jura- mento de Hipdcrates, segundo o qual o médico serve sempre a vida e nado a morte. Os grandes exemplos histéricos de degrada- ¢4o s&o aqueles em que médicos se puseram ao servico da morte. Essa dignidade milenar € agora questionada, perante situagdes que nao apresentam diferenca qualitativa em relagdo as antece- dentes. XI — Juridico Muito brevemente, procuremos fixar tracos da intervencdo. juridica neste dominio. Mas teremos de nos resignar a focar aspec- tos parcelares. O apanhado das intervencGes actuais é necessariamente muito disperso. Podemos referir legislacao sobre: 1) Colheita de drgaos e tecidos em pessoas vivas 2) Colheita de drgdos e tecidos em cadaveres 3) Fixagéo do momento da morte 4) Suicidio 5) Eutandsia 6) Aborto (incluindo a objecgfo de consciéncia) @?) 7) Bancos de esperma 8) Nascituro Para além disso ha a disciplina corporativa, particularmente a emanada da Ordem dos Médicos. @) Sobre esta matéria cfr. o art. 4 da Lei n.° 6/84; Martin (v. nt. 8), 39, que toma posicao negativa em relacdo a certas recusas médicas. 44 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO A nossa primeira observacdo vai no sentido duma preferén- cia pela autoregulamentacdo, particularmente médica. Essa pre- feréncia, alias geral, ¢ reforcada pelo estado particular da evolu- 40 em muitos dominios, em que dificilmente quem nado for interveniente ter4 possibilidade de posicionamento correcto. Os cédigos éticos, ou as deliberacdes de comissées éticas, sdo o ele- mento adequado para compensar o desarmamento legislativo. Mas justamente esta preferéncia tem de ser acompanhada duma intervengdo legislativa. Salvo nos casos em que ha uma estru- tura corporativa implantada, a autoregulamentacdo ética nao tem condicées de atingir quem a ela se nado queira submeter. Se se quiser dar mais solidez a esta estrutura inicial, ha que estabelecer as condigdes de vinculagdo dessas deliberagdes e as sancdes que as acompanham. Isso sé pode resultar de lei (*). Portanto, logo a preferéncia por uma disciplina espontanea nos impée, paradoxalmente, a primeira forma de intervengdo legis- lativa. Mas nem sé por esta razdo a intervencao legislativa é j4 neces- saria. Aquelas estruturas, a existirem, sao insuficientes. E ha aspec- tos que pedem ja uma lei, quer por estarem ja bem equacionados os problemas, quer por razGes de urgéncia numa intervencao. Entre nés foi criado o Conselho Nacional de Etica para as Ciéncias da Vida (Lei n.° 14/90, de 9 de Junho), que tem compe- téncia para promover estudos, emitir pareceres e fazer recomen- dagdes neste dominio. Mas ha que ir mais longe. Determinadas actividades devem ser submetidas a um regime de autorizagao. Devera haver entidades especializadas que tenham a func&o de autorizar as praticas que mais se receiam. Assim acontece em numerosos paises (75). A submisséo a um Orgao que tendencialmente sera estatal, e que implica buro- cratizacao, parece ser compensada, por um lado pela especializa- ¢ao técnica dessas agéncias, por outro lado pela relevancia dos interesses em causa. Assim, experiéncias sobre embrides, a serem @) Cir. Gerin, Modificazioni (v. nt. 1), 160. @5) Para os Estados Unidos, cfr. Gilroy, Modificazioni (v. nt. 1), 165; em geral, cfr. Gerin, ibid., 151 segs... DIREITO E BIOETICA 44s, admissiveis, deveriam ser sujeitas a um regime de autorizacdo, com necessidade de apresentagdo prévia dum plano esclarecedor de pesquisa. Podemos dizer que esta é a tendéncia geral em pai- ses em situagdo semelhante ao nosso. O que nao deveria acontecer seria a criagéo dum monopé- lio estatal, através do qual certas entidades tivessem legitimidade exclusiva para actuar em dominios bioéticos — pelo menos no campo da manipulacdo genética. Semelhantes monopdlios arriscam-se a criar atraso. A mera superintendéncia parece ser suficiente. PGe-se mesmo a hipdtese de o érgdo de tutela ndo dever ser simultaneamente Orgao de pesquisa, para ndo surgir como o com- petidor natural dos que a ele se dirigissem, ficando em causa a sua imparcialidade. Mas logo associada a este preocupacdo deveria vir outra. As tarefas criticas no dominio da bioética nao deveriam ser desem- penhadas por entidades com fim lucrativo. Este é um dominio que por natureza deve estar fora da com- peticao mercantil. O que esta em jogo é demasiado importante Para que se devam correr riscos. Assim, ao boom da fecundacao artificial nado é estranha cer- tamente a incidéncia econdmica (*5). Seria bom se preocupagées lucrativas nao falseassem um sector em que estéo em jogo aspec- tos fundamentais da personalidade. Na sequéncia, deveria estabelecer-se o principio da gratuiti- dade das dagdes que fossem autorizadas. Assim como a doacao de sangue nao deve ser transformada em actividade profissional, quaisquer outras doagées de partes ou produtos do corpo humano deveriam estar submetidos a um regime de oferta, socialmente animada se necessdrio. Mas nao deveriam ser venalizadas. @*) Cfr. Cosmi, Modificazioni (v. nt. 1), 59-60. Por seu turno, o Dep. José Magalhies, no debate na Assembleia da Republica que antecedeu a criago do Con- selho Nacional de Etica para as Ciéncias da Vida falou «num sérdido e muito lucra- tivo comércio de embrides e fetos, vivos ou mortos, de tecidos e drgdos». 446 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO XII — Engenharia genética Apesar do ambiente duma certa expectativa que rodeia este sector, ha ja situagdes que parecem suficientemente detectadas para permitir intervengées legislativas. Mas sobretudo, se o critério assenta na distingao entre o que representa verdadeiramente melhoramento e¢ 0 restante, isso ja nos da uma base para excluir intervencdes arbitrarias sobre seres humanos. A distincéo, porém, nao prescinde da mediacdo dum juizo técnico sobre cada caso. Por isso nos parece que neste sector a solugdéo adequada estard em submeter os projectos de investiga- ¢4o ou de intervencado a um conselho técnico de quem dependa a autorizacdo. XII — Procriagao artificial A procriaco artificial suscita numerosos problemas do foro bioético e juridico. Haverd um direito de cada pessoa a ter filhos? Semelhante direito nao seria biologicamente fundado, pelo que pressuporia © recurso a meios de procriac4o artificial. Mesmo assim, é impos- sivel assegurar sempre a ligacdo biolégica entre um ser actual e um novo ser. Nestes termos limitados, falou-se num direito de dar a vida, que nos parece impossivel fundar no direito 4 vida 2”). Também se falou no direito de os celibatarios fundarem uma familia. O problema nao pode porém ser colocado sé nesta perspec- tiva, porque é necessdrio resguardar também os direitos do novo ser. E em relagao a este, é de afirmar desde logo 0 direito a uma Jiliagao normal, o direito a um pai e uma mae. Porque o filho ndo pode ser instrumentalizado, a procriacao artificial sé se deveria estender nos limites em que este direito se resguardasse. Isto choca @) Cfr. Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 76. DIREITO E BIOETICA 447 com os processos de inseminagdo e fecundacao heterdloga, que Por natureza o contrariam (%). A lei portuguesa nao atende porém a este limite, a0 regular a inseminacao e fecundagdo artificiais heterdlogas (Dec.-Lei n.° 319/86, de 25 de Setembro) (°). E certo também que a lei se propés atalhar, a titulo de emergéncia, praticas como a insemi- nagao artificial com sémen fresco, sem tomar posicdo definitiva quanto a outros problemas ético-juridicos que alids enuncia (°°). Em todos os casos de procriacao artificial heterdloga suscita-se © problema da relacdo entre o dador e o novo ser. Se o dador nao participa dum projecto de paternidade mas dd uma mera con- tribuicao biolégica, nao devera ter nenhum direito em relagao ao novo ser, por forga de principio implicito no art. 1839/3 do Cédigo Civil, como veremos. Mas que acontece relativamente ao novo ser? A tendéncia dominante a nivel comparatistico esta em garantir 0 anonimato do dador. Em Portugal poderia querer retirar-se a mesma con- clusdo do art. 1987.° do Cédigo Civil, que proibe o estabeleci- mento e prova da filiaco natural apés decretada a adopgdo plena. Mas nao ha analogia, até porque a procriagdo artificial nem sempre resulta de iniciativa conjunta do casal a quem o novo ser se des- tina, e além disso o art. 1987.° é preceito substancialmente excep- cional, ndo podendo ser aplicado por analogia. Parece-nos que consideragdes pragmaticas, de utilidade social, se chocam neste caso com consideragoes éticas. Haja ou nao laco de filiacdo, cada ser deveria poder conhecer donde provém. Nao (7) Neste sentido cfr. por exemplo Cornu, Gérard — La procréation artifi- cielle et les structures de la parenté, na Rev. Ord. Adv., ano 46 Il, Set./86, que fala num «droit a la biparenté» (457-458), que contrariaria a formaco de familias unilineares (matemnais) (455). @) Ha ainda na lei portuguesa a previsio do art. 214.° do Cédigo Penal, que incrimina a pratica de inseminagao artificial em mulher sem o seu consentimento. ©) _Pelo contrario, o Projecto da Comissao para o Enquadramento Legisla- tivo das Novas Tecnologias sobre «Utilizacdo de técnicas de Procria¢ao assistida» institucionalizaria a procria¢o artificial heteréloga. Cfr. a publicagéo do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito (Coimbra), 1990, donde constam tam- bém os votos de vencido do representante da Ordem dos Médicos e de Luis Archer. 448 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO €s6 uma ligacdo biolégica; ha um momento humano, no conhe- cimento do passado ou dos antecedentes de cada um. Doutro modo, estaremos condenando 4 generalizacdo uma figura para- Iela a outra que foi sempre combatida — 0 filho de pai incégnito. A Constituicdo consagra os direitos de integridade moral e fisica (art. 25.°) e & identidade pessoal (art. 26.°). Estas garan- tias tem sido colocadas na base do direito do filho ilegitimo de estabelecer juridicamente a paternidade (*!). Seguramente que esteiam 0 direito de qualquer pessoa de conhecer a sua prove- niéncia bioldgica, esteja ou nao este conhecimento associado ao estabelecimento juridico da filiagao. Guilherme de Oliveira anota neste sentido uma lenta evolu- do comparada, no sentido da formulagéo dum direito ao conhe- cimento da historicidade pessoal, aspecto da tutela geral da per- sonalidade (Alemanha) ou pelo menos no de facultar o conhecimento da paternidade do progenitor em casos concretos e graves de perigo para a satide fisica ou psiquica do filho (como nos E.U.A.) (”). Assim sendo, as praticas de procriagao artificial heterdloga implicariam a instalagdo e manutengao dum registo. XIV — Estatuto do embrido Os actos relativos ao embriao merecem uma atenco muito especial. O respeito 4 pessoa engloba 0 respeito ao corpo, e este as partes do corpo. A — O embrido nao é uma coisa Ainda que separadas, as partes do corpo humano conser- vam ou podem conservar um significado especial. Na medida em @) Assim Guilherme de Oliveira, O direito de filiagao na jurisprudéncia recente, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, Il, Coimbra, 1983, 121. () O Estabelecimento da filiagéo. Mudanga recente e perspectivas, em Temas de Direito da Familia, Almedina, 1986, 109-110. DIREITO E BIOETICA 449 que ainda traduzam a vida, como no material colhido para trans- plantes, nao sao coisas. O estatuto juridico é diferente: s4o parte do corpo e nfo uma coisa (7). Essa dignidade é acrescida quando essas partes se mostram aptas a desempenhar uma funcdo. Assim, 0 sémen ou os évulos nunca poderdo ser coisificados, pois tém jd por si uma dignidade especial, pela poténcia de vida que contém. Por maioria de razao isso acontece com o embrido. Ele nao pode ser propriedade de ninguém ou objecto do comércio juridico. Neste sentido, considerar que todos os actos podem ser pra- ticados pela mae porque o embriao é parte do corpo da mde é logo a uma primeira vista inadmissivel 4). N&o sé ndo existe semelhante direito absoluto como aquela afirmacao ignora justa- mente o estatuto especial do embrido (35). O embriao formado in vitro sé se deveria destinar a implan- tacdo imediata no utero. A conservacdo sé poderia ter sentido quando destinada a escolher a altura mais favordvel para essa implantacao. Toda a dilacéo com outros fundamentos, e nomea- damente a destinada a uma implantagao pés-morte dos genito- res, é eticamente reprovavel. A utilizagéo do embrido para experiéncias cientificas (quando nao a sua formacdo para estes fins) suscita problemas graves. O embriao representa seguramente o ponto mais alto da vida em formagao. Independentemente de ser qualificavel como pessoa, © que consideraremos a seguir, merece seguramente um tratamento diferente do que € atribuido a coisas ou objectos. Pertence, antes, a categoria dos sujeitos: tem fins e interesses préprios. Por isso, diriamos que 0 embrido s6 pode ser submetido a experiéncias cien- tificas no seu préprio interesse (3). ©) Cfr. Labrousse, Modificazioni (v. nt. 1), 107 — mesmo no Direito Civil. Por isso 0 mero consentimento da mie é insuficiente para justificar 0 aborto: cfr. Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 76-78. €) © Tribunal Supremo dos U.S.A. fundou a licitude potencial do aborto No direito a intimidade da vida privada: Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 76-78. A fundamentacdo seria absurda a olhos europeus, mas é necessdrio pensar que de privacy se dé nos U.S.A. um entendimento diferente e mais amplo que 0 do direito a vida privada europeu. 9 Neste sentido Valdrini, Bioéthique (v. nt. 5), 230-231. 450 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO O embrionicidio no exterior do corpo da mulher é figura nao prevista na lei penal e que suscita perplexidade. Nao é abrangido pelo tipo legal do aborto. Todavia, mesmo hipoteses de aniquila- mento fora do titero sdo configuraveis como aborto. Pode imaginar-se que o embriao seja retirado vivo do corpo da mulher para ser aniquilado. Parece que ha entéo um aborto, s6 sendo diversas das comuns as vias de o realizar. B — O embriao é uma pessoa? Ja atras apontamos a problematica do estatuto juridico do embriao. Da consideragdo de que nao é uma coisa, resulta ja a neces- sidade dum estatuto diferenciado. Algumas consequéncias sio facilmente aceitaveis, no ponto de vista juridico, como a proibi- ¢40 da introduc¢éo de embrides humanos em animais. Noutros aspectos, ha porém que ir mais longe, perguntando se o embrido é uma pessoa. Nao é essa a posicdo tomada normalmente pelas assembleias especializadas. E consequentemente conclui-se em geral que o embrido nao é abrangido pelas consagragdes positivas do direito @ vida, como a constante da Convencao Europeia dos Direitos do Homem (7). Mas 0 embrido, que nao é coisa, nao deixa de ser também um centro auténomo de interesses, com finalidades prdprias. E isso esta reconhecido na lei com a incriminacdo do aborto, que nao é seguramente um crime contra a mie. Punhamos a hipotese de ter sido feita uma intervengdo cirur- gica que, por negligéncia, atingiu o feto. Admite-se que 0 novo ser, uma vez vindo a vida, possa exigir indemnizacao aos respon- sdveis (38). Mas isso significa necessariamente que ja havia uma personalidade juridica no momento da lesao, pois doutra maneira quem poderia agir seria s6 a mae — que pode nao ter sofrido ae danos ¢ até ser ela propria a autora da leséo — e nunca © filho. (") Cfr. Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 76. @") Cfr. as nossas ligées de Teoria Geral do Direito Civil — Il — As Pes- soas, n.° 33/11. DIREITO E BIOETICA 4st O facto de haver jd uma tutela do embriao ou do feto e de este ser sujeito de direitos nfo é casual. Baseia-se numa conside- racdo ontolégica. Tem sido acentuado, em relacio a pessoa humana, que ela ¢ um ser unico e irrepetivel. Mas o embrido é também, ele préprio, um ser unico e irrepetivel, logo que o seu cédigo genético esteja definitivamente fixado (°°). O substracto biolégico da personalidade, que o acompanhard sempre, existe Ja. Por isso dizemos que aquele ser tem fins préprios, 0 que o enquadra na personalidade. A esta luz, podemos comentar brevemente a posicao tomada pela lei portuguesa sobre o aborto (Lei n.° 6/84, de 11 de Maio). Como dissemos, séo admitidos o aborto por indicacio médica, eugénica e ética e criminoldgica. Em todos os casos, nao podemos colocar a obtencdo dos fins da mae como o unico factor em causa, uma vez que terd de ser conciliada com a existéncia de fins préprios do embrido ou feto. No aborto terapéutico, parece existir um conflito entre os interesses da me e do filho. Sao relativamente mais faceis de examinar as hipéteses em que é dado como seguro que nem mae nem filho sobrevi- veriam. Se porém apenas a vida ou a satide da mie estdo em causa, nao ha uma causa de justificagao para a pratica do aborto, no ponto de vista substancial, porque o filho nao pode ser instru- mentalizado em beneficio da m&e. N&o pode nomeadamente considerar-se haver estado de necessidade (“) porque o estado de necessidade permite actuar contra coisas e nao contra pessoas. O problema deveria assim transferir-se para o dominio da culpa. A situagado poderia ser enquadrada numa causa de exclu- sao da culpabilidade, o que permitiria considerar que ndo have- tia crime e o agente nao seria afinal punido. O art. 140.°/1, ao dispor que «nao € punivel o aborto», pareceria dar raz4o a este () Nao entramos porém na andlise do momento em que isso ocorre, pois do possuimos elementos para tanto. (®) Hipétese aventada por Almeida Costa cit., 559. 482 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO entendimento. Mas em todos os outros lugares fala-se em exclu- sdo da ilicitude do aborto, e esta € j4 mais dificilmente justificavel. No aborto eugénico a problematica € diferente. Ai nao ha conflito entre embrido e pais, porque o embrido no € coisa; os fins em causa s6 podem ser os do proprio embrido. A desilusio dos pais é consideracdo que em relacdo a estes fins nunca podera ser prevalente. A dificuldade esté em saber quais sdo as consideragGes eti- camente decisivas. A um direito A vida do embriao contrapée-se um direito, também do embrido, a uma vida normal, ou uma vida sem diminuigdes (*!). Cria-se assim uma dificil problema- tica quanto a uma disponibilidade do embrido sobre a propria vida, disponibilidade que se nao reconhece aos ja nascidos, € quanto a uma vontade presumida que é inatingivel. De toda a maneira, perante a posig&o tomada pela lei portuguesa, ha que acentuar que é exclusivamente o interesse do novo ser que é deci- sivo. Enfim, permite a lei portuguesa 0 aborto por indicagao ética e criminoldgica, «quando haja sérios indicios de que a gravidez resultou de violacdo da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez». E a hipdtese mais dificil de justificar, justamente do ponto de vista ético. Ha aqui uma instrumentali- zacao do embrido ao servico dos interesses da mae. Poderia, juri- dicamente, funcionar como causa de exclusdo de culpa (7). Mas em todos os casos a lei fala na exclusio da ilicitude do aborto. XV — Filiagdo juridica Os processos de fecundagdo artificial nao suscitam proble- mas ao nivel do nexo juridico de filiacao. Até agora, o direito assentou na coincidéncia da filiagao natu- ral e da filiag&o juridica. A adopcao nao representa excep¢4o, () Cir. Albanese, Modificazioni (v. nt. 1), 95-96. (®) Cfr. Almeida Costa cit., que pée 0 problema da constitucionalidade des- tes preceitos, & luz do art. 24/1 da Constituigao: a vida humana é invioldvel. DIREITO E BIOETICA 453 pois cria outro vinculo, andlogo ao da filiago natural mas que se ndo confunde com esta. A presuncdo de legitimidade dos filhos nascidos na constancia do casamento € uma mera presungdo, que corresponde a generalidade das situacdes. Mas a introdugdo de processos de fecundagdo artificial vai obrigar a decidir se a filiag&o juridica acompanhara em todos Os casos a filiacdo natural ou nao (“). O problema tem sido discutido a nivel comparado, particu- larmente no que respeita ao dador. Vamos considerar que este cede matéria fecundante, sem nenhuma intengdo de paternidade — portanto, em casos de fecundac4o heterdloga. As ordens juri- dicas dividem-se. A maioria nao considera ent&éo o dador pai; nalguns paises, como na Suécia, toma-se orientagdo contra- ria, permitindo-se ao novo ser investigar a sua paternidade (“). O Cédigo Civil portugués, apés a reforma de 1977, passou a considerar esta matéria no art. 1839.°/3, com referéncia aos actos de fecundacao artificial heterdloga praticados na vigéncia do casamento. Dispde-se: «Nao € permitida a impugnac&o de paternidade com fundamento em inseminagdo artificial ao cén- juge que nela consentiu». A previsao da inseminacao artificial abrange, ao menos no seu espirito, a fecundacao heterdloga. Isso nao implica a licitude dessa pratica. O Direito tem de regular a fecundacdo artificial porque ela é possivel. Toma-a como mero pressuposto de facto, resultante de accdes praticadas no pais ou no estrangeiro. SAo pois necessdrias previsdes que cubram todos os fenémenos, /ici- tos ou ilicitos, que se possam produzir. Do art. 1839.°/3 podem-se tirar numerosas conclusdes. A primeira e mais importante é a de que a lei permite um corte com a filiacdo bioldgica, atribuindo a paternidade a quem nao participa na procriagdo. Consequentemente, o dador heterdlogo nao é considerado pai. A solugdo parece-nos estar certa. O acto de procriacgéo sem- pre foi visto por lei como um acto natural. A mera doacao de (©) Vejam-se as varias propostas constantes do relatério Warnock (v. nt. 11), concls. $0-63. (*) Cfr. Martin (v. nt. 8), 31. 484 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO sperma ou évulos néo tem nenhum contetdo ético de procria- go e ndo esta ligada a um projecto de paternidade ou materni- dade. Diferente jA ser 0 caso quando a doacao é destinada a determinada pessoa para determinada procriagdo. Temos pois que na nossa ordem juridica a coincidéncia entre a filiacdo natural e a filiagdo juridica ndo é mais regra absoluta. A posicéo do outro cénjuge oferece também dificulda- des (45). Qual 0 objecto do consentimento que este deve prestar? Ser4 o consentimento para o vinculo de filiaco? Isso iria contra © principio de que sao nulos os negécios juridicos cujo objecto seja fixar a filiago (“). Mas também nao cremos que seja 0 mero consentimento para que © cénjuge seja inseminado artificialmente (por terceiro, que € 0 que esta em causa). Este consentimento esta ainda ao nivel do consentimento para o adultério, que é irrelevante do ponto de vista da filiagdo. A gravidade do acto de recepcao de alguém como filho parece-nos exigir uma interpretacdo restritiva do art. 1839.°/3: 0 consentimento deve dirigir-se ao vinculo de filia- gAo, ¢ ndo apenas a pratica da inseminacdo artificial. Como conciliar estas duas afirmagGes, aparentemente con- traditérias? Mediante a observacdo de que a filiagdo ex art. 1839.°/3 nao é uma filiagdo igual as outras, € uma nova forma de filiagao. Como a filiagdo adoptiva, exige um consentimento especifico. O seu cardcter artificial continuard a fazer-se sentir, nomeada- mente na possibilidade de interposicao de impedimentos para 0 casamento com a familia biolégica do novo ser. Recorde-se que atras defendemos a possibilidade de o ser provindo de fecun- () © referido projecto da Comissdo para o Enquadramento Legislative das Novas Tecnologias equipara em tudo aos cdnjuges as pessoas «que vivam em comu- nhdo de leito, mesa ¢ habitacBo em condicdes andlogas as dos cOnjuges». E an6- malo, em pais em que o divércio est ao alcance de toda a gente, continuar a equi- Parar ao casamento a unido de facto, sem manifestar legislativamente a preferéncia pela familia legalmente constituida. Esta equiparacao da unio de facto vai levar a contradigdes no que respeita ao vinculo juridico de filiag&o que depois se estabe- lece em relacéo ao companheiro. (4) Catala, Le droit des successions, na Rev. Ord. Adv., ano 46 (1986), 482, pronuncia-se contra a interdi¢&o ou a consagracdio de negécios juridicos sobre a filiagdo. DIREITO E BIOETICA 455 vindo de fecundacAo artificial ter acesso ao conhecimento da sua estirpe. Isto tem reflexos no debate suscitado sobre o fundamento da disposi¢ao do art. 1839.°/3. Esse fundamento tem sido gene- ralizadamente encontrado no abuso do direito: se o c6njuge con- sentiu na fecundaco, seria abusivo negar depois o reconhecimento como filho (‘”). Este fundamento nao nos convence, justamente Porque a lei proibe negocios sobre a filiagdo; o cénjuge perderia 0 direito de impugnar, de tao fortes conotagdes personalisticas, em consequéncia de ter praticado um negécio juridico anterior. Parece-nos incompativel com a natureza deste direito. O entendimento que demos permite superar esta dificuldade. Nao ha a imposic¢ao duma falsidade bioldgica, mas o estabeleci- mento dum novo vinculo paralelo a filiacfio, 4 semelhanca da adopcao. Esse novo vinculo tem de ser objecto de consenti- mento expresso. E, pelas mesmas razGes que vigoram na adop- ¢4o, esse vinculo civil, uma vez estabelecido, nao pode mais ser alterado. Se 0 cénjuge consentiu apenas no acto da mulher, isso pode ter influéncia nas relacdes conjugais, mas nao fica sujeito ao vinculo de filiagao. A verdade bioldgica pode ser restabelecida. Pode assim acontecer que 0 nascido em mulher casada por fecundacao artificial heterdloga nao tenha vinculo de filiaga0 com © outro cénjuge. Mas isso acontece também em todos os casos em que ha inseminagao artificial de pessoa nfo casada. Esta é alids uma das consequéncias que leva a valorar negativamente a fecundagdo artificial heterdloga. Mesmo nesses casos, 0 mero dador nao tem, por projec- ¢4o do art. 1839.°/3, nenhum vinculo de paternidade juridica. Igualmente nao tem nenhuns direitos familiares, com base na sua dagdo, nem parece que deva ter conhecimento do destino dessa dagdo. E outro aspecto que mereceria ser legislativamente escla- recido. () Cfr. Guilherme de Oliveira, Critério Juridico da Paternidade, Biblioteca Geral da Universidade, Coimbra, 1983, 350-352 e passim. 456 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO XVI — A «mde uterina» Estas conclusdées serao aplicaveis 4 mae hospedeira? Temos de distinguir principalmente dois casos, como vimos atrds: — fecundago de terceira pessoa para que o nascido pertenca ao casal — implantacéo do embrido em terceira pessoa No primeiro caso, imaginemos a inseminacao artificial de terceira pessoa pelo marido, com consentimento da mulher, para que o nascido se destine ao casal (“). Mas aqui, nao vemos nenhum reflexo no plano juridico: ha simplesmente uma filiagéo extra-matrimonial. O consentimento do cénjuge tem efeitos no interior do casal mas nenhum no que respeita ao estabelecimento do vinculo de filiagado. O filho é pro- duto adulterino do marido e terceira pessoa, ¢ essa pessoa é, para todos os efeitos, mde. Nao ha apenas a dacdo de material gené- tico, ha a gestacdo, e neste caso a maternidade natural é com- pleta. S6 por adopcao podera assim ser estabelecido o vinculo de filiag&o com o casal de destino. Fora disso, mesmo que entre- gue efectivamente a crianga, a geratrix continua mae para todos os efeitos. Que acontece porém se, ja formado o embrido, este é implan- tado no utero de quem o ha-de dar a luz? Tende-se a considerar que a chamada «mae uterina» —— mesmo que seja uma mera hospedeira — é juridicamente mie, pois a intensidade da ligacéo com o novo ser nao permite equipara-la ao simples dador de esperma ou de évulo (4). Pode (*) Cfr. Catala (v. nt. 46), 478. (®) Cfr. Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da filiagdo (v. nt. 32), 106-107; Cornu, Procréation (v. nt. 28), 460-461; F. Buchli-Schneider, Kiinstliche (v. nt. 13), 150-155, DIREITO E BIOETICA 457 invocar-se nesse sentido o art. 1796.° do Cédigo Civil, segundo © qual a filiagdo materna resulta do facto do nascimento (%). Estas consideracées nao seriam porém suficientes. A lei refere © nascimento porque pressupée sempre a coincidéncia entre quem gera e quem dé a luz; porque a lei funda como principio a pater- nidade na derivacdo genética (*!). Havendo uma hospedeira, a ligacdo genética falha, e ndo encontramos regra que permita fun- dar excepcionalmente a maternidade jurfdica. Dirfamos assim que a mae hospedeira da a luz, mas nao é juridicamente mie (*). Se o embriao resultou de gametas de terceiros, e nao daque- les a quem o filho se destina, temos uma situagdo em que o novo ser nao € filho, nem dos dadores, como vimos, nem da hospe- deira. Nao é portanto juridicamente filho de ninguém. Isto ilus- tra bem as anomalias que podem surgir neste sector. Pode ter trés maes — genética, uterina e social — e nao ter juridicamente nenhuma mae. Resta o caso de o embrido implantado na mie uterina resul- tar de g4metas provenientes daqueles a quem o novo ser se des- tina, ou de algum deles. J& vimos que a paternidade nao é prejudicada pela insemi- nacdo artificial. Também nao ser4 prejudicada pela implantacio do embriao. Quanto a maternidade, pensamos de aplicar regra semelhante. A pessoa de quem provém as gdmetas com projecto de materni- dade é a mae, nao obstante o feto nao se ter desenvolvido no seu Utero. A ela haverd que aplicar todas as regras estabelecidas no pressuposto duma derivagao biolégica, como as relativas ao incesto ou aos impedimentos de casamento. As dificuldades pra- (©) Alids, se a hospedeira fosse juridicamente mae, criavam-se os mais intrin- cados problemas perante o art. 1839.°/3, no caso de ser mulher casada. Se o marido tivesse dado o consentimento para a implantacao do embrido parece que passaria a ser considerado juridicamente pai, segundo a maneira de ver corrente. Isto reforga a inadmissibilidade da solugao. (!) Cfr. F. Buchli-Schneider, Kiinstliche (v. nt. 13), 129 e 149. De facto, é filho, juridicamente, quem provém da mesma estirpe dos pais. (#) Cfr. também o art. 1816.°/1, segundo o qual na acco de investigac3o da maternidade o filho deve provar que nasceu da pretensa mie. 458 JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO ticas no estabelecimento da maternidade nado nos parece impedi- rem a aplicacdo destes principios. Pode colocar-se enfim a hipdtese de um embriao, resultante de gAmetas alheias, ser implantado no utero da pessoa que deseja © filho. Também aqui, por maior que seja, bioldgica e afectivamente, a ligag4o que se estabelece entre essa pessoa e o ser que da a luz, ndo é juridicamente mae, porque lhe falta a geracdo. S6 nao acontecer4 assim se o embrido tiver sido formado em 6évulo que Ihe pertenca. Doutra maneira, se as gametas pertencem a doa- dora, terfamos mais uma hipdtese de crianca sem mae, que sé por adopcao podera ter vinculo de filiagio com quem deu a luz (*°). Outros problemas surgem ainda em caso de filiagdo pdstuma, propiciada pela congelacado dos elementos fecundantes. Mesmo sendo homdloga, distingue-se na realidade da filiagéo normal. Assim, 0 embrido formado mais tarde nao beneficiara da pre- suncdo de legitimidade, nem podera ser herdeiro por nao estar concebido a data da abertura da sucessdo (“). S6 por testamento sera assim possivel entre nés obter, embora limitadamente, efei- tos que se aproximem dos que resultariam nos casos normais duma sucessdo legal. De tudo isto parece-nos podermos concluir que 0 nosso Direito da Familia esta ainda desarmado perante a problematica que traz a fecundacao artificial. HA pois aqui necessidade de inter- vencao legislativa que traga um quadro quanto possivel coerente de solugdes. €) Em sentido contrario Guilherme de Oliveira, Estabelecimento de filiagdo (v. mt. 32), 106-107, que se decide prevalentemente pela hospedeira e ndo pela mae biolégica. C) Chr. Catala (v. nt. 46), 484.

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