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FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Unidade II
5 A FENOMENOLOGIA TRANSCENDENTAL E DESCRITIVA DE HUSSERL

Dois projetos genuínos da frente fenomenológica serão apresentados: o primeiro de Husserl,


considerado o pai da linhagem teórica-epistêmica, por abrir um espaço de questionamento e propor outra
forma de compreender a percepção humana sobre si e o mundo ao seu redor, com a intencionalidade de
Brentano; e, na sequência, veremos o projeto heideggeriano, que se faz importante por ter se tornado
um dos grandes expoentes dessa frente na contemporaneidade, realizando um chamamento pelo ser e
fundando um projeto de ontologia fundamental.

Figura 10 – Edmund Husserl

O projeto de filosofia de Edmund Husserl (1859-1938) inaugura um campo de questionamentos


críticos diante da história do pensamento científico e filosófico, constituindo um marco inicial importante
no movimento fenomenológico, composto de diversos pensadores ao longo dos séculos XIX e XX.

Nesse sentido, a história de vida desse pensador alemão se mistura com a da fenomenologia por
organizar de modo inaudito os princípios dessa matriz e impactar outros personagens, como seu aluno
Heidegger, o pensador francês Merleau-Ponty, o hermeuta Gadamer, o psiquiatra existencial Jaspers e o
existencialista Sartre.

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Unidade II

Uma das principais ideias de Husserl era reaproximar o homem de um contato ingênuo com o
mundo, buscando as essências (eidos, em grego) nessa relação, denominada de intencional. Cabem aqui
algumas questões disparadoras: o que é a essência e como ela se constitui no mundo? E como alçar
esse contato ingênuo? Vamos conhecer melhor a biografia desse pensador do campo fenomenológico.

5.1 Notas biográficas e obras de Husserl

Edmund Husserl nasceu na Morávia, em 8 de abril de 1859, onde atualmente é a República Tcheca.
Husserl proveio de uma família judia que se converteu ao protestantismo tardiamente, porém devotou ao
menino uma educação privilegiada, o que lhe concebeu um espírito inquieto e pensante. Considerado o
pai da fenomenologia, influenciou toda uma geração alemã. Naquele contexto do século XIX, a Morávia
fazia parte do Grande Império Austro Húngaro.

A formação de Husserl foi eclética com relação às passagens em diversas universidades. Entre 1868
e 1876, ele estudou em Viena e em Olmutz. Depois, entre 1876 e 1878, cursou Matemática, Física e
Astronomia na Universidade de Leipzig, cujos estudos foram finalizados em 1881, em Viena, com uma
tese sobre o Novo Testamento. Em 1883, ainda, Husserl cursou Filosofia em Berlim, Viena e Hale, onde
também lecionou; deu aulas em Göttinger e Freiburg e se aposentou em 1929. Foi em Viena que Husserl
doutorou-se, com a tese sobre Sobre o cálculo das variações. Sua passagem na Universidade de Berlim,
por volta de 1878, foi marcante, porque ali encontrou importantes estudiosos da matemática, entre eles
Karl Weierstrass, que se tornou seu professor e inspirador, a ponto de tornar-se seu devotado assistente.
Outra passagem acadêmica significativa, por volta de 1882, foi o contato com o professor Franz Brentano,
na Universidade de Viena, no curso de Filosofia, que lhe deixara a ideia de intencionalidade como uma
das grandes heranças conceituais (CHAUI apud HUSSERL,1980).

Em 1886, Husserl converteu-se ao protestantismo por influência direta de Brentano, que lhe
facilitaria a entrada na Universidade de Hale. Além disso, foi ali também que encontrou outro mestre
inspirador, o professor Carl Stumpf, tornando-se seu assistente e permanecendo nesse posto por quase
oito anos. Em meio a essa passagem acadêmica, casou-se com Malvina Steinschneider, que será uma
interlocutora atenta e afetiva, eles tiveram três filhos. Além disso, Husserl, nesse intermédio, produziu
uma tese sobre o conceito de número, seguido do texto Filosofia da aritmética, fomentando a grande
importância que o campo da matemática terá em seu percurso inicial.

Um ano antes de adentrar como docente na Universidade de Göttinger, em 1901, Husserl inicia a
escrita de uma das suas mais marcantes obras, reconhecida como a que inaugurou seu percurso na
fenomenologia, Investigações lógicas.

A postura de Husserl ainda foi contestada, muitos atribuíram a sua obra ainda uma imaturidade no
campo filosófico, o que atormentou o pensador. Em 1907, ministrou um curso importante para se fazer
ouvir, que ficou conhecido como “A ideia da fenomenologia”, no qual mostra o projeto fenomenológico
de forma mais didática e madura, trazendo, por exemplo, o método da redução fenomenológica, que se
tornou um dos pilares de sua filosofia.

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Em 1913, Husserl funda um periódico anual, denominado Jahrbuch für Philosophie und
Phänomenologische Forschung, que perdura por quase 17 anos na Alemanha, aglutinando artigos e
pensadores em torno da fenomenologia. Muitos seguidores, como Sartre, acusaram esse periódico como
aquele que mudou os rumos da história da filosofia moderna.

Apenas em torno de 1916 Husserl assume a cátedra de filosofia na Universidade de Freiburg, na qual
permanece até sua aposentadoria. Nesse cenário, encontra um dos seus principais discípulos, Martin Heidegger,
que será um dos nomes mais significativos para a fenomenologia existencial na Alemanha. Em 1928, recebe
uma homenagem da Universidade de Berlim, que o intitula como professor honorário, se aposentando com
méritos reconhecidos, apesar da onda fascista que já tomava inclusive o âmbito universitário.

O período de aposentadoria do pai da fenomenologia foi produtivo, apesar da tristeza que Husserl
levava consigo, pelo afastamento que o próprio aluno Heidegger, agora reitor de Freiburg, o imputara
por carta, por força política, por causa da sua herança judaica. Em meio a esse mal-estar, Husserl escreve,
ainda, em 1929, Meditações cartesianas, na França, na Universidade de Sorbonne, reconhecendo sua
teoria como um enfoque neocartesiano. Nessa obra também realiza uma crítica radical de tudo que
se apresenta ao sujeito como evidente, propondo uma reforma de todos os saberes a partir de uma
primeira revolução, no modo como o próprio sujeito se volta para si mesmo.

Além disso, em 1936, em meio ao governo de Hitler e todos os acontecimentos malogrados,


Husserl escreve uma obra sobre a decadência da civilização europeia, A crise das ciências europeias
e a fenomenologia transcendental. Apontou que a crise da ciência na modernidade implicou numa
desestruturação espiritual e existencial da civilização europeia como um todo, já que a ciência fez
parte do destino da vida dos europeus. Desse modo, Husserl anunciava a ruptura ocasionada por
uma Krisis: entendida como uma (outra?) possibilidade de escolha do homem diante do seu destino
ontológico (ampla discussão sobre o ser do ente humano), num contexto europeu já desgastado pela
profusão e o imperativo da verdade científica. Ou seja, essa crise ofereceria um espaço de reflexão sobre
como o homem se reposicionaria diante do uso da razão filosófica: ou a manteria numa teleologia
(finalidade) instrumental-predatória, para apenas conhecer recortes do mundo de modo impessoal, ou
se recolocaria numa outra direção: a da intencionalidade e do cuidado (Sorge), o que ocasionaria um
maior comprometimento ético e afetivo com o mundo (HUSSERL, 1996).

Husserl sofrerá seus últimos anos vida de uma enfermidade pulmonar, a pleurisia, que o deixará
debilitado, morrerá aos 79 anos, no dia 27 de abril de 1928, tornando-se um dos pensadores alemães
mais citados no mundo. Ainda existem manuscritos não publicados de Husserl que foram salvos do
período nazista e que aguardam a devida publicação inédita.

Essas notas biográficas são pertinentes na medida em que Husserl, como um homem da ciência
matemática, de modo emblemático, explicitou a crise da ciência na virada para o século XX, que consistiu
no afastamento abrupto e impessoal entre o poder técnico da ciência e a humanidade. Constatou, por
exemplo, que houve uma matematização da vida pela ciência, ou seja, esta se afastou do homem
mundano e suas questões fundamentais ao eleger um único modo legítimo de ser no mundo: a da
objetivação naturalista.

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Safranski (2005, p. 106), um notável biógrafo de Heidegger, escreverá sobre Husserl reconhecendo-o
como um ser apaixonado pelo fundamental:

Husserl, nascido na Morávia, em 1859, crescendo em condições


judaico-burguesas sólidas na monarquia do Danúbio, era o bem mais
desejável, o ideal de vida comum. Estudara matemática porque essa ciência
lhe parecia confiável e exata. Depois percebera que também a matemática
precisava ser fundamentada. O fundamental, o certo, o alicerce era sua
paixão. E assim ele chegou à filosofia, mas não como escreve em seu
retrospecto de vida, para uma filosofia tradicional na qual ele descobre
por toda parte falta de clareza, audácia imatura, vaguidão, quando não
até desonestidade intelectual, nada que se pudesse aceitar, deixar valer
como peça, como começo de uma ciência séria.

Agora que já conhecemos a biografia e algumas de suas obras, faz-se necessário adentrar os
pressupostos epistêmicos e filosóficos do pensador Husserl, afinal, quem o influenciou, de que forma e
como ele absorveu frentes de pensamento tão díspares, como a matemática e o historicismo de Dilthey?

5.2 Influências e pressupostos epistêmicos - filosóficos de Husserl

A vida filosófica de Husserl se desenvolveu num momento de uma crise da cultura europeia, o
que envolveu por completo seu projeto, tornando-se seu destino. Dartigues (1973, p. 16) nos ajuda a
compreender esse cenário, descrevendo como foi a última década do século XIX:

Os dez últimos anos do século XIX, período dos primeiros trabalhos de


Husserl, se caracterizaram na Alemanha pela derrocada dos grandes sistemas
filosóficos tradicionais. Hegel, que iluminava todo o pensamento alemão
quarenta anos antes, voltou à sombra, pensadores poderosos, como Marx,
Freud e Nietzsche, estão a produzir, mas não interessam ainda senão a círculos
restritos e só despontarão verdadeiramente no século seguinte. É a ciência
que doravante preenche o espaço deixado vazio pela filosofia especulativa
e, sobre o seu fundamento, o positivismo, para o qual o conhecimento
objetivo parece estar definitivamente ao abrigo das construções subjetivas
da metafísica.

Nesse contexto de crise e hegemonia positivista, havia duas ciências que se tornavam notáveis,
eram elas a matemática e a psicologia. No campo matemático, predominava o interesse pelos sistemas
formais, na área psi, a tentativa de constituição de uma psicologia empírica e positivista, capaz de
explicar e descrever as leis de percepção e eliminar traços subjetivantes.

Depraz (2011, p. 7), comentador da obra husserliana, nos ajuda a situá-la diante dessas duas grandes
perspectivas: de um lado a matemática e de outro a psicologia. A autora situa essa dupla influência da
seguinte forma:

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Fundador da fenomenologia, Edmund Husserl inaugura, no começo do


século XX, um modo de pensamento radicalmente novo. Tomando como
ponto de partida dois campos científicos centrais à época, que são as
matemáticas e a psicologia, esta disciplina inédita que se apresenta como
o estudo descritivo de todos os fenômenos que se oferecem à minha
experiência de sujeito. Da psicologia ela retém uma atenção escrupulosa
dirigida às vivências psíquicas singulares de um sujeito dado, assim como
a seus diferentes atos de consciência; da matemática, e mais amplamente
da lógica, ela retoma o rigor da elaboração das categorias de descrição
adequada à experiência a ser descrita. Quer dizer que retorno à experiência
do sujeito e método de descrição são os dois traços que caracterizam,
desde o início, o método fenomenológico.

Da matemática, Husserl herdará a busca pelo formalismo lógico, sob forte influência do seu mestre
Weierstrass, que lhe encantará pelos estudos sobre as funções matemática. Essa relação amistosa
influenciará as primeiras obras de Husserl, como sua tese sobre o cálculo das variações. Aqui o pensador
alemão se propõe a pensar questões lógico-formais, tais como: seria possível que um conceito
matemático, como o número, se limite ao processo mental que o originou, como o da numeração, sem
se ater a nenhuma experiência exterior física? Esse tipo de questionamento o levará a se voltar para as
operações mentais mais do que aos produtos dela, como a maior parte das ciências empíricas estavam
realizando naquele momento.

Depraz (2011) afirmará que a relação com Weierstrass foi fundamental na investigação no universo
matemático, mas, sobretudo, na constituição de uma ética do cientista para Husserl, que lhe ensinou a
ter rigor e retidão no pensar sobre o conhecimento, o mundo e o ser do homem.

No campo da psicologia, aproximadamente em 1885, Husserl, ao se afastar de Weierstrass, entra


em contato com outro nome de peso, Franz Brentano, que publicara uma obra que estava mobilizando
atenções na área acadêmica. Essa relação o aproximará mais da filosofia e da psicologia, principalmente
com a obra brentaniana A psicologia do ponto de vista empírico, por meio da qual se propôs um novo
modo de compreender o psiquismo humano. Essa obra afetará significativamente a visão de Husserl, que
passa a olhar e explorar o campo da consciência e o modo de relação com os objetos, considerando-os
intrínsecos e demarcados por uma relação de imanência mental e intencional. Husserl publicará, nessa
fase, em 1891, A filosofia da aritmética, sob influência da visão de Brentano e já sob orientação de Carl
Stumpf, na Universidade de Hale.

Segundo Dartigues (1973), a maior contribuição de Brentano à obra de Husserl se localiza nesse
conceito da intencionalidade, que o primeiro resgata da tradição escolástica e investiga os diferentes
sentidos do ser, conforme já explicado. Brentano marcará Husserl ao propor que os fenômenos psíquicos
possuem uma visada ao objeto pré-reflexiva e independente da apreensão físico-empírica, que demarcará
um modo de apreensão diferente dos fenômenos físicos e empíricos.

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Exemplo de aplicação

Baseado na seguinte afirmativa de Brentano, elabore um texto reflexivo sobre como você entende e
decifra essa frase que marcou a obra de Husserl e a relacione com o conceito de consciência intencional
da fenomenologia.

“Ninguém pode verdadeiramente duvidar que o estado psíquico que em si mesmo percebe não
existe e não existe tal como o percebe” (BRENTANO apud DARTIGUES, 1973, p. 17).

Dica

A afirmativa de Brentano traz uma visão de intencionalidade que influenciará boa parte da visão
husserliana, principalmente a de consciência, como um movimento intencional de apreensão do
mundo, não enfocando o objeto externo, que é apreendido pelos nossos sentidos, mas sim buscando
uma compreensão descritiva e imanente do que é percebido e do modo como percebemos em nossa
consciência, focando nos atos de percepção, e não nos objetos externos.

A relação com a obra brentaniana fará com que Husserl se dê conta que as chamadas ciências
do espírito (ou humanas) se mostravam insuficientes no século XIX, principalmente no quesito
metodológico, em que, na maior parte das vezes, copiavam o modelo das ciências naturais (ou duras)
para se legitimarem no cenário acadêmico. Esse incômodo não era apenas de Husserl, ele já havia
sido desenvolvido por Dilthey, autor que certamente o primeiro leu. Além disso, Husserl concordava
com ele na sua afirmativa de que era fundamental que as ciências buscassem o sentimento da vida,
considerando que o sujeito do conhecimento não poderia ser puro ou abstrato, pelo contrário, era um
sujeito concreto, histórico e posicionado (DARTIGUES, 1973).

Segundo Dartigues (1973) e Depraz (2011), é inegável como Husserl parece seguir, num primeiro
momento de reflexão filosófica, um script cartesiano, ao se voltar para como o homem pensante se
funda no processo constitutivo do pensar e perceber o mundo.

Depraz (2011) comenta a importância de Descartes na obra husserliana em dois aspectos principais:
com o procedimento da dúvida metódica de Descartes, em que todas as certezas são questionadas,
Husserl adotará um procedimento semelhante ao propor a suspensão das crenças e pressupostos,
alcançando um projeto filosófico voltado ao sujeito, e, ainda, uma filosofia onde se duvida de tudo, a
não ser do eu, como podemos vislumbrar:

Nas Meditações metafísicas, Descartes se dedica a um empreendimento sem


precedente na história da filosofia: trata-se de obter para as ciências um
fundamento que não mais seja da ordem ontológica da natureza ou do
cosmos, como é o caso na Antiguidade, ou tampouco de tipo divino, como
à época medieval, mas cujo lugar é ocupado pelo próprio sujeito (DEPRAZ,
2011, p. 12).

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Dartigues (1973) concorda com a importância da visão cartesiana para Husserl afirmando que
ambos buscaram uma filosofia de fundamento rigoroso, no caso de Descartes, chegando no eu penso
que se liga impreterivelmente ao eu sou. Husserl reconhecerá esse projeto cartesiano como genuíno, na
medida em que recoloca um retorno às coisas mesmas, mais essenciais no horizonte filosófico moderno,
mas parece perder sua potência ao localizá-las na necessidade de reconhecer Deus como princípio.
Por outro lado, na visão husserliana, tenta-se escapar dessa resposta metafísica divina defendendo
que, mais do nunca, é preciso operar um retorno imediato ao ser do homem por meio de uma intuição
originária que seria fonte constitutiva do conhecimento.

Depraz (2011) ainda apontará o idealismo kantiano como vetor de influência na obra husserliana,
que parece conceber o processo de conhecimento como uma ação de um sujeito que se dirige a um
objeto, numa relação doadora de sentido. Ou seja, “conhecer supõe uma capacidade a priori do espírito
de encontrar coisas que se tornam para ele objetos conhecidos” (DEPRAZ, 2011, p. 14).

Depraz (2011) ainda demarca a ancoragem crítica diante do empirismo em Husserl, já desde 1901,
com a obra Investigações lógicas, em que o pensador alemão aponta críticas aos ingleses empiristas
do século XVII, acusando-os de naturalizarem e objetivarem tudo ao seu redor a partir do primado
da categoria de sujeito empírico concreto, sem se ater a uma análise pormenorizada das vivências
intencionais mantidas pela consciência, por exemplo. Além disso, Husserl acusa o empirismo de não
considerar a existência de uma estrutura a priori da experiência, que seria a base em que se colará todas
as outras experiências do eu com o mundo físico e ambiental.

Para Husserl, segundo Depraz (2011), ao longo da sua obra, a corporeidade não será apenas
o receptáculo dos nossos sentidos físicos, que leem o mundo, mas acima de tudo, ela encarnará a
consciência transcendental, que é feita da mesma tessitura do mundo do vivido, como, aliás,
Merleau-Ponty (2005, p. 21) – importante discípulo de Husserl – nos ajudou a compreender ao realizar
uma fenomenologia do olhar na arte da pintura:

Um corpo humano está aí quando, entre o vidente e o visível, entre tocante


e tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e mão se produz uma espécie
de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente, quando se inflama
o que não cessará de queimar, até que um acidente do corpo desfaça o que
nenhum acidente teria bastado para fazer.

Diante desses pressupostos, entre o formalismo matemático e a metafísica especulativa, Husserl


demarcará a fenomenologia como um projeto de terceira via que afirma que, anterior a qualquer forma
de pensar mais organizada, encontraríamos uma intuição originária e essencial, que seria ela a fonte de
todo e qualquer conhecimento.

5.3 O caminho filosófico da fenomenologia de Husserl

O projeto de pensamento husserliano se propõe a ser um recomeço diante de uma longa história da
filosofia ocidental: de um primeiro momento cético – herdado das leituras cartesianas e da sua ligação
visceral com a matemática – ao momento afirmativo do mundo da vida – uma crítica geral ao mundo
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europeu ocidental. Esse pensador possui diferentes entonações conceituais no seu pensar filosófico, que
Zilles (apud HUSSERL, 1996) condensará em três fases:

Fase 1

Husserl, na perspectiva lógica e essencialista, buscou fundamentar os conceitos originais da


matemática, culminando com a publicação da obra Investigações lógicas, em 1901.

Nessa fase, segundo Depraz (2011), Husserl fez questão de se manter bem informado sobre as
inovações da área matemática, por exemplo, ao ler a obra de Frege, em 1887, ou mesmo estudar a
matemática intuicionista de Brouwe. O campo de interesse husserliano junto à matemática destinava-se
aos estudos da geometria, da aritmética formal e da teoria da multiplicidade.

Saiba mais

Para saber mais sobre a matemática lógico-intuicionista de Frege e sua


geração, que influenciaram Husserl em sua primeira fase, leia a parte I do
artigo a seguir:

GIAROLO, K. A crítica de Frege à concepção kantiana de sinteticidade


aritmética. Revista Existência e Arte, Universidade Federal de São João del
Rey, ano VIII, v. VII, p. 24-35, jan.-dez. 2012. Disponível em: https://ufsj.
edu.br/portal2-repositorio/File/existenciaearte/A_Critica_de_Frege_a_
Concepcao_Kantiana_de_Sinteticidade_da_Aritmetica.pdf. Acesso em: 23
jun. 2020.

Fase 2

Após 1913, Husserl operou uma leitura mais filosófica das questões sobre o fenômeno da consciência
e objeto intencionais, culminou com a publicação de Ideias, numa perspectiva do chamado idealismo
transcendental. Nessa fase, Husserl elaborou conceitos-chave, tais como consciência intencional,
repensando a relação entre sujeito e objeto além de apresentar o método da redução fenomenológica.

Essa fase, marcada pela análise intencional, segundo Dartigues (1973), se destaca pelo forte teor
idealista, na qual a ênfase será dada ao modo como o sujeito supera sua condição empírica e reassume-se
transcendentalmente ligado ao mundo pelo movimento da consciência. Nesse momento, houve
também o importante encontro com Brentano e o conceito da intencionalidade, que foi fundamental
na virada psicologizante husserliana, buscando compreender como se dá a descrição das vivências sob a
visada do sujeito transcendental, que não busca no mundo externo seus objetos e seus significados, mas
sim na dobra do próprio ato da consciência. A isso alia-se a capacidade da reflexibilidade da consciência
intencional como um modo de ser próprio dela. Vamos a um exemplo: se me pedem para somar dois
números, além de pensar sobre o resultado, a consciência pode operar sobre o ato da soma, as duas

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coisas se dão como um acontecimento intrínseco à ação de somar e ao produto dela; no cotidiano, não
paramos para pensar nessa operação, mas é justamente a isso que Husserl nos provoca, a buscar um
olhar atento a esse ato perceptivo mental.

No contexto do início do século XX, Husserl critica a psicologia experimental e introspectiva da


época, tal como a de Wundt e Titchener, por julgar que esse modelo experimental no campo psicológico
perdeu a possibilidade de pensar como uma ciência primeira e fundamental, ficando restrita a uma
leitura apenas empírica e objetiva da realidade. Desse modo, esses projetos não realizaram uma vocação
fundamental de sua área, a compreensão e descrição da consciência intencional.

Nessa fase, o pensador alemão constrói, de fato, seu projeto de psicologia fenomenológica, centrando
sua atenção na compreensão da descrição das vivências (Erlebnis, em alemão), num processo de dupla
objetivação: na relação com os objetos do mundo e, por outro lado, na busca pela essência em si mesma
dessa percepção entre um sujeito e objetos, na dobra da e pela consciência em si. Ou seja, Husserl
entende que a textura da consciência é constituída pelas vivências empírico-concretas, mas não se
reduz a isso, também se dá como uma tessitura imanente e lógica per si, aliás, essa é a base do sensível,
também denominada dimensão antipredicativa da consciência.

Fase 3

Husserl e sua Krisis, na década de 1930, com uma visão crítica sobre a decadência da civilização
europeia e a adoção do conceito de Lebenswelt, enraizando sua filosofia no homem da vida.

Com a obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, Husserl aponta
a decadência da civilização europeia e, mais uma vez, acusa o raciocentrismo como disparador do
empobrecimento do entendimento da vida humana ao tornar a ciência a única base de verdade no
mundo ocidental.

Essa fase final da obra husserliana foi contemplada com a visão do mundo do vivido, o Lebenswelt,
que atraiu a atenção de muitos pensadores, como Merleau-Ponty e Heidegger, que, a partir dessa visão
mais encarnada do ser do homem no mundo da vida, por meio de diversos sentidos e significações,
desenvolveram outras tradições fenomenológicas.

Depraz (2011) nos relata que a citação do mundo da vida se dá principalmente na terceira parte da
obra Krisis, por volta de 1934, o que demonstraria um interesse tardio do autor por temáticas sociais
e políticas, referendado a uma análise do mundo espiritual europeu, o que para alguns indicaria uma
abordagem tardia e, portanto, restritiva.

Dartigues (1973), por sua vez, acentuará a importância do conceito de mundo da vida, pois é esse o
aspecto que grifará a relação da consciência-mundo, o que permitirá o salto para o ser-no-mundo de
Heidegger, por exemplo, reposicionando a fenomenologia husserliana como uma filosofia da existência,
superando o viés idealista da segunda fase. Aqui, agora, voltar às coisas mesmas não significa mais
voltar-se ao sujeito, mas ao mundo vivido.

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Depois de conhecer as três fases do pensamento de Husserl, faz-se necessário conhecer seu projeto
fenomenológico, principalmente seus conceitos-chave.

5.4 A virada filosófica de Husserl

Podemos apontar uma dupla caracterização do pensamento de Husserl: primeiramente, se


confeccionou como uma outra atitude filosófica diante da vida – de comprometimento ontológico –,
e também desembocou em um conjunto de ideias organizadas por um método rigoroso – suspensão e
redução fenomenológicas.

O primeiro projeto filosófico de Husserl pode ser definido como uma investigação lógica e radical
sobre como o conhecimento é constituído no sujeito, portanto, ele não se volta para o mundo concreto
empírico, como a maior parte das ciências naturais realizaram, mas sim para como os homens conhecem
e constroem o real como fenômeno, como Husserl (1980, p. 5) nos conta nas Investigações lógicas:

Pois nela (fenomenologia) tudo provém de uma pesquisa que se dirige


efetivamente para as próprias coisas, que se orienta puramente segundo a
maneira como elas são dadas intuitivamente, e, além disso, de uma pesquisa
da consciência pura, na atitude eidético-fenomenológica, a única que pode
ser frutífera para uma teoria da razão.

A novidade de Husserl é a orientação fenomenológica que coordena esse processo, no qual se


reconhece que a consciência não se volta para os objetos puros e independentemente do sujeito no
mundo externo, pelo contrário, enfatiza-se o modo como os objetos se manifestam subjetivamente na
consciência, em uma forma de doação denominada intencional. É o que Husserl chama de um retorno
às coisas mesmas, que já aparece em 1901, com as Investigações lógicas, como podemos acompanhar
no modo como o próprio autor descreve o sentido da fenomenologia:

A fenomenologia não fala de modo algum em estados dos seres animais


(nem mesmo dos estados de seres de uma natureza qualquer possível); ela
fala de percepções, juízos, sentimentos etc., como tais, daquilo que lhes
convém a priori, numa generalidade incondicional, justamente enquanto
singularidades puras de espécies puras; daquilo cuja visão evidente é
fundamentada exclusivamente na compreensão puramente intuitiva
das essências – de maneira totalmente análoga à da aritmética pura e à
geometria (HUSSERL, 1980, p. 5).

Sobre o “retorno às coisas mesmas”, Depraz (2011) esclarece que o termo “coisas”, em alemão Sachen,
não funciona como a coisa física, que seria o Dinge, mas sim como aquilo sobre o que o pensamento aposta
e se debruça. Como a autora nos ensina: “Portanto, voltar às coisas mesmas é recusar as argumentações
doutrinárias e os sistemas autocoerentes em proveito das interrogações nativas suscitadas pelo mundo
a nossa volta e das quais nossa viva reflexão se alimenta” (DEPRAZ, 2011, p. 27).

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Percebe-se que, na obra husserliana, valoriza-se a dimensão intuitiva e pré-reflexiva da experiência


de apreensão da consciência, ou seja, um objeto qualquer para ser conhecido precisa ser intuito, e não
apenas explicado por leis lógicas. A essa dimensão Husserl chama de intuição doadora originária, que é
a fonte primária em que todo conhecimento se assenta.

Portanto, para alcançar a essência das coisas, é preciso voltar às coisas mesmas, num processo de
aproximação da evidência intuitiva que passa a ser a verdade daquela coisa. Depraz (2011) descreve esse
processo como revelação: ver as coisas de frente, buscando a robustez da evidência pela qual aquilo se
mostra e se faz reconhecer sempre. Por exemplo, o homem, ao se deparar com uma árvore no mundo,
evidente e exposta, possui uma percepção natural e empírica concreta, apreendendo-a como um objeto
falível, que queima e morre, porque é composto por diferentes elementos químicos materiais; porém,
sob orientação fenomenológica, essa árvore, como objeto intencional, não queima, não se quebra, ela
existe apenas na e pela consciência como um processo ideativo e manifesto.

Pode-se afirmar que a fenomenologia é a busca pela essência, que não deve ser entendida como uma
meta objetiva, mas sim como um meio para efetivar nossa existência no mundo, como um caminho que
nos faz ver o mundo sob outra luz, sob o paradoxo insolúvel, em que somos, ao mesmo tempo, videntes
de nós mesmos e (in)visíveis. Portanto, não foi à toa que o homem inventou um instrumento como o
espelho, que explicitou esse incomodo ontológico humano de quase tudo poder ver e, ao mesmo tempo,
não se reconhecer naquilo que vê. Basta uma experiência consigo frente ao espelho para confrontar a
verdade do que se vê, é comum a sensação de estranhamento diante desse outro eu espelhado.

Nesse sentido, para Husserl, eu não penso sobre o mundo primordialmente, mas eu o vivo, sempre
anterior e primitivamente; é sob essa insígnia que devo buscar apreender o que é essencial. Se olho
para uma cachoeira e busco seu eidos (essência), devo recorrer a uma intuição descritiva originária que
me marca ao me enredar junto ao movimento das águas, o som das correntes ao redor, que marca um
cenário verdejante, que tem cheiro e um determinado modo de ser. Afinal, isso me traz o essencial desse
fenômeno que se faz em mim, agora não como a cachoeira empírica que está lá fora, mas aquela que se
fez em mim e em minha consciência, que busca incansavelmente alcançar o ser da cachoeira, que não
está fora de mim ou em mim, está no entre, na intersecção, nem no subjetivismo nem no objetivismo
empírico (fora de mim), mas naquilo que se dá do encontro entre a coisa de fora, o movimento de
consciência (apreensão sensível) e o que se forma nesse entre (ideação). Em outras palavras, é nesse
interstício que se revela um mundo com outro sentido, que não pode ser testado ou medido, ele é, antes
de tudo, intuído pelo sujeito que vive nesse mundo.

Para Husserl (2006, p. 35), a essência está intimamente ligada com a intuição sensível do ser do
homem, como podemos notar:

Essência designou, antes de mais nada, aquilo que se encontra no ser próprio
de um indivíduo como o que ele é. Mas cada um desses “o que” ele é pode
ser posto em ideia. A intuição empírica ou individual pode ser convertida em
visão de essência (ideação). O apreendido intuitivamente é então a essência
pura correspondente ao eidos.

71
Unidade II

Husserl (1980, p. 21), em Investigações lógicas, afirma, portanto, que a percepção realiza “a
possibilidade de desdobramento do visar-isto, juntamente com a sua relação determinada ao objeto,
por exemplo, frente ao papel que me encontro. O ato de intuir recebe uma determinação de intenção
que o preenche”.

Para iluminar essa complexa contemplação intencional, vale a pena debruçar-se sobre outro exemplo,
pense na seguinte questão: como um surfista apreende o eidos do mar? Enquanto um ser que se faz
entremeio às ondas, ao sabor salgado do mar, o arremate violento das ondas sob sua pele, as espumas e
a areia que lhe cobrem o corpo; todas essas vivências lhe remetem à essência do mar, de um ser que se
faz entremeio ao ser do mar: é como se o surfista fosse a dobra do mar, e, somente nessa intersecção, é
possível apreender essa intuição essencial, que é a “oceanidade” que marca a vivência do surfista junto
ao mar e lhe possibilita alcançar esse eidos.

Observação

Segundo Dartigues (1973), a preocupação com o eidos já se encontrava


na obra de Platão, que o definia como um tipo fundamental e intuitivo
que determinava o mundo sensível. Por exemplo, posso ver e me sentar em
várias cadeiras que possuem diferenças materialmente – como material do
que são feitas, material do estofamento –, mas a ideia universal e eidética
da cadeira é única para todas as cadeiras do cosmos, é sua forma que
define, no caso, o seu ser utensiliar.

A fenomenologia ocupa-se, portanto, das significações que emanam da consciência intencional entre
o homem e o mundo, descrevendo-as e não mais as explicando numa chave causalista e naturalista, que
já fora exaustivamente usada pelas ciências naturais. Esse novo modo de compreender o ser do sujeito
que se posta para conhecer o mundo, “faz lembrar” o homem de sua dimensão ontológica, que parece ter
sido apagada pela hegemonia do discurso científico naturalista desde os gregos clássicos. Essas ciências
duras, por sua vez, promulgavam a ideia de que podemos apenas compreender o homem como um ente
biológico e respondente a estímulos ambientais, reduzindo-o a uma dimensão entificadora e positivista.

Saiba mais

Para melhor compreender os fundamentos conceituais e epistêmicos de


Husserl, leia o artigo a seguir:

FARBER, M. Edmund Husserl e os fundamentos de sua filosofia.


Revista Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 18, n. 2, p. 235-245, dez. 2012.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S1809-68672012000200014. Acesso em: 23 jun. 2020.

72
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Para o pensador alemão, a fenomenologia ofereceria um outro modo de pensar o mundo, para
isso, ela seria primeiramente um método descritivo, no sentido semântico, de um caminho outro, que
deveria revelar as verdades que muitas vezes o mundo científico natural nos esconde. Por exemplo,
mesmo o cientista mais compenetrado e controlado possui uma implicação espiritual ao escolher e
fazer determinado tipo de ciência, já existe um lugar originário do qual se parte para “ser cientista”
nesse mundo, ou seja, descontrói-se a mítica da neutralidade absoluta das ciências duras. Husserl nos
ensina que a ciência pode ser rigorosa e não perder sua legitimidade epistêmico-conceitual, mesmo
reconhecendo sua implicação humanitária e espiritual. Mas no que consiste essa metodologia descritiva?
O que é e como descrevê-la?

O método de redução fenomenológico de Husserl baseou-se, portanto, em suspender a atitude


inerente e natural do homem com e no mundo distendendo as relações intrínsecas, promovendo um
certo afastamento para, assim, poder ver e alçar o eidos (essência) do que somos, tessitura e parte. Foi
preciso recusar nossa cumplicidade com o mundo e com seus objetos e inaugurar um outro modo de
vê-los, desprovido de conceitos, saberes e valores, para alcançar aquilo que é essencial, como a forma
da mesa que lhe faz ser ou a “triangularidade” dos triângulos. Como afirmara Chaui (apud HUSSERL,
1980, p. XI), “para se compreender a passagem da região mundo para a região consciência, deve-se levar
em conta uma operação muito especial que Husserl denomina de epoché ou redução fenomenológica”.

Essa é a vocação genuína da fenomenologia, suspender nossas crenças para alçar o eidos.
Segundo o próprio Husserl (2006, p. 27) afirma, em Ideias para uma fenomenologia pura e para
uma filosofia fenomenológica:

O fato de que a fenomenologia tenha de lidar com a consciência, com todas


as espécies de vividos, com atos, com correlatos de atos, não altera em nada
a situação. Ver isso com clareza exige, sem dúvida, não pequeno esforço
dos hábitos dominantes de pensar. Colocar fora do circuito todos os atuais
hábitos de pensar, reconhecer e pôr abaixo as barreiras espirituais com que
eles restringem o horizonte do nosso pensar, e então apreender, em plena
liberdade do pensamento, os autênticos problemas filosóficos.

Ao tomar distância desses objetos que me foram apresentados inerentemente, eu os torno


transcendentes a mim, porque os afasto e os recoloco sob o signo do não saber, ou seja, sob um olhar
ingênuo, que nada sabe sobre ele e que precisa apreendê-lo sob outro patamar de admiração. Obviamente
que Husserl já nos alertava sobre a impossibilidade de operar a redução por completo, porque já estamos
desde sempre no mundo e implicados com suas teias de sentidos. A esse processo, costumeiramente,
Husserl denominou suspensão fenomenológica (epoché), que é colocar entre parênteses o mundo
natural ao nosso redor para poder entrar em contato direto com a experiência do vivido, que inclui o
modo de a consciência apreendê-lo. O pensador nos alerta: suspender o mundo não é negá-lo, como
os céticos fizeram, mas é promover um afastamento, saindo do circuito do entendimento científico, por
exemplo, para poder apreender a relação intencional de um modo ingênuo e puro.

O método fenomenológico husserliano consiste nesses dois aspectos, a redução e a epoché. Apesar
de serem processos intrínsecos, muitas vezes usados como sinônimos, possuem uma diferença de rigor
73
Unidade II

metodológico. Primeiro, para realizar a redução, é preciso antes suspender e colocar o mundo entre
parênteses, ou seja, suspender a tese natural de que o mundo está aí, para então buscar o essencial,
reduzindo-o, como Husserl (2006, p. 27) nos ensina:

Desenvolveremos então um método de reduções fenomenológicas, em


conformidade com o qual poderemos remover as barreiras cognitivas
inerentes à essência de todo modo natural de investigar, diversificando
a direção unilateral própria do olhar até obtermos o livre horizonte
dos fenômenos transcendentalmente purificados e, com ele, o campo da
fenomenologia em nosso sentido próprio.

Observação

Segundo o professor Adriano Holanda (2014), o termo epoché proveio


da cultura cética de Pirros de Élis (360 a.C.-270 a.C.), um grego que fundou
a escola cética e que influenciou autores como Montaigne e Husserl. O
termo ceticismo tem sua origem em skeptikós, do grego, que significa aquele
que pensa, persiste em investigar e que se encontra disponível a qualquer
forma de pensar. O ceticismo pirrônico possuiu três momentos voltados ao
pensar sobre a vida comum: a epoché (suspensão de juízos), a zétesis (busca
incansável pela verdade) e a ataraxia (imperturbabilidade de quem pensa).

Esse caminho metodológico de Husserl, já anunciado desde 1913, não se estanca na descrição das
essências, mas sobretudo num mergulho profundo na realidade para desvendar o que há nela, ou seja,
envolve um desvelamento diante do aparente. Desse modo, a fenomenologia não aceita que o real é
algo puro e decifrável naturalmente apenas pelo seu modo imanente de ser, pelo contrário, acata a ideia
de que o real é fenomênico, precisa ser desvelado para alçar as essências, já que elas se mostram e se
escondem, como os gregos já nos relatavam com Heráclito de Éfeso e sua teoria mobilista.

Para a estudiosa Depraz (2011), a redução fenomenológica foi o aspecto primordial na obra de
Husserl, que o fez saltar e superar os limites do naturalismo e do psicologismo. A autora didaticamente
a descreve sob três aspectos transitivos:

• Da intencionalidade à conversão reflexiva: para atingir a reflexão intuitiva, é preciso operar


uma abertura sensível diante do mundo, superando a egolatria (como fechamento num eu que
se pensa separado do mundo), admitindo, portanto, que sujeito e objeto possuem uma relação
de interdependência vital. Para que isso seja possível, a visão da consciência em Husserl é mais
alargada, é intencional, não é uma substância fechada em si com capacidade de pensar, ela é
ação de apreensão global do mundo. Assim, ela integra os objetos que ela visa, constituindo um
sentido para eles, transformando-os em noemas. Quando isso ocorre, Husserl refere-se à reflexão
como um movimento circular, de retorno a si mesmo, para nos interrogarmos sobre essa vivência
intencional. Daí, assumir a terminologia conversão reflexiva como um processo do olhar que se
dobra em si, chamado de noesis.
74
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

• Da reflexão à variação eidética: Husserl chama a atenção para não cairmos na armadilha
simplória do empirismo, que busca a compreensão dos objetos do mundo no seu meio externo e
em como eles impactam nosso corpo sensorial. Aqui na fenomenologia, é preciso focalizar não os
objetos fora de nós, mas aqueles que se constituíram em nós na dobra da consciência intencional.
Mas caberia uma questão: como não recair num extremo subjetivismo, já que essa dobra, sem
dúvida, passa pela singularidade? Husserl responde que é preciso superar o fato empírico em
direção ao eidos, liberando-o do meu referencial apenas e assumindo uma intimidade daquilo que
é universal, aquilo que é invariável. Por exemplo, posso olhar um triângulo musical usado para
percussão, esse é um fato, mas a sua essência remete a uma universalidade que muitos intuem,
que é a sua forma triangular, que revela a igualdade dos três vértices.

• Da suspensão transcendental (epoché) à constituição no processo de suspensão: aqui Husserl


nos ensina que é preciso interromper o percurso natural dos pensamentos habituais, sair do cotidiano,
reduzi-lo ao básico, o que nos levaria a uma tomada de consciência em outra dimensão, aniquilando
meu ego autorreferente, tornando-o um ego transcendental, porque se constitui como uma ficção
na força do imaginativo que, muitas vezes, o mundo natural aniquila. Somente, então, Husserl
afirma ser possível um outro olhar, uma reconquista, uma outra constituição de mundo para mim;
daí muitos denominarem a fenomenologia husserliana de constitutiva. Vamos a um exemplo: se
sou um psicólogo que recebe um paciente que anuncia que é depressivo, se sigo a visão husserliana,
devo operar uma suspensão fenomenológica para suspender aquilo que eu sei sobre uma possível
patologia mental denominada de depressão e reduzir meu saber apenas ao encontro com aquele
outro ser, que me descreverá o que é estar depressivo. A partir daí, somente, posso constituir
um outro olhar sobre quem é e como se mostra esse outro ser humano a minha frente.

Dartigues (1973) lembra que Husserl possui uma familiaridade com os pensadores da Gestalt Alemã,
que ressaltaram a forma como uma totalidade estrutural e invariante que acusaria per si a essência de
uma experiência perceptiva. Como podemos ler com o autor:

[...] o próprio Husserl chama forma, como já o assinalamos, a unidade


intencional pela qual, através do fluxo das sensações internas (sensação
de verde, rugoso etc.) que constituem a matéria sensível ou sensual da
percepção, eu viso o mesmo objeto distinto de mim e exterior a mim
(a árvore que está a minha frente). A forma é, pois, para o próprio Husserl,
um invariante, o invariante que, na diversidade e mudança das sensações
pelas quais um objeto se dá para mim, me permite captar este objeto como
sendo sempre o mesmo. É, portanto, graças à forma que a consciência
pode sair de sua vivência imanente e perceber, através do fluxo temporal
dessa vivência, a essência que, ela própria, não é afetada pelo tempo
(DARTIGUES, 1973, p. 41).

Ao nos depararmos com a caracterização do projeto husserliano, é comum esbarrarmos em diferentes


terminologias, tais como filosofia transcendental, eidética, psicologia descritiva ou até filosofia genética
ou constitutiva. Vamos nos ater a essas denominações.

75
Unidade II

O projeto de Husserl é chamado de filosofia transcendental e de viés eidético, porque valoriza


o ato de filosofar como aquele que busca a essência humana de modo rigoroso, num movimento
incessante que nos escapa e transcende ao campo ôntico, fisicalizado pelo eu empírico, denominado
de transcendente por Husserl. Para alcançar a subjetividade transcendental, o autor replicará o método
cartesiano – das meditações imaginativas – para buscar voltar às coisas mesmas na dimensão do ser
(do homem), suspendendo o mundo ao seu redor e apagando todos os seus ruídos para acessar a
consciência evidente. Nessa suspensão, Husserl alcançará um lugar anterior ao que Descartes chegara,
que afirmava a certeza do eu pensante, revelado pelo Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). O pensador
alemão reconhecerá que existe uma intuição universal e absoluta que nos abre a dimensão do ser, que
sempre nos escapará em sua totalidade, transcendendo, portanto, a um eu pensante, porque jamais
o apreenderemos de forma calculável ou traduzível. Assim, Husserl reformula o primado cartesiano
reafirmando que: sou, existo e penso.

Lembrete

Fenomenologia é a busca pela essência, e não deve ser entendida como


uma meta objetiva, mas como meio para efetivar nossa existência no mundo.

A fenomenologia husserliana também será denominada de descritiva. Isso se deve por causa da
importância do método de redução, em que a descrição minuciosa é imprescindível. É o ato de descrever
a experiência intencional, no sentido de dizer sobre aquilo que vemos e observamos atentamente,
na maior globalidade possível, procurando não esquecer de nenhuma parte da coisa que possa
sinalizá-la como aquilo que é. Obviamente que Husserl nos ensinará que não existe uma observação
empírica completa, a descrição vive um paradoxo interminável, pois busca a totalidade, mas se faz pela
incompletude, pois nossa visada é sempre relativa a um posicionamento. Ou seja, é preciso sempre uma
atividade de abstração intuitiva em prol do conhecimento apodítico da coisa. Por exemplo, se tenho um
cubo colorido a minha frente, quando o observo a certa distância, posso tentar apreendê-lo pela maior
parte de suas arestas, mas meu campo visual não é total. Nesse sentido, tenho que recorrer as minhas
lembranças e a uma ação mental imaginativa que o complete.

Husserl (2006, p. 161) assim a defende, como autônoma e potente:

No que concerne à fenomenologia, ela quer ser uma doutrina eidética


descritiva dos vividos transcendentais puros em orientação fenomenológica,
e como toda disciplina descritiva, que não opera por substrução nem por
idealização, ela tem sua legitimidade em si. O que quer que possa ser
eideticamente apreendido nos vividos reduzidos em intuição pura – quer
como componente real, quer como correlato intencional – será próprio a
ela, e tal é para ela uma grande fonte de conhecimentos absolutos.

Já a caracterização da fenomenologia genética ou constitutiva pertence a um momento mais


tardio da obra husserliana, quando utiliza a visão do Lebenswelt com maior força, considerando que
76
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

o ato intencional é sempre um acontecimento no mundo em situação de intersubjetividade. Nesse


momento, Husserl está preocupado com a dimensão de constituição da consciência no mundo, junto a
outros seres, a outros objetos e significações.

Vimos a fenomenologia husserliana, como estudo das essências, influenciou toda uma geração de
pensadores. Sartre, por exemplo, realizou uma fenomenologia da imaginação. Merleau-Ponty, por sua
vez, realizou uma fenomenologia da percepção. Gaston Bachelard, ainda, realizou uma fenomenologia
do espaço.

Para realizá-las, esses pensadores, inspirados por Husserl, aprenderam que era preciso suspender
(ou pôr entre parênteses) o saber e o conhecimento o máximo possível buscando uma relação ingênua
com o mundo, para só então alcançar uma descrição direta das experiências sem recorrer a uma gênese
psicológica, ou seja, buscar uma consciência cintilante da origem. Merleau-Ponty, por exemplo, ao
buscar o começo eidético da pintura, alcança o traçado da linha ondulante como aquilo que desnuda o
mundo do pintor e, ao mesmo tempo, torna invisível parte dele. Para ele, o eidos da pintura é a transição
e a modulação das linhas entre o visível e o vidente, aquele que vê.

Exemplo de aplicação

Observe a pintura de Cézanne sobre árvores em um jardim e leia os dois trechos sobre a
fenomenologia da pintura sob o olhar de Merleau-Ponty. Tente realizar uma análise intencional,
buscando a essência da arte do (in)visível nesta obra.

Figura 11 – Floresta, de Cézanne (1890)

“Numa floresta, várias vezes senti que não era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram
as árvores que me olhavam, que me falavam. Eu estava ali, escutando... Penso que o pintor deve ser

77
Unidade II

traspassado pelo universo, e não querer traspassá-lo. Espero estar inteiramente submerso, sepultado.
Pinto talvez para surgir” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 26).

“Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma
coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do ser, vejo segundo ele ou com
ele mais do que vejo” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 21).

Dessa forma, aprendemos que a obra de Husserl é uma tentativa consistente de reaproximação
entre o mundo da vida e o dos conhecimentos (científicos ou não). Para isso, a filosofia assumiria
um papel primordial, ao se oferecer como uma ciência rigorosa e fértil para chamar o homem a esta
reflexão primordial: como resgatar sua essência intrínseca junto ao mundo (da vida).

Percebemos a importância desse projeto para a virada do século. Obviamente, seus seguidores
criticaram Husserl. Merleau-Ponty, por exemplo, o acusa de não reconhecer o solo de uma socialidade
primitiva, anterior às normas sociais e, ainda, de não ressaltar com o devido valor o corpo encarnado
como espaço do vivido em que se dão todas essas operações intencionais e eidéticas. Heidegger, por
sua vez, um de seus mais atentos alunos, acusará Husserl de cair nas armadilhas do idealismo e de usar
categorias epistêmicas já decadentes e pertencentes a uma cultura metafísica, tais como consciência
e ego, necessitando de uma revisão profunda, pois a fenomenologia prescindiria de uma invenção da
linguagem para reposicionar radicalmente o ser do homem.

A seguir, iremos nos apropriar melhor de um dos projetos mais genuínos do século XX, a ontologia
radical e existencial de Heidegger, que, como aluno de Husserl, irá realizar um diálogo intrínseco com
a obra do mestre, mas, ao mesmo tempo, operará uma crítica aguda, reorganizando a proposta da
fenomenologia, agora denominada de existencial.

6 O CAMINHO DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL HEIDEGGERIANA

A obra de Heidegger é considerada fundamental para muitos pensadores do século XX, primeiramente
porque, ao se debruçar sobre a ontologia – entendida como a história do ser –, o autor criou uma nova
linguagem e um poder inusitado de nomear fenômenos, como raramente foi visto na galeria filosófica
moderna. Além do seu poder de desconstruir o caminho da metafísica, propôs uma nova forma de repor
a ontologia na vida humana. Influenciou a filosofia política de sua aluna Hannah Arendt, a filosofia
hermenêutica de Gadamer, o desconstrucionismo de Derrida, manteve diálogo indireto com Sartre,
entre outros.

Segundo Safranski (2005), um dos seus mais interessados biógrafos, o filósofo foi um mestre
da Alemanha, herdou a intensidade do romantismo, a precariedade de uma nação que se unificou
tardiamente, o misticismo de Meister Eckhart e as contradições do seu tempo. Entre ser um libertário e
um aliado nazista, Heidegger tornou-se o emblema de um novo tempo no horizonte filosófico.

78
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Figura 12 – Martin Heidegger

6.1 Notas biográficas e obras de Heidegger

Martin Heidegger (1889-1976) nasceu num duquado de Baden, importante distrito alemão, na cidade
de Messkirch. Proveio de família religiosa, praticante do catolicismo romano. Seu pai era sacristão da
paróquia da cidade, o que influenciou a vida do pequeno Martin, com a teologia atravessando sua formação.

Figura 13 – Mapa da Alemanha com destaque para Messkirch

A cidade de Messkirch, no sul da Alemanha, está localizada entre os Alpes Suevos e o Danúbio. É
caracterizada como uma região na qual, culturalmente, o povo se mostrava melancólico e pensativo.

79
Unidade II

Heidegger, segundo o biógrafo Safranski (2005), herdou esse tom, mas também a alegria dos suevos. No início
do século XX, Messkirch possuía cerca de dois mil habitantes, sendo sua maioria artesãos e agricultores. Com
poucas indústrias, a região era tipicamente camponesa, pertencia ao ducado de Baden, que herdara uma forte
tradição liberal, palco de conflitos religiosos entre facções católicas discordantes, entre os chamados romanos
e os antigos-liberais, o que demarcava a região como um campo conflitivo e inquieto.

A família de Heidegger pertencia a essa tradição dos católicos romanos, que eram tidos como gente mais
atrasada e conservadora pelos antigos liberais. Esse clima de conflito religioso marcara a vida do pequeno Martin,
que viveu as diferenças entre o modo de vida tradicionalista e o moderno-liberal. No fim do século XIX, a força
dos católicos liberais se enfraqueceu, e aos romanos da cidadela de Heidegger fora devolvido o domínio da
sacristia. Isso alcançou o cotidiano da família dele, que se mudou para viver nos arredores da igreja.

Segundo Safranski (2005), essa tradição religiosa provinha dos familiares antepassados de Heidegger,
provenientes de uma cultura simplória e de origem austríaca, da vida camponesa e do artesanato, com
franca tradição católica e que incluiu vários oradores religiosos. Não é de se estranhar que o pequeno
Martin tenha sido coroinha e participado ativamente da vida religiosa ao seu redor.

Saiba mais

Rüdiger Safranski, nascido em 1945, é biógrafo de vários filósofos


importantes. Além de Heidegger, pesquisou a vida de Nietzsche e
Schopenhauer. Estudioso alemão de filosofia e estudos literários, formado
em Filosofia e Letras, dedica-se ao estudo de vários pensadores, entre eles
Adorno. Indicamos a leitura da biografia de Heidegger, principalmente os
capítulos 1 e 2, sobre a infância do pensador.

ZAFRANSKI, R. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal.


Tradução: Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005.

Figura 14 – Safranski

80
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Loparic (2004a, p. 22-23), outro estudioso heideggeriano, afirma que:

Talvez se possa dizer que Heidegger era um homem do campo no mesmo


sentido em que Van Gogh era o pintor das paisagens da Holanda e Provença.
[...] Antes de descobrir Cézanne, pintor da montanha do ser, Heidegger
meditou longamente sobre os instrumentos que se encontram nos quadros
de Van Gogh. Em particular nos sapatos dos camponeses, pintados várias
vezes pelo artista holandês. Objetos de uso agrícola, sim, mas tal qual Van
Gogh, também para Heidegger, o uso que uma camponesa faz dos seus
sapatos não é algo a ser pensado apenas como categorias da sociologia
rural. [...] o que transparece nos sapatos da camponesa é a umidade do solo,
a solidão do caminho do campo, a dádiva do trigo maduro, o temor pela
incerteza do pão, o estremecimento pela chegada do nascimento e do temor
diante da morte.

Exemplo de aplicação

Observe o quadro Colheita de milho em Provence, de Van Gogh, e reflita junto à citação anterior, de
Loparic, sobre o modo de vida camponês e como isso afetou Heidegger em seu modo de pensar a vida.

Figura 15 – Colheita de milho em Provence, de Van Gogh (1888)

81
Unidade II

Saiba mais

Para ver mais obras do artista, acesse o link para o Van Gogh Museum:

https://artsandculture.google.com/partner/van-gogh-museum?hl=pt-BR

Em 1903, com a ajuda de amigos da Igreja, Heidegger é enviado à cidade alemã de Constanz para
terminar de cursar o ginásio num internato de forte cunho católico e humanista, o que marcou sua vida
acadêmica e lhe abriu os horizontes para o mundo. Nessa passagem, encontra um dos seus primeiros
mestres, o arcebispo Conrad Gröber, que lhe apresentou importantes obras filosóficas, como a de Franz
Brentano, ícone em comum com Husserl. Depois de Constanz (1903-1906), Heidegger ainda recebeu
bolsa para os primeiros semestres de Teologia na Universidade de Freiburg, que perdurou até 1911, para
sua formação sacerdotal (ZAFRANSKI, 2005).

O percurso acadêmico de Heidegger variou entre disciplinas teológicas, matemáticas e físicas, mas o
que mobilizava o pensador era o interesse filosófico, fruto já da leitura de Brentano sobre os múltiplos
sentidos do ser. Esse contato fez com que Heidegger questionasse a multiplicidade de modos de vida dos
entes e como estes se articulavam com o ser dessas mesmas coisas, ou seja, queria investigar o mistério
do ser (CASANOVA, 2009).

Em Freiburg, Heidegger encontra definitivamente o pensamento moderno, o contato com a obra


nietzschiana, as notícias sobre a psicanálise e a hermenêutica analítica de Freud, entre outros, que
contaminarão a vontade de Martin de se enveredar de vez pelos caminhos filosóficos.

Esse primeiro momento do jovem Heidegger é marcado pela predominância de investigações


lógicas, mais assertivamente, pela a essência da lógica, caminho muito semelhante ao que fez seu
mestre Husserl. Nessa fase, a partir de 1912, escreveu textos como O problema da realidade na filosofia
moderna, A doutrina das categorias e da significação em Duns Scoto, entre outros.

Encontrou nos estudos do tomismo-aristotélico um importante referencial teológico, que, apesar de


permanecer velado por grande parte da sua obra, marca uma postura religiosa de Heidegger como um
todo, sempre na busca de uma religação íntima e ontológica com o sagrado.

Casanova (2009) anunciará que a base de compreensão filosófica do jovem Heidegger partiu de dois
aspectos coadunados: de um lado a busca pela essência da lógica; de outro, uma ligação harmônica com
a experiência religiosa em busca da verdade do ser, como podemos também constatar com Zafranski
(2005, p. 50):

Nesse mundo a verdade católica ainda está em casa. É um mundo


absolutamente parecido com Messkirch. Aqui a fé ainda faz parte da
ordem da vida e a gente a sente sem ter de se obrigar a ter autocontrole
e autorrenúncia. Mas quem entra com sua fé no estrangeiro, precisa da

82
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

ajuda da disciplina e da lógica. Diante de toda fé abre-se um abismo. Como


atravessar? O jovem Heidegger aposta em tradição e disciplina. Mais tarde é
a determinação, a decisão. Mais tarde ainda, ele confia na serenidade.

Heidegger recebeu uma sólida formação filosófica na Universidade de Freiburg, onde, aliás, conheceu
um dos seus maiores mestres, Edmund Husserl, com quem manteve um diálogo acadêmico profícuo.
Também em sua formação conheceu Heinrich Rickert (1863-1936), um pensador neokantiano que
contribuiu para a ciência histórica.

Doutorou-se no ano de 1914 com um trabalho sobre A teoria do juízo no psicologismo, porém,
foi com seu texto de habilitação para a docência, em Freiburg, que Heidegger iniciou seu percurso
acadêmico mais contundente. Lá produziu um texto sobre o conceito de tempo nas ciências históricas,
texto este que alimentaria a sua maior obra, Ser e tempo, em 1927. Nessa primeira fase do jovem
Heidegger, é muito comum encontrarmos em sua obra referências às ideias de Husserl. Porém sua
interlocução é variada e hábil. Admira de Parmênides, Aristóteles a Nietzsche, mas de modo contundente
os desconstrói.

Entre 1915 e 1918, Heidegger, assim como muitos outros jovens, se alista no Exército por conta da
Primeira Guerra Mundial, porém não foi ao combate direto, ficando responsável pelas postagens e pelo
serviço meteorológico. Essa foi uma vivência marcante na vida desse jovem, que, ao voltar para casa,
retoma seus estudos filosóficos de modo definitivo, afastando-se do catolicismo e descobrindo uma
nova forma de pensar a vida. Como Safranski (2005, p. 120) nos relata:

O soldado Heidegger descobriu uma nova intensidade. Não é a própria


guerra, mas o que sobra quando a catástrofe queimou tudo ao redor. Não é
o banho de aço da vitória, mas o grande desânimo pela derrota. É essa a sua
maneira de acreditar no espírito e no poder. E prossegue, a nova vida que
queremos ou que nos quer, desistiu de ser universal, isto é ilegítima e fácil,
sua propriedade é a originalidade, o evidente da intuição total.

Segundo Safranski (2005), somente após a Primeira Guerra Mundial Heidegger realizará vários
questionamentos das suas plataformas rígidas de pensamento, anteriormente marcadas pela lógica e
pela fé católica. Isso se deu devido ao desamparo vivido na guerra, que o encaminhará a descobrir, pela
vida, o valor da facticidade e da existência, voltando a reler autores da filosofia da vida – tais como
Nietzsche e Bergson – e a considerá-los sob outra perspectiva.

Lembrete

Heidegger herdou a intensidade do romantismo, a precariedade de uma


nação que se unificou tardiamente, o misticismo e as contradições do seu
tempo. Entre ser um libertário e um aliado nazista, Heidegger tornou-se o
emblema de um novo tempo no horizonte filosófico.

83
Unidade II

Em 1917, Heidegger casa-se com Elfride Petri e, em dois anos, tem seu primeiro filho, Jörg. Conhecera
Elfride em 1915. À época, Elfride estudava Economia na Universidade de Freiburg, era uma jovem
inquieta, seguidora dos direitos feministas e que provinha de família protestante. Segundo Safranski
(2005), foi uma combatente ativa, principalmente nos primeiros anos de casamento. Em 1920, nasceu
seu segundo filho, Hermann. Muitos afirmam que o casamento foi um dos motivos que fez com que
Heidegger se afastasse do catolicismo e se arriscasse em terreno protestante.

Em 1920, ainda, Heidegger conheceu Jaspers, importante pensador judeu, com quem manteve forte
amizade, mas que será abalada com a aproximação da Segunda Guerra Mundial, quando agora reitor de
Freiburg, realiza ações de afastamento de docentes judeus, o que deixa uma mácula em vários vínculos
de Martin (ZAFRANSKI, 2005).

Em 1928, Heidegger assumiu a cadeira de docente de Filosofia, em Freiburg, no lugar de Husserl, que já
se encaminhava para a aposentadoria. Importante notificar que, para ser aprovado, apresentara parte da
obra que se tornou seu ápice bibliográfico sobre o sentido do ser, a obra Ser e tempo (1927). Nos três anos
seguintes publicou importantes obras sobre a desconstrução da metafísica ocidental, como a conferência
O que é a metafísica? (1929) e Os conceitos fundamentais da metafísica (1930) (ZAFRANSKI, 2005).

Foi eleito reitor em 1933, quando também aliou-se ao Partido Nazista, o que marcou o caminho
de Heidegger com várias perdas, por exemplo, com o processo de desnazificação, ele perdeu a licença
para lecionar até 1949; seus vínculos com Jaspers, Husserl e Hannah Arendt, sua aluna e amante por
toda vida, foram extremamente fragilizados e rompidos por anos (ZAFRANSKI, 2005). O afastamento da
universidade causou uma longa depressão em Heidegger, que se recolheu em seu chalé em Todtnauberg,
na Floresta Negra, porém a sua obra já se apresentara com força na Europa, e ele continuou a ser
chamado para ministrar conferências, na condição de palestrante (ZAFRANSKI, 2005).

Loparic (2004a) ressalta a importância das paisagens da Floresta Negra para Heidegger. Ela seria
como um refúgio idílico, mas também onde o pensador encontrava serenidade para construir seus textos.
Heidegger reconheceu que sua obra emerge pelo acontecer das paisagens daquele lugar. Após a guerra
e com o avanço da modernização técnica, a Floresta Negra passou a ser povoada, levando Heidegger a
buscar abrigo ontológico na linguagem, tornando-se admirador de Hölderlin, um renomado poeta alemão.

Entre 1936 e 1940, Heidegger deu conferências discutindo a obra de Nietzsche, acusando-o de o
último metafísico da modernidade. Também abordou temas como o pensamento político nacionalista,
chamando a atenção da Gestapo (ZAFRANSKI, 2005).

Apenas em 1951, Heidegger retoma suas aulas na universidade. Nesse momento, com frequência,
recebe visitas de Hannah Arendt. Em 1953, ministra em Munique uma importante conferência sobre a
decadência moderna, com o nome A questão da técnica (ZAFRANSKI, 2005).

Em 1959, já em seu segundo momento filosófico, Heidegger conhece Medard Boss, um psiquiatra
suíço que lhe renderá várias conferências sobre a relação da filosofia com o sofrimento mental.
É o momento mais antropológico heideggeriano, que resultará nos famosos seminários de Zollikon
(ZAFRANSKI, 2005).
84
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Por influência da poesia de Hölderlin, Heidegger visita o sul da Franca (região de Bordeaux) e a
Grécia (principalmente Delos), na década de 1960, buscando apreender vestígios da cultura de um povo
que soube, como poucos, pensar o ser e a existência.

Somente em 1975 foram publicadas as obras completas de Heidegger em alemão. Depois de um ano,
ele veio a falecer e foi enterrado em Messkirch, conforme sua vontade.

Saiba mais

Para melhor apreender a atmosfera cultural e de parte da vida de


Heidegger, assista ao filme Hannah. É interessante para o aluno conhecer
melhor a vida de um dos pensadores mais paradoxais do século.

HANNAH. Direção: Andrea Pallaoro. Itália; França; Bélgica: Partner


Media Investment, 2017. 93 min.

Leia também a resenha do jornal Folha de S.Paulo sobre o filme de Pallaoro.

ALPENDRE, S. “Hannah” vale a pena pelo percurso narrativo que chega


a desfecho quase inevitável. Folha de S.Paulo, 12 jul. 2018. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/hannah-vale-pelo-per
curso-narrativo-que-chega-a-desfecho-quase-inevitavel.shtml. Acesso em:
24 jun. 2020.

6.2 Os pressupostos epistêmicos filosóficos da fenomenologia existencial

Segundo Casanova (2009, p. 10):

Martin Heidegger foi um pensador de uma época precária, indigente, de


uma época em constante transição e desprovida dos esteios que deram
sustentação durante milênios ao pensamento e à ação do homem ocidental.
Nada mais justo, portanto, do que buscarmos agora uma compreensão
desse pensador.

Segundo Stein (apud HEIDEGGER, 1979), Heidegger será reconhecido como o grande pensador
solitário do século XX, chamado de o pastor do ser. Testemunha de uma época precária, tornou-se
ponto de partida para muitos outros pensadores, o que chamou muito a atenção dos cientistas sociais
e humanos para sua teoria, tal como ocorreu com os campos psiquiátrico e psicológico, que, baseados
na filosofia heideggeriana, constituíram projetos interventivos e um outro modo de compreensão do
sofrimento mental.

85
Unidade II

Para alcançar o reconhecimento acadêmico, Heidegger foi perpassado por inúmeros pensadores e
teorias. Por exemplo, num primeiro momento, sob o perfil rígido de um filósofo jovial que acreditava que
a filosofia deveria ser a ciência das ciências, rigorosa e objetiva, criticara as filosofias da vida provindas
da orla nietzschiana, da filosofia vital de Henri Bergson, da fenomenologia ética de Max Scheler e do
historicismo de Dilthey por considerá-las subjetivas e anti-intelectuais. Mas isso muda após a Primeira
Guerra Mundial, quando Heidegger os revisita sob outra perspectiva, principalmente para ajudá-lo a
desmontar a tradição metafísica moderna.

Por exemplo, Nietzsche construiu uma máquina de guerra filosófica anti-idealista, valorizando
e afirmando a vida como a grande potência criativa, denominada de vontade de poder. Combateu
os determinismos típicos do século XIX, dominados pela visão darwinista e empirista, devolvendo ao
homem sua força libertária e a possibilidade de superar os niilismos criados pela modernidade, pela
decadência da ciência da natureza. Safranski (2005, p. 80) nos relata como Nietzsche contribuiu ao
destacar a vida como uma arte da existência:

A filosofia da vida de Nietzsche é ativista e possuída pela arte. O seu Vontade


de poder no começo não funcionou como visão política, mas estética. Ela
devolveu à arte uma forte consciência de si mesma. Sob a pressão do
ideal científico, ela perdera essa consciência de si, curvando-se ao dogma
da imitação. Quem seguia Nietzsche podia dizer: se arte e realidade não
coincidem, pior para a realidade.

Segundo Loparic (2004a), devido aos estudos de Fichte, Hegel e Dilthey, Heidegger pôde entrar
em contato com as ciências históricas, perdendo seu preconceito, reconhecendo o valor das ciências
espirituais, além das naturais ou da matemática. Há de se destacar a obra de Dilthey, incorporada à
fenomenologia heideggeriana. Além do sentido histórico e do reconhecimento da legitimidades das
ciências sociais e humanas, Dilthey colaborou com o conceito de vivência (Erleben) e de compreensão
(Versthehen). Heidegger aprendeu com o historicista alemão que o ato de compreender envolve uma
experiência espiritual e vivencial, em que se revive momentos passados, vencendo a transitoriedade
temporal. Como Safranski (2005, p. 82) nos relata:

Cada ato de compreender está ele próprio ligado ao seu momento no


tempo. E assim somos constantemente envolvidos pelo tempo que corre,
que produz sempre o novo e sempre único – pontos de vista, perspectivas,
visões, concepções de mundo numa sequência incessante.

Casanova (2009, p. 37) aponta que Heidegger encontrará em Dilthey a oportunidade de associar
lógica e historicidade, portanto, favorecendo a conexão entre o que é universal e o que é singular: “As
vivências constituem, em outras palavras, a base dos processos compreensivos das ciências humanas em
geral e da filosofia como ciência originária particular”.

Essa contribuição será marcante na obra heideggeriana, que apontará a vivência primordial como
aquilo que se assume como um sentido alargado sobre o que nos envolve enquanto ser, o mundo
em torno, aquilo que vem com ele. Daí vem o famoso caso-exemplo de Heidegger, dado em sua
86
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

preleção em 1919, A ideia da filosofia e o problema da visão de mundo, sobre a vivência numa cátedra,
quando, numa palestra, ele anuncia descritivamente aos seus alunos: qual é o sentido de estar e ser
naquela cátedra dando uma palestra? Aquela vivência não se dá somente pelo ato focal da fala de
Heidegger, mas a cátedra muda o ser, ou seja, o sentido de ser e viver ali naquele momento envolve toda
uma complexidade de vivências que os enreda, desde a sua função institucional, a sua localização espacial
territorial, a iluminação dela e as histórias que ali ocorreram, assim, reúne-se ali todo um mundo espacial e
temporal que fala dessa vivência de ser e estar ali, ministrando uma aula. Heidegger dirá: “Eu vejo a cátedra em
uma orientação, em uma iluminação, em um pano de fundo” (HEIDEGGER, 1979, p. 234).

Heidegger, como já apontado, também voltará ao pensamento medieval, dialogando com os


tomistas, mas enfoca a obra de Joahnnes Duns Scotus (1266-1308) quando elabora uma tese sobre o
modo como esse pensador concebia as categorias para analisar o mundo, entre 1912 e 1913. Scotus fora
um importante pensador medieval. Nascido na Escócia, pertenceu à tradição franciscana, que valorizava
a fé como vivência verdadeira para alcançar Deus. Também ficou conhecido por criticar o imperativo da
razão, defendendo que a vivência da fé verdadeira superaria o tipo de conhecimento calculável da razão.
Pertencia à escola dos nominalistas, que defendiam que o que importa na identificação essencial não
são as coisas em si mesmas, mas antes os nomes que lhe damos, daí a hipervalorização da linguagem,
afirmando, inclusive, que o pensar move-se por ela, e não por si só.

Sem dúvida, o maior expoente e influenciador inicial da obra heideggeriana foi a fenomenologia de
Edmund Husserl, seu professor e entusiasta mestre desde 1917. Heidegger reconheceu na obra deste um
novo modo de ver as coisas, oferecendo ao real uma outra forma de se mostrar, diferente do ofertado
pelas ciências naturais e empiristas em voga no século XIX (no chaveamento sujeito que analisa e
explica as causas do objeto).

Husserl, segundo Safranski (2005, p. 104), ofereceu ao jovem Heidegger um “verdadeiro alfabeto da
percepção”, para, então, “reencontrar a linguagem da realidade”. Mostrou-lhe que a consciência, que
parecia ter sido explorada pelas psicologias empíricas de Wundt e William James, ainda era um território
não conhecido, portanto, a fenomenologia seria um projeto para séculos de desconstrução, como o
biógrafo nos relata sob a égide heideggeriana:

A fenomenologia reabilitou os fenômenos, o mundo aparente, aguçou


o sentido para aquilo que se mostra. A aparência, no entendimento
fenomenológico, não é uma realidade menor, talvez até enganosa, atrás da
qual se deve procurar próprio (Eigentliche) (SAFRANSKI, 2005, p. 115).

Husserl só encontrará o jovem Heidegger em 1917, porém, Martin já o conhecia, lia recorrentemente
as Investigações lógicas (1900), que lhe enredavam, mesmo quando não as decifrava por completo, ou,
ainda, quando em 1913, começou a acompanhar o Anuário de Filosofia e Pesquisa Fenomenológica,
editado por Husserl. Em 1919, Heidegger, agora em parceria com o mestre Husserl, escreve em “Meu
caminho para a fenomenologia” (1979, p. 299) sobre as contribuições recebidas:

Desde 1919 passei a dedicar-me pessoalmente às atividades docentes na


proximidade de Husserl: nestas, aprendia o ver fenomenológico, nele me
87
Unidade II

exercitando e ao mesmo tempo experimentado uma nova compreensão de


Aristóteles; foi aí que meu interesse se voltou novamente às Investigações
lógicas, sobretudo à Sexta Investigação da primeira edição. A distinção
que Husserl aí constrói sobre intuição sensível e categorial revelou-me seu
alcance para a determinação do significado múltiplo do ente.

Para Martin, Husserl conseguiu como poucos descrever a consciência como um processo intencional,
antes da divisão comum observada e apontada pelas ciências empíricas, entre um eu substancial e um
mundo externo objetal. Houve críticas por parte de Heidegger com o passar dos anos. Por exemplo,
acusou Husserl de cair na própria armadilha. Ao recusar o eu substancial, recorre em última instância
a um ego transcendental, que organizaria a vivência perceptiva como um espírito que tudo vê e
apreende, independentemente do eu racional, que possamos ou pensamos ter, mantendo uma categoria
substancial, apesar de criticá-las ou considerá-las insuficientes.

Mas independentemente das críticas, é inegável o reconhecimento do porte do projeto husserliano.


Heidegger, em seu texto de 1963, “Meu caminho para a fenomenologia”, afirma que desde os estudos
teológicos os livros de Husserl o habitavam e o seduziam recorrentemente, mas o que mais lhe marcou
foi o modo como Husserl constituiu uma filosofia potente ao revelar e descrever os modos do ente se
mostrar e ser. Por meio desse Husserl, encontrou também Brentano, como ele mesmo descreve no texto:

Soube, por diversas indicações em revistas filosóficas, que a maneira de


pensar de Husserl era determinada por Franz Brentano. A dissertação deste
último Sobre o significado múltiplo do ente segundo Aristóteles (1862)
constituía, desde 1907, o principal auxílio, nas minhas desajeitadas tentativas
para penetrar na filosofia. Bastante indeterminada, movia-me a seguinte
ideia: se o ente é expresso em múltiplos significados, qual será, então, o
determinante significado fundamental? O que quer dizer ser? (HEIDEGGER,
1979, p. 297).

Com Husserl e Brentano, Heidegger foi jogado no seu destinamento filosófico, que o acompanharia
por toda sua vida, o caminho da questão problema do ser, ou seja, o projeto de uma ontologia
fundamental, conduzida por uma atitude fenomenológica como possibilidade de um (outro) pensar
sobre o ser. Essa será a senda heideggeriana, mesmo quando anunciou a impressão de que o tempo da
fenomenologia parecia passar, em “Meu caminho para a fenomenologia”:

E hoje? Parece que o tempo da filosofia fenomenológica passou. Já é julgada


como algo passado, que é apenas consignado ainda historiograficamente ao
lado de outros movimentos filosóficos. Entretanto, a fenomenologia não é
nenhum movimento, naquilo que lhe é mais próprio. Ela é a possibilidade do
pensamento – que periodicamente se transforma e somente assim permanece
– de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. Se a fenomenologia for
assim compreendida e guardada, então pode desaparecer como expressão,
para dar lugar à questão do pensamento, cuja manifestação permanece um
mistério (HEIDEGGER, 1979, p. 301).
88
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Heidegger herdará de Husserl dois pontos conceituais: o primeiro é a postura fenomenológica de se


reaproximar do mundo de um outro modo, suspendendo suas prerrogativas, ou seja, herda o encanto
pela redução fenomenológica; depois o apreço pelo movimento da intencionalidade, que conduz o
pensador a posicionar as ideias e as coisas não mais numa consciência imanente, como Husserl outrora
realizava, mas lançando-as no mundo, no que chama de facticidade.

Safranski (2005, p. 146) relaciona de modo interessante esse percurso, afirmando que Heidegger
colocou Deus entre parênteses, depois de 1917, para poder se debruçar sobre a mundaneidade do
mundo, enquanto Husserl realizava isso com a realidade natural e ordinária. Heidegger “pretende perder
Deus pela autotransparência da vida fáctica”.

A partir de Casanova (2009), Beaufret (1976) e Ferreira (2017), notamos ainda outras diferenças marcantes
em relação a Husserl. Primeiro, Casanova (2009) relata que ocorre uma viragem após 1930 no olhar de
Heidegger, que passou a valorizar as vivências subjetivas e intencionais não somente na consciência, mas
sobretudo no mundo em torno. Está aí uma das grandes superações desse autor, ele traz a intencionalidade
husserliana para um mundo mais originário, o da mostração dos entes no mundo, ou seja, o fático.

Beaufret (1976) complementa afirmando que, da consciência, Heidegger quer apenas se apropriar
do seu poder “ser luz” sobre o mundo ao redor, daí sua preferência em assumir o poder-ser do homem no
Dasein, como estado de ser aberto. A tentativa de Heidegger é a de se livrar da lógica do enclausuramento
ontológico, ou seja, “a consciência não vem de fora, superpor-se ao Dasein, mas sim, muito ao contrário,
o Dasein é inteira e radicalmente consciência” (BEAUFRET, 1976, p. 21).

Além disso, Beaufret (1976) acusa que Heidegger não abandonou a preocupação husserliana
de buscar o a priori da condição de perceber e sentir o mundo da vida (chamada busca eidética),
porém, se para Husserl esse “ser essencial” se dava num patamar de uma intuição transcendente
que conectava o homem ao mundo e ao seu próprio ser, em Heidegger o sentido do eidos é outro,
caminha para o ser-aí, ou seja, o ser que se dá e se questiona num mundo fático, repleto de sentidos
e modos de vida: o ser-no-mundo, conectivo importante para a visão fenomenológica existencial.

Observação

Safranski (2005, p. 195) nos elucida sobre o uso comum dos hífens
nos vocábulos usados nas traduções dos textos de Heidegger, como
ser-no-mundo, ser-para-a-morte, ser-aí, entre outros. Os hífens são
usados, segundo o filósofo biógrafo, para designar a força das conexões
interligáveis e indissociáveis. Eis alguns exemplos:

Ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein): significa que o Dasein não se


defronta no mundo, mas já se encontra diante dele.

Ser-com-os-outros (Mit-Sein-mit-anderen): significa que o Dasein já


se encontra em situações comuns com os outros.
89
Unidade II

Outra diferença que marca o caminho dessa fenomenologia está no apontamento de Heidegger
diante da suspensão fenomenológica de Husserl, a famosa epoché. Heidegger sente-se incomodado
com a suposição de que seria possível suspender quase que completamente o mundo ao nosso redor
para entrar em contato com o modo de acontecer da consciência intencional, afinal, afirma Martin,
não é possível suprimir os enredamentos semânticos, lógicos e vivenciais do mundo, sempre estamos
posicionados, mesmo quando tentamos suspender. Como Casanova (2009, p. 49) nos relata:

Toda e qualquer reflexão acerca de problemas filosóficos em geral já sempre


se encontra imersa em estruturas hermenêuticas prévias que determinam
incessantemente o modo de desenvolvimento mesmo dessa reflexão. Toda
investigação teórica pressupõe uma posição prévia, uma visão prévia e uma
conceptualidade prévia.

Portanto, percebe-se que a fenomenologia para Heidegger não será mais como para Husserl – uma
psicologia de cunho descritivo daquelas relações imanentes da consciência intencional –, mas agora
assumirá o campo fático e mundano, constituindo-se em uma hermenêutica da vida vivida.

Outra corrente filosófica que alcança o pensamento heideggeriano é o existencialismo,


marcado primeiro pelas contribuições de Kierkegaard e a posteriori por Sartre e Simone Beauvoir.
O existencialismo do dinamarquês ajudará Heidegger a desconstruir a imanência da consciência de
Husserl e voltar-se ao mundo.

Kierkegaard, segundo Safranski (2005), efetuará um significativo combate contra a autopotência


espiritual diante da categoria do “si mesmo”. Ele defenderá que na teia da vida, complexa e desesperada,
vivemos situações que nos imputam à escolha, assumindo a dura responsabilidade de ser na vida de
determinados modos, originais ou não. Portanto, o homem não é um ser de consciência autoimponente,
que tudo pode subsumir, pelo contrário, somos homens de realidades existenciais, ou seja, é preciso
acusar a filosofia da consciência (que inclui pensadores como Husserl) como um projeto frágil, pois seria
apenas uma fuga perante a inconstância e os perigos da vida. Dessa constatação provém a necessidade
de construir o existencialismo como uma nova forma de engajamento do homem diante da vida, da sua
fé e da escolha de ser.

Stein (apud HEIDEGGER, 1979, p. 3) aponta que Heidegger se afina com Kierkegaard, principalmente
depois da Primeira Guerra Mundial, assim como com outros que compõem um grupo de pensadores
com forte posicionamento antimetafísico:

Heidegger, por influência dos contatos com a crítica de Nietzsche ao


platonismo e ao cristianismo e com a polêmica de Kierkegaard com a
filosofia reflexiva do idealismo especulativo, moldou uma forma muito
original de superação da metafísica. O filósofo convenceu-se de que, até
o seu tempo, toda a história da ontologia não passara de uma teologia e
que, com os neokantianos, caíra numa teoria do conhecimento. A metafísica
era esta história da ontologia como onto-teo-logia. Heidegger propôs uma
ontologia fundamental que, através de uma analítica existencial, preparasse
90
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

uma forma de colocar a questão do ser. Então conduzido pela análise do


tempo, procederia a uma destruição da ontologia da tradição, superando,
assim, a metafísica.

Além da superação da metafísica, percebemos que o pensar de Heidegger e suas viragens envolveram
uma convocação firme do mundo e uma nova descoberta da realidade, como Safranski (2005, p. 144)
nos relata:

À primeira vista, parece que a enfática convocação de Heidegger, de


finalmente levar a sério o mundar (Welten) do mundo, repete um
movimento que nasce no fim do século XIX: a descoberta da realidade
real. Ali descobriu-se a economia por trás do espírito (Marx), a existência
mortal por trás da especulação (Kierkegaard), a vontade por trás da razão
(Schopenhauer), o impulso por trás da cultura (Nietzsche e Freud), e a
biologia por trás da história (Darwin).

Essas marcas já anunciavam o caminho da fenomenologia existencial heideggeriana.

6.3 O projeto filosófico fenomenológico-existencial de Heidegger

Para compreender o projeto da fenomenologia existencial heideggeriana é preciso perguntar-se:


qual o horizonte primordial desse pensador? Já pontuamos que Heidegger nasceu numa era precária,
que entrou em contato com pensadores preocupados com os modos dos entes viverem, como Brentano
e Husserl, e que a partir daí se perguntou sobre o determinante primordial do ser, o que nos apontou, já
de início, que a obra de Heidegger pousaria sobre um eixo central: a busca incessante por uma ontologia
fundamental e radical.

Martin Heidegger na filosofia: os entes se dizem de muitas maneiras,


eles possuem diversas significações, mas o ser se mantém uno e
independentemente dessa pluralidade e diversidade. Investigar a articulação
entre o uno e o múltiplo, sondar o mistério do ser, perguntar pelo ponto de
sustentação da relação entre pensamento e ser, voltar de maneira tenaz
para o problema do sentido são posturas teóricas diretamente derivadas
da questão acerca das muitas significações de ser e de sua unidade
transcendente (CASANOVA, 2009, p. 18).

Para Heidegger, desenvolver esse projeto ontológico prescindiria de uma postura de iniciante firme
e contínua, afinal, “filosofar não significa, por fim, outra coisa senão ser iniciante” (HEIDEGGER,
1979, p. 222). Buscar voltar-se sempre e rigorosamente ao caminho do pensamento era a obsessão
heideggeriana, como Casanova (2009, p. 16) bem define, “filosofar envolve uma constante retomada
daquilo mesmo que inicialmente levava a pensar”, ou seja, ao mundo e ao ser existindo nele.

Na obra Introdução à filosofia, Heidegger (2008b, p. 1) inicia o texto com um primeiro tópico que já
anuncia o que virá pela frente: “Ser homem já significa filosofar”. Heidegger, com o texto introito sobre
91
Unidade II

filosofia, quer recolocar o homem na filosofia afirmando que não estamos fora dela, mas já estamos
nela, porque ela nos habita ao constituir nossa existência. O ser-aí implica filosofar como possibilidade;
ela, a filosofia, vive encoberta, e às vezes se mostra. O pensador afirma que é preciso ser conduzida e
convocada pela e para a nossa existência, ou seja, filosofar guarda familiaridade com o compreender
profundo sobre as coisas em si, porém, isso não se dá de modo natural e espontâneo, é preciso inclinar-se
para as coisas, é preciso um esforço do ser em direção ao filosofar.

Heidegger (2008b) apresenta a história etimológica da palavra filosofia, agregando-a ao seguinte


percurso semântico: primeiramente como filos, relaciona-se com aquele que tem o paladar adequado
para algo, ou melhor, o instinto para o que é essencial, associa-se a um trabalho artesanal na arte de
compreender profundamente algo; por sua vez, o termo sofia é usado no campo da poesia e da música
entre os gregos, a posteriori, para tudo aquilo que podia ser compreendido e entendido. Inclusive o
pensador nos relata que os termos sofos e sofia possuem correspondência com o termo em alemão
Verstehen, que significa compreender.

Para um iniciante em Heidegger, uma das obras mais interessantes para ingressar no caminho da
filosofia seria Introdução à filosofia, em que o pensador alemão é mais generoso com o leitor, explicando
a etimologia dos termos e manuseando exemplos, o que formará uma base interessante para adentrar
as outras obras desse pensador complexo.

Heidegger (2012a, p. 22) afirma que a missão da filosofia genuína deve ser, portanto, discutir o ser.
Nesse sentido, ela não é a ciência do ente, como as outras se destinam, “a filosofia é a interpretação
conceitual-teórica do ser, de sua estrutura e de suas possibilidades. Ela é ontológica”. Daí provém o
destino da fenomenologia como um novo caminho para acessar o ser, ou melhor, sobre a questão acerca
do sentido do ser.

Na obra Ser e tempo, Heidegger (2012b), já na introdução, cumpre o destino da sua filosofia, iniciando
a exposição pela pergunta pelo ser, nos auxiliando a melhor compreender e a expor a questão-problema
fundamental do pensador, que é operar o chamamento pelo ser, já que existe a hipótese de que a
modernidade o entificou e o reduziu a aquilo que só aparece no ente, ou seja, como mostração de um
comportamento no mundo, esquecendo-se de uma dimensão do ser, naquilo que não se mostra, que
permanece velado e torna a questão do ser um mistério quase indecifrável.

Observação

Inwood (2002) afirma que Heidegger construiu um novo linguajar,


com vocabulário próprio, pois precisava evitar as simplificações e reduções
que a tradição filosófica realizara, retomando uma familiaridade com uma
linguagem mais ordinária e que nos reenlaçaria à história do ser.

Heidegger (2012b) afirma que a pergunta pelo ser está esquecida, mas não é menos importante,
porque data das discussões platônicas e aristotélicas, desencadeando uma “visão superficial que
aponta o ser como conceito mais universal e mais vazio, e que, portanto, resiste a qualquer definição”
92
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

(HEIDEGGER, 2012b, p. 33). Mas, ao mesmo tempo, diante da aparência do indefinível, o ser nos é
familiar, porque remete sempre a algo que pertence a um poder-ser-entendido por si mesmo, revelado
pela pergunta comum: o que é?

Ainda, o ser não pode ser reduzido ao ente como aquilo que se mostra e se faz ver numa contingência,
ou seja, “o ser não é algo assim como um ente” (HEIDEGGER, 2012b, p. 37), assim, “o ser significa
ser de ente” (HEIDEGGER, 2012b, p. 45). Para se interrogar sobre o ser, o caminho é o ente, há de se
tornar acessível, ou seja, é preciso conquistar de um modo mais seguro o acesso a esse ente. Mas como
Heidegger o descreve? “Damos o nome de ente a uma multiplicidade deles e em diversos sentidos. Ente
é tudo aquilo de que discorremos, que visamos, em relação a que nos comportamos dessa ou daquela
maneira, ente é o que somos e como somos nós mesmos” (HEIDEGGER, 2012b, p. 45).

O perguntar dessa pergunta, ou seja, sobre o modo de ser pelo ente, envolve se dar conta de que, ao
se perguntar, estamos inaugurando uma forma de ser que é problematizar, e assim nos revelamos como
Dasein, um ser-aí que se pré-ocupa com o seu ser, pressuposto que instala esse círculo ontológico. “Ser
é cada vez o ser de um ente” (HEIDEGGER, 2012b, p. 51).

“Fazer expressamente e de modo transparente a pergunta pelo sentido do ser exige uma adequada
exposição prévia de um ente (Dasein) quanto ao seu ser” (HEIDEGGER, 2012b, p. 47).

O Dasein não é um ente que só sobrevenha entre outros entes. Ao


contrário, ele é onticamente assinalado, pois para esse ente está em jogo
em seu ser esse ser ele mesmo. Mas é também inerente a essa constituição
de ser do Dasein que, em seu ser, o Dasein, de algum modo e mais ou menos
expressamente, entende-se em seu ser. É próprio desse ente, com seu ser e
por seu ser, o estar aberto para ele mesmo. O entendimento-do-ser é ele
mesmo uma determinação-do-ser do Dasein (HEIDEGGER, 2012b, p. 59).

A esse autoentendimento do Dasein, Heidegger (2012b) denomina de existencial, que lhe abre a
possibilidade de ser si mesmo ou não, ou seja, a decisão de se reconquistar ou mesmo de se perder. Nesse
sentido, a dimensão existencial para o pastor do ser envolve sempre uma dimensão ôntica do Dasein,
retomando a etimologia da palavra ek-sistenze, em outras palavras, pôr para fora, mostrar-se, externar.

Tomado por esse caminho do pensamento heideggeriano, agora nos é elucidado o ponto central de
Ser e tempo: não basta captar o ser apenas naquilo que ele se mostra como existente, pelo seu ente,
mas é preciso inaugurar um novo modo de investigação, ou seja, é preciso operar um modo divergente
de questionar e acessar o ser, não mais como aquilo que é ou existe como algo, mas sim em qual sentido
o ser acontece no mundo, como o pensador alemão nos ensina:

O ser é o conceito que pode-ser-entendido-por-si-mesmo. Em todo


conhecer, em todo enunciar, em cada comportamento em relação a ente, em
cada comporta-se-em-relação-a-si-mesmo se faz uso de ser e a expressão é
aí entendida sem mais nada. Cada um de nós entende “o céu é azul”; “eu sou
alegre” etc. Mas essa mediana possibilidade de entender demonstra somente
93
Unidade II

falta de entendimento. Ela deixa manifesto que em cada comportamento ou


em cada ser em relação a ente como ente reside a priori um enigma. Que
já vivamos cada vez um entendimento só ser e que o sentido do ser esteja
ao mesmo tempo encoberto na obscuridade, demonstra a necessidade de
princípio de que haja uma repetição da pergunta pelo sentido de “ser”
(HEIDEGGER, 2012b, p. 39).

Voltando-se a essa outra forma de interrogação, Heidegger dedica-se em sua obra magistral a
alcançar o sentido do ser, que, de modo suscinto e pedagógico, aponta para o tempo. Safranski (2005,
p. 263) nos ajuda a melhor compreender essa passagem:

Para Heidegger o sentido do ser é o tempo, portanto, o passar e acontecer.


Para ele não há um ideal-de-ser da permanência, e nele o pensar tem
exatamente a tarefa de tornar o ser humano sensível à passagem do tempo.
O pensar abre o horizonte-do-tempo em toda parte onde a cotidiana
tendência de coisificação faz as relações e as situações se congelarem numa
falsa atemporalidade.

Outro ponto de preocupação heideggeriano diz respeito ao caráter metodológico dessa (outra)
ontologia, pois o projeto fenomenológico diferia totalmente das ciências positivas (aquelas que se
preocupam com os entes). Portanto, Heidegger (2012a, p. 35) anuncia: “a fenomenologia é o nome para
o método da ontologia, [...] concebida corretamente, a fenomenologia é um conceito para um método”.

O pastor do ser reconhece a pertinência da redução fenomenológica de Husserl, mas realiza uma
crítica, afirmando que ela serve muito mais a uma compreensão do ente do que do ser, por isso, seria
preciso apontar um novo caminho metodológico, e assim ele o faz em Ser e tempo, constituindo
uma analítica do sentido de cunho hermenêutico, melhor dizendo, é preciso interrogar os diferentes
modos do ser dos entes para descrever os diferentes sentidos que o ser assume no mundo e em
relação com os outros.

Heidegger (2012a) descreverá seu método em três estruturas:

• Construção redutiva do ser, buscando a desconstrução dos conceitos e teorias tradicionais.

• Construção de outros sentido do ser no mundo por meio de uma interrogação dos entes.

• Destruição da metafísica ocidental.

Critelli (2006), uma estudiosa brasileira sobre a analítica do sentido em Heidegger, nos ajuda a compreender
seu método de forma didática e profunda. Primeiramente, ela nos elucida que a novidade é o modo de
interrogação. Heidegger não se pergunta mais pelo que são as coisas, repetindo a pergunta lógico-causal,
costumeira da modernidade. O pastor do ser sugere um outro modo de se questionar, perguntar pelo
sentido, abrindo a forma da pergunta e ampliando a possibilidade de se questionar o questionado.

94
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Essa outra forma de interpretação, segundo Critelli (2006, p. 30), envolve três desdobramentos
importantes. Ao perguntar sobre o sentido do ser de algo, deve-se ter:

Uma prévia compreensão do que seja ser, não posso perguntar pelo ser de
algo que não sei o que é ser.

Uma prévia noção de um lugar de acontecimento onde e sob que aspecto este
ser se aloca e se torna acessível à compreensão, onde pode ser encontrado.

Uma prévia compreensão do horizonte de explicitação, onde este ser


buscado ganha sua mais genuína e fidedigna possibilidade de expressão.

Vamos a um exemplo. Se sou um pesquisador de uma ciência humana-antropológica e quero


investigar sob o escopo da analítica do sentido um fenômeno como a adolescência vivida por jovens
de baixa renda em bairros da cidade de São Paulo, como devo me posicionar diante desse fenômeno:
ser adolescente (nesse lugar fáctico)? O pesquisador fenomenólogo deve primeiramente compreender o
que é ser adolescente, até mesmo porque em algum momento de sua vida ele mesmo passou por essa
vivência; em seguida, esse adolescer se dá como acontecimento em um lugar e um tempo, isso deve
ser levado em conta, porque o fenômeno sempre translada, ou seja, se modifica; e, por fim, investigar
como esse adolescer se mostra naquele contexto, diante das questões do seu tempo e do seu contexto.

Heidegger (2012b) vai além da instauração de um novo método na obra Ser e tempo. No segundo
capítulo, anuncia que, como resultante desse método, o sentido do ser, que tem um alcance universal,
seria a temporalidade que chamará de Dasein. Cabe então aqui uma compreensão mais alargada sobre a
temporalidade a que o pensador camponês está se referindo. Num primeiro espectro, é entendido como
o horizonte de um acontecimento, no qual o ser se mostra e se oculta.

O tempo para Heidegger (2012a; 2012b) possui primordialmente uma função ontológica, mas sem
dúvida, o pensador reconhece que ele possui também uma função ôntica, que é a de diferenciar as regiões
do ente, por exemplo, o tempo relacionado aos ciclos da natureza, o tempo que situa os acontecimentos
históricos, o tempo pessoal, ou até mesmo o que parece ser intemporal, como as relações numéricas. Todos
eles estão dentro do acontecimento ontológico do tempo, que demarca que o ser se dá dentro e sempre da
temporalidade. O tempo métrico e industrial é uma das formas empobrecidas da temporalidade acontecer
ao homem moderno, mas para Heidegger, o que aqui se coloca em questão, é muito mais complexo e se
mostra sob diversas facetas, como, por exemplo, pelo tédio do homem comum.

Inwood (2002), autor de um interessante dicionário sobre os vocábulos heideggerianos, nos ajuda a
melhor compreender como o autor alemão reinterpreta a temporalidade, inclusive propondo uma nova
semântica para tipificá-la. Heidegger evita usar verbos que nos levem ao estático verbo ser, exposto no
“é”. Segundo Inwood (2002), o tempo deveria sempre temporalizar, daí o uso do termo Zeitgen, derivado
do termo Zeit (tempo, em alemão), que significa realizar e produzir.

Para ilustrar a noção de temporalidade no sentido do vivido, podemos trazer um trecho de Clarice
Lispector (1978), que comumente escreve em consonância com os princípios fenomenológicos, ei-lo:
95
Unidade II

Haverá um ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que
haverá um dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que
haverá um segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da
morte transfigurada.

A temporalidade guarda relação íntima com a historicidade do ser, pois, segundo Heidegger (2012b,
p. 82), esta “significa a constituição-de-ser do gestar-se do Dasein como tal. Pois o Dasein é o passado
no modo de seu ser, o qual para dizer rudemente, se gesta a cada vez a partir de seu futuro”. Nem sempre,
conforme o pastor do pensar humano, o ser-aí tem consciência e se apropria dessa historicidade. Isso é
comum quando o Dasein se descobre conservado em tradição, sem ter sido, então, cultivado de modo
próprio. Por exemplo, quando repetimos modos de vida marcados por um modo cultural de ser, sem
nos dar conta de que podemos escolher outro modo de ser e estar no mundo. O que isso revelaria? Para
Heidegger, mostraria um decair do ser dentro da tradição, que torna o ser do homem impossibilitado de
alcançar a origem do seu mostrar-se, que fica esquecida e encoberta.

Heidegger (2012b) defende que é missão do ser buscar um sentido mais próprio diante da historicidade,
pois isso, abriria formas ainda mais próprias de se perguntar sobre o mundo, como podemos aprender
com as palavras do filósofo:

Dessa maneira, a elaboração da questão-do-ser deve receber do


sentido-de-ser-mais-próprio do perguntar ele mesmo o encargo de investigar
sua própria história, isto é, converter-se em conhecimento-histórico, a fim
de alcançar uma apropriação positiva do passado, obtendo a plena posse das
possibilidades-de-perguntar mais-próprias (HEIDEGGER, 2012b, p. 83).

Em outro exemplo de Heidegger (2012b), a ciência é apenas mais um modo de ser do Dasein, calcado
no tradicional modo de ser da ontologia metafísica ocidental, que revela um ser-no-mundo, ocupado
com modos utensiliares e de instalação de meios técnicos para atingir um fim útil e produtivo. Quando
nascemos nesse tempo e adotamos esse modo de ser tradicional e legitimado pela ciência como única
verdade e possibilidade de se viver, somos empobrecidos de buscar outra forma de experenciar a vida,
por meio de outros modos de revelar a “verdade”, como na arte. Tornamo-nos míopes vivenciais e
decaídos num único modo de ser e estar no mundo rígido e que não nos revela sua origem, daí o projeto
do filosofar heideggeriano retomar a origem e desconstruir a história tradicional da ontologia, dos
gregos aos modernos.

Jean Beaufret (1976), um filósofo que trocou cartas com Heidegger e o divulgou na França, o
incluiu no escopo do existencialismo além da fenomenologia, porque afirma que o pensador alemão,
ao compreender o ser do ente em geral – chamado de Dasein –, o reconhece como existencialidade.
Esse disparo existencial e ontológico desembocou numa revelação ainda maior: o homem é o único que
busca incansavelmente um sentido para sua existência.

Aqui cabe uma digressão conceitual importante, deter-nos na contextualização semântica e


conceitual do termo Dasein no escopo heideggeriano, que comumente não é traduzido para o português.
É um termo que tem sido coadunado com outros sentidos, tais como ser-no-mundo, presença e ser-aí.
96
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Preferencialmente, autores de peso diante da leitura heideggeriana têm preferido o último termo como
o mais próximo do sentido dado pelo pensador alemão. Casanova (2009), um dos seus renomados
tradutores, por exemplo, também prefere a aproximação do Dasein ao ser-aí, ao explicar a palavra
Da-SEIN, separando-a primeiro no uso do advérbio alemão Da, que significa, literalmente, o aí, que
apontaria dentro do escopo teórico do autor o aí do mundo como o horizonte originário em que se
dão as possibilidades de ser e existir do homem. O seu complemento, SEIN, já remeteria ao ser, que é
acessado pelo ente a partir das relações e modos de existência diante do tempo e do espaço. Como o
próprio autor tradutor nos explica:

Como o próprio Heidegger afirma em uma pequena passagem de um seminário


dado em sua casa em Zähringen no ano de 1973, uma passagem que explica
o conteúdo significativo do termo “ser-aí” e possui uma ressonância essencial
com o conceito de mundo. Ser aí-ser-em-uma-amplitude-aberta; ser clareira.
O aí é justamente a palavra para a amplitude aberta (CASANOVA, 2009, p. XVII).

O termo presença que fora associado em algumas traduções de Ser e tempo no Brasil – tal como
a edição da Editora Vozes, com tradução de Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2006b) – parece impreciso.
Casanova (2009) nos explica de modo interessante: apesar de Dasein no vulgo alemão significar (tempo)
presente, quando o traduzimos como presença, precisamos compreender que existe na composição
da palavra um termo prefixo que significa anterioridade, o pré, ou seja, guarda uma contradição
inerente ao termo e ao uso que se faz dele no vulgo linguajar cotidiano. Heidegger (1979) aponta isso
quando explica que o presentificar envolve um ir além de si mesmo, um apontamento para o futuro,
uma ultrapassagem, portanto, há de se tomar cuidado com o uso de um termo que guarda em si um
apontamento para o passado, quando o que qualifica minimamente o Da-SEIN é o ser jogado para
a abertura do fazer-se, ou seja, do instante vivido para o futuro do porvir. Uma das traduções mais
complexas do mercado editorial, de autoria de Fausto Castilho (HEIDEGGER, 2012b), prefere, por sua
vez, manter o uso do termo Dasein, em sua grafia alemã, pois entende que o termo é polifônico e não
permite ser aprisionado em um só sentido.

Loparic (2004a) explica que o Dasein como ser-aí possui uma estrutura ontológica dividida em três
esferas: a identidade pessoal, o mundo e o habitar mundano. Comenta que existe um modo mediano
de habitar esse mundo, que é geralmente a ocupação com as coisas ao nosso redor no cotidiano, o
que confere um caráter objetificador maciço ao mundo, como se ele fosse apenas isso, coisas objetais
e úteis, manuseáveis e operacionais. Mas lembra, baseado na obra Ser e tempo de Heidegger, que além
desse modo de vida da ocupação, existe o modo existencial, que envolve a constituição libertária do
homem como ser humano, como um aparente eu (identidade). Um ser que não se dá apenas isolado,
mas sobretudo com os outros, que abre possíveis modos de vida num eixo temporal e espacial. Cabe
elucidar que esse mundo a que Heidegger se refere insistentemente em sua obra não é só o lugar onde
vivemos e habitamos, ou seja, não é apenas uma dimensão espacial, mas sobremaneira, é uma instância
temporal, no sentido da historicidade que abre as possibilidades de ser e estar no mundo, mediante
escolhas e esforços de ser autêntico.

97
Unidade II

Nessa busca pelo possível, o homem se reposiciona no eixo temporal-existencial. A esse esforço
Heidegger (2012b) chama compreender (Verstehen), que revela então como o homem se ultrapassa em
direção aos modos de vida possíveis, junto ao mundo e aos outros seres, daí outro conectivo heideggeriano
muito citado – o ser-com-os-outros – como um dos modos essenciais de se fazer homem. Outro paradoxo
existencial: o homem é, ao mesmo tempo, um ser solitário e desamparo, pois é jogado no mundo e é
indeterminado, porque o que lhe marca é a abertura diante desses possíveis “ser e estar” no mundo. Porém
o homem só se faz ser junto aos outros, ou seja, compreender é confiar, no sentido de fiar conjuntamente
com os outros a teia da vida no mundo, mesmo assumindo-se como ser frágil e desamparado.

Beaufret (1976, p. 19) afirma, ainda, que o que define o ser do homem diante do seu existir é que
ele é “um ente cujo ser mesmo é objeto de um constante pôr-se em risco”, porque vivencia a si como
um ser que se mostra e se oculta. Um acontecimento que se dá num movimento de distanciamento do
mundo e de si, e é nesse afastar-se que mora a liberdade, na sua abertura e indeterminação. Lembrando
que Heidegger (2012b), na obra Ser e tempo, diferencia o homem dos outros animais, pois o animal tem
um mundo empobrecido, reduzido a um círculo de contato, que se torna co-extensivo ao seu corpo,
constituindo “o em torno de”, isto é, o animal não percebe que percebe o mundo, ao passo que, ao
homem existente, a condição é outra, o mundo nos toma, mas, ao mesmo tempo, somos e podemos nos
distanciar dele para distinguir-nos e nos reposicionarmos nas nossas escolhas, a esse espaço Heidegger
chama de liberdade.

Safranski (2005, p. 222), assim, entende e nos relata sobre o destino do Dasein e do livre acesso ao
mundo coexistencial:

Dasein significa existir nesse espaço, nessa amplidão aberta. O espaço é


aberto pela vivência do nada. A roda pode girar, porque tem jogo no eixo
– da mesma forma move-se o Dasein, porque tem jogo, isto é liberdade.
O homem é o guardião do nada.

A partir dessa abertura ontológica que se destina a ser o possível da liberdade, Heidegger aponta
que o homem pode vir a escolher ser ou não autêntico. Pode, por exemplo, decair, ou seja, torna-se
ser em decadência ou queda. Essa condição existencial se dá quando o homem diante da constatação
da finitude de sua existência assume-se ora como ser autêntico ora como ser decadente, entregue
às coisas cotidianas e funcionalmente estabelecidas pela massa dos outros. Heidegger caracterizou o
ser-no-mundo como queda (Verfallen), num modo de vida impróprio, que facilmente fica tomado nos
afazeres cotidianos, que o tornam anônimo, como se ele se perdesse no que é impessoal.

Heidegger (2012b) afirma que, se por um lado, o homem é originariamente um ser em queda e
impróprio, ele poderá ultrapassar essa condição originária ao relembrar-se da sua possibilidade mais
própria, dada pela finitude, que funciona como um chamado, alertando-o para um fazer-ser-possível
autêntico. Outra questão surge daí, o que poderia definir o ser autêntico? Heidegger não o define, senão
cairia na mesma armadilha idealista ou empirista. O que nos torna frágeis é que não existe direção dada,
é o indeterminado revelado pela abertura do Dasein, a incerteza, a abertura ontológica nos jogando na
aventura da vida.

98
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Heidegger, portanto, convoca o homem, e o toque desse despertar, como Beaufret (1976) bem
nos traduz, não se dá pelo uso da razão instrumental, mas pelo sentimento da angústia que surge
nessa revelação fundamental: somos precários porque nos percebemos mortais, mas podemos ser
empoderados por escolha de modos de vida mais próprios e coexistenciais. Dessa constatação, Heidegger
será mobilizado a pensar e problematizar outro rumo para seu pensamento: como escolher ser autêntico
num mundo que é demarcado por modos de ocupação instrumentais, desumanizados, desiguais social
e culturalmente? Vem daí uma das preleções mais primorosas de Heidegger, “A questão da técnica”, que
vale a pena ser lida e discutida.

Stein (1979), outro importante estudioso da fenomenologia, afirma que o projeto heideggeriano
move-se em dois patamares: um primeiro de uma analítica existencial, e outro de uma análise da
história da filosofia, o que reúne na obra do pensador duas perspectivas importantes: de um lado o
mundo factual da existência, e de outro a discussão teórica indicada na superação da metafísica. Dessa
forma, é como se Heidegger reunisse o céu e a terra em sua obra filosófica, não replicando o erro redutor
de tudo encerrar-se no plano metateórico, como as ciências e algumas filosofias assim o fizeram, como
ele mesmo acusaria a filosofia idealista de Hegel, que se perdera nas discussões infinitas sobre o espírito
absoluto, solto do mundo.

Ferreira (2017) – baseado numa leitura de Richardson, em Through Phenomenology to through


(1963), que tipificou a obra de Heidegger – anuncia que existiram dois momentos no pensamento
heideggeriano, que foram separados pelos temas mais citados e descritos dentro do seu arcabouço
teórico epistêmico, foram eles:

• Até a década 1920: obras que trataram de temas tais como facticidade, existência, Dasein,
sentido do ser, temporalidade, hermenêutica, transcendência, diferença ontológica e
desconstrução da metafísica.

• A partir da década de 1930: são os textos que lidaram com o desvelamento do ser, verdade
(alétheia), liberdade de ser no ente, acontecimento e vivência (ereignis), linguagem, arte e técnica.

Esses momentos ou caminhos que o pensamento heideggeriano assume são tipificados como
viragens dentro da sua obra pelos especialistas. Inwood (2002, p. XXIIII) comenta sobre o termo virada,
definindo-o como “uma inversão de ordem na qual os termos se encontram”. Por exemplo, uma das mais
conhecidas viradas, deu-se no fim da fase instaurada pela obra Ser e tempo, nos idos dos anos 1930,
quando Heidegger passa a usar o termo “o tempo e o ser”. O pensador assim procede para mudar uma
palavra que parece enfraquecida num contexto já muito usado, modificando-o para um outro contexto
conceitual mais apropriado, ou seja, no caso exemplificado, apresentando a força da temporalidade
agora no seu escopo teórico.

Existem várias tentativas de periodização e escolarização da obra de Heidegger, mas sempre é um


processo complexo e parcial, pois o pensamento desse filósofo alemão sempre se caracterizou por ser
um caminho, como ele mesmo o caracteriza, que possui em si mesmo desvios, rupturas, idas e vindas.
Como Inwood (2002) afirma, Heidegger está sempre a caminho, jamais ao fim de uma obra sua.

99
Unidade II

Saiba mais

Para se aprofundar nas fases e viradas de Heidegger, leia o artigo a seguir:

FERREIRA, A. M. C. Heidegger e o projeto de superação da subjetividade.


Princípios Revista de Filosofia, Natal, v. 24, n. 43, jan.-abr. 2017. Disponível
em: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/11374. Acesso em: 24
jun. 2020.

Loparic (2004a), por sua vez, aponta os seguintes momentos e caminhos do projeto heideggeriano,
os quais aproveitaremos para desenvolver melhor alguns conceitos e visões gerais de Heidegger.

Ontologia da facticidade (1919-1923)

Esse momento da fenomenologia existencial se volta para a constituição de uma ontologia


fundamental, para isso, faz-se necessário explicar melhor os termos confluentes na visão de Heidegger.

Inwood (2002) nos explica em seu dicionário conceitual que o termo ontologia proveio de uma
longa tradição que vem desde Aristóteles e dos estudos clássicos do século XVII. O termo ontologie foi
usado pela geração cartesiana e podia ser entendido em dois sentidos iniciais: como um estudo largo
sobre os entes como se mostram, nas suas mais diversas formas; e como uma preocupação central com
a questão do ser ou da natureza.

A geração pós-cartesiana, após o século XVIII, passou a reduzir a ontologia a um estudo dos entes,
e esqueceu-se de enfocar o ser. Aliás, esse é dos apontamentos mais agudos que Heidegger opera na
obra Ser e tempo, no momento subsequente. Então, para embasar sua crítica, o pensador, nesse primeiro
caminho, acusa a necessidade de abrir um espaço para um projeto ontológico radical e fundamental, no
sentido que Inwood (2002, p. 131) nos aponta como aquele que irá:

Analisar o ser do Dasein como uma preparação para a questão fundamental


sobre o sentido ou significação do ser. Ela é fundamental porque as
ontologias regionais e as ciências são modos de ser do Dasein e pressupõem
o acesso pré-ontológico do Dasein aos entes. Já que o Dasein e o ser são
anteriores ou fundamentais para as “outras ontologias”.

Portanto, esse primeiro momento é marcado por uma desconstrução metafísica desde os gregos
e uma reflexão destacada pela teoricidade, somente no momento subsequente; a facticidade com o
mundano exigirá sua importância.

Foi essa a dimensão da obra heideggeriana que mais enfatizou a lógica e uma abordagem fenomenológica
da religião, constituindo uma onto-teo-logia, que, segundo Inwood (2002), numa combinatória de ontologia
e teologia, constituiu-se em uma primeira filosofia que enfocava e problematizava a questão de um ser
100
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

primeiro e elevado, para depois lidar com uma compreensão dos entes como tais. Escreveu textos como
Introdução à fenomenologia da religião (1921), em que apresentou uma análise da existência e essência
cristãs, que seriam mais a diante as vigas do pensamento em Ser e tempo.

Para a visão heideggeriana, a filosofia deveria ser ateísta, e não ser um pensamento que crê e se
debruça sobre o Deus cristão, pelo contrário, ele afirmaria que o “pensamento sem Deus” é aquele
que possibilita estar mais próximo do sagrado. Ou seja, quanto mais distante o filósofo for do Deus
tradicional, por mais difícil que seja, é o modo que o torna mais próximo e próprio.

Desse modo, Heidegger inicia uma operação fundamental que sustentará a sua obra mais famosa,
o Ser e tempo. Liberando a filosofia de Deus e do mundo natural do campo ontológico, pôde anunciar
uma outra possibilidade: o projeto de uma hermenêutica da facticidade. Stein (2008) nomina essa
viragem como o encurtamento hermenêutico que separa o mundo da vida e o mundo teológico,
para que, então, se possa construir uma filosofia própria sobre um mundo da vida, sem recorrer a
instâncias supranaturais.

Percebemos que, nessa primeira fase, os esforços heideggerianos concentraram-se em torno da


essência da lógica e do conhecimento a partir de uma leitura compreensiva da experiência da verdade
no cristianismo. Ao se centrar nas regras da lógica, Heidegger se preocupou não com as circunstâncias
empíricas em que ocorrem, mas sim em como devemos pensá-las (CASANOVA, 2009).

A analítica existencial em Ser e tempo (1927-1930)

Vimos que o caminho da fenomenologia existencial se voltou principalmente para a temática do


sentido do ser como pressuposto para a compreensão dos entes. Para isso, Heidegger teve que, por meio
de uma fenomenologia da religião, reduzir o espectro do que se entende de mundo, no qual a filosofia
poderia e deveria se apropriar hermeneuticamente. Porém o segundo salto foi compreender o ser no
espectro da vida vivida pelos humanos, que fora revelado por Heidegger como facticidade, ou seja, como
esse ser-aí se revela por meio do ente em condições mundanas cotidianas. O termo facticidade chega ao
pensador por meio da obra husserliana e da influência da visão de mundo de Dilthey.

Stein (2008, p. 15) assim define as marcas epistêmicas que caracterizaram essa fase da
fenomenologia existencial:

Ser e tempo retorna, através das influências contemporâneas (Kierkegaard,


Dilthey, Lask, Brentano, Husserl), toda a tradição metafísica (Aristóteles,
Descartes, Kant e Hegel) para uma revisão (“Destruição”, será a palavra
de Heidegger) através de sua hermenêutica da facticidade, de seu novo
conceito de tempo.

Casanova (2009, p. 92) afirma que, nessa primeira virada da obra heideggeriana, ele supera a
compreensão teórica provinda da tradição husserliana e reconhece que “o existir é já sempre se ver
jogado em modos fáticos de ser”. Desse modo, não faz mais sentido afirmar a predominância do viés
teórico, em proveito do prático. A partir de Ser e tempo, Heidegger afirma que o Dasein só se realiza
101
Unidade II

a partir do horizonte prático no mundo, a partir de uma relação manual e utensiliar com as coisas, de
relações coexistenciais e a partir da própria temporalidade do ser no mundo.

Essa viragem da obra heideggeriana no caminho da fenomenologia existencial para a interligação


da vida teórica e prática é destaca por Casanova (2009, p. 21), que nos traz um trecho que mostra a
importância do conceito chave do fático para o autor, em uma carta de Heidegger a Karl Löwith, filósofo
e seu aluno, em 1921:

Eu trabalho de maneira concretamente fática a partir do meu “eu sou” – a


partir de minha proveniência espiritual efetivamente fática-meio-conexões
vitais, a partir daquilo que nessa proveniência se tornou acessível para mim
como experiência de vida, como o lugar onde vivo.

Stein (2008), em seu belo estudo sobre o lugar paradigmático de Ser e tempo, aponta que fora nessa
obra que Heidegger ligou duas tradições: a grega, que enfocava o movimento do pensar com o kairós
(como o tempo do instante); e o conceito de situação de tradição aristotélica, que o levou ao mundo.

Stein (2008) caracterizou em quatro tomos o projeto de ontologia fundamental, que Ser e tempo
pretendeu ser:

• Um projeto crítico que objetivava destruir a ontologia metafísica tradicional e clássica, de


extração greco-cristã-moderna, que separou ente e ser radicalmente e tentou liquidar o último
do horizonte humano.

• Um projeto crítico diante do esquematismo transcendental de Kant, que manteve, grosso modo,
uma metafísica idealista.

• Uma ruptura com a visão da fenomenologia de Husserl e todo seu programa metodológico,
como a suspensão (epoché), porque, afinal, o ser é sempre ser-no-mundo, e é impossível
suspendê-lo absolutamente.

• Uma introdução fundamental da existência, criticando teorias antropológicas e psicologizantes


da época que criaram um ente homem substancialista e separado do mundo.

Loparic (2004a) aponta que foi nessa fase que o Dasein foi nos apresentado numa analítica
pormenorizada, explorando como os entes vivem no mundo e, assim, convocando o ser também
de modos diferentes, resultando numa análise das ontologias regionais. Esse momento acabou por
desembocar numa preocupação fenomenológica existencial com a morada do homem no mundo, como
Loparic (2004a, p. 48) nos elucidou:

O ser do homem, o Dasein, tem a estrutura ontológica de um ser-no-mundo,


cujos elementos fundamentais são três: identidade pessoal, mundo e habitar
o mundo. Os modos mais primitivos de habitar o mundo são a ocupação
com as coisas e a solicitude para com os outros.
102
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Stein (2008) ainda descreve detalhadamente a estrutura sistemática de Ser e tempo a partir de seis
teses que ele desenvolve em sua obra. Segundo o autor, resumidamente, a obra Ser e tempo promove:

• uma ontologia fundamental, revelando o sentido do ser;

• a clarificação do ser, que revela que o ente é o que o compreende, constituindo o ser-estar-aí,
o Dasein;

• a contextualização do Dasein como ser-no-mundo;

• o ser-aí como cuidado/cura (Sorge);

• o cuidado com o ser na temporalidade;

• a temporalidade do ser-aí no eixo existencial, não como tempo objetivo.

Foi nesse momento, com a obra Ser e tempo, que Heidegger se deu conta de que o Dasein pode
vir a morrer, ou seja, não mais pertencer ao mundo, transcendendo-o. Daí vem um dos conectivos
mais famosos do pensador sobre uma das possibilidades ontológicas-ônticas do Dasein como
ser-para-a-morte, o que anunciaria a importância que o tempo assumiu na obra de Heidegger entre
seus dois marcos existenciais fulcrais – o nascimento e a morte. O existir humano seria sempre um
movimento de ir além do esperado, pois a incerteza diante da morte sempre nos jogaria a uma
necessidade de buscar algo além do formal e esperado, realizando aquilo que Heidegger chamaria
de desobjetificação, ou seja, sair do lugar entificado regional de ser coisa programada para ser um
próprio ou ser autêntico na sua existência, já que existe o chamamento para a morte, que pode vir a
nos impactar nas raízes do nosso ser.

Inwood (2002) nos conta que, ao fim da obra Ser e tempo, nos anos 1930, Heidegger refere-se a
uma virada na sua obra , usando o termo die Kehre, e inverte a ênfase, que agora passa a ser sobre o
tempo e o ser, o que aponta que a ontologia agora presta-se a ser compreendida descolada da história
da metafísica clássica e passa a ser reposicionada no eixo espaço-temporal, que constitui o ser e o ente
no mundo, abrindo espaço para a terceira fase do pensador.

A descoberta da facticidade técnica (1930-1932)

Loparic (2004a) afirma que, nesse momento da fenomenologia existencial, Heidegger observa que
o cotidiano moderno é dominado pela técnica. Isso ocorreu devido à leitura de um artigo de Ernst
Jünger, em 1930, denominado de “A mobilização total”. Aqui opera-se uma mudança, pois se na obra
Ser e tempo o pensador enfocou a analítica do Dasein, principalmente no uso e no manuseio utensiliar
das coisas ao nosso redor, em que predominava o trabalho artesanal, agora Heidegger se debruça sobre
os perigos da Era da Técnica, com a hegemonia da objetificação técnica dos entes e com o processo de
fabricação do que é humano.

103
Unidade II

Uma das preleções mais lidas sobre o tema foi proferida em 1953, denominada “A questão da
técnica”, na Escola Superior de Munique, cujo tema eram As artes na época da técnica, que virou livro e
no Brasil encontra-se traduzido pela Editora Martins Fontes.

Saiba mais

Indicam-se o texto original de Heidegger sobre a questão da técnica e,


como leitura complementar, o artigo de Cocco (2006), que pode ajudar o
aluno a compreender melhor os densos conceitos de Heidegger.

HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Revista Scientiae Studia, 2007.


Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
S1678-31662007000300006. Acesso em: 24 jun. 2020.

COCCO, R. A questão da técnica em Martin Heidegger. Revista


Controvérsia. Rio Grande do Sul, v. 2, n. 1., p. 34-54, 2006.

Para o pastor do ser, a técnica referia-se:

A produção e o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas, como a ela


pertencem estes produtos e utensílios em si mesmos e as necessidades a que
eles servem. O conjunto de tudo isto é técnica. A própria técnica é também
um instrumento, em latim instrumentum (HEIDEGGER, 2010, p. 12).

O pensador aponta, numa reflexão profunda e historiográfica sobre a teckné, que sua essência guarda
relação com o movimento de revelar algo. Nesse sentido, ela não se reduz a um simples meio para alcançar
um fim, ela é uma forma de desencobrimento, ou seja, revela um modo de verdade que para o homem
moderno passou a ser imperativo único da legitimidade de viver a vida.

Por exemplo, Heidegger (2010, p. 19) relata que a técnica moderna é uma “exploração que impõe
à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada”, que
revela sua intenção de onipotência por sobre a disposição da natureza em si. Esse tipo de mecanismo é
bem diferente do modelo artesanal, por exemplo, daquele desenvolvido no trabalho camponês, que não
desafiava ou transformava o solo, apenas se dispunha do que ele lhe oferecia, lavrar a terra significava
cultivar e proteger. Já no cenário moderno de alta tecnologia, a atividade agrícola tornou-se uma
indústria motorizada, como ao se depurar o urânio da terra e, a partir dele, fornecer energia atômica,
usando-a para guerras ou fins de instrumentos de saúde, como o tratamento oncológico.

Heidegger (2010, p. 20) afirma que o que essencializa a técnica moderna é que ela revela as reservas
naturais, como nos relata:

104
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia


escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o
transformado, estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado.
Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar são todos modos de
desencobrimento. Todavia, este desencobrimento não se dá simplesmente.
Tampouco, perde-se no indeterminado. Pelo controle, o desencobrimento
abre para si mesmo suas próprias pistas, entrelaçadas numa trança múltipla
e diversa. Por toda a parte, assegura-se o controle.

Para Heidegger, a Era da Técnica seria o ponto ápice do esquecimento do ser, que começara com a
filosofia grega, que encerrou a questão do ser nos entes e tudo passou a ser mensurável e controlável.
Isto é, operou-se a eliminação da diferença entre o ser o ente, o que abriu uma possibilidade perigosa
em que se alicerçou a modernidade industrial e suas instalações técnicas: a ilusão de tudo ser entificado
e controlado por meio de instrumentos, tudo se torna previsível.

Cocco (2006, p. 39), ao reler essa obra da fenomenologia existencial, consegue nos relatar o
problema e o perigo de uma tecnificação do mundo moderno, pois reduz o mundo a uma produção
manuseada apenas pelo homem, o empoderando de forma totalitária, como podemos vislumbrar
com esse trecho:

A tecnificação do mundo é a realização efetiva da ideia de que o homem,


a partir de seu desenvolvimento racional, pensa o ser das coisas como
algo dependente dele próprio e que a ele se reduz. Como um produto
técnico, o mundo é, no seu próprio ser, produto do homem, assim como a
instrumentalidade se apresenta como o ser das coisas. O ser (ou o modo como
o ente se manifesta ao Dasein, ou seja, o modo em que o ente é) é algo que
se pode compreender se pensarmos no modo como a ciência e a técnica
determinam constitutivamente o rosto do mundo.

Loparic (2004a) acusa que a essência humana parece se perder num cenário de falta de sentido
completo, por exemplo, empobrecendo a condição ontológica de ser transcendente em vista da vivência
da morte. Agora munida de instrumentos tecnológicos, a humanidade acredita-se imortal e empoderada
diante de qualquer finitude.

Os problemas da origem e da ultrapassagem da técnica (retorno à origem em Hölderlin)


(1933-1960)

Segundo Loparic (2004a), em 1936, ocorreu uma virada importante no cenário do pensamento
heideggeriano, seu enfoque passou a ser pelo acontecimento ontológico, não mais apenas vinculado
com a questão-problema do sentido do ser, como havia apresentado na obra Ser e tempo.

Ao compreender a questão do ser como um acontecimento interligado com a vida mundana,


Heidegger teve que, num primeiro momento, situar a técnica como o modo de vida hegemônico,
para depois propor uma ultrapassagem dessa época acontencial para uma outra, mantida por um
105
Unidade II

desenvolvimento coletivo, seja um Estado, uma cultura ou uma filosofia potente que ultrapassasse o
esquecimento do ser e operasse a abertura de um outro acontecer do Dasein.

Aqui existe um outro ponto de viragem importante na obra heideggeriana. Nos idos dos anos 1930,
o pensador acreditava que essas escolhas mais próprias poderiam ser coadunadas com um espírito
histórico nacionalista, de copertencimento, que mobilizaria o habitar do homem no mundo. Porém com o
desfecho da Segunda Guerra Mundial e toda a destruição causada – dos genocídios ao enfraquecimento
do ideal alemão nacionalista –, essa crença heideggeriana entrou em crise. A partir daí, com a perda da
sua licença para lecionar, Heidegger passou por uma longa fase de afastamento e depressão, o que o
levou para um outro posicionamento, em que houve a aproximação com a arte como uma possibilidade
de fazer da existência uma verdadeira obra estética, lembrando Nietzsche, que também se aproximara
do mesmo apontamento. Daí se origina uma das suas últimas obras, A origem da obra de arte, que foi a
reunião de conferências ministradas entre 1935 e 1936.

Houve um primeiro momento da crença heideggeriana numa forma de ser baseada no engajamento
político, porém, com as vivências decadentes do nazismo, o pensador, próximo aos anos 1940, renunciou
ao poder das coletividades e rendeu-se ao ser da arte, aproximando-se da poesia de Hölderlin. Ao realizar
essa aproximação com a linguagem poética, Heidegger realiza uma volta às origens do pensamento
arcaico grego com os aforismos de Heráclito, que ensinou a humanidade a abrir o conceito de verdade
e do ser. Como Hölderlin (apud LOPARIC, 2004a, p. 58) nos ensina com seus versos: “Onde há perigo, lá
cresce também o que salva”.

Loparic (2004a) nos ajuda a compreender essa última viragem da obra heideggeriana, pois o que
libertará o homem moderno do processo redutor da tecnificação será instaurar um novo existir situado
no que Heidegger chama de quadrindade, entre a terra e o céu, os mortais e o sagrado. Portanto, a
arte mostra o caminho que deverá superar, inclusive as divisões entre o ontológico e ôntico. Heidegger
anuncia o que a corrente existencialista tentará realizar, exaltando a existência humana sem se perder
em categorizações ou divisões da ordem do pensamento. Como Loparic (2004a, p. 61) bem nos descreve:

A recuperação do sentido da pergunta pelo ser tornar-se, assim, uma


questão da sobrevivência do homem como homem. Sem poder ser iniciada
pelos humanos, ela é o seu destino, a interpelação que lhes é lançada
– essa pergunta pode, contudo, ser mantida viva por eles. Para tanto é
preciso retornar ao sentido originário do ser, anterior ao ocultamento
que aconteceu na história da metafísica e conduziu à objetificação
perseguidora dos dias de hoje; é preciso, além disso, preparar, ouvindo e
meditando sobre a palavra de Hölderlin, a chegada de um novo horizonte,
a quadrindade, em que o ente no seu todo, como tal, manifesta-se numa
outra verdade, num modo de presença que excluiria toda e qualquer
possibilidade de coisificação.

Heidegger (2013) cita Hölderlin dizendo que a poesia desse alemão é um destino e sua palavra
destina-se ao sagrado, pois a técnica moderna causara a fuga dos deuses e gerou o sentimento de
despertencimento do homem à terra. Além disso, também é o poeta que recobra o mistério do ser.
106
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

Hölderlin não nos é familiar no Brasil, leia alguns trechos do poema “A chegada à casa/aos parentes”,
em que o poeta nos faz pensar/sentir sobre a nossa familiaridade com o mundo:

No meio dos alpes é ainda noite clara e a nuvem,


Poematizando o Alegre, recobre o vale bocejante. [...]
Tranquilos cintilam, contudo, os cumes de prata lá no alto,
Coberta de rosas já está lá em cima a neve luminosa, [...]
Cálida é a margem aqui e amigáveis abertos vales,
Belos iluminados por atalhos, verdejam e me vislumbram.
Jardins se emparelham e o botão reluzente já brota,
E o canto das aves convida o viajante.
Tudo parece familiar, até a saudação da passagem
Parece dita por amigos, cada rosto parece aparentado
Mas é claro! É a terra natal, o solo da pátria
O que buscas está perto, já vem ao teu encontro
E não é em vão que para, como um filho, diante da porta batida por estrondo,
De ondas e vê e busca nomes enamorados para ti. [...]
Sim, o Antigo ainda existe, Ele frutifica e amadurece, mas nada
Que vive e ama desiste da felicidade (HÖLDERLIN apud HEIDEGGER,
2013, p. 18-19).

Saiba mais

Para ler mais poemas de Hölderlin, visite o link a seguir, para a Revista
Prosa, Verso e Arte.

https://www.revistaprosaversoearte.com/friedrich-holderlin-poemas/

Para Loparic (2004a, p. 66), a fenomenologia existencial de Heidegger deixou aberta uma questão:
“como o ser humano pode por si mesmo e ter um mundo do si-mesmo, ainda que faça uso da instalação
técnica, leve a sério a sua animalidade e reconheça a sua independência relativa ao saber científico”?

Um dos caminhos que muitos desses pensadores, desde Nietzsche, apontam sem dúvidas é o caminho
para a arte: assumir o seu lado lúdico, acatar a falta de sentido da vida sem cambalear ou se refugiar
em desculpas metafísicas. Assim como Heidegger já suspeitava, os poetas indicam um belo percurso.

Exemplo de aplicação

Leia o poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, que é conhecido por ser uma das
suas facetas mais fenomenológicas. Seu lema é, por meio da poesia, “ensinar a deixar a passar” pela vida
com sabedoria e leveza. Despois da leitura, grife trechos da poesia que lhe chamaram a atenção e tente
relacioná-los com a ontologia heideggeriana.

107
Unidade II

XXIV

O que nós vemos das cousas são as cousas,


Por que veríamos nós uma outra cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Ser ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,


Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!)


Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,

Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas


Nem as flores senão as flores
Sendo por isso que lhe chamamos estrelas e flores.
Fonte: Pessoa (2003, p. 49).

Dica

O aluno deve rememorar o projeto ontológico heideggeriano, principalmente em dois aspectos, o


exercício da destruição dos pensamentos metafísicos e a invenção de um novo modo de perguntar sobre
o ser. Pensando nessas duas marcas, podemos ler a poesia de Caeiro relacionando-a com essas marcas,
por exemplo, quando o poeta afirma que o essencial é saber ver, sem pensar, sugere que precisamos
aprender a nos questionar sobre o que nos rodeia por meio do corpo, do sensível e do intuído.

Para finalizar, percebe-se que o projeto heideggeriano revelou o encoberto e o desencoberto do ser,
mostrou a abertura e a decadência de seu percurso. Stein (apud HEIDEGGER, 1979) afirma que, apesar
de apontar o futuro como potência para a mudança, principalmente na obra Ser e tempo, Heidegger
não concretizou seu sonho, não atingiu uma dimensão crítica mais madura, direcionado a reflexões
históricas mais amplas, porém, Stein grifa suas importantes contribuições, apontando-as muito bem nas
notas de tradução da obra sobre Heidegger da coleção Os pensadores:

Além de recolocar a questão do ser numa dimensão que a libertou das


ilusões de uma ontoteologia; e além de estabelecer uma distinção clara
entre as questões ontológicas e ônticas; além de libertar definitivamente a

108
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

filosofia e de separá-las das visões de mundo, Heidegger destruiu o sentido


ilusório da metáfora da reconciliação de história e natureza, enquanto
ela implica numa busca de identidade absoluta. Esta metáfora, base de
todas as utopias, retoma, nele, suas verdadeiras dimensões: o homem deve
assumir-se na finitude (STEIN apud HEIDEGGER, 1979, p. 5).

O tradutor anuncia que Heidegger é um dos pensadores mais pertinentes do nosso tempo porque
nos indica que precisamos seguir nossos próprios caminhos. Ele nos ensina que “talvez seja destino das
grandes filosofias serem muito marcadas por seu tempo, serem de ontem e com isto guardarem sua
atualidade; difícil atualidade, porque exige sua ultrapassagem e para ela preparam caminho” (STEIN
(apud HEIDEGGER, 1979, p. 94).

Percebemos, então, que o projeto da fenomenologia existencial revelou-se ser uma fenomenologia do
ser-no-mundo. Para isso, Heidegger criou uma nova gramática e inovou do ponto de vista filosófico ao
grifar a diferença ontológica entre o ser e o ente, que a metafísica grega-cristã e moderna operaram
ao reduzir tudo a uma lógica entificadora. Além disso, ampliou a noção de temporalidade, que fora
mecanizada desde a Era Cartesiana e a industrialização ocidental.

Resumo

Nesta unidade conhecemos melhor os projetos principais da frente


fenomenológica: a descritiva-transcendental de Husserl e a fenomenologia
existencial de Heidegger.

Percebeu-se que, em Husserl, houve uma grande preocupação em


fundar um espaço de reviravolta diante da história da filosofia moderna,
que, altamente contaminada com o fechamento de visão das ciências
naturais, empobreceu-se, daí o projeto de Husserl operar no sentido de
um retorno às essências e provocar um novo caminho do olhar humano,
traduzido por uma alternativa metodológica, a da redução fenomenológica.

Do outro lado, encontramos o projeto de Heidegger, que fora aluno de


Husserl, ou seja, já encontrou um solo germinado, o que lhe proporcionou
novas possibilidades, mais dinâmicas, de repensar o ser diante do mundo,
inserido numa temporalidade do vivido e reconhecendo o homem como
ser-no-mundo, capaz de escolhas, autênticas ou não.

Percebemos que foi importante mapear em ambos os projetos os


pressupostos epistêmicos e filosóficos que influenciaram a visão de dois
grandes pensadores. Eles tiveram em comum a consonância com o estudo
dos múltiplos sentidos do ser de Brentano, a lógica matemática e o tomismo.

109
Unidade II

Com isso, delinearam-se de forma fundamental os principais


conceitos-chave, assim como apresentou-se uma periodização das
obras dos pensadores alemães. O que nos marcou foi a força do projeto
fenomenológico como um novo caminho (metamétodo) diante de um
mundo em crise, dominado pela tecnologia e pela desumanização.

Exercício

Questão 1. (SEE-SP-2007) No livro Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica, de Husserl, podem ser distinguidas duas direções de investigação. Se uma delas pode
ser chamada de orientação natural, a outra, em contrapartida, pode ser nomeada como orientação
fenomenológica. Segundo o autor, podemos associar as duas orientações, respectivamente,

A) à ciência e à teologia.

B) ao objeto puro e simples e ao objeto intencional.

C) à lógica formal e à metafísica.

D) à crítica do conhecimento e à psicologia.

E) às ciências naturais e ao dogmatismo.

Resposta correta: alternativa B.

Análise da questão

Justificativa: na concepção de Husserl, a consciência, sempre dotada de intencionalidade, dirige-se


a algo. Daí vem o conceito de objeto intencional. O acesso ao objeto intencional ocorre em uma
experiência imediata em que o percebido está imanente à consciência.

Questão 2. Leia o trecho a seguir, de Benedito Nunes, um dos principais estudiosos da obra de
Clarice Lispector desde sua estreia na literatura.

O desenvolvimento de certos temas importantes da ficção de Clarice Lispector insere-se no contexto


da filosofia da existência, formado por aquelas doutrinas que, muito embora diferindo nas suas
conclusões, partem da mesma intuição kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático
da existência humana, tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a
comunicação das consciências, alguns dos quais a filosofia tradicional ignorou ou deixou em segundo
plano. Não se pretende afirmar, com isso, nem que a ficcionista vá buscar as situações típicas de seus
personagens na filosofia existencial, nem que as intenções fundamentais de sua prosa só desse conjunto
de doutrinas recebam o impulso extra-artístico que as justifica e anima.

110
FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO

No entanto, é sempre possível encontrar, na literatura de ficção, principalmente na escala do


romance, uma concepção-do-mundo, inerente à obra considerada em si mesma, concepção esta que
deriva da atitude criadora do artista, configurando e interpretando a realidade. Qualquer que seja a
posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção-de-mundo de Clarice Lispector tem marcantes
afinidades com a filosofia da existência, como no-lo revela, para darmos um só exemplo, dentro dos
limites deste ensaio, a experiência da náusea, que aparece nos contos e romances da autora de Laços
de família.

NUNES, B. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976.

Com base na leitura e nos seus conhecimentos, analise as afirmativas.

I – De acordo com o autor, a concepção de mundo de Clarice Lispector faz com que sua obra seja
exclusivamente impulsionada pela filosofia sartreana, pois ela aborda a náusea como elemento central
nas suas histórias.

II – Literatura e filosofia são áreas do saber sem inter-relação, pois a ficção não tem correspondência
com a realidade; assim, como aponta Nunes, os temas filosóficos de Clarice Lispector são apenas fruto
de sua atitude criadora.

III – Segundo Nunes, Clarice Lispector tem afinidade com a filosofia da existência e isso se reflete nos
temas abordados nos seus romances e contos.

É correto o que se afirma em:

A) I, II e III.

B) I e II, apenas.

C) II e III, apenas.

D) I e III, apenas.

E) III, apenas.

Resposta correta: alternativa E.

Análise da questão

Justificativa: o autor afirma que Clarice Lispector tem uma concepção de mundo afim com a filosofia
da existência e que isso pode ser percebido nos seus textos. Ele não afirma que sua fonte exclusiva de
impulso seja a filosofia de Sartre. Literatura e filosofia apresentam inter-relação, como aponta o crítico.

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