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102 (GERARD FOUREZ Resumo. De um ponto de vista agndstico em relagio & natureza da citncia, a comunidade cientifica ¢ um grupo social bem definido, cujos membros se reconhecem entre si (reconhecimento interno) ¢ so oficialmente reconhecidos em nossa sociedade (reconhetimento externo), recompen: sados e valorizados por seus aliados privilegiados (complexo militar: industrial, em particular), e reconhecidos como especialistas. Grupo de classe média. A gestio e 0 comportamento da comunidade cientifica sto partes constitutivas dos métodos cientificos. Suas ambigitidades: ‘+ sua falsa imagem de “comunidades”; + sua hierarquizagio interna e sua divisfo de trabalho; + 08 interesses divergentes em seu interior ‘+ a sua dependéncia econdmica do pod +a sua tendéncia a burocratizago; + a sua filosofia geralmente pouico critica em relagio & sociedade, ¢ sua tendéncia a sé lidar com grandes idéias abstratas. Palavras-chave (Comunidade cientifica/ reconhecimento interno/ reconhecimento exter no/ complexo militarindustrial/ aliancas da comunidade cientifica/ classe média/ ressentimento da comunidade cientifica/ individualismo/ sistema tecno burocritico e individualismo/ corporativismo. caPiTULo 5 O METODO CIENTIFICO: ‘A CIENCIA COMO DISCIPLINA INTELECTUAL © que é a cigncia como tecnologia intelectual? Vimos 0 seu lado material (bibliotecas, laboratérios, rede de revistas etc.) Precisamos agora examinar como ela se estrutura enquanto sistema intelectual. As disciplinas ¢ os paradigmas cientificos ‘Uma disciplina cientifica ¢ determinada por uma organizacio mental. Eo que chamamos, em filosofia da ciéncia, de uma matriz disciplinar ou um paradigma, ou seja, uma estrutura mental, consciente ou nio, que serve para classificar o mundo e poder abordélo (a noglo de paradigma se deve a Kuhn, 1962. Ver também Barnes, 1982). Se, por exemplo, quisermos efetuar uma pesquisa no dominio da satide, € preciso, para comecar, jé possuir algumas idéias a respeito da questio. E a disciplina que nascer dessas pesquisas sobre a satide estruturarsed em tomo dessas idéias prévias. O lot ‘GERARD FOUREZ conceito de “saiide” nfo cai do céu, mas provém de uma certa ‘maneira de contar o que nés vivemos por meio de relatos que todos conhecemos e que dizem o que é para nés, concretamente, estar com boa saiide. De igual modo, a biologia sera influenciada por uma certaidéia, partihada por um dado conjunto cultural, da diferenga entre o que esti vivo eo que nfo esti. Aqui, como em outras situagées, fala-se de uma diferenga e portanto da decisio - em geral inconsciente ou préconsciente - pela qual escolhemos valorizar a diferenca e no a semelhanca, Em nossa cultura, por exemplo, tragamos uma linha de demarcagio quase tio grande entre o vegetal eo animal quanto centre o ser vivo eo no vivo; alids, essa linha de demarcagio deixou ‘0s seus tragos em biologia na distingio entre a botanica e a z0clogia. cesses elementos culturais estio na base da disciplina que se denomina biologia; fazem parte de seu paradigma. As condigdes culturais do nascimento de uma disciplina Mesmo certos conceitos que parecem absolutamente evidentes, como o de “matéria”, so culturalmente consteuldos, e serve de base a disciplinas como a fisica. Somente a partir do século XVII ¢, de maneira clara, no século XVIII, é que nasce a nogio moderna de materia, quando as pessoas distinguem entre o que “animado” 0 que é simplesmente “material”. No final do século XVI, Gilbert, descobrindo o magnetismo terrestre, pensa estar lidando coma alma da Terra. Lembremonos de que, para os alquimistas, (os metais tém praticamente uma vida, muito semelhante alias as dos vegerais. Do mesmo modo, hi objetos de estudos que s6 aparecem em um dado momento historico. Por exemplo, pata que se possa falar da psicologia, é necessirio que se tenha uma certa concep¢io do ser humano como individuo. E é somente a partir do século XIX A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 10s: que serio considerados dois estudos particulares do ser humano, uum que se ater principalmente ao ser humano como individuo, € outro, ao ser humano como social, dando nascimento a duas disciplinas: a psicologia e a sociologia. Em nossos dias, pudlemos assistir ao nascimento de uma nova disciplina cientifica: a informatica. Com base em nogdes bastante ‘vagas relativas & comunicagio e a informagio, e estruturando-se em torno de uma técnica determinada (0 computador), foi eriada uma tecnologia intelectual, que permite pensar os problemas da comu nicagio e da informacio. Alids, a bem da verdade, a informitica (e todas as disciplinas fazem © mesmo) iri redefinir 0 que so para cla a comunicagio e a informagio. Pode-se continuar a considerar outras disciplinas: a biologia molecular, por exemplo, consiste também em uma maneira parti cular de abordar os problemas dos seres vivos, lignda a0 modelo Cientifico do patriménio genético ¢ da “dupla hélice”.! Em cada um desses casos, uma disciplina cientifiea nase como ‘uma nova maneira de considerar o mundo e essa nova maneira se estrutura em ressonfincia com as condigSes culturais, econémicas e sociais de uma época. A construcio das regras disciplinares Em torno e na base de cada disciplina cientifica, existe um certo riimero de regras, princtpios,estruturas mentais,instrumentos, normas culturais ¢/ou praticas, que organizam 0 mundo antes de seu estudo ais aprofundado. Essa classificago separari, por exemplo, o que Evivo do que nfo é, os fendmenos fisicos dos fendmenos quimicos, as medidas da fisica relativista daqueles da fisica nao-relativista etc. Uma vez operadas essas disting6es, elas produzem classificagdes TT Forma de organisagso do DNA (N.T). 106 GERARD FOUREZ que parecem quase evidentes, a ponto de servirem de base e de referéncia 20 pensamento subseqiiente. Essa “evidéncia” € um efeito que sobrevém somente apés 0 estabelecimento de uma disciplina cientifica. Assim, antes do nascimento da fisica, na époce de Galileu, considerar os fendmenos materiais de maneira independente de qualquer “animagio” pare- cia uma coisa quase aberrante. Lembremos que Gilbert, ao desco- brir 0 magnetismo terrestre no inicio do século XVII, pensava ter descoberto a alma da Terra. Um século mais tarde, Newton ainda no terd efetuado uma separagio completa entre a ciéncia e a teologia Ha momentos em que a evidencia de um “paradigma cientifi- co” & recolocada em questio. Assim, no inicio deste século, praticamente todos os estudos relativos A satide identificavam-se como os estudos de biologia “puramente materiais”. Hoje, os fatores psicossomiticos e 0s fatores ambientais ganham um espaco cada vez maior. Esti presente ai uma maneira de “reestruturar” um objeto de conhecimento. “© objeto de uma disciplina” no existe portanto antes da existencia dessa propria disciplina; cle € construido por ela. Ou, como diz Heidegger (1958, p.199): “a ciéncia nfo atinge mais do que aquilo que 0 seu proprio modo de representacao jé admitiu anteriormente como objeto passivel para si”. Por exemplo, s6 se podera falar da fisica, no sentido moderno do termo, a partir do momento em que sera dada a representagio intelectual de fenéme- nos fisicos de maneira independente dos fenémenos dinamicos. Em outros termos, uma disciplina cientifica nao ¢ definida pelo objeto que cla estuda, mas é ela que o determina (na Idade Média, a escoliistica dizia que uma ciéncia nao é definida por seu “objeto material”, mas pot seu “objeto formal”, isto é, por uma maneira de ver o munds). E, na evolugio de uma disciplina, esse objeto pode vatiar. Assim, a quimica orginica comegou como uma disciplina relativamente revolucionéria, ousando aplicar aos seres vvivos os métodos da quimica. Definia-se pela utilizagao desses miétodos sobre os seres vivos. Com o seu desenvolvimento e suas A.CONSTRUGAO DAS CIENCIAS: 107 miiltiplas aplicagdes, ela foi em seguida redefinida como a quimica das cadeias carbénicas. As rupturas epistemolégicas Na base de toda disciplina, ha um corte, uma ago humana que “separa” e que “proibe” confundir, sempre em virtude de um projeto. Para a biologia, é o que estabelece a diferenga entre 0 vivo © 0 nfiovivo; para a fisiea, 0 que coloca a nogio de “materia”, independentemente dos projetos humanos ou de todo o seu conteiido; para a psicologia, € 0 que distingue o individuo da sociedad e de seu meio e assim por diante. Essa separacio, essa construcio do objeto pela comunidade cientifica, é0 que Bachelard chama de “rupturas epistemoldgicas” (1971), ou seja, as rupturas {que dio um estatuto a um saber determinado. Na base da pratica cientifica existe essa agio humana, ¢ no um objeto que seria “dado” ‘A ciéncia emerge pouco a pouco do discurso cotidiano e/ou artesanal: do discurso do jatdineiro, por exemplo, ver-sesi aparccer 08 discursos sistemiticos que se tornario o tema da botinica. Porém, ela também se caracteriza pela ruptura em relagio 20 discurso cotidiano. Aids, & caracteristico do discurso cientifico apagar as suas otigens; ele se apresenta muitas vezes como o da objetividade, fazendo rapidamente esquecer que um ponto de vista foi seleci nado de inicio. Assim, para construir uma “ciéncia das cidades”, € preciso encontrar uma definicio do que ¢ uma cidade; isto s6 sera posstvel apés se ter escolhido um ponto de vista preciso para descrever as cidades. Um paradigma estabelece uma ruptura com os projetos da vida cotidiana, e permite eliminar uma série de questées que no serio mais consideradas como pertinentes. Poder-se, por exemplo, eliminar do estudo das cidades todas as aldeias. E essa “ruptura 10 GERARD FOUREZ epistemoldgica” que delimitara o objeto e conferiré, também, sua “objetividade” a uma disciplina cientifica Os conceitos fundamentais siio construidos nfo, dados © interesse de uma filosofia da ciéncia que enfatize essas rupturas cpistemoldgicas € denunciar a ideologia positivista que pretenda observar “as cidades tais como existem”, por exemplo, quando o proprio conceito de “cidade” é uma construcio intelec- tual, ligacia a um paradigma ou a uma teoria, Ese remetico portanto a08 projetos humanos subjacentes a essa construgio. A partir do momento em que sabemos que o estude cientifico das cidades depende de uma decisio relativa a uma ruptura epistemoldgica contingente, torna.se possivel levar em conta 0 fato de que esse conccito ja depende de uma certa visio do mundo da sociedade, de um certo projeto. Saber que o conceito de cidade é construido nos faz lembrar que ele nio foi construido por acaso, ‘mas em funcio de interesses precisos, historicamente determina- clos, e que poderia ser interessante esclarecer em algum momento. © que acaba de ser dito respeito do conceito de “cidade” pode ser estendido a todos os conceitos fundamentais da ciéncia. To- mando os de *satide”, “ser humano”, “desenvolvimento”, “maté- ria’, “consciéncia”, “recurso energético”, “cidades”, “regides petro liferas”, “loucura”, “igualdade”, “informagées”, “comunicacdes”, “particulas elementares”, “relagdes de incertezas”, “vida”, “equilt brio ecolégico”, *necessidade", “droga”, “cientifico”, “preciso”, *natureza humana’, “sexualidade humana”, “amor humano”, *ragas", “inteligéncia” etc., temos exemplos tipicos de conceitos que podem ser considerados de diferentes manciras. Ou ainda consideré-los como dados desde sempre e nao construidos (mais adiante, classificaremos esse ponto de vista como idealista). Ou, por outra, considerar que so 0 resultado de uma decisio episte: A CONSTRUCAO DAS CIENCIAS 109 molégica ou teérica, que operou uma ruptura em relaglo 2 utiliza: cao vaga do termo. A cada vez, a definigéo construida cientificamente € uma tradusio da nogdo corrente ligada a esse termo. Porém, ela nfo the € equivalente; assim, a definigio médica da sate, na medida em que se quer precisa ¢ determinada dentro de um ambito teSrico, jamais recobriré a noggo global que nés possuimos. Existe uma forga afetiva ligada a globalidade da linguagem cotidiana, que nao encontramos no discurso cientifico (Marcuse, 1968). Além disso, aescolha de uma definigao cientifica determinada nfo seri jamais ideologicamente neutra. Vé-se isso facilmente ao se considerar a nogao de “desenvolvimento”: a maneiza pela qual se definiré 0 desenvolvimento esti ligada a uma visio do mundo, a um projeto, a miiltiplas legitimagdes, ou seja, a todo um discurso ideolégico. Os falsos objetos empiricos ‘Uma visio espontiinea tende a acreditar que as disciplinas sa determinadas por objetos que seriam dados “empiricamente Alguns, por exemplo, quererio definir a farmacologia como a ciéncia dos medicamentos, como se um medicamento fosse um objeto empiricamente dado. Ora, € devido a uma ago humana considerando algo como um medicamento que a propria nocao de medicamento ganha algum sentido. um projeto human que constréi a disciplina e o paradigma da farmacologia, ¢ nfo a existencia “dada” de medicamentos. Percebe-se facilmente a “rup- ura epistemolégica” se se considera © conjunto de regras (nfo cexplicitas evidentemente) que nos fazem chamar algo de “medica- mento” (esse conjunto de regras faz parte da definicio paradigmé- tica da farmacologia). O aspecto convencional da farmacologia € 0s limites colocados pelo paradigma surgem do fato de que nao se considera uma muleta como um medicamento. © leitor pode, como exercicio, perguntar-se quais sio as regras implicitas que se uo GERARD FOUREZ adota para dizer que alguma coisa ¢ um medicamento, ¢ pergun- tarse sobre a possibilidade de uma outra estruturagio possivel dessa nocio. No caso da farmacologia ou da matemitica, podese perceber aatividade humana realizando a ruptura epistemoldgica. Em outros casos, ela é menos evidente. E comum, por exemplo, ouvir gedlogos definir a sua disciplina como a ciéncia da Terra, como se esta fosse uum objeto empiricamente dado. Ora, para que © conceito de “Terra” possa definira geologia ele precisa ser construido. Possuin- doa Terra uma alma, tal como pensava Gilbert por volta de 1600, ao descobrir 0 magnetismo, nao define de modo algum a geologia. Pode-se porém ~ exercicio deixado a critério do leitor ~ descrever os elementos constitutivos do conceito tebrico de Terra, na base da geologia moderna. Néo se trata de um conceito empirico, mas de um conceito definido por diferencas valorizadas (ruptura epis- temoldgica). Por exemplo, a geologia examina a “Terra”, separan- doa dos humanos que a habitam. Esse caso ilustra, aids, a forca do paradigma, pois este dispensa uma consideragio de tudo a0 ‘mesmo tempo. Na mesma linha, podese enumerar muitos falsos objetos empiricos que pretensamente se encontram na base de uma disciplina: a matéria, a satide, a Terra, o fendmeno econémico (ou psiquico, ou sociolégico), a operagao légica, a reacio quimica, o tertitrio geografico, o ambiente ecologico, 0 ser vivo, a informagio etc. Nenhum desses conceitos ¢ “dado”, eles sio todos construidos segundo 0 projeto que se persegue e so socialmente aceitos. E por isto que se poderia dizer que uma disciplina cientifica € menos determinada por sew objeto do que por seu objetivo. Evolugées nio previsiveis Antes que uma disciplina nasga, ndo ¢ sem divida possivel dizer a forma que ela tomar mais tarde. Nisto podese comparar ‘A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS m1 a ciéncia ~ tecnologia intelectual - com as teenologias materias: 0 que sucedera a tecnologia automotiva nfio é prédeterminado, mas 60 fruto de um desenvolvimento historico contingente (isto é , nfo absolutamente necessétio). Assim, a informatica néo aguardava em uma espécie de mundo das idéias para ser “descoberta” pelos cientistas do século XX. provavelmente mais adequado dizer que uma série de pessoas forjaram para si mesmas, em meados do século XX, representagies de fenémenos de comunicagbes ¢ de informagées que se tornaram tecnologias extremamente eficazes. Essas pessoas formaram uma comunidade de especialistas que se autodenominou de “informs: tica”, Os fenémenos informiticos so entio finalmente definidos como aquilo de que se ocupam os especialistas em informatica. Desse modo representada, a evoluglo das disciplinas cientficas nto corresponce a uma légica da histéria prédeterminada e previsivel. Deve-se mais a uma verdadeira histéria na qual o novo é possivel, assim como bifurcagbes imprevisiveis, 0 todo condicio- nado por um conjunto de condigdes sociais, econémicas, culturais ctc., mas nao inteiramente determinado por elas. Esse modelo da evolucio da cincia esti ligado a um paradigma, o das estruturas dissipativas. Terlamos fenémenos, alimentandose de energias cexteriores, cujas estrururas macroscépicas nio sio previsiveis pois, como outros fendmenos histéricos, podem ser causadas por mo dificagSes microseépicas das condigSes iniciais. A ciéncia teria uma verdadeira historia, a0 passo que os resultados cientificos seriam uuma construgio e nao o desenvolvimento das verdades cientifcas que, desde sempre, teriam esperado ser “descobertas” (sobre essa visdo histérica da ciencia, ver Prigogine & Stengers, 1979). Em sua obra D'une science a Vautre, des concepts nomades [De uma ciéncia & outra, os conceitos nomades}, Stengers e seus colabo- adores (1987) analisam como 0s coneeitos se “propagam” de uma disciplina & outra, fortalecendo novos pontos de vista que os cientistas considerario mais ou menos freqiientes. Mostea-se ai também como se opera o “endurecimento” de certos conceitos que GERARD FOUREZ se tornam referéncias incontestes, que eu denominei de “falsos ‘bjetos empiricos” ‘Um exemplo de um paradigma e de suas condiges sociais: a medicina cientifica A descrigo do paradigma de uma disciplina deve sempre se fazer em uma espécie de metalinguagem, isto é adotando uma linguagem comum, diferente portanto daquela da propria di na, Pode-se encontrar na literatura diversas descrigSes do paradig- ‘ma de certas disciplinas. Assim Francois Jacob (1970), em seu livro La logique du vivant [A légica do ser vivo] apresentou uma historia da biologia que se converte em uma descricio da evolucio do paradigma dessa disciplina. Prigogine & Stengers, em La Nouvelle Allliance [A nova alianca, 1979], fizeram o mesmo em relagio fisiea, colocando em evidéncia a ruptura entre o antigo paradigma lissico e as novas perspectivas. Apresentaremos aqui o paradigma da medicina cientifica, tal como ele pode ser percebido por meio do canceito de satide desenvolvido pelo Dr. Lambourne (1970 ¢ 1972). Insistiremos sobre os vinculos existentes entre esse paradigma e alguns valores, assim como algumas priticas sociais. Sabemos que esse paradigma concedeu uma eficicia notivel & pratica da medicina; veremos aqui 68 seus aspectos particulaces. © conceit de “medicina” nao € dado de uma vez por todas. Encontra-se ligado as culturas. Desse mado, dizse que o médico chinés ¢ pago na medida em que o seu cliente goza de boa sade, a0 passo que na medicina ocidental o médico s6 recebe remune- ragio quando o seu paciente est softendo. E claro‘que isto provoca modificagées no que se refere a0 que seré valorizado e considerado importante em medicina! Tampouco 0 coneeito de sate cai do céu; € uma construcao ligada a uma cultura. A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS ua Para definir o conceito de satide, o Dr. Lambourne propoe um esquema bidimensional: seguindo um exo vertical, ele nota a extensio do campo da medicina, e depois o da microbiologia, © organismo, 0 individuo, a familia, a vizinhanga, o meio-ambiente, até © mundo inteiro (ver Figura 1). Seguindo o eixo horizontal notam-se entio maneiras de conceber os cuidados com a satide: “extracio” do mal, cura do doente, cuidados e bem-estar do doente, crescimento pessoal gragas & doenga, fortalecimento das aspiragies ¢ do proprio doente, iniciagio a navos modos de vida }O mundo ]©meloambiense A visinhanca A firiia CCressimento Foralecimento Iniclagio Exrazio Cun Cuidadoe | pessoal gragas das sspiraghes a novos domat dodoente bemestr e| a doenga edatforgan.-—=—smades . devida . 0 individuo Oorganismo ti A rnicrobiclogis . 0 iromo mmedicina clentiica Disegta dos valores sustentados pelo métndo Por slenfico na medicina, Figuea I~ Mapa do concsto de sae segundo 0 Dr. Lambourne (1972). 4 GERARD FOUREZ Definido este quadro, nto ¢ dificil ver que a medicina cientifica se caracterizou historicamente por uma escolha de valores, privile giando a rea sudoeste de nosso grafico. Quanto mais restrito for ‘dominio da medicina - da microbiologia, por exemplo +, e mais bem definido for um problema - 2 “extragio” do mal, por exemplo -, mais essa medicina seri considerada como “cientifica”. O interesse da medicina moderna se situa em algumna parte, sobre o eixo horizontal, entre a extragio do mal ea cura do doente e, no cixo vertical, entre a medicina orginica ¢ a medicina familiar. A importancia que se atribui de alumas décadas para ci aos aspectos psicoldgicos da medicina modificaram esse interesse, deslocando-o lum potico em ditegZo a rca nordeste do grifico. As ideologias ecologistas acentuam esse efeito. Essa escolha da medicina cientfica foi determinada pela pritica ‘médica. O fato de que ela tenha inicialmente se dirigidoa pacientes capazes de se cuidar e de pagar, médico nao deixa de estar ligado avalorizagio que examinamos anteriormente. Se os cuidados com a satide se dirigissem primeiro as massas, a ciéncia da satide teria dado muito mais imporcancia 4 higiene do que de fato foi dada. Sem diivida, também, o aspecto preventivo teria prevalecida sobre ocurativo. ‘A.maneira pela qual o paradigma ¢ estruturado hoje possui conseqiiéncias sociais. Assim, ele privilegiard os diagnésticos da doenca e daquele que, na equipe da sadde, esti mais préximo: 0 médico. Isto far com que se julgue normal dispensar grandes somas de dinheito por uma operagio cintirgica, a0 paso que, segundo a escolha implicita, haverd uma tendéncia a negligenciar co trabalho dos enfermeiros; a razio disso é simples: a operagao visa A doenca, enquanto os enfermeiros se interessam pelo bem-estar e conforto do doente. © paradigma veicula uma série de escolhas de prioridade: prioridade do diagndstico sobre o tratamento, priori- dade da cura sobre a higiene, prioridade do corpo sobre a psicolo- gia, prioridade das especializagdes sobre a medicina geral, prioti dade da cura sobre 0 bem viver ¢ assim por diante. ‘A CONSTRUCAO DAS CIENCIAS us Escothas politicas ¢ econémicas decorrem dessas prioridades: os orgamentos destinarse-io mais és pesquisas ditas “puramente medicinais” do que aquelas concernentes & higiene pablica, mesmo que as segundas tragam mais “resultados” no campo da satide do que as primeiras. Existe um vinculo entre esse paradigma ¢ a tendéncia a negligenciar os efeitos sobre a satide das estruturas econdmicosociais ligadas 20 trabalho na empresa (Thill et 1980). Devido a esse paradigma, 0 termo “curar” seré determinado pela cigncia médica, bem mais do que por problemas concretos. B desse modo que ~ nos paises subdesenvolvidos, por exemplo ~ os médicos podem se julgar capazes de curar vermes intestinais ‘mesmo em situagdes em que, com toda a evidéncia, as populagdes no estio livres deles. E que, para esses médicos, o termo “curat” significa “curar dentro de um hospital”, ou seja, tendo suprimido todas as outras variveis do problema concreto ~ varidveis econ6- micas, culturais, politicas ete. Pode-se assim constatar essa situagio paradoxal em que os médicos pretenderio ser capazes de curar determinada doenga, quando as pessoas continuario a padecer e mesmo a morter delas. Acontece simplesmente que a nocio corrente de cura foi deslocada no ambito do paradigma da medicina cientifica ¢ redefinida por ele. Se o paradigma da medicina cientifica contribu para que, com 6 intuito de melhorar a saiide das populagées dos paises desenvol- vidos, se utilizem mais os medicamentos do que a supressiio do trabalho com pausas, os seus efeitos sio ainda mais marcantes nos paises em desenvolvimento. Na meioria deles, as estruturas da medicina cientifica 6 chegaram & construcio de grandes hospitais modemnos; ali alguns doentes sfo tratados de acordo com todas as técnicas da arte, enquanto que centenas de pessoas fora dali ressentem violentamente a necessidade de novos modos de vida. fracasso da medicina cientifica nesses paises é tio grande que a maioria dos. médicos formados nos paises desenvolvidos nao desejam retornar aos seus paises de origem ou, se 0 fazem, nfo querem trabalhar junto a populagio menos privilegiada. A forma: us GERARD FOUREZ «fo cientifica por eles recebida os torna pouco aptos a perceber as questoes da saiide tais como se apresentam nesses lugares. que pode fazer um especialista em operacdes cardiacas quando a maioria da populagao sofre de paralisias intestinais? Para que serve tum diagndstico bem preciso se ele so pode ser aplicado a uma ‘minoria? Esses exemplos mostram que o valor de um saber, como code uma tecnologia, é sempre ligado a um contexto da soctedade: 1s saberes assim como as tecnologias podem ser mais ou menos apropriados. ‘A maneira pela qual um paradigma pode influenciar a pritica aparece claramente quando se considera a dificuldade de fazer com que os médicos aceitem a pritica da reidratagao oral para os casos de diarréia, em especial nas criangas. Quando os pesquisadores sabern que esse método & tHo eficaz, senio mais, do que os remédios, quando se sabe que é um método barato que pode ser aplicado As massas, quando 0 processo de aplicacto é simples, cle € dificilmente aceito tanto pelos médicos quanto pela populagio. E para convencer os seus colegas, os médicos sfo obrigados a langar mio de argumentos bioquimicos, quando bons argumentos em termos de saiide, nese caso, seriam aqueles provenienes da economia ¢ das estatisticas de resultados (Papart, 1985). Poderse-a perguntar 0 que seria um conceito de satide no qual 1a ditegao do vetor de valores, em lugar de apontar para a érea sudoeste do grifico, se dirigisse area nordeste. Nessa situagio, o acento recaitia sobre a busca de novos modos de vida e de morte, pelo fortalecimento da energia das pessoas, pela vizinhanca e pelo mundo, sem por isto negligenciar 0 aspecto microscépico e o da extragio da doenca. E se reconhecem tendéncias presentes em nossa sociedade mas em geral consideradas como ‘menos cien- tificas” Semelhante mudanca de paradigma teria resultados sobre a pritica dos trabalhadores na area de satide. Privilegiarse-iam. as equipes nas quais 0 médico que efetua o diagnéstico nio teria necessariamente o papel principal. Uma importancia maior atri buirseia aos tratamentos, a educaglo e & promocio dos valores da A.CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 7 vida. Esse enfoque no se concentraria sobre um individuo “abs- trato", porque encontra-se separado da realidade afetiva e social em que vive, mas sobre uma pessoa integrada a sua visinhanga, ao seu meio de trabalho, & sua regifo € a0 universo. A profissio de enfermeito seria valorizada, pois considerarse‘ia importante que ‘uma pessoa fosse bem acolhida, reconfortada e cuidada pessoal- mente, a ponto de poder se instruir com sua doenga e tirar dela novas forcas. Toda uma série de outros conhecimentos surgiria, tio eficazes talvez quanto os que conhecemos hoje. Essa modificagio de paradigma conduziria a modificagdes na estrutura social da equipe dos que trabalham no campo da saiide: em ver de ser dominada pelo médico que, em virtude de sua precisiio “cientifica”, dirige o resto da equipe, a equipe seria mais integrada. Por exemplo, quando alguém se aproxima da morte, a equipe ocuparseia mais com o acompanhamento do moribundo do que com o que hoje é técnica medicinal. O que nao quer dizer que a ciéncia da satide seria menos técnica, mas a concepcao de técnica seria mais abrangente. A anilise que acabamos de fazer a respeito da medicina é um caso em que se pode ver com clareza o funcionamento mental ¢ social do paradigma. A forga e a fraqueza da medicina cientifica provém ambos do aspecto redutor do paradigma. Sem redugio metodoldgica, logo se esta girando em circulos, mas ela também apresenta inconvenientes. Mutatis mutandis, é possivel mostrar algo semelhante para todas as disciplinas, desde a fisica ou a matemitica até a informatica, passando por muitas outras. Ciéncia normal e revolucio cientifica Ao introduzir © conceito de paradigma como conjunto de regras e de representages ments ¢ culturais ligadas ao surgimento de ura disciplina cientifica, Thomas S. Kuhn valorizou as decisoes (muitas veres nao-intencionais, néo-racionais, mas nio se devendo ry GERARD FOUREZ 20 2¢as0 ou sendo irtacionais) pelas quais uma disciplina toma sua forma histérica. Ao introduzir esse conceito, ele evidenciou que ‘uma cigncia tem data de nascimento, diante de questdes e preoc- paces precisas, em uma rede de interesses precisos que hoje ¢ficil de analisar (como no caso da ciéncia da informatica, em que se ve 6 contexto influenciar a estrutura e a pritica dessa disciplina). Colocou em questéo, assim, fundamentalmente, a representagio segundo a qual as disciplinas existiriam desde sempre, como penisam os idealistas. Kuhn introduzia um conceito que gerou intimeras controvér- sias. Distingue com efeito dois momentos bem diversos das priticas cientificas. O que ele chama de cifncia nommalé o trabalho cientifico que, no interior de escolhas paradigmiticas determina das, tenta resolver problemas. E 0 que ele chama de revolucdo cientifica € 0 que acontece quando ¢ o ambito paradigmitico de uma disciplina que é questionado. Assim, no inicio do século XIX, a fisica trabalhava dentro do paradigma newtoniano e a maneira pela qual se agia corresponde bem ao conceito de “ciéncia normal”. Trabalhava-se dentro de um esquema tedrico conhecido, que quase ndo se questionava. Além disso, no final do século, 0 paradigma do espago newtoniano foi cada vex mais questionado; estarseia diante de uma revolugio cientifica: apés um periodo de fervilhamento intelectual, nasceu © pparadigma relativista. Uma anélise andloga poderia ser feita no campo da biologia da hereditariedade que trabalha dentro do paradigma da biologia molecular (Jacob, 1970). Em cada caso, quando ocorre uma revolugio cientifica, a disciplina redefine o seu objeto (respectivamente o espaco e a hereditariedade) por meio do novo paradigna. Seria 0 caso de perguntar-se também se a tendén- cia na citncta da satde em revalorizar os fatores psicolégicos, sociais ce globais nao significa também uma certa tevolugio cientifica. Existem indmeras controvérsias relativas & operacionalidade da distinggo entre cigncia normal e periodo de revolugao cienifica; de acordo com 0 ponto de vista, com efeito, podese considerar ‘A CONSTRUCAO DAS CIENCIAS us “pequenas revolucées cientificas” ou “grandes”? Porém, pratica mente todos concordam em reconhecer o valor da contribuicdo de Kuhn quando ele indica a existéncia de um vinculo entre uma historia cultural ¢ o desenvolvimento das disciplinas cientificas. Mesmo que alguns (Giard, 1974) acrescentem que ele negligenciou a importincia da historia socioeconOmica ligada as disciplinas. Nascimento de uma disciplina: perfodo pré-paradigmético © periodo durante o qual uma disciplina esti a ponto de nascer, 0 momento em que cla é ainda relativamente flexivel chamasse, de acordo com o grupo de Stanberg (um grupo de filésofos alemaes, ef. Stengers, 1981), a fase préparadigmatica. E 0 periodo em que as priticas das disciplinas nao estio ainda bem definidas como, hé cerca de 30 anos, a informatica ou a vuleano- logia. Em vulcanologia, por exemplo, Haroun Tazieff é 0 prot6tipo do cientista de uma disciplina em fase pré-paradigmatica. Ele se recusa a utilizar técnicas que serio em seguida adotadas por outros vuleanélogos. A sua pritica cientifica parece por vezes que se baseia ‘mais em uma familiaridade com os vuleées do que com métodos extremamente precisos. Essa prioridade do existencial sobre as regras da disciplina caracteriaa esse periodo, assim como a impor: tincia dada as demandas sociais exteriores a uma comunidade cientifica cuja identidade nao esti clara ainda. Sabese alids como, em especial quando houve a ameaga de explosio do vulcio Soufriére, Tazicff foi contestado pelos “ortodoxos” da vulcanologia (ou seja, aqueles que haviam adotado o paradigmal; Lague, 1977). 2 Masterman, in Lakatos & Murgrave (1970), de maneira epstemolopica, e Salomon (1970), de manera histrca, mostram as dificuldades enconteadas 20 se querer utlar © conceito de revolugio cientifca de manera precisa, Ver também a excelente nile de Haching (1986) 120 GERARD FOUREZ periodo pré-paradigmatico se caracteriza em particular pelo fato de que néo existem ainda formagdes universititias precisas para se tornar um especialista dessa disciplina. Estes provém de todos os campos, como se viu, no inicio dos anos 60, no periodo pré-paradigmético da informitica. Os problemas se originam de maneira mais ou menos direta da vida cotidana ou, em todo caso, de fora da disciplina: do mundo industrial, militar, da produclo, de outras disciplinas cientificas etc. Em informatica, por exemplo, serio problemas colocados em termos de armazenagem, de gestio, de pesquisa operacional, eassim por diante. Em ciéncias ligadas a0 campo da satide, serio problemas ditetamente colocados em termos de pessoas que esto doentes ou morrendo (0 que cexplica alias a prioridade da medicina curativa sobre a medicina preventiva), Dizse, alias, que, durante esse period, sio as “deman- das externas” que sio determinants. Durante o period pré-paradigmiitico, as realidades sociais sio determinantes para a evolugio de uma disciplina. Assim, na historia da fisica, as necessidades da navegacao, da balistica militar, da minetacao so preacupagées que determinam as diregdes nas {quais 0 objeto “fisico” desenvolver-ses Paraa informatica, podese analisar a influéncia da indistria, e mais particularmente da “gigante” IBM. As questes que se colocaram os gedlogos, por casio do petiodo pré-paradigmatico, foram fortemente influen- ciadas pelas pesquisas militares e petroliferas. Quanto a geografia, cela esteve de mancira geral ligada a0 “poder”; no pertodo pré-pa radigmético, por vezes dificil distinguir um gedgrafo do batedor de uma invasio (e aliés, nfo é sempre tdo fécl fazer essa distingio atualmente, de tal modo a geografia tem servido ao exercicio do poder, embora nem sempre para “fazer a guerra” ¢ estabelecer impérios ~ militares ou econdmicos). Por alto, pode-se considerar que a geografia nasceu como uma tecnologia intelectual cujo objetivo era o de facilitar 0 governo (Lacoste, 1976). ‘As disciplinas cientificas sio portanto ligadas a miltiplos mecanismos sociais ¢ mesmo a lutas sociais. Sao as demandas sociais € a maneira pelas quais os grupos de pessoas procuram [A.CONSTRUGAO DAS CIENCIAS m1 responder a clas que determinam pouco a pouco a fisionomia propria das disciplinas. Por vezes, contudo, com o tempo, a demanda social externa pode ser obnubilada a um tal ponto que se poderia acreditar que ela desde sempre existiu. 0 caso, por cexemplo, da fisica e de outras “velhas” disciplinas de conceitos “enrijecidos” (Stengers, 1987, esquece-se, por exemplo, da ligacao que a matemitica teve com as técnicas comerciais ¢ o vinculo que cla mantém atualmente com a nossa sociedade de gestio!). Para outras disciplinas, pelo contritio, pode-se ainda perceber o vinculo entre a sua otigem social o seu atual funcionamento (& 0 caso pata a geografia, a geologia, a medicina, a informatica etc.). A atenefo aos condicionamentos socioculturais dos paradig- mas nao deve fazer com que se perca de vista a importincia das determinacées ligadas a outros componentes da condigao humana ede sua evolucto. Assim, “a fisica de Galileu remete ao fato de que vivemos em um meio onde as forgas de friegio so geralmente debeis. Se, semelhantes aos golfinhos, tivéssemos vivido em um ‘meio mais denso, a cigncia dos movimentos teria assumido uma forma diferente” (Prigogine & Stengers, 1988, p.21). Disciplinas estabelecidas: perfodo paradigmatic Quando uma disciplina esti “estabelecida", fala-se de periodo paradigmatico. E a época durante a qual ela tem o seu objeto construido de maneira relativamente estivel, ¢ suas técnicas sto relativamente claras. Nesse momento, os problemas nio so mais definidos tanto pelas demandas “externas” quanto por termos “disciplinares”. Sera preciso, por sinal, traduair 0 tempo todo as questées da vida cotidiana em termos paradigmiticos e vice-versa. Desse modo, em medicina, em termos pré-paradigmiticos, falarse-d de uma dor de barriga, enquanto, em termos paracligmé- ticos, sera preciso traduzir essa demanda externa em termos mais disciplinares,falando por exemplo em hiperacider no estémago ou La GERARD FOUREZ coisas semelhantes. Depois, seré necessério traduzir novamente 0 problema em termos de existéncia cotidiana, prescrevendo remé- dios, por exemplo, ¢ indicando como devem ser tomados, impon- do ou discutindo regimes para a vida toda, No periodo paradigmitico, as pesquisas serlo eferuadas em geral de maneira “técnica” (isto é, em termos que se referem as escolhas paradigméticas): assim, haveré uma tendéncia menor a fazer pesquisas sobre a “dor de barriga” do que sobre objetos jé determinados pela disciplina, como as “iileeras estomacais”, ou outras questées ainda mais téenicas, definicdas em termos bioqut- micos, por exemplo. De igual modo, em informitica, no periodo paradigmatico, 0 coneeito de “armazenagem” tem cada vex menos a ver com o que pensa o merceeiro, mas seri definido de uma maneira bem mais precisa no interior de um conjunto conceitual determinadlo pela matris disciplinar e pelas teorias da informatica. 10s também como, em medicina, a significago da palavra “curar” depende do paradigma dessa disciplina, a ponto de que se fala que se pode curar uma doenga quando, de maneira concreta = ou seja, quando nao se eliminaram as varidveis econdmicas € culturais -, ela nfo pode ser na verdade curada, Em todos esses casos, podese perceber 20 mesmo tempo a forca ea debilidade das abordagens paradigmaticas. Eas sio fortes porque, sem elas, ndo conseguiriamos resolver a metade das questses concretas que resolver as nossas técnicas modernas. Elas sio débeis porque, separandose cada ver mais da existéncia cotidiana, elas s6 resolvem os problemas pensados pelos especia listas, e nfo aqueles que sentem as pessoas em seu cotidiano, No fundo, a forca da ciéncia provém de que os seus paradigmas simplificam suficientemente 0 “real” a fim de poder estudiclo e agir sobre ele. Porém, ¢ também em seu periodo paradigmitico que se comega a criticar a cigncia por se separar dos problemas da sociedade, assim como as recnologias. ‘A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 1 O desenvolvimento das abordagens paradigmiticas © funcionamento da cineia no periodo paradigmittico pode ser comparado ao desenvolvimento das tecnologias materiais. Também elas comecam por periodos “pré-paradigméticos”. Assim, no final do século XIX, uma série de pesquisas aqui e ali acabou criando uma nova tecnologia e um novo conceito: 0 automével. No século XX, esse conceito esta bem definido. Desse modo, pode-se ver pesquisas ligadas 20 que se poderia chamar de “ciéncia do automével”. Semelhantes trabalhos nao definem mais os pro- bblemas estudados em termos de demandas externas (transportes, conforto etc.), mas em termos técnicos, ligados ao “paradigma” do automével. Partese das pesquisas sobre os motores a explosao, os aceleradores, os carburadores e assim por diante, O objeto de pesquisa esti bem definido pelo contexto tecnolégico, mais do que pela demanda externa. Neste sentido, pode-se considerar © perfodo paradigmatico como 0 momento em que uma disciplina cientifca, tendo deter minado e construido © seu objeto, aprofunda a pesquisa nas diregdes determinadas por suas escolhas paradigmaticas - ocultan- do em geral a existencia dessas escolhas e negligenciando a sua influéncia (LevyLeblond, 1982). Para retomar a comparagiio com as tecnologias, podese examinar de que modo a pesquisa em relagio ao automével dependeu de escolhas feitas no final do século XIX. Foram elas que determinaram todo um programa de pesqui- sas, De maneita similar, a biologia molecular, uma vez estabelecido fo seu paradigma, levou adiante as suas pesquisas utilizando patrimdnio genético como “chave” da hereditariedade (do mesmo modo, levar-se adiante as pescuisas em tecnologia automotiva, como se 0 paradigma do automével constituisse a chave dos ‘modernos meios de transporte) Para compreender os elementos aleatdrios da evolucto - ou da estagnaggo ~ de uma disciplina, poderseia comparar a informatica ry (GERARD FOUREZ com a cibernética. Um observador superficial do inicio dos anos 50 teria apostado que, alguns anos mais tarde, a nova disciplina que era a cibernética (estudando os sistemas capazes de corrigit a si mesmos) teria estabelecido o seu paradigma, Ora, nessa época nascia a informatica, que atingi hoje a sua maturidade disciplinar, enquanto a cibernética continua no estigio pré-paradigmatico, apaixonante gragas a todas as mudancas por ela provocadas, mas sensivelmente menos desenvolvida do que a informatica. Podese supor que o progresso da ciéncia dos computadores deve-se ao fato de que cla logo se ligou a desenvolvimentos econémicos, militares © comerciais, apoiados por empresas multinacionais (principal: mente uma?), € por uma tecnologia precisa (o computador), 20 paso que a cibernética permaneceu uma espécie de clube intelec- tual, interdisciplinar, fervilhamento de novas idéias, mas longe daquilo que Kuhn denominou de “cigncia normal” Quanto ao exemplo da biologia molecular, ele mostra o interesse do periodo paradigmstico. Essa ciéncia aprimora uma tecnologia intelectual extremamente potente. Aprofundamse 0s problemas dentro de um esquema que nao se quer modificar. E desse modo que Kuhn comparou a pesquisa em periodo paradig- mitico (ou seja, a “ciéncia normal”) com a resolugio de um quebracabegas: considera-se que as pecas formam um conjunto que se tenta reconstituir. Kuhn comparara também o momento em que se pergunta se nfo existirao dois quebra-cabegas misturados no periodo da “revolugio cientifica”, durante © qual se questio- nam as suas hipéteses fundamentais e o proprio horizonte da pesquisa. Por ocasitio do periodo paradigmatico, pode-se defini 0 pro- prio trabalho por referéncia a um Ambito disciplinar preciso: 0s pesquisadores se definem como fazendo fisica, biologia, quimica, ‘matemitica ete. Sentem-se menos inclinados a responder a deman: das de conhecimentos vindas da vida externa a disciplina. E durante esse periodo que a disciplina define as suas questées, de ‘maneira puramente interna; examinaremos adiante o vinculo entre ‘essa atitude € os conceitos populares de “ciéncias puras” ou A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS ns “cigncias fundamentais”. Pode-se notar, contudo, desde ja, que os periodos paradigmiticos possuem um papel importante em relagio a0 poder social: quando as disciplinas se impuseram (Latour, 1984), enrijeceram os seus conceitos (Stengers, 1987), obnubila- ram as suas otigens sociais, e os pesquisacores passaram a usufruir dle uma relativa independéncia diante do contexto social dentro do gual evoluem, lugar do paradigma: o laboratério No desenvolvimento, razodvel mas no necessitio, lembre- mos, das tecnologias intelectuais que so as ciéncias, ha uma invencdo cultural & qual se deve dar uma importincia capital: © laboratério. Foi somente no século XIX que os laboratérios - sempre tum pouco suspeites aos intelectuais, na medida em que implicam praticas manuais ~ ganharam direito de cidadania nas universidades (primeiro na Alemanha e, mais tarde, na Franga e na Inglaterra). Nifo teria sido adequado falar dos laborat6rios no capitulo ‘consagrado a observacio e aos testes experimentais. Nao que isto nao ocorra em um laboratério, é bem mais do que isso. Um laboratério, é wm lugar abstrato (no sentido etimolégico da palavra: retirado) e privilegiado, no qual se pode praticar certos experimentos controlados. Estes no so controlados de qualquer maneira: um laboratorio € construido de maneina tal que as exberiéncias que nele se ‘ealizam podem ser analisadas diretamente de acordo com conceites previstos pelo paradigma, Se, por exemplo, um médico utiliza um ‘medicamento em circunstancias complexas, 0 teste em laboratério podera ser feito de modo que ele serd imeditamente analisado em termos mais simples, determinado pelos paradigmas da quimica e da biologia. Em um laboratério, os virus ~ ou as particulas elementares ~ {fazem parte do observivel; em meu corpo, ou no espaco a minha bs (GERARD FOUREZ volta, nfl! Desse modo, o laboratério é necessério para que eu possa verificar as leis cientificas, as teorias ou 08 fatos cientificos. Sem laboratério, nada de virus! Porém, com um laboratério, criamos um ambiente onde o conceito de virus ¢ aplicdvel. Assim, © conceito de “virus” nfo é utlizével em qualquer situaco, mas unicamente em conjungio com um “laboratério”, que permite colocé-lo em evidencia (© laboratério nao é, por conseguinte, apenas o lugaf onde o cientista trabalha, € a instituigdo que serve para tradusir os problemas do cotidiano em linguagem disciplinar, © depois devolvélos. Procedem-se ali as experiéncias controladas que poderio ser reconstivuidas em outros lugares. Contudo, para que las sejam bem sucedidas fora, na “grande” sociedade, ser preciso muitas vezes que o laboratério se desloque, isto é, que as condigaes de “aplicacdes” assemelhem-se o suficiente as do Taboratério. Sem condigses suficientes de higiene, por exemplo, ‘uma vacinacao do gado nao & possivel. Esse “deslocamento” do Taboratsrio é a chave de muitas tecnologias: elas reproduzem, em ‘um ambiente menos privilegiado, o equivalente de um laborat6 tio. E nesse sentido, alias, que se pode dizer que muitas tecnolo- gias sio aplicagSes daquilo que foi bem sucedido em laboratério (Latour, 1982). E também em parte ao laboratirio que se deve a universalidade da cigncia. Ela talvez nao seja universal em sentido absoluto, mas uunicamente em relagio aos métodos de verificagio, isto é, aos laboratérios. E a existéncia de lugares como esses, protegidos, em que 0 “real” é filtrado segundo as normas dos paradigmas, que permite dar as ciéneias o porte de um discurso universal. }& vimos que os resultados cientificos so compreensiveis e comuniciveis (como toda lingua)... tendo como tinica condigao 0 aprendizado da cigncia (ou dessa lingua)! Do mesmo modo, as experiéncias ientificas so universalmente reprodutiveis... tendo como tinica condigio reproduzir as mesmas condig6es privilegiadas do labo- ratério. A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS bt O esgotamento dos paradigmas: em diresio ao periodo pés-paradigm: Durante o periodo paradigmitico, a disciplina se mantém “viva” na medida em que ela permanece em contato com proble ‘mas formulados em termos exteriores a disciplina (como o proble- ma da hereditariedade diante da biologia molecular). Todavia, a disciplina pode perder praticamente todo o contato com as ques- tes “externas”, Identificando, por exemplo, os problemas da hereditariedade com os problemas da biologia molecular, ou dizendo, o que dé no mesmo, que a biologia molecular resolveu 0 problema da hereditariedade. © mesmo processo poderia aparecer nna informatica, ao se identificar os problemas da informagdo com os do computador. Em casos semelhantes, duas possibilidades se abrem. Ou bem a disciplina se torna cada ver mais inadequada e se vé confrontada ‘com problemas “racalcitrantes”, “anomalias”; & preciso entio ‘esperar por sua renovagio por meio da rejeigto dos pressupostos paradigmaticos anteriores, como ocorreu na fisica no inicio do século XX. Esse processo corresponde bem ao conceito de “revo- lugdo cientifica”. A segunda possibilidade & que ela responda as questbes que se colocam, entrando assim em um ciclo pés-paradig mitico. © grupo de Stanberg fala de uma disciplina em periodo ‘és paradigmdtico no momento em que ela se apresenta como uma tecnologia intelectual acabada, ena qual quase nao se faz mais pesquisas (a menos que um novo problema externo obrigue 2 repensar um elemento dessa disciplina). © exemplo da trigonome tria é excelente: essa disciplina se desenvolveu a um tal ponto que, na pritica, ela sé € ensinada e utilizada. E uma tecnologia intelectual extremamente ttl ainda, mas que nao ¢ mais objeto de pesquisas. Do mesmo modo, certas classificagées dos minerais, dos vegetais cou dos animais, ou certas anslises quimicas parecem ter chegado seu estado pés-paradigmatico. ns GERARD FOUREZ Traducées, redugées, explicagdes Os paradigmas sto instrumentos intelectuais poderosos no dominio do mundo. Vimos que eles permitem “tyadusir” um termo da vida cotidiana em uma linguagem mais técnica, mais precisa. Assim, quando o comerciante pode traduair 0 seu proble- ‘maem termos de pesquisa operacional, sabe-se mais precisamente a que se referem os termos: estoque vendido, no verdido ete. Existe entio uma convengio social, ligada ao paradigma, que permite saber com maior exatido do que se fala (mesmo se, para isso, sactficam-se alguns elementos da demanda externa). Dizse que se reduz um problema quando s6 0 consideramos de acordo com a tradugio do paradigma. Fala-se de “cientificismo” ‘quando se esta persuadido de que a sua redugio da conta de todo © problema. Falase enfim de explicaedo de um fendmeno quando se conseguit traduzi-lo em um paradigma diferente daquele que se tinha de inicio, Assim, se considero 0 amor, posso dar uma “explicagio” em termos de horménios e, de uma perspectiva cientificista, posso pensar ter efetuado uma *redueio" absoluta- mente adequada ¢ pretender que essa explicagio me diz tudo a respeito do amor. Caso se trate da hereditariedade (fenémeno da vida corrente em que se constatam semelhangas entre as pessoas € 08 seus descendentes), posso encontrar uma “explicagio” no da biologia molecular; alguns irdo além e pretenderdo que © discurso da biologia molecular recobre todas as informagoes relativas ao fendmeno da hereditariedade vivido no cotidiano, e se falara ce uma atitude “reducionista”. aml Incomensurabilidade dos paradigmas As diferentes tradug6es de um fendmeno em diferentes para- digmas colocam a questio de saber até que ponto uma tradugao & redlutivel a uma outa; é 0 que Kuhn (1972) chamou de questio ‘A CONSTRUGAO DAS ENCIAS 19 da “comensurabilidade” ou da “incomensurabilidade” dos paradig mas. Essa questio se coloca em muitos niveis, para muitos fen’- menos ¢ muitas teorias. Vimos 0 caso da hereditariedade, ¢ do amor; lembremos que, em um dominio bem diverso, colocou-se 0 problema da comensurabilidade das teorias da luz em um paradig: ma corpuscular ou em um paradigma ondulatorio. FE facil idenificar as razbes pelas quais Kuhn afirma a incomen- surabilidade dos paradigmas. Com efeito, os conceitos redricos ‘como os testes experimentais se referem a um dado esquema paradigmatico. Ha sempre um salto interpretatério quando se afirma que determinado conceito, dentro de um paradigma, equi vale a um outro conceito, em outro paradigma. Francois Jacob (1970) mostrou-o no exemplo da hereditariedade: 0 discurso do século XVI é heterogéneo, do ponto de vista qualitativo, daquele do século XIX, mesmo que se possa traduzir um no outro. Os fisicos tém bastante consciéncia disso, pois se deram conta, com a teoria da relatividade, que o conceito de comprimento s6 possui sentido dentro do paradigma em que ele ¢ colocado. Os filésofos da ciéncia mostraram também que o problema se coloca quando se quer afirmar que determinada experitncia deve (ou. pode) incerpretarse no Ambito de tal ou tal teoria (cf. supra sobre os contextos das experiéncias e das observacdes) Em principio, ¢ dificil justificar toricamente uma traducio. Para fazélo, seria preciso supor que se dispoe de um quadro de referéncia que compreenda os dois discursos (o que é uma maneira de pressupor o problema resolvide). Esse problema da incomensurabilidade de dois paradigmas talver seja um caso particular da incomensurabilidade de duas linguas. Quando digo, por exemplo, que os conceitos de “sorcelle rie” (feitisaria"), *“Diew” ("Deus"), “modele” ("modelo") se tradu- zem respectivamente por “witcheraft”, “God”, “pate”, qualquer lum que conhega o francés e o inglés? sabe que a traduglo sempre 3 Owe pormgués(N.T), 130 GERARD FOUREZ trai um pouco o sentido. Em outros termos, nenhuma tradugéo minimamente complexa de uma lingua - e com certeza, nenhurna tradueio de nossas linguas do dia-acdia - reproduz exatamente um outro discurso. Em termos kuhnianos, as linguas so sempre incomensurdveis; em termos mais tradicionais, o aforisma italiano: traduttore, traditore. Todavia, sabemos que toda a nossa atividade Tinguageira ¢ todas as nossas construgbes de sentido se baseiam sobre esses saltos, nfo redlutiveis a uma justificagao teérica, que s40 as tradugées. E tio verdadeiro para o bebé que aprende a falar ‘quanto para nossas atividades mais elaboradas. ‘As tradugdes: necessidade de toda abordagem técnica Toda técnica exige uma série de tradugées (Roqueplo, 1978; Callon, 1978). Se for & padaria, para comprar um pao, irei me exprimir em termos “ndo técnicos”. Descreverei desse modo uma maneira de sentir um certo ntimero de desejos, de gostos. Em geral, co meu pedido seré traduzido, seja pelo proprio padeiro, seja pelo vendedor ou vendedora, em termos técnicos: dirse-, por exemplo, que desejo um po menos gorduroso, ou com menos Agua etc. No entanto, 0 que desejo niio € um pio menos gorduroso ou com ‘menos égua, mas um que tenha um certo gosto de acordo com a minha expetiéncia, Ha entio uma passagem, uma traducio, entre a minha linguagem cotidiana e um certo tipo de linguagem agora mais técnica, Depois, essa linguagem sem duivida seri ainda traduzida em termos mais técnicos, praticamente em termos de “paradigma da padaria”, ou seja, em termos de temperatura, de fornos etc. Esses processos de tradugio so essenciais & pritica cientifica A uilizagio da ciéncia (como da tecnologia), Sem eles, o discurso jentifico seria init, ja que inaplicivel no cotidiano. Os conceitos cientificos mais precisos nao teriam sentido algum se nao se ACONSTRUGAO DAS CIENCIAS BI aproximassem, em determinado momento, de um conceito mais flexivel ou de uma experiéncia do senso comum. Assim, o conceito de temperatura, mesmo em sua definigio mais técnica da termodi- nnfimica, recebe a sua significagio por meio do vinculo que possui ‘com as sensagées mais banais (sem as quais néo poderiamos me- dir nada). Os cientistas imaginam por vezes possuir conceitos precisos e univocamente determinados; estes nao teriam significagao se néo fossem tradusiveis na experiéncia mais flexivel do cotidiano. Uma definicao biol6gica elaborada do “ser vivo", por exemplo, deve 0 seu sentido & nogao cotidiana da vida. © vinculo de um conceito cientifico com 0 cotidiano pode variar (podese, por exemplo, definir o metro em relacio a uma onda eletromagnética, mais do que em relagio a Terra), mas permanece inevitivel. Os riscos das tradugdes: abuso de saber ou acidentes Entretanto, é também por todos esses deslocamentos de senti- cdo que se praticam nas tradugSes que podem acorrer os abusos de saber por meio dos quais se pretende deduzir normas de conduta com base na ciéncia, ou obrigagSes técnicas (ef. Beaumont et al., 1977). O mesmo ocorre quando se pretende reduzir os problemas 4 sua traducio em termos técnicos. Esses abusos de saber ligados as tradug8es podem acarretar problemas bem priticos. E raramen- te, com efeito, que surgem em consideragses técnicas erros que causario a explosio de uma nave espacial, um “Chernobil” ou naufcigio de uma balsa. Os erros fatais devern-se em geral A maneira pela qual se traduziram situagSes téenicas concretas nos termos pparadigmatticos de uma cigncia ou de uma tecnologia. Nao é nun: ca a uma central nuclear te6rica, a uma nave espacial tedrica, a um navio teérico, ou por ocasifo de uma operagio cintirgica tes ca que acontecem os acidentes, mas a essas “maquinas” concretas 2 (GERARD FOUREZ que se dizia adequadamente representadas por seu “equivalente” te6rico. Desse modo, na medicina, se se adotar um paradigma de tipo Diol6gico, percebe-se que os termos “curar” e “saberse curado” ganham significagSes mais precisas quando todas as variiveis se encontram misturadas - induindo as variéveis econémicas culturais. © paradigma permite simplificar © problema a fim de poder abordéslo de maneira mais precisa. Porém, ao efetuar essa tradugiio do problema, esquece-se por vezes a sua origem (0 ppaciente “insatisfeito consigo mesmo", por exemplo); arriscase assim a produzir uma pritica intl, Esse esquecimento da comple xidade do problema, reduzido @ sua descriga no interior do paradigma, é entio uma “redugio” discutivel. ‘Ao determinar os tipos de raciocinio aceitiveis em determinada experiencia, o paradigma determina um ambito de racionalidade. ‘Assim, um fisico, quando estuda uma central nuclear, negligencia deliberadamente a questo de saber se ela sera culturalmente aceita pela populagio. © que nao entra em seu esquema sera recusado. ‘Vimos que a forea da ciéneia consiste justamente em enfrentat problemas “simplificados” (como dizia Popper, nfo existe triunfo maior do que uma tedugio metodolégica bem sucedida). Porém, esta € também uma de suas fraquezas, pois o trabalho cientifico aparece sempre ligado a uma simplificagio. A ciéncia nao estuda jamais o mundo da forma como é representado no cotidiano, mas sempre do modo como ¢ traduzido na categoria de uma disciplina precisa e particular, Parece haver uma enorme distincia entre © cotidiano - o real, dirdo alguns - ¢ a ciéncia. E o que analisa Lamotte (1985) em seu artigo sobre “Le réduetionnisme: méthode ou idéologie?” (“O reducionismo: método ou ideologia?”}, em que cita particularmente Popper: “Pode-se descrever a ciéncia como a arte da supersimplificagio sistematica. Como a arte de discernir o que se pode omitir”. Diz ainda: “As teorias cientificas sio como redes criadas por nés e destinadas a capturar o mundo... Sio redes racionais criadas por nés e no devem ser confundidas com uma representagdo completa de todos os aspectos do mundo real, nem A.CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 133 mesmo se forem muito bem sucedidas, nem mesmo se parecem fornecer excelentes aproximages da realidade.” (Popper, 1984, p.36 ¢ 135) A ciéncia: uma linguagem técnica como as outras! Existe hoje um vinculo entre a linguagem do cotidiano ¢ os conceitos cientifcos. E por isso que Ernst Mach néo fala em uma separacio radical entre o trabalho do artesio e o do cientista (1925). ‘Os artesaos, para comunicar o seu saber “economicamente”, criam. termos técnicos; criam para si mesmos uma representacio do mundo que Ihes interessa. Uslizam também nogdes que remetem seja a linguagem do cotidiano, seja a outras que foram elaboradas em conceitos mais precisos por outros: assim, por exemplo, os ‘marceneiros poderii falar da “dureza” de uma madeira. E quando isto ndo serve para os scus projetos, os artesio nfo dio a minima para o que interessa aos cientistas. A atividade de todos os cientistas assemelhasse a dos artesios. Desse modo, o quimico se interessard por reages precisas e, de maneira geral, as sutilezas dos fisicos da ‘mecAnica quantica no entrario diretamente em seu trabalho. No maximo ele urilizard um certo niimero dessas nogdes, mas o far sem se embaragar com precisOes que parecerio essenciais a um especialista. E se ele pode se interessar pelo fato de que o fisico considera que as pasticulas que formam o nticleo dos dtomos que compéem as moléculas que ele estuda sio formadas por quarks, no se pode dizer que esse conceito de quark seja importante para sua pritica. Igualmente, todos os artesios utilizam conceitos bem precisos em um campo restrito, contentando-se com nogtes mais ‘vagas na periferia de seu saber. © especialista pode se interessar pelas possibilidades de tradugio de seu saber em outros (“reduzin- do”, por exemplo, a quimica & fisica), mas, do ponto de vista pritico, ele nio tem o que fazer com isso. 14 (GERARD FOUREZ Nesse sentido, o cientista nao difere de um bom jardineitos também ele utiliza conceitos bem precisos (mesmo que nio sejam formalizados) quando quer, por exemplo, medir a quantidade de agrios; porém, ele nfo possui mais relagfo com a biologia genética do que o quimico com a fisica das particulas elementares. Todo trabalho cientifico mostrase entio como um trabalho preciso, local, mas que sempre se refere a conceitos periféricos mais cou menos vagos. Esses conceitos pertencem seja & inguagem. cotidiana seja 4 linguagem especializada de outras disciplinas. A possibilidade de passar de um nivel a outro é importante na medida em que se quer ter a impressio de explicar os fendmenos. Pretende-se por vezes que o conhecimento -desses conceitos perifé- ricos é um prérequisito para praticar uma disciplina. Porém, muitas vezes esses “prétequisitos” no so necessatios a pritica; tem geral sio muito titeis para ampliar a visio, mas nfo entram no trabalho operacional do cientista (Himsworth, 1970). De acordo com essa representaglo, o cientista ndo possui um saber funcamentalmente diferente dos outros. Todos se referem lum corte preciso que € 0 de seu ponto de vista e que todos conhecem bem; etoclos desejam possuir uma relagio com outros saberes, outras perspectivas. Os diferentes tipos de saber aparecem entao como esclarecimentos localizados que se deve pr em contato (Prigogine & Stengers, 1980). E é ai que a pratica interdisciplinar assume toda a sua importincia. A interdisciplinaridade: a busca de uma superciéncia? © tema da interdisciplinaridade se tornou popular. Nasceu da tomada de consciéncia de que a abordagem do mundo por meio de uma disciplina particular é parcial e em geral muito estreita. Por exemplo, o exame dos problemas de satide unicamente em termos bioldgicos nao vai de encontro aos objetivos determinados pelas A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 13s demandas de satide existentes. Diante da complexidade dos pro- Blemas, ése levado a procurar outros enfoques: psicologicos, sociolégicos, ecolégicos etc. Cada vez mais se admite que, para estudar uma determinada questio do cotidiano, é preciso uma multiplicidade de enfoques. E a isto que se refere o conceito de interdisciplinaridade. Na pritica, esse conceito recobre duas atinudes bem diferentes, mesmo que elas se unam para considerar, por exemplo, que as “lentes” de uma disciplina so demasiado estreitas para estudar os problemas em toda sua complexidade. A primeira perspectiva ‘espera que uma abordagem interdisciplinar construa uma nova representaco do problema, que sera bem mais adequadsa, falando ‘em termos absolutos (isto é, independentemente de qualquer critério particular). Considerarse, por exemplo, que, caso se associem os enfoques da biologia, da sociologia, da psicologia etc, pode-se obter uma ciéncia interdisciplinar da sande, a qual seré ‘mais adequada de um ponto de vista absoluto, mais objetiva, mais universal, pois examinara uma quantidade bem maior de aspectos do problema. Pode-se supor entio que essa “superciéncia” nfo tera ‘mais o ponto de vista particular a cada um dos enfoques discipl: nares, ou que, pelo menos, ela constituird, de maneira absoluta, ‘um progresso em relacio as anteriores, Contudo, ao tentar assim construir um enfoque interdiscipl: nar de um problema particular, apenas se reproduzem as fases pré-paradigmaticas de um estudo. Centrado sobre uma exigéncia exterior a qualquer disciplina conhecida, retinem-se todos os conhecimentos que se possui para abordar o problema. Desse modo, o inicio da informatica caracterizou-se justamente por uma abordagem do problema da informagio utilizando diversas disci plinas, as quais, postas em conjunto, iriam fornecer um enfoque original e particularmente interessante, chamado depois de “infor. mitica”, De igual modo, a geografia pode ser considerada como uma disciplina especifica, tendo 0 seu proprio paradigma, mas sendo fundamentalmente interdisciplinar, jé que se pode reconhe cer nela enfoques de disciplinas variadas. 136 GERARD FOUREZ ‘Ao mesclar ~ de maneira sempre particular ~ diferentes discipli- nas, obtém-se um enfoque original de certos problemas da vida cotidiana. Todavia, semelhante abordagem interdisciplinar nao cria uma espécie de “supercincia”, mais objetiva do que as outras: la produz apenas utn novo enfoque, uma nova disciplina; em suma, um novo paradigma. Assim, ao se tentar criar uma super- abordagem, conseguese somente criar um novo enfoque particu- lar. Foi desse modo, alids, que se criaram muitas disciplinas particulares ou especializadas. A interdisciplinaridade como pratica particular ‘A segunda perspectiva de interdisciplinaridade abandona essa idéia de uma espécie de “superciéncia”. Deste ponto de vista, a interdisciplinaridade no se destina a criar um novo discurso ue se situaria para além das disciplinas particulates, mas seria ‘uma “pritica” especifica visando a abordagem de problemas relativos & existéncia cotidiana. Assim, caso se aborde de maneita interdisciplinar o problema das centrais nucleares, no é com a pretensiio de ter um enfoque neutro. Limita-se a querer produzit tum discurso e uma representagig praticos e particulares diante desse problema concreto, Do mesmo modo, diante de uma demanda externa como a de uma populacio molestada por vermes do intestino, pode-se procurar uma abordagem interdis- ciplinar, Busca-se entio confrontar as perspectivas de especialis- tas provenientes de diversas formagSes: sociologia, medicina ientifica, antropologia, economia etc. © objetivo nao ser4 criar uma nova disciplina cientifica, nem um discurso universal, mas resolver um problema concreto. A grande diferenca entre a primeira e a segunda perspectiva consiste em que a ptimeira, ao pretender relacionar diferentes [A CONSTRUCAO DAS CIENCIAS T disciplinas em um processo supostamente neutro, mascara todas as quest6es “politicas” proprias a interdisciplinaridade: a que disciplinas se atribuira maior importincia? Quais sero os especia- listas mais consultados? De que modo a decisio concreta sera tomada? E assim por diante. Pelo contrério, na segunda perspecti va, a interdisciplinaridade é vista como uma pritica essencialmente “politica”, ou seja, como uma negociacdo entre diferentes pontos de vista, para enfim decidir sobre a representacao considerada como adequada tendo em vista a aco. Tornasse evidente, entio, que nio se pode mais utilizar critérios externos e puramente “racionais” para “mesclar” as diversas disciplinas que irfo interagir. E preciso aceitar confrontos de diferentes pontos de vista ¢ tomar uma decisio que, em ilkima instincia, nao decorrerd de conhecimentos, mas de um risco assumido, de uma escolha finalmente ética e politica A interdisciplinaridade surge entio como remetendo de ma- neira concreta 8 existéncia cotidiana, percebida como bem mais complexa do que as simplificagdes que podem resultar das tradu- 96es do problema pelos diversos paradigmas cientificos. Observe ‘mos, no entanto, como analisaremos mais adiante, que semelhante interdisciplinatidade pode se manter em uma perspectiva inteira mente tecnocrética, na medida em que as decisdes dependeriam tunicamente de negociagées entre especialistas, sem deixar se desenvolver um debate democrético mais amplo. A segunda perspectiva da interdisciplinaridade aceita as conse- agiiéncias da anilise segundo a qual, em itima instincia, o processo cientifico nfo pode se dedusir de uma racionalidade universal. A todo momento, mesmo que isto seja mascarado pela ideologia da cientificidade, 0 processo cientifico é o resultado de interagSes que se aproximam mais do modelo sociopolitico do que da repre sentagio de uma racionalidade universal. Isto vale tanto para © trabalho disciplinar quanto para a pritica interdisciplinar (cf. Latour & Woolgar, 1981; Latour, 1984 e também Pandore, 1982). 138 ‘GERARD FOUREZ A ciéncia: ferramenta intelectual para ‘uma economia de pensamento? {As nossas andlises do processo cientifico, da observagio, do estabelecimento de teotias e modelos podem estruturarse em uma certa imagem da ciéncia. Como dizia Ernst Mach (1925), esta pode ‘mostrar-se como a busca de uma maneira econémica de representa: ‘gio do mundo; ela funciona como uma economia de pénsamento, ligada a uma comunicacdo, Produsir um relatério de observagées, por exemplo, ¢traduair em uma linguagem tio pritica (econdmica, em sentido lato) quanto possivel o mundo no qual se esté inserido. Essa linguagem a comunicacio de um certo empreendimento dentro do projeto que se tem. Neste Ambito, e no contexto da filosofia de Ernst Mach, podesse representar a cigncia como “ferra- ‘menta intelectual". A ciéncia visaria portanto menos a uma repre sentagio dos objetos do que a uma comunicagao entre as pessoas; cesta tltima, aliés, tomou-se possivel gracas a estruturacio intelec tual do mundo em objetos representados. ‘Semelhante visdo acarreta também diferengas na maneira pela qual nés representamos 0 método cientifico. Se seguirmos 0 ‘modelo tradicional de Claude Bernard (1934), descreveremos esse método como um puro processo intelectual e experimental de um cientista isolado. Caso adotemos o ponto de vista de Mach, seremos levados adizer que a maneira mesma pela qual uma equipe de cientistas se organiza para discutir as experiéncias faz parte do ‘método, tanto quanto a maneira pela qual se esterilizardo os tubos de ensaio. ‘No primeiro caso, 0 método cientifico & visto como um procedimento abstrato; no segundo, tratase de um processo histo- rico possuindo dimensoes de linguagem, de gestio, de poder, de relagdes piblicas, de economia ete. Afinal de contas, o “metodo” contemporineo para descobrir a causa de uma doenga nio passa tanto pela busca de financiamento, pela gestto de equipes, pela boa organizagdo de seminsrios de discussao, pela comunicacio ‘A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS Le interdisciplinar adequada, pela maneira de redigir um artigo para que seja aceito em uma revista etc., tanto quanto pelo levantamento corteto e pela interpretaglo teérica adequada de um protocolo experimental? Na visto abstrata tradicional, a descrigio do método cientifico dira que o cientista examina a pertinéncia de seus resultados; na visio da citncia como economia e comunicagio de pensamento, diz-se mais simplesmente: “Ele discute os seus resultados com seus colegas” (a diferenga poderia levar a refletir sobre a pritica dos exercicios de laboratdrio na formagio dos cientistas: 0 que pensar dos exercicios de laboratério em que a discussio dos resultados iio € organizada, sendo até mesmo desencorajada!). A ciéncia: tecnologia intelectual? Assim mesmo, a imagem da ciéncia como “ferramenta intelec- tual” € relativamente inadequada, na medida cm que o artifice domina o instrumento, ao passo que os cientistas nao dominam o discurso cientifico: na verdade, eles se inserem no mesmo. Desta perspectiva, a imagem da tecnologia ser provavelmente mais aclequaca. Com efeito, uma tecnologia nfo é simplesmente um inserumento, é eambém uma organizaglo social, eventualmente em torno de um certo ntimero de instrumentos materiais. No caso de certas tecnologias mais sociais (como a gestio) ou matrizes logicas da informitica, pode se tratar simplesmente de representacoes intelectuais. A tecnologia, contrariamente ao utensilio do qual o artifice se serve, forma um conjunto no interior do qual nos situamos e que predetermina, bem mais do que um utensilio, o que se pode esperar dela. A tecnologia é também uma organizacio social. A ciéncia pode entio ser considerada como uma tecnologia intelec tual ligadaa projetos humanos de dominacio e de gestio do mundo material. Nao é, contudo, algo apenas intelectual; engloba outros a GERARD FOUREZ clementos, socialmente organtzados: as bibliotecas, 0s laboratérios, as revistas cientifcas, 0s sistemas de distribuicao de revistas cient ficas e de impressos, 0 sistema de concessio de financiamento etc. ‘Como qualquer outra tecnologia, s6 se pode compreendéla como tum conjunto organizado; é 0 que Mario Bunge denominou de sistema material da ciéncia distinguindo do que ela é como sistema intelectual ou conceitual (Bunge, 1983). A ciéncia surge entio como um sistema organizado em funcio de projetos, e composta por elementos materiais e representacionais. Podese distingut-la das demais tecnologias. A produgio cientifica Podese considerar varios tipos de producio cientifica. Um. primeiro tipo consiste principalmente em uma série de relatérios, sinteses, publicagdes que permitem a realizagio ¢ interpretacio de experiéncias precisas. Em outros termos, 05 cientistas produzem fs representagdes do mundo que podem ser iteis tendo em vista uma dominaggo material deste. No entanto, mesmo que a comercializagio ¢ a militarizagio cada ver maior da ciéncia tendam a atribuir uma maior importincia tessa parte da produgao cientifica, no podemos limitar a isso a produgio de uma comunidade cientifica. Cabelhe também toda ‘uma producio simbdlica, ou seja, um discurso dotado de uma aura toda especial, pois & considerado como “objetivo”, “cientifico” mesmo “verdadeiro”. Um tal discurso simbélico tem como pro- pricdade servir para “legitimar” a pritica. Assim, o discurso dos fisicos legtimard decis6es relativas as centrais nucleares; do mesmo ‘modo, 0 discurso dos economistas egitimara priticas sociopoliticas relativas as indistrias ou aos paises em desenvolvimento etc. Muitas pesquisas cientificas no tém por objetivo unicamente nos fornecer uma representagio do que € possivel fazer, mas visam também a legitimar emotivar agdes. Como nao conseguem jarnais ‘A CONSTRUGAD DAS CIENCIAS m indicar suficientemente os critérios dessa legitimacio, sfo ideolo- gias no sentido mais preciso do termo. E por meio dessa dupla produgio, a das representagdes utiliza veis, por um lado, e a dos discursos simbélicos legitimadores por outro, que os cientistas se inserem no circuito econdmico e social, So pagos por esses dois tipos de producio. Com freqiiéncia, a producdo de eficicia material vela o funcionamento ideolégico da cincia ~ ou sea, fato de que ela constituao sistema de legitimagao ‘mais importante de nossas sociedades industriais, Nio se pode, contudo, reduzir a producao cientifica a esses dois aspectos. A ciéncia é também uma produgio cultural. Par meio dela, os seres humanos desenvolvem uma obra poetica: exprimem © que € 0 mundo no qual se inserem, descobrem a sua propria produgio, partilham uma representagio do mundo. Hla também a possibilidade de prazer estético, essa atividade em que 0 ser humano reencontra 0 seu espirito no mundo por ele estruturado, Resumo Trabalho disciplinar: * toda disciplina cientifica é determinada por um paradigma Kuhn); a BEES ie ‘+ 0s paradigmas (matrizes disciplinares) so cultural e historicamente construidos; + oobjeta de uma disciplina nto preexistente, mas é determinado pelo paradigm; + 05 falsos objetos empiricos; + as rupturas epistemol6gicas; + um exemplo de paradigma cientfico: 0 da medicina Vida e morte dos paradigmas: + a “ciéncia normal” (segundo Kuhn) tenta resolver os problemas no interior do paradigma, e tira dele as suas questées, ¢ a “traducio” de suas respostas; we GERARD FOURIZ sem periodo de nascimento de uma disciplina (pré-paradigmatica), rnenhuma filiagdo universitiria precisa © nenhuma base na vida cot: diana, seus interesses ¢ suas lutas sociis; sem periodo paradigmatico, a discipline leva a sua pesquisa att as tulkimas conseqdéncias, de acordo com sua légica interna; podese falar de “cigneia pura”; « a invencfo cultural do laboratério: o paradigma da casals vem easo de inadequagio entre um paradigma e a demanda, podese entrar em um periode de “revolugio cientifica"s «sum periodo pésparadigmatico € um periodo no qual ab pesquisas {quase nfo se realizam mais, mas quando a disciplina € utlizada; «+o paradigma & a fonte tanto da forga quanto do limite de um trabalho cientifico. Cienela e “traduedo”: + tedugoes,explicagbes, redugSess v toda extensfio técnica de um problema pede a sua “traducio” prévia ra linguagem paradigmatica da disciplina envolvida; « os deslocamentos de sentido resultantes dessas tradugées colocam 0 problema da especialidade ¢ do abuso de saber. A interdiseiplinaridade COriger: consciéncia de que uma questio determinada pode requerer ‘uma multiplicdade de abordagens. Duas filosofias da interdisciplinaridade: «+ reunindo diversas abordagens, esperase uma superciéncia, superabje- tiva, mas constréise apenas um novo paradigm; « pritica concreta de negaciagées pluridisciplinares, diante de problemas coneretos do cotidiano. “Tentativa de definigdo da ciéncia: « economia de linguagem para comunicar uma certa intervengio no mundo: instrumentos intelectuais historicamente situados; «+ onganizagio social historiamente situada, produsindo e estruturando saberes: tecnologia intelectual; A.CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 143 + produglo a) de representagdesiteis ao dominio material do mundo; +5) de um discurso simbolico legitimador. = - Palavras-chave Paradigma/ matrie disciplinar/filso objeto empirica/ rupeura epistemo- ligica/ ciéncia normal/ revolugio centifea/ perlodo pré-paradigenatico/ periodo paradigmatico/ periodo pés-paradigmatico/ tradugio/ incomen- surabilidade dos paradigmas/ laboratétio/ interdisciplinaridade/ ciéncia fundamental/ economia de linguagem/ estrutura dissipativa/ rupturas epistemolégicas/ objetivo de uma ciéncia/ ferramentas intelectuais/ tecnologias intelectuais. INTERMEZZO A CIENCIA E OS QUADRINHOS SEM LEGENDA Pode-se comparar o processo cientifico a um jogo para os jovens que aparece no jornal: o da historia em quadrinhos sem legenda Esce jogo apresenta desenhos para os quais se deve encontrar uma “legenda”. ‘Um jogo cheio de convensses Esse jogo implica, assim como a ciéncia, uma atividade cultural determinada por um consenso ligado a certo grupo. Para com: preender o jogo, € preciso ter “précompreendido” um certo rniimero de elementos de nossa cultura, em especial a maneira pela qual as histarias em quadrinhos sto escritas. Essa compreensio implica a eliminacdo de outras possibilidades: desse modo, quando se compreendeu o jogo eo que é um desenho impresso, eliminam- se automaticamente os elementos que nfo parecem “pertinentes”, por exemplo, a mancha de café que pode-se juntar ao desenho. Da mesma maneira, o “jogo cientifico” comega por eliminar uma série de elementos, como consideragées de acordo com as M6 GERARD FOUREZ quais “Deus achou que as margaridas eram bonitas”, a cor da mesa da qual se estuda o equilibrio, ¢ assim por diante. Considera-se esse modo mundo situando-o de imediato na subcultura cientifica, Em outras culturas, os elementos religiosos ou poéticos info serdo necessariamente eliminados da observacio, assim como ‘Newton nao eliminava os argumentos teol6gicos de sua “filosofia natural”, que denominamos “fisica”. (© jogo dos quadrinhos sem legenda comporta regras ~ algumas explicias e outras, no - que devem ser compreendidas pelos jogadores, por exemplo a xegra de que, quando existe um alto, é Que alguém fala... Compararemos esse consenso social aquele que, ‘em nossa cultura, se liga & pritica cientifca As observacées © jogo dos quadrinhos comesa por uma sétie de “observa- goes": a partir dat determinarsedo, abstraindo de seu contexto tlobal, os elementos que servitio de base & legenda. Assim, distinguirei um personagem que poderei chamar Tintin, um outro, Haddock e um terceiro, Milu ete.' Usilizarei para isso regras convencionais eaceitas que colocam relagoes de equivaléncia entre certas partes do desenho. Por exemplo, direi que, levando em conta certas semelhangas (que jamais definirei completamente), um tal ‘onjunto de tragos corresponde a Tintin, mesmo que ele esteja ora de p&, ora sentado, ota se arrastando. Essas “observagdes de base ~ humanamente instauradas ~ serio © equivalente nas historias em quadrinhos as proposicées empiicas [Em certos casos, aspectos da “observa¢o” serio colocados em davida; ser necessario entao efetuar um desenvolvimento teérico, ' 10 Capito Haddock, T Bersonagens criados por Heng toe belg: Tintin, orepérer, o Capit creed de avon co cadhorr Mit Netece gue ste "go" dos qndenhor em legends £0 que as cangas ndoalfabetadas faze 20 interpretar os quadrinhos ‘que nto conseguem decfar,crando a propria hitéria(N.T) ‘A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS ur ou narrar uma parte da histéria, para poder determinar o que observo. Por exemplo, se, em determinado momento, alguém tiver se disfargado em Tintin, nao poderei distinguir entre o “verdadei- 10" €0 “falso" Tintin a nao ser que possua elementos da historia. Isto pode ser comparado a utilizagso de hipdteses teéricas necessé: rias& determinagio dos dados “empiricos”. E, assim como no jogo lo se pode separar esses elementos de base dos pedacos da historia, também na ciéncia as “observagées empiricas” jamais podem ser completamente separadas dos elementos teéricos. No jogo da histéria em quadrinhos, pode-se, seguindo a histéria que se conta, modificaro tipo de observagio que se faz. Se a histéria que eriamos é a de um Milu inteligente, “observarse” (isto é, interpretarse) de modo diferente uma ou outra atitude esse personagem (ou dessa classe de equivaléncia que se denomi- nou Milu). ‘No entanto, com a continuacio da historia, pode-se ser levado a reinterpretar algumas “observagdes objetivas’” A observagio seri diferente se se considera que uma s6legenda 6a boa”, e que € preciso encontrila (aquela, por exemplo, que teri sido determinada por um desenhista), ou se, pelo contritio, trata simplesmente de conferir inteligibilidade a um quadrinho que nfo comporta necessariamente uma hist6ria predeterminada, Em ciéncia, isto corresponderia a duas atitudes diferentes: em uma se considera a busca de uma “verdade eterna”; na outra, tenta'se produzir uma tecnologia intelectual adequada a certos projetos. As leis e as teorias Quando se elabora uma legenda, estabelecem-se vinculos entre as diferentes observagdes: as histérias constroem um sistema de inteligiblidade ligado aos dados de base que se selecionou. Elas podem ser comparadas as leis cientificas, aos modelos, aos progra: mas de pesquisa ou as teorias. Existem com efeito diferentes linhas ie GERARD FOUREZ possiveis na histéria que se iré contar, como pode haver diferentes tipos de programas de pesquisas em ciéncia, Além disso, ha sempre um meio de contar uma infinidade de historias com base em determinado desenho. Nao obstante, se existem expectativas especificas, poderse-i julgar certa historias esquisitas ou deslocadas. Mas, para reeltilas, Seri preciso apelar a algo mais do que as “observagbes de base”. Os desenhos no sto suficientes para determinar uma 56 e tinica histéria, Néo se deduz, alias, a histéria dos desenhos, mas se {magina uma histSria compativel com eles (Iembremos, a propria desericao dos desenihos nfo é independente dos fragmentos de hhistéria que se tem em mente ao obserudlo:). Essa particularidade é aniiloga 20 famoso teotema de Quine (1969), que implica que as leis cientificas st0 subdeterminadas pelas observagbes. ‘Além disso, as historias nio so equivalentes; elas podem explicar as coisas de maneiras diferentes; podem atribuir uma maior importincia a uma observacio particular, ou deixar outras de lado, Por exemplo, em uma historia, nfo se conferira importin- cia alguma a0 pequeno coelho que se encontra no desenho, 20 asso que em uma outra, esse pequeno coelho poderd ter uma importincia enorme, pois é ele que vai ajudar Tintin a sair do tunel onde ele esti preso. Do mesmo modo, os modelos cientificos negligenciam certos elementos da observagio que, na seqiiéncia, poderiam parecer extremamente importantes, como, por exemplo, as trajetsrias dos positrons nas cimaras de Wilson, antes da ddescoberta do positron por Anderson (questio deixada a0 leitor: ‘que significa a palavra “descoberta” nesse contexte?) As “verificagdes” € a resisténcia em abandonar uma teoria Enfim, quando se comegou a contar uma historia a respeito de alguns quadrinhos sem leyenda, ela pode ser “verifieada”. Essa vetificacio consiste em réler os quadrinhos utilizando a legenda A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 149 que se deu. Essa releinura assemelha-se aos testes experimentais ¢ as “provas cientificas’: estas, com efeito, resumem:se em uma relcitura de um conjunto de observagées, utilizando para tanto a teoria que se construiu. Em ambos os casos, pode-se encontrar um certo ntimero de dificuldades, seja que certos elementos do dese: rho se encaixam mal com a historia, sea porque se deixou muita coisa de lado (mas o que significa muita coisa?). Na ciéncia, depara-se com o mesmo tipo de questdes: uma teoria pode levantar uum certo mimero de problemas, ou deixar inexplicados um certo niimero de fendmenos (porém, baseando-se em que ponto consi- derarse-4 que ha fendmenos “demais” inexplicados por determi- nada teoria?). ‘Quando nos deparamos com dificuldades anslogas, podemos sempre nos livrar por meio de hipsteses ad hoc. Se, por exemplo, decid em minha histéria que determinado personagem foi morto, ¢ ele reaparece vivo, tenho um problema de coeréncia em meu sistema de interpretagao. Mas posso sair da situagio por meio de uma hipétese ad hoc, dizendo, por exemplo, que ele estava morto aparentemente apenas (como Rastapopoulos em Tintin’). Do mesmo modo, um planeta pode ter se desviado de sua trajetéria por causa de um astro perturbador. Para que a hipétese ad hoc [possa ser mantida, ser preciso observar um certo niimero de regras de coeréncia (convencionais? até que ponto convencionais?). Até onde pode-se accitar a incoeréncia de certas historias (ou de certos modelos cientificos)” Reestruturar a observagio é uma outra maneita de sair das dificuldades. Por exemplo, no jogo das historias em quadrinhos, pode-se dizer que o que via Tintin na imagem anterior era apenas uma miragem, ou uma alucinagio. Ou ainda, que por tris do arbusto, havia um grande lefo escondido. Da mesma maneira, um cientista poders considerar que este produto, que apresenta dif culdades, nao ¢ agticar, mas sacarina. Ainda, que este facho de 7 Veraaventura *Perdidoe no mar" 150 GERARD FOUREZ particulas elementares nfl ¢ tio puro quanto se pensava, ¢ que é isto que produz efeitos inesperados. Finalmente, podese, ainda, reestruturar de maneira parcial a histbria que se esté contando. Volta-se atrés e observase que © personagem, que parecia mau e gue apontava o fuzil na diregio de Tintin, visava apenas 20 Teopardo que amearava o nosso herdt (este procedimento nao deixa de ter analogia com a maneira pela qual 0s cientistas podem rever ‘um certo mimero de leis). ‘Aqui, ainda, a comparasio com as legendas do desenho pode ajudar a esclarecer: as raztes para se abandonar ou escolher uma histéria que é realmente incoerente demais; ou ainda, que ndo poder ser vendida; ou que careca de imaginagdo, ou que desagra dara a alguém importante etc, © “razoiivel” no obedece a uma racionalidade ‘nica. A incomensurabilidade dos paradigmas ‘A analogia dos quadrinhos permite também compreender melhor adificuldade que pode haver em comparar diferentes tipos de interpretagies cientificas. Se tenho duas historias diferentes, no posso encontrar um critério preciso para comparilas, pois os ritérios precisos s6 adquirem sentido no contexto global da historia toda. Por exemplo, se tenho uma historia em que Milu & inteligente e uma outra na qual ele & besta como um cachorto, & Jmpossivel para mim comparar os “méritos” das duas interpret ges em pontos particulares; a ‘inica coisa que me restaé fazer uma comparacao global; mas isto quer dizer que eu nfo posso me referir a trechos precisos, pois estes assumirio sentidos bem diferentes nos dois casos. £ possivel perceber a coeréncia interna de uma interpretagao «, por outro lado, dizer, de maneira global, como eu aprecio as historias. Porém, a comparacio entre as duas historias no pode set feita em relagio aos detalhes: elas sa0 incomensuriveis. Veja- A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 1 ‘mos o que Kuhn disse da ciénctas nao se pode comparar, por meio de testes precisos, teorias que se referem a “paradigmas” diferentes. io se pode mais encontrar razGes “légicas” que levam a preferir uma interpretacio de uma historia em quadrinhos em detrimento de outra. Mudanga de paradigmas Pode ocorrer também que as incoeréncias se tornem de tal modo insatisfatsrias (insatisfatérias sob que critérios?) que se prefere abandonar um “programa de interpretagbes” (como um “programa de pesquisas”), Pode-se decidir, por exemplo, que, em ver de estar perseguindo perigosos malfeitores, Tintin esteja & procura de um tesouro; ou, em vez de interpretar a histéria em quadrinhos como uma histéria de aventuras, ela pode ser conside- rada como uma historia de ficgéo cientifica; existem nesses casos pistas de pesquisa bem diferentes. Podese, fazendo uso de nossa analogia e de conceitos que serio desenvolvidos adiante, comparar esse tipo de modificagéo com mudangas de paradigmas na pers pectiva de Kuhn (1972), ou programas de pesquisa no sentido de Lakatos (como a adocio da interpretagio do calor como energia, ¢ nfo como fluido; Lakatos & Musgrave, 1970). Trata-se entio de uma maneira inteiramente diversa de exami- nar 0 fendmeno. Levando avante a nossa analogia, pode-se pergun- tar se esse tipo de mudanga nao poderia também ser comparado (lembrando que se trata apenas de analogias) & adogio de uma outra disciplina cientifica para abordar um fendmeno. Se considero © fenémeno do amor, por exemplo, posso ter um enfoque biolé- gico, com base no qual toda a teoria farsed em fungio dos horménios; mas posso também ter uma abordagem psicoldgica, em que entrario em consideragio os coneeitos do inconsciente, do desejo etc.; posso ainda considerar outras dimensdes do que se chama amor. Cada uma dessas interpretagGes se rege por critérios determinados. Elas serio “interessantes” na medida em que satis: 1st GERARD FOUREZ fizerem aqueles que as produzem (mas, o que significa “satisfazer”, e que critérios serio entio considerados!). A ciéncia nfo € subjetiva, € uma institui¢o social Existe todavia uma grande diferenga entre a ciéncia ¢ as historias em quadrinhos: no jogo dos quadrinhos, as decisées de preferir uma interpretagio & outra sfo pessoais, ao passo que, para a ciéncia, trata-se de fazer com que um grupo aceite uma visdo, em. meio a relagbes de forgas e de coergoes de todo género. A ciéncia, quando deixou de ser uma espécie de jogo interpessoal, como no tempo de Descartes ¢ Mersenne, entrou de uma ver por todas na esfera do social. Hi somente uma verdade cientifica? No jogo das historias em quadrinhos, pode-se perguntar qual éamelhor historia. E também se ha uma melhor histéria. Haveria ‘uma histéria que fosse a “verdadeira"? A regra do jogo poderia ser ‘encontrar legenda correspondente a que Hergé havia imaginado. esse caso, haveria uma histéria que seria a “verdadeira”, ou seja, Luma interpretacio que seria privilegiada. Contudo, essa “verdade” depende das regras de interpretagio. Mesmo tendo Hergé escrito a historia, pode-se considerar que uma outra legenda também seria interessante. Prosseguindo na analogia, pode-se observar que alguns consi- deram que o mundo possui uma “verdade”. Seria, por exemplo, 0 ‘que Deus pensa a respeito; ou, depois de um século ou dois, o que fa “natureza” produiz (mas o que significa esse conceito de nature zal). Observernos que aqueles que dizem que as “verdadeiras” leis da natureza s4o aquilo que é pensado por Deus tem uma ideia ‘A CONSTRUGAO DAS CIENCIAS 153 particular de Deus: a de um engenheiro que planifica tudo o que faz, utilizando a metifora da méquina. Qutros acreditam em Deus sem ver nele uma espécie de arquiteto e sem pressupor um plano muito definido para a natureza. Basta pensar em um Deus que teria um pouco mais de imaginagio, e que teria um certo gosto pelo imprevisto. Permanece o fato, contudo, de que alguns, inspirando- se na visio da fisica galileana, esperam encontrar “uma verdade global da narureza” (ef. Prigogine & Stengers, 1980). Outros, como Prigogine & Stengers, contentarseao com 0 esclarecimento localizado e particular de que a cigncia consiga efetuar sobre as coisas do mundo. Nao pensam que a ciéncia seja ‘uma busca da boa interpretagdo do mundo, mas uma maneira que temos de colocar nele um pouco de ordem. Nesse caso, a ciéncia seria mais uma obra “poética” (no sentido profundo do termo, isto 6, uma criatividade de significagdes) do que uma obra de interpre- tacao do pensamento de um outro. Em nossa filosofia espontinea, induzidos ou no por habitos hha muito herdados da histéria, tendemos a considerar a ciéncia como a busca da verdade tiniea, e a definir o progresso cientifico como tudo aquilo que nos aproxima dessa representagio privile giada. Pelo contrétio, quando se trata de tecnologias materiais, consideramos que raramente possui um sentido falar da “boa”; e a nogio de progresso deve referir-se a critérios sociais externos & pritica cientifica. Poder-seia considerar essas interrogagSes como questdes “tlti- ‘mas’, tanto no que respeita as histérias em quadrinhos quanto no ue se refere 4 filosofia da ciéncia. Em relagio aos quadrinhos, deve-se procurar saber qual a significagdo do jogo: encontrar o que estava na mente do autor ou contar histérias que nos “satisfagam’. Quanto ciéncia, devese buscar aquilo que vem de fora, de Deus, da natureza, © o que seria de uma vez por todas determinado? Ou tratase antes, em meio as necessidades do mundo, de uma criatividade do pensamento, do ser humano, da histéria?

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