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Capitulo 5 ACIENCIA E A “REVOLUCAO INDUSTRIAL” “No curso de sua dominagio de classe apenas secular, a burguesia criou forgas produtivas mais numerosas.e mais colossais que todas ‘as geraghes passadas tomadas em cOnjunto: a submissfo das forgas da natureza, o maquinismo, a aplicagio da quimica a industria ea agricultura”. (MAR. [Nesse contexto, para compreendermos social e historicamente como o novo mundo insdustrial tirou partido da ciéncia ¢ da {éenica, 6 indispensével que levemos em conta certas medincoes, socio-culturais, pls “os ovens, por vezes, aribuem maior peso ddo que convém ao lado econ6mico” (ENGELS). ‘A.ciéneia moderna nasceu com 0 advento do sistema mereantilist Nao surgiu como uma atividade pura ¢ desinteressada, como uma aventura espiritual ou intelectual. Mas dentro de um amplo contexto hist6rico, insepardvel de um movimento visando a racionalizagio da existéncia. E 6 todo 0 desenvolvimento da sociedade comercial, “in- dustrial", técnica e eientifica que se inscreve no programa pritico da racionalidade burguesa: ndo sc faz comércio empiricamente, pois cle € um negocio de efleulo, deve ser feito racionalmente. Assim, a burguesia nascente, que logo se instala no poder, tem necessidade de ‘um sis(ema de produgéo permitindo-lhc uma exploragiosempre maior ce mais eficaz da Natureza. E tal sistema ndo tarda a fazer apelo a umn ‘novo tipo de trabalhador: o cientista. Doravante, cabe-Ihe a tesponsa- Dilidade de detectar as leis gerais da Natureza. Quanto ao trabalho propriamente produtivo-fabricagio de bens de consumo, de méquinas, cic.-,é da algada dos artesdos ¢ engenheiros, que wilizam as descober- tas dos cientistas em termos de aplicagées particulares, ‘Todavia, o progresso técnico nfo contitui uma invengiio das tempos ‘modernos, O moinho de égua ja é bastante utilizado no século XIU. Maquina medieval tipica, ele ja se impde como uma “importante 157 rrevolugio técnica” (1). As predigGes de Roger Bacon, na metade desse século, mostram-nos o quanto jé se sonhava com as méquinas: “Maquinas poderdo ser contrufdas gragas 8s quais os maiores navios, pilotados por um dnico homem, iro mais depressa do que se estivessem repletos de remadores; vefculos poderao ser contruidos que se deslocaréio com uma velocidade incrivel sem serem puxados por animais ; maquinas voadoras poderdo ser fabricadasnas quais um homem, como uma ave, bateré o arcom ‘as asas; mAquinas permitirao ir a0 fundo dos mares” (2) E aoestudar o comportamento dos “homens de negécios” da dade ‘Média, o historiador Ives Renouard nos revela como o racionalismo industrial e comercial dessa época ja anuncia o racionalismo cientifico dara moderna: “Todios os homens de negécio possuer em comum 0 desejo de saber, decompreender ede ver claro. Certamente, para ficarem ‘bem informados. Contudo, € seu métier que desenvolve neles «ssa curiosidade de espftito essencial. Sentem constantemente ‘0 de-sejo de conhecer e os acontecimentos para prever outros e deles tirar proveito. A experiéncia suscita neles a certeza de ‘que todo fato possui uma causa; que, para prever, preciso antes saber © que, em todas as circunstincias 6 necessario ter dados precisos, exatos ¢ completos. Essa consciéncia profunda de que uma boa informacio permitiré a agio frutuosa por previsdes criteriosas, constitui a prépria démarche légica do pensamento racional. Os homens de negécio italianos do sécalo XIV agem como se acreditassem que a razfio humana pode tudo compreender, tudo explicar e dirigir sua ago: ndo exprimem isso claramente, mas seu comportamento mostra 0 que eles, sentem sem formular; possuem uma mentalidade racionalista” @). Mas é somente no Renascimento que surge uma certa “filosofia do pprogresso” pela técnica ¢ pela eiéncia. O ideal formulado por Des- carles, de nos tornar “mestres e possuidores da Natureza”,reflete uma realidade hist6rica bem precisa: a realidad produzida por toda. uma série de priticos ¢ de engenheiros transformando, em profundidade, as relagbes dos homens com os demais homens. Descartes, a0 consta- 158 tar os primeiros autOmatas, méquinas produtos do engenho humano, 0 contemplar as fontes artficiais dos jardins dos reis, 08 rel6gios, 05 moinhos de vento ¢ outras maquinas, concebe a idéia de uma ci ativa ¢ operativa, de uma filosofia “prética pela qual, conhecendo 0 fornoe as agies do fogo, da 4gua, do ar, dos astros, los oéus e de todos (0s outros corpos”, podercmos “nos tomar como mestres.e possuidores dda natureza”, da natureza exterior pela mecdnica e da natureza de ‘nosso corpo pela medicina, Animado por esse sonho grandioso de uma cigneia que seria a0 mesmo tempo sabedoria e poder, Descartes acreditou que ela néo poderia ser ocultada ao mundo, mas deveria set colocada a servigo do bem geral de todos os homens. E foi esse sonho cartesiano de uma humanidade liberada pela méquina de sua suj as forgas da natureza, de uma humanidade vitoriosa sobre os males que sobre ela se abatem, que animou @ Europa durante dois séculos @). ‘No 6 por acaso que, jé no século XV, a técnica jé se torna uma das atividades dominantes da sociedade mercantil nascentc. Cultural- ‘mente, sio promovidas as “artes meednicas”, E rompida a tradigio herdada dos Gregos opondo “artes liberais”, praticadas pelos homens livres, e “artes mecdnicas”, praticada pelos escravos. Dissolve-se a tradicional dicotomia entre “tebricos”, cuja atividade era honorifica- da, c priticos, cujo trabalho era menosprezado. O termo “mecdinico” deixa de ser um insulto. Inaugura-se, nos séculos XV e XVI, um ‘movimento cujos prolongamentos serdo chamados de “civilizagdo tée- nica”, de “ciéneia moderna” ou de “civilizagao mecanicista” (5). ‘Doravante, ndose despreza mais o trabalho manual. Pelo contrétio, ‘a teoria se desenvolve numa ligagio cada vez mais estreita com 2 prética, com a observagdo direta © com a experimentacéo. Galileu ‘9p6e o livro da natureza aos livros das bibliotecas. O estilo ¢ 0 campo de exercicio da ciéncia modificam-se em profundidade. Surge uma nova atitude tecnolégica. Dominando a construcio de méquinas, 0 homens aprendem a estruturar o espago segundo novas normas. A ‘méquina afirma sua onipresenga e sua onipoténcia, Fala-se da méqui- na do mundo, dos animais-miquina e do homem-méquina. E-este mito epistemolégica da maquina nasceu na prética, quer dizer, no mundo da produgio. As méquinas sio vistas como espécies de artificios capazes de realizar milagres, Sao vistas como operagies maravilhosas. As palavras “mecénico” e “engenhciro” implicam a idéia de asticia ¢ de estratagema, a possibilidade que o homem tem de descobrir os “segredos” mais ou menos mégicos da Natureza e de escapar as suas 159 leis, A maquina € conhecida porque é construida. Assim, a grande idéia do pensamento mecanicista consiste em dizer que os objetos a serem comhecidos so espécics de méquinas. Eis o ideal da ciéncia experi mental, que estaria na base da chamada “revolugdo industrial”. Eluci- demos essa questo, procurando detectar o papel desempenhado pela ncia e pela téenica no processo da “revolugao industrial” instaurada no século XVIII (1750) na Inglaterra (6). Em nossos dias, muitos ainda interpretam desenvolvimento da ‘técnica, da ciéncia ¢ da indiistria de modo bastante rigido c, mesmo, ‘mecanicista: ou supervalorizam os fatores ou condicionamentos s6cio- cecon6micos, ou fazem da técnica, da ciéncia e da industria entidades desencarnadas, suas interag6es se realizando num espaco hist6rico completamente abstrato. E isto, como se a hist6ria se fizesse sozinha, sem atores humanos ou sujeitos sociais, nao sofrendo impactos espe- cilicos das crengas, das representacdes mentais e dos mitos culturais, Numa palavra, dos impactos da cultura. Ora, na andlisc do desenvol- vimento da ciéncia, precisamos conferir aos fatores “invisiveis” ou pouco visiveis o lugar que € 0 seu. O que estou quetendo dizer & que, historicamente, por detrés da ciéncia, da técnica e da inddstria hé homens com suas representagoes, com suas estruturas mentais, com suas alitudes, com suas convicgdes ¢ com scus mitos sécio-culturais. ‘Numa palavra, hi 0 fenémeno das “mentalidades” que, embora seja tributario do contexto sécio-econdmico, do deriva dele como puro & simples reflexo. O proprio Engels reconhece que “nao ha uma agao ‘autometica do estado econ6mico(...) Osjovens por vezes atribuem um peso maior a0 econémico do que convém” (7). Mutatis mutandis, o que pretendo mostrar € que, historicamente, ‘a chamada “revolugdo industrial” foi muito mais desencadeada ¢ influenciada pelos priticos ¢ artesios do que propriamente pelos te6rieos ou cientistas. Evidentemente, nao faltam exemplos suscepti- veis de lustrar o papel importante desempenhado pelas ciéncias expe- rimentais no processo de evolugio das técnicas industriais de pro- dugio, No entanto, sua influéncia imediata e direta 6 bastante contro- vertida, se nfo contestada. Alguns analistas do infcio da industrial ‘¢do curopéia chegam mesmo a negar a importincia das ciéncias. Eo aso, por exemplo, de Claude Fohlen que, ao explicar as relagoes da ciéncia com a industrializagio, escreve: “O que interessa a indistria€ a0 industrial é menos a invengio do que a inovagio, isto 6, a aplicagio efetiva de uma invengio 160 ‘num ramo industrial. Ora, se as invengées foram numerosas @ partir do Renascimento, poucas dentre elas eram suscepliveis do se traduzir na prética das melhorias técnicas industriais, om razio da grande distancia que separava a astronomia, as mate~ ‘aticas e, mesmo, a fisica, da tecnologia. Contrariamente 00 ‘que poderfamos acreditar, os progressos da citncia moderna no tiveram nenhuma repercusséo pratica sobre a melhotia das t6cnicas (..) As maquinas foram, na origem, simples meios de se fazer objetos inanimados executarem movimentos regulates que, anteriormente, foram executados pelas mos dos homens (.) A eigncia, propriamente dita, também néo desempenhou ‘um grande papel na invengao das estradas de ferro e na nave- ‘gagdo a vapor (..) A inovagio nao aparece como o resultado de ‘uma pesquisa conduzida cientificamente, mas, frequentemente ‘como um feliz acaso” (8). io sii nada evidentes as relagoes entre a ciéncia e a industrali- zag. Tampouco as relagbes entre a “revolucdo cientifica” ¢ a“revo- lugio tecnol6gica”. Como nos lembram dois historiadores ingleses, professores na Universidade de Manchester, A.E. Mussom ¢ E. Ro- binson, as ciéncias ndo possuiam, no século XVI, o grau de institu- cionalizagio ¢ de especializacio que tem hoje. Sua valorizagao prética cra feita, na maioria das vezes, por canais bastante informal “Quando a revolugio cientifica comegou no século XVI, cla constitufa, no essencial, um movimento de metr6pole, centrali- zada na Royal Society. No final do século XVIII, ela se tornara amplamente um movimento de provincia, do qual encontramos ‘uma poderosa express nas numerosas sociedades filosGticas (.) Tais sociedades, fundadas no decorrer dos séeulos XVI e XXVIII, em diferentes partes da Europa, tinham por objetivo difundir omais amplamente possivel osaber; mas contribufram também para que o niimero das descobertas fosse mais impor- tante do que em qualquer outro espago de tempo (..) Scus jomaisvalorizaram numerosas descobertas de grande interesse, ublicaram muitasinformagSes tteis nos dominios os mais variados da ciéncia (..) A promogéo industrial e cientifica se estendeu gracas & fundago de socic- dades com objetivo anélogo nas principais cidades da Europa” o. 161 Outro historiador inglés, Werner Plum, tenta explicar as razdes pelas quais a “revolugio industrial” relegou a certo ostracismo as ciencias da natureza ou experimentais. Em seu entender, a razdio mais relevante deve ser buscada na abdicaco politica das ciéncias naturais, coroliria de sua ideologia mecanicista. Em outras palavras, a pesquisa cientifica encontra varias dificuldades para familiarizar-se com as necessidades econdmicas e sociais de sua época, Em apoio essa tese, fornece os principais argumentos, que sintetizo (10): 1) Aciéncia moderna da Natureza renunciou a colocar-se o proble- ‘ma do “porqué”. Nao estava interessada em ilustrar os fendmenos ppetceptiveis pelos sentidos, mas em descrever um processo emt termos ‘mateméticos. Evoluia para a abstragiio, uma abstragio susceptivel de dar conta de amplos sctores do conhecimento empitico. Com isso, renunciava a tomar forma histérica e a comprometer-se decidida- ‘mente com a “revolugéo industrial”. ') no inicio da industrializacao, era grande a disténcia existente ‘entre a aquisigao da nogio cientifica ou técnica, por um lado, e a invengao ¢ sua aplicacao, por outro. Esse grande intervalo levava 0 pPiblico a darmais atengao aos efeitos mais propriamente tecnolégicos; ©) ademais, nessa época, era pequena a maturidade tecnol6gica das ciencias da natureza. No final do século XVIII, nem todos os instru- ‘mentos cicntificos possuiam ainda um interesse diretamente tecnolé- ggico para as técnicas de produgio. Ciéneia e economia ainda eram cstranhas uma a outra; 4) emcontrapartida,o artesanato, a partir doséculo XVI, fornecia ‘0s meios de se responder as novas necessidades da sociedade. Os artesios, preocupados em melhorar as condicdes da vida cotidiana ¢ mais sensiveis as necessidades sociais, adquiriram e desenvolveram o gosto pela experimentagao ¢ pela descoberta de invengdes novas; ¢) diferentemente das ciéncias naturais, que visavam a abstragio ‘méxima de todos os dom{nios da experiencia, os artesdos © 0s tecnicos do século XVIII estavam bem mais preocupados que os cientistas em responder as exigéncias da moda das socicdades: eram comandadas, tratando-se da beleza das formas ¢ dos objetos acessiveis aos sentidos, poruma espécie de “principio de funcionalidade” que se impunha em ‘quase todos os dominios da atividade pratica. Esta atitude os aproxi ‘mava bastante do mundo artistico. Por outro lado, a economia nao tinha ainda necessidades tecnoldgicas susceptiveis de fazcr apclo a0 recurso do céleulo cientifico. Suas necessidaces eram mais de méqui- nas capazes de acionar instrumentos simples de produgio. 162 Evidentemente, hé historiadores do processo de industrializagao que defendem uma autonomia da racionalidade cientifica em relagao smecessidades econdmicas. Exemplo dessa concepgéo idealista é5.U. Nef. Apés analisar as relagdes entre a ciéncia ¢ a industrializagio, chega, por exemplo, & conclusio de que “devemos procurar a explica- «fo da orientagio dos povos ocidentais para o progresso quantitativo, ‘mas sempre nos lembranido de que essas causas iltimas nos escapam, porque elas residem no mistério do livre arbitrio” (11). A sequencia de seu texto 6 reveladora: ele enfatiza o papel dos “homens de genio”, cextraordindrios por seu “desinteresse intelectual” € por seu poder de “transcender a necessidade econdmica e material” (p. 80). O que é surpreendente, na obra de todos os grandes homens de ciéncia, decla- ra, sobretudo na obra dos grandes mateméticos franceses, “é sua independéncia cm relagéo a seu meio. Todos eles procuravam, por métodos novos, verdades a respeito de problemas colocados em toda parte e desde sempre (..) Quanto mais estudamos a revolucdo do pensamento no final do século XVI e no inicio do XVIT, mais nos parece evidente que ela era essencialmente independente de preocu- pages técnicas de ordem pratica nos dominios econémico, material, da produgio e do transporte” (p.74). Como se pode notar, ele reifica © “espirito” humano, considerando-o como o primeiro motor da his- {6ria, comose a racionalidade cientifica fosse uma entidade metafisica, ‘maisou menos miraculosa, escapando inteiramente a toda e qualquer “causalidade” historia, Por sua vez, 0 historiador ingles David Landes, ao fazer um alentado estudo sobre a “revolugio técnica ¢ o livre desabrochar industrial na Europa de 1750 a nossos dias” (subtitulodo liv) nao nega aimportancia decisva dos fatores econbmicos no desenvolvimento da recionalidade industrial (12). Mas analisa as diferengas, no final do século XIX, entre a racionalidade dos ingleses ea dos alemaes: “O industrial inglés permane-

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