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‘A CARTA DE JERONIMO OSORIO A ISABEL DE INGLATERRA E A REFORMA CATOLICA* Ivo Carneiro de Sousa I. fm 1862, os prelos lisboetas de Jodo Blivio editavam mais una obra do ento j4 famoso humanista portugués Jerénimo Osério. Desta vez, os seus importantes conhecimentos nos dominios das humanida- des e das Letras Sagradas concentravam-se para, atenta e cuidado- samente, realizarem uma longa epistola .,. Ndo se tratava, porém, de uma carta simples e normal, mais um desses mitos textos comque a erudicao europeia cruzava saberes, prolongava rivalidades ou a- gitava polémicas que, com inusitada frequéncia, alimentavam o mil~ tiplicante labor das imprensas do século XVI. A Epistota /Iieronymi Osortt ad Serenisaimam Elisabetam Angliae Reginam, como se podia facilmente ler no estranho rosto da estampagem produzida pelo im- pressor alemfo(1), nao parece constituir, na verdade, apenas uma peca mais da bibliografia epistolar osoriana, da mesma forma que niio se afigura ser, certamente, um texto pautado pela ligeireza: controversa, militante, insinuando-se também em varios estratos das tensdes religiosas e politicas epocais, a carta do nosso hum- nista merece, pelo interesse das pistas que permite abrir na com- preensdo da histéria cultural e religiosa do perfodo em que quis intervir, quer uma descricao atenta quer um clara renovacio das suas modalidades de interpretac&o. Esgotam-se, alias, nestes dois nexos os objectivos principais perseguidos por esta commicacdo,a- postada, centralmente, ha elaboracio de um itinerario de Jeitura que, duplamente descritivo e problematizador, consiga fixar alguns dos significados dessa-carta que Jerdnimo Osério comecava por di- rigir singularmente 4 rainha de Inglaterra, mas que se transforma- va, através da dignidade da impressao, num contacto polémico com piblicos bem mais vastos... Sabe-se, a este propdsito, que a epis- tola nfo sd se tornou, mito rapidamente, célebre e¢ procurada, co- mo também se viria a editar e traduzir em varios paises curopeus -343- (2), evoluindo, assim, para um texto de escopo universalizante que de- ve ser incluido no conjunto das produgdes doutrindrias que, a0 longo de Quinhentos, contribuiram para dissolver dePinitivamente o ocidente cristdo unitdrio representado e Amdado pela inteligéncia e mndo me~ dievais.,. Ocorre, no entanto, que a carta de Jerénimo Os6rio a Isabel de Inglaterra foi, frequentemente, abordada apenas através dessa direc- g@o univoca que, reduzindo o texto a um ousada controvérsia entre um intelectual portugués e uma soberana estrangeira, interpretava os seus contetidos exclusivamente como um lenge, prolixe e, até, temerério a- pelo para que a monarca abandonasse as vias do anglicanismo crescente no seu pais e regressasse, coma sua nagho, ao sagrado convivio da I~ greja Romana... Trata-se de leituras e interpretacdes que podemos fi- liar, cronologicamente, nos debates religiosos europeus dos anos 60 e 70 do S&culo XVI, perfodo em que a mitiplicacio impressa da epfstola foi também aprofundando as polémicas e discussées acerca da qualidade dos seus contetidos e propostas doutrinirios, erguendo-se, entao,prin- cipalmente a partir dos meios eruditos e humanistas ingleses ligados @ corte e chancelarias isabelinas, a ideia de apresentar e ler o tex- to osoriano como um exercicio eloquente e elegante, mas vazio de ide-~ drios importantes, uma obra mis retdrica e latina do que também doue trindria, crist@ e universal... Convém referir, desde jZ, que sO mix to recentemente a critica moderna se comegou a aperceber da necessi- dade de ultrapassar completamente esse tipo de recepcGes € conceptuas lizagdes quinhentistas da carta de Jerénimo Osério (3), as quais, de- masiadamente marcadas pelo calor e veeméncia ideoldgicos das contro- vérsias que opunham catélicos e protestantes, embaracaram a compreens sfo de uma obra com direcgdes propositada e eficazmente compésitas nao sendo sequer de excluir que a opglo pela edicio da epistola constitu isse para o humanista portugués, mais do que uma exortaco 4 regene- yacfio e recuperagiio das parcelas que se separavam do Céu cristo, uma clara convocacao dirigida, igualmente, @ inteligéncia catélica con- gregada em Trento... -344- mais doloroso, sério e, mesmo, assumidamente militante do que prenun— ciavam os seus anteriores contactos com o mundo intelectual inglés a- figura-se residir, desde logo, no evidente cardcter polémico que o nosso humanista pretendeu, desde os primeiros desenvolvimentos, em- prestar ao seu texto: a epistola podia também ser lida e entendida,em certas partes, mas nunca na sua giobalidade, como um largo e veemente apelo para a restauracdo catélica da Inglaterra, um verdadeiro comba- te que a rainha teria de empunhar rdpida e mito firmemente em mios e que deveria comecar pelo pronto afastamentode todos os conselheiros e sectores que empurravam inexoravelmente a soberana para ocaminho cise matico do corte com a Igreja romana. A carta suscitou, como é evidente, fortes reaccdes entre os principais responsdveis pelas chancelarias centrais isabelinas, Che- goUese mesmo a sugerir, sem, contudo, grandes provas, que um exemplar da controversa epistola teria também chegado ao conhecimento da monar- ca que, depois de a ler, a consideraria absolutamente indigna de cré- dito (9)... Be qualquer forma, encorajades ou no pela invectiva da rainha, alguns dos mais altos dignitaries da administracdo e corte in- glesas resolveram organizar uma resposta em form a carta de Jerdnimo Osdrio: o secretdrio William Cecil que se sentira, alias, pessoalmene te atingido pelas contundentes acusacSes da missiva, encarregou o hu- manista Walter Hadden de ripostar através da composicdo de uma carta que viria a ser impressa clandestinamente em Paris, em 1564(10), SO alguns anes mais tarde, em 1567, Osdrio viria a conhecer esta respos- ta do erudito inglés, a qual prontamente originaria da sua parte a ree dacefo e posterior publicagao, em Outubro desse mesmo ano, de um im. portante trabalho doutrindrio, albergado sob o titulo de In Guabterwn Haddonum (11)... A consequéncia mais imediata de todo este aceso pro- cesso polémico foi, evidentemente, a dissolucio da admiracdo que os veferidos sectores de humnistas ingleses fomentavam pela obra e sae beres do nosso humanista, os quais passariam a acusar, de forma cres- cente, © "ciceronianismo" do erudite portugués, tendéncia Literdria e intelectual que se revelaria em termos intoleraveis na sua carta a In sabel de Inglaterra, um texto Finalmente invectivado por Thomas Smith, 0 célebre mestre de Haddon, como um escrite que revelaria eloquentie satis, theologtae ntht2 (12)... Uma sentenca forte ¢ exe cessiva que parece, de facto, ter conseguido estigmatizar nen -346- IL. Jerdénimo Osdrio era um autor conhecido e, tudo o indica,razoavel- mente Lido e discutido nos meios aultos, especialmente, académicos e cortesios, da Inglaterra das décadas de 40 e 50 do século XVI. Parece até possivel ter o humanista portugués chegado a ser uma personalidade bastante grada e, inclusive, admirada pela erudicao humanista inglesa epocal. De facto, alguns dos mais renomados humanistas formados em Ox- ford e, sobretudo, Cambridge de acordo com os métodos da imitatio ex- postos por William Kempe nutriram forte consideracio e atraccéo pela produgao intelectual osoriana: Roger Ascham, Walter Haddon ou Thomas Wilson, por exemplo, sao alguns dos nomes mais sonantes desses secto- res em que a obra do futuro bispo do Algarve era favoravelmente aco- Uhida e estudada (4), Convém também sublinhar que algumas destas per- sonagens ocuparam lugares de relevo na administracdo e corte isabeli- nas, devendo-se destacar muito especialmente o caso de Ascham que se tomou precisamente, a partir de 1548, preceptor latino da rainha Isa bel (5)... Acontece que o humanista inglés era, por esses anos, um dos principais admiradores e correspondentes estrangeiros de Jerénimo Osd- rio, chegando até a introduzir a leitura dos primeiros tratados do hue manista portugués - 0 De Nobilitate e 0 De Gloria - nos conhecimentos © aprendizagem de latinidade da soberana inglesa (6)... E se seguirmos e creditarms as elegiosas opinides que Ascham fez chegar a Jerdnimo Osdrio, a propria rainha de Inglaterra se tinha rendido a qualidade dos textos latinos osorianos, passando também a integrar o significativo grupo de leitores e admiradores que o nosso humanista.possuia para a- 16m do canal da Manchd (7)... Quando a admiracio do erudito inglés por Osério se foivertendoem contactos epistolares mais ou menos regulares, o humanista portugués, informado da dignificante consideracdo que Isabel de Inglaterra devo- tava aos seus trabalhos literarios, teré chegado a anunciar ao seu culto correspondente a préxima elaboracao de uma cuidadosa e sentida saudacfio latina a enviar dedicadamente 4 soberana inglesa (8)... Esta- va-se, entdo, a 13 de Dezembro de 1561 ¢ concluir-se-ia, portanto, que a polémica Epistola ad Elisabetam Angtiae Reginam escoraria o seu nas- cimento num pacifico clima de pouco sobressaltados contactos intelec- tuais que ressaltavam, afinal, do especial interesse que a monarca in- glesa exibia pelo trabalho literdrio osoriano... 0 que parece, contudo, concorrer para se pensar que a carta de Jerénimo Osério teve um parto -345- gativamente o importante texto osoriano: uma ofensiva {inha de defesa doutrindria que propositadamente procurou, com algum sucesso prospecti- vo, descontextuar ¢ alterar os objectivos culturais epocais que o pen- samento catdlico de Jerénimo Osério tentava dilucidar e propagar na sua carta @ Rainha de Inglaterra. Podemos, agora adiantar e precisar que este artigo mais nao pre- tende do que comecar a recuperar a epistola do humanista pertugués para o campo da histéria cultural e religiosa do século XVI - os domfnios provavelmente mais adequados para esclarecer as direccdes e sentidos e~ pocais que o texto procurava fundar e construir -, procurando-se também, seguidamente, descrever as pistas passiveis de atribuir ao documento o- soriano o lugar relevante que ocupou no seio das polémicas doutrindrias @ teoldgicas que foram construindo as novas geografias confessionais dos mundos cristos europeus. III. Fixar o lugar e a importancia que o texto de Jerénimo Osério se esforcava por ocupar nos combates religiosos do seu tempe passa, pri- meiramente, pela fixacZo o mais rigorosa e aprodundada possivel dos scus principais conteiidos polémicos. Netalhar estes grandes veios polémicos obriga, por sua vez, a uma descricSo densa desta obra do nosso humanis- tas. Tudo parece comecar sob a signo da quietacéo do mais comm dos contactos epistolares, ja que Osério ao abrir o seu texto por uma elo- giosa homenagem & soberana inglesa, motivada por ter noticia de quanto ereis dotada e dos vossos largos conhecimen- tos nas letras gregas e latinas, e como juntiveis a dignidade ré- gia com a liberal erudicfo, (13) teria, entdo, urdido a sua carta na senda de um saudacao intelectual entre personagens cujas diferencas de posicionamento estamental e hie- rarquico ditadas pelo abismo profundo que, epocalmente, separava o sib- dito e a soberania, nfo conseguiam esconder e menosprezar a solidarie- dade cultural estribada nesses conhecimentos das letras gregas e lati- nas, firmado, afinal, nas humanidades. Trata-se, evidentemente, de er- guer direccSes culturais capazes de justificar a inusitada construcio epistolar osoriana e tentar dissolver e acautelar a irreveréncia que po- deria ressaltar da opc&o por um destinatario tao elevado. Estas primi- cias e mito retéricas primeiras linhas da carta de Osdrio a Isabel de -347- Inglaterra sd aparentemente, contudo, contribuiam para corroborar os nexos anteriormente expostos acerca do pacifico e vulgar nascimento des- tes contactos epistolares... Na verdade, rapidamente, a carta opta por uma linguagem mis séria e elevada, tentando objectivar e reter a sua funcionalidade a partir de uma inteligente apropriacao da admiragio da rainha Isabel pela qualidade do labor osoriano, cruzamento que permitia, obviamente, dignificar e justificar a prépria producdo da epistola: E nao duvido de que haveis de receber esta minha carta com a mes- ma humanidade com que assiduamente ledes os meus optisculos - se nao € verdade que experimentais enorme deleite na sua leitura -, tanto mais que esses se destinam 4 utilidade comm, enquanto esta carta visa a particular defensio de vosso estado e o florescimen- to de vossa altissima dignidade. (137-9). Como se pode reconhecer facilmente nestas Ultimas palavras, torna-se bastante claro esse aproveitamento funcional que Osério faz da fama das suas obras na corte inglesa para imediatamente marcar a sua carta por dois interessantes niveis e propostas de leitura: um primeiro centrado na inteligéncia da eruditione liberal e um segundo, mais ideoldgico e politico, erguendo-se a partir da defesa da dignidade régia. Conquanto exista uma Obvia relacHo dialéctica entre esses dois niveis e possibi- lidades de leitura torna-se importante reter a sua enunciacdo porque,ao longo da carta, os seus cruzamentos aparecer-nos~Go constantemente mais complexos do que a simples relacdo entre form e conteiidos ou entre hu- manidades e idedrios politicos... De qualquer modo, parece evidente que © primeiro sentido realcado por Osério desde os andamentos iniciais do seu texto consistia em direccionar as disciplinas liberais para o estu- do da funcdo régia, isto é, apresentar a carta como uma leitura erudi- ta e humanista do poder do principe - a leitura erudita de um humanis- ta precisamente conceituado e admirado pelo proprio principe que queria defender e aconselhar.,, A continuacio do texto aprofunda, de facto,es- ta associacio, comecando a detalhar um itinerdrio em que se visita e¢ discute os grandes carfcteres que individualizavam e marcavam o poder régio. Assim, para dar inicio 4 matéria sobre que me propus escrever, costumo com mita frequéncia admirar nos reis a providéncia de Deus, pelo facto de, sobre uma miltidao quase infinita de homens, formada por -348- naturezas tao diversas e profundamente opostas entre si, Ele ter incutido a predisposic¢fo de quererem prestar particular obedién- cia a um sd, de se submeterem as ordens de um iinico e de se vin. cularem as recomendacdes e leis de uma sO pessoa, de tal maneira, que, embora os homens disputem miitas vezes com acerbo ddio ¢ discordem desenfreadamente acerca dos demais assuntos, sd nesta questo se encontram quase sempre de acordo e dentro do maximo consenso. (139) Comprova-se nestas ideias que o primeiro grande andamento da carta a I- sabel de Inglaterra decorreria em torno da discuss%o do tema dos pode~ res régios... S6 que se tratava de uma viagem guiada e regrada desde os primeiros passos: nfo se discutia um qualquer principe, mas exclusiva- mente o soberano cristao, entendido como o monarca cujo poder se filia-. va na providéncia divina, ao mesmo tempo que se procurava estudar as principais modalidades que ditavam as suas relacdes com os stbditos,com © reino... A investigacao inicial cura, portanto, desde logo, de apre- sentar o principe como 0 centro e a confluéncia que extrapassava das disputas e diferencas do século, um principio normativo acerca do qual, segundo Osdrio, reinaria amplo, se nfo mesmo unfinime consenso. A carta aprofunda, de seguida, este importante conceito do principe como vefcu- lo de unificacao e centralidade, posicao elevada e quase transcendente capaz de harmonizar e homogeneizar a sociedade epocal porque De facto, nada ha de maior grandeza e exceléncia, nada mais ar~ duo e dificil, do que refrear a cobica dos homens, cercear as paixdes, defender a inocéncia, cativar com prémios a virtude,re- primir a dissolucao com penas e suplicios e fazer, enfim,com que a Repiblica inteira floresca em paz e tranquilidade constituidas e viva na abundancia de todos os bens,., (139) E @ na base desta verdadeira sobreposicdo entre principe e republica, confiando aos dominios de aplicacHo do poder régio a propria sorte, se- ndo mesmo, a prépria histéria do reino que Jerénimo Osdrio se permite reiterar esse principio tradicional que fazia com que os poderes ter- Testres da soberania fossem exclusivamente entendidos como um verdadei- ro espelho da magestade divina, pelo que os principes devem ser contados no niimero dos seres celestes e tidos como uma espécie de deuses no meio dos homens.(139) Chegados a esta definicao da epistola, os leitores do polémico -349- texto osoriano possuiam, fundamentalmente, uma introducZo que os ape- trechava com alguns conceitos impressivos: sabiam que, primeiramente, o grande temario que plasmaria todo o desenvolvimento da carta se centra- va e, ao mesmo tempo, ressaltava do esclarecimento e defesa dos pode- res que, por verdadeira delegacdio divina, se concentravam nos principes cristaos, da mesma forma que conseguiam ainda recolher facilmente a i- deia relevante da centralidade de toda a soberania que, em consequéncia, funcionava como o centro unificador das miltiplas diversidades do soci- al e do cultural ("cobica"', "paixGes", "dissolucdo") - 0 poder, enfim, responsvel pela ordenacio da vida e destinos dos estados territoriais cristdos.., Trata-se, de resto, de nexos absolutamente tradicionais, pouco ou nada inovadores, alguns dos quais haviam-se mesmo sistematiza- do definitivamente desde o final da Idade Média, invadindo depois, ao longo do século XV, miitos dos regimentos, tratados e doutrinas de prin- cipes que se miltiplicaram, editaram e leram um pouco por toda a Europa. De qualquer forma, importard reter que 0 texto osoriano comeca por as- sumidamente se estrear a partir de motivos, principios e concepcdes an- tigos acerca dos poderes monarquicos que se encontravam ja longamen- te adquiridos ¢ conceptualizados pelas doutrinas e actividades oficiais da maior parte das scberanias europeias: ideias acerca das quais se re~ gistaria grande consenso politico, ideolégico e social... 0 texto oso- riano, contudo, procuraria longamente actualizar aquelas nogdes, cone frontando-as, principalmente, com as realidades e problemas epocais, tentando debuxar, afinal, um retrato actualizado do monarca cristao, conquante claramente ligado e preparado pelas licdes e opcdes do passa- do, da tradicdo e da histéria... E para se reflectir sobre a actualida- de daqueles preceitos que melhor campo de observacGes se poderia encon- trar acerca do presente das soberanias do que essa mesma Inglaterra em que uma rainha crista se encontrava como que cercada por forcas, pres- ses e grupos que procuravam cortar com aquele conjunto de principies mais essenciais e sagrados que acometiam 0 poder concentrado e confiado ao principe? Poderia, por exemplo, ser "actual" e actuante um monarca que exercesse a soberania contra o passado e a histdria? Conseguiria assim resolver os graves afrontamentos que, dividindo o seu reino,frac- turavam a propria soberania? A partir daqui a carta de Jerénimo Osério comeca a concretizar- -se, comeca, igualmente, a fulanizar-se, aproveitando~se, mis do que -350- adquirindo, de algumas das caracteristicas culturais e literdrias que individualizavam os contactos epistolares epocais, Assim, experimentan- do aplicar varias especificidades préprias desse "género" literdrio, 0 humanista portugués que, jf 0 sabemos desde as linhas anteriores, es- creve e discute sobre o tema da soberania secular, singulariza o seu discurso na figura de Isabel da Inglaterra, quer dizer, comecaa reflec- tir acerca da situacfo e actualidade da soberania inglesa de que a ra- inha era, ent&o, a depositdria, melhor, o seu proprio presente, a sua histéria.,. E a epistola retoma, ainda mais sentidamente, os tdpicos i- niciais em que se elogiava a monarca inglesa, até porque Na verdade, que hd mais admirdvel do que avultar numa mither uma constancia viril, numa donzela a matura prudéncia dos velhos e, numa tamanha abundancia de recursos, tamanha e tao louvavel mo- déstia? (141) Uma pergunta, evidentemente, retérica, apressando-se Qsério a concluir, utilizando, porém, um registo propositadamente prospectivo, pela exage- vada ampliacio das qualidades impares de Isabel de Inglaterra, profeti- zando que haveis de causar, com a amplitude do vosso notabilissimo presti- gio e dignidade, o obscurecimento de todas as virtudes das maii- ores rainhas.., (141) Conclusdo de tal modo hiperbélica que viria, alguns anos mis tarde, a causar fundada estupefaccdo em alguns editores catdlicos da epistola do humanista portugués (14), os quais, afastados das condicdes epocais que contextuaram a sua producao, nao conseguiam entender aquela imoderada celebracao da cabeca coroada que acabaria por, em termos definitivos,ae fastar a Inglaterra do convivio da Igreja romana. Corria, no entanto, que a exoneracio da soberana inglesa jogava um papel mediador importan- te, tanto retdrico com estratégico, na construcao e desenvolvimento do texto osoriano, representando, como veremos, uma opcdo voluntdria que reafirmava 0 comprometimento da carta com uma discussfio e investigacio hodiernas acerca, fundamentalmente, das condicdes e caracteristicas que deveriam actualizar e orientar 0 exercicio da soberania crista e nao com a reandlise e reinterpretacdo das condicdes que legitimavam esse poder, um problema que o autor pretendera, em termos preceituais,resal- ver nas primeiras linhas da epistola, De facto, concluido aquele verda- deiro elogio da figura de Isabel de Inglaterra, Jerénimo Osédrio consi- -351- derava suficientemente exordiado e preparado o caminho que o conduziria, seguidamente, 4 doutrinacio das qualidades que enformavam obrigatoria- mente a funcdo régia fazer e para, ademais, se considerar legitimamente posicionado para re- . Mas, qual a sua autoridade e competéncia para o flectir sobre a soberania na Inglaterra isabelina do seu tempo? Estamos, com estes problemas, na zona provavelmente mais despro- tegida e fragil do texto osoriano. Alids, o nosso humanista opta também por, utilizando um registo interrogativo, questionar, afinal, a licitu- de da sua propria carta: Mas direis vés talvez: "Achas, porventura, que estou de tal modo desprovida de amigos e conselheiros, que pretendas agora dar-me conselhos? Qu é assim tao grande o teu dcio dos negécios de Por- tugal, que queiras preocupar-te com a Inglaterra?" (143) Dois bem arranjados quesitos que "obrigavam" Jerdnimo Osério a diluci- dar imediatamente que ha em Inglaterra muitos homens sabedores e dotados de singular fama de virtude e dedicacZo, e, se Ihes derdes ouvidos, haveis de prestar preclara utilidade a vés mesma e ao vosso reinoe man- tereis de form distinta a honra e a dignidade régias. (143) Eram afirmagdes que, todavia, nZo conseguiam esclarecer a autoridade que assistia ao humanista portugués para reflectir e escrever acerca da so- berania da Inglaterra, mas que o ajudavam a erguer uma justificacio e enquadramento epocalmente plausiveis das opgdes seguidas pela epistola @ que se escorava, como ja se ia adivinhando, no instituto do conselho prégio e na sua aumentada importancia politica e cultural no conjunto das monarquias europeias do século XVI... 0 seu polémico texto, a sua ousa~ da carta mais nao pretendia ser do que um conjunto de conselhos especi- alizados e intelectuais generosamente dirigidos, melhor, oferecidos @ rainha de Inglaterra, a qual nao deixaria de perceber que De resto, os conselhos dados por estrangeiros sao geralmente me~ nos suspeitos, £ que miitas insidias se armam aos principes por parte dos seus domisticos; mitas fraudes se cometemnacorte ré- gia por causa do interesse e do lucro; mita coisa se dissimia, quer por adulacao e perfidia, quer por medo de perigosa aversao, de tal modo que raramente se encontra quem ouse falar aos reis a vontade. (143) Tratasse nestas ideias de pretender debuxar uma evidente linha de defe- -352- sa justificativa dos contetidos e direccio eleitos pela epistola, os quais nao deixavam, porém, de constituir nexos frageis e ambiguos, na medida em que seria relativamente facil aos adversdrios das propostas do nosso humanista comprovar com autoridade o crescente caracter nacional e, inclusive, especializado que a instituicao do conselho régio assumia nos estados territoriais europeus da Epoca, obrigando miitas vezes a in- vestimentos culturais importantes nos dominios da formacZo e especiali- zacio de conselheiros... Muito possivelmente, seria mesmo Jerénimo Os6- rio que nio se mostraria excessivamente preocupado em legitimar profun- damente 0 seu texto perante a soberania e cortes inglesas do seu tem- po.., Tal parece, alias, colher-se na forma extremamente rapida usada pelo humanista portugués para abandonar a avaliacdo da sua epistola co- mo um acto intelectual adequado quer 4 sua posic&o profissional quer 4 pratica dessa instituicZo do conselho na qual o seu labor literario e posicao cultural se poderiam integrar. Na verdade, prontamente, o dis- curso osoriano opta, através da utilizacao de um registo progressiva- mente mais universal do que unidireccional, por estudar e esclarecer os grandes veios que deveriam assinalar as soberanias cristas epocais: Ora, para entrar no assunto que me propus, duas coisas devem to- dos os reis, antes de mais, considerar: por um lado a excelén- cia do mus que receberam e, por outro, a dificuldade de o ad- ministrar, (145) Retenha-se ,portanto, que a caracterizacdo dos poderes régios em que 0- s6rio se prepara para entrar continua a nao prescindir da reiteracao constante dos principios relativos 4 origem do poder, conquanto passe a interrogar preferencialmente 0 préprio exercicio da soberania ~ dois ei- xos que permitiam ao discurso do nosso humanista comecar também a agi- tar dois temas que acabariam por se mostrar fundamentais no conjunto do seu pensamento e da sua bibliografia, Em primeiro lugar, quanto 4 exceléncia, ela €, na verdade, tao grande, que difi- cilmente se pode imaginar outra maior na vida. Pe facto os reis sao, todos eles, em’razdo do seu cargo, vigdrios do direito di- vino. Com efeito, € coisa divina distinguir-se tanto um sd en- tre todos, que todos, com o maximo consenso, se confiam 4 sua regéncia e protecc&o e consideram que na sua prudéncia, valor e bondade esta colocada a mais firme defesa da salvacfo da sua propria vida e da dignidade régia. (145) -353- Repare-se, desde jd, que a assinalada crescente universalidade no de- senvolvimento da trama textual invade, igualmente, o préprio plano das ideias e dos conteiidos: importava, requestando "os reis", "todos eles", procurar captar e preceituar as regras de um soberania que es~ pelhasse precisamente a propria ordem divina, ja que os principes e- xerciam o seu minus por deacdo providencial, de Deus, sendo, verdadei- ramente, no século "vigdrios do direito divino". E este tipo de poder régio por delegacdo divina comeca por ser, seguindo as propostas do humanista portugués, um factor miltiplicador de consensus: umnexo que veicula um dos conceitas mais importantes desta epistola a rainha de Inglaterra como também de toda a obra doutrindria osoriana. Um cone ceito que, epocalmente, servia para erguer uma soberania que deveria ser um polo de unificaco ¢ haxmonizagfo de todo o devir, responsdvel também pelo conjunto de interrelagSes entre os sibditos e o principe, investindo, afinal, 0 consensus como o tmico trilho adequado para fire mar a histdria da salvacdo do reino,., No entanto, exercicio da sche. rania, duplamente, estribado e reproduzindo o consensus era uma via complexa e cheia de escoihos que interrogava e desafiava as préprias qualidades e disciplina do monarca> Com efeito, se € bastante dificil a qualquer um conter todos os seus desejos, cercear as suas paixdes, reprimir com a razio es motins do sentimento, manter com recta moderagde a estabi- lidade geral da sua mente, para nada surgir que possa, com ime peto turbulento, ahalan o seu animo, quanto custard, enfim,re- primir no apenas os seus préprios desejos, mas as paixdes de todo um povo, de maneira que faga derruir a estabitidade da Re- publica? Domine-se, pois, primeixo a si mesmo aquele aquemfoi imposto tamanho cargo (pois nae pode quebrar as peixdes dos outres quem nfo coihe primeiro as suas), e modere depois com a vaz3o as agitagdes de toda a Repiiblica... (145) K semethanga da ideia de consensus, este € 0 segundo grande eixo que, para o pensamento politico osoriano, deveria orientar o exercicio da soberania: a autodisciplina, 0 autocontrolo do préprio principe. Tam bém neste caso se trata de um motivo amplamente glosado e sucessiva- mente apurado nos trabalhos e tratadss posteriores do nosso humanista, -354- Contudo, para Os6rio, este autodominio seria mesmo um dos dominios, ao mesmo tempo, mais importante e dificil de atingir, mas que jogaria um papel quase indispensdvel na estabilidade da respublica e, mesmo, na reproducao do consensus como norma de ordenamento das relacées entre o monarca e os sibditoss A partir da declaracio destes dois caracteres axiais do exer- cicio da soberania - os conceitos de consenso e autocentrolo -, a car- ta de Jerénimo Osério a uma Isabel de Inglaterra que parece ter sido quase esquecida no desenrolar da marcha textual discute, com alguma a- tengo, como, alids, seria licito esperar-se, as grandes balizas que deveriam marcar o instituto do conselho régio, Neste particular,o fu- turo bispo do Algarve procura explicar que, da mesma forma que os reis exerciam a sua soberania por preclara delegacdo divina, também a ins- tituicéo do conselho, sendo doacHo e criacio do soberano, teria que re- flectir e espelhar as qualidades tradicionalmente agitadas como efica- zes e actuantes na acc&o do bom principe crist&o. Assim, Osdrio postu- la que Importa, pois, chamar para o grupo da administracéo do reino muitos homens que se notabilizem pela abundancia das virtudes régias, isto &, pela justica, temperanca, fortaleza, pondera- clo, constancia, Liberalidade, e por aquela que encerra todos os titulos de prestigio, a sapiéncia. (147) Para além destes principios gerais, © nosso humanista pouco mais adian- ta de relevante acerca das qualidades que deveriam ostentar os conse- Iheiros da soberania, encerrando mesmo neste tema o primeiro grande an- damento da sua carta por consideran que havia j& ¢iscorrido suficien- temente sobre um conjunto de questGes fundamentais passiveis de condu- zir os seus leitores a concluir que ndo devemos chamar ricos e poderosos aqueles reis que possuem montdes de ouro, pérolas sem conta a brilhar de admirdvel fulgon, a mixima quantidade de marfim e grande abun- dancia de metal, e que imperam sobre variadi'ssimas nacdes, mas antes aqueles que tem mitos homens distintos com fidelidade e valor, ligados a si pela sacratissima alianca de amizade e, tanto quanto a razao da régia majestade o consente, pela par- ticipacado de todos os bens em sociedade, (151-3) -355- Acentuando, assim, fimdamentalmente uma leitura triplice das fimcdes régias que associava 0 cardcter social e politico de canceite de cone eensus com Oo nexo mais ético e individual gerado pela ideia de autodo- minio, Osério preocupava-se ainda em agregar aqueles dois principios a importancia da instituicGo do conseiho, um elemento especializado e técnico que acaba por, afinal, englobar e ressaltar da sua prépria ac tividade intelectual, pelo que, em termes conclusivos, era, maiormente, © casamento de um principie moralmente Drrepreensivel com uma sobera- nia geradora de um consenso undnime o enlace procurado por esta pri. meira parte do texto. Uma relac&o, porém, impossivel ou, pelo menos dificio de perpetuar e renovar se o monarca niio soubesse rodear-se dos melhores conselheiros,., Nesta perspectiva terminal, a epistola de Je- rénimo Os6rio a Isabel de Inglaterra ndo parece funcionar apenas como um conselho, mas como uma redifinicde e renovacdo da prépria institui- fo do conselho régio, quer dizer, a carta assumir-seeia como um exem- plo, um paradigma da actualizacZo da importancia epocal do conselho... Seria também o nosso humanista, em consequéncia, um novo exemplo uni- versal e actual de conselheiro régio? IV. Era o proprio texto osoriano a indicar aos seus leitores que uma primeira grande rea normativa se encerrara em torno da reflexdo da- queles temrios que o nosso autor considerava ligados 4 conceptualiza- ¢ao secular dos poderes do principe. De facto, ao procurar orientar e dirigir a leitura da sua epistola, OsOrio fractura-a em duas zonas su- cessivas complementares - Mas quanto ao apoio humano, estas palavras bastam; por conse- quéncia, abordemos o divino -, (153) as quais devem ser entendidas como uma discuss@o de todas as conse- quéncias que a origem divina do poder implicava na actualizacio dos poderes régios. E poderd até julgar-se surpreendente como € que uma carta editada em 1562 se preocupava tao fortemente em procurar reduzir e, até, dissolver qualquer tipo de praxis exclusivamente secular da soberania, uma tendéncia politic epocal que tem sido apresentada,fre- quentemente, como um dos rasgos mais originais do Renascimento... So- bre este assunto, 0 texto osoriano nado abriga ambiguidades, abrindo o seu segundo grande andamento tematolégico com uma propositada reitera- cio normativa de que -356- & pelo poder de Deus, por seu conselho, por sua vontade, que os reinos nascem, cresceme se mantém; € pela sua mente e razio que eles se governam; é na sua ajuda e auxilio que e- les se apoiam; &, enfim, pela sua aversio que eles vacilam, desabam e se destroem. (153) Um principio axial para o desenvolvimento futuro do pensamento politi- co do nosso humanista e que Ihe permitia nesta carta chamar a aten¢io para a ideia e prescricio centrais de que os poderes régios no pos- suiam somente uma direcoGe secular, nem eram sequer também apenas um comprometimento estreito com a respublica, porquanto deviam seguir, i- gualmente, objectivos e orientagdes sagrados e sobrenaturais, obrigan- do a que 9 principe que queira, pois, continuar no exercicio do seu cargo a executar com eficdcia o poder a si cometido,deve ter como prioritdria a preocupagio de prestar, com pureza e san- tidade, 0 culto da religiZo, de implorar com assiduas preces, a ajuda de Deus e de persuadirese de que toda a ratio da é- xito na administagao do reino consiste em aplacar o Poder Divino, (153) Prosseguindo nas paginas seguintes a exploracao do veio aberto por es- ta doutrina, Jerénimo Osdrio arrisca, de seguida, explicar todas as principais competéncias da soberania coma manifestacdes e reflexes da omipresenga também secular, normativa e predominante, da autoridade de Deus, produzindo assim nfo apenas uma verdadeira sacralizacao do po- der civil que quase dissolvia inteiramente os seus espaces de autono- mia temporal, mas ampliando ainda o conjunto de consequéncias que a O- rigem divina e sobrenatural dos poderes impunha ao exercicio da fumcdo régia, lembrando, portanto, que S6 Deus, na verdade, 6 a forga, a mente e a razio da lei, a fonte do direito ¢ a origem da equidade, o pai de toda‘a jus- tiga por cujo diving poder se estabelecem e por cujo auxflio € beneficio se conservam as proveitosas e salutares leis da Repiblica, Donde se segue que $6 rebrilham com o esplendor da justica aqueles que contemplam aquela luz da justica suprema e sempiterna, (157) Face a esta ligdo claramente preceitual ¢ definitiva, podersnos-iamos interrogar, 4 semelhanca do que provavelmente fariam os leitores des- -357- ta carta mais comprometidos com actividades e servicos ligados aos po- deres territoriais epocais, se aquela auténtica sacralizacfio das sobe- ranias seculares nfo constitufria uma perigosa reducdo da autonomia e autosuficiéncia da funcio régia, passivel até de invalidar o seu papel central na recomposigao das diversidades, interesses e afrontamentos que constituiam a respubfica .., Na realidade, era precisamente o con- trdrio - 0 reforco do poder do principe cristGo - um das grandes di- recgdes constantemente seguidas pela carta do humanista portugués. A- tente-se que, apds reiterar com alguma prolixidade a ligacdo hierar. quica entre a autoridade divina e o monarca, Osdério optava por trans- formar este conjunto de principios numa virtude actuante que deveria passar a constituir atributo e patrimdnio primaciais do principe cris- tio. Trata-se, evidentemente, da virtude da reZigido. Se Deus era, co- mo se tinha asseverado, a fonte de toda a soberania secular e se esse principio habitava o principe na forma de uma virtude, entfo esta era mediatamente responsdvel central e sobrenatural pelo proprio exercicio da funcfio régia ec, inclusive, pelas grandes linhas de forga que pautae vam o devir e a histOria da nespublica,,, Esta conclusao permitia ao e- rudito portugués explicar ainda melhor o funcionamento de um dos valo- res que agitara na primeira parte da sua epistola: E se a concOrdia conserva ¢ aumenta a Repiblica, e a discdr- dia a dissipa e enfraquece, e se a Religifo do principe, de- monstrada na gesto do Estado, conglutina esta concérdia dos cidadaos entre si, peis que todos obedecem, como maximo con- senso, a um principe religioso e se obrigam de bom grado ao seu comando, conclui-se claramente que nela se deve colocar © supremo sustentacuie da Repiblica. (161) Repare-se na forma objectiva come o humanista portugués associa em ter- mos de dependéncia © principio ideal da swrna consensiene com a virtu- de da religido, fazendo assim depender da estreita peligiosidade do principe a concretizac&o do nexo substantive do consenso, entenda-se, as possibilidades de concrecSo, afinai, de uma soberania capaz de re- produzir a conc6rdia e evitar as fracturas e contradicdes, Jerénimo 0- sOrio vai ainda mais longe, elevando a religio a um lugar central e¢ insubstituivel na construgao des caracteres exemplares que deveriam informar o principe, os quais, aspergindorse pela respublica, poderiam servir para serem eficazmente imitados pelos seus stbditos, até porque ~358- como toda a Repiblica imita os costumes dos principes, neces- sariamente, se um principe for egrégio devoto da religido e da piedade, a RepGblica inteira junta-se 5 mesma religifio. Ora a religido refreia a cupidez, reprime a petuldncia, quebra a in- soléncia, cerceia a temeridade e a audicia e torna os homens moderados e obedientes @s leis e aqueles que as defendem. Nada ha, com efeito, mais eficaz para conter a imoderagao da cupi- dez e reprimir a jact@ncia e a leviandade como 0 temor divino. (en) Compreende-se, assim, que a virtude da religifo constitufa pre- cisamente a janela, talvez, inclusive, a tnica, capaz de permitira co- municacio da seberania com Deus, a fonte de onde emanava a sua autori- dade superior ¢ 20 mesmo tempo se concentrava a legitimidade do seu por der providencial. Consequentemente, de seguida, a epistola esoriana procura, recorrendo a algumas perguntas de resposta Gbvia e unidirec- cional, fazer coincidiy a prépria soberania com a centralidade da re Ligido: Se, pois, a religifo, na paz, torna os homens modestos e tem- perados e admiyavelmente unidos nos mesmos sentimentos de amor entre si, e livre e dedicadamente obedientes as leis e as or- dens dos principes, e se, na guerra, os corrohora com wna par- ticular forca divina e os inflama com o desejo da etemidade, de tal maneira que eles oferecem a Patria, do melhor bom gra- do, o seu sangue e vida para voarem ao Céu, acaso nfo fica claramente demonstrado que toda a preocupacao e todo o pensa- mento de um rei que deseje vivamente cumprir o seu dever tém de ser postos no zelo da Religife?(163) Trata-se de uma questdo que, para © pensamento osoriano, apenas permi. tia uma tinica resposta ébvia, geral e positiva.,. No entanto, erguida a partir daquele que era o principio mais recorrentemente agitade por este segundo andamento de seu texto - a associagio da soberania com a centralidade da religido ~, era esta pergunta absolutamente retdrica que permitia ao nosso humanista enfrentar as consequéncias mais polé~ micas dos seus principios investidos, aparentemente, de unanimidade e passiveis de recolher o apoio dos diferentes poderes territoriais que compunham a Europa da peca, Era preciso, todavia, que os leitores do texto osoriano compreendessem definitivamente que a transcendéncia e a -359- harmonia com que a religifio plasmava as soberanias ressaltava exclusi- vamente de uma verdadeira e unigénita tradicio, hist6ria e adesio re- ligiosas, porque, com efeito, se nada € mais contrdrio 4 virtude do que o simu- lacro da virtude, entSo na religiao fingida isso torna-se da n&xima evidéncia, pois que um crime monstruoso, fraudulenta- mente envolto no nome da religido como que numa falsa cobertu- ra, encarregaese de apagar toda a Religido e de extinguira me- méria do celeste Poder Divino. (165) Construfdo este divisor, o nosso humanista podia mudar fimdamentada- mente o tome registo da sua carta 4 rainha de Inglaterra. De facto, o erudito portugu€s encontrava-se ja suficientemente armado, com bem es- clarecidos princSpios acerca das caracterfsticas centrais que deviam informar os poderes régios crist@os, para poder enfrentar, a seu ver, com sucesso, alguns dos principais travejamentos doutrindrios utiliza- dos pelas correntes protestantes para erguer e fundamentar concep¢des outras de entender a soberania. Jerdénimo Qsério podia, portanto, en- cerrar neste ponto a segunda grande parte do seu texto, pois consegui- ra eficazmente casar toda a discussao inicial acerca da origem e cxer- cicio do poder régio com uma exornagSo do papel axial que a religifio jogava na harmonizacio, homogeneizacae e, até, na histéria da reepu- bliea, finalizando mesmo por fazer com que os dominios de aplicacio da soberania coincidissem com os grandes principios religiosos,,. Na ver- dade, Osrio conclui, precisamente, neste nexo relevante o segundo an- damento da sua carta, nao sem preparar os seus leitores para um debate mais polémico, dificil e actual através de um apelo ao entendimento ¢ mediacdo tolerantes e receptivos de Isabel de Inglaterra - E neste ponto que eu, Altissima princesa, mite preciso da vos- sa compreensie (prudentia) -, (105) que deve ser entendido, mais genericamente, como um apelouniversal de- safiando todos os grandes poderes territoriais epocais cristaos a in- tegrarem reflexivamente todas as consequéncias que a adesfo 4 verda- deira religidio impunha ao exercicio da soberania secular, -360- V.

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