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D. Pedro oat eke oe mcone nt tnt dois personagens em conflito mutuo Um, mais conhecido, é o imperador d. Reka meee eno tes se meio século, de 1840 até a proclama- OREN Contin ie Meets KO MeLton: Pedro d’Alcantara, cidad&o comum, que amava as ciéncias e as letras tanto quan- to detestava as pompas do poder. “Foi um Habsburgo perdido nos tr6- picos”, escreve 0 bidgrafo, ao retratar 0 mais inusitado descendente dessa linha- gem de reis e imperadores austriacos. Sree erect eee eerie ra, cabelos louros, olhos azuis ¢ longas barbas precocemente brancas — con- sue trastava com a mestigagem da ma dos stiditos. Da mesma forma, a imagem de cavalheiro cosmopolita, estudioso € cortés parecia combinar mal com a reali- Ci Ye CcaeCcotn nly ren cnepecomre po) Carte nnTore (ore nidade do século XIX, ainda mantinha a escravidao em todo 0 seu teritério. O que 0 lado puiblico do imperador tinha de austero, o- privado tinha de timi- COMA WETRKIhrorclCoKto Ke Koy pH Tee ICCA xara fama de escandaloso ¢ mulheren- go, d. Pedro Il aceitou com resignagao, recent Neem Ma ner tral rarer Cristina, cujas feicdes o decepcionaram logo 4 primeira vista. Nem por isso ele BOE SVN S UNTICK DEEN NET SITE TCeKen Tene Cel HPC Eee Ceo Ne CO STs LEN BRCLul Les NGA UTE MGA ICON Com Como governante, passou a vida tentando encarnar o papel de seryidor publico exemplar e equilibrado prote- tor das leis e do Estado. Mas essa mas- cara escondia um homem cheio de coniradigdes, oprimido pela solidao de pertis brasileiros aes Ip er “os bie D. Pedro 11 José Murilo de Carvalho 6# reimpressdo coordenagao Elio Gaspari e Lilia M. Schwarz ComMPANHIA DAs LETRAS copyright © 2007 by José Murilo de Carvalho capa e projeto grafico warrakloureiro imagem da capa colecdo particular pesquisa iconogréfica ‘Vladimir Sacchetta/Cia. da Meméria Carlito de Campos/Cia. da Memoria pesquisa adicional para a cronologia Rafaela Deiab legendas André Conti Lilia M. Schwarez preparaco Marcia Copola estan 2 scmmerecae ee TES wet eso nate indice onomastico Miguel Said Vieira revisao Claudia Cantarin Carmen S. da Costa Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagdo (cir) (Camara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Carvalho, José Murilo de D, Pedro 11 / por José Murilo de Carvalho; coordenagao Elio Gaspari e Lilia M. Schwarer — Sio Paulo: Companhia das Letzas, ISBN 978-85-359-0969-2 1. Brasil ~ Historia 1. Reinado ~ 18401889 2. Pedro 1t, Impera- dor do Brasil, 1325-18. 1. Gaspari, Elio. 1, Schwarcz, Lilia M. o7-0053 cop 923.181 Indice para catélogo sistematico: 1. Brasil: Imperadores: Biografia 923.151 [2007] todas os direitos desta edicio reservados a EDITORA SCHWARCZ LTDA. rua Bandeira Paulista, 702, ¢j.32 Paulo — sp 532-002 — tel. (11) 3707-3500 fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br D. Pedro 1 Ser ou nao ser Sumario 1. D. Pedro ue Pedro d’Alcdntara 9 2. Orfiio da nagaio 1 3. Povo, canhes e lagrimas 19 4. Fabricando o principe perfeito 26 5. A corte mais triste do universo 34 6. Um imperador de catorze anos 36 7. Aprendendo a governar 44 8. “Enganaram-me, Dadamal” 50 g. “O Parand nao se curvava” 54 10. Noites de Atenas e outras noites 62 u1. Auto-retrato 76 2. Receita de governante 87 13. Monarquia sem corte go 14. O bolsinho imperial 97 15. A paixdo pelo Brasil 101 16. Um fantasma: o Manifesto Republicano 126 17. O cancro social 130 18. Pelas estradas do Brasil e da Europa 137 1g. Dois bispos na cadeia 150 20. O imperador ianque 157 21. Neto de Marco Aurélio 171 22. O imperador e 0 povo 173 23. Eleiges € representagao nacional 180 24. Abolig&o da escravidio e do trono 186 a5. A casaca e o bot&o amarelo 192 26. “Grande povo!” 198 27. O reino que nao era deste mundo 203 28. “Terpsicore” 211 29. “Esto todos malucos!” 215 30. “Nasci para as letras e as ciéncias” 221 31. Morte em Paris 231 Sronologia 243 Indicagées bibliograficas 260 Indice onomastico 269 1. D. Pedro 11 e Pedro d’Alcantara D. Pedro u governou o Brasil de 23 de julho de 1840 a 15 de no- vembro de 1889. Foram 49 anos, trés meses e 22 dias, quase meio século. Assumiu o poder com menos de quinze anos em fase turbulenta da vida nacional, quando o Rio Grande do Sul era uma reptiblica independente, 0 Maranhdo enfrentava a revolta da Balaiada, mal terminara a sangrenta guerra da Cabanagem no Pard, ea Inglaterra ameagava 0 pafs com represdlias por conta do trafico de escravos. Foi deposto e exilado aos 65 anos, dei- xando consolidada a unidade do pats, abolidos 0 trafico e a escravidao, e estabelecidas as bases do sistema representativo gracas a ininterrupta realizacao de eleigées e 4 grande liberdade de imprensa. Pela longevidade do governo e pelas transforma- cGes efetuadas em seu transcurso, nenhum outro chefe de Estado marcou mais profundamente a histéria do pats. D. Pedro foi um Habsburgo perdido nos trépicos. Um ho- mem de 1,90 m, louro, de penetrantes olhos azuis, barba espes- sa, prematuramente embranquecida, num pais de pequena elite branca cercada de um mar de negros ¢ mesticos. Orfao de m3 logo depois de completar um ano de idade, de pai, aos nove, virou érfao da nagao. Dela recebeu, via tutores ¢ mestres, uma educagao rigida, propositalmente distinta da do pai. Seus edu- cadores procuraram fazer dele um chefe de Estado perfeito, sem paixdes, escravo das leis e do dever, quase uma maquina de governar. Passou a vida tentando ajustar-se a esse modelo de servidor ptiblico exemplar, exercendo com zelo um poder que o destino Ihe pusera nas mos. Este foi d. Pedro 11, imperador do Brasil. Mas, detras dessa ara, reforcada pelos rituais da monarquia, havia um ser hu- mano marcado por tragédias domésticas, cheio de contradicdes € paixdes, amante das ciéncias e das letras, apaixonado pela condessa de Barral. Este foi Pedro d’Alcantara, cidadaio comum, que detestava as pompas do poder. No Brasil, predominava a mascara do imperador d. Pedro u. Na Europa e nos Estados Unidos, ressurgia 0 cidadao Pedro d’Alcantara. Mas uma paixdo mais forte evitou o dilaceramento inter- no, permitiu que os dois Pedros convivessem, embora sob ten- sdo permanente. Foi a paixo pelo Brasil. Ela marcou a vida de d. Pedro 11 e de Pedro d’Alcantara, possibilitando que 0 ho- mem que os abrigava se dedicasse integral e persistentemente a tarefa de governar o Brasil por meio século. Ele o fez com os valores de um republicano, com a minticia de um burocrata e com a paixdo de um patriota. Foi respeitado por quase todos, nao foi amado por quase ninguém. mas 10 2. Orfao da nacdo D. Pedro nasceu em 2 de dezembro de 1825. Era trés anos mais moco do que o Brasil, e sua gestagdo foi tao trabalhosa quanto a do pais. O pai, d. Pedro 1, enfrentava no momento sérias difi- culdades politicas. Tivera uma lua-de-mel com a nagao durante os anos de 1822 e 1823. Proclamara a independéncia, fora acla- mado imperador e defensor perpétuo do Brasil. Mas, ao dis- solver a Assembléia Constituinte em novembro de 1823, deu inicio a um lento € penoso processo de divércio politico com a nac&o. Como conseqiiéncia da dissolugé0, Pernambuco e outras provincias do Norte revoltaram-se no ano segninte e proclamaram a Confederagao do E.quador, movimento separa- tista e republicano, cuja cabega pensante foi Frei Caneca. A revolta foi combatida e derrotada, mas o julgamento dos lideres, feito em rito sumdrio e com muito rigor por um tri- bunal de exce¢do, uma comissio militar, aumentou a rejei ao imperador. No mesmo ano do nascimento de d. Pedro, doze lideres da Confederacdo, entre os quais Frei Caneca, foram enforcados ou fuzilados. A boa noticia do ano foi 0 re- conhecimento da independéncia por Portugal, mas, em con- trapartida, o Brasil entrou em guerra contra as Provincias Unidas do Prata, atual Argentina. O parto que trouxe Pedro d’Alcantara ao mundo demorou cinco horas. Mas o sétimo filho da imperatriz d. Leopoldina nasceu com aparéncia robusta, medindo 47 centimetros. Era a terceira tentativa da sua mae de dar a Pedro 1 um filho homem, Depois da primogénita, Maria da Gléria, nascera em 1820 0 pri- meiro filho, d. Miguel, que morreu logo em seguida. O segun- do, d. Joao, nascido em 1821, faleceu antes de completar um ano. Depois, nos trés anos seguintes, sé vieram mulheres, Janudria, Paula Mariana e Francisca. Para interromper a se- qiiéncia de filhas, Leopoldina recorreu a médicos franceses e até mesmo aos servigos de uma esperta madame que se vangloriava de, mediante pagamento, determinar 0 sexo dos filhos. A loteria da natureza favoreceu a vigarista, que cobrou seu preco. Houve muita celebrago na capital em virtude do nasci- mento. As casas iluminaram-se durante quatro dias. O veador da Casa Imperial, brigadeiro Francisco de Lima e Silva, pai do futuro duque de Caxias, apresentou o menino a corte. A tarefa era bem mais agradavel do que a que executara um ano antes, presidindo a comissao militar que condenara 4 morte os rebel- des da Confederaciio do Equador. No batizado, em 9 de de- zembro, foi executado um te-déum de autoria de Pedro 1. Em 2 de janeiro de 1826, foi a vez de se pedir para o menino a protegdo de Nossa Senhora da Gloria, na igreja do Outeiro. Conforme o costume da época, a amarnentagao da crianca fi- cou por conta de ama-de-leite. Para 0 cargo, foi escolhida uma robusta sufga, Maria Catarina Equey, residente na colénia do Morro do Queimado, futura Nova Friburgo. Apesar da aparéncia saudavel ao nascer, d. Pedro nfo foi crianga sadia. Em 1827, 0 visconde de Barbacena 0 achava um menino “magrinho e muito amarelo”. Herdara, ele e a irma Janudtia, do pai, via Bourbon da Espanha, a epilepsia. Desde 1827 até as vésperas da maioridade, em 40, sofreu varios ata- ques. Ja no exilio, se lembraria de um desses ataques, sofrido em 1833, descrevendo-o como uma “indigestaéo minha com convuls6es € que quase matou-me”. Nao era indigestaéo, mas um ataque epiléptico, que foi, de fato, considerado pelos mé- dicos da época como séria ameaca a vida do menino. Mas satide precdria nao foi o maior dos infortinios da erianga. A palavra que melhor define sua infancia € orfandade. Azares da vida e vicissitudes politicas assim o determinaram. Perdeu a mae quando tinha apenas um ano e nove dias de idade. Nao conheceu 0 avé, d. Jodo vi, que morrera em Lisboa em 1826. A avé, d. Carlota Joaquina, filha de Carlos 1v da Es- panha, retornara a Portugal em 1821, onde morreria em 7 de janeiro de 1830. O pai, d. Pedro 1, e a madrasta, d. Amélia de Leuchtenberg, deixaram o Brasil em 13 de abril de 1831, logo apés a abdicacao. Ao ser aclamado imperador pela multidao reunida no Campo de Santana, em 7 de abril de 1831, d. Pedro u tinha cinco anos e cinco meses de idade, e tornou-se um 6rfao da nagHo, como passou a ser chamado. Um 6riio acom- panhado de trés 6rfas, as irmas Janudria, Paula Mariana e Francisca. Seria dificil imaginar infancia e juventude mais infelizes para quem nascera em bergo de ouro. Dos primeiros cinco anos de vida pouca coisa lhe deve ter restado na meméria. Do pai, guardou algumas boas lem- brancas. Da mae, s6 sabia “o que os outros dela me referiram”. Os outros cram naturalmente as pessoas que freqtientavam o pago imperial. Uma delas seria sua aia ¢ camareira-mor, d. Mariana Carlota, futura condessa de Belmonte. D. Mariana, ou Dadama, como d. Pedro a chamava, era portuguesa, vitiva, mulher muito religiosa, que viera para o Brasil na comitiva do principe regente. Foi a me de criagao de d. Pedro € 0 acom- B panhou até a maioridade. Ela, ou o futuro tutor, José Bonifacio, ou mesmo o abade Boiret, capelao-mor do Fxército, talvez lhe tenham falado de sua infancia. E de todo provavel que tenham falado muito bem de d. Leopoldina, elogiado o pai ¢ demo- nizado d. Domitila de Castro, amante de d. Pedro 1, detestada por José Bonifacio e d. Mariana. A arquiduquesa Leopoldina era uma Habsburgo-Lorena, filha de Francisco 1, imperador da Austria e chefe de uma das mais prestigiosas casas reais da Europa. Sua irma, Maria Lufsa, casara-se com Napoledo 1. Tinha fina educagio e rigidos prin- cipios religiosos, em nitido contraste com os maus modos e os costumes frouxos do marido. Chegara ao Rio de Janeiro em 1817, com vinte anos de idade. No perfodo crucial em que José Bonifacio esteve no governo, de janeiro de 1822 a julho de 1823, atuara abertamente na politica, exercera 0 cargo de regente durante viagem de d. Pedro a Sao Paulo e presidira a reunido do Conselho de Estado que decidiu pela independéncia. © fu- turo Patriarca, ao tomar conhecimento de sua carta a d. Pedro, a mesma lida pelo imperador as margens do Ipiranga, teria co- mentado: “Meu amigo, ela deveria ser ele!”. Depois do regresso de d. Jodo vi, seu protetor, e da safda de José Bonifacio e da inglesa Maria Graham, tutora de suas filhas, a vida na corte tomou-se um martirio para a imperatriz. Além das intrigas e mesquinharias, o motivo principal de seu tormento era a presenga ostensiva em palacio, desde 1823, de Domitila de Castro. D. Pedro tivera e tinha varias amantes, que Ihe deram dezenas de filhos. Mas a nenhuma outra concedera a condicao de concubina oficial. Conhecera Domitila durante a viagem a Sao Paulo de que resultou a proclamagao da independéncia. Gravida do herdeiro do trono, d. Leopoldina teve de aturar a nomeagao da amante para o cargo de sua primeira- dama. Para aumentar a humilhaciio, nascera, em 1824, Isabel Maria Brasileira, primeira filha do imperador com Domitila. 14 Isabel Maria foi legitimada em 1826, mesmo ano de promo- cao da concubina a marquesa de Santos. Leopoldina extra- vasava suas m4goas em cartas a Maria Graham e a irma Maria Luisa, a quem escreveu em 1823: “Encontro-me numa perfeita solidao, restringida exclusivamente aos passeios a cavalo”. Nesses passeios, que fazia acompanhada do abade Boiret, colhia plantas, minerais e animais. Guardava-os em seu gabinete de histéria natural e no pequeno zooldgico que montara na ilha do Governador, ou os remetia ao pai, a irma, ou a algum museu europeu. Em maio de 1826, d. Pedro concedeu & filha bastarda o titulo de duquesa de Goids e a apresentou 4 imperatriz. Leo- poldina recolheu-se em prantos. “Estremeco de raiva quando a vejo”, escreveu. O escdndalo imperial repercutia na imprensa e nas ruas. © revolucionario Cipriano Barata e outros exilados enviaram do exilio em Buenos Aires um violento panfleto em que acusavam Pedro 1 de ser “marido brutal, que, escandalo- samente libertino, nada respeita de quanta mocidade ha na corte de ambos os sexos, idade e cores; e trata depois com as formas mais indecentes, e rasteiras 4 lamentdvel de sua esposa”. Apareciam na imprensa caricaturas representando d. Pedro como cavalo de cabriolé sendo chicoteado pela amante. Leopoldina entrou em depressaio profunda ou, na expres- sao da época, em crise de melancolia. Na tiltima carta a Maria Graham, de 22 de outubro de 1826, registrou: “Estou desde ha algum tempo numa melancolia realmente negra”. Estava gravida de trés meses. Quando d. Pedro exigiu que compare- cesse a um beija-mao em companhia da amante, ela se re- cusou a obedecer. O imperador a teria entdo espancado na frente da marquesa. Leopoldina escreveu a irma que o marido a maltratara “na presenca daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgracas”, cometendo um “horroroso aten- tado que serd sem diivida a causa da minha morte”. Wy De 12 para 2 de dezembro, aniversario do filho, abortou um feto masculino. Entrou a delirar. Houve preces ptiblicas nas igrejas, ¢ muitas pessoas se dirigiram a Sao Cristévao para saber noticias. Cartas anénimas ameagavam ministros e Domi- tila, pasquins pediam o impedimento do imperador e o re- conhecimento do herdeiro, sob a regéncia da imperatriz. A policia teve de proteger a casa de Domitila. Leopoldina mor- reu na manha do dia 11 de dezembro, aos 29 anos de idade. D. Pedro 1 estava no Rio Grande do Sul por conta da guerra contra as Provincias Unidas do Prata. Houve grande conster- nacao na cidade. Imensa procisséio noturna, que o pintor De- bret descreveu e ilustrou, levou o corpo de Sao Cristévao para a igreja do convento da Ajuda, onde foi enterrado. Hoje, os restos mortais da imperatriz jazem no Monumento do Ipi- ranga, em Sao Paulo, ao lado dos de Pedro r. O imperador prolongou por mais dois anos as relagdes com a amante. Somente a abandonou quando se tornou claro que nenhuma princesa européia aceitaria substituir Leopol- dina enquanto a marquesa permanecesse no paco. Oito das consultadas j4 tinham recusado proposta de casamento. Afas- tada a amante, d. Amélia de Leuchtenberg aceitou, e 0 casa- mento realizou-se em 1829. Nos trés anos que 0 precederam, d. Pedro 1 perdera a primeira imperatriz, a Guerra da Cispla- tina e a popularidade. O filho conviveu com a madrasta menos de dois anos. Filha do vice-rei da Itdlia e enteada de Napoledo, d. Amélia era, na €poca do casamento, uma adolescente de dezessete anos. Seu relacionamento com 0 enteado parece ter sido carinhoso, como 0 atesta a carta de despedida que ela Ihe escreveu. Com um sentimentalismo um tanto retérico, chamou d. Pedro de “menino querido” e fez um apelo As maes brasileiras para que adotassem como filho 0 érfio coroado. Manteve depois intensa correspondéncia com 0 enteado. Chegaram até nés umas seis- 16 4 cenias cartas, em que tentava, mesmo de longe, orientar 0 jovem imperador, como se deu por ocasido do casamento das filhas Isabel e Leopoldina. Em 1871, d. Pedro a visitaria em Portugal em seu paldcio das Janelas Verdes. A correspondéncia entre os dois perdurou até a morte de d. Amélia em janeiro de 1873. Embora d. Pedro nao tenha tido oportunidade de con- viver com a mie, os dois se assemelhavam em muitos pontos. Era-lhes comum o amor aos livros e 4 ciéncia, especialmente a astronomia. O filho conservou o museu de histéria natural da mie e o doou ao Museu Nacional com 0 titulo de Colegao Imperatriz Leopoldina. Tinham também em comum a obses- sao pelo cumprimento do dever e buscavam reftigio no estudo quando atormentados pelo tumultuar dos sentimentos: “[...] procuro a minha felicidade no cumprimento exato do dever e estudando muito”, escreveu Leopoldina 4 irma. Com o pai, d. Pedro u tinha pouco em comum por razoes de temperamento e, sobretudo, de educaciio. D. Pedro 1 era comandado por emogées, as vezes contraditérias, a que ndo aprendera a impor barreira alguma. Era impulsivo, roman- tico, autoritdrio, ambicioso, generoso, grosseiro, sedutor. Era capaz de grandes édios e grandes amores. D. Pedro 1 foi edu- cado para nao se parecer com o pai. Ensinaram-lhe a controlar 6dios e amores, a ser contido, racional, equilibrado, previsivel. Por tras do verniz da educacao, no entanto, ferviam paixdes, se nao tao grandes quanto as do pai, pelo menos semelhantes a elas, tanto na vida privada como na vida publica. Na primeira, sua longa relacdo com a condessa de Barral € casos amorosos esporddicos com outras mulheres mostram que a diferenga entre ele ¢ 0 pai foi menos de contetido que de forma. As cartas dos dois as amantes o demonstram. Do lado do pai, a sensualidade explicita, a crueza e o mau gosto. Falava de “sua coisa”, e chegou a mandar de presente para a amante uma camisa manchada com secregdes blenorrdgicas. Do lado do filho, a delicadeza, as referéncias indiretas, as boas noites, as confissGes de saudade. Seus presentes eram retratos, livros, ob- jetos de arte. Na vida publica, o amor pelo pais era de ambos, se ndo maior no filho. Variava 0 estilo, arroubado e inconstante em um, meticuloso e persistente no outro. 18 3. Povo, canhées e lagrimas Enquanto esses pequenos dramas se passavam no isolamento do palacio de Sao Crist6vao, a agitacao politica contra 0 governo invadia as ruas do Rio de Janeiro. Contra d. Pedro 1 alegava-se 0 excessivo envolvimento na questo da sucessdo portuguesa. Seu irmao, d. Miguel, usurpara o trono a primogénita do imperador, Maria da Gloria. A filha voltara para o Rio em 1829, acom- panhada de muitos partidarios, sob a protegao do pai, causando desconforto politico. Reclamava-se também da dependéncia de d. Pedro em relagao aos conselhos de um gabinete secreto de amigos portugueses, entre os quais se salientava o Chalaca. Ha- via ainda conflitos constantes com a Camara dos Deputados, cuja primeira legislatura tivera infcio em 1826. Os deputados estavam ansiosos por fazer funcionar 0 regime representativo, coisa que nao despertava 0 entusiasmo do imperador. Os liberais tinham também ficado chocados com 0 enforcamento € 0 fur lamento dos lideres da Confederagao do Equador. Veio agravar a situagdo a derrota brasileira na guerra em que a provincia da ao Cisplatina, apoiada pela Argentina, conseguiu sua independén- cia sob o nome de Uruguai. O descontentamento extravasava 0s limites da corte. No comego de 1831, o imperador foi buscar apoio em Minas Gerais. Foi recebido com hostilidade em todas as cidades que visitou Diante da reagdo negativa, chegou a mencionar a possibili- dade de abdicagao. A situagiio tomou-se explosiva quando da Franca veio a noticia de mais uma revolucio, dessa vez para derrubar Carlos x e colocar Luis Filipe no poder. O exemplo francés encorajou a oposigao brasileira. Na agitacao das ruas, confundiam-se demandas nativistas, constitucionais, federa- listas, republicanas, e mesmo raciais. Ao regressar d. Pedro de Minas, em 13 de margo de 1831, deu-se na capital o conflito sangrento entre brasileiros e comer ciantes portugueses, conhecido como a Noite das Garrafadas. Os portugueses iluminaram as ruas para receber 0 imperador. Os brasileiros reagiram, e 0 conflito generalizou-se, resultando em muitas garrafas e cabegas quebradas, as primeiras partindo-se ao partirem as segundas. A cidade entrou em estado de agitacio permanente. A gota d’4gua, como ocorre com freqiiéncia em situacdes andlogas, foi um acontecimento menor. D. Pedro de- mitira em 5 de abril um ministério formado de deputados, considerado mais brasileiro do que os anteriores, ¢ nomeara ou- tro composto de marqueses. Uma multidao, calculada em mais de 4 mil pessoas, aglomerou-se no Campo de Santana para exigir o restabelecimento do ministério brasileiro. No meio do povo, estavam os deputados que j4 se achavam na cidade para a aber- tura das cAmaras, juizes de paz ¢ tropas do Exército. Do ajunta- mento podia-se dizer que reunia, em momento raramente repe- tido na histéria do pais, elite, politicos, militares e povo. As trés horas e meia da madrugada do dia 7 de abril, o major Miguel de Frias entregou a d. Pedro a exigéncia de re- posicao do ministério afastado. O imperador nao aceitou a imposigdo, mas, ao mesmo tempo, proibiu que as tropas dis- persassem a multidao, optando pela abdicacao na pessoa do filho. Na véspera, jé assinara decreto nomeando José Boni- facio tutor do herdeiro. Quando o major Frias voltou ao Campo de Santana com a noticia da abdicagio, v. tecido. Nada garantia a manutencao da unidade da oposiciio no momento de uma vit6ria conseguida com surpreendente rias coisas poderiam ter acon- facilidade. Havia concordancia em combater Pedro 1, mas nao em relacgao ao que se deveria fazer em sua auséncia. No calor da hora, a multidao poderia aclamar o herdeiro, proclamar o general Francisco de Lima e Silva ditador, ao estilo hispano- americano, ou mesmo exigir uma republica federal. O grito de “Viva d. Pedro m1!”, langado pelo general Manuel da Fon- seca Lima e Silva, irmao de Francisco de Lima e Silva, que- brou o suspense e foi decisivo. Como por instinto, a multidio repetiu a aclamacio, desfazendo a tensao da expectativa e definindo o curso da histéria. Rei morto, rei posto. As lutas que se seguiram ao Sete de Abril mostraram com clareza que a solucao adotada nao tinha o assentimento de todos. O republicano Teéfilo Otoni, cujo irmao Cristiano par- ticipara dos acontecimentos, denunciou mais tarde o episédio como uma “jornada de otérios”. Os otdrios, os enganados, no caso, eram os republicanos e os federalistas, derrotados pelos li- berais moderados. Mas a decis&o se impés. Feita a aclamacao, a multidao seguiu para o Senado, localizado no mesmo Campo de Santana, na antiga residéncia do conde dos Arcos, para que fosse dada forma legal a sucessaio. Reunidos as pressas, os sena- dores ¢ os deputados que j4 se achavam na capital elegeram uma regéncia trina proviséria para governar o pais durante a meno- ridade do novo imperador. No primeiro escrutinio foi eleito 0 marqués de Caravelas; no segundo, o senador Vergueiro; no terceiro, o general Francisco de Lima e Silva. A multidao seguiu entdo para a Quinta da Boa Vista a fim de buscar 0 menino imperador e trazé-lo para o paco da cidade. Ainda sob o choque da auséncia do pai e da madrasta, ele foi colocado sozinho no banco de trés da carruagem, tendo em sua frente apenas a aia, d. Mariana. De acordo com 0 testemunho de Debret, 0 menino chorava muito, aterrorizado com a multi- dao e o barulho. Na altura da ma do Rosério, alguns manifes- tantes desatrelaram os cavalos e passaram a puxar a carruagem. A aia abriu a portinhola para mostrar o menino. No pago da ci- dade, ele foi exibido numa das janelas, ao lado das trés irmiis, sustentado em cima de uma cadeira. As aclamagées confun- diram-se com o troar da artilharia. O grande rufdo vinha envolto no cheiro e na fumaga da pélvora. Debret, presente a tudo, re- gistrou a cena num desenho. Um te-déum encerrou as celebra- g6es. Acontecimentos tao extraordindrios devem ter ficado gra- vados na mem6ria da crianga de cinco anos. O imperador nunca a cles se referiu. F, provavel, no entanto, que os tenha vivido, como viveu outros da Regéncia, como um terrfvel pesadelo. Ao despertar no dia 7, d. Pedro 11 jd encontrara sobre a cama a coroa imperial. Com a ajuda de Dadama, escreveu ao pai uma carta de despedida. A resposta foi dada j4 a bordo da fragata inglesa, Warspite. Com sua tradicional emotividade, d. Pedro 1 dirigiu-se ao “Meu querido filho, e meu imperador’, confessando ter lido a cartinha entre lagrimas. Pediu ao filho que se tomasse digno da patria e desejou prosperidade ao Brasil. Despediu-se “sem mais esperangas de o ver”. Essa carta foi guardada por d. Pedro 11. Talvez Ihe tenha vindo @ lembran- ca no dia 17 de novembro de 1889, quando nova reviravolta his- térica 0 forgou a tomar o mesmo rumo do pai. José Bonifacio, confirmado na tutoria pela Camara, apre- sentou-se em Sao Cristévao em agosto. Consta ter suspendido a crianga nos bragos e exclamado: “Meu imperador e meu filho!”. Pode-se imaginar a emocdo do Andrada, entiéo um 22, velho de 68 anos mas cheio de energia. Ele fora a figura cen- tral da independéncia. Ao verificar que as Cortes portuguesas nao admitiam igualdade de posic¢ao entre Brasil e Portugal optara definitivamente pela independéncia e nesse sentido apoiado por Leopoldina, empurrara o imperador e comandara 0 processo de separacio. Sua relagdo com Pedro 1 fora tumul- tuada. Admirava-lhe 0 arrojo politico, mas abominava 0 trata- mento que ele dava a imperatriz. Dois autoritdrios, romperam relagdes por ocasido da dissolugao da Constituinte, quando d. Pedro o exilou na Franga, junto com outros politicos. De 14 s6 retornou em 1829. A admiracfo era recfproca. Ao ser também forgado a deixar o pais, foi ao velho Andrada que confiou 0 filho. Ao levantar nos bracos 0 imperador-menino, nascido no Brasil, José Bonifacio viu garantidas, ao mesmo tempo, a monarquia e a unidade do pais, dois dos principais objetivos por que lutara. Mas a belicosidade do Andrada nao lhe permitiu de- dicar-se integralmente & tarefa de educar 0 jovem imperador. A vit6ria do Sete de Abril fora muito facil. A luta mais intensa veio depois, sobretudo no Rio de Janeiro, onde caramurus restauradores, organizados na Sociedade Militar, farroupilhas radicais, na Sociedade Federal, e liberais moderados, na So- ciedade Auxiliadora da Independéncia Nacional, digladiavam- se pelo controle da Regéncia. Os caramurus eram velhos mo- narquistas, presos as praticas absolutistas, ainda ligados ao ex-imperador, cujo retorno almejavam. Os farroupilhas eram os radicais da época, antiabsolutistas e, no limite, antimo- narquistas. Foram os principais responsdveis pelas revoltas ¢ agitacdes do periodo. Nao hesitavam em aliar-se aos cara- murus para combater 0 inimigo comum, os moderados. Estes assumiram o poder em 1831 e o mantiveram a todo custo, lu- tando pela consolidag&o de uma monarquia constitucional. ‘Tantas eram as revoltas e tumultos na corte, que os as regentes pensaram em dela retirar o imperador por medida de precaucao. José Bonifacio e, por sua influéncia, os irmaos, Ant6nio Carlos e Martim Francisco, aliaram-se aos caramurus. O tutor envolveu-se em conspiragdes restauradoras e chegou ao ponto de armar partidérios dentro do proprio palacio de Sao Cristévao. Ao mesmo tempo, Anténio Carlos viajava para a Europa com o fim de consultar o ex-imperador sobre a pos- sibilidade de retorno. Nessas circunstdncias, as relagdes do tutor com a Regéncia tornavam-se insustentaveis. O ministro da Justiga, Aureliano Coutinho, que mais tarde se casatia com uma neta do Patriarca, destituiu-o do cargo em dezembro de 1833. Como era de esperar de seu temperamento, José Bonifacio ameacou resistir pela forga, ¢ s6 concordou em deixar o paldcio apés interferéncia do general José Joaquim de Lima e Silva e do bardo Daiser, ministro de Francisco 1, avé de d. Pedro 1. Foi confinado na ilha de Paquet4, onde possufa uma chacara, tendo morrido em Niterdi em 5 de abril de 1838. Do conflito no paldcio de Sao Cristévao resultaram varias prisdes. D. Pedro e as irmas tinham sido transferidos para 0 pago da cidade. Além desse grande susto, 0 menino de sete anos passara por outro ainda maior nesse mesmo ano. No més de outubro, sofrera forte ataque epiléptico. Nao morreu da doenga, mas poderia ter morrido do tratamento, que consistiu em aplicagdes de clister e cataplasmas, de sangria ¢ ingestio de Gleo de ricino. Com a safda do tutor, d. Mariana, seu desafeto, voltou ao posto de aia e o ocupou até a maioridade. Aureliano van- gloriou-se escrevendo-lhe: “Demos com 0 colosso em terra!” Estranhamente, nas varias referéncias que d. Pedro fez mais tarde a seus mesires, em nenhuma mencionou o primeiro tutor. Talvez estivesse José Bonifacio por demais ocupado com a luta politica para dar aten¢do ao pupilo. O imperador quis, no entanto, comparecer as exéquias dele. O regente ¢ o tutor Ttanhaém mesquinhamente lhe negaram permissao. Dessa época tumultuada, ficaram na meméria do me- nino os toques de clarim ¢ os tiros de artilharia. No dia de seu primeiro aniversdrio apés a maioridade, 2 de dezembro de 1840, anotou no diario que comegara a escrever: “Depois a trombeta tocou o seu clarim que outrora me era tao terrivel, principiaram os tiros de artilharia, que antigamente até me faziam verter lagrimas de terror”. Talvez a ojeriza que o im- perador sempre teve pela pompa do poder se devesse em parte a esse trauma infantil. As perturbagGes politicas s6 se arrefeceram na capital em 1834, quando foi aprovado o Ato Adicional, um compromisso entre moderados, farroupilhas e caramurus. A morte, nesse mes- mo ano, de d. Pedro 1, j4 entdo Pedro tv de Portugal, também contribuiu para acalmar os animos, desencorajando os restau- radores. Afastada a agitagdo da capital, ainda que recru- descesse nas provincias, a vida do imperador entrou em fase de maior tranqiiilidade. O novo tutor nomeado pela Regéncia era Manuel Inacio de Andrade Souto Maior Pinto Coelho, futuro marqués de Itanhaém. Homem de cinqiienta anos, era militar reformado, proprietério rural, e nao se metia nas brigas das facgdes politicas da Regéncia. Era alto, magro e cir- cunspeto ao ponto de se dizer dele que nunca ria. Embora de inteligéncia mediocre, parecia atrair as mulheres, ele ou seu posto. Casou-se quatro vezes, trés delas com damas do pago. Depois da maioridade, elegeu-se senador por Minas Gerais e morreu em 1868. Sob seu comando e sob a supervistio da Camara dos Deputados, o herdeiro do trono comecou a ser educado com rigor quase militar e foi mantido alheio ao que se passava fora do palacio. 2 4. Fabricando o principe perfeito A primeira educagio de d. Pedro esteve a cargo de d. Mariana, de frei Antonio de Arrabida, que ja fora preceptor do pai, e de outros mestres, como o pintor Simplicio de Sd e 0 coreégrato Luis La- combe. Fiel a sua profunda religiosidade, d. Mariana compés em 1830, para uso do pupilo, uma Introducdo do pequeno catecismo hist6rico, oferecido a S.A.I.D. Pedro de Alcantara. Nesse mesmo ano, o menino ja conseguia ler. Fala em favor de Pedro 1 0 fato de ter percebido a falta que lhe tizera, a ele e ao irméo Miguel, uma educacio adequada. O filho lembrava-se de ter ouvido dele, antes da abdicacao, que “ele eo Miguel haviam de ser os tiltimos malcriados querendo dizer, com a expressao, mal-educados. Apés 0 a Portugal, d. Pedro 1 ainda escreveria aos filhos deixados no , insistindo sempre em que se dedicassem aos estudos. Assumindo o cargo, Itanhaém preparou um regulamento a ser seguido por todos os mestres ao pé da letra. D. Pedro devia levantar- se todos os dias s sete horas da manha. O almoco era as oito, com a presenca de um médico “para ndo comer muito”. As irmas nao 26 comiam com ele. A preocupacao com a frugalidade devia-se sem dtivida 4 lembranga do avé, d. Joo vi, conhecido como grande garto. Das nove as onze e meia devia estudar, e ento divertir-se até a uma e meia. O jantar era as duas da tarde, novamente com a pre- senca do médico, além da camarista e da camareira-mor. A conversa 36 poderia versar sobre assuntos cientfficos e de beneficéncia. As quatro e meia, haveria passeio pelos jardins ¢ leituras. As oito da noi- te, oragdo, ceia as nove, e cama as nove e meia. O médico regulava os banhos e a temperatura da 4gua. O imperador s6 podia ir aos aposentos das irmiis depois do almogo. D. Pedro incorporou os habitos de disciplina e pontualidade que lhe incutiram na infancia. Ao longo da vida, sempre teve ma- nia de estabelecer horarios rigidos para tudo, onde quer que esti- vesse, em Sido Cristévao, em Petrépolis, nas provincias, em viagens pelo exterior. Mas 0 tutor teve pouco éxito no ponto referente a nao comer muito. A comida nos palacios do Rio de Janeiro e de Petrépolis era ruim, mas o imperador foi sempre um bom garfo, embora nfo um gourmet. O bom apetite, justificado em parte pelo fisico avantajado, acompanhou-o por toda a vida. Nos dia- tios, inclusive os do exilio, ireqiientemente anotava “comi bem”, “comi com apetite”, “o jantar me soube”. Em 1881, a condessa de Barral referiu-se a umn desmaio que ele sofrera durante uma missa e pediu: “Pelo amor de Deus, nao coma tanto nem tio depressa”. Tinha um fraco por doces e canja de galinha. Frango era, por sinal, um dos pratos prediletos de d. Jodo v1. O tutor preparou ainda, seguramente com a colaboracdo de frei Pedro de Santa Mariana, instrugdes a ser observadas pelos mes- tres na educacio literdria e moral de seu pupilo. Eram uma mistura de iluminismo, humanismo e moralismo, Itanhaém queria formar um monarca humane, sabio, justo, honesto, constitucional, pacifista, tolerante. Isto é, um governante perfeito, dedicado integralmente a suas obrigagGes, acima das pe es politicas e dos interesses privados. RECEITA DE IMPERADOR TRECHOS DAS INSTRUGOES DO MARQUES DE ITANHAEM (1838) “{...] discernindo sempre do falso 0 verdadeiro, venha [o imperador] em Ultimo resultado a compreender bem 0 que é a dignidade da espécie humana, a qual o monarea é sempre homem sem diferenga natural de qualquer outro individuo humano, posto que sua categoria civil o eleve acima de todas as condig6es sociais.” “[...] para que o imperador, conhecendo perfeitamente a forga da natureza social, venha a sentir, sem o querer, aquela necessidade absoluta de ser um monarca bom, sdbio ¢ justo.” “Em seguimento, ensinarao os Mestres ao imperador que todos os deveres do Monarca se reduzem a sempre animar a Industria, a Agricultura, o Comércio e as Artes; e que tudo isto s6 se pode conseguir estudando o mesmo imperador, de dia e de noite, as ciéncias todas, das quais o primeiro e principal objeto é sempre 0 corpo e a alma do homem.” “Eu quero que o meu Augusto Pupilo seja um sdbio consumado e pro- fundamente versado em todas as ciéncias e¢ artes e até mesmo nos offcios me- canicos, para que ele saiba amar o trabalho como princfpio de todas as virtudes, e saiba igualmente honrar os homens laboriosos e titeis ao Estado. Mas nao quererei decerto que Ele se faca um literato supersticioso para nao gastar o tempo em discusses teolégicas como o imperador Justiniano; nem que seja um politico frenético para nao prodigalizar o dinheiro € 0 sangue dos brasileiros em con- quistas e guerras e construgao de edificios de luxo, como fazia Luis xry na Franca, todo absorvido nas idéias de grandeza; pois bem pode ser um grande Monarca o Senhor D. Pedro 11 sendo justo, sébio, honrado e virtuoso e amante da felicidade de seus stiditos, sem ter precisao alguma de vexar os povos com tiranias e iolentas extorsdes de dinheiro e sangue.” “Finalmente, nao deixarao os mestres do imperador de lhe repetir todos os dias que um monarca, toda vez que nao cuida seriamente dos deveres do trono, vem sempre a ser vitima dos erros, caprichos ¢ iniqiiidades dos seus ministros, cujos erros, caprichos e iniqtiidades sao sempre a origem das revo- lugdes e guerras civis; e entao paga o justo pelos pecadores, e 0 monarea é que padece, enquanto os seus ministros sempre ficam rindo-se de cheios de dinheiro e de toda a sorte de comodidades. Por isso cumpre absolutamente ao Monarca ler com atencio todos os jornais e periddicos da Corte e das Provincias e, além disto, receber com atengio todas as queixas e representagSes que qualquer pessoa lhe fizer contra os ministros de Estado, pois s6 tendo conhecimento da vida publica e privada de cada um dos seus ministros e agentes é que o monarca pode saber, se os deve conservar ou demiti-los imediatamente e nomear outros que melhor cumprirdo seus deveres e fagam a felicidade da Nagao.” Frei Pedro de Santa Mariana foi nomeado pelo tutor aio e primeiro preceptor de d. Pedro. Era um sdbio carmelita, formado no Seminario de Olinda. Tinha 51 anos em 1833, ¢ ensinava matemdatica e geometria na Academia Militar. Era conhecido pela modéstia e pela severidade dos costumes. Foi encarregado de presidir sempre a todos os atos letivos e de fazer valer as instrucdes, pondo-se de acordo com os outros mestres para uniformizar a educacao. Além de assistir as licdes, frei Pedro devia acompanhar o imperador durante o dia e fazer relatérios didrios. Devia comparecer as recepges para ensinar civilidade ao pupilo. Devia, por fim, ler para d. Pedro, durante uma hora por dia, textos de historia e literatura e exigir que o aluno lesse para ele. O habito da leitura e do estudo foi total- mente absorvido pelo pupilo. Mais do que habito, leitura e estudo transformaram-se numa de suas paixdes. Enfurnado no palacio, longe dos pais, educado por estranhos, a excecao de d. Mariana, fez dos livros um mundo a parte, em que podia isolarse e proteger-se. As orientagGes do tutor e a aco dos mestres marcaram para sempre a personalidade e os habitos de d. Pedro. A observaciio vale, sobretudo, para a concep¢ao da igualdade basica dos seres humanos, para a necessidade de buscar ser imparcial e justo, de nao depender de dulicos, de fiscalizar os atos dos funcio- ndrios publicos, até mesmo dos ministros, de preocupar-se com o bem ptblico. Vale igualmente para a importincia do estudo das ciéncias e das artes, inclusive as mecdnicas. Os deputados acompanhavam de perto a educacgdo do principe, examinando os relatérios do tutor e fazendo visitas de inspegao. O relatério de 1837 dizia que o imperador ja fa- lava e escrevia francés, lia e traduzia inglés. O deputado Ra- fael de Carvalho criticou, no entanto, a falta de exercicios e divertimento, reduzidos que estavam a remar em bote em Agua parada ¢ a teatrinho em francés. O de 1838 mencionava a que d. Pedro estudava com prodigioso afinco. “Nunca foi ne- cessdrio chamé-lo para 0 estudo; talvez antes se julgasse al- gumas yezes prudente recomendar-lhe a abstengao de apli- cacao tio prolongada.” Frei Pedro surpreendia-o as vezes, a altas horas, lendo na cama. Apagava as luzes, mas meia hora depois voltava a flagré-lo na mesma atividade. Segundo o rela- torio de 1839, o aluno compunha e vertia latim sem erros, dei- xando as poucas brincadeiras para sé ler ¢ estudar. O Arquivo Histérico do Museu Imperial conserva de- zenas de cademos ¢ folhas de exercicios escolares de d. Pedro e de suas irr Abrangem caligrafia, cépias, desenho, lfnguas, retérica, histéria, ciéncias naturais, matematica, astronomia Mesmo nos aparentemente inocentes exercicios de caligrafia, os mesires introduziam ligdes de moral e polit texto deste exercicio, em francés, de 1833, quando d. Pedro tinha oito anos: “Lei dos soberanos. O amor do povo o bem . Veja-se 0 ptiblico o interesse geral da sociedade é a lei imutavel e universal dos soberanos”. Ou este outro, em portugués, de 1834: “Um rei ndo € digno de reinar nem ser feliz no seu poder seniio enquanto o tem [o poder] subordinado a razao”. O menino tinha um espago para se dedicar a jardina- gem, mas pouco 0 freqiientava. O tutor e todos os que 0 co- nheciam eram undnimes em assinalar que era precoce, décil e muito obediente. Mas nao era uma crianga feliz. Em 1840, transcreveu no diario um didlogo com o mordomo Paulo Barbosa em que este Ihe lembrou que em certa época d. Pedro vivia chorando e nada lhe agradava. Sua grande timidez pode ter sido responsavel por uma caracterfstica que 0 marcou pelo resto da vida. A voz nao engrossou, nado adquiriu o timbre masculino. Quando adulto, o contraste entre o fisico avanta- jado e a voz fina causava surpresa aos interlocutores e, cer- tamente, constrangimento a ele proprio. Muitos registraram 0 fato, mas o imperador nunca a ele se referiu. 30 Seus poucos companheiros de brincadeiras eram filhos de pessoas préximas do pago, como Aureliano Coutinho Candido José de Aratijo Viana. Os mais chegados eram Luis e Joao, filhos de Luis Pedreira do Couto Ferraz; Capanema, filho de Roque Schiich, bibliotecdrio de d. Leopoldina, e Francisco Otaviano, filho do médico Almeida Rosa. José de Assis Mascarenhas, filho legitimado do mordomo-mor, mar- qués de Sao Joao da Palma, foi afastado do grupo por ter espancado o imperador. ‘Todos se tornaram figuras relevantes no mundo politico e cientifico do Segundo Reinado. O mais préximo amigo de toda a vida foi Luis Pedreira do Couto Ferraz, futuro visconde do Bom Retiro. Luis Pedreira foi minis- tro uma vez e depois, para manter a amizade, renunciou a posigdes de poder. Nao queria ser acusado de se beneficiar do favor imperial. Ganhou fama de dulico. Inventou-se 0 seguinte didlogo entre os dois: “— Que horas si0, Bom Retiro? — As que Vossa Majestade quiser”. Outro companheiro constante foi o preto Rafael, veterano da Guerra da Cisplatina, que car- tegava d. Pedro nos ombros. Entre os mestres, salientava-se, pelos conhecimentos, Fé- lix Emilio Taunay, diretor da Academia Imperial de Belas Artes. Félix Emilio era filho de Nicolas Taunay, com quem viera para o Brasil como parte da missao artfstica de 1816, junto com 0 tio Auguste Taunay. Além de desenho, Taunay ensinava historia universal e das artes, literatura antiga e grego. Mais tarde, em carta 4 condessa de Barral, d. Pedro reconheceria seu débito, chamando-o de seu verdadeiro mestre. Mantiveram amizade por toda a vida, prolongada, apés a morte do pai, na figura do filho, o visconde de Taunay. O futuro marqués de Sapucaf, Candido José de Aratijo Viana, mineiro formado em Coimbra, ensinaya literatura e ciéncias praticas. Foi também importante conselheiro politico. Quando 0 cénego Pinto de Campos quis escrever a biografia do imperador, este mandou que falasse com 31 Aratijo Viana. O diretor de estudos, frei Pedro de Santa Maria- na, ensinava latim, aritmética, geometria € religiao. Continuou a morar no paco depois da maioridade. Com Aratijo Viana, ajudou d. Pedro a se decidir quando consultado, em 1840, sobre a antecipacao da maioridade. Franceses também eram Luis Aleixo Boulanger, pro- fessor de escrita, caligrafia e geografia; Lourenco Lacombe, professor de danga, e 0 cénego Renato Pedro Boiret, um emigrado de 178g. Boiret era um remanescente da corte de Pedro 1, companheiro de cavalgadas da imperatriz Leopoldina. Ensinava francés e geografia. Fortunato Mariotti, italiano, en- sinava musica; 0 britanico Nathaniel Lucas, inglés; 0 austrfaco Roque Schiich, latim e alemo. O cientista Alexandre Antonio Vandelli, genro de José Bonifacio, era professor de ciéncias na- turais. O coronel Lufs Alves de Lima, futuro duque de Caxias, era mestre de esgrima. As figuras mais importantes no paco, no entanto, desde a abdicago até depois da maioridade, eram Aureliano Cou- tinho e o mordomo Paulo Barbosa da Silva. Aureliano colocou amigos no palacio, inclusive Paulo Barbosa. Pessoa inteligente e insinuante, e politico habil, conseguiu manter sua influéncia também apés a maioridade. Foi feito visconde de Sepetiba em 1855 € morreu nesse mesmo ano. Paulo Barbosa era engenhei- ro de formagao. Controlava a vida do pago e morava na Cha- cara da Joana, localizada dentro da Quinta da Boa Vista. Em 1845, julgou ter sofrido um atentado em Petrépolis. Assustado, pediu ao imperador que o mandasse servir na Europa como ministro do Brasil. Reassumiu a mordomia em 1855, sem exer- cer mais poder algum. Além das crengas politicas e dos hébitos absorvidos dos mestres, d. Pedro mt levou de sua traumética infancia e solitdria adolescéncia marcas mais profundas. Segundo os observadores, era um menino timido, ensimesmado e, seguramente, muito 32 carente de afeto. Timidez e caréncia foram tracos de sua per- lidade. A timidez, ele a escondeu, apés a maioridade, atrés da méscara do poder. A posigéo de imperador obrigava todos a traté-lo com respeito e reveréncia, o que lhe conferia autoridade e seguranca. A car€ncia afetiva, dadas as estritas regras que lhe impuseram, e que assimilou, de nado manter favoritos ¢ favoritas, ele procurava compensé-la na intensa atividade epistolar, com homens e mulheres, em busca de reconhecimento e carinho. Por trés das pompas da monarquia, da aparéncia de auto-su- ficiéncia, pode ter vivido um homem infeliz. 33 5. A corte mais triste do universo Nesse periodo de confinamento em Sao Cristévao, a cidade do Rio de Janeiro nao oferecia muitos atrativos. Continha-se entre a praia do Caju ao norte e a de Botafogo, ao sul. Os ricos moravam em cha- caras de Botafogo; os franceses, na Tijuca; os ingleses, no Flamengo, em Laranjeiras e Botafogo. As duas ruas principais eram a Direita, hoje Primeiro de Margo, ¢ a do Ouvidor. O tinico jardim apresen- tavel era 0 do Passeio Publico. O amplo Campo de Santana era tomado por lavadeiras, animais e tilburis. O melhor teatro era o de Sao Pedro de Alcantara, no largo do Rocio, hoje praga Tiradentes. A iluminagao era a lampiao de gas. As pessoas se transportavam em cavalos, liteiras carregadas por escravos, ou seges puxadas por cava- los. O primeiro énibus apareceu em 1833. Havia poucos saldes. Os mais importantes eram os do regente Aratijo Lima, mais formal, e o de Aureliano Coutinho, mais festivo. Havia também o do visconde de Maranguape, cuja linda filha, sra. Guedes Pinto, atraiu mais tarde o interesse do imperador. A vida coletiva, passadas as agitacdes de rua, limitava-se a missas, procissdes e entrudos. 34 A Regéncia foi com razdo chamada de experiéncia re- publicana. Seus principais Ifderes, como Evaristo da Veiga, o regente Feijé, e mesmo Bernardo Pereira de Vasconcelos, que o reverendo Walsh flagrara comendo com as mos, tinham lu- tado contra 0 absolutismo de d. Pedro 1, e lutavam por eliminar todos os seus residuos. Uma simplicidade republicana domi- nava a vida social, inclusive a do pago. Nao havia festas em Sao Crist6vao, exceto por ocasido de visitas de principes europeus, como 0 principe de Joinville, filho do rei Luis Filipe da Franga ¢ futuro marido de d. Francisca, irma do imperador, que esteve no Rio de Janeiro em 1838. Nao se notava o brilho que todas as cortes buscavam cultivar. As poucas pessoas que costumavam circular pelo palacio eram os empregados, os professores, os chamados “semandrios”, pessoas que eram escaladas semanal- mente para servir a d. Pedro, algum diplomata ou outro even- tual visitante. Ao visitar o pago, o conde de Suzannet, que esteve no Brasil no inicio do Segundo Reinado, observou que a corte brasileira era “incontestavelmente a mais triste do uni- verso”. O menino imperador nao passava de uma sombra oculta no palacio, visivel apenas em cerimé6nias oficiais. Em virtude desse despojamento, causou grande escandalo a retomada do beija-mdo pelo regente Aratijo Lima em 1838. O beija-mao era uma velha e abominavel prdtica portuguesa, j4 abandonada por outras cortes européias. Teofilo Otoni discursou na Cémara contra o resgate do que chamou de “costumes asid- ticos”. Mas 0 gesto do regente no fora acidental. Anunciava as mudangas que se aproximavam. ‘Tratava-se, apds sete anos agi- tados de governo regencial, de retomar a tradic¢&o monérquica. Com o gesto, Aratjo Lima comegou a puxar o imperador para o proscénio da politica. Embora mantido até entéo em segundo plano, d. Pedro era uma carta politica importante, que j4 podia ser jogada por qualquer uma das facgdes em luta. 35 6. Um imperador de catorze anos O Ato Adicional de 1834 reformou a Constituicdo em sentido descentralizante. Criou as assembléias provinciais, concedendo mais poder as provincias, ¢ aboliu o Conselho de Estado. Amaior descentralizac&o seguiu-se um recrudescimento dos conflitos e revoltas provinciais. Nunca houve perfodo mais conturbado na histéria do Brasil. A morte de d. Pedro 1 em 1834 eliminou a ameaga de restauragao, e uma combinacdo de repressio e coop- tagao reduziu o poder de fogo dos farroupilhas da corte. Mas nova divis&o logo se fez sentir entre liberais e conservadores. Os liberais moderados, vitoriosos contra caramurus ¢ farroupilhas, dividiram- se. Um grupo, com 0 apoio de antigos caramurus, criou o Partido Conservador. Outro, com a simpatia de ex-farroupilhas, fundou o Partido Liberal. Monarquistas constitucionais ambos, distin- guiam-se pela maior énfase que davam os liberais 4 descentra- lizagao do poder, tanto no que se referia 4s provincias como As atribuigdes do Poder Moderador. Com variagdes ao longo do periodo, essa diviséo perdurou até o final do Império. 36 A nova clivagem comegou quando o liberal moderado Bernardo Pereira de Vasconcelos, que fora o redator do projeto do Ato Adicional, abandonou os companheiros e iniciou 0 que ele proprio chamou de “regresso conservador”. Vasconcelos achava que as reformas haviam ido longe demais e se fazia necessdrio parar o carro revoluciondrio. Sua luta dirigiu-se, sobretudo, contra o ex-aliado de 1831, o padre Diogo Feijé, eleito regente em 35. Queria a revisao das leis de descentralizaco, responsveis, dizia, pela anarquizacao do pais. Era também favoravel 4 escravidao e nao queria combate sério ao trafico, apesar de ter sido ele ja proibido por uma lei de 1831, votada em obediéncia a tratado feito com a Inglaterra em 26. A uta travou-se na Camara dos Depu- tados, principal arena do combate politico na época. O padre Feijé era liberal de idéias, mas autoritatio de temperamento e fraco de satide. Preferiu renunciar a enfrentar a batalha parlamen- tar e passou o governo, em 1837, a0 conservador Aratijo Lima, futuro marqués de Olinda, o mesmo que retomou 0 ritual do beija-m4o. O primeiro ministério do novo regente tinha Vascon- celos como figura dominante. A idéia da antecipacdo da maioridade foi levantada ja na luta contra Feij6. Em 1835, Vasconcelos aventou a possibili- dade da regéncia da princesa Janudria, trés anos mais velha do que d. Pedro. A idéia nao foi adiante. Quando os regressistas subiram ao poder em 1837, foi a vez de os liberais hastearem a bandeira maiorista. Fm 1839, o deputado Montezuma apresen- tou proposta de antecipacao da maioridade de d. Pedro. Nas- cido em 1825, este s6 atingiria a maioridade constitucional aos dezoito anos, isto €, em dezembro de 43. A mudanca de maos da causa maiorista, dos conservadores para os liberais, era indicacdo de que os grupos politicos, ainda mal organizados em partidos, ndo tinham encontrado um mecanismo institucional de convivéncia. Com receio de que 0 adversdrio se perpetuasse no poder, decidiram recorrer ao trunfo do poder monarquico, 37 mesmo que fosse necessario colocd-lo nas mos de um rapa- zinho. A juventude e a inexperiéncia do imperador podiam até ser uma vantagem. Sem experiéncia, ele poderia ser manipu- lado por quem o levasse ao poder. Em 1840, trés importantes leis centralizadoras estavam em discussaio na Camara dominada pelos conservadores. Uma delas modificava o Ato Adicional, outra reformava o Cédigo Criminal, uma terceira recriava o Conselho de Estado. As trés visavam aumentar 0 poder do governo sobre a admini: tacao, justiga e policia. Os liberais sentiram o perigo e decidiram agir rapido. Em abril, formaram um clube chamado Sociedade Promotora da Maioridade do imperador, o sr. d. Pedro 11. A primeira reu- nido da Sociedade foi na casa do senador padre José Martiniano de Alencar, pai do futuro romancista de mesmo nome. Entre os principais conspiradores estavam os Andrada de Sao Paulo, An- ténio Carlos e Martim Francisco, ambos deputados; os Cayal- canti de Pernambuco, Anténio Francisco e Francisco de Paula, ambos senadores; ‘Teéfilo Otoni e o padre Anténio Marinho, liberais histéricos de Minas Gerais. Os conspiradores contavam coma conivéncia do mordomo do paco, Paulo Barbosa, em cuja residéncia, a Chacara da Joana, passaram a scr feitas as reunides. Anténio Carlos foi encarregado de conseguir a anuéncia do imperador, a quem chamava de “rapazinho”. O tutor, marqués de Itanhaém, teria dito que, consultado, d. Pedro concordara com a idéia. O projeto de antecipacdo da maioridade, apresentado no Senado, foi derrotado por dezoito votos a dezesseis. Na Ca- mara conservadora, a discussao foi violenta. Derrotados de novo, os maioristas levaram a questdo para a rua e mobi- No dia 17 de julho, na capela do palacio, alguém gritou um viva a maioridade na frente do imperador. No dia seguinte, apare- ceram cartazes nas ruas com a quadra: lizaram a populagao para pressionar os deputado: 38 Queremos Pedro Segundo, Embora ndo tenha idade; A naedo dispensa a lei, E viva a maioridade! No dia 20, houve tumulto na Camara. O deputado An- tonio Navarro chamou 0 governo de “camarilha prostitufda” e foi agarrado quando pareceu querer sacar um punhal. As galerias gritavam vivas estrondosos & maioridade. A sesso foi suspensa, Vasconcelos foi chamado com urgéncia ao ministério para, com sua reconhecida energia, parar um movimento revoluciondrio que ndo previra: as ruas clamando por um rei. Tomou logo a decisdo de adiar as camaras. Houve tumulto ainda maior na Camara dos Deputados. Os Andrada grita que o regente era usurpador ¢ traidor. Ant6nio Carlos bradou: “Quem é patriota e brasileiro siga comigo para o Senado. Aban- donemos esta Camara prostitufda”. Uma passeata de 3 mil pes- soas dirigiu-se ao Senado, ainda localizado no Campo de San- tana, e invadiu o recinto. Uma comisséio foi enviada a Sado Crist6vao para consultar 0 jovem monarca. A comissao leu a re- m presentacdo e aguardou a resposta, tendo nesse meio-tempo chegado o regente. Enquanto isso, no Senado, o maiorista pa- dre José Bento, abracado a um busto do imperador numa das janelas do prédio, inflamava a multidao. Ha grande controvérsia histdrica sobre 0 que entao se passou. Alguns atribuem ao jovem imperador 0 precoce ma- quiavelismo de ter usado os maioristas para chegar mais rapido ao poder e de ter pronunciado um arrebatado “Quero jal” quando consultado pela comisséo do Senado. O préprio mo- narca negou mais tarde, categoricamente, que tivesse pronun- ciado tal frase. No diario, por exemplo, afirmou que o “quero ja” “nao foi decerto pronunciado por mim”, e que a aceitagao da maioridade representara um sacrificio. Concordara com ela 39 apenas depois de convencido por pessoas que 0 cercavam, entre as quais o tutor Itanhaém, 0 aio frei Pedro de Santa Mariana e o marqués de Sapucaf, de que ela era necessaria para evitar as desordens que se anunciavam. Disse em outa ocasiao que nao se recordava de ter sido sondado antes pelos maioristas. Seu primeiro biégrafo, monsenhor Pinto de Campos, que o consul- tou e ao marqués de Sapucaf, registrou que, perguntado pelo regente se queria assumir o poder, d. Pedro teria respondido “sim”. Perguntado, a seguir, se queria assumir j4, respondera “ja”. Em vez do “quero ja”, teria havido um “sim, ja”. Pelas atas da Sociedade Promotora deduz-se que dificil- mente os maioristas teriam embarcado na aventura de um gol- pe de Estado sem alguma garantia da concordancia do impe- rador. O mais provavel é que tenha havido a sondagem ¢ que d. Pedro, aconselhado pelos que o cercavam, tenha dado sua anuéncia. E 0 que se pode também deduzir de sua afirmagao posterior de ter o partido maiorista se aproveitado da imaturi- dade dele. Era jovem demais e inexperiente demais, admitiu, para ter juizo e decisdes prdprias. Ao ser anunciada no Senado, a noticia do assentimento provocou estrepitosos aplausos. Qualquer resisténcia da Regén- cia foi logo inviabilizada pela adesao ao golpe do comandante de armas, Francisco de Paula Vasconcelos, e do comandante do corpo de estudantes da Escola Militar, que marchou para o Campo de Santana. No dia 23 de julho, a Assembléia Geral reunida num Senado cercado por 8 mil pessoas decretou formal- mente a maioridade. O ato reeditava e completava o Sete de Abril. A praca era a mesma, o contetido era o mesmo, qual seja, a troca de governante feita sob pressdo popular, o aclamado era o mesmo. D. Pedro m1 era plebiscitado uma segunda vez pela elite, pela tropa e pela rua. A diferenca em relagao a 1831 era que no primeiro caso o motivo principal era derrubar um rei, no segundo, entronizar outro. A tarde, d. Pedro 1 fez o juramento 40 constitucional no mesmo local. Um cortejo popular levou-o até 0 pago da cidade. Nao houve, dessa vez, 0 panico e o pranto de 1831. Havia apenas um jovem timido dividido entre a fascinagao do poder e 0 temor diante do mundo novo que, inesperada- menie, se abria para ele. As celebracdes prolongaram-se pelo testo do dia, e, A noite, as ruas se iluminaram. Uma proclamagio ao povo anunciava “uma nova era”. No dia 2 de dezembro, foi festejado o primeiro ani- versdrio de d. Pedro como imperador, 152 de vida. No diario ele anotou as atividades do dia, iniciadas com 0 almoco de ovos € café com leite as sete horas da manha, seguido da missa, a qual assistiu dentro de um uniforme que pesava oito libras, 3,6 quilos, “afora as ordens, a espada e a banda. Safa!”. Depois, te-déum, beija-mio, ¢ teatro as sete e quinze da noite. Fechou a entrada do diario com a observaco “Agora, fagam-me o favor de me deixarem dormir. Estou muito cansado, nao é pequena a macada”. A manifestacdo de aborrecimento por ceriménias foi repetida no diario do dia do primeiro aniversdrio da maio- tidade, 23 de julho de 1841: “Quanto me custa um cortejo, como méi!”. A sagrag4io e a coroaco realizaram-se em 18 de julho de 1841. O pintor Manuel de Aratijo Porto Alegre, dis- efpulo de Debret, desenhou as roupas de d. Pedro, construiu uma varanda no pago da cidade e depois esbogou um quadro | As festas rivalizaram com as de d. Jodo vi e da Revolta Farroupilha no Rio Grande do Sul. Depois de dez anos, a provincia voltava ao seio do Império, afastando de vez o fantasma da fragmentagao. Novo avanco institucional se deu em 1847, quando foi cria- da a presidéncia do Conselho de Ministros. Embora a Cons- tituigdo de 1824 nao fosse parlamentarista, houve, ao longo do Império, pressdo constante no sentido de se adotar a pratica parlamentarista segundo 0 modelo inglés. Um elemento rele- vante dessa pratica era a figura do presidente do Conselho de Ministros, também chamado de primeiro-ministro. Francisco de Paula Sousa e Melo, um dos mais puros liberais da época, as- sinou o decreto de criagdo da presidéncia. A partir daf, o impe- rador passou a discutir a constituigo dos ministérios com os presidentes do Conselho e a dirigirse a eles preferencialmente para tratar assuntos de governo. O procedimento conferia maior coesao a politica do governo e maior consisténcia aos partidos politicos. A medida que o sistema amadurecia, tornava-se cada vez mais parlamentarista, como era desejo de d. Pedro m1. Em 1848, o gabinete liberal demitiu-se, e o imperador operou a segunda mudanca de partidos, chamando de volta os conservadores, agora sob o comando do ex-regente, entio ja visconde de Olinda. O fato de chamar 0 ex-regente, apelidado de “vice-rei”, indicava que d. Pedro ja controlava as rédeas do poder, pois ndo temia a competigdo da segunda pessoa mais importante na politica do pais. Tinha quase 23 anos, ¢ se livra- ra também da influéncia do mordomo Paulo Barbosa, man- dado para a Europa em 1846, ¢ de Aureliano, afastado do pago. Embora d. Pedro nao tivesse interferido na queda do ga- binete, a chamada dos conservadores despertou grande reagao. Tedfilo Otoni falou em estelionato politico. A reagao foi maior entre os liberais pernambucanos. Menos de dois meses depois da posse do novo ministério, mas em conseqiiéncia de conflitos internos, que vinham do inicio da década, comegou nessa pro- 47 vincia a Revolta da Praia, dltima grande rebeliao da primeira metade do século. A luta de quatro meses terminou com a vit6ria do governo. Os liberais do Sul, escaldados com a derrota de 1842, nio apoiaram os do Norte. Vencidos estes, os conser- vadores consolidaram seu poder. O protesto final dos liberais foi retérico. Sales Torres Homem, talentoso jornalista liberal, filho de um padre e de uma quitandeira, educado na Franga, publicou em 1849, logo apés a derrota dos praieiros, sob o pseudénimo de Timandro, um violento panfleto contra os Braganga intitulado O libelo do povo. A queda do rei francés Luis Filipe em 1848 Ihe forneceu combustivel adicional para atacar todas as monarquias. Ti- mandro referiu-se 4 dinastia de Braganga como estirpe sinistra e atacou seus reis, um a um. Afonso vi era um crapula; Pedro 11 de Portugal, moedeiro falso; Jodo v, um libidinoso; Jodo v1, avé do imperador, refalsado, irresoluto, poltrdo. Na conclusio do panfleto, anunciou a revolug4o que seria o triunfo do in- teresse brasileiro sobre o capricho dindstico. A catilinaria pro- vocou escandalo ¢ grande reagdo, mas nao teve maiores conse- qiiéncias. Nove anos mais tarde, o autor, arrependido e ja conservador, foi nomeado ministro da Fazenda, com a apro- vacao do Braganga que governava o pais. O gabinete de 1848 foi um dos mais operosos do Im- pério. Promulgou o Cédigo Comercial, reformou a Guarda Nacional e, sobretudo, enfrentou dois problemas centrais do pais, o da regulamentacao da propriedade da terra e o do fim do trafico de escravos. A Lei de ‘Terras, de 1850, apesar de avangada pata a €poca, teve pouco efeito pratico em razdo da resisténcia dos proprietarios. Mas a lei que aboliu o tréfico, igualmente de 1850, chamada Lei de Eusébio de Queirés, conseguiu acabar com o comércio atlantico de escravos, cumprindo-se, afinal, os dispositivos da lei de 31. A pressiio da marinha inglesa foi fundamental para a aprovacio da lei, mas 48 é também verdade que, pela primeira vez, 0 governo brasileiro se empenhou seriamente no combate ao comércio negreiro. O imperador apoiou a decis&o e daf em diante nao escondeu sua posigao contrdria 4 escravidao, embora nem sempre jo- gasse todo o seu peso politico do lado dos abolicionistas. 49 = 8.“Enganaram-me, Dadamal” Outro fator que contribuiu poderosamente para o amadure- cimento de d. Pedro foi o casamento, realizado em 1843. Des- de 1840, antes da maioridade, jd se falava no assunto. A preo- cupac¢do com o tema tinha uma razdo dindstica: era preciso desde logo garantir a sucesso. Mas é possivel que os homens da Regéncia se preocupassem também em evitar que o filho seguisse o mau exemplo do pai mulherengo. Esse perigo, no entanto, nao parecia ser grande. Segundo informagoes de di- plomatas, na época da maioridade 0 monarea nao demons- trava muito interesse por mulheres. Pior ainda: 0 ministro da Franga, Ney, informou a seu governo que ele tinha desprezo pelas mulheres, atribuindo o fato a educagio religiosa que recebera do austero frei Pedro de Santa Mariana. O ministro anterior, Saint-Georges, j4 dissera a mesma coisa: “Ostenta mesmo um desprezo e um indiferentismo singular pelas mu- lheres”. O imperador corava quando 0 ministro austriaco, Dai- ser, lhe falava em casamento. 50 A decretagdo da maioridade apressou as negociagées, que néo foram faceis. D. Pedro nao era bom partido. A familia imperial nao era rica, o Brasil era um pais distante, exdtico, sem importancia. E havia o mau precedente de d. Pedro 1. As familias reais européias se perguntavam, naturalmente, se o filho nao teria puxado ao pai em matéria de relacionamento com as mulheres. Tentou-se primeiro casar o soberano e€ suas duas irmas, Janudria e Francisca, na casa da Austria, chefiada entao por Ferdinando 1, tio dos trés. O enviado brasileiro a Viena, Bento da Silva Lisboa, passou dois anos negociando com Ferdinando e seu chanceler, Metternich, sem nenhum resultado. Metternich tergiversava. A situagdo era constran- gedora para o enviado e para o Brasil. Em desespero de causa, Silva Lisboa fez amizade com Vincenzo Ramirez, ministro do rei Fernando u das Duas Sicilias, e acabou negociando com ele o casamento do imperador com a irma mais nova do rei, Teresa Cristina. Houve desapontamento no Rio de Janeiro, onde nao se conhecia a noiva nem o rei seu irmo. Trocara-se uma Habs- burgo ou uma Hohenzoller por uma princesa oriunda de um dos ramos menos prestigiados dos Bourbon. Para piorar as coi- sas, Fernando 1 tinha fama de déspota. Mas, ao ver o retrato que Ihe mandaram, d. Pedro achou a noiva “mui bela”. Anotou no diario: “Das maos de Aureliano tomo o retrato e corro ao quarto da Mana Janudria. Elas jd sabiam. Mostrei-lhes 0 retrato, de que gostaram muito”. O casamento foi realizado por procuracdo em Napoles, em 30 de maio de 1843. Foi necessdrio obter licenca de Roma, porque os noivos eram primos. Teresa Cristina chegou ao Rio em 3 de setembro. O pri- meiro encontro do casal, ainda a bordo da fragata Constituigdo, foi um desastre. A imperatriz confessaria mais tarde a filha Isabel que chorara julgando que o imperador no tivesse gos- tado dela. A percepcao de Teresa Cristina era correta. D. Pedro 51 decepcionou-se com 0 que viu ao vivo, muito diferente do que vira no retrato. A mulher que lhe tinham arrumado era quase quatro anos mais velha, de cultura modesta, baixinha, sem be- leza, e manca. Sentiu-se enganado e queixou-se amargamente a Paulo Barbosa e d. Mariana. Chorou nos ombros do mor- domo e reclamou da aia: “Enganaram-me, Dadama!”. Os dois tiveram de lhe explicar que casamentos de reis e imperadores eram negécios de Estado, nfo assuntos do coragao. O contrato estava assinado, nao havia como voltar atrds. Tivesse 0 monarca paciéncia, ¢ a afeicdo até poderia surgir. Definitivamente, d. Pe- dro nao era um homem de sorte no que dizia respeito a vida doméstica. Mas a cidade, indiferente a mais um drama pessoal, celebrou as bodas durante nove dias. Apesar da frustragao inicial, o casamento contribuiu para dar seguranga ao jovem de dezoito anos. O menino timido ¢ pouco falante, que impressionava mal os diplomatas, tornou-se mais confiante e mais expansivo nas fungGes oficiais e na vida social. A paternidade veio reforcar a mudanga, embora envolta em novyas tragédias familiares. O primeiro filho, Afonso, nasceu em 1845, mas morreu com pouco mais de dois anos de idade, confirmando a lenda de que os primogénitos dos Braganga nao sobreviviam. Em 1846, nasceu Isabel, e, em 47, Leopoldina, que vingaram. Em 1848, veio outro filho, d. Pedro Afonso, que viveu ainda menos que o primogénito. Essa segunda morte abalou o imperador. A perda de outro filho homem era particularmente dolorosa. Dedicou a ele um soneto que, embora nao seja uma jia literaria, nado deixa de bem exprimir sua infelicidade. Os versos finais que o digam: Tive o mais funesto dos destinos Vi-me sem pai, sem mae na infancia linda, E morrem-me os filhos pequeninos. 52 Mas cumprira sua tarefa de homem e seu dever de im- perador. Como a tradigo da casa real portuguesa, herdada pelo Brasil, nao impedia 0 acesso de mulheres ao trono, a sucessio estava garantida. Porém, nado sem antes passar por pequena turbuléncia. Um ano depois do casamento de Pedro m1, a irma mais velha, Janudria, casou-se com um irmao da imperatriz, 0 conde d’Aquila. Foi instantanea a antipatia entre d. Pedro e 0 cunhado. Intrigas palacianas, aparentemente fomentadas pot Paulo Barbosa, espalharam que 0 conde tramava com a irma € com politicos derrubar o imperador. Era de temperamento alegre e aventureiro, 0 oposto de d. Pedro, e Janudria era tam- bém uma princesa popular. Ainda muito inseguro, o monarca teagiu, as relagdes com o casal azedaram-se. O conde pediu, ent&o, permissao para deixar o pais. Mas, como Janudria era herdeira do trono, a licenga s6 foi concedida apés o nascimento do primeiro filho do casal imperial. No ultimo gesto de desafio, © conde recusou 0 transporte em navio brasileiro ¢ partiu com a mulher para a Europa em navio de guerra francés. 53 ie @er arate ndo se curvava” O gabinete de 1848 foi um dos de maior duragao do Império, trés anos e sete meses. O dominio conservador veio acom- panhado de uma sensagdo de que novos tempos se inau- guravam, em parte como fruto das reformas realizadas. O fim do trafico, por exemplo, liberara capitais que foram respon- sdveis por um primeiro surto de empreendimentos. Desapa- recera 0 risco para a ordem social e para a unidade do pais. Era tempo também de pér um ponto final nos rancores politicos herdados da Regéncia. Justiniano José da Rocha, jornalista conservador, inter- pretou magistralmente a nova realidade num panileto de enor- me impacto intitulado Agdo, reagdo, transagdo. Justiniano era filho de pais desconhecidos, também educado na Franga, como Sales Torres Homem. Militando em campos opostos, os dois eram excelentes jomalistas e representavam & perfeigao a ascensao social de mulatos de talento. No panfleto, argumen- tou que, ao avanco da liberdade, iniciado em 1834, sucedera a 54 teacgao da ordem em 37. Agora chegara a vez da transacao, da conciliagao, da superagao dos velhos antagonismos. A pa- lavra conciliagao comegou a circular. O imperador no s6 apoiava a idéia, como lhe foi atribui- da sua iniciativa. A conciliagdo seria “pensamento augusto”, como disse 0 marqués de Olinda. Para a dificil tarefa de p6-la em pratica, d. Pedro chamou o mesmo homem com quem tivera o primeizo atrito politico em 1843, Honério Hermeto, agora mar- qués de Parand, que vivia a plenitude de seus cingiienta anos. O marqués credenciara-se para a empreitada ao adotar posicdo mo- derada em Pernambuco, no final da Revolta da Praia. O antigo desentendimento nao impedia que o imperador 0 admirasse. E ele admirava e respeitava, sobretudo, a independéncia de Hond- tio. “O Parana nao se curvava”, disse certa vez. Parana assumiu em setembro de 1853 e formou um mi- nistério talhado para a inovacdo. Ao lado de dois senadores experientes, e de um general, colocou quatro jovens deputa- dos, de quarenta anos ou menos. Na escolha desses jovens, mostrou grande argticia. Dois deles seriam mais tarde presi- dentes do Conselho de Ministros, Paranhos, futuro visconde do Rio Branco, e Jodo Maurfcio Wanderley, futuro barao de Cotejipe. O terceiro, Nabuco de Aratijo, foi ministro mais de uma vez e tornou-se um dos politicos mais importantes do Segundo Reinado. Mereceu do filho, Joaquim Nabuco, a me- Thor biografia politica ja escrita no Brasil. O quarto estreante era o amigo de infancia do imperador, Luis Pedreira do Couto Ferraz, j4 visconde do Bom Retiro. A maturidade politica de d. Pedro ficou evidente no fato de que pela primeira vez entregou a um presidente de Con- selho, e logo ao maduro e independente Parand, instrugdes contendo idéias de governo. Entre essas idéias, estavam a in- trodugao da eleigdo direta acompanhada do sisterna majoritirio de votacdo, chamado na €poca de “circulos”, a promogao da 55 educacdo primdria e secundaria, a execuciio da Lei de Terras, a colonizagao, a repressaio enérgica ao tréfico de escravos, 0 afastamento dos militares da politica, a construg4o de estradas de ferro. Algumas desciam a detalhes e antecipavam em muito futuras reformas urbanas da cidade, como o atrasamento dos morros de Santo Antonio e do Castelo. Anexou 4s instrugdes algumas Idéias gerais sobre o funcionamento do gabinete e sobre como deveriam ser as rela- Ges entre o chefe de Estado e o ministério. A primeira regra dizia que 0 ministro que jogasse a responsabilidade de sua agado sobre o imperador seria demitido. Nunca cumpriu a ameaga, apesar de se ter tornado comum a pratica condenada. Em tese, sendo o Poder Moderador irresponsdvel, o ministro devia cobrir politicamente os atos da Coroa. Caso discordasse deles, deveria pedir demissdo. O que acontecia com freqiiéncia era que 0 ministro nado concordava, nao saia e responsabilizava, a boca pequena, d. Pedro. Outra regra, essa cumprida 4 risca, foi que as decisGes seriam todas tomadas em despacho coletivo do ministério, ou do ministro individualmente com o imperador. Uma terceira diretriz tinha a ver com a ndo-interferéncia do governo nas eleigdes. Para 0 monarca, o segredo do bom fun- cionamento do sistema parlamentar de governo estava na realizacdo de eleigdes confidveis. Se os ministros manipu- lassem as eleig6es, a opinido nacional nfo se manifestava no Parlamento e o Poder Moderador era obrigado a promover, por conta prépria, a rotagao dos partidos no governo. A relacio de Pedro 11 com os ministros foi um ponto delicado até o final do Império. Tratava-se no fundo da relagao entre o Poder Moderador € 0 Poder Executivo. A complicacao comecava na Constituicdo de 1824. Ela atribuia ao imperador, privativamente, o exercfcio do Poder Moderador, entre cujas prerrogativas estava nomear e demitir livremente os ministros de Estado. Além disso, fazia dele chefe do Poder Executivo, tarefa a ser exercida por intermédio dos ministros de Estado. Durante todo o reinado discutiu-se 0 que significava na pritica chefiar um poder que era operado por outros. Como o im- petador era irresponsavel, quem se responsabilizava por seus atos? Como os ministros eram responsdveis, por que se respon- sabilizar por atos de outro? Qual seria, afinal, a natureza da telagao entre o chefe do Poder Executivo e 0 presidente do Conselho de Ministros? O reinado terminou sem que se che- gasse a um consenso sobre esse tema. Nos papéis do imperador, hé um documento em que ele explicita sua posigdo. A chefia, segundo ele, verificava-se ape- nas na livre escolha do ministério. Quanto ao resto, reduzia- s¢ a uma supervisdo das agdes dos ministros, a qual nao podia retirar-lhes a liberdade de se opor e, eventualmente, pedir demissao. No entanto, 0 monarca reconhecia que, na pratica, a aplicagao dos princfpios constitucionais “dependia da cons- ciéncia e bom juizo de quem tem de realizé-los”. Isso signifi- cava que as relages entre o imperador ¢ seus ministros aca- bavam variando de acordo com a personalidade destes tiltimos, sobretudo do presidente do Conselho, que tinha ligagao muito mais préxima com o chefe de Estado. Mas havia duas regras bdsicas. A primeira era discutir tudo em conselho ou com os ministros individualmente, quando Pedro m podia ser derro- tado. A segunda era o direito de fiscalizacdo sobre a acao do ministério. O imperador informava-se sobre tudo 0 que acon- tecia, lendo os jornais, visitando reparticdes piblicas, ouvindo reclamagGes em audiéncias semanais. A carruagem imperial era vista com freqiiéncia cruzando aos solavancos as ruas mal calgadas da cidade a caminho de alguma repartigao, escola, arsenal, hospital. Os ministros vingavam-se dessa fiscalizagao chamando d. Pedro de “génio de bagatelas”. Bem-humorado, Mendes Fradique diria mais tarde que o imperador fazia tudo, exceto a barba. As reunides ministeriais realizavam-se em Sao Cristévao, em torno da grande mesa da sala de despachos, de inicio a noite, depois, a pedido de Caxias, pela manha. No verao, quando a familia imperial subia para Petrépolis, o imperador descia uma vez por semana, ou subiam os ministros. Falava primeiro com o presidente do Conselho, em seguida com todos juntos. Delegou cada vez mais poder aos presidentes, inclusive, em suas proprias palavras, para se acobertar de criticas. No despacho coletivo, chamado de “sabatina”, ouvia todos os ministros e fazia anotacées a lapis em tiras de papel. Os sete ministros falavam sobre todos os assuntos. D. Pedro dis- cutia, As vezes convencia, as vezes era derrotado. Tomadas as decisdes, cobrava deles sua implementacdo, bombardeando-os com telegramas e bilhetinhos, no estilo mais tarde adotado por Janio Quadros. Sé ao bardo de Cotejipe enderegou duzentas cartas e bilhetes. Outros tantos foram dirigidos a Rio Branco, Zacarias de Géis e Vasconcelos, Joao Alfredo. Com esses homens, quase todos formados em direito e com experiéncia no Legislativo, no Executivo, no Conselho de Estado e na administragao de provincias, d. Pedro lidou duran- te seus 49 anos. Conhecia-os um a um, seus méritos e defeitos. Eles também o conheciam bem, suas idéias, seus métodos, suas manias. Dos dois lados, desenvolveu-se uma relaco de res- peito, mas nao de amizade, salvo poucas excegdes. De propé- sito, o imperador evitava intimidades, e os politicos também se mantinham a certa distancia de Sao Cristévdo para evitar acusacio de aulicismo. Embora afirmasse tratar a todos os ministros igualmente, alguns mereciam dele tratamento mais igual. Era o caso, sobretudo, do marqués de Parand, do visconde do Rio Branco, de Caxias, do marqués de S40 Vicente e de José Anténio Saraiva. Parand era o que jd se viu. Rio Branco agigantou-se na politica durante a Guerra do Paraguai ¢ conquistou de vez a simpatia de d. Pedro ao conseguir aprovar no Parlamento a Lei do Ventre Livre, contra a vontade de seu proprio partido. Rea- lizou o mais longo e mais eficiente governo do Segundo Reinado, quatro anos e trés meses, no decurso do qual fez aprovar varias reformas defendidas pelos liberais. Rio Branco foi sem dtivida o mais completo estadista da época, para o que contou com pequena ajuda da natureza, um belo fisico, gran- des dotes oratérios, uma energia inesgotavel. 'Transitou do campo liberal para o conservador, distinguiu-se inicialmente na diplomacia e depois na grande politica nacional. Transformou- se no reformador de confianga do imperador. Foi em suas mios que este deixou o governo durante a primeira viagem A Europa, em 1871, decerto inseguro quanto a capacidade de Isabel em exercer a regéncia. Parand e Rio Branco eram estadistas 24 horas por dia. A aproximagao da morte, deliravam, imaginando-se na Camara dos Deputados a fazer discursos. Caxias era figura quase paterna. Conviveu com o impe- rador ao longo da vida, e lhe serviu sempre de conselheiro em matéria politica e militar. O diario imperial registrava muitas vezes: “Veio o Caxias”. Apesar de mau politico, era garantia suprema da autoridade, da ordem interna, da integridade nacional. Foi a total confianga no general que levou 0 monarca a praticamente forgar o gabinete liberal de 1866 a nomeé-lo para o comando das tropas brasileiras no Paraguai. No final da guer- ta, iria cometer uma grande indisciplina, sem que isso abalasse a confianga imperial. D, Pedro lhe deu o titulo de duque e, assim como fizera com Rio Branco, deixou o governo em suas maos durante a segunda viagem ao exterior, em 1876. O marqués de Sao Vicente, José Anténio Pimenta Bue- no, era 0 constitucionalista predileto e redator de projetos importantes, como o da libertagdo do ventre. Sua interpre- tagao da Constituicao, tema a que dedicou um livro, era a referéncia basica do imperador, sobretudo quando se tratava Bo do espinhoso capitulo do Poder Moderador. Foi também a ele que d. Pedro pediu a primeira redagao do projeto que se tor- naria a Lei do Ventre Livre. Saraiva era o grande negociador, o homem para os momentos de impasse politico, 0 analista arguto. A ele recorreria 0 monarca para fazer aprovar no Con- gresso as leis da eleig&o direta e dos Sexagendrios, e a ele no- vamente retornaria em 1889, ao apagar das luzes do Império. Variava também a atitude dos ministros diante do imperador. Os mais préximos destacavam-se pela lealdade sem aulicismo, cujo melhor exemplo foi Parana. Outros nao se entendiam com o chefe de Estado. José de Alencar esteve sempre as turras com ele, na literatura, na poli tica, na questo da escravidao. Quando ministro, candidatou-se ao Senado, contra a recomendacao de d. Pedro, que, coeren- temente, ndo o escolheu na lista triplice. As relagdes entre os dois azedaram de vez. Nabuco de Aratijo foi ministro, e era o mais respeitado chefe liberal em sua época, mas nunca foi chamado 4 presidéncia do Conselho, sem que se saiba bem por que razao. Zacarias de Géis e Vasconcelos, trés vezes presidente do Conselho, foi o centro da pior crise politica do regime em 1868. Discordaya da interpretagdo de Pimenta Bueno sobre o Poder Moderador, e nao concordou com uma escolha de sena- dor feita por d. Pedro. Demitiu-se e recusou-se a indicar suces- sor, abrindo caminho para a chamada dos conservadores. Res- sabiado, votou depois contra 0 projeto da Lei do Ventre Livre, que fora o primeiro a mencionar quando presidente do Con- selho, e nao aceitou nomeacio para o Conselho de Estado. Outros ainda, a maioria, mantinham posicgao ambigua. Buscavam o prestfgio do poder, o calor do sol imperial, mas ressentiam-se do que consideravam excessiva intromissao do monarca nos negocios do governo. Nao tinham a coragem de enfrenté-lo nos despachos, mas de longe espalhavam suas quei- xas e criticas, recorrendo muitas vezes a pseuddnimos. Foi 0 60

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