You are on page 1of 22

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
HISTÓRIA DA FILOSOFIA I

Concepções de mundo e subjetividade na história da filosofia:


A modernidade e sua herança crítica

Docente: Prof. Dr. Reinaldo Furlan


Discentes: Maitê Marya Luchesi Bosco (11793886)

Ribeirão Preto

2022
Introdução

As noções de mundo e subjetividade que fundamentam os saberes e práticas de um


determinado momento histórico muitas vezes se ocultam na naturalização da nossa
compreensão de ser humano como sendo a única que já existiu e a única que existirá.
Todavia, o que consideramos homem e o que consideramos mundo - bem como a relação que
eles estabelecem - são concepções que se constroem e se modificam ao longo da história da
filosofia, de modo que impactam na constituição dos discursos que concorrem no fazer
cotidiano do psicólogo e na própria busca contemporânea por conhecimento. Em vista disso,
o presente ensaio foi elaborado objetivando realizar uma síntese de aspectos essenciais do
percurso teórico das noções de mundo e subjetividade, desde a filosofia moderna até as
críticas que surgiram a partir dela. Neste sentido, destaca-se que este processo foi realizado
ao longo do curso de História da Filosofia I, ministrado pelo professor Reinaldo Furlan,
permitindo uma reflexão acerca deste percurso por meio da leitura e discussão de diversos
autores que serão abordados em conjunto com contribuições em sala de aula. Assim, ao longo
deste texto, serão discutidas as contribuições filosóficas modernas de René Descartes e
Immanuel Kant, seguida de sua herança crítica - com as filosofias de Karl Marx, Friedrich
Nietzsche, Baruch Espinoza conforme as elaborações de Gilles Deleuze, Martin Heidegger,
Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty - de modo a refletir sobre a subjetividade posta em
questão ao longo da história da filosofia.

1
Discussão

A compreensão da modernidade em sua concepção de subjetividade é um esforço que


se justifica na importância do pensamento moderno para a construção de todo saber e fazer
que viria a seguir, seja como elemento por ela fundamentado ou de crítica e oposição. Com
isso, a modernidade pode ser expressa como um grande projeto de renovação da filosofia e da
cultura ocidental do século XVII e XVIII, que estabelece uma atitude humanista de busca por
conhecer a verdade por meio razão, tal como aponta o professor Franklin Leopoldo e Silva
em uma palestra do I Curso Livre de Humanidades (2012). Neste contexto, René Descartes
(1596-1650) e Immanuel Kant (1724-1804) são figuras centrais, cujo pensamento marcaria
não só a história da filosofia, mas as próprias concepções de homem e mundo que perpassam
nossas compreensões contemporâneas.

Primeiramente, Descartes foi um filósofo moderno de grande relevância para


compreender as noções precursoras da psicologia, construindo um entendimento particular de
homem e mundo. A partir do texto de Franklin Leopoldo e Silva (1993) e da palestra
ministrada pelo mesmo autor, destaca-se que Descartes elabora sua filosofia a partir da
unidade da razão, que poderia ser aplicada a todos os aspectos da existência humana, desde a
metafísica até a físicomatemática, as artes mecânicas (técnica), a medicina e a moral. Neste
sentido, seriam unidas teoria e prática, por meio da razão, na busca humanista por
conhecimento e autonomia do homem. Assim, emerge em Descarte uma subjetividade do
homem enquanto ser racional capaz de utilizar-se da própria razão na busca por
conhecimento.

Dessa forma, o filósofo se fundamenta na ideia de que o ser que conhece seria o pólo
irradiador do conhecimento, de modo que a realidade estaria, a priori, nele mesmo, sendo
alcançável por meio da razão na obtenção de ideias. Fundamentado nesta noção, o filósofo
parte do paradigma matemático e assegura o valor do método e do rigor científico que a
própria ciência como um todo herdaria. Este fazer científico busca basear-se em evidências
obtidas a partir do uso metódico da subjetividade do sujeito, por meio da condução rigorosa e
lógica do raciocínio de tal modo que as idéias se constituiriam de forma independente da
experiência dos sentidos. Sua concepção constituiu as bases da investigação científica que
repercutem até os dias atuais, buscando nesta ideia de controle metódico da subjetividade do
sujeito, estabelecer uma uma postura objetiva que eliminaria a arbitrariedade e acaba por
teoricamente cindir sujeito e objeto na busca pela verdade.

2
Concomitantemente, concebendo a subjetividade estruturada na unidade da razão, a
dúvida é estabelecida como ato fundamental da constituição do saber. Este duvidar o levaria à
verdade sobre a própria existência da subjetividade, de modo que o filósofo encontra na
própria consciência o meio de partida da obtenção do conhecimento. Esta concepção se
fundamentaria na elaboração descartiana que concebe o homem por meio de um dualismo,
propondo a existência da alma (substância pensante) e do corpo (substância extensa) de
forma independente. Essa cisão determinaria o processo de desenvolvimento do
conhecimento de modo conceber uma separação entre sujeito e objeto, tal como se manifesta
na elaboração do método como discutido. Neste sentido, como a subjetividade se afirma
existente por si mesma, o sujeito que conhece, conhece a priori apenas a si mesmo, estando
separado do mundo exterior. Disto, deriva o cogito cartesiano “Penso, logo existo” do qual
ela parte, já que este o sujeito conheceria a priori apenas a si mesmo, reconhecendo que existe
a partir de sua própria capacidade de pensar. Assim, a partir do duvidar, descobre-se a
subjetividade, concebida na ótica da cisão entre alma e corpo; sujeito e objeto; mundo das
ideias e mundo dos sentidos, o que o nos leva ao conceito de representação, que caracteriza o
idealismo cartesiano e a sua concepção de homem e mundo como discutida.

Diante do exposto, pode-se destacar como as concepções cartesianas levam a


compreensão do homem como capaz de utilizar a razão para condução metódica de sua
própria subjetividade, acessando o mundo de forma a conhecer a verdade. No entanto, esta
compreensão, tal como o professor Leopoldo explícita, deixou lacunas e paradoxos sobre o
próprio limite do conhecimento humano, sobre o qual o filósofo Immanuel Kant se debruçou
de modo a revolucionar a própria filosofia. Neste sentido, Kant elaborou uma nova
concepção de homem ao conciliar materialismo e idealismo e mudar o foco no qual se
fundamentava a metafísica. Para esclarecer este percurso, o texto de Chauí (2000) destaca
como a noção kantiana de homem se expressa como “matéria e forma”, isto é, envolve a
experiência no mundo e uma forma específica de pensá-lo determinado por uma estrutura
universal. Assim, Kant concebe o conceito de subjetividade transcendental constituída por
duas faculdades. Uma delas é a da sensibilidade que envolve as formas a priori de espaço e
tempo que são formas puras de percepção (recepção) do objeto. A outra envolve o
pensamento, ou seja, as categorias a priori de entendimento como a de substância,
causalidade, quantidade, qualidade entre outras que organizam o que é percebido por meio de
conceitos. Nesta direção, o homem é dotado de uma forma de conhecimento que seria inata,

3
mas ainda sim se realizando por meio da experiência. Nisso, se justifica sua afirmação do
homem como uma tábula rasa, isto é, uma folha em branco com uma determinada estrutura a
ser preenchida pela experiência. Consequentemente, o conhecimento para Kant se expressaria
na maneira como a razão organiza os dados da experiência nesta estrutura universal.

Tendo isto em consideração, na concepção kantiana, o conhecer ocorreria com a


formulação de juízos sobre as propriedades positivas e negativas de um objeto, de modo que
as propriedades que ele possui sejam afirmadas e neguem as propriedades que ele não possui.
Todavia, só é possível conhecer um objeto sob as formas de espaço e tempo e os conceitos de
entendimento de sua forma universal. Neste sentido, a sensibilidade humana é limitada,
concebendo a existência de um objeto apenas se este puder ser apreendido com a formação de
juízos, caso contrário este objeto não pode existir, ao menos na experiência humana. Com
isso, o filósofo realiza a distinção entre fenômeno e nôumeno. O primeiro seria aquilo que se
apresenta ao sujeito do conhecimento na experiência enquanto o segundo termo apreende o
que não se manifesta na sensibilidade de tempo e espaço e categorias de entendimento
humano, sendo inacessível ao homem. Assim não é possível conhecer a realidade como um
todo em si já que não podemos conhecer os nôumenos por si mesmos, apenas suas
manifestações que ocorrem enquanto fenômeno.

É a partir desta compreensão dos limites da razão humana que pode-se refletir o
questionamento de Kant se a metafísica é possível, questão que ele busca responder em
“Crítica da Razão Pura”. Neste sentido, ele critica a metafísica existente até a sua época, já
que esta se debruçava sobre conceitos que não poderiam ser apreendidos pelo homem, tal
como a existência de deus, que escaparia às noções de tempo e espaço e das categorias de
entendimento humano. Com isso, Kant realiza o que podemos considerar como uma
revolução copernicana na filosofia, já que muda o centro da metafísica para o estudo dos
fenômenos. Dessa forma, o filósofo se debruçou sobre o estudo do conhecer e da experiência
humana (razão pura), além de suas ações concretas no estudo da ética (razão prática). Esta
última, envolveria o conceito de liberdade expresso na possibilidade do homem de agir para
além da necessidade ou causalidade. Pensando no estabelecimento de um dever moral que
serve ao próprio homem, Kant concebe o ser humano como um ser moral, mas que sendo
também um ser natural de necessidades, nem sempre age moralmente de forma espontânea. O
dever surge, assim, como forma imperativa que deve valer para toda ação moral, de modo
que toda ação deve ser tomada se for possível e desejável que ela se torne uma lei universal
(Imperativo Categórico). Com isso, a partir do uso da razão, o dever é escolhido como ação

4
moral em benefício do próprio homem como manifestação de sua própria autonomia.
Considerando estes aspectos, podemos refletir como a concepção de subjetividade
estabelecida pelo filósofo carrega um otimismo característico do iluminismo que - tal como o
pensamento moderno em geral - estipula a noção de razão como forma de encontrar
autonomia e emancipação.

Além disso, a partir das contribuições do professor Furlan, é interessante enfatizar que
a filosofia kantiana inaugurou, na própria modernidade, a concepção de finitude do
conhecimento, que se contrapôs, tal como discutimos, as lacunas da filosofia cartesiana na
busca racional pelo conhecimento a partir da esforço metodológico em todos os campos do
conhecimento. Assim, de modo a se debruçar nos fenômeno, isto é, na experiência humana,
Kant separa a metafísica da fé, cujos objetos, tal como deus, a totalidade do mundo e a alma,
antes almejados pelo conhecimento metafísico, passam a ser objetos exclusivos da crença
(religião). Logo, na concepção de Kant é possível se debruçar na experiência e ações
humanas, buscando entender como o ser humano conhece, mas não o conhecimento em si
mesmo. Nesta direção, a moral passa a se apoiar na autopercepção da liberdade, que inaugura
outra ordem - a prática - que não é a do conhecimento, visto que este é determinado pela
concepção de fenômeno, no qual a ideia de causalidade é organizadora de tudo que é
percebido, inclusive do comportamento humano.

Tendo isto em consideração, pode-se explicitar como a concepção moderna de


subjetividade, tal como discutimos nas contribuições de Descartes e Kant, estabelece a
dualidade entre pensamento ou razão (liberdade) e a natureza (determinada por relações
causais entre os objetos), tal como foi possível refletir com as contribuições do professor. Por
sua vez, esta dualidade se realiza no próprio homem por meio da consciência (razão) e do
corpo. A partir desta dualidade, pode-se entender como esta subjetividade moderna tem sua
centralidade pautada no pensamento, que organiza o conhecimento e deve pautar o próprio
comportamento humano. Diante disto, as críticas e desconstruções de filosofias posteriores
buscaram atacar esta centralidade da razão/alma/pensamento. Neste sentido, faz-se uma
síntese das contribuições de Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Gilles Deleuze (Espinoza),
Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre e Merleau-Ponty quanto às concepções de subjetividade e
mundo que seus pensamentos concebem.

Iniciando este trecho do percurso teórico da subjetividade por Karl Marx (1818-1883),

5
destaca-se que, tal como o texto de Eagleton (2002) aponta, a teoria do autor se expressa na
busca por uma filosofia prática que se propõe a transformar o que busca compreender. Isto
porque o objetivo maior é a transformação social por meio da realização da filosofia
concomitante à superação do proletariado na luta de classes, que permeia a história da
humanidade e se relaciona à própria concepção marxista de homem. Neste sentido, o
conhecer-se é explicitado como uma maneira de alterar-se no próprio ato, de modo que
conhecimento e sujeito se correlacionam na superação. Marx realiza suas elaborações de um
viés materialista que reconhece a importância material na própria prática ou saber que se
desenvolve, de modo que ao desenvolver sua produção material o homem altera o próprio
pensamento e os produtos dele. Neste sentido, a própria linguagem é uma manifestação das
práticas historicamente constituídas no contexto social, pois não há prática humana sem
ligação com o campo dos significados. Assim, na produção de sua existência, a subjetividade
da noção marxista é construída nas próprias determinações materiais históricas que
dialeticamente produzem as condições de sua produção ao longo da história.

Nesta condição, a sociedade capitalista que Marx analisa torna o trabalho uma forma
de alienação e exploração humana. Tendo a burguesia atingido o poder, as estruturas que
sustentam esta sociedade ocultam suas desigualdades por meio da ideologia permitindo sua
própria manutenção, ou seja, a classe que dispõe dos meios de produção material detém o
controle sobre os meios de produção espiritual. No entanto, as contradições que mantém este
sistema se tornam cada vez mais visíveis com o agravamento resultante de sua continuidade,
de modo que o pensamento materialista pode colaborar para alteração desta forma de
existência. Partindo disso, como a linguagem também é um produto das condições materiais,
Marx critica os próprios problemas da filosofia que se ancoram em contradições que o autor
julga serem sobretudo políticas. Afinal, quando a filosofia se torna ideologia, na realidade o
que faz é desviar o foco dos conflitos históricos em favor do campo do espiritual ou oferecer
uma resolução desses conflitos num plano meramente imaginário. Em oposição a isto, a
filosofia marxista se afirma materialista em oposição às filosofias idealistas que sustentam
concepções de homem convenientes à própria manutenção do sistema.

Considerando o exposto, podemos refletir como a subjetividade posta em questão a


partir das contribuições filosóficas de Marx enfatiza a materialidade da condição humana,
que ao produzir e ser produzido por suas próprias circunstâncias histórico culturais precisa da
própria filosofia e pensamento crítico para superação de sua condição alienada. O autor
realiza uma crítica explícita às filosofias idealistas que se debruçam sobre problemas que a

6
partir da própria linguagem pouco se relacionam a transformação da condição de existência
humana. Assim, a noção de subjetividade e mundo marxista estabelece uma relação
indissociável e dialética entre estes, já que o mundo concebido enquanto contexto social
formata as subjetividades que nele podem se manifestar ao mesmo tempo que é transformado
por elas. Logo, esta subjetividade encontra-se no meio de relações sociais que a compõem de
determinada forma e é a perspectiva crítica destes processos sociais que pode contribuir para
o desenvolvimento de uma consciência que enfrente as ideologias e lute pela transformação.

Partindo para uma outra perspectiva crítica da modernidade, o filósofo Friedrich


Nietzsche (1844-1900) foi um crítico ferrenho da subjetividade moderna, tal como foi
possível perceber a partir de trechos das obras “Genealogia da Moral” (Nietzsche, 1987) e
“Assim falou Zaratustra” (Nietzsche, 2011). A partir deste primeiro texto, é possível
compreender o ataque que o autor faz à ideia moderna de origem da moral, retomando a
construção destes termos e os sentidos que eles passaram a carregar, questionando, então, o
“valor desses valores”. Em suas teses, Nietzsche narra a história do processo de valoração das
atitudes e pensamentos humanos como bons e maus. Neste processo, ele contrasta a moral
dos nobres e a moral dos escravos, sendo que a primeira se pautava nas diferenças entre as
classes tidas como naturais, colocando os senhores em suas práticas e ações como boas. No
entanto, com a queda desta moral, passa a ser valorada como boas as ações associadas ao
altruísmo, o que Nietzsche chama moral de rebanho. Implicado neste contraste, o filósofo
coloca que a moral dos nobres nasce da afirmação de si mesmos, enquanto a moral dos
escravos nasce do ressentimento gerado pela negação da ação ao qual esse grupo é
submetido, de modo que é ressentida e ao prevalecer na negação da outra constituirá a moral
moderna.

Este aspecto que Nietzsche denomina e é traduzido como ressentimento tem forte
ligação com a concepção de subjetividade que o filósofo fundou em seus pensamentos. Neste
sentido, o filósofo disserta sobre a relação entre indivíduo e sociedade, abordando como a
consciência é um fruto do processo de civilização, levando o sujeito a sacrificar valores
individuais para viver em grupo, reprimindo seus instintos e sua própria vontade de potência.
No entanto, ao reprimir os instintos, estes são introjetados na interiorização do homem, que
leva ao desenvolvimento de um mundo interior que se aprofunda com o que não pode ser
externalizado. Consequentemente, os instintos naturais humanos selvagens, hostis e cruéis,
sendo interiorizados atormentam o próprio homem de modo a originar a má consciência que,

7
por sua vez, leva ao adoecimento. Assim, para suportar esta forma de existência cria-se um
véu de falsidade, edificando um ideal que calúnia verdades e santifica mentiras.

Neste mesmo sentido, no parágrafo de “Assim falou Zaratustra” (Nietzsche, 2011),


Nietzsche critica a concepção de que a alma enquanto pura e elevada é superior ao corpo que
seria apenas um elemento material a ser suportado. Nesta crítica, ele ataca a própria divisão
moderna de alma e corpo, já que é a partir do corpo, senhor do Eu, que se constitui o
Si-mesmo. Assim, a concepção de homem discutida é elaborada a partir de uma relação
indissociável entre corpo e pensamento que constituem as necessidades humanas. O sentir
corpóreo, seja da dor ou do prazer, se conecta diretamente com os pensamentos e ações do Eu
na busca do aumento de sua potência, de modo que pensamento crítico só existe a partir do
próprio corpo. Logo, o corpo seria a grande razão e soberano de onde partem as ações
humanas, que não deve ser negado, mas amado como é, em direção a maior potência.

Diante destas considerações, a dualidade moderna entre o pensamento/razão/liberdade


e a natureza - manifesta no próprio homem por meio da dualidade da consciência e do corpo -
é atacada por Nietzsche. Contra esta centralidade moderna do pensamento, o filósofo constrói
o que ficou conhecido como o crepúsculo dos ídolos ou a filosofia do martelo, isto é, uma
filosofia que se baseia na destruição da cultura, religião, moral e qualquer outra construção
que negue a existência e os instintos humanos tal como são. Assim, Nietzsche embasa uma
subjetividade que se pauta na vontade de potência, que precisa se opor aos ídolos e repressões
da sociedade que levam ao adoecimento. O homem capaz de fazê-lo é o que ele denominou
de super-homem, nível máximo de desenvolvimento e modelo de ser humano. Neste sentido,
Nietzsche escreve a favor de se viver no mundo como ele é, ser homem tal como o homem é,
para além do bem e do mal. Este seria o “amor fati” - que se opõe ao conceito de niilismo,
que é a negação - um amor pela condição humana sem falseamentos e fugas transcendentais.
Nisto se sintetiza a oposição ferrenha do filósofo às concepções modernas que recorrem ao
idealismo e à moral, tal como discutido anteriormente.

A partir dos entendimentos construídos sobre Nietzsche, é possível adentrar as


compreensões de um filósofo muito admirado por ele - Baruch Espinosa (1632-1677) -
odiado em sua época pelo escândalo que sua filosofia representava à moral moderna. Neste
sentido, em seu capítulo “Sobre a diferença da Ética em relação a uma Moral”, Deleuze
(2002) destaca três aspectos que marcaram o motivo desta reputação - a desvalorização da

8
consciência, dos valores e das paixões tristes - que o levaram a ser acusado de materialista,
imoral e ateísta. Quanto à desvalorização da consciência em proveito do pensamento, se
destaca o paralelismo de Espinosa, que consiste na negação de qualquer ligação de
causalidade entre espírito e corpo e, principalmente, na recusa de toda iminência de um sobre
o outro. Negando a superioridade da alma sobre o corpo ou mesmo do corpo sobre a alma,
Espinosa ataca diretamente o pensamento cartesiano que concebe a centralidade do
pensamento na subjetividade moderna. Com isso, Espinosa denuncia que muito se fala do
pensamento e que pouco se sabe sobre o corpo e que em ambos os casos o conhecimento que
se tem - do corpo ou do pensamento - não ultrapassa o próprio corpo ou o próprio
pensamento. No caso deste último, enfatiza-se que isto equivale dizer que a consciência que
temos dele não ultrapassa o próprio pensamento de modo que, o que Espinosa propõe não é a
desvalorização do pensamento, mas da consciência, reconhecendo a descoberta de um
inconsciente do pensamento, profundo tal como o próprio corpo é desconhecido.

Nesta direção, ele reconhece que a consciência é naturalmente um lugar de ilusão, já


que esta recolhe efeitos e ignora as causas, ou seja, recolhe apenas o efeito que um corpo tem
sobre o nosso, ou o efeito que uma ideia tem sobre a nossa, sem distinguir o que é o nosso
corpo, nossa alma e os outros corpos e almas sob suas próprias relações. Deste modo, nos
tornamos escravos por sermos ignorantes das causas e naturezas em geral, sofrendo efeitos
sem conhecer as leis que os regem, limitados a ideias confusas, que se afirmam a partir de
uma tripla ilusão: a ilusão das causas finais (tomando os efeitos pelas causas); a ilusão dos
decretos livres (de modo que consciência se entende como causa primeira e afirma seu poder
sobre o corpo); e a ilusão teológica (em que consciência não se imagina como causa primeira
e invoca um deus que opera por causas finais ou decretos livres).

A partir destas ideias, destaca-se a consciência, como passagem ou sentimento de


passagem de totalidades menos ou mais poderosas, é acompanhada do apetite (ou desejo) e
relacionada ao esforço pelo qual cada coisa encoraja-se na tentativa de perseverar no seu
próprio ser (conatus). Nesta direção, com relação a desvalorização da centralidade da
consciência da subjetividade moderna, Descartes aponta como Espinosa e Nietzsche
defendem que a atividade principal seria inconsciente e a consciência apenas aparece quando
o todo quer se subordinar a um todo superior, de modo que a consciência é a consciência de
um todo superior. Partindo desta compreensão de conatus e consciência transitória para maior
ou menor potência a partir de encontros que compõem e decompõem, a desvalorização dos
valores, que é discutida na segunda parte do texto, denuncia que aquilo que é chamado de

9
bem ou mal se relacionam a consequências de relações que se compõem ou não com relação
a coesão do ser. Desta forma, não existe bem ou mal enquanto aspectos transcendentais,
afinal pensando a concepção de Espinosa do todo sendo uma substância só, regido por leis de
uma totalidade que é infinita e em que somos apenas modos, há apenas o bom e o mau, isto é,
aquilo que nos compõe e aumenta nossa potência (bom) e aquilo nos decompõe com relação
ao nosso corpo e reduz nossa potência (mau).

Assim, em um sentido objetivo, bom e mau são conceitos relativos e parciais sobre o
que convém a nossa natureza e o que não convém. Em um segundo sentido mais subjetivo,
envolve dois modos do existir humano, na busca ativa por construir relações com o que
aumenta sua potência (bom) ou uma existência de escravisão, vivendo ao acaso dos
encontros, angustiando-se com os efeitos que não lhe convêm e propagando este
ressentimento e destruição (mau). Desta forma, Espinosa substitui a Moral, que nasce da
ignorância tomada como dever e valores transcendentais, pela Ética. Assim, separa-se as leis
da moral do domínio e verdades da natureza, já que esta última permite a busca pelo
conhecimento - em vez da obediência - e este é a potência que permite diferenciar os modos
bom e mau do existir.

Partindo desta diferenciação da Ética e da Moral, é possível compreender a


caracterização dos personagens da denúncia de Espinosa que possibilitam discutir a
desvalorização das paixões tristes em proveito da alegria. A paixão triste é um complexo que
reúne os desejos infinitos e o tormento da alma, a cupidez e a superstição e estes personagens
chamados de trindade moralista envolvem o homem das paixões tristes (escravo), o homem
que as explora e precisa delas para estabelecer seu poder (tirano) e o homem que se entristece
com a condição humana e as paixões do homem em geral (padre). Ressentidos contra a vida,
eles têm como paixão a impotência e a miséria, baseados em valores transcendentes que,
vinculados às ilusões da consciência, orientam-se contra a vida, que é envenenada pelas
categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissão. Esta vida de
falsificações é denunciada por Espinoza tal como Nietzsche o faz depois em uma grande
crítica à subjetividade moderna.

Tendo em vista estas considerações, as noções de mundo e subjetividade construídas


por Espinosa se pautam em uma teoria das afecções que corresponde a compreensão do
indivíduo como uma essência singular, um grau de potência, que corresponde a um certo
poder de ser afetado, preenchido por afecções. Estas seriam de duas espécies sendo as as

10
ações (explicadas pela natureza do indivíduo afetado e derivadas de sua essência) e as
paixões (que derivam do exterior). Quando preenchido por afecções ativas este poder de ser
afetado apresenta-se como potência para agir, mas quando preenchido por paixões
apresenta-se como potência para padecer, sendo que estas potências variam inversamente.
Ainda, haveria as paixões alegres e paixões tristes que, tal como já abordado, envolvem o
aumento ou redução da potência do ser em sua capacidade de agir no contato com a potência
de outro corpo que pode ser somada ou subtraída. A paixão alegre, ainda que seja uma paixão
por ter uma causa exterior, nos aproxima de nossa potência de agir e, portanto, nos tornando
senhor delas permite alegrias ativas. Já a paixão triste é impotência e alienação, de modo que
a Ética de Espinosa busca questionar como alcançar o máximo de paixões alegres, formar
ideias adequadas e sentimentos ativos, sendo conscientes de si, de Deus e das coisas. Assim,
se esclarece a importância da elaboração de políticas de ordem individual ou coletiva que
visem, para além do acaso, a busca ativa por bons encontros (alegria).

Portanto, fica explícito como as contribuições de Espinosa, neste trabalho discutidas a


partir da perspectiva de Deleuze, constroem uma filosofia subversiva para sua época e de
grande oposição à subjetividade moderna. Acusado de materialista, ateísta e imoral, Espinosa
se opõe às concepções transcendentais modernas e firma-se em uma filosofia da imanência,
que não constrói um Deus transcendental, mas um Deus enquanto única substância infinita a
partir da qual tudo o que conhecemos é um de seus modos. Para além do Bem e do Mal como
valores transcendentais e das falsificações da moral, ele pensa o homem enquanto grau de
potência que pode buscar ativamente por paixões alegres em uma Ética que se faz na
imanência. Ademais, como o texto finaliza afirmando, esta Ética é o próprio inconsciente e a
conquista do inconsciente, nos permitindo refletir sobre a própria superação da centralidade
moderna da consciência na subjetividade, tal como tem-se discutido neste percurso.

Partindo para as contribuições de Martin Heidegger (1889-1976), destaca-se a


importância deste no desenvolvimento da fenomenologia fundada por Edmund Husserl e do
próprio existencialismo que desafiaram concepções importantes da modernidade. Desta
forma, a partir das aulas do curso enriquecidas pela leitura do primeiro capítulo de Ser e o
Tempo (2005) e do Glossário de Dubois (2000), podemos nos aproximar das questões às
quais este pensador se debruçou e refletir quais foram seus frutos para as noções de mundo e
subjetividade. Primeiramente, um aspecto importante a ser pontuado é como a fenomenologia
desde Husserl se opõe às concepções modernas, já que sua conceituação de consciência

11
envolve o conceito de intencionalidade no sentido de que a consciência é sempre consciência
de algo. Isso significa que a consciência não existe sem objeto, de modo que Husserl,
contrapõe a separação cartesiana entre sujeito e objeto em relação estreita entre eles.
Aprofundado esta compreensão, em Heidegger sequer é possível dissociar sujeito e objetivo,
pois o dasein é uma extensão do próprio mundo. No entanto, para compreender o conceito de
dasein, central para o pensamento heideggeriano é interessante partir de onde parte sua
própria investigação. A questão sobre a qual o pensador se debruçou envolve o estudo do ser
(ontologia), questionando qual a essência do homem e das outras coisas, sendo a essência
associada a aquilo que se mostra. Assim, diferente da tradição metafísica moderna que
buscou respostas fora do mundo, Heidegger as busca no próprio mundo (imanente ao mundo)
e em sua obra, O Ser e o Tempo, ele busca retomar o problema do ser.

Considerando isto, ressalta-se o conceito de ente que envolve tudo quanto há, sendo
que cada ente existe de uma determinada forma, possuindo uma essência que se manifesta. Já
o Dasein, termo complexo que em uma possível tradução pode ser compreendido como
ser-aí, se refere ao próprio homem enquanto ente em seu sentido de ser, sobre o qual a obra
de Heidegger se debruça. Ressalta-se que ente e ser são elaborados de maneira distinta em
suas concepções, pois o ente seria tudo aquilo que existe, enquanto o ser não pode sequer ser
definido devido sua generalidade absoluta, de modo a ser importante o reconhecimento da
própria limitação de não se conhecer o ser.

Partindo então da busca por compreender o sentido do ser e não o ser em si, a obra de
Heidegger se debruça sobre o que é originário humano, a indeterminação. Isso porque, o
dasein é pura abertura de possibilidades ao mesmo tempo que é marcado pela temporalidade
e a finitude, pois o tempo é o que permite as coisas serem enquanto são, no caso do dasein,
uma multiplicidade indeterminada de possibilidades. O próprio mundo, conforme destaca o
glossário utilizado, deve ser compreendido existencialmente, não como soma de entes à mão,
mas como a abertura em projeto do Dasein. Dessa forma, o Dasein, lançado no mundo é
compreendido a partir das coisas do mundo. Nisto, se ressalta que o Dasein é historicamente
constituído “a partir das coisas do mundo e de seu ser-explicitado-público que lhe prescrevem
o que, para ser, deve-se fazer”. Portanto, sendo o dasein abertura e possibilidades, mas
também histórico e, principalmente, finito pela raíz de sua própria temporalidade, ele
experiencia a angústia enquanto sentimento fundamental. O dasein não pode realmente se
compreender a partir do “horizonte intramundano de sua preocupação”, nem a partir do
“ser-explicitado-público” e se afunda na insignificância de seu ser-no-mundo lançado na

12
“inquietante estranheza”. Neste sentido, Heidegger destaca a possibilidade do dasein de
assumir a responsabilidade de suas escolhas e viver de acordo com o seu projeto, vivendo as
dimensões do tempo (passado, presente e futuro) de forma autêntica. É assim que o ser
consegue suportar a angústia na qual está lançado e que é uma característica ontológica de
sua disposição. Ao deparar-se isolado consigo mesmo e compreender que apenas ele próprio
é capaz de realizar-se, o homem se singulariza como ser-no-mundo, como ser livre.

Com estas considerações, é possível retornar como as noções de mundo e


subjetividade que Heidegger discute diretamente se contrapõem às concepções modernas. Tal
como foi possível começar a refletir, para o autor, dasein é uma extensão do próprio mundo
de forma que se contrapõe com as filosofia cartesiana que se funda na própria separação entre
sujeito e objeto, estabelecendo uma dualidade que se torna indissociável na obra
heideggeriana. A subjetividade que se constrói e as possibilidades de contato com o mundo
são então teoricamente contrastantes, constituindo a própria questão a ser aprofundada em
cada teoria. Heidegger destaca como cada campo da ciência constrói sentidos diferentes para
os entes, desafiando a própria concepção cartesiana de aplicação da razão no paradigma
matemático para se alcançar a verdade. Heidegger constrói um homem que existe na própria
linguagem, já que esta é a morada do ser. Tal como Kant passou a abordar os limites das
possibilidades de conhecer, é impossível acessar o ser em si, se debruçando sobre aquilo que
se mostra. A centralidade do pensamento e da razão moderna são contrastados com a
vivência existencial do ser-no-mundo e o próprio mundo é extensão do dasein enquanto
possibilidade de existência.

Neste momento, aponta-se como as concepções de Heidegger, bem como dos outros
pensadores, são muito mais complexas e abrangentes do que o que é possível abordar em um
trabalho que objetiva discutir tantos filósofos em torno das noções de subjetividade e mundo
que eles constroem. No entanto, a partir desta síntese pode-se avançar para a compreensão
das contribuições de Jean-Paul Sartre (1905-1980) que, se debruçando na fenomenologia, no
pensamento de Heidegger e outros pensadores, se propõe a elaborar o que concebe como o
Existencialismo. Primeiramente, destaca-se como a leitura do texto de Souza (2020) nos
permite começar por alguns jargões mais populares do pensamento sartreano. Um deles é o
de que “a existência precede a essência” e enfatiza a falta de uma natureza humana que
determine nossas ações. Nesta concepção de homem, somos lançados no mundo sem essência
ou natureza que nos determina para nos constituir após já existirmos. Esta característica

13
humana se difere das outras coisas como o exemplo do corta-papel mencionado no texto, que
existe enquanto objeto criado para uma função que foi estabelecida antes mesmo da
existência concreta deste objeto. Diferentemente, o homem não possui um Artífice ou valores
universais, não foi criado para nenhum fim, existindo sem possuir uma essência.

Diante disso, nota-se que esta compreensão de Sartre se choca com as antigas
tradições da filosofia, inclusive da filosofia moderna, que buscavam conhecer a essência e a
natureza humana pensando na subjetividade sob a perspectiva de uma forma universal. Em
oposição a isto, Sartre substitui a ideia de natureza em seu sentido de essência humana para
condição humana, referente a condição comum que é a de estarmos no mundo, mas que nada
diz sobre o modo como somos no mundo, tal como o texto de Souza enfatiza: “É uma
universalidade que aponta para as singularidades, dado que o que ela indica é a própria
existência, que se faz de modo singular, subjetiva e intersubjetivamente.” (pg. 169).

Logo, como não há uma essência que define o que somos, a subjetividade concebida é
perpassada pelo fato de que nunca se é, existindo apenas como um estado de projeto
inacabado, sempre passível de ser alterado a cada momento. Dessa forma, como somos um
projeto não finalizado para ser definido, sempre é possível ser algo que não se é, tendo a
própria falta como constitutiva da subjetividade do ser. Assim, como o homem é um vir-a-ser,
uma constante transcendência em direção ao ser, ele não é coisa alguma, mas está sendo algo
como projeto de ser que pode ser alterado a qualquer momento. Com isto, pode-se
compreender como o tema central do pensamento de Sartre se constitui em torno do conceito
de liberdade, afinal, estando lançados no mundo “estamos condenados à liberdade”,
condenados a escolher como agir e reagir ao mundo.

Dessa forma, enfatiza-se que para compreender o ser-no-mundo precisamos entender


o que é esse ser e o que é esse mundo, o que leva a importância conceito de nadificação como
estrutura do Para-si, isto é, essa não identidade com o mundo e consigo mesmo que constitui
a própria liberdade. Esta, não se trata de conseguir o que se quer, como é possível de se
pensar no senso comum, mas se trata da própria possibilidade de querer. Afinal, como Sartre
coloca, “não há liberdade a não ser em situação, e não há situação a não ser pela liberdade”,
ou seja, o próprio mundo em seus impedimentos para realização do querer humano não
impede a liberdade, pois a liberdade está no próprio querer que não existiria sem o próprio
mundo.

14
Neste sentido, o texto colabora muito para a compreensão da liberdade conceituada
por Sartre para além dos conflitos ou ideias errôneas sobre esta ignorar a realidade material.
Ao contrário, o conceito de facticidade esclarece que a liberdade como condição de ação
significa a possibilidade de reação e não da escolha das condições a partir das quais queremos
viver. Isto é, não escolhemos o Em-si que carregamos, mas somos esse Em-si na forma de
não-ser e é nesse espaço que a liberdade se coloca. Desse modo, ela é a marca da distinção
entre o Para-si e o Em-si de modo que a facticidade nos permite compreender que o Para-si
não escolhe de forma abstrata sua situação. Na mesma direção, o Para-outro enquanto nosso
outro modo de estar-no-mundo constitui uma intersubjetividade em que o outro sob sua
perspectiva nos atribui uma natureza que nos constitui e persegue como um Eu que somos.
Neste paradoxo, questiona-se como pode existir liberdade em contraste com esta natureza que
nos é dada, mesmo que não seja universal. Mais uma vez, o espaço entre o Para-si e a não
identificação ou não com natureza atribuída é a própria liberdade. Portanto, liberdade e
facticidade estão sempre juntas em tensão na constituição da condição humana.

Considerando isso, as noções de mundo e subjetividade construídas com as


contribuições de Sartre são a de uma subjetividade enquanto projeto, enquanto
indeterminação por nenhuma essência universal, de modo a se contrastar fortemente com as
ideias anteriores da modernidade. O pensamento e a consciência enquanto razão perdem sua
centralidade para os aspectos existenciais da condição humana em um projeto de um vir-a-ser
para muito além de uma essência a ser conhecida. A liberdade se constitui como ontológica,
absoluta e indissociável da condição humana já que o mundo, mesmo com todo seu peso, não
determina nossas projeções e escolhas.

Por último, adentrando no pensador final deste percurso teórico, é interessante nos
debruçamos nas colaborações de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) com auxílio da leitura
do caso da moça afônica e de outros trechos selecionados de sua obra “Fenomenologia
Percepção” (1996). Primeiramente, podemos destacar como o autor, a partir das
compreensões fenomenologia fundada por Husserl, parte para uma fenomenologia do próprio
corpo, destacando uma intencionalidade não só da consciência, mas do próprio corpo
(senciente), cujos sentidos se articulam à mente na atribuição de significados ao mundo.
Neste sentido, Merleau-Ponty, assim como Espinosa e Nietzsche, realiza uma superação
teórica da tradição moderna que menospreza o corpo, passando a reconhecê-lo como fonte de
conhecimento.

15
Considerando isto, a compreensão do caso da moça afônica pode colaborar para
avançar no entendimento de alguns aspectos da concepção de subjetividade de
Merleau-Ponty. Primeiramente, aponta-se que este caso se refere a uma moça que, após ser
proibida pela mãe de se encontrar com seu amado, perdeu a fala, assim como seu sono e
apetite. Para além de uma interpretação psicanalítica que enfatizaria aspectos da fase oral, o
autor destaca que o caso não se trata apenas da sexualidade, mas das relações com o outro
que são veiculadas através da fala. Isso se relaciona ao fato da afonia já ter aparecido na
situação do tremor de terra que, ao ameaçar sua vida, interromperia a sua própria coexistência
no mundo. Isso porque, a comunicação por meio da fala é uma função do corpo relacionada à
coexistência com o outro enquanto a ausência dela seria uma negação disso.
Concomitantemente, o prejuízo nas funções corporais relacionadas à alimentação também se
relacionaram com a própria impossibilidade de deglutir a imposição de sua mãe, rompendo
com a própria nutrição que se relaciona a manutenção da existência. Neste sentido,
Merleau-Ponty aponta como a afonia não é uma paralisia ou o mesmo que uma escolha de
calar-se, afinal a jovem não deixa de falar, mas perde a voz. Não é uma tradução de um
estado interior da consciência, nem uma perda dada pelo acaso. Esta perda ocorre como ato,
como recusa de uma região da vida graças a sua significação. Desse modo, a interrupção
desta afonía se daria em um nível mais profundo que a vontade.

Assim, como a afonia representa a própria negação do outro ou da própria


continuidade da existência, esclarece-se como o corpo atua na própria metamorfose das ideias
em coisas, ou seja, transforma uma recusa enquanto fenômeno interior em uma situação de
fato. Isso porque, o corpo simboliza a existência exatamente por ser o que a realiza. Ainda,
aponta-se que o sintoma, como na caso da afonia, se relaciona diretamente com aquilo que é
recusado, já que o campo esquecido se dá a partir de sua negação que, por sua vez, envolve
um conhecimento implícito sobre este, ainda que parcial e escondido pela enganação de si
mesmo. Neste aspecto, os sentidos não existem a partir de uma consciência abstrata no
mundo, mas é o próprio corpo que os faz existir e os torna realidade. A expressão como
dinâmica explicita como o corpo faz a significação existir e é este último que dá existência ao
significado. Logo, o corpo exprime a existência no mesmo sentido em que a fala exprime o
pensamento, de modo que a significação do que é expressado não existe cindida da
expressão.

Ainda destaca-se com especial ênfase que, em certo ponto do texto, o autor trabalha
com a ideia de má-fé, distinguindo a hipocrisia psicológica da metafísica. A primeira

16
envolveria um acidente evitável em que a pessoa se engana ao esconder pensamentos
conhecidos por ela, enquanto a segunda é parte da própria condição humana como uma
enganação que se dá na generalidade. Para compreender isto com maior profundidade,
podemos nos debruçar no trecho selecionado nomeado como “Cogito”, que questiona como
poderíamos distinguir em nós mesmos os graus de realidade, os sentimentos “verdadeiros” e
“falsos”, já que estes se confundem em sua experienciação e se estabelecem como uma
enganação de si mesmo. Dessa forma, tal como a afonia no caso em discussão, os
sentimentos ilusórios são vividos como que na periferia de nós mesmos e não podem ser de
fato percebidos como tais enquanto existem no presente. Isso porque estar em uma situação
envolve estar enredado nela, sendo impossível ser transparente para nós mesmos, já que
nosso contato só pode ser feito no equívoco. Diante disso, Merleau-Ponty questiona se definir
o sujeito pela existência, por este movimento em que ela se ultrapassa, não seria o mesmo que
definir uma ilusão. Afinal como em nossa consciência não há definição da realidade pela
aparência, a consequência disso não seria a de não rompemos os elos entre nós e nós mesmos,
reduzindo a consciência à condição de aparência de uma realidade que no fim é
inapreensível? Diante destas questões, ele questiona se o cogito seria impossível, se
estabelecendo como uma dúvida interminável.

Neste aspecto, vê-se um diálogo direto com o pensamento cartesiano, alterando as


próprias noções modernas do cogito de que a dúvida a partir da razão levaria a verdade sobre
a realidade. Dessa forma, Merleau-Ponty reformula o próprio cogito cartesiano em uma
compreensão que parte da fenomenologia do corpo em contraste com a centralidade moderna
do pensamento, afirmando como o sujeito conhece a si mesmo a partir de sua relação com as
os outros objetos de modo que percepção interior viria apenas após isso e não seria possível
se não pelo contato com a sua dúvida vivida até em seu objeto, isto é na ação. Isto porque,
como ele descreve, não é a certeza de existir, mas a certeza que tenho de meus pensamentos
que deriva de sua existência efetiva. Isso significa que, por exemplo, que seus sentimentos
como amor, raiva e vontade não são certos graças aos pensamentos relacionados a eles, mas
ao contrário disso, as certeza desses pensamentos provém da certeza de seus atos de amor,
raiva ou vontade, são assegurados por serem realizados. Assim, ele aponta como toda
percepção interior é inadequada, afinal, o sujeito que questiona não é um objeto que se possa
perceber já que, como discutimos, é ele quem faz sua realidade de modo que só pode se
encontrar consigo mesmo no próprio ato.

17
Tendo isto explicitado, esclarece-se como o pensamento de Merleau-Ponty se
contrapõe a modernidade na medida em que critica a centralidade moderna da consciência e
da mente, destacando como o corpo, para muito além de uma fonte de erro e ignorância a ser
suportado ou mero utensílio do pensamento, é na verdade fonte de conhecimento tão
importante quanto esta. O corpo enquanto movimento existencial, expressa o próprio cogito,
superando as concepções modernas de mundo e subjetividade postas em discussão.

18
Considerações Finais

Em síntese, destaca-se que as noções de mundo e subjetividade que fundamentam os


saberes e práticas de um determinado momento histórico são elaborações complexas
provindas de debates que se dão desde o início da história da filosofia até a
contemporaneidade. Neste sentido, a construção da subjetividade moderna, bem como seu
descentramento, são de grande relevância para compreendermos as concepções que, de certa
forma, embasam e impactam todos os campos de conhecimento na atualidade, tal como o da
Psicologia. Assim, a modernidade funda uma concepção de subjetividade crucial para o
desenvolvimento posterior do pensamento em geral, seja como forma de afirmação de suas
noções presentes até hoje, seja como forma de crítica e oposição no desenvolvimento de
novas concepções.

Com isso, este percurso teórico da filosofia moderna até sua herança crítica, buscou
explicitar nas contribuições de Descartes e Kant, o estabelecimento moderno de uma
dualidade razão/natureza ou mente/corpo, que centraliza o primeiro em detrimento do
segundo, em uma doutrina de superioridade do pensamento e da razão enquanto manifestação
da liberdade humana. Por sua vez, é exatamente esta centralidade do pensamento que,
conforme as contribuições do professor enfatizaram, será criticada na construção de filosofias
posteriores. Nesta direção, Marx enfatiza as relações sociais que constituem a subjetividade
em uma relação dialética com o mundo, enquanto Heidegger e Sartre, a partir de um
aprofundamento da condição humana enquanto ser-no-mundo, superam a centralidade de
uma natureza humana em proveito da noção de indeterminação do homem como ser
existencial que é lançado no mundo. Já Nietzsche e Espinoza atacam de forma direta os
fundamentos da moral moderna que constituíram delimitações transcendentais de Bem e Mal,
assim como criticam o predomínio da mente/consciência e sobre o corpo. No mesmo sentido,
a partir da fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty também eleva o corpo a uma nova
categoria, não mais subalterna a mente e o pensamento como a modernidade estabelecera.
Logo, para além de uma consciência que pensa e age a partir da razão, a crítica à
modernidade pensará em outros processos sejam eles sociais, existenciais ou do campo da
corporeidade, que precisam ser reconhecidos na desmistificação da supremacia da mente no
conhecimento de si e do mundo.

Por fim, a partir de todas as reflexões apresentadas ao longo deste trabalho, é


importante enfatizar que a complexidade de cada filósofo na totalidade de sua teoria

19
ultrapassa os objetivos deste ensaio. Ainda assim, espera-se que tenha sido possível construir
um percurso teórico que, refletindo sobre as contribuições de cada pensador, tenha realizado
um aprofundamento satisfatório da temática da subjetividade e se traduzido em um bom
aproveitamento da disciplina de História da Filosofia I. Como autora, deixo meu
agradecimento ao professor Furlan pela seleção cuidadosa de textos, as discussões em sala de
aula e a disponibilidade para dúvidas e feedback, pois é tudo isso que tornou este trabalho tão
frutífero e gratificante para mim.

20
Referências

Chauí, M. (2000). Convite à Filosofia (pg 94-98; pg 294-29; pg 442-446). Editora


Ática.

Deleuze, G. (2002). Capítulo II: Sobre a diferença da Ética em relação a uma Moral.
Em: Espinosa: Filosofia Prática (Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal
Lins). Escuta

Dubois, C. (2000). Glossário Heidegger Ser e o Tempo In: Heidegger, Introduction à


une lecture. Editora Points.

Eagleton, T. (2002). Filosofia. Em: Marx e a Liberdade (Tradução de Marcos B. de


Oliveira). Editora Unesp.

Heidegger, M. (2005). Primeiro Capítulo: Exposição da tarefa de uma análise


preparatória da pre-sença. Em: Ser e Tempo Parte I (Tradução de Márcia Sá
Cavalcante Schuback). Editora Vozes.

Leopoldo E Silva, F. (1993). Descartes: A Metafísica da Modernidade. Moderna.

Leopoldo E Silva, F. (2012). Uma reflexão sobre o pensamento moderno - Franklin


Leopoldo e Silva. I Curso Livre de Humanidades. Disponível em:
https://youtu.be/79Gj16r9-yg

Merleau-Ponty, M. (1996). Fenomenologia da percepção (Tradução de Carlos Alberto


R. de Moura). Martins Fontes

Nietzsche, F. (1987). Para a Genealogia da Moral: Um Escrito Polêmico em Adendo a


“Para Além de Bem e Mal” como Complemento e Ilustração (1887). Em:
Obras Incompletas (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho). Nova
Cultural.

Nietzsche, F. (2011). Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém
(Tradução de Paulo César de Souza). Companhia das Letras.

Souza, T. M. (2020). Sartre e a condição humana: a condenação a uma natureza


imposta pela existência. Revista Ética e Filosofia Política, 1(23), 165-182.

21

You might also like