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JOSE MURILO DE CARVALHO CAPITULO | QURO, TERRA E FERRO YOZES DE MINAS “O nosso Norte € a Liberdade Americana.” Sentinella do Serro “Aqui nada se cria, nada se muda, nada se transforma.” Joaquim de Salles “Energia ¢ transporte.” Juscelino Kubitschek Nao ha uma voz de Minas, como queria Alceu Amoroso Lima.’ Em Minas, ha muitas vozes, algumas dissonantes. O Triangulo tem sua voz, o Centro, o Sul, o Norte, a Mata.” Mas nao falarei dessa polifonia, ou cacofonia, regional. Vou limitar-me a sintonizar trés vozes marcantes ao longo da histéria, que apenas em parte se prendem a regides. Elas se referem sobretudo a diferentes tipos de economia e sociedade, sem que sejam deles produtos automaticos. Vou chama-las metaforicamente de vozes do ouro, da terra e do ferro, em referéncia aos produtos que, em diferentes épocas, conferiram dinamismo & economia e marcaram a sociedade mineira. A voz do ouro fala sobretudo de liberdade, a voz da terra, de tradicao, a voz do ferro, de progresso. A primeira se fez ouvir quase solitaria até a metade do século XIX; a segunda sobressaiu-se nos cem anos seguintes; a terceira compos um. trio com as duas primeiras a partir da segunda metade do século XX. Pela tonalidade, a voz do ouro era um vibrato fortissimo, a da terra, baixa e pianissima, a do ferro, forte ma non troppo, Grito, cochicho e conversa, combinados em arranjos variados, nem sempre harménicos. Cada uma teve seus representantes tipicos. Felipe dos Santos, Tiradentes € Te6filo Otoni foram os portadores da primeira; Silviano Brandao e Bias Fortes, da segunda; Israel Pinheiro e Juscelino, da terceira. Enquanto predominava a voz da tradic0, Joao Pinheiro anunciava a voz do progresso. Na polifonia da terceira fase, as vozes de Juscelino e Israel somavam-se as de Milton Campos, um eco da voz da liber- dade, posto que em surdina, e de Tancredo Neves, cochicho da tradicao. A primeira voz era a da sociedade marcada pela economia do ouro. Era a voz da Minas mineradora, urbana, caética, rebel- de. A Minas do sonho e da liberdade. A segunda era a voz da sociedade dominada pela economia agricola e pecudria. Era a voz da Minas rural, conservadora, ordeira, equilibrada, fami- listica, a Minas “do lume e do pao”, que encantou Oliveira Viana,* que foi celebrada por Alceu Amoroso Lima em A voz de Minas, e que é vitima de anedotas Brasil afora. A terceira era a do estado sacudido pela economia do ferro, das grandes siderdrgicas, da indtistria pesada, das cidades industriais. Era a voz da Minas preocupada com a industrializagao, a tecnologia, com 0 progresso econdmico, anunciada desde a Inconfidéncia, esbocada no século XIX com a Escola de Minas de Ouro Preto, realizada a partir da segunda metade do século XX. Pode-se perguntar se nao haveria, acompanhando e costu- rando essas trés economias, uma outra Minas ligada ao comércio e ao transporte. Sem safda para o mar, a capitania, depois provincia, depois estado, dependia umbilicalmente do transporte para levar seus produtos aos portos e trazer de la © que no produzia. Apoiando a economia da mineracao, da agricultura e da pecuaria, e do minério, estavam os tropeiros, de inicio, depois os vagées, finalmente, os caminhdes. Sem duivida, o comércio e o transporte eram parte integrante da economia de Minas. Mas nao me parece que tenham gerado uma voz, um ponto de vista, valores diferentes. Forneciam as trés vozes um tom universalizante na medida em que permitiam © contato com o mundo externo e reduziam o grau de isola- mento local. Possibilitavam ainda 0 didlogo interno dentro da prépria Minas, costurando seus retalhos regionais. 56 OURO E LIBERDADE Bandeirantes cobicosos e aventureiros descobriram 0 ouro, e criaram as minas gerais. A noticia da descoberta espalhou-se e atraiu multidoes de aventureiros de outras partes da colénia e do reino, sozinhos ou com seus escravos. Formou-se uma sociedade instavel, cadtica e rebelde. A mineracdo do ouro aluvial e do diamante era atividade incerta e insegura. Fortunas criavam-se e desapareciam rapidamente. Um cérrego aurifero, um veio de ouro, uma pedra de diamante na ganga bruta, era a fortuna instanténea. O esgotamento do veio, uma jogatina, um assalto, era a volta, também instantanea, a dureza da vida. Como conseqiiéncia, a estratificacdo social era também volatil, a mobilidade muito grande. Escravos acumulavam pectlio, organizavam irmandades, construiam igrejas, participavam, armados, das revoltas de senhores, fundavam quilombos. Mesticos ascendiam socialmente pelas habilidades artesanais € artisticas, como pedreiros, carpinteiros, escultores, pintores, miuisicos. A mobilidade era tanta que o autor, ou os autores, do Discurso historico e politico sobre a sublevagdo que nas Minas houve no ano de 1720, falou na “Democracia das Minas”, onde 0 maior cortesdo € plebe, “sendo pois todos povo”.* Um exagero, sem divida, mas sintomatico da maior diversificagao da sociedade mineira em relagao, por exemplo, a da zona dos engenhos de acticar. ‘A escassez de mulheres brancas dificultava, dados os pre- conceitos e a legislacao da época, a formagao de familias re- gulares. A regra era o concubinato com indias e africanas, escravas, libertas, ou livres.’ A tradicional familia mineira, grande, morigerada, conservadora, vista como uma insti- tuicdo tipica do Estado, simplesmente nao existia. Para agravar a situagio, a proibicao da entrada de membros de ordens religiosas na capitania reduzia o efeito disciplinador da Igreja no campo dos costumes. O clero secular, presente, nao era exemplo de virtudes, como se pode verificar na biografia do inconfidente padre Rolim, mulherengo, amasiado com filha de Chica da Silva, contrabandista, acusado de assassinato. Nas Minas, “os que menos cuidam do servigo de Deus sao os eclesiasticos”.® 37 Se a essas condicdes acrescentarmos a intensa presenca da maquina repressora ¢ fiscal da metr6pole, pode-se entender por que 0 clima politico era de permanente inseguranga e de freqiientes revoltas, para desespero dos governantes. Revol- tavam-se os poderosos contra 0 governo da capitania e da metrépole, revoltavam-se escravos contra os senhores, agita- vam-se 08 indios no interior. Embora talvez um tanto parciais, impressionam as palavras do Discurso historico. “Hemos de confessar que os motins sao naturais das Minas, e que é propriedade e virtude do ouro tornar inquietos e bulicgosos os animos dos que habitam as terras onde ele se cria.”” O ouro, continua 0 Discurso, corrompe © ar que se mete “por olhos, narizes, e bocas e por outros poros até o mais interior”, desassossegando as pessoas. Na reptiblica das Minas, expressao do autor do Discurso, andava “tudo as avessas, e fora de seu lugar”.* A guerra dos emboabas, os motins de Pitangui, a revolta de Felipe dos Santos, a sedigao de Sao Romio, os quilombos, a inconfidéncia do Curvelo, a inconfidéncia de 1789, sio concretizagdes do espirito rebelde e evidéncia do clima de instabilidade que predominava na capitania.? As agitacdes das Minas giravam em torno do tema da liber- dade, seja a liberdade politica da capitania em relacao ao dominio metropolitano, seja a liberdade civil dos individuos em relaco a0 dominio dos senhores, seja mesmo a liberdade algo selvagem dos potentados em relagao a lei. Nao por acaso, as trés legendas propostas pelos Inconfidentes para a bandeira de sua reptblica incluiam todas a palavra liberdade: /bertas aequo spiritus e aut libertas aut nibil (sugeridas por Claudio Manoel da Costa); e /thertas quae sera tamen, a vencedora, de Alvarenga Peixoto. A énfase na liberdade leva-me a carac- terizar essa voz de Minas como sendo uma voz americana, marcada pelo exemplo da revolta e independéncia das treze colénias da América do Norte. Era ébvia pelo menos em José Alvares Maciel e Tiradentes a influéncia da indepen- déncia e de valores da América do Norte. Além da liberdade, podem acrescentar-se ainda como parte integrante desse ameri- canismo a insisténcia nos valores da iniciativa individual e do progresso. 58 ‘A proposta de reptiblica dos inconfidentes incluia varios desses componentes. A independéncia buscada pelos inconfi- dentes baseava-se na aspiracdo de liberdade em relacao ao dominio colonial, mesmo que interesses pessoais estivessem envolvidos. A aspirac4o de progresso e de promogao da edu- cacao aparecia na proposta de criacao de uma universidade e de estabelecimento de fabricas de ferro. José Alvares Maciel, © desenvolvimentista do grupo, acabou fundando, quando exilado em Angola, sua fabrica de ferro. Outra proposta curiosa era a de que na Reptiblica Florente, expressao de Tiradentes, que se pretendia construir, todos poderiam usar roupa de cetim. O viés igualitario embutido na proposta nao era preponderante entre os inconfidentes, mas de alguma maneira se fazia presente, assim como se admitia a libertagao de escravos, caso o exigisse a necessidade da luta. Sao abundantes nos textos dos autos as referéncias ao exemplo americano, particularmente nas declaragdes da dupla Tiradentes e Maciel. Este tltimo trouxe da Europa livros sobre a independéncia americana e seu treinamento de quimico e mineralogista. Sua aspiracao de desenvolvimento industrial foi encampada por Tiradentes. Era a proposta da Minas do ferro como substituicao da Minas do ouro, cuja economia ja dava sinais de declinio. O ferro era a marca da Revolugao Industrial observada de perto por Maciel durante sua estada na Inglaterra. Os fumos do ouro excitavam os povos a se tebe- larem, mas a natureza mesma do produto e a instabilidade de sua economia nao permitiam que por si s6 instaurasse um processo de industrializacao. Poderia, no maximo, ter criado as condi¢oes para tal processo. Azevedo Amaral, em A aven- tura politica do Brasil, defendeu a tese de que, no final do século XVIII, Minas estava preparada para um salto industriali- zante, barrado, no entanto, pela proibigao pela Coroa da implantacao de uma industria téxtil na capitania e pela der- rota da Inconfidéncia."’ A tese talvez seja um tanto exagerada, mas lembra a possibilidade da combinacao do ouro e do ferro. A conjungao da liberdade e do progresso, do ouro e da industria, é que dava a Inconfidéncia as caracteristicas de uma voz, ou uma alternativa, americana. A crise da mineracio levou a lenta transformacdo da Minas mineradora, predominantemente urbana, na Minas predominantemente agraria. Os mineradores abandonavam 59 as lavras para se dedicarem a agricultura e a pecudria, tendo muitas vezes que deixar as inférteis terras de mineragdo em busca de outras mais favoraveis ao cultivo. Houve durante boa parte do século XIX um periodo de transig4o no qual a voz do ouro ainda se fez ouvir com clareza. Seu mais tipico representante foi Tedfilo Benedito Otoni. Descendente de imigrantes estabelecidos no Serro, Teéfilo Otoni ajudou o pai na conduc¢ao de tropas. Foi depois para o Rio de Janeiro, ja capital do Império, onde, como Maciel, teve formacgaio técnica, de engenheiro mecfnico. Estudou na Academia da Marinha e€ seu professor, Joaquim José Rodrigues Torres, 0 futuro visconde de Itabora{, além de ensinar mecanica, man- dava ler Jefferson. Desde entao, tornou-se entusiasta da democracia americana. Em 1830, fundou em sua distante Serro um jornal de oposicao a D. Pedro I intitulado Sentinella do Serro. O jornal dizia ser seu partido o daqueles que queriam que o Brasil imitasse a terra de Washington, que nosso povo fosse em tudo como o dos Estados Unidos. E acrescentava: “O nosso Norte é a Liberdade Americana, a liberdade da Patria de Franklin, tinica que nos agrada; e pela qual sacri- ficaremos a propria vida, se preciso for.”"' A liberdade conti- nuava a ser, como na Inconfidéncia, 0 principal valor a que a Sentinella aderia. Seria dificil encontrar mais enfatica manifestacao de adesdo aos valores norte-americanos. O percurso politico de Tefilo Otoni seguiu légica impe- cAvel. Envolveu-se nas lutas liberais da Regéncia. Quando da abdicagao de D. Pedro I, levantou a populagao do Serro em acao que lembrava um ‘own meeting da Nova Inglaterra. A populagao apoiou a abdicacao de D. Pedro I e a aclamacao de D. Pedro II como imperador. Em 1842, pegou em armas na revolta liberal de $40 Paulo € Minas contra o que imagi- navam ser 0 perigo de um monopélio do poder pelos conser- vadores. Anistiados, os liberais voltaram ao poder em 1844. Otoni, no entanto, desencantou-se logo com 0 governo dos correligionarios por nao ter alterado em nada a politica anterior. Decidiu afastar-se da politica e dedicar-se aos negécios. Em 1847, criou, em parceria com um irmao e por concessio do governo mineiro, a Companhia de Navegacao e Comércio do Vale do Mucuri. Tropeiro na infancia, conhecia as enormes dificuldades de transporte enfrentadas pelos mineiros para escoamento de seus produtos. A companhia era o instrumento 60 para implementar um arrojado plano de estabelecer comu- nicagao entre Minas e o litoral através do rio Mucuri. Envol- via também a introducao de colonos europeus para cultivar a rea, regido indspita, palco de constantes escaramugas entre brancos e varias tribos indigenas. Foi nesse sertio que, em 1852, as margens do rio de Todos os Santos, em gesto de forte simbolismo, fincou 0 marco de futura cidade a que deu o nome de Nova Filadélfia. O terreno Ihe foi doado por dois caciques indigenas. Familiarizado com a historia dos Estados Unidos, 0 gesto dos caciques lhe trouxe imediatamente lembrangas daquele pais: “Assim comecou nos Estados Unidos a ocupagao da Pensilvania. Sorriu-me a analogia, e aceitando o auspicioso fausto, tomei posse de minha Filadélfia.”"* Na Filadélfia norte-americana realizara-se o Congresso Continental que votou a Constituigao daquele pais. O gesto de simbolizar a inovagao e 0 pioneirismo na fundag’o de uma cidade repetir-se-ia na criacdo de Belo Hori- zonte e de Brasilia, obras de dois outros modernizadores, Joao Pinheiro e Juscelino Kubistchek. Falida sua empresa, Otoni voltou a politica. Ai também exibiu sua admiragao pelos ianques: foi o primeiro entre nés a fazer campanha eleitoral no Rio de Janeiro ao estilo americano, realizando meetings de rua. TERRA E TRADICAO ‘A imagem ainda predominante de Minas nao é essa da Minas do ouro. E seu oposto, a da Minas da terra. Nao é a da voz da liberdade, é a da voz da tradicao, por mais que a muitos mineiros desagrade tal versio. Como a primeira voz era mar- cada pela economia do ouro, a segunda o era pela da terra. O que tinha 0 ouro de instavel e mével, tinha a terra de estavel e imével. Sem estabelecer relacdes mecanicistas entre economia e psicologia, nao se pode negar que as pessoas sao influen- ciadas pelo estilo de vida, pelo tipo de trabalho, pelas relagdes sociais. Populagdes rurais em qualquer pais do mundo pos- suem tracos comuns de comportamento. O cultivo da terra tem ritmo de trabalho proprio, dependente das estacdes do ano, que se repetem monotonamente. A natureza nado permite 61 muitas liberdades. Exceto pela incidéncia de catastrofes naturais, tudo é mais previsivel na vida rural, a sorte nao tem nela grande relevancia. A imagem do mineiro, dos meados do século XIX até a metade do século XX, conformava-se com a da psicologia das populagées rurais Mas ha diferengas mesmo no mundo rural, dependendo do tipo de cultivo e tratamento dos produtos. O mineiro da terra nada tem a ver com os senhores de engenho nordestinos ou do Rio de Janeiro. Os engenhos sao empresas industriais, em que a parte rural se limita 4 producao da cana, muitas vezes comprada a fornecedores. Casa Grande e Senzala, de Gilber- to Freyre, fala dos senhores de engenho do Nordeste; nao se aplica aos agricultores de Minas e Sao Paulo (ou do resto do Brasil), apesar de muitos interpretarem o livro como leitura do Brasil. Esses agricultores dedicavam-se a produgao de ce- reais € laticinios para o mercado interno, em proporg6es mui- tas vezes modestas, com ntimero limitado de escravos por unidade produtiva.’ A propria escravidao adquiria caracte- risticas mais domésticas em que se podiam encontrar casos de escravas emprestando dinheiro a juros a senhores. Ao lado dos fazendeiros, combinando muitas vezes as duas atividades, estavam os tropeiros, pacientemente levando aos mercados, sobretudo do Rio de Janeiro, os produtos da terra. Nem fazen- deiros, nem tropeiros exibiam a opuléncia dos senhores de engenho, nem sua arrogancia e prepoténcia. O mineiro da terra € reconhecidamente conservador, tra- dicional, retraido, simples, beirando 0 simplério, honesto, sovina, religioso, voltado para a familia.’ Tudo 0 que nao era o mineiro minerador. Politicamente, era também muito distinto. J4 por ocasiaio da Independéncia, ele aparecia como esteio do liberalismo moderado. A chegada de D. Joao em 1808 deu enorme impulso a producao de cereais e laticinios para 0 abastecimento da corte. Tropas de dezenas de animais comegaram a subir e descer a Serra do Mar trazendo para a corte gado, porcos, galinhas, banha, queijos, manteiga. O papel politico desses mineiros agricultores e tropeiros, na Independéncia, como na Abdicacao, foi de apoio ao libera- lismo moderado ao estilo de Evaristo da Veiga. As tropas de Minas eram as tropas da modera¢io, como as chamou Alcir Lenharo."* © criador da politica de conciliagao, Honério 62 Hermeto Carneiro Ledo, talvez tenha sido o melhor repre- sentante desse grupo. A medida que 0 século avangava ¢ 0 café se expandia pelo Sul de Minas e Zona da Mata, o caréter rural dos mineiros se acentuou. O dominio da Minas da terra se consolidou apés a proclamacao da Reptiblica. De inicio, o principio federal favoreceu disputas de poder entre as liderangas das varias regides do estado. Em 1897, no entanto, Silviano Brandao, politico do Sul, conseguiu implantar a hegemonia da nova politica, usando como instrumento de acao o recém-criado Partido Republicano Mineiro. A antiga lideranga, que girava em toro de Cesario Alvim, e tinha como participante Antonio Olinto, professor da Escola de Minas, desapareceu do mapa politico, ou passou para segundo plano. O novo partido enquadrou os coronéis, restringiu os poderes municipais, uni- ficou a politica do estado. A bancada mineira da Camara Federal, antes fragmentada, passou a ser conhecida como a carneirada, a servico do presidente do Estado e de suas aliangas com o presidente da Reptiblica. A politica mineira adquiriu a imagem que ainda perdura: governista, conserva dora, cautelosa, estavel. A elite do estado comegou a falar de si mesma como 0 fiel da balanga da federagao, como 0 ponto de equilibrio do pais nos momentos de instabilidade. Em 1899, Silviano Brandao, presidente do estado, aliou-se a Campos Sales na formacao da politica dos estados que estendeu ao nivel federal o alcance do dominio das oligarquias rurais."° Durante toda a Primeira Reptiblica, a politica do estado permaneceu solidamente sob o controle do PRM. A maquina do partido foi a mais eficiente em todo o Brasil em manter o equilibrio entre os grupos oligarquicos. Nem mesmo o Partido Republicano Paulista conseguiu feito igual, muito menos o Partido Republicano Riograndense. O primeiro sofreu a dissi- déncia do Partido Democrata, 0 segundo iniciou ¢ terminou seu dominio com guerras civis. Parte do segredo do PRM teve a ver com sua capacidade de absorver descontentes ¢ de incorporar, no grupo hegeménico de base agraria, setores burocraticos e liderancas intelectuais. ‘A implantagao da Reptiblica foi marcada também em Minas pela transferéncia da capital da velha Ouro Preto para o arraial de Curral Del-Rei. A mudanga teve 0 nitido sentido de 63 registrar a alteragdo na composic¢ao do nticleo dirigente do estado. Reduzia-se 0 peso politico da antiga elite da zona central ¢ mineradora e aumentava-se o das elites do Sul e da Mata. O primeiro nome da capital, Cidade de Minas, teve como propésito indicar a unido das varias regises do estado, do “mosaico mineiro”, na feliz expresso de John D. Wirth. Ouro Preto tinha sido simbolo de uma era agitada ¢ turbulenta. Mas a crise da mineragdo ¢ seu proprio urbanismo, de ruas estreitas e ladeiras ingremes, a tinham inviabilizado como capital de um estado revigorado pelo sistema federal. A nova capital nao representou uma vit6ria pura e simples dos novos grupos. Na realidade, 0 principal promotor da idéia da transferéncia foi Joao Pinheiro, presidente do estado em 1890. Joao Pinheiro representava uma ponte entre a Minas do ouro e a do ferro. Em sua visao, a nova capital deveria representar antes a renovacio econdmica do que a consolidagio do do- minio rural. Ao aderir a idéias da mudanca da capital, a Minas da terra anulou Ouro Preto, mas acabou contribuindo para introduzir um cavalo de Trdia moderno dentro de seu reino conservador. Como Filadélfia, a Cidade de Minas foi concepgao de um pioneiro, e tornou-se simbolo de modernidade pelas linhas geométricas de seu tracado urbano, em forma de tabuleiro de xadrez, no cartesianismo de sua concep¢ao, a maneira do barao de Haussmann, reformador de Paris, e de l’Enfant, planejador de Washington, e na designacao de areas especi- ficas para industrias. Poderia ter sido planejada e construida pelos engenheiros da Escola de Minas, nao fossem as dificul- dades advindas do fato de representar ela um pesado golpe na escola pelo esvaziamento de Ouro Preto que necessaria- mente se seguiria 4 mudanca. Mas 0 engenheiro convidado para planeja-la e dirigir sua construgao, Aarao Reis, fora aluno da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e era um positivista no religioso, o que significa ter absorvido da doutrina de Comte, sobretudo, os aspectos racionalistas e cientificistas € a crenca no progresso da humanidade."” Os efeitos mais visiveis da renovacao trazida pela nova capital surgiram no campo intelectual, vinte e poucos anos apés sua fundagao. Como demonstrou Helena Bomeny, 0 grupo de moderistas mineiros, acompanhando & sua maneira o de Sao Paulo, ajudou a marcar a propria modernidade literaria brasileira, ao mesmo tempo 64 em que aderiam a valores universais, muito distantes do paroquialismo da Minas agraria. Ao final da década de 1930, a modernizagao apareceu com forca no terreno da eco- nomia, quando Belo Horizonte se tornou centro da politica industrializante. Algumas figuras tipicas desse mineiro que passou a predo- minar no cenério estadual foram Bias Fortes, que nunca deixou o estado, Silviano Brandao, Venceslau Bras. Deste ultimo se conta a anedota segundo a qual, ao receber no Catete um pesquisador de Manguinhos, José Carneiro Felipe, lhe teria mostrado os jardins do palacio, comentando: “O terreno bom. pra criar galinha, seu Carneiro!”"” Ao completar o mandato de presidente da Reptiblica, voltou para sua Itajuba, no Sul de Minas, onde gostava de pescar. O estilo de fazer politica da Minas da terra sobrevive até hoje, embora mais como estere6tipo do que como reali- dade. Virou advérbio: mineiramente. £ to resistente que é atribuido a todos os politicos mineiros, por pouco que muitos deles se encaixem no figurino. Ap6s 1930, a figura mais repre- sentativa desse estilo, em dimensao quase caricatural, foi sem dtivida Benedito Valadares, seguido de perto, sem carica- tura, por Tancredo Neves. Na versao positiva, o estilo inclui habilidade na negociagao, na conciliacao, na criagao de con- senso. Pelo lado negativo, denota capacidade de desconversa, de ocultamento, de confabulagao, do exercicio da politica pela politica, pela mera aquisicao ¢ manutenca’o do poder. Em nenhuma das duas vers6es, indica ambicao de realizar grandes projetos, arrojo e audacia. Predominam a conservagao e a tradi¢’o. No maximo, 0 progresso cauteloso. Representativa dessa mentalidade é a frase ouvida de um veterano por Joaquim de Salles, quando novato no colégio do Caraga, a propésito da atmosfera da casa: “Aqui nada se cria, nada se muda e nada se transforma.” © Caraga foi o local por exceléncia da formacao dos homens da Minas da terra. Assim como a voz da Minas do ouro pode ser chamada de americana, a da Minas agraria pode ser vista como ibérica, tomando-se 0 vocdbulo como significando, no mundo privado, apego & tradicao, a hierarquia, a religiao, a familia, 4 mode- raco, ao trabalho; no mundo ptblico, aceitacao de papel predominante do Estado em rela¢ao 4 iniciativa individual, 65 énfase na cooperacao em oposi¢ao a competigao, aversao ao conflito, tendéncia para resolver as divergéncias por arranjos consensuais, preferéncia para a conservagao em vez de mudanga. Enquanto os mineiros abandonavam as faisqueiras esgota- das e deixavam as cidades em busca de alternativa econd- mica na agricultura, enquanto aos poucos se elevava a voz da Minas da terra e se apagava a voz da Minas do ouro, uma instituigao veio dar sobrevida a tiltima e fazer a ponte entre ela ea futura Minas do ferro. Criada em 1876 por iniciativa do Imperador D. Pedro II, a Escola de Minas de Ouro Preto, diri- gida por cientistas franceses, era uma instituicao moderniza- dora. Respondia aos planos dos inconfidentes no que se referia 4 criagao de fabricas de ferro e refletia valores proxi- mos ao que chamei de americanismo. O espirito de Gorceix, fundador e diretor da Escola até o final do Império, consistia em enfatizar 0 ensino técnico e a pesquisa como reagao ao bacharelismo predominante, em orientar a ciéncia para as necessidades do desenvolvimento econémico, sobretudo pela exploragao dos recursos minerais abundantes na provincia. Na visio do proprio Gorceix, 0 tipo de ensino e filosofia adotado na escola representava 0 oposto daquele dos laza- ristas do Caraga.? A Escola introduziu no pais o que mais tarde veio a ser conhecido como mentalidade desenvolvimentista. Treinados para estudar a natureza em vez de livros, a se preocuparem com as aplicagdes praticas de seus estudos, os ex-alunos espa- lharam-se por outras provincias e estados, de onde muitos eram origindrios, penetraram na burocracia estadual e federal, envolveram-se na criagao e administracao de industrias, influenciaram a definig’o da politica mineral do pais e 0 desenvolvimento da exploragao mineral e das indtstrias de base. Em Minas, sua acao foi decisiva na reorientagao da politica econémica na década de 1940 E curioso observar que as duas principais escolas mineiras até o final do século XIX, 0 Caraga e a Escola de Minas, foram dirigidas por franceses, padres lazaristas, no primeiro caso, engenheiros e cientistas, no segundo. Assim como na Franga, os dois grupos de professores representaram também em Minas tendéncias opostas. Os lazaristas eram religiosos tradicionais, 66 BIBLIOTECA PUBLICA ESTADUAL “LUIZ DE BESSA" BELO HORIZONTE - Mo ' ultramontanos, enfatizavam a educacao religiosa e humanista. Seus ex-alunos saiam do Caraca lendo latim, alguns, os apos- tolicos, destinados ao sacerdécio, falando o latim. Toda a @nfase do ensino era colocada nas humanidades.* Formaram muitos politicos mineiros, inclusive presidentes da Rept- blica, como Artur Bernardes. Seu ensino se adaptava bem a Minas da terra, religiosa e tradicional. Os professores franceses da Escola de Minas, ao contrario, eram herdeiros das reformas napoleénicas da educa sobretudo da Ecole Normale Supérieure, onde Gorceix fora aluno de Pasteur. Trouxeram para o pais a mentalidade e os métodos da pesquisa cientifica, até entao ausentes de nosso ensino. Sua postura era totalmente apropriada para a Minas do ouro e do ferro. Talvez se possa dizer que as duas escolas representam até hoje os dois pdlos que marcam a cultura mineira, o do progresso e 0 da conservacio. Um dos ex-alunos da Escola de Minas foi Joao Pinheiro, que 14 passou dois anos antes de ir cursar a tradicional Faculdade de Direito de Sao Paulo. A passagem pela Escola marcou-o profundamente. Embora estivesse longe de ser um american6filo como Teofilo Otoni, em parte gracas a sua formacao mista e a tracos positivistas absorvidos em Sao Paulo, Joao Pinheiro era adepto fervoroso do progresso, a ser atin- gido, sobretudo, pela educacao técnica, a modernizacao agri- cola € a pequena propriedade rural. Além de sua participagao decisiva na fundacdo de Belo Horizonte, foi ativo participante do Congresso Agricola, Industrial e Comercial, organizado pelo governo mineiro em 1903. O Congresso teve por finali- dade discutir as alternativas econdmicas do estado frente a perda de dinamismo que se verificava desde 1897. Em 1906, Joao Pinheiro foi eleito presidente do estado de Minas. A morte prematura, passados apenas dois anos do inicio do mandato, impediu que pusesse em pratica suas idéias em Ambito nacional. Indicagdéo de sua visio econdmica € civica encontra-se no Instituto Jodo Pinheiro, criado pelo governo do estado em 1909, em sua memoria. Destinava-se 0 Instituto a educacao técnica agricola de meninos pobres. Ao lado da educacio técnica, havia a preocupacao com a formacgao do cidadao dentro dos valores republicanos. Cada quarto era o7 chamado de municipio, os pavilhdes eram os Estados, o Ins- tituto era a Reptiblica. Havia eleicao: elegiam-se representan- tes dos “Estados” para o “Congreso”, € sistema judicidrio.® Joao Pinheiro nao era um homem da liberdade, como Otoni, mas nao aderiu de todo a voz da terra. Era empresario, possuia uma ceramica em Caeté. Movia-se pelo desejo de mudanga. Embora se tenha entendido com os proprietarios rurais e tenha baseado parte de suas propostas reformistas na modernizacao da agricultura, pelo uso de novas tecno- logias, acalentava também planos industrializantes, de que acreditava Belo Horizonte poder ser a propulsora. Seu lado conservador ficou marcado pela conhecida afirmagao de que Minas se caracterizava pelo senso grave da ordem. Seu lado moderno esta expresso em carta de 1905 a Calégeras, outro ex-aluno da Escola de Minas: “O que mata 0 pais é a pobreza, © que esta aniquilando Minas é a nossa miséria inqualificdvel.”?' Era preciso reagir, fazer guerra ao burro de cangalha, abrir estradas de ferro. FERRO E PROGRESSO. A Minas da terra predominou até o final do Estado Novo. A participagao do Estado na Alianga Liberal que desaguou na Revolugao de 30 nao pode ser interpretada como um corte em relacao a politica da Primeira Republica. O presidente do Estado, que aderiu 4 Alianca, Olegario Maciel, era tipico representante da velha Minas. O movimento de 30 repre- sentou, sobretudo, uma cisao oligérquica favorecida pela crise financeira internacional. Nem mesmo Virgilio de Melo Franco, articulador da alianca com os gatichos € paraibanos, pode ser visto como representando inovagao importante do quadro. politico. Representava, com outros lideres, como Francisco Campos e Gustavo Capanema, uma substituicao de geragées, nao uma politica radicalmente nova. Em 1930, gente nova e perspectiva nova eram representadas pelos tenentes. Mas, sintomaticamente, nao havia tenentes mineiros. Os tenentes eram, sobretudo, nordestinos e gatichos, com um ou outro paulista de permeio. Apesar disso, 0 movimento de 30, chame-se revolucdo ou nao, sacudiu o pais inteiro, Minas inclusive. Novas idéias, 68 novas propostas, novas instituigdes, novos movimentos poli- ticos pulularam. Uma guerra civil abalou o pais em 1932. No meio dessas turbuléncias, morreu Olegdrio Maciel em 1933, tornando-se necessaria a escolha de um interventor para o estado. Entre Virgilio de Melo Franco e Gustavo Capanema, dois representantes inovadores da nova geragio, Gettlio Vargas, em uma de suas famosas jogadas, tipicas dos mineiros da terra, escolheu o obscuro deputado Benedito Valadares, surpreendendo as correntes politicas do estado. A surpresa ficou registrada na anedota que percorreu o estado sobre a reacao da mae do escolhido. Incrédula, ela teria perguntado, ao ouvir a noticia da nomeacao: — “Sera o Benedito?” A escolha introduziu um elemento perturbador na politica mineira. Na interventoria, Benedito revelou-se um politico complexo. Levou quase 4 caricatura certos tragos negativos do estilo politico da Minas rural. Era governista, isto é, varguista, quase a ponto da subserviéncia. Em 1937, no s6 apoiou o golpe como ajudou a prepara-lo. Permaneceu na interventoria, salvos dois anos de governador eleito, até 1945. Era um mestre da politica do cochicho, dos bastidores, do conchavo. Valores caros aos antigos mineiros, como a liberdade e a indepen- déncia pessoal, nao eram seu forte. Nao parecia ter outras preocupagoes a nao ser fazer politica pela politica. E possivel, no entanto, que o anedotario mineiro sobre sua ignorancia tenha em parte a ver com o ressentimento dos: grupos que se viram alijados com sua nomeagao (uma dessas historias tinha a ver com uma remessa de sal ordenada pelo interventor: ao receberem cal, os destinatarios reclamaram e Benedito reagiu: — “Ih, esqueci 0 cedilha!"). O interventor, afinal, pertencia & antiga linhagem de politicos que tinha tido no folclérico Martinho Campos, ministro na Monarquia, um de seus principais representantes. Negando suas origens, o interventor foi responsavel, em matéria de politica econd- mica, pelo inicio de uma virada definitiva de Minas em diregao a industrializagao. Como em 1897, 0 motor da mudanga foi a situagao de crise econdmica e fiscal provocada pela quebra da bolsa americana, em 1929. O estado se viu na necessidade de buscar novas fontes de riqueza, a mesma preocupagao de Joao Pinheiro ao organizar, em 1903, 0 Congresso Agricola, Industrial e Comercial.’ 69 O surpreendente é que Valadares recorreu, para asses- sord-lo na tarefa, a alguém totalmente distinto de sua linhagem politica. Escolheu Israel Pinheiro da Silva, filho de Joao Pinheiro, herdeiro da empresa do pai e engenheiro formado, em 1919, pela Escola de Minas de Ouro Preto. Israel Pinheiro foi secretario de estado de Valadares desde 1933, teve papel importante na criacdo da Cidade Industrial de Betim, area desmembrada do municipio de Belo Horizonte. Segundo depoimento de Lucas Lopes, relatado por Claudio Bojunga, ele nao tinha a menor idéia sobre como construir tal tipo de cidade. Pegou uma enciclopédia e simplesmente copiou o plano do bairro industrial de Camberra, a nova capital da Australia.” Para possibilitar a operacao das novas industrias, construiu uma usina hidrelétrica. Em 1942, foi deslocado para o plano federal, como primeiro presidente da Companhia Vale do Rio Doce. Mais tarde, foi a mao direita de Juscelino na construgao de Brasilia, na qualidade de presidente todo- poderoso da Novacap. Seu Ultimo cargo politico importante foi o de governador de Minas Gerais, 4 durante os gover- nos militares. Outro auxiliar préximo de Valadares foi Lucas Lopes, também engenheiro, formado na Universidade de Minas Gerais, mas filho de um ex-aluno, professor e secretario da Escola de Minas, Francisco Anténio Lopes. Lucas Lopes foi recomendado a Valadares por Israel Pinheiro, com quem trabalhara na Vale do Rio Doce. Foi o principal formulador da politica energética de Minas, instrumentalizada na criacao da Cemig, em 1952, no governo de Juscelino. A este Gltimo acompanhou durante © governo do estado € da Reptiblica, tendo presidido a comissao que elaborou o Plano de Metas. Se chamei de americana a Minas do ouro e de ibérica a Minas da terra, poderia chamar de prussiana a Minas de Benedito Valadares e Israel Pinheiro. A énfase na industria de base, sobretudo siderirgica, sem entrar em choque com o setor rural e em ambiente politico autoritario, corresponde bem a alianca do ferro e do centeio que baseou a politica prussiana de modernizacao conservadora.” Nao houve quebra radical na orientagao da politica econ mica durante 0 governo de Milton Campos (1947-1950), a nao ser por ter equilibrado a énfase na industrializagio e na 70 modernizagao agricola, O Plano de Recuperacao Econdmica de Milton Campos levou a marca de Américo Renné Giannetti, natural do Rio Grande do Sul, outro engenheiro formado pela Escola de Minas de Ouro Preto, proprietario de varias empresas industriais, presidente da Federacao das Industrias de Minas Gerais. Terminou sua carreira como prefeito de Belo Horizonte. O sucessor de Milton Campos foi Juscelino Kubitschek, que fora prefeito de Belo Horizonte no periodo 1940-1945, nomeado por Valadares. Juscelino conhecera Valadares durante a luta de 1932 contra os paulistas. Era capitao médico da policia militar de Minas. Viera de familia pobre de Diaman- tina, origindria, pelo lado materno, de um imigrante da Boémia. Seu tio-avd, Joio Nepomuceno Kubitschek, era americanfilo e republicano. Falava-se em seu ianquismo, denunciado inclusive por ter dado a dois filhos os nomes de Lincoln e Jefferson. Fundou 0 Clube Republicano de Diaman- tina, em gesto que lembrava 0 de Tedfilo Otoni em 1831 na vizinha Serro. Foi companheiro de Joao Pinheiro nos anos iniciais da Reptblica, chegando a ser vice-presidente do Estado. A familia de Juscelino era modesta, 0 pai morrera tuberculoso aos 33 anos e a mae tivera que sustentar sozinha os dois filhos. Juscelino teve que trabalhar como telegrafista em Belo Horizonte para custear os estudos de medicina.* Na prefeitura da capital, revelou o espirito inquieto, ino- vador, aventureiro, que levaria ao extremo na presidéncia da Republica. Ganhou o apelido de prefeito-furacao. Abriu ruas, asfaltou, construiu prédios, promoveu as artes, sacudiu a modorra da cidade. Sobretudo, construiu a Pampulha, vitrine da modernidade, com a ajuda dos melhores arquitetos, pintores e escultores da época, enfrentando a ira da velha Minas, encarnada sobretudo no arcebispo D. Cabral. A cons- trucdo da Pampulha, saida do nada nos arredores da cidade, repetia 0 gesto de Tedfilo Otoni fundando Filadélfia no deserto e 0 de Jodo Pinheiro, levantando a nova capital a partir de pequeno arraial. Mais uma vez, a modernidade entrava em Minas pelo urbano, pela racionalidade, pelo risco do arquiteto e do engenheiro.”” Afonso Arinos de Melo Franco, em depoimento registrado por Claudio Bojunga, anota, a propésito de visita que fez as obras de construcao da Pampulha ciceroneado por Juscelino: “Senti, de repente, 71 naquele homem, uma forca incontida de criacao. Pensei em Teofilo Otoni e na sua aventura de Nova Filadélfia.”" Por ser hist6ria recente, nao é preciso acompanhar a acao de Juscelino nos governos de Minas e do pais. Note-se apenas que o estilo mineiro de introduzir 0 moderno pelo urbano, de utilizar o urbano como caminho para 0 novo € o inovador, foi deslocado para o plano nacional por Juscelino na aventura um tanto tresloucada de Brasilia. Misto de sonho, utopia e temeridade, mas nao sem uma boa dose de visao estratégica do desenvolvimento nacional, a concepcao e a construcao da nova capital significaram a culminacao do pioneirismo que presidiu a fundacao da Nova Filadélfia, da Cidade de Minas e da Pampulha.* Mais que em todas as suas precedentes, Brasilia salientou-se pela audacia de seu urbanismo e de sua arquitetura, garantida por Burle Marx e Niemeyer. Foi complementada pelo ambicioso Plano de Metas que incluia praticamente todos os setores da economia nacional, e que foi particularmente exitoso na construcgao de hidrelétricas e de estradas dentro do bindmio de energia e transporte, adotado por Juscelino quando ainda no governo de Minas. Outra meta de éxito, simbolo por exceléncia de moderni- dade, foi a da implantacao da industria automobilistica.*? Dentro do esquema que venho seguindo, assim como Joao Pinheiro representou a ponte entre a voz da terra e a do ferro, a passagem da mentalidade agraria para a desenvolvimentista, Juscelino significou a ponte de retorno, recuperando o tema da liberdade dentro do novo contexto industrializante. Em sua obsessio pelo desenvolvimento, pelo progresso econd- mico, nao se deixou, quando presidente, tentar em momento algum por aventuras autoritérias. Respeitou 0 Congresso, os partidos e a imprensa, anistiou militares amotinados, lutou contra militares e politicos golpistas, recusou sugestoes de prorrogacao de mandato. Ceder 4 tentacao autoritaria seria natural para quem tinha governado a prefeitura durante um regime de forca e tinha observado 0 uso que Vargas fizera do autoritarismo para promover a industrializacao, ao estilo prussiano. Pela fusao dos valores de liberdade e progresso, poder-se-ia considera-lo como a melhor sintese da Minas do ouro e do ferro, do desenvolvimento com democracia Milton Campos, o melhor dos udenistas, também se distinguia pela adesio a liberdade, mas tinha pouca sensibilidade para 72 © problema econémico. O bom governo para ele era apenas © governo da lei. Ironicamente, o liberal Milton Campos assinou, como ministro da Justiga do marechal Castelo Branco, © decreto de cassaco dos direitos politicos de Juscelino. Ha algumas caracteristicas comuns aos mineiros moder- nizantes, aos ianques de Minas. Todos eles, mesmo os mais recentes, vieram da regiao mineradora e estiveram ligados ao mundo urbano, mesmo que, eventualmente, possuissem propriedade rural. E 0 caso de Tiradentes, cujo pai possuia lavras em Sao Joao del-Rei, José Alvares Maciel, Cénego Vieira € outros inconfidentes. E também o caso de Teéfilo Otoni, urbano por exceléncia. Jodo Pinheiro era do Serro, depois foi para Caeté. Em Caeté, nasceu Israel Pinheiro. Juscelino era de Diamantina. Outra caracteristica comum a todos era a proveniéncia de familias pobres, as vezes de imigrantes. Nenhum de seus prin- cipais representantes vinha de familias poderosas. Além disso, alguns ficaram 6rfaos prematuramente. Tiradentes perdeu a mie aos oito anos, 0 pai aos 15, Juscelino ficou érfao de pai aos trés. Orfaos ou nao, todos tiveram que ganhar a vida com © préprio trabalho. A experiéncia de se fazerem por si mesmos, sem dependerem da prote¢ao de familias abastadas ou de benesses governamentais, reforcou em todos eles a valorizacao da iniciativa individual, no melhor estilo ianque. Uma terceira caracteristica do grupo é que todos tinham formacao técnica € nao juridica. Maciel era quimico € minera- logista. Tedfilo Otoni estudou mec4nica e matemitica. Joao Pinheiro formou-se em direito, mas passou antes pela Escola de Minas de Ouro Preto. Seu filho, Israel, era engenheiro formado por essa Escola. Juscelino era médico de formagao € profissao. Com a exce¢ao parcial de Joao Pinheiro, nenhum deles teve formacio juridica, marca registrada de grande parte da elite politica do pais, desde o Império até hoje. Nenhum deles era bacharel preocupado em enquadrar a realidade nas leis. Queriam mudar a realidade pela acdo da politica e da técnica, se possivel dentro da lei. Uma Ultima caracteristica do grupo é que todos eles foram empresirios ou, pelo menos, tinham espirito de inicia- tiva e pioneirismo. Tiradentes foi tropeiro antes de assentar praca na Companhia de Cavalaria da Guarda dos Vice-Reis. ww Sabe-se, também, que, no Rio de Janeiro, apresentou planos ao vice-rei Luis de Vasconcelos para a canalizacio das aguas dos trios Andarai e Maracana. Otoni criou sua propria empresa, assim como o fizeram os dois Pinheiro. Juscelino, fora do governo, tornou-se também empresirio. O contraste com a Minas da terra era nitido. De um lado, o urbano, de outro, o rural; a énfase na sociedade e nao no Estado; na ciéncia e nao na religiao; na indtistria em contra- posicao a agricultura; a crenca no individuo, no mérito pessoal, de um lado, na familia, do outro; 0 progresso, 0 futuro, em um pélo, no outro, a ordem e a tradicao. Mas os dois pélos nao se exclufam. Havia relacao dialética entre eles. O éxito dos desenvolvimentistas em Minas exigiu certa conciliagio com a tradicao agraria, Os homens do ouro fracassaram todos, pois basearam-se apenas em um polo. Foram para a forca € o exilio, ou a faléncia. Os da terra governaram mas ndo deixaram marca, nao mudaram, nem sonharam mudar capitania, provincia, ou Estado. Os que deixaram marca, em Minas € no pais, como os ianques Joao Pinheiro, Israel e Juscelino, tiveram que fazer acordos com a Minas ibérica. Joao Pinheiro o fez abertamente, tentando modernizar a agricultura, Juscelino evitando tocar na questao rural. MINAS AINDA HA? Que se passou com essa tradicio, com essas vozes do passado? Visitd-las serviu para mostrar a complexidade da trajetoria mineira. Serviu, sobretudo, para recuperar um lado dessa trajetria ofuscado pela forca do estereotipo da Minas da terra, para mostrar que a tradicao de modernizacao no Brasil nao € monopélio de um estado. Ela tem origens antigas em homens de Minas. Mas, para concluir, pode-se fazer a pergunta se as vozes do ouro e do ferro, da liberdade e do Progresso, ainda existem, isoladas ou em sintonia. O que nos restaria hoje? Qual seria a voz, ou vozes, de Minas hoje? Ou estariam todas caladas e “Minas nao ha mais”, como sentenciou um desiludido Drummond? Onde os sonhos de liberdade, as loucuras, as utopias, da Minas do ouro? Onde 74 a ansia de progresso € desenvolvimento da Minas do ferro? Onde, mesmo, a capacidade de articular e formar consenso da Minas da terra? Outras vozes estariam ensaiando em surdina para nos surpreender no futuro? A integracao do pais via meios de comunicagao, o enfra- quecimento do sistema federal, o impacto da globalizacao de valores, idéias e habitos de consumo, tudo conspira contra a probabilidade do ressurgimento de outras vozes, ou mesmo da sobrevivéncia das, porventura, ainda existentes. Isso pode ser dito nao apenas de Minas, mas de todos os estados da federagao. Em parte, no entanto, o enfraquecimento das vozes do ouro e do ferro se deve ao simples fato de que elas sio hoje vozes nacionais. Safdo da ditadura, necessitando deses- peradamente produzir emprego para sua imensa populacao marginalizada, o pais une-se em torno da busca do desenvol- vimento com liberdade. O mais provavel é que a Minas de hoje e do futuro seja mais polif6nica do que a do passado, que nao haja mais vozes predominantes, mas um coral inteiro ecoando 0 mosaico das gerais, muitas veredas atravessando nosso grande sertao. Haverd vozes novas surgidas de varias camadas da popu- lagao até aqui incapacitadas de falar. O resultado podera ser, inicialmente, cacofonico. Mas a cacofonia podera ser condigio para que se v4 além do simplesmente moderno, em diregao a um outro valor a ser acrescentado a liberdade € ao progresso: o valor da justia, da inclusao, o mais neces- sirio hoje nao apenas a Minas mas a todo o Brasil. Construir essa polifonia de Minas é 0 desafio que se coloca perante sua populagdo e suas novas liderancas. NOTAS 1 LIMA, Alceu Amoroso. Voz de Minas. Rio de Janeiro: Agir, 1945. 2 Para énfase na diversidade de Minas e na discriminagio que sofre “mineiro da periferia", ver a intervencao de Antonio Candido, originario do Sul de Minas, em 20 anos do Semindrio sobre a Economia Mineira, 1982-2002 coletanea de trabalhos. Belo Horizonte: UFMG/FACE/Cedeplar, 2002. p. 43-51 75 * OLIVEIRA VIANA. Minas do lume e do pio. Revista do Brasil, 56 (1920), p. 289-300. + DISCURSO hist6rico ¢ politico sobre a sublevacao que nas Minas houve no ano de 1720. Estudo critico, estabelecimento do texto e notas de Laura de Mello € Souza. Belo Horizonte: Fundacao Joao Pinheiro, 1994, p. 102. No estudo critico, Laura de Mello ¢ Souza atribui autoria triplice ao texto: 0 3° Conde de Assumar, D. Miguel de Almeida Portugal, ¢ os padres Antnio Correia e José Mascarenhas. Sobre a demografia da Minas colonial, ver LUNA, Francisco Vidal; COSTA, Iraci Del Nero. Minas colonial: economia e sociedade. Sao Paulo: FIPE/ Pioneira, 1982. ® DISCURSO hist6rico e politico sobre a sublevacdo que nas Minas houve no ano de 1720, p. 102. DISCURSO histérico € politico sobre a subleva¢do que nas Minas houve no ano de 1720, p. 60 ® DISCURSO hist6rico € politico sobre a subleva¢ao que nas Minas houve no ano de 1720, p. 64. ® Ver, por exemplo, MAXWELL, Kenneth. 4 devassa da devassa: a nconti- déncia Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassa/os rebeldes. violéncia coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998; MELLO E SOUZA, Laura de. Norma e conflito. Aspectos da hist6ria de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; GUIMARAES, Carlos Magno. Uma negacdo da ordem escravista: quilombos em Minas Gerais no século XVIII. Sao Paulo: fcone, 1988. '@AMARAL, Azevedo. A aventura politica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. "' Desapareceram misteriosamente de bibliotecas e arquivos todos os exem- plares da Sentinella do Serro. A citacao foi tirada de NEVES, José Teixeira. Periédicos mineiros na Biblioteca Nacional. Anais da Biblioteca Nacional, v. 117 (1997), p. 305. ' DUARTE, Regina Horta (Org.). 7edfilo Otont. Noticia sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 63. '* MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar, 1982; ¢ ainda: Growing in silence: the slave economy of nineteenth-century Minas Gerais, Brazil. Tese de doutorado. Universidade de Vanderbilt, 1980, “Ver sua descricdo em OLIVEIRA VIANNA, F. J. Populacdes Meridionaes do Brasil, Primeiro volume. $40 Paulo: Monteiro Lobato & Cia, 1922. Cap. II ‘SLENHARO, Alcir. 4s sropas da moderagdo. 0 abastecimento da Corte na formacao politica do Brasil, 1808-1842. Sa0 Paulo: Simbolo, 1979. '® Sobre essa transformacao, ver RESENDE, Maria Efigénia Lage de. Formagdo da estrutura de dominagdo em Minas Gerais: 0 novo PRM, 1889-1906. Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1982. Sobre o papel de Minas na politica 76 nacional na Primeira Republica, ver WIRTH, John D. O fie/da balanga. E VIANNA MARTINS FILHO, Amilcar. 4 Economia Politica do café com Lette (1900-1930). Belo Horizonte: UFMG/PROED, 1981. O contraste entre Minas € Sao Paulo € salientado por SCHWARTZMAN, Simon. Sao Paulo eo Estado Nacional. Sao Paulo: Difel, 1975. ' Sobre Aario Reis, ver SALGUEIRO, Heliana Angotti, Engenbeiro Aardo Reis: © progresso como missao. Belo Horizonte: Fundagao Joao Pinheiro, 1997. 4 Sobre o papel renovador de Belo Horizonte no campo intelectual, ver BOMENY, Helena. Guardides da razdo. Modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994, especialmente, Cap. 2. ' Relatada por LUSTOSA, Isabel. Historias de presidentes. § Reptblica no Catete. Petrépolis: Vozes; Rio de Janeiro: Fundacao Casa de Rui Barbosa, 1989. p. 81 2° SALLES, Joaquim de. Se ndo me falha a memoria. S40 Paulo: Instituto Moreira Salles/ Ed. Giordano, 1993. p. 334 21 Ver CARVALHO, José Murilo de. 4 Escola de Minas de Ouro Preto. 0 peso da gloria. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. 22 Sobre o Caraca, ver ANDRADE, Mariza Guerra de. A educagao extlada. Colégio do Caraca. Belo Horizonte: Auténtica, 2000. 2)REGULAMENTO do Instituto Jodo Pinheiro em Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Imprensa Ingleza, 1910. +4 Citado em Brasil, terra e alma. Minas Gerats. Selecao de textos por Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1967, p. 151 € 207. 2 Sobre a redefinicao da politica econdmica mineira ao final dos anos 1930, ver DULCI, Otivio Soares. Politica e recuperagdo econdmica em Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. 2 BOJUNGA, Clatidio. JK: 0 artista do impossivel. Rio de Janciro: Objetiva, 2001. p. 143. 2’ Ver a propésito do modelo prussiano ROSENBERG, Hans. Bureaucracy, aristocracy and autocracy: the Prussian experience, 1660-1815.Cambridge, Mass. 1958. 28 Sobre a vida de Juscelino, ver BARBOSA, Francisco de Assis. /uscelino Kubitschek. Uma revisdo na politica brasileira. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988; € BOJUNGA. /K. O artista do impossivel. 2 Sobre a acdo de Juscelino na prefeitura, ver Juscelino, prefetto, 1940- 7945. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2002, sobretudo a anilise de Heloisa M. M. Starling. 8 A relacao entre 0 urbano € o modemo em Minas é salientada corretamente por PADUA, Joao Antonio de. Kaizes da modernidade em Minas Gerais. Belo Horizonte: Auténtica, 2000. 4! BOJUNGA. JK, 0 artista do imposstvel, p. 158. 7 ** Para uma crOnica recente sobre a aventura da construcao de Brasilia, ver COSTA COUTO, Ronaldo. Brasilia Kubitschek de Oliveira. Rio de Janeiro: Record, 2001. ** Para um exame das metas, ver LAFER, Celso. /A’e 0 Programa de Metas (1956-1961). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. Sobre as administraces de Juscelino na prefeitura, nos governos do Estado e do pais, ver BOJUNGA. JK, 0 artista do impossivel. 78

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