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DADOS DE ODINRIGHT

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conhecimento, e não mais lutando por dinheiro
e poder, então nossa sociedade poderá enfim
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subcapa
1ª Edição © 2015

Autor: Dr. Howard J. Resnick (H.D. Goswami)


Tradução: Daniel Cruz, Katiane Junqueira, Mariana Bessa.
Revisão: Daniel Cruz, Robson Guia Chepkassoff, Thiago Costa Braga.
Projeto Gráfico: Relighare.
Capa: Mateus Dias.
Diagramação: Laura Dias.
Versão e-Book: ebooks.nextmidia.com.br

Dados da Catalogação Internacional na Publicação (CIP)

R434cPg Resnick, Howard J., Dr.

Guia Completo da Bhagavad-gītā / Dr. Howard J. Resnick;

Tradução de Daniel Cruz, Katiane Junqueira e Mariana Bessa

Pindamonhangaba: Sankirtana Books, 2015.

2200Kb, ePub.

ISBN 978-85-64775-26-8

Tradução: A Comprehensive Guide to Bhagavad-gita.

1. Filosofia hindu. 2. Vida espiritual. I. Cruz, Daniel. II. Junqueira, Katiane. III.
Bessa, Mariana. IV . Título.

CDD 181.4 CDU 122/129

Título original: A Comprehensive Guide to Bhagavad-gītā


Esta obra foi traduzida da 1ª edição, de 2015, publicada originalmente em inglês.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total deste ebook.


visite-nos na internet:
www.coletivoeditorial.com.br
www.relighare-e.com.br
Nota aos Leitores

Este guia completo, com suas muitas centenas de referências


sistemáticas a versos da Bhagavad-gītā, é um companheiro ideal para
a Tradução Literal aqui contida. Os leitores podem lidar com este
livro de uma variedade de maneiras gratificantes. Por exemplo,
pode-se começar lendo o guia diretamente, ou alternar entre o guia e
a tradução, ou primeiro ler a tradução e, em seguida, o guia. Alguns
vão preferir ler o livro do começo ao fim, enquanto outros talvez
desfrutem folhear os temas a seu bel-prazer. A despeito de como se
escolha lidar com este livro único, muitas maravilhas estão aqui para
serem descobertas. Cabe salientar que, ao traduzir a Gītā, o autor
optou por manter ambiguidades em sânscrito ambíguas igualmente
na tradução. A Gītā claramente contém uma mensagem central
explícita, mas, por vezes, inclui, ao mesmo tempo, linguagem mística
e misteriosa, filosofia densa e intensa e maneiras singulares de
autoexpressão, todas as quais o autor tentou manter na tradução. O
propósito deste elaborado guia completo é desvelar, desambiguar e
explicar a tradução literal de tal forma que o claro significado central
brilhe. Observe, por favor, que os números entre colchetes no guia
indicam um capítulo e verso da Gītā. Por exemplo: [2.26] refere-se ao
capítulo dois, verso vinte e seis.
Guia Completo da Bhagavad-gītā
PARTE I
Introdução
As palavras Bhagavad-gītā significam, literalmente, A Canção do
Senhor, e hoje um bilhão de pessoas ao redor do mundo aceitam-na
como tal. Esse texto elegante e milenar trata das maiores questões da
vida: “Quem sou eu?”, “O que é o Universo?”, “Como posso ser
feliz?”, “De onde tudo vem?”, “Para onde tudo vai?”, “Quem são
verdadeiros mestres e como reconhecê-los?” A Gītā, como costuma
ser chamada, distingue-se por suas respostas serenas, racionais e
satisfatórias a essas questões perenes.
Uma breve obra sânscrita de setecentos versos, a Bhagavad-gītā faz
parte do Bhīṣma-parva, o sexto livro do Mahā-bhārata, uma vasta
história sagrada. A Gītā brilha como o farol espiritual e auge daquela
obra bem maior, que, por inenarráveis séculos, tem desempenhado
um papel cultural central no sul da Ásia e além.
Originalmente, este guia completo para o conteúdo da Gītā
destinava-se a ser apenas uma curta introdução à minha tradução
literal da Gītā. Porém, tal qual a lendária encarnação de Kṛṣṇa como
um peixe, que apareceu em tamanho minúsculo e depois cresceu e
atingiu proporções gigantescas, o que começou como uma mera
introdução cresceu, em virtude da necessidade, a ponto de tornar-se
um livro em si mesmo. Tendo lido, estudado e apreciado a Gītā por
décadas aos pés do meu mestre Śrīla Prabhupāda, não poderia
deixar de compartilhar as conexões conceituais profundas que
tornam esse texto sânscrito tão mágico. A Gītā é amplamente
reconhecida como uma obra de genialidade espiritual e filosófica, e,
desde cedo, apaixonei-me por seu texto sânscrito. Meu sincero
desejo aqui, através da explicação e tradução, é levar o leitor em
geral às profundezas do texto sânscrito original. Espero que você
goste da jornada[1].

Contexto Histórico
A Bhagavad-gītā inicia-se num campo de batalha momentos antes
de justiça e injustiça (dharma e a-dharma), personificados pelos
guerreiros Pāṇḍavas e Kurus, irromperem na guerra.[2] Kṛṣṇa dirige
a quadriga de Arjuna, Seu amigo íntimo e primo, que luta pelo que é
correto. Contudo, no instante em que a batalha está prestes a
começar, Arjuna cai em confusão. Alegando compaixão pelos cruéis
usurpadores com quem compartilha laços familiares, ele se recusa a
lutar por justiça. Arjuna reconhece essa emoção como fraqueza [2.7],
[3] no entanto, ela o paralisa. Ele não consegue agir. Após tentar
defender sua recuada com argumentos e apelos sócio-morais, Arjuna
quase desmorona em ansiedade e, nesse ponto, termina o primeiro
capítulo da Gītā.
No capítulo dois, Kṛṣṇa começa a reavivar, ensinar e iluminar
Arjuna, ao insistir em bases morais, sociais e espirituais, que ele
deveria, sim, lutar. Alguns leitores questionam a espiritualidade de
Kṛṣṇa ao instigar Arjuna a lutar na batalha. Para entender o que está
acontecendo, precisamos nos voltar ao cenário histórico da Gītā
dentro da epopeia Mahā-bhārata.
Imagine que você acorda, um dia, com a chocante notícia:
usurpadores apossaram-se de seu governo, revogaram a
constituição, expulsaram os governantes legítimos e impuseram
violentamente a lei marcial. Você ora para que o governo legítimo, os
militares e todos os cidadãos leais se oponham aos agressores e
restaurem o estado de direito e a tradição.
O Mahā-bhārata ensina que uma crise semelhante irrompeu na
Índia há milhares de anos. Kṛṣṇa (Deus) veio à Terra para ajudar
Seus devotos – Arjuna, seus irmãos e outros – a restaurar o dharma
(justiça, Direito, regulamento legítimo) na Terra. Assim, na Bhagavad-
gītā, Kṛṣṇa incita Arjuna a opor-se aos Kurus, liderados por
Duryodhana, que injustamente usurpou o poder. Kṛṣṇa afirma que
Ele vem especificamente à Terra para restaurar o dharma [4.7-8], e
aqui podemos vê-Lo em ação.
Governantes legítimos esperam que seus generais defendam a lei.
Então, Kṛṣṇa esperava que Arjuna lutasse em Kuru-kṣetra em vez de
permitir um governo baseado em fraude, coerção e usurpação.
Os eventos dessa história sagrada ocorrem em três níveis: terreno,
cósmico e espiritual:
1. Terreno: falamos brevemente sobre isso acima;
2. Cósmico: os ensinamentos da Bhagavad-gītā, e a abrangente
história do Mahā-bhārata, desdobram-se dentro de um cosmos
pessoal e com muitas camadas de mundos superiores,
intermediários e inferiores. Justiça e injustiça (dharma e a-dharma)
competem nos mundos superiores tal como o fazem na Terra. No
campo de batalha de Kuru-kṣetra, onde Kṛṣṇa fala a Bhagavad-gītā,
Kurus, Pāṇḍavas e todos os demais guerreiros líderes lutaram como
encarnações de heróis e vilões cósmicos (devas e asuras) dotadas de
poder. A Terra tornara-se uma arena de batalha para um conflito
cósmico;
3. Espiritual: quando desce a este mundo, Kṛṣṇa (Deus) projeta
Seus feitos, tal como falar a Bhagavad-gītā, a fim de despertar as
almas adormecidas para sua eterna natureza bem-aventurada e para
seu relacionamento extático com Ele. Toda a história que emoldura a
Gītā é um planejado drama espiritual em que Kṛṣṇa salva os
virtuosos, remove os perversos e restaura o dharma, a lei sagrada que
sustenta o Universo [4.8].

As Origens da Gītā
O que diz a Academia sobre a origem da Bhagavad-gītā? Há cerca
de mil e quinhentos anos, o eminente matemático e astrônomo Arya-
bhata[4] concluiu, a partir de dados arqueo-astronômicos no Mahā-
bhārata, que a Guerra de Kuru-kṣetra, o cenário da Bhagavad-gītā,
ocorreu há aproximadamente cinco mil e cem anos.
Alguns estudiosos modernos, em especial do Ocidente, resistem a
aceitar tal antiguidade por especularem que a Gītā foi composta
aproximadamente entre o quinto e o segundo séculos a.C.[5]
Semelhantes estudiosos também costumam duvidar da historicidade
da maioria dos eventos do Mahā-bhārata, ao passo que outros
estudiosos (orientais e ocidentais), e a maioria dos hindus, aceitam
tanto sua antiguidade quanto historicidade. Quem está certo?
Evidências empíricas limitadas não permitem que a erudição
mundana afirme ou negue de vez tais proposições, e muito menos
fale abalizadamente sobre a divindade de Kṛṣṇa. Assim como, para
declarar uma equação algébrica certa ou errada, faz-se uma
proposição algébrica; da mesma maneira, para declarar uma
afirmação metafísica como certa ou errada, faz-se uma proposição
metafísica. E as regras básicas da erudição mundana não veem com
bons olhos proposições metafísicas.
A conclusão é que, apesar da pletora dos melhores palpites eruditos,
falta à erudição mundana evidência suficiente para provar a data e a
origem da Bhagavad-gītā além de qualquer dúvida razoável. Outras
proposições extraordinárias, como a afirmação de Kṛṣṇa de que Ele
originalmente falou a Gītā para uma deidade do Sol [4.1], não
acarreta nenhuma contradição interna nem outro absurdo lógico, e
assim devem permanecer proposições sagradas, também além do
poder da erudição mundana para assinalar certo ou errado.
Estudiosos costumam se perguntar se a Gītā fazia parte do Mahā-
bhārata original ou se foi adicionada posteriormente. Outra vez, uma
falta de evidência historiográfica impede uma resposta acadêmica
definitiva. No século XX, os mais ilustres sanscritistas do mundo
tentaram reconstruir o Mahā-bhārata original a partir de dezenas de
versões sobreviventes. Após meio século de estudo assíduo
brilhante, eles admitiram que está além dos poderes da erudição
mundana recriar, e assim identificar conclusivamente, uma versão
original desse texto. Desse modo, a academia não pode determinar
se a Gītā faz parte de um texto original que ninguém pode
reconstruir claramente.
Controvérsias acadêmicas costumam arder mais forte
precisamente onde a evidência é mais fraca e deixa mais espaço para
opiniões conflitantes. Questões sobre a data e formação originais da
Gītā oferecem ampla oportunidade apenas para esse tipo de debate
acadêmico interminável – o qual pretendo evitar aqui.
O que sabemos, sem sombra de dúvidas, é que a Bhagavad-gītā
inspirou e iluminou um número enorme e crescente de almas. Os
devotos de Kṛṣṇa alegam que temos exatamente a Gītā que o Senhor
Kṛṣṇa intencionava para nós. Na visão deles, em vez de disputar
sobre a proveniência da Gītā, deveríamos tirar proveito de sua
profunda sabedoria, que, por muito tempo, tem aliviado fardos,
alegrado corações, estimulado inteligências e guiado almas em sua
busca pelo sentido último.
Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa ensina que existem três elementos reais
fundamentais: as almas, a natureza e Deus. Ele também ensina que o
relacionamento de Deus com as almas caídas é mediado pelas leis de
karma e que as almas despertas aproximam-se e relacionam-se com
Deus através de yajña, o processo de oferendas devotadas. Tudo isso
será explicado nas próximas cinco seções.
PARTE II
Pessoas Individuais Eternas (Puruṣa)
A Gītā ensina que todo ser vivo neste mundo é uma alma eterna
envolta por um corpo material temporário. Cada alma sempre
existiu e sempre existirá como um ser pessoal e individual [2.12]. Só
o corpo material inicia e termina [2.18], pois a alma nunca nasce e
nunca morre [2.16-21]. A alma é a energia viva superior de Deus
[7.5], uma parte de Deus (Kṛṣṇa) [15.7]. E Deus está bondosamente
inclinado a cada alma [5.29].
Liberação espiritual não implica em desistir de nossa existência
individual nem em nos fundir em algo impessoal. Em vez disso,
retiramos camadas de ilusão e descobrimos o nosso verdadeiro eu.
Ao longo da Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa Se refere à alma como uma pessoa
(puruṣa).[1]
Um corpo material em contínua mudança cobre a alma. Atribui-se
ao antigo filósofo grego Heráclito ter dito que não se pode entrar
duas vezes no mesmo rio, já que suas águas estão constantemente a
fluir. Podemos também dizer que não se pode respirar duas vezes no
mesmo corpo, já que ele está sempre em fluxo biológico. O corpo é o
campo em que encenamos nossa vida; nós, almas, somos as
testemunhas desse campo [13.2].
Os objetos materiais existem no espaço, mas nunca podem
manchar ou transformar o corpo; similarmente, o corpo, apesar de
afetar nossa consciência de muitas maneiras, não pode jamais alterar
a natureza eterna da alma [13.33]. Uma simples reflexão revela que,
quando dizemos “eu era uma criança” ou “eu era um adolescente”
ou “eu sou um adulto”, o “eu” fundamental (o eu nuclear) é a
mesma pessoa constante, ainda que corpo e mente mudem de
muitas maneiras [2.13]. Aquele “eu” permanente é a alma, e não é
uma ilusão. Pelo contrário, a ilusão ocorre quando identificamos o
“eu” com um corpo mortal mutável em vez de com o nosso
verdadeiro eu eterno.
Ao completar o nosso mandato num corpo, entramos em outro,
assim como um indivíduo abandona roupas usadas e veste outras
novas [2.23]. Só uma pessoa excessivamente obcecada por moda se
angustia com a perda de uma mera camisa ou vestido. Então, em
ilusão, perdemo-nos em aflição pela inevitável mudança de corpo,
ao nos esquecermos de que o corpo apenas veste a alma eterna.
A ironia da vida mundana é que, por toda a nossa vaidade, nós
nos subestimamos drasticamente. Pensamos que somos mortais,
quando somos deveras imortais. Suportamos limites dolorosos ao
nosso conhecimento e à nossa felicidade; no entanto, como partes
eternas de Kṛṣṇa (Deus), cada um de nós tem direito a consciência e
felicidade inatas e ilimitadas. Só precisamos requisitá-las
apropriadamente [6.20-22].
À medida que nos esquecemos de nossa natureza eterna e nos
aferramos a objetos materiais fugazes, desejos egoístas nos arrastam
para a ilusão. Centenas de “grilhões de desejos” aprisionam as almas
que buscam assenhorear-se deste mundo [16.12]. Mesmo almas
piedosas são atadas pelo trabalho mundano nascido de sua natureza
[14.6, 18.60].
Ao perseguirmos o materialmente agradável e fugirmos do
desagradável, caímos na “ilusão da dualidade”, já que desejo e
aversão nos sobrepujam [7.27]. Kṛṣṇa nos adverte para não nos
regozijarmos com o materialmente agradável nem lamentarmos o
desagradável [5.20]. Em vez disso, deveríamos tolerar os dois, pois
ambos vêm e vão, sendo meros produtos da percepção sensorial
[2.14].
Kṛṣṇa cita muitos exemplos de dualidades mundanas que
despertam desejo e aversão: frio e calor, alegria e tristeza [2.14, 6.7,
12.18]; ganho e perda, vitória e derrota [2.38]; honra e desonra [6.7,
12.19, 14.25]; sucesso e fracasso [2.48, 4.22, 18.26]; amor e ódio[2]
[2.64, 3.34, 18.23, 18.51], barro, pedra e ouro [6.8, 14.24]; amigo e
inimigo [6.9, 12.18, 14.25]; santos e pecadores [6.9]; ventura e pesar,
lamento e anseio [12.17]; calúnia e elogio [12.19, 14.24]; o agradável e
o desagradável [5.20, 14.24]; excitação e miséria [18.27]. Para aqueles
enredados nelas, todas essas dualidades não passam de outros
nomes para alegria e tristeza [15.5].
Ao longo da Gītā, Kṛṣṇa explica que, mesmo nesta vida, dentro do
nosso corpo atual, podemos elevar-nos à consciência pura, conhecer
Deus e viver num estado de liberação espiritual. No momento,
nossos desejos materiais ocultam nossa verdadeira consciência
[3.39]. Assim, por nossa decisão de abraçar ou rejeitar a vida
espiritual, agimos como nosso próprio amigo ou inimigo; apenas nós
mesmos nos elevamos ou nos degradamos [6.5-6]. Kṛṣṇa enfatiza
que somos responsáveis por nossa própria condição. O Senhor não
nos força a fazer o bem ou o mal e, por isso, não é responsável pela
alegria e pela tristeza que criamos em nossas vidas [5.14-15]. Temos
livre-arbítrio.
Ao falar num campo de batalha histórico que também é fértil de
significado simbólico, Kṛṣṇa diz a Arjuna repetidamente para
conquistar não só os inimigos militares, mas também a ilusão, os
sentidos gananciosos e a mente impulsiva. Se formos seguir Arjuna e
conquistar a ilusão que impede cada um de nós de desfrutar a vida
ilimitada que almejamos, devemos aprender mais sobre a natureza
material e exatamente como ela nos seduz e aprisiona através de
seus modos, ou qualidades.
PARTE III
Três Modos da Natureza (Guṇa)
Kṛṣṇa define os elementos materiais físicos e cognitivos
primários[1] como Sua natureza inferior [7.4]. Assim como roupas
cobrem o corpo, esses elementos físicos e cognitivos temporários
cobrem a alma eterna [2.22], que é a natureza ou energia superior de
Kṛṣṇa [7.5].
Todos os objetos materiais, sejam corpos ou planetas, estão
sempre em fluxo [8.4], infindavelmente transformando-se em
diferentes formas e qualidades. No entanto, a própria energia
material, a substância subjacente às formas mutáveis da natureza, é
sem começo e permanente [13.20].[2]
É importante ressaltar que a natureza material se manifesta com
qualidades primárias perceptíveis. A Gītā usa com frequência a
palavra sânscrita guṇa para se referir às três qualidades básicas, ou
modos, da natureza: bondade, paixão e escuridão. De fato, o capítulo
quatorze inteiro enfoca esses modos materiais.
Assim como a visão humana das cores é tricromática, baseada nas
três cores primárias, a vida mundana existe dentro de um sistema
trimodal de bondade, paixão e escuridão. Assim como é raro
encontrarmos os objetos naturais em cores primárias puras, os
elementos deste mundo raramente incorporam os modos primários
puros. Pessoas e objetos tendem a mostrar misturas complexas dos
modos. Assim, uma pessoa tem um lado bom, mas também um lado
passional, e mesmo um lado obscuro. Os modos materiais permeiam
cada objeto, emoção, ato e ambiente neste mundo, inclusive comida,
fé, trabalho, culto, caridade, filosofia, corpos e construções. De fato,
toda livre escolha que fazemos é uma escolha modal: boa, passional
ou obscura – com infinitas combinações.
Kṛṣṇa declara que nada na Terra ou entre os deuses no céu está
livre dos modos da natureza [18.40]. Como isso funciona na prática?
Considere a nossa atração por outros corpos humanos. Meros
átomos ou moléculas não nos levam a suspirar, pois todo corpo
físico contém basicamente os mesmos tipos de átomos e moléculas.
Em vez disso, quando vemos um corpo que exala os modos que são
certos para nós, ficamos luxuriosos. Por outro lado, os modos opostos
despertam nossa aversão. Assim, corpos que são biologicamente
iguais, mas que exalam diferentes modos, enfeitiçam ou repulsam
um dado observador.
Da mesma forma, muitas casas são construídas com os mesmos
materiais básicos: madeira, pedra, cimento etc. Porém, uma casa com
determinado estilo ou toque – isto é, certo modo – ou atrai, ou repele,
ou nos deixa indiferentes, a depender do modo de consciência que
temos cultivado na vida.
Na escolha de amigos, cônjuge, música, carreira, comida, bairro,
filmes, lazer e todo o resto, escolhemos e nos apegamos a
combinações específicas dos modos. Assim, reforçamos ou
transformamos a qualidade da nossa vida.
Por exemplo, quando damos caridade por uma boa causa,
unicamente para ajudar os outros, e sem desejo de retorno, fazemos
caridade em bondade [17.20]. Quando ajudamos os outros, mas
também buscamos fama ou lucro através de nossos presentes,
doamos em paixão [17.21]. E doação que faz mais mal que bem está
em escuridão [17.22], tal como um presente que permite a um
indivíduo com clara intenção criminosa prejudicar os inocentes.
Assim, a qualidade, ou o modo, da nossa doação afeta a qualidade
da nossa vida.
Kṛṣṇa faz uma análise modal semelhante sobre fé, comida,
sacrifício, austeridade, renúncia, conhecimento, ação, agente, razão,
determinação, felicidade e vocação, ao explicar como cada modo nos
ata, levando-nos a variedades de vidas futuras.[3]
Atos bons, passionais e obscuros são formadores de hábito.
Quando escolhemos amigos, lugares, música, comida, trabalho etc.,
em vários modos, damos a esses modos poder sobre nossas vidas
[13.22]. Atos virtuosos produzem virtude, paixão gera paixão, e
comportamentos obscuros, tais como vício, violência desenfreada
etc., prendem o indivíduo na escuridão.
Nossas escolhas dos modos também moldam nossa percepção da
realidade. Assim, consciência em bondade percebe uma unidade
espiritual profunda dentro de todas as diferenças de raça, gênero,
espécie etc. [13.31, 18.20], ao passo que percepção passional vê tais
diferenças como fundamentais e definitivas, sem nenhuma unidade
última [18.21]. Por fim, cognição em escuridão não vê absolutamente
verdade alguma no mundo, e carece de qualquer poder de
pensamento abstrato [18.22].
Assim, os modos são tanto morais como epistêmicos. Ou seja,
refletem e condicionam a qualidade moral de nossos atos, e também
governam como, e até que ponto, entendemos o mundo e a nós
mesmos. Uma pessoa passional pode ler pilhas de livros, realizar
muitas experiências e contribuir vastamente para o nosso
conhecimento material, mas só a alma virtuosa eleva-se à consciência
clara mediante a qual se veem o propósito e o significado últimos da
vida.
Ascender ou descer no Universo, ou ficar onde estamos, depende
do modo que cultivamos na vida – a qualidade que nos motiva e
molda nossa percepção [14.8]. Os modos da natureza não são meras
qualidades passivas, mas, sim, poderes ativos que nos forçam a agir
[3.5]. Desta forma, o modo da paixão dá origem a luxúria e ira, que
nos obrigam, mesmo contra nossa vontade racional, a agir mal [3.36-
37] ou até de forma perversa [17.5].
Quando falsamente nos vemos como uma carne efêmera, desejos
corpóreos encobrem nossa cognição pura [3.39], assim como a
fumaça cobre o fogo, a poeira cobre um espelho ou um útero cobre
um embrião [3.38]. De fato, luxúria, ira e cobiça são “portões de
entrada para a escuridão, os quais arruínam a alma” [16.21-22].
Quando tentamos desfrutar dos modos da natureza e nos
aferramos a eles, nascemos em ventres bons e maus, de acordo com a
qualidade de nossos atos e escolhas [13.22]. Por nos condicionar a
agir materialmente, os modos atam-nos a este mundo [14.5].
Bondade, por exemplo, promove alegria e sabedoria mundanas, mas
uma pessoa boa se apega a elas [14.6] e, desse modo, não pode
transcender a bondade temporária para alcançar vida eterna.
Nossos problemas começam quando meditamos num objeto dos
sentidos material, atraídos por suas qualidades. O apego (saṅga)
surge e a mente se aferra a esse objeto, seja ele outra pessoa, um
carro de luxo, uma casa grande, uma posição de prestígio, poder
intelectual ou o que seja. Se continuamos a contemplar esse objeto,
nosso apego obstinado transforma-se em anseio intenso (kāma) –
desejamos ardentemente aquele objeto. Quando não alcançamos
nosso desejo nem obtemos o objeto de nossa luxúria, surge a ira
(krodha); e mesmo quando o conseguimos, a ira vem de qualquer
maneira, uma vez que nenhum objeto material pode satisfazer a
alma. Em casos de intenso desejo, a ira nos confunde e nos
esquecemos do que é deveras importante na vida. Uma vez que nos
esquecemos, perdemos a razão, e nossa identidade espiritual
verdadeira desaparece da mente. Kṛṣṇa descreve essa sequência
inteira [2.62-63].
Saṅga, “apego, fixação”, é a cola mental que nos prende aos
objetos que incorporam este ou aquele modo. Assim, circulamos
através de corpos elevados e inferiores [13.22].
Talvez alguém conclua que a alma impelida pelos modos não tem
livre-arbítrio, mas, na verdade, os modos só agem sobre nós quando,
e até que ponto, tentamos explorá-los. Considere este exemplo: uma
vez que compramos um bilhete, embarcamos num voo comercial e
decolamos, devemos aceitar a consequência do nosso ato – temos
que voar para o nosso destino. No entanto, mesmo a bordo do avião,
ainda temos livre-arbítrio: podemos conversar, dormir, assistir a um
filme ou até mesmo causar uma perturbação que resultará em
dificuldades legais.
A palavra sânscrita vaśa significa “controle”, e o oposto, a-vaśa,
significa “sem controle, contra o desejo ou vontade do indivíduo”.
Repetidamente, Kṛṣṇa usa esta palavra a-vaśa para mostrar que
nossas tentativas de explorar a natureza nos levam a ficar impotentes
sob o controle da natureza.[4] Por outro lado, pela prática espiritual,
o indivíduo atinge controle real sobre sua vida.[5] Da mesma forma,
a lei aprisiona precisamente aquela pessoa que tenta viver acima da
lei. Aquele que obedece a lei justa vive em liberdade.
Os modos nos prendem a este mundo e, nesse estado preso, não
podemos fixar a mente em nossa existência eterna. Repetidas vezes,
tentamos compulsivamente desfrutar o mundo, a despeito do que
nossa razão pura, na forma de consciência abafada e amordaçada,
tenta nos dizer sobre o verdadeiro autointeresse. Para transcender
esse estado ilusório, precisamos mudar nossa associação. Por
associarmo-nos com energia espiritual, pessoas espiritualizadas etc.,
revivemos nossa natureza espiritual. Então, fácil, espontânea e
naturalmente, agimos para o nosso autointeresse mais elevado.
Temos, sim, livre-arbítrio, mas não podemos evitar as
consequências de nossas escolhas. O sistema cósmico que responde a
nossas escolhas dos modos e distribui suas consequências chama-se
karma.
PARTE IV
Ação, Reação, Cativeiro (Karma)
Karma refere-se ao sistema cósmico que reage a nossos atos livres,
outorgando-nos consequências justas proporcionais. Dessa forma, o
Universo segura um espelho para cada alma.
A Gītā ensina que o Universo é composto de mundos superiores,
intermediários e inferiores [3.22, 11.20, 15.17], com a Terra sendo um
planeta intermediário que Kṛṣṇa chama de mundo humano [11.38,
15.2]. A vida em todos os mundos materiais é temporária e
insatisfatória para a alma eterna [8.15-16, 9.33]. Contudo, existem
níveis superiores e inferiores de vida material. Pelas leis de karma,
atos bons elevam-nos a estados superiores, atos passionais mantêm-
nos onde estamos, e atos obscuros conduzem-nos a estados
inferiores [14.18].
Experenciamos esses estados (ou reações) numa série de vidas.
Deus nunca desiste de nós. Temos chances ilimitadas para descobrir
a verdade: que somos seres espirituais e nosso verdadeiro lar é a
morada eterna de Kṛṣṇa, e não algum lugar neste Universo
transitório. Continuamos tentando desfrutar e compreender,
nascimento após nascimento, até atingirmos a liberação final e
retornarmos a nosso lar eterno [6.45, 7.19]. Falaremos mais sobre esse
destino final adiante.
No entanto, infindáveis oportunidades neste mundo não nos
deveriam levar a perder tempo aqui, uma vez que cada novo corpo
implica nas “imperfeições subjacentes a nascimento, velhice, doença
e morte” [13.9]. De fato, Kṛṣṇa chama a cadeia cármica de
renascimentos de cativeiro de karma [2.39, 3.9, 9.28], o caminho errante
da morte [9.3], o oceano errante da morte [12.7] e cativeiro do nascimento
[2.51], no qual quem nasce deve morrer e quem morre deve voltar a
nascer [2.27]. Assim, atos egoístas, nos quais nos aferramos aos
frutos da ação, atam-nos a este mundo [5.12].
Sob leis cármicas, a alma em diferentes corpos circula através de
um Universo, o qual ele mesmo move-se em ciclos infindáveis.[1] Na
Terra, observamos ciclos de dias, noites e estações do ano, baseados
em movimentos cíclicos da Terra, do Sol, da Lua e de outros corpos
celestes. A Gītā ensina [8.16-19] que o Universo inteiro, e as inúmeras
almas que o povoam, passam por grandes ciclos de criação e
dissolução cósmicas,[2] correspondentes a dias e noites de Brahmā, a
quem Kṛṣṇa (Deus) delegou a criação do cosmos.[3]
Após um árduo dia de trabalho e estudo, deve-se restaurar corpo
e mente com um sono repousante. Da mesma forma, após eras de
esforço e aprendizagem no sistema de karma, outorga-se às almas um
profundo descanso dentro da própria natureza de Kṛṣṇa, só para
enviá-las de novo [9.7] a este temporário mundo de sofrimento [8.15]
até que aprendam a valorizar a liberdade espiritual.
Essa descrição bastante melancólica pode impressionar o leitor. A
Gītā, entretanto, oferece um rico cardápio de caminhos que nos
libertam do ciclo cármico de nascimento e morte, e transfere-nos
para nossa verdadeira vida eterna.
De fato, nosso cativeiro é essencialmente psicológico. Impomos a
nós mesmos uma falsa identidade limitante – o corpo mortal – e,
então, lamentamos os limites autoimpostos. Porém, assim como nos
aprisionamos na ilusão, também podemos nos libertar. Ninguém
mais nos pode libertar se não nos libertamos [6.5-7]. Então, por que
não fazemos essa escolha?
Imagine um passageiro num saguão do aeroporto à espera de
voar para casa. Distraído por produtos à venda, por um novo
conhecido ou por algum incômodo, o passageiro perde o voo. Da
mesma forma, esquecidos de nossa natureza eterna e felicidade
última, perseguimos prazeres fugazes e fugimos de tudo que nos
desagrada, esquecendo-nos, assim, da nossa verdadeira meta de
vida – nosso verdadeiro destino. Desejo e aversão nos dominam e
caímos na ilusão da dualidade [7.27], em que um lado da dualidade
dialeticamente traz seu oposto.
Assim, se nos deleitarmos com a vitória, um dia sofreremos com a
derrota; se nos regozijarmos orgulhosamente com o ganho,
ficaremos angustiados com a perda. Kṛṣṇa adverte-nos para não nos
regozijarmos com o que é materialmente agradável nem
lamentarmos o que é desagradável, pois ambos vêm e vão, sendo
meros produtos da percepção sensorial [2.14].
Presos nessas dualidades e seus extremos de alegria e tristeza
[15.5], amamos e odiamos objetos materiais e esquecemos que nosso
eu verdadeiro existe além de todos os objetos materiais.
Quando nos identificamos com o corpo, aferramo-nos ao fruto das
ações do corpo. Fazemos isso porque estamos presos a dualidades
de apego e aversão e, assim, buscamos desfrutar o que gostamos e
evitar o que não gostamos. Uma vez que, desse modo, reivindicamos
a propriedade de nossas ações, somos responsabilizados também
pelas reações a essas ações. Simples! Então, retornamos a este
mundo vida após vida para receber, desfrutar e sofrer os resultados
de nossas ações – e isso é karma.
Ocupados em tentar desfrutar deste mundo, imaginamo-nos o
centro da realidade e tentamos possuir tudo o que desejamos na
criação de Deus. Assim, caímos na ilusão de “eu e meu”, egotismo e
possessividade.[4] Ironicamente, uma forma negativa de “eu e meu”
surge quando odiamos tudo o que frustra nossos desejos egoístas.
Essa ilusória psicologia da dualidade, egotismo e possessividade
mantém-nos impotentes a divagar no mundo material sob as leis de
karma. Mediante uma técnica simples, no entanto, podemos
espiritualizar instantaneamente nossas ações, ao transformar o
cativeiro de karma em karma-yoga, um caminho para a liberação
espiritual. Da mesma forma, podemos transformar nossa vida
intelectual, nossa busca por conhecimento, em jñāna-yoga (yoga do
conhecimento), outro caminho para a liberdade espiritual. Qual é
essa técnica simples que espiritualiza todos os aspectos de nossa
vida, desde comida até filosofia, trabalho e amor? É yajña, o ato de
oferecer a Deus: algo aparentemente simples, mas poderoso na
prática.
PARTE V
Sacrifício ou Oferenda (Yajña)
O próprio Universo que nos ata ao karma oferece-nos um caminho
para a liberdade: yajña, oferenda. À parte dessa saída, ou cláusula de
salvaguarda, o mundo todo não passa de uma infindável variedade
de cativeiro de karma [3.9]. Aquele que não faz nenhuma oferenda não
pode desfrutar deste ou de qualquer outro mundo [4.31].
O que é, então, yajña, oferenda? Como é que isso desempenha um
papel tão importante na função cósmica e salvação pessoal?
Kṛṣṇa ensina que somos criados para oferecer sacrifício, pois o
criador estabeleceu-o em nossa profunda natureza como criaturas
[3.10]. Praticamente todo indivíduo oferece algo de valor simbólico
ou tangível a um superior a fim de agradar, aplacar, obrigar ou
receber um favor. E sempre que o fazemos, ocupamo-nos, no sentido
mais básico, em yajña (sacrifício). Isso é algo tão inerente à nossa
natureza que, mesmo aqueles que rejeitam textos sagrados e evitam
ritos celestiais, realizam yajña. Desse modo, as pessoas pagam
impostos (e propinas) aos poderes políticos superiores. Ritualmente
honramos superiores nas forças armadas, no trabalho, no governo,
no campo desportivo, na universidade etc. As pessoas sacrificam
tempo, energia, dinheiro, e até mesmo suas vidas, pelo que elas
veem como uma causa superior ou como uma forma racional de
negociar e enfrentar poderes superiores. Assim, yajña (oferenda) é
um impulso universal, uma necessidade e uma inspiração das
pessoas em toda parte.
Não é surpreendente constatarmos que quase todas as religiões
ocupam os fiéis num tipo de oferenda ao poder superior ou divino,
seja lá como este for concebido. Normalmente, o indivíduo busca o
favor divino para garantir segurança, felicidade, prosperidade ou
iluminação para si mesmo e seus entes queridos, afastando o mal e
conquistando seus desejos. Em raras ocasiões, um espiritualista
devotado busca o prazer de um ser divino como um fim em si
mesmo, mas isso não é o que se espera comumente do ser humano.
A Bhagavad-gītā analisa cuidadosamente o ato de oferecer, fazendo
uma distinção crucial entre a ação (karma) e seu fruto ou recompensa
(karma-phala). Impelidos por nossa natureza, devemos agir a cada
momento [3.5], e nossos atos produzem frutos: riqueza, fama, poder,
conhecimento, amor ou prazer corpóreo. Notavelmente, Kṛṣṇa nos
diz que temos direito só a nosso dever, mas nunca a seus frutos
[2.47]. Devemos oferecer os frutos a esses poderes superiores que os
concederam. De fato, o karma ata-nos precisamente quando
agarramos o fruto do trabalho. Kṛṣṇa define um ato egoísta e
aprisionador como aquele em que nos aferramos aos frutos [5.12]. Se
invertemos esse movimento, e primeiro oferecemos o fruto a sua
fonte antes de desfrutá-lo, realizamos yajña e libertamo-nos de karma.
Alguém bem poderia perguntar: “Por que não podemos desfrutar
o fruto do nosso próprio trabalho?” Na verdade, podemos, mas só
depois de primeiro reconhecermos a fonte da nossa recompensa. Por
exemplo, oferecer nosso alimento antes de comê-lo não significa que
passamos fome; em vez disso, por um simples rito de reconhecimento,
respeito e gratidão, livramo-nos da ofensa de tomar algo sem
retribuir [3.13].
De fato, a capacidade de sentir gratidão e de reciprocar eleva-nos
acima da selvageria abjeta. Mediante oferenda sincera, o indivíduo
escapa da forma mais cega de egotismo; escapa da minúscula prisão
do egocentrismo, constatando que algo ou alguém no Universo é
maior que ele e o sustenta.
Todavia, como um rito antigo, inato e ubíquo liberta o indivíduo
de karma? Isso é meramente uma reivindicação de fé? Pode alguém
simplesmente oferecer qualquer coisa a qualquer poder, real ou
É
imaginário, e livrar-se do karma? É tão fácil assim? Não mesmo.
Basta olhar para a história: mesmo tiranos assassinos costumavam
fazer oferendas místicas ou mágicas [16.15, 17]. Eles decerto não são
almas liberadas.
Só uma oferenda verdadeiramente espiritual dissolve o karma do
indivíduo [4.23-24], mas a maioria das pessoas realiza yajña como
realiza todos os demais atos: imersa nos modos da natureza [17.1-3,
17.11-13].
A Gītā apresenta uma extensa hierarquia de oferendas, que vão
desde o obscuro e demoníaco ao divino e libertador. Vamos rever
essa hierarquia, pois iremos, assim, contemplar em cores nítidas a
escala de consciência – e da própria vida.
Embora nos incite a transcender este mundo mediante yajña
espiritual, Kṛṣṇa também explica o yajña mundano para ajudar o
leitor a se tornar um bom consumidor que compara preços. Assim, a
Gītā apresenta a função, variedade e limites das oferendas
mundanas.
O capítulo três ordena, por duas vezes, o indivíduo de
mentalidade mundana a participar, através de yajña, numa espécie
de economia cósmica que, adequadamente cultivada, traz
prosperidade para todos. Na primeira iteração desse dever, Kṛṣṇa
simplesmente afirma que as pessoas devem fazer oferendas aos
gestores cósmicos (devas, ou deuses) que, então, suprem todas as
necessidades humanas [3.10-13]. Com essa recompensa, os seres
humanos fazem depois mais oferendas, que trazem recompensas
renovadas [3.14-15].
Assim, um ciclo é posto a girar [3.16]: o ciclo de receber e retribuir.
Se não mantemos esse ciclo girando, se aceitamos mas não
retribuímos, nossa desatenta entrega ao prazer e ingratidão ofendem
a ordem natural. Vivemos em vão, como ladrões [3.12, 3.16]. Por
outro lado, se comemos após primeiro oferecermos, libertamo-nos
de todo pecado [3.13].

É
É claro que a maioria das pessoas hoje, embora aceite o princípio
geral da reciprocidade, não acredita em deuses nem faz oferendas a
eles. Seria a conversa de Kṛṣṇa sobre os deuses um pouco de mito
antigo misturado a um tratado iluminador noutros aspectos?
Deveríamos higienizar semelhante conversa sobre deuses com
interpretações simbólicas?
Antes de fazer isso, vamos levar em conta quem realmente são os
deuses na Bhagavad-gītā. Caso contrário, para um leitor moderno, o
termo deuses pode evocar imagens de panteões antigos de desenho
animado ou provocações pagãs ao monoteísmo.
Em primeiro lugar, os deuses não são Deus. Em segundo lugar,
eles executam funções racionais: gerenciam uma grande corporação
chamada o Universo. Tenha em mente que o Ocidente moderno ainda
usa linguagem divina para nomear seres humanos ricos e poderosos.
[1] Em terceiro lugar, esses administradores cósmicos são muito
superiores a nós; não podemos, portanto, exigir acesso imediato a
eles, da mesma forma que cidadãos comuns não podem exigir
reuniões particulares com os líderes mais poderosos do mundo.
Porém, mesmo que escolha suspender a incredulidade
contemporânea, o indivíduo ainda pode se opor ao yajña com o
argumento de que Deus parece estar fazendo negócios em vez de
apenas nos amar. Kṛṣṇa, no entanto, prescreve oferendas aos deuses
só para as almas insensatas que não se importam com Deus, mas
tentam mesmo desfrutar de Sua criação. De fato, tão logo prescreve
essas oferendas, Kṛṣṇa acrescenta uma ressalva: aquele que se deleita
no eu apenas, satisfeito no eu apenas, não precisa fazer oferendas
aos deuses [3.17-18]. Só aqueles que estão absortos em desfrutar deste
mundo devem pagar um imposto de luxo sobre os prazeres
mundanos. Aqueles que encontram um prazer superior na alma e
em Deus, e não tentam explorar Sua criação, não precisam fazer tais
oferendas. Kṛṣṇa, no entanto, solicita que eles, ainda assim, façam
isso a fim de estabelecer um bom exemplo para pessoas não
iluminadas. Ele chega a citar Seu próprio exemplo [3.20-26]. De fato,
ao vir a este mundo, Kṛṣṇa desempenhou muitos deveres usuais
para ensinar aos outros.
Esta é a verdadeira razão para yajña: aqueles que buscam
apoderar-se deste mundo precisam superar a bestialidade de
apanhar o que quiserem sem se importar com a fonte e proprietário
últimos de tudo. Ao retribuir aos agentes de Deus, que governam o
próprio mundo que o indivíduo busca desfrutar, este desperta sua
própria natureza ética superior. Assim, o materialista escapa da
minúscula prisão do egocentrismo e conecta-se a uma comunidade
cósmica vasta, justa e pessoal.
Afinal, a própria civilização depende da nossa capacidade de
justiça, da nossa vontade de respeitar uns aos outros e de dar aos
outros o que lhes é devido. O karma nos aprisiona precisamente
quando tentamos agarrar e monopolizar os frutos do nosso próprio
trabalho. Por quê? Porque ao fazê-lo, violamos uma lei universal de
seres civilizados: aqueles que tomam deveriam retribuir, valor por
valor. Só os delirantemente perversos acreditam ser senhores
autônomos independentes do mundo [16.14] – embora, como
veremos, mesmo esse seleto grupo faz uma espécie “maluca” de
oferenda.
Por meio da oferenda sincera aprendemos, como a ciência agora
confirma, que dar nos concede mais alegria que receber, que
generosidade supera ganância. A reciprocidade, que é o coração de
yajña, sustenta a justiça em nossas mentes, sociedades e civilizações.
Constatamos que nossos corpos, nossa recompensa e nossas vidas –
e o mundo natural que sustenta tudo isso – provêm como dádivas do
alto. Assim ensina a Gītā.
Ao mesmo tempo, a maioria de nós é, como diz o ditado, uma
“obra em progresso”. Muitas emoções além de amor puro e gratidão
enchem nossos corações. Assim, a despeito da religião – seja ela
animista, politeísta, monista, monoteísta ou humanista secular – as
pessoas realizam oferendas mundanas como fazem quase tudo: sob
o encanto dos três modos da natureza. Exploraremos a variedade de
oferendas mundanas nos próprios termos gerais e não sectários da
Gītā.
Vamos começar pelo nível materialista mais baixo e ir subindo até
a liberação espiritual última. Ocupando o degrau mais baixo, está a
oferenda dos perversos. A história exibe demasiados vilões cujas
atrocidades causaram sofrimento cruel à humanidade e ao resto da
natureza. No capítulo dezesseis, Kṛṣṇa traça o perfil dos perversos:
eles afirmam que não existe a Verdade, só verdades; não há Deus, só
buscas egoístas concorrentes [16.8]. Esses indivíduos depravados
prosperam ao prejudicar os outros, e põem o mundo gravemente em
risco [16.9]. Loucos de orgulho e presunção [16.10], matarão
qualquer um para obter seu ganho, pois alegam serem senhores do
mundo: “ricos, poderosos, perfeitos e felizes” [16.13-14].
Esses não são o tipo de pessoas que você quer como vizinhos.
Essas figuras distorcidas, no entanto, na louca busca pelo poder,
fazem oferendas, como afirma a Gītā [16.15], e toda a história
confirma. Kṛṣṇa chama essas oferendas de nāma-yajña, “oferendas só
de nome”: “obstinados e vaidosos, os perversos fazem oferendas
hipocritamente, sem se importarem com as regras” [16.17]. No verso
seguinte, Kṛṣṇa acrescenta que semelhantes executores de sacrifício
“odeiam e invejam Deus em seus próprios corpos e nos demais”
[16.18]. Em outras palavras, os perversos não fazem oferendas para
agradar ou honrar um poder maior. Em vez disso, imersos em
autoadoração, buscam por um poder maior mediante a exploração
ritualística do que acreditam ser uma fonte de poder mágico amoral.
A meta final de tais oferendas é perseguir, escravizar e acabar com
outras pessoas. Harry Po er entenderia esse problema!
À parte de oferendas demoníacas, a Gītā descreve yajñas que são
mais convencionalmente corrompidos pelos três modos da natureza.
Eis a tríade.
A oferenda em escuridão lembra o rito perverso no sentido de ser
caótico, descrente, sem caridade e oferecido a espíritos estranhos e
fantasmas [17.4, 13]. Mas esse rito não tem intenção explicitamente
má.
Pessoas passionais tendem a fazer oferendas a espíritos guardiões
e outros seres sobrenaturais benevolentes. Esses ritos exibem uma
hipocrisia urbana: o indivíduo parece dar, mas realmente busca
ganho pessoal e fama [17.4, 12], embora, mais uma vez, não haja
intenção explicitamente má.
Aqueles que lidam com yajñas obscuros e passionais nem mesmo
aceitaram seriamente os gestores cósmicos, os deuses. Então, está fora
de cogitação, nesse nível, um monoteísmo profundo ou devotado.
Aqueles situados em bondade decerto fazem oferendas aos
agentes de confiança de Deus, os deuses, com atenção sincera e sem
buscar qualquer retorno egoísta. Eles oferecem porque acreditam
que “é a coisa certa a se fazer”, e seguem as regras dadas em textos
sagrados [17.4, 11].
Em certo sentido, o verdadeiro yajña começa aqui, em bondade.
Em escuridão, presta-se oferenda em confusão, mal sabendo o que se
faz. Yajña passional é mais um investimento astuto que um presente
devotado – o indivíduo dá para receber. Em bondade, o indivíduo
tem finalmente um sentido moral sincero de fazer oferenda a seres
maiores, de fazer o certo sem motivo ulterior. Mesmo em bondade,
no entanto, faz-se oferenda aos deuses em vez de a Deus [17.4]. Por
isso, ainda não se tem plena consciência de quem realmente merece o
presente [5.27, 9.24, 13.23] e quem, em última análise, envia a
recompensa [7.20-22].
Uma pesquisa das palavras sânscritas usadas nesse contexto
revela como Kṛṣṇa quer que nos relacionemos com Seus agentes, os
deuses: não deveríamos aceitar refúgio definitivo neles (prapad)
[7.20], nem nos devotar a eles (bhakti) [9.23], nem jurar fidelidade
última a eles (vrata) [9.25], mas deveríamos honrá-los da maneira que
honramos sacerdotes, professores ou sábios (pūjanam) [17.14]. De
fato, lista-se honra aos deuses, junto com limpeza e honestidade,
como parte de uma vida disciplinada decente.
Então, qual é o status dos yajñas descritos acima? Todos eles
incorrem em karma, pois todos se desdobram dentro dos modos da
natureza, produzindo frutos rápidos, porém fugazes [4.12, 7.23]. Por
isso, aqueles que buscam sucesso no karma, e não se libertar do karma,
fazem oferendas aos deuses [4.12]. Só por meio da oferenda a Deus
(não aos deuses), com pleno conhecimento, é possível efetivamente
se liberar [4.30]. Mesmo que, mediante yajña mundano, o indivíduo
eleve-se ao paraíso deste mundo, ele cairá de novo [9.20-21]. Yoga
espiritual avançado leva o indivíduo para além das melhores
recompensas das oferendas mundanas [8.28], todas as quais são, em
última análise, inadequadas [9.23] e não conduzem a Deus, pois não
visam a Ele [7.23, 9.25]. Elas não nos ajudam a ver Deus [11.48].
Conclusão: esteja atento para quem você faz suas oferendas.
Kṛṣṇa, todavia, ensina que mesmo um yajña mundano é melhor
do que absolutamente nenhum yajña. Ainda que não se tenha desejo
algum de servir a Deus, deve-se, pelo menos, pagar impostos
cósmicos sobre todos os recursos naturais que recebemos dos
agentes de Deus. Entretanto, existem coisas mais importantes
disponíveis do que bom karma. Existe vida espiritual verdadeira, uma
chave para o que é yajña espiritual, que passaremos a considerar
agora.
Quando nos esquecemos de nossa Fonte e, por isso, de nossa
verdadeira natureza, tentamos explorar este mundo. A ilusão (māyā),
então, encobre a nossa consciência real [3.39] e imaginamos que
somos matéria: o corpo material. Entretanto, quando devotadamente
oferecemos nossas ações ao Supremo, desvelamos o verdadeiro
conhecimento: que somos partes eternas de Deus [15.7]. Como
faíscas caídas colocadas de volta no fogo, resplandecemos, então,
com conhecimento puro e alegria.
Como vimos, a Gītā enfatiza que se deveriam fazer oferendas a
Deus, não aos deuses. Afinal, somos eternamente partes de Kṛṣṇa
[15.7]. Por isso, é natural servir a Deus tanto quanto a mão
naturalmente serve o corpo do qual faz parte. Ao alimentar o corpo,
a mão nutre a si mesma.
Kṛṣṇa refere-Se a Si mesmo como o Desfrutador[2] das oferendas
(yajña) [5.29] – na verdade, o Desfrutador e Senhor de todas as
oferendas [9.24]. Ao se deixar de reconhecer a diferença categórica
entre Deus e os deuses, cai-se do plano espiritual [9.24]. A Bhagavad-
gītā ensina, desse modo, que só uma oferenda ao Senhor Supremo
mantém o indivíduo no mais elevado plano espiritual. Kṛṣṇa incita-
nos, para o nosso bem mais elevado, a fazer oferendas a Ele [9.27,
9.34, 18.65].
Kṛṣṇa deixa claro que não precisa de nada [3.22]. Ele age neste
mundo para dar um bom exemplo [3.23-24] e para estabelecer o
controle justo da Lei, dharma [4.7-8]. Ele institui yajña, oferenda
sagrada, para este propósito – nosso desenvolvimento moral e
espiritual –, e não para nos explorar. O que será que Deus haveria de
fazer com nossas oferendas infinitesimais?
Considere como a maioria das famílias comuns funciona. A mãe
ensina seus filhos a darem ao pai um presente de aniversário (que os
próprios pais geralmente pagam). O pai, então, ensina os filhos a
honrar o aniversário da mãe. Isso não é vaidade parental. Ao
contrário, pais devotados civilizam seus filhos ao ensinar-lhes os
caminhos do dever e do amor. O pai supremo faz o mesmo. O
exemplo vem de cima.
Seja qual for o modo ou o lugar que escolhamos para fazer uma
oferenda, Kṛṣṇa governa a oferenda e faz isso de dentro do nosso
corpo [8.4]. Kṛṣṇa permeia este mundo inteiro,[3] mas está
especialmente presente em nossos corações [13.18, 15.15, 18.61], de
onde Ele oferece orientação – ou, se preferirmos, ignorância [15.15,
4.11].
Somos como folhas que só vivem e vicejam enquanto unidas à
árvore da qual cresceram. Ao oferecermos os frutos do trabalho a
Kṛṣṇa, reunimo-nos a Ele e novamente florescemos como seres
eternos. Mediante yajña espiritual, conectamo-nos a toda a
existência, por nos conectarmos a sua Fonte, pois Kṛṣṇa causa a
existência de todos os seres [9.5, 10.15].
Almas puras devotam todos os seus atos ao Supremo [9.27] e,
assim, dissolvem completamente o karma [4.23], transcendendo um
mundo repleto de sensores e grilhões cármicos. O indivíduo, então,
age não como o senhor do mundo, mas como um devotado
instrumento da vontade suprema [11.33], espiritualizando corpo e
alma [4.26-27, 5.11].
Isso é possível porque matéria e espírito são, respectivamente,
energias inferior e superior de Kṛṣṇa [7.4-5]. Tudo flui de Kṛṣṇa; Ele
é a fonte de tudo [10.8]. Sendo assim parte de Deus, matéria e
espírito têm uma natureza espiritual original, que se manifesta em
contato direto com sua Fonte, Kṛṣṇa. Yajña desenvolve essa conexão
transformadora.
Para ilustrar esse processo, mestres ancestrais citam o exemplo da
centelha e do fogo. Uma centelha brota do fogo e, assim, queima e
brilha como tal. Contudo, quando se separa do fogo, a centelha
perde a sua natureza ígnea. Retornando ao fogo, ela inflama
novamente.
Almas são como centelhas. Deus é o fogo original. Conectados a
Deus (yoga), manifestamos nossa natureza divina. Afastando-nos de
Deus, nossa natureza divina desaparece até que voltemos a nos
conectar a nossa Fonte. Mesmo objetos materiais, como alimento ou
corpo, agem espiritualmente quando oferecidos a Deus [4.25-30] com
devoção.
Kṛṣṇa descreve explicitamente o poder transformador de yajña
utilizando a linguagem clássica da oferenda. Em todo o mundo
antigo, as pessoas ofereciam oblações ao fogo sagrado, conectando-
se assim ao poder divino, seja lá como este fosse concebido. Kṛṣṇa
usa os termos oblação e fogo, literal e simbolicamente, para descrever
o poder transformador da oferenda. Aqui Kṛṣṇa emprega a palavra-
chave brahman. A literatura védica[4] costuma usar o termo brahman
para indicar o Absoluto, o Espírito Universal, o fundamento eterno
de toda a existência ou o eu espiritual individual (ātman).
Dessa maneira, Kṛṣṇa afirma que, numa oferenda espiritual – uma
oferenda a brahman –, o objeto oferecido (a oblação) também é
brahman. Ademais, é o fogo-brahman que aceita a oferenda-brahman.
E a pessoa que faz a oferenda também é brahman. Assim, mediante
foco total (samādhi) na ação-brahman (a oferenda), a alma que faz a
oferenda decerto atinge brahman [4.24].
Por si só, esse verso um tanto quanto enigmático poderia conduzir
a algum tipo de conclusão monista. Afinal, tudo é a mesma coisa:
brahman. Ademais, a palavra brahman aqui não é masculina nem
feminina, mas é gramaticalmente neutra – algo como a palavra
“isso”. Assim, pode-se supor que o Uno (brahman) seja impessoal.
Entretanto, quando colocamos o verso 4.24 no contexto de toda a
Bhagavad-gītā, surge um retrato muito diferente de brahman e sua
relação com Kṛṣṇa. Deus e a alma são ambos brahman (como
afirmado em 4.24), mas Kṛṣṇa é o Brahman Supremo [10.12]. Além
disso, o brahman comum – não o Brahman Supremo – repousa em
Kṛṣṇa [14.27].
Arjuna esclarece o assunto no capítulo oito, onde pergunta
diretamente a Kṛṣṇa: “O que é esse brahman?” [8.1] Kṛṣṇa responde:
“O Brahman é o supremo imperecível; sua natureza é o Eu Superior”
[8.3].
Então, a primeira característica de brahman – que é nunca perecer
– diferencia-o de todos os objetos materiais, pois todos perecem ao
longo do tempo. Itens efêmeros nunca perduram, e elementos
eternos nunca perecem [2.16]. Ademais, brahman tem sva-bhāva, uma
natureza pessoal como adhyātman, o Eu Superior [8.3].[5]
Aqui surge um padrão teológico que permeia a Gītā, como
veremos na próxima seção. Esse padrão apresenta dois conceitos
fundamentais:
1. Deus e as almas são um só. Nesse caso, ambos são brahman, mas
Deus é ainda maior, sendo o Brahman Supremo;
2. Deus e as almas são, em última análise, pessoais. Kṛṣṇa define
explicitamente a natureza de brahman como o Eu Superior, não como
um estado em que o eu dissolve-se em impessoalidade eterna.
A Gītā indica de outras maneiras que uma linguagem
aparentemente impessoal, em última análise, refere-se à pessoa de
Kṛṣṇa. Mesmo em português, podemos descrever uma pessoa com
termos aparentemente impessoais, tais como: “uma força a ser
reconhecida”, “uma verdadeira instituição”, “o âncora do time” etc.
Pode-se também descrever um Deus pessoal em português com
atributos impessoais: “Deus é a Verdade”, “Deus é minha rocha e
fundamento”, “Deus é meu caminho” etc.
Da mesma forma, à parte de referências a brahman, Kṛṣṇa refere-
Se a Si mesmo no gênero neutro como jñeyam, “o Cognoscível”, em
seis versos [13.13-18]. Também nessa passagem, o contexto deixa
claro que o Cognoscível neutro é uma pessoa. Por exemplo: “Suas
mãos e pés estão em toda parte – em toda parte, Seus olhos, cabeças,
bocas; Ele ouve em toda parte do mundo e permanece a cobrir tudo”
[13.14].
Então, embora o verso 4.24 identifique vários componentes da
oferenda com brahman: fogo, oblação, o ato de oferecer etc., Kṛṣṇa
depois revisita esses mesmos componentes, afirmando que Ele,
Kṛṣṇa, é, na verdade, todos esses elementos. Assim, Kṛṣṇa é a
oferenda, o mantra, a oblação, o fogo etc. [9.16].
Mostrarei mais elaboradamente na próxima seção por que e como
Kṛṣṇa identifica-Se com objetos materiais, tais como fogo e manteiga.
Por enquanto, considere o uso que Kṛṣṇa faz da palavra arpaṇam,
oferenda. É com essa palavra que iniciamos em 4.24, onde Kṛṣṇa fala
de uma “oferenda-brahman” (brahma-arpaṇam). Kṛṣṇa traz de volta
esta palavra arpaṇam em 9.27, onde declara: “Tudo o que fizeres,
comeres, ofereceres ou presenteares (...), faze disso uma oferenda
(arpaṇam) a Mim”. Assim, a oferenda a brahman resulta ser uma
oferenda a Kṛṣṇa. Isso não é monismo. Deus e a alma são distintos: a
alma presta adoração; Deus é adorado.
Para compreendermos este tema central da Gītā – a natureza de
Deus e o relacionamento de Deus com as almas – mergulharemos na
língua sânscrita original da Gītā, que traduzirei para o leitor no
sentido mais simples, direto e literal de cada palavra. Poucos são
fluentes em sânscrito, e minha intenção é fazer tudo o que puder
para levar o leitor o mais próximo possível do texto original. Aqueles
que preferem fazer traduções altamente esotéricas e não literais das
palavras deveriam pelo menos saber o que estão traduzindo, para
que não tornem as palavras sem sentido. Afinal, se qualquer coisa
pode significar qualquer coisa, tudo, em última análise, não significa
nada. Algumas pessoas podem achar esse pensamento encorajador,
mas não podemos incluir Kṛṣṇa entre elas.
Vamos, então, cuidadosamente considerar a natureza de Deus na
Canção de Deus, a Bhagavad-gītā.
PARTE VI
Deus (Kṛṣṇa)

Características de Deus
A Bhagavad-gītā salienta várias características de Deus. Primeiro
vou listá-las e, em seguida, descrever brevemente as principais:
1. Deus é um;
2. Deus é a fonte de tudo;
3. Deus é justo e não é ciumento;
4. Deus nos ama;
5. Criador e criação são unos e diferentes (essa característica em
particular será discutida elaboradamente na próxima seção sobre
vibhūti, existência expansiva de Deus).

Deus é Um
É comum ouvir a afirmação de que, entre as principais religiões
do mundo, só as tradições abraâmicas[1] enfatizam o monoteísmo. E,
no entanto, a Bhagavad-gītā, talvez o único texto mais reverenciado
do sul da Ásia, ensina que um Deus absoluto e supremo (Kṛṣṇa) cria,
mantém, contém, governa e permeia todos os mundos. Como Kṛṣṇa
diz: “Não há nada além de Mim; todo este mundo repousa em Mim,
como pérolas ensartadas num cordão” [7.7].
Ao ver a forma cósmica do Senhor, Arjuna diz a Kṛṣṇa: “És o pai
do mundo (...). Ninguém se equipara a Ti – o que se dizer de alguém
superior? (...) Teu poder é incomparável” [11.44]. Na verdade,
Arjuna vê o Universo inteiro dentro do corpo cósmico de Kṛṣṇa
[11.7].
Arjuna vê todos os deuses dentro do corpo cósmico de Kṛṣṇa
[11.15], e vê até mesmo comunidades de deuses implorando por
misericórdia enquanto se precipitam para o Tempo, a forma de
Kṛṣṇa que tudo devora [11.32]. Sendo eles mesmos mortais [8.16], os
deuses podem oferecer apenas recompensas temporárias [7.23].
Assim, só aqueles cujos desejos egoístas os destituem de razão
adoram aos deuses (não a Deus) [7.20], sejam tais deuses
encontrados em textos religiosos, em filmes de Hollywood, shows de
rock, salões de poder político ou em pistas de atletismo. Mesmo
aqueles focados no modo material da virtude, em vez de
espiritualidade pura, adoram aos deuses [17.4], que estão eles
mesmos emaranhados nos modos materiais [18.40].
De fato, os deuses não conseguem entender a forma pessoal de
Kṛṣṇa, pois apenas Deus conhece a Si mesmo totalmente [10.14-15].
Eles, entretanto, sempre anseiam por ver Sua forma pessoal [11.52].
O senhor dos deuses [11.37], Kṛṣṇa, não tem igual nem superior
[11.43].
De acordo com ensinamentos hindus bem conhecidos, o deus
Brahmā cria o mundo, Viṣṇu o sustenta e Śiva o destrói. Mas, na
verdade, o próprio Kṛṣṇa (Viṣṇu), em última análise, executa todas
as três funções diretamente [9.18] – ou indiretamente, através de
Seus agentes.
Arjuna literalmente vê a supremacia de Kṛṣṇa na visão cósmica do
capítulo onze, que discutirei em detalhes mais adiante.
Deus é a Fonte de Tudo
Kṛṣṇa afirma: “Eu sou a fonte de tudo; de Mim, tudo emana”
[10.8]. Os deuses não conhecem a origem de Kṛṣṇa, pois Ele é a sua
origem [10.2]. Ele é o Deus original [11.38], a fonte de nossa memória
e conhecimento [15.15]. De fato, qualquer ser belo ou poderoso que
exista neste mundo exibe apenas uma centelha do esplendor de
Deus [10.41]. Arjuna diz a Kṛṣṇa: “Englobas tudo, por isso és tudo”
[11.40].
O próprio tempo, que leva todas as coisas a seu destino, é Kṛṣṇa
[10.32], como Ele mostra dramaticamente a Arjuna no capítulo onze.
No final da criação, todas as criaturas que não encerraram seu karma
vão repousar Nele, só para serem lançadas novamente ao mundo na
próxima criação [9.7]. De fato, Kṛṣṇa produz e recolhe todo o
Universo [7.6].

Deus é Justo e Não Ciumento


Felizmente, com todo o Seu poder infinito, Kṛṣṇa reciproca
imparcialmente com cada um de nós [4.11]. Embora possamos
ignorar Kṛṣṇa, tudo o que admiremos ou adoremos não passa de
uma pequena amostra de Sua arte criativa [10.41]. Assim, o devoto
da natureza, da arte, da filosofia, do amor ou da ciência efetivamente
honra um único aspecto da criação de Deus. Nesse sentido, como
Kṛṣṇa explica, todos buscam Deus à sua própria maneira [4.11].
Igual para com todos, Ele não favorece nem odeia ninguém; embora,
com reciprocidade adequada, habite naqueles que habitam Nele
[9.29].
Deus respeita nosso livre-arbítrio. No final da Gītā, Ele diz a
Arjuna: “Reflete plenamente sobre esse ensinamento e faze o que
desejares” [18.63]. Kṛṣṇa, no entanto, não é indiferente à nossa
felicidade. Bem no verso seguinte, Ele diz: “Falarei para o teu bem,
pois Eu te amo muito” [18.64]. Afinal, todos somos partes Dele
[15.7].
Agradecidamente, como a Gītā nos informa, não sofremos sob a
fúria ciumenta de um Deus possessivo. Ao contrário, Kṛṣṇa fixa
nossa fé em qualquer objeto que escolhamos para prestar adoração
[7.21]. Apenas Ele, então, concede nossos desejos por meio de nossa
divindade escolhida [7.22]. Por quê?
Como quaisquer bons pais, Deus incentiva a educação de Seus
filhos. Afinal, devemos ter pleno conhecimento deste mundo se
temos de transcendê-lo. Nós mesmos devemos ver a diferença entre
a vida piedosa e a vida ímpia. Deus nos ajuda a explorar o Universo,
a fazer nossas próprias comparações e a decidir racionalmente qual é
nosso interesse último.
Kṛṣṇa não Se ressente por aqueles que O ignoram, mas apenas
lhes dá o que querem e merecem [7.21]. Assim, Kṛṣṇa diz que
aqueles que cultivam virtude mundana tendem a adorar não a Deus,
mas a Seus agentes delegados [17.4]: deuses, anjos, espíritos
superiores, seres espirituais ou como quer que uma determinada
cultura os chame. Kṛṣṇa, todavia, recompensa a virtude sem impor
requisitos doutrinários. Por isso, aqueles que não aceitam Kṛṣṇa,
porém cultivam a virtude, tornam-se sábios [14.17] e felizes [14.6],
elevando-se a estados [14.18] e mundos [14.14] superiores.
É claro que recompensas à virtude mundana são temporárias,
assim como o Universo. Está Deus, assim, ainda coagindo-nos a
escolhê-Lo, ao impor a mortalidade a quem O ignora? De forma
alguma. Prazeres mundanos acabam porque não surgem do eu
eterno verdadeiro, mas da cobertura do eu, o corpo. Mesmo
autodelírio virtuoso não pode durar para sempre, pois se baseia
naquilo que não existe realmente: o eu sem Deus, ou o eu como
corpo material. Assim, aqueles comprometidos com deuses vão aos
deuses, aqueles comprometidos com ancestrais vão a eles, e aqueles
devotados a Deus (Kṛṣṇa) vão a Ele [9.25]. Ancestrais e deuses
ocupam postos mortais e oferecem recompensas mortais. Caveat
emptor.
Essa visão da vida respeita a escolha individual, ao contrário da
visão, de certa forma, coercitiva de que todos vamos para o mesmo
lugar, independente de qual seja nossa escolha; ou da visão
altamente coercitiva de que consequências indescritivelmente
horríveis aguardam mesmo as pessoas boas que não aderirem à
religião “certa”. Não encontramos nenhum desses extremos na Gītā,
a qual descreve Kṛṣṇa como um amigo supremo, e não um Deus
ciumento e irado. Kṛṣṇa nos encoraja a aceitá-Lo, mas, se não o
fizermos, obteremos resultados que correspondem de forma justa à
qualidade moral de nossas intenções e ações [14.8]. Qualquer forma
de religião que promova a bondade é aceita como um passo no
caminho.
Pessoas despertas não se deleitam com prazeres temporários
nascidos do contato entre corpos físicos e o mundo físico [5.22]. Em
vez disso, por abraçar o eu eterno, o indivíduo encontra felicidade
bem maior, concluindo que não há ganho maior [6.22].

Deus nos Ama


Kṛṣṇa cria um cosmos teleológico – isto é, um Universo com
propósito objetivo: guiar-nos para a bondade pura e liberação. A
natureza é um ventre cósmico no qual Kṛṣṇa, o Pai que dá a semente,
coloca todas as almas errantes [14.4]. Kṛṣṇa é nosso pai e mãe
supremos [9.17, 11.43, 14.4]. E como quaisquer pais amorosos, Ele é
nosso maior fã, impelindo-nos a buscar nosso bem mais elevado.
Encontramos paz verdadeira ao aceitá-Lo como o amigo bondoso de
todos os seres [5.29]. Ao contrário dos deuses gregos de Homero
muitas vezes rabugentos, Kṛṣṇa não odeia nem favorece qualquer
alma. Como quaisquer pais amorosos, Ele é igual para com todos os
Seus filhos [9.29]. Ele pessoalmente eleva aqueles que se voltam para
Ele em busca de abrigo [12.7], perdoando todas as ofensas [18.66] e
conferindo paz suprema e a morada eterna [18.62]. Kṛṣṇa considera
que quem simplesmente estuda Seu diálogo com Arjuna na
Bhagavad-gītā honrou-O mediante o “yoga do conhecimento” [18.70].
Kṛṣṇa fala a Arjuna, que representa todos nós, pois o Senhor o ama
afetuosamente [18.64].[2]

Existência Expansiva de Deus (Vibhūti)


Nesta seção, olhamos mais de perto a relação de Kṛṣṇa com a
matéria, que Ele chama de Sua “natureza menos importante” [7.4].
Você deve lembrar que Kṛṣṇa declarou que até mesmo artigos de
oferenda material são brahman [4.24], e que Kṛṣṇa depois Se
identificou com esses mesmos artigos ao dizer, por exemplo, que
“apenas Eu sou a oblação de manteiga clarificada, Eu sou o fogo (...)”
etc. [9.16].
Além disso, Kṛṣṇa afirma que, após muitos nascimentos, aquele
que tem conhecimento vê que Kṛṣṇa é tudo [7.19]. E, como
observado acima, Arjuna diz a Kṛṣṇa: “Englobas tudo, por isso és
tudo” [11.40].
Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa identifica-Se com muitos objetos e
qualidades neste mundo, em cada caso, simplesmente dizendo que
“Eu sou” o respectivo objeto ou qualidade. Em sânscrito, Ele
normalmente usa o pronome aham (“Eu”) ou o verbo asmi (“sou”).[3]
Eis aqui outro exemplo típico: “Eu sou o sabor na água, (...) a luz da
Lua e do Sol,[4] o Om sagrado em todos os Vedas, o som no espaço, a
bravura nos homens” [7.8].
Esses “versos identidade”, como os chamo, são cerca de trinta, e
ocorrem principalmente nos capítulos sete [7.8-11] e dez [10.19-38].
Tais declarações levaram alguns leitores casuais a concluir que a
Bhagavad-gītā ensina uma espécie de panteísmo: a doutrina de que o
Universo físico é Deus e que não existe um Deus pessoal separado
do Universo.
Outros leitores veem nessa linguagem algum tipo de monismo,
como a alegação inepta de que “Deus é tudo e tudo é Deus”.
Entretanto, um olhar mais atento a esses versos identidade, em que
Kṛṣṇa afirma ser diversas características do mundo material, deixará
claro o que Ele está realmente dizendo. Na minha análise dos versos
identidade, primeiro fornecerei as categorias de objetos com os quais
Kṛṣṇa identifica-Se e, em seguida, mostrarei como Ele de fato explica
Suas próprias declarações.
Nos versos 7.8-11, Kṛṣṇa identifica-Se com os seguintes tipos de
objetos:
1. Essência dos seres: Kṛṣṇa é a vida e semente perene de todos os
seres;
2. Virtudes nas pessoas: Kṛṣṇa é a bravura nos homens, a
austeridade dos austeros, a razão dos racionais, o esplendor do
esplêndido, a força abnegada dos fortes e o desejo consoante com o
dharma;
3. Traços da natureza: Kṛṣṇa é o sabor na água, a luz da Lua e do
Sol,[5] o som no espaço, a fragrância pura na terra e o esplendor no
fogo;
4. Objetos sagrados: Kṛṣṇa é a sagrada sílaba Om[6] em todos os
Vedas.
O que tudo isso significa? Kṛṣṇa esclarece esse ponto, pois Ele
emoldura esses versos identidade [7.8-11] com o que chamo de “versos
origem”, que Ele coloca tanto antes como depois deles: versos que
declaram que Kṛṣṇa é a origem dos objetos e qualidades que Ele
afirma ser. Assim, Kṛṣṇa identifica-Se com esses objetos e qualidades
no sentido de serem Suas criações, sendo o Criador tanto uno com a
criação quanto diferente dela. Para tornar isso mais claro, olhemos
para os versos origem referentes a 7.8-11.
No capítulo sete, imediatamente antes dos versos identidade, Kṛṣṇa
declara que a matéria é Sua energia separada inferior [7.4] e que as
almas são Sua energia viva superior [7.5]. Essas duas energias são a
fonte de todas as criaturas – que são, afinal, almas em corpos
materiais – e Kṛṣṇa é a fonte dessas duas energias. Assim, Kṛṣṇa é a
origem e a dissolução do cosmos inteiro [7.6], para não falar de
objetos dentro dele. De fato, não há nada além Dele, e todo este
mundo repousa Nele como pérolas ensartadas num cordão [7.7]. Os
objetos do mundo não são plenamente Deus; em vez disso, emanam
Dele e repousam Nele. Nesse sentido, são unos com seu Criador e
sustentador.
Além disso, dentro dos próprios versos identidade [7.8-11], Kṛṣṇa
afirma: “Conhece-Me como a semente perene (bīja) de todos os
seres” [7.10]. Bīja, semente, também significa “causa ou princípio
primordiais, origem” [dicionário Monier Williams]. Assim, versos
origem poderosos precedem e informam os versos identidade.
Por fim, para completar o quadro, um verso origem forte conclui
esta seção no capítulo sete: “Fica sabendo que todos os estados
virtuosos, passionais e obscuros originam-se de Mim apenas. Eu não
estou neles. Eles estão em Mim” [7.12 (grifo meu)].[7] Uma vez que os
três modos materiais – virtude, paixão e escuridão – permeiam todas
as coisas materiais [10.39], Kṛṣṇa está dizendo claramente que todos
os estados no Universo provêm Dele. Assim, versos origem explícitos
emolduram os versos identidade.
Kṛṣṇa ensina que Criador e criação são unos, mas diferentes (a
quinta característica de Deus mencionada na subseção anterior). Para
nos ajudar a compreender isso, estudiosos tradicionais costumam
citar a analogia do Sol e dos raios solares: em certo sentido, o Sol está
presente nos raios solares. Assim, o Sol e os raios solares são uma só
coisa: Sol brilhante. Ao mesmo tempo, felizmente para nós, todo o
calor e a luz do Sol não estão presentes nos raios solares que
aquecem e iluminam nosso mundo. Conclusão: o Sol é tanto uno
com seus raios quanto diferente deles. Deus é como o Sol e Sua
criação é como os raios do Sol: unos e diferentes ao mesmo tempo.
De fato, mais adiante nesse mesmo capítulo sete, Kṛṣṇa afirma
que, após muitos nascimentos, aquele que O conhece como sendo
tudo vai a Ele em busca de refúgio [7.19]. Assim, conhecimento de
que Deus é tudo não leva o indivíduo a declarar-se Deus, mas, sim, a
submeter-se ao Supremo.
No capítulo dez, Kṛṣṇa dá um conjunto muito maior de versos
identidade [10.19-38], com poucas repetições e algumas categorias
adicionais. Nessa passagem, Ele ainda mais poderosamente os
emoldura com versos origem. Outra vez, listarei primeiro as
categorias de identificação e, em seguida, fornecerei os versos origem
que formam essa moldura.
Kṛṣṇa identifica-Se com o seguinte em 10.19-38:
1. Essência dos seres: Kṛṣṇa é a alma no coração de cada ser; o
início, meio e fim dos seres;[8] a consciência dos seres; a semente[9] de
todos os seres; a mente dentre os sentidos;[10]
2. Virtudes nas pessoas: Kṛṣṇa é a sabedoria dos sábios; do
feminino, Ele é fama, beleza, fala, memória, razão, firmeza e perdão;
Ele é o esplendor do esplêndido; a bondade dos bons; a correta
conduta daqueles que buscam vitória; e o monarca dentre os
homens;
3. Traços da natureza:[11] Kṛṣṇa é o Sol radiante dentre os corpos
luminosos; dos corpos d’água, o oceano; das cadeias de montanhas,
os Himalaias; de todas as árvores, a figueira; das feras, o rei das feras
(leão); o vento dentre os purificadores; o tubarão dentre os grandes
peixes; dos rios, o Ganges; dos meses, o Cabeça de Trilha;[12] das
estações, a primavera, fonte de flores;
4. Objetos sagrados: Kṛṣṇa é o Sāma-veda dentre os Vedas;[13] dos
sons, aquele que não perece;[14] das oferendas, o cântico silencioso;
dos hinos, o hino magnífico;[15] o Gāyatrī dentre os cânticos
metrificados; das ciências, a ciência espiritual;[16]
As categorias seguintes encontram-se apenas no capítulo dez:
5. Forças cósmicas: Kṛṣṇa é o Tempo dentre as forças motrizes;[17]
Ele é o Tempo imperecível; o Criador voltado para todas as direções;
a Morte que tudo leva; o advento de tudo o que virá; o começo, meio
e fim das criações;
6. Traços verbais: daqueles que fazem afirmações, Kṛṣṇa é a
conclusão; Ele é o “a” dentre as letras, o par dentre os compostos
linguísticos;
7. Traços sociais: Kṛṣṇa é o jogo de dados dentre os enganadores,
o bastão dentre os subjugadores, e o silêncio dentre os segredos;
8. O melhor dos grupos celestiais: Kṛṣṇa é Viṣṇu dentre os ādityas;
dos maruts, Marīci; dos nakṣatras, a Lua; dos deuses, Indra; dos
rudras, Śaṅkara; dos yakṣa-rakṣas, Kuvera; dos vasus, Vāyu; o
procriador Cupido; dos daityas, Prahlāda; dos Vṛṣṇis, Vāsudeva; dos
Pāṇḍavas, Arjuna;
9. Um paradigma de grupos celestiais ou divinos que incluem
seres celestiais e humanos: Kṛṣṇa é Skanda dentre os líderes
militares; dos gandharvas, Citraratha; dos nāgas, Ananta; dos seres
aquáticos, Varuṇa; dos antepassados, Aryamā; dos controladores,
Yama; dos portadores de armas, Rāma;
10. Exemplares da natureza celestial (aqui Kṛṣṇa identifica-Se com
um objeto celestial como um exemplar de uma categoria natural
também encontrada na Terra): Kṛṣṇa é Meru[18] dentre as
montanhas; dos cavalos, Uccaiḥ-śravas[19], nascido do néctar; dos
elefantes imponentes, Airāvata[20]; das armas, Vajra[21]; das vacas,
Kāma-dhuk[22]; das serpentes, Vāsuki[23]; das criaturas aladas,
Garuḍa[24];
11. Sacerdotes e sábios: Kṛṣṇa é Bṛhaspati dentre os sacerdotes;
dos sábios eminentes, Bhṛgu; dos deuses-sábios, Nārada; dos seres
perfeitos, o sábio Kapila; das pessoas dotadas de visão, Vyāsa; dos
sábios, Uśanā.
No capítulo dez, Kṛṣṇa emoldura vinte versos identidade com um
total de onze versos origem, a começar por estes: Kṛṣṇa é a origem dos
deuses e sábios eminentes [10.2]; Ele não tem origem [10.3]; os vários
estados dos seres provêm Dele [10.4-5]; sábios eminentes e manus[25]
nascem de Sua mente [10.6]; deveríamos aprender de verdade Seu
yoga (poder místico) e vibhūti (glória) [10.7], pois Ele é a fonte de tudo e
tudo emana Dele [10.8 (grifo meu)].
Após os versos identidade [10.19-38], Kṛṣṇa outra vez completa o
quadro, ao dizer que Ele é a bīja (semente, principal causa, princípio
ou origem) de todos os seres [10.39][26]. Ele nos pede para entender:
“Absolutamente todo ser que possui glória, beleza ou verdadeira
excelência brota de uma parcela do Meu esplendor” [10.41]; de fato,
“com um único fragmento de Mim mesmo, sustento firmemente este
Universo inteiro” [10.42].
Kṛṣṇa identifica-Se com o mundo porque infunde nele Sua própria
glória. No entanto, encontra-Se acima dele e o sustenta: “Eu não estou
neles; eles estão em Mim” [7.12 (grifo meu)]. Criador e criação são
unos, ainda que diferentes.
No verso 10.7, Kṛṣṇa usa um termo-chave pela primeira vez: vibhūti.
Tão importante é vibhūti para esta discussão que a explicarei mais
adiante. Traduzo vibhūti como glória, mas isso só começa a explicar
essa palavra sânscrita.
Na palavra vi-bhūti, o prefixo vi- indica diferenciação, distribuição,
difusão ou expansão; e bhūti (da raiz bhū) significa ser, existência (em
especial “existência florescente”), prosperidade, potência, poder,
fortuna etc. A palavra composta vi-bhūti indica, assim, uma
florescente existência poderosa que se expande, multiplica-se e permeia
– e, portanto, potência, grandeza, poder sobre-humano, esplendor, glória,
magnificência etc.
No capítulo dez, Kṛṣṇa explica que é a fonte dos deuses, sábios e, de
fato, de todos os estados de existência neste mundo. Ele chama esse
poder extraordinário de Sua vibhūti (potência expansiva etc.) e Seu
yoga (poder místico) [10.7]. Após ouvir as glórias de Kṛṣṇa e
glorificá-Lo em retribuição, Arjuna pede para ouvir mais sobre a[s]
vibhūti[s] de Kṛṣṇa. Eis aqui uma tradução muito literal, se não
literária, do pedido de Arjuna:
“Deverias explicar por completo Tua[s] vibhūti[s] pessoal[is]
divina[s], a[s] vibhūti[s] pelas quais (...) permeias estes mundos
[10.16]; descreve com pormenores Tua (...) vibhūti” [10.18].
O Senhor responde: “Sim, descreverei Minha[s] vibhūti[s]
pessoal[is] divina[s] (...)” [10.19].
Logo após essa passagem, em 10.20, começam os versos identidade.
Então, por exemplo, quando Kṛṣṇa diz: “Das árvores, sou a figueira
sagrada” [10.26], não deveríamos concluir que toda figueira sagrada
na Terra é o Deus original, mas, sim, que esse tipo de árvore é um
exemplar de vibhūti, uma expansão da florescente potência criativa e
existência de Kṛṣṇa.
Após Arjuna pedir repetidamente para ouvir sobre Sua[s]
vibhūti[s], Kṛṣṇa diz que as descreverá. Então, no final do capítulo,
Kṛṣṇa diz que acabou de dar “um exemplo da extensão de Minha
vibhūti, pois não há fim para Minha[s] vibhūti[s] divina[s]” [10.40].
De fato, “(...) absolutamente todo ser que tenha vibhūti (glória etc.),
beleza ou verdadeira excelência brota de uma parte do Meu
esplendor” [10.41].
Outra vez, o Criador é uno com a criação, apesar do que cada
criação gloriosa não passa de uma pequena parte da glória infinita
do Criador. Assim, não há nenhum indício na Gītā de que Kṛṣṇa seja,
na verdade, Arjuna, que Arjuna seja Kṛṣṇa, que eles sejam uma única
pessoa ou um objeto impessoal; que a individualidade deles seja
uma ilusão ou que Arjuna tenha qualquer outro dever último ou
desejo além de servir a seu Senhor com devoção.
Ademais, Kṛṣṇa descreve a natureza material como Sua energia
inferior, abaixo das almas viventes que a animam [7.4-5]. Kṛṣṇa
supervisiona a natureza, fazendo-a agir [9.10]. Aqueles que se
refugiam Nele transpõem Sua natureza material ilusória [7.14]. A
natureza não é Deus; ela pertence a Deus.

A Pessoa Suprema (Parama-Puruṣaḥ)


Após termos considerado a relação de Kṛṣṇa com a natureza
material, vamos agora avaliar com precisão Sua relação com as
almas. Aqui também veremos com clareza que Ele é,
simultaneamente, uno com todas as almas e diferente delas.
Pensadores em todas as maiores religiões do mundo têm debatido
por muito tempo se Deus é, em última análise, pessoal ou impessoal.
Nosso próprio destino encontra-se numa posição incerta: se Deus,
nosso criador ou emanador, é original e essencialmente impessoal,
então é muito provável que também sejamos, em última análise,
impessoais. Se, por outro lado, fluímos de um Deus pessoal e
amoroso, então nossa natureza pessoal e amorosa, no seu melhor
estado, é, na verdade, o que somos.
Aqueles que valorizam a vida pessoal livre e individual em
relações amorosas com outras pessoas livres ficarão felizes em saber
que a Bhagavad-gītā firmemente ensina que tanto a alma como Deus
são pessoas individuais eternas.
Kṛṣṇa afirma no início que tanto Deus como as almas sempre
existiram, e sempre existirão, como seres individuais [2.12]. E Ele
chama regularmente a alma individual de pessoa (puruṣa).[27] Muitos
versos também falam de Kṛṣṇa como um puruṣa, pessoa. Nesse
sentido, as almas e Deus são unos. Contudo, também são diferentes.
Ú
Kṛṣṇa é a Pessoa Última (u ama puruṣa) [8.1, 10.15, 11.3], a Pessoa
Suprema (paraḥ puruṣaḥ) [8.22, 13.23], a Suprema Pessoa Divina
(paramam, ou param, puruṣam divyam) [8.8, 8.10], a Pessoa Divina
Perpétua (puruṣaṁ śāśvatam divyam) [10.12], a Pessoa Eterna
(sanātanaḥ puruṣaḥ) [11.18], a Pessoa Ancestral (purāṇaḥ puruṣaḥ)
[11.38] e a Pessoa Original (ādyam puruṣam) [15.4]. Nós, almas, somos
pessoas precisamente porque somos partes da Pessoa Suprema
[15.7].
Da mesma forma, somos ātmā, eu ou alma, como declarado em
toda parte na Gītā, porque somos partes de Kṛṣṇa, o Eu ou Alma
Supremos (paramātmā) [6.7, 13.23, 15.17]. Outra vez, Deus e a alma são
unos e diferentes.
Alguns acreditam, no entanto, que Kṛṣṇa seja um Ser impessoal
amorfo que assume uma forma visível quando desce a este mundo
como um avatāra. Nessa visão, a pessoa Kṛṣṇa meramente representa
em nosso mundo o que é, em última análise, uma Verdade
impessoal, amorfa e sem nome.
Kṛṣṇa, entretanto, nega isso explicitamente: “Sem conhecer Minha
natureza suprema, pessoas sem sabedoria pensam que um ser
amorfo assume individualidade visível” [7.24].
E a fim de que não presumamos que Kṛṣṇa ensina
antropomorfismo primitivo, Ele afirma que Sua forma pessoal é
acintya [8.9], inconcebível à razão humana destituída de ajuda. Ela é
cognoscível só através de devoção pura [11.54]. Mesmo seres
celestiais, mediante suas próprias faculdades mentais, não
compreendem a forma individual do Senhor [10.14].
De fato, é como uma Pessoa Suprema que Kṛṣṇa permeia este
mundo e está presente dentro de todos os seres [8.22, 13.23]. Essa
Pessoa Divina Eterna é o Brahman Absoluto Supremo [10.12], a
Pessoa Última, que faz com que as coisas existam [10.15].
Outra vez, é precisamente como a Pessoa Suprema que Kṛṣṇa
tanto permeia [6.29, 9.4, 11.38, 13.29] quanto contém [6.29, 9.6] tudo o
que existe, pois Ele é nidhāna, o receptáculo [9.18] – de fato, paraṁ
nidhānam, o receptáculo supremo [11.18, 11.38].
No entanto, mesmo o fato de Kṛṣṇa conter toda a existência não é
impessoal, pois Ele é nivāsa, a morada ou lar de todos [11.25, 11.37].
Arjuna chama Kṛṣṇa de jagan-nivāsa, a morada do Universo [11.37,
11.45]. A ideia é clara: mesmo que ignoremos ou neguemos Kṛṣṇa,
nosso verdadeiro lar permanece com Ele e dentro Dele. Kṛṣṇa é “o
magnífico senhor de todos os mundos” [5.29].
Arjuna pergunta diretamente a Kṛṣṇa qual dos dois grupos
melhor entende o yoga: aqueles devotados a Kṛṣṇa como uma pessoa
ou aqueles devotados a uma verdade imperceptível [12.1],
indescritível e inconcebível [12.3].
O Senhor responde que aqueles que O adoram em vez de
adorarem o imperceptível são mais avançados em yoga [12.2-4]. Na
verdade, o impersonalista, em última análise, vem a Kṛṣṇa, mas por
um caminho muito mais problemático [12.5].
Prática espiritual avançada não oblitera o eu pessoal, senão que
restabelece seu verdadeiro estado divino. Dentro da Gītā, não há
projeto, plano ou ideia para aniquilar o eu pessoal – para fundi-lo no
resplendor incorporado divino. Liberação significa elevar, não
destruir, o próprio eu.
Kṛṣṇa não Se revela a todos [7.25]. Ele reciproca imparcialmente
com todos [4.11] e só aqueles que O amam puramente podem vê-Lo
[11.54]. Assim, aqueles sem entendimento espiritual não O
reconhecem como o não nascido imperecível [7.25]. Sem conhecer
Sua natureza suprema, acreditam que Deus seja impessoal e
invisível, mas que assumiu (ou adentrou) um vyakti, uma forma
pessoal visível [7.24].
Arjuna afirma: “Ó Senhor, nem os deuses nem os ímpios
entendem Tua personalidade manifesta” [10.14].
Kṛṣṇa esclarece que Deus, a Pessoa Divina, existe com forma: um
corpo que é inconcebível, da cor do Sol e menor que um átomo [8.9],
ainda que infinito [11.16, 11.38, 11.47], cósmico [11.16], majestoso
[11.3, 11.9], surpreendente [11.20], feito de esplendor, original,
revelado pelo próprio poder místico do Senhor [11.47] e semelhante
ao de um ser humano [11.51]. Só aqueles com devoção pura são
capazes de conhecer o Senhor, aproximar-se Dele e realmente vê-Lo
como Arjuna o fez [11.53-54].
Talvez alguém suspeite que haja uma verdade ainda superior a
um Deus pessoal, mas Kṛṣṇa elimina essa dúvida: “[Aqueles] que
Me conhecem como a Pessoa Última, conhecem tudo e devotam-se a
Mim com todo o seu ser” [15.19].
Esse entendimento é a escritura mais avançada, e compreender
isso é realmente compreender [15.20]. Assim, somos pessoas eternas
porque emanamos [10.8] e fazemos parte de [15.7] uma Pessoa
infinita e eterna.
Como mencionado na seção sobre sacrifício, nós, almas eternas,
somos brahman (espírito) e podemos recuperar nossa existência
brahman,[28] mas Kṛṣṇa é a base de brahman [14.27], o Brahman
Supremo [10.12]. O ponto é claro.
Termos sânscritos como brahman, puruṣa e ātman são usados tanto
para Deus quanto para alma, sendo Deus o superlativo em cada
categoria. Existem vários termos, entretanto, reservados
exclusivamente para as almas. Vamos agora dar uma olhada neles.

Termos Reservados para as Almas (Bhūta, Jīva,


Dehī)

• ūta
Bh
Kṛṣṇa muitas vezes refere-Se às almas em corpos como bhūta
(bhūtāni, no plural), que traduzo como ser, no sentido de um ser vivo.
Embora Kṛṣṇa seja certamente um ser, a Gītā nunca se refere a Ele
como bhūta. Veremos o porquê.
A palavra bhūta provém da raiz verbal bhū, que significa ser, mas
costuma também significar tornar-se. Nesse sentido, bhūta significa
aquele que veio a ser – isto é, aquele que se tornou. A Gītā deixa claro
desde o início que tanto Deus como as almas individuais sempre
existiram [2.12]. Assim, o que vem a ser não é a alma em si, mas, sim,
uma persona efêmera da alma, produzida quando a alma entra no
corpo. Kṛṣṇa afirma diretamente que um bhūta surge quando
matéria e espírito se combinam [7.4-6].
Pode-se traduzir literalmente o trecho 8.19-20 da seguinte forma:
“Este mesmo grupo, aqueles que vieram a ser, após repetidas vezes
tornarem-se, (...) está irremediavelmente dissolvido. [Há, entretanto,]
outro estado superior que não perece quando todos os que se
tornaram estão perecendo”.
Uma vez que Kṛṣṇa afirma várias vezes que as almas nunca
perecem, claramente o que perece aqui é a identidade composta
formada quando a alma entra no corpo. Desse modo, nossa
identidade como mulher, homem, cachorro, pássaro ou árvore surge
quando uma alma consciente viva anima um corpo material, que, ao
contrário, é morto, criando de tal modo uma criatura viva
temporária – um bhūta. Essa persona composta literalmente se
dissolve quando a alma deixa o corpo.
No entanto, visto que Kṛṣṇa não assume um corpo material, Ele
não é um bhūta. Sua identidade como Kṛṣṇa não vem a ser como
nossas identidades mundanas. Kṛṣṇa sempre foi Kṛṣṇa [2.12] e
sempre será Kṛṣṇa, a Suprema Pessoa Divina.
Atado a um corpo material, um bhūta deve seguir a natureza
[3.33]. O bhūta busca se libertar da natureza [13.35]. Kṛṣṇa controla a
natureza [9.10]. Ele não é um bhūta. A Gītā nunca afirma que Seu
corpo, ou Sua identidade, vêm a ser.
A Gītā descreve a relação de Kṛṣṇa com os bhūtas (almas como
nós), cuja identidade temporária vem a ser. Kṛṣṇa é um amigo
bondoso de todo bhūta [5.29], a semente eterna de todo bhūta [7.10].
Ele conhece presente, passado e futuro de todo bhūta [7.26]. Ele é o
magnífico senhor dos bhūtas [9.11], e sua origem [9.13]. Ele é igual
para com todo bhūta [9.29, 13.28] e, como o mestre, faz com que
todos os bhūtas existam [10.15]. Ele é o princípio, meio e fim dos
bhūtas [10.20], e seu protetor [13.17]. Ele sustenta os bhūtas por meio
de Seu poder [15.13], pois Ele é o seu Senhor [18.61]. E, no final da
era, o bhūta entra na própria natureza de Kṛṣṇa [9.7].
A conclusão: como almas, como pessoas, como partes de Deus,
somos unos com Ele. No entanto, também somos diferentes. Neste
mundo, fazemos negócios como bhūtas. Kṛṣṇa não.
A Gītā emprega outros termos importantes para indicar as almas,
mas não Deus.
ī
• J va

A palavra jīva (“vida, vivo”) geralmente indica “a alma viva ou


pessoal, como distinta da alma universal (...)”[dicionário Monier
Williams]. Da mesma forma, o termo jīvātman (“alma viva”) indica
“a alma individual, pessoal ou viva como distinta de paramātman, a
Alma Suprema” [dicionário Monier Williams]. A Gītā por duas vezes
chama a alma de jīva-bhūta (ser vivo) [7.5, 15.7], mas nunca usa esse
termo para Deus.
A Gītā também usa para as almas individuais, mas nunca para
Deus, vários termos relativos a nossos corpos.
• Dehin, Śarīrin, Deha-bhṛt, Dehavad
A palavra mais comum da Bhagavad-gītā para “corpo” é deha. E
por onze vezes[29] a Gītā chama a alma de dehin, “aquele que tem um
corpo” ou “o corporificado”. Assim, a alma é distinta do corpo.
Outra palavra para corpo é śarīra, e a alma chama-se śarīrin [2.18],
“aquele que tem um corpo” ou “o corporificado”. A Gītā também
descreve a alma como deha-bhṛt, “aquele que porta um corpo” [8.4,
14.14, 18.11], e dehavad, “aquele que tem um corpo” [12.5]. Kṛṣṇa usa
duas vezes a palavra kalevara, que também significa corpo, para
descrever como a alma deixa um corpo material no momento da
morte [8.5-6].
Na Gītā, todos esses termos sânscritos – dehin, śarīrin, deha-bhṛt,
dehavad e kalevara – indicam claramente uma alma como distinta de
seu corpo material. A Gītā, no entanto, não usa nenhum desses
termos, nem quaisquer termos semelhantes, para descrever Kṛṣṇa. A
Gītā não dá nenhuma indicação de que Kṛṣṇa, a Alma Suprema [6.7,
13.23, 15.17], seja diferente de Seu corpo. Isso é cem por cento
consistente com a nossa análise de bhūta.
No início, Kṛṣṇa nos diz que somos almas eternas em corpos
temporários [2.18, 2.20, 2.30]. Nosso corpo é matéria (aparā prakṛti), a
energia inferior do Senhor, mas nós, almas, somos parā prakṛti, a
energia viva superior do Senhor [7.4-5]. A Gītā nunca descreve o
corpo de Kṛṣṇa como material, temporário ou limitado. Em vez
disso, Sua forma é ananta, infinita [11.16, 11.38].
Kṛṣṇa descreve a transmigração das almas de um corpo para
outro [2.13]. As almas deixam corpos velhos assim como se
abandonam roupas velhas e desgastadas [2.22]. O conhecimento
espiritual, entretanto, viaja com a alma de um corpo para outro.
Desse modo, praticantes da espiritualidade recuperam
conhecimento espiritual “de um corpo passado” [6.43]. Muitos
versos descrevem a alma deixando ou abandonando o corpo. Nenhuma
dessas linguagens, entretanto, é aplicada a Kṛṣṇa.
Tanto Kṛṣṇa quanto Arjuna apareceram neste mundo muitas
vezes. O Senhor recorda todos esses nascimentos, mas Arjuna não
[4.5]. Isso porque o nascimento e as atividades de Kṛṣṇa são divinos
[4.9].
Devido ao karma, almas comuns aceitam e deixam um corpo
físico, mas as leis de karma não podem afetar Kṛṣṇa [4.14], não
podem forçá-Lo a aceitar um corpo material, pois Ele governa a
natureza, com todas as suas leis [9.10].
Kṛṣṇa afirma muitas vezes que está dentro do corpo da alma,
especificamente no coração.[30] Porém, Kṛṣṇa nunca diz que está
dentro de Seu próprio corpo. Não há nenhum indício de Kṛṣṇa
deixar Seu corpo ou de Seu corpo nascer ou morrer, como nossos
corpos.
Um último ponto a esse respeito: na Gītā, Kṛṣṇa muitas vezes fala
de cativeiro e liberdade. Com vários substantivos e formas verbais
da raiz muc, Kṛṣṇa nos ensina sobre a libertação da alma de
nascimento e morte,[31] de karma [2.39, 3.31, 4.22-23, 9.28], do mal,[32]
da ira, luxúria, medo etc. [2.64, 5.26, 5.28, 16.22], de dualidade [7.28,
15.5, 12.15], de apego [3.9, 18.26, 18.54] ou simplesmente do cativeiro
[5.3]. E enquanto pode-se facilmente compilar uma lista semelhante
de palavras que indicam cativeiro, a Gītā em parte alguma sugere
que Kṛṣṇa, em alguma ocasião, esteja atado ou liberto de algo. Na
Gītā, Ele é Deus – em pessoa.
Fica claro que a Gītā ensina que Deus não tem um corpo material
como nós temos. Ele não é um bhūta. Jamais está atado ou liberto.
Kṛṣṇa, no entanto, apareceu neste mundo como um ser humano, ou
pessoa (semelhante à humana). As pessoas viram Kṛṣṇa, abraçaram-
No, falaram com Ele. Como devemos entender o corpo de Kṛṣṇa? A
esse respeito também a Gītā vem ao nosso encontro.

A Forma Original de Kṛṣṇa (Rūpa)


Vimos que a Gītā chama a alma de dehī, śarīrī, deha-bhṛt e dehavad,
termos sânscritos que indicam alguém que, de alguma forma, está
separado, ou é diferente, de seu corpo. Nenhum desses termos
sânscritos descreve Kṛṣṇa. A Gītā muitas vezes descreve como almas
deixam seus corpos e obtêm outros. Nada disso se aplica a Kṛṣṇa.
Nada na Gītā sugere que Kṛṣṇa esteja separado, ou seja diferente, de
Seu corpo. Kṛṣṇa afirma muitas vezes que está dentro do corpo das
almas corporificadas – dentro de seus corações. Kṛṣṇa, no entanto,
nunca afirma que está dentro do Seu próprio corpo. Diferente do
nascimento da alma sob as estritas leis da natureza, Kṛṣṇa governa a
natureza e aceita um nascimento divino mediante Seu próprio poder
[4.6].
Na Gītā, Kṛṣṇa aparece para Arjuna em três formas diferentes: Sua
normal e “sublime forma semelhante à humana” [11.50]; Sua forma
com quatro braços que seguram objetos simbólicos [11.46]; e Sua
forma cósmica [11.9-45].
Kṛṣṇa também diz a Arjuna que medite na Suprema Pessoa
Divina como alguém que possui uma forma inconcebível (acintya-
rūpa), da cor do Sol, além da escuridão [8.9].
Se a forma de Kṛṣṇa é acintya, inconcebível, como podemos, então,
compreendê-la? O termo acintya, inconcebível, não significa
incognoscível. Assim, Kṛṣṇa ensina que se podem conhecer muitas
coisas sobre a alma, inclusive o fato de que almas são acintya,
inconcebíveis [2.25]. Em resumo, acintya indica aquilo que não
podemos conhecer mediante nossos próprios poderes destituídos de
ajuda, mas que podemos conhecer por ouvir Kṛṣṇa ou ta va-darśī[s],
observadores da verdade [2.16, 4.34]. Assim, podemos saber algo
sobre o corpo de Kṛṣṇa se ouvimos Kṛṣṇa. Afinal, só Kṛṣṇa conhece a
Si mesmo deveras.
A Bhagavad-gītā menciona diretamente o corpo de Kṛṣṇa vinte e
três vezes, e vinte e uma vezes usa a palavra rūpa, um termo que a
Gītā nunca usa para corpos materiais. Rūpa indica “forma, formato,
figura” e, ademais, pode significar “forma bela, encanto, graça,
beleza, esplendor”.[33]
O célebre capítulo onze da Bhagavad-gītā revela a forma cósmica
de Kṛṣṇa, mediante a qual Ele permeia, contém e consome o
Universo. A Gītā fala muito mais sobre a forma cósmica do que sobre
as demais, e muitos leitores acreditam que esse corpo maravilhoso
seja a forma mais elevada de Kṛṣṇa. Evidências textuais, todavia,
sugerem o contrário. Consideremos primeiro, portanto, a espetacular
forma cósmica de Kṛṣṇa – o que ela significa para Arjuna e sua
relação com outras formas de Kṛṣṇa, inclusive Sua forma comum
como Kṛṣṇa.
Arjuna enfaticamente pede para ver a forma cósmica de Kṛṣṇa:
“(...) Ó Senhor Supremo, quero ver Tua forma senhoril” [11.3]. Para
transmitir o impacto do sânscrito original (īśvara/aiśvara), uso os
termos cognatos Senhor e senhoril. Arjuna dirige-se a Kṛṣṇa como
parama-īśvara (Senhor Supremo) e, então, pede para ver a forma
aiśvara (senhoril). É claro que aiśvara, senhoril, deriva-se de īśvara,
Senhor.
Surge uma pergunta: se Kṛṣṇa é o Senhor, e Arjuna tem visto
Kṛṣṇa e falado com Ele por algum tempo, por que, então, pedir para
ver a forma senhoril do Senhor, como se fosse diferente da forma de
Kṛṣṇa? Não seria a forma de Kṛṣṇa semelhante à humana a
verdadeira forma de Deus?
Após ver o que pediu – a forma cósmica de Kṛṣṇa, a qual o
intimida e sobrepuja, assim como o faz a muitos leitores – Arjuna
reverencia Kṛṣṇa “pela frente, por trás e por todos os lados” [11.40] e
diz: “Por considerar-Te um amigo, tomei liberdades, sem conhecer
esta Tua glória” [11.41].
Vemos aqui um aspecto de Kṛṣṇa que há milênios tem encantado
e mistificado: o Deus onipotente e onisciente atua como um ser
humano, formando semelhante amizade íntima com Seus devotos a
tal ponto que se esquecem de que Ele é Deus. Assim, Arjuna
acrescenta: “Só para provocar, insultei-Te, Acyuta, ao me divertir,
repousar, sentar e comer – a sós ou mesmo acompanhados” [11.42].
A visão de Arjuna da forma cósmica de Kṛṣṇa fez estremecer seu
confiante contentamento. Lembre-se do pedido inicial de Arjuna:

Ó
“(...) Ó Senhor Supremo, quero ver Tua forma senhoril” [11.3]. Aqui,
Arjuna confia em sua amizade íntima com Kṛṣṇa.
Considere o exemplo um tanto comum de pessoas famosas, ricas,
poderosas que escolhem viver onde vizinhos tratam-nas
simplesmente como vizinhos, sem saber ou importar-se com a
celebridade da celebridade. Sabemos que pessoas famosas, ricas,
poderosas têm dificuldade em encontrar amigos verdadeiros que as
amam pelo que são, e não pelo que possuem. Imagine, então, a
situação da celebridade suprema: Deus.
Kṛṣṇa, desse modo, diz a Arjuna: “Falo esta ciência espiritual a ti
porque és Meu amigo devotado” [4.3]. Sabemos pelo Mahā-bhārata
que Arjuna e seus quatro irmãos devotaram suas vidas a Kṛṣṇa com
imenso amor, e Kṛṣṇa viveu com eles como se fosse um príncipe
humano.
Semelhante comportamento despretensioso da parte de Deus
pode, às vezes, levar até o indivíduo devotado a não dar o devido
valor ao Senhor. Arjuna reconhece isso após ver a esmagadora forma
cósmica do Senhor, e se desculpa [11.41-42]. Ele implora para ver de
novo a forma de Kṛṣṇa que conhece e ama. Afinal, a forma cósmica,
devido a toda a sua majestade avassaladora, é difícil de amar. Kṛṣṇa
consente, e Arjuna vê Kṛṣṇa com olhos novos e purificados.
Por que Arjuna pediu para ver a forma cósmica, afinal? Arjuna
diz a Kṛṣṇa: “Quero ver-Te, ó Senhor Supremo, como descreveste a
Ti mesmo em Tua forma senhoril” [11.3]. Em outras palavras,
embora Kṛṣṇa tenha mencionado muitas vezes que Ele é Deus, que
governa a tudo, Arjuna não viu de fato esses poderes em Seu amigo
divino porém modesto. Em essência, Arjuna diz a Kṛṣṇa: “Dizes que
és Deus. Mostra-me”.
Kṛṣṇa responde: “Contempla minhas centenas e milhares de
formas (...)” [11.5], “contempla o Universo inteiro aqui num único
lugar, no Meu corpo” [11.7]. Arjuna, entretanto, não pode ver essa
revelação cósmica com seus olhos comuns, em virtude do que Kṛṣṇa
lhe dá visão divina [11.8]. Arjuna, em seguida, contempla a forma
cósmica de Kṛṣṇa, a qual brilha como mil sóis a nascer ao mesmo
tempo no céu [11.12]. Arjuna vê o Universo inteiro, com todas as
suas formas separadas e divisões, dentro do corpo do Deus dos
deuses [11.13]. Espantado, com pelos arrepiados, ele reverencia a
Deus, junta as palmas das mãos e diz ao Senhor o que vê.
Mas, então, fala sobre algo novo e perigoso: “(...) vejo Tua boca de
fogo abrasador, queimando o cosmos com esplendor (...). Por
contemplar esta Tua maravilhosa forma feroz, os três mundos
tremem” [11.19-20]. Arjuna vê até deuses e grandes sábios
aterrorizados entrarem nessa ofuscante forma cósmica, orando por
seu próprio bem-estar [11.21]. Os mundos tremem de medo [11.23].
Essa visão estremece Arjuna no âmago de seu ser e ele não
encontra paz [11.24]. De modo significativo, nessa conjuntura
aterrorizante, Arjuna, pela primeira vez na Gītā, dirige-se ao Senhor
não como Kṛṣṇa, mas, sim, com o nome mais formal Viṣṇu [11.24].
Arjuna diz, então, que a forma cósmica manifesta pavorosas presas
escancaradas. Completamente desorientado, Arjuna não encontra
refúgio e implora ao Senhor por misericórdia [11.25].
Os guerreiros de batalha voam para dentro das bocas devoradoras
da forma cósmica [11.26-27] assim como rios precipitam-se para o
mar ou mariposas lançam-se ao fogo [11.28-29]. A forma cósmica
começa a devorar todos os mundos. Mais uma vez, ao chamar o
Senhor de Viṣṇu [11.30], Arjuna já não sabe mais quem ou o que vê.
Ele clama: “Quem és Tu, pessoa de forma tão feroz?” [11.31]. Então,
reverencia Kṛṣṇa pela primeira vez na Bhagavad-gītā [11.31].
O Senhor responde: “Sou o Tempo, destruidor dos mundos,
expandido para recolher os mundos” [11.32]. Kṛṣṇa – pois é Kṛṣṇa –,
então, estimula Arjuna a levantar-se, alcançar glória e derrotar os
inimigos, pois, como Kṛṣṇa declara: “Já matei os inimigos; [agora,] sê
apenas o instrumento” [11.33].
De mãos postas, tremendo, prostrando-se repetidas vezes, com
voz embargada, aterrorizado – Arjuna oferece orações a Deus [11.35-
46]. Nessas orações, ele reconhece que não deu o devido valor a
Kṛṣṇa e ora: “Ó Deus, como de pai para filho, amigo para amigo,
amante para amante, sê indulgente comigo!” [11.44].
Arjuna nesse momento ora para ver, não a forma cósmica do
Senhor, senão Sua forma pessoal. Em seu caminho de volta à
consciência estável e pacífica, primeiro ele pede para ver a renomada
e majestosa forma de Kṛṣṇa como Viṣṇu, com quatro braços [11.46].
Após assegurar Arjuna de que só ele havia visto semelhantes formas
extraordinárias do Senhor, Kṛṣṇa outra vez revela Sua “sublime
forma semelhante à humana” como amigo de Arjuna [11.50-51]. Ao
ver essa forma, Arjuna diz: “Agora estou restabelecido, racional,
natural” [11.51].
Kṛṣṇa assegura Arjuna de que apenas mediante devoção
exclusiva, e não por meio de estudo das escrituras, austeridade,
caridade ou oferenda ritualista, pode-se ver Kṛṣṇa como Ele é
realmente [11.52-55]. E nesse ponto termina o capítulo.
Podemos inferir diversas conclusões críticas a partir desse
capítulo. Primeiro, esse capítulo reafirma poderosamente o
monoteísmo. À medida que começa a revelar Sua forma cósmica,
Kṛṣṇa diz a Arjuna que contemple os deuses dentro Dele. [11.6]. E
quando Arjuna recebe a visão divina necessária para ver essa forma,
sua primeira declaração é que ele vê os deuses dentro do corpo
cósmico de Deus, inclusive o próprio Brahmā, o supremo deus
criador [11.15].
Quando a visão cósmica torna-se assustadora, Arjuna afirma que
os três mundos, inclusive o reino mais elevado dos deuses, tremem
de medo [11.20]. Multidões de deuses aterrorizados e sábios
grandiosos “entram em Ti”, orando por seu próprio bem-estar
[11.21]. Todos esses deuses assombrados fitam a forma cósmica de
Kṛṣṇa [11.22]. Arjuna declara que Deus supera até Brahmā, “o
primeiro criador” [11.37].
Um escrutínio cuidadoso desse capítulo sugere que a forma
cósmica de Kṛṣṇa não é Sua plena revelação de Si mesmo, mas, sim, o
oposto: uma visão muito parcial de Deus. À parte de terror e
confusão, não temos nenhuma relação real com a forma cósmica. Ela,
na verdade, não faz nada exceto exibir esplendor infinito e devorar o
cosmos.
Kṛṣṇa afirma que é um amigo bondoso de todos os seres [5.29],
que reciproca o amor de Seu devoto [9.29], que O conhecer como a
Pessoa Suprema é conhecer tudo [15.19] e que pessoalmente ergue
aqueles que Lhe são devotados [12.2]. A forma cósmica não oferece
nada dessa intimidade. O amor de Deus por todos nós, Sua avidez
por nos ajudar, estão inexoravelmente nulos na forma cósmica.
Com efeito, quando Arjuna diretamente pergunta quem é a forma
cósmica [11.31], Ele responde: “Sou o Tempo, destruidor dos
mundos” [11.32]. Por comparação, Kṛṣṇa afirma no capítulo anterior:
“Sou a morte que leva tudo embora e o advento de tudo o que virá”
[10.34]. A forma cósmica empunha só metade desse conjunto de
poderes. Kṛṣṇa declara: “Eu sou a fonte de tudo; de Mim, tudo
provém” [10.8]. A forma cósmica contém e consome o cosmos, mas
não parece criá-lo.
Kṛṣṇa inspira o amor e a devoção de Arjuna. A forma cósmica
aterroriza o Universo inteiro [11.20, 23], bem como Arjuna [11.24,
45], até o ponto em que literalmente o assusta e o deixa fora de si
[11.24-25]. Só o retorno da forma original de Kṛṣṇa, semelhante à
humana, restabelece Arjuna em sua própria natureza verdadeira,
revivendo sua razão. Almas, desse modo, representadas por Arjuna,
autorrealizam-se por completo na relação com Kṛṣṇa, e não com a
forma cósmica [11.51]. A alma é parte de Kṛṣṇa [15.7] e atinge
autorrealização na relação com Kṛṣṇa. Isso aponta para Kṛṣṇa como
a plena manifestação de Deus, e não a breve mostra da onipotência
de Deus como o Tempo implacável que a tudo devora. De fato, por
todo o Mahā-bhārata, Arjuna muitas vezes anseia ver Kṛṣṇa, mas, à
parte de seu único pedido na Bhagavad-gītā, ele não mostra nenhum
interesse particular em ver a forma cósmica.
A forma cósmica, todavia, serve a um propósito essencial: impede
que Arjuna (e nós) não dê o devido valor a Kṛṣṇa, embora essa
epifania pareça ter escapado a muitos comentadores da Gītā. A
forma cósmica, contudo, purifica e ilumina o leitor devotado.
Em outra passagem do Mahā-bhārata [5.129], Kṛṣṇa exibe uma
visão abreviada de Sua forma cósmica. Lá também, Ele concede
visão divina àqueles afortunados para vê-la.
A seguir, explicarei, de acordo com a Gītā, o conceito de buddhi –
inteligência espiritual ou razão –, o que, Kṛṣṇa nos diz, é essencial
para o sucesso em todos os caminhos espirituais. Após esse prefácio,
consideraremos, então, os caminhos espirituais específicos que
conduzem à liberação: karma-yoga (yoga da ação), jñāna-yoga (yoga do
conhecimento), dhyāna-yoga (yoga da meditação) e bhakti-yoga (yoga
da devoção).
PARTE VII
Yoga

O Poder da Razão (Buddhi)


A palavra buddhi indica inteligência, razão ou julgamento. É o
poder de discernir onde entrar e onde sair, o que fazer e o que não
fazer, na busca de nosso autointeresse racional. Buddhi nos diz o que
é benigno e o que é maligno, o que liberta e o que escraviza. Buddhi
faz essas distinções cruciais [18.30].
Acima da mente instável que gosta e desgosta, aceita e rejeita, com
capricho subjetivo, existe buddhi tranquila, calma e objetiva – a voz
da razão. Situada ao lado da alma na escala de poderes [3.42], buddhi
é razão que racionaliza o que está além de si mesma: a alma eterna
[3.43].
De fato, quando somos atraídos à espiritualidade nesta vida,
reconectamo-nos com a buddhi, a compreensão espiritual, de nossa
vida passada. Assim, esforçamo-nos outra vez pela perfeição final
[6.43]. E com buddhi pura, qualificamo-nos para a existência
espiritual [18.51-53].
Algumas pessoas alegam, em nome das escrituras, que não existe
nada mais na vida exceto trocar piedade por recompensas materiais
[2.42-43]. O yoga como vida espiritual disciplinada, no entanto, só é
possível quando buddhi fica indiferente a apegos materiais e a textos
religiosos que promovem materialismo piedoso [2.52-53]. Desse
modo, na luta contra apego e ilusão, nossa última linha de defesa é
buddhi. Se perdemos a razão, decerto a alma fica perdida em
ignorância [2.63]. Contudo, numa vida de graça jubilosa (prasāda),
vencemos nossos problemas, e buddhi permanece firme [2.65]. Isso
resulta de uma prática espiritual séria [2.66].
Neste mundo difícil, Kṛṣṇa nos diz para “buscar abrigo em
buddhi”: razão clara que nos diz para não cobiçarmos egoistamente
frutos da ação [2.49]. De fato, descobertas científicas indicam que
pessoas obtêm mais prazer em gastar dinheiro com os outros do que
consigo mesmas. Renunciar ao egocentrismo não é renunciar ao
prazer, mas, sim, encontrar prazer genuíno na vida devotada.
Felicidade virtuosa advém quando buddhi encontra serenidade no
verdadeiro eu [18.37]. Buddhi abrange a felicidade última da
autorrealização, além dos sentidos mundanos [6.21]. Desse modo,
com buddhi determinada, o indivíduo deveria, pouco a pouco, retirar
a mente de objetos ilusórios e fixá-la no verdadeiro eu [6.25]. Com
buddhi pura, vemos como agir sem incorrer em karma [4.18]; com
buddhi estável, conhecemos e atingimos o Absoluto [5.20]; e com
buddhi equânime, vemos todos os seres igualmente como almas
eternas, a despeito de seu tipo de corpo ou condição material [6.9].
Essa buddhi equânime ajuda-nos a alcançar Kṛṣṇa [12.4].
Mas luxúria pode infectar nossa razão e encobrir a consciência
[3.39]. Os modos da paixão e da escuridão corrompem buddhi [18.31-
32]. Em paixão, buddhi mensura imprecisamente o que é e não é
moral, o que é e não é dever. Em escuridão, buddhi entende tudo ao
contrário, considerando o imoral como sendo moral [18.32].
Porém, quando buddhi desprende-se de todas as coisas materiais,
o indivíduo abandona a vida mundana e alcança perfeição acima de
karma [18.49]. Precisamos de buddhi para livrarmo-nos das amarras
de karma [2.39, 2.50], quer trilhemos o caminho de yoga do
conhecimento (jñāna-yoga), quer o de yoga da ação (karma-yoga).
Razão resoluta guia-nos com foco preciso, mas, quando a
determinação enfraquece, a razão se dispersa em intermináveis
direções [2.41]. Aqueles que se aferram a prazer e poder mundanos
não conseguem focar buddhi no caminho espiritual [2.44];
preocupam-se com inumeráveis problemas em vez de buscarem um
estado espiritual que solucione todos eles.
O que, então, inspira e outorga poder à razão resoluta (buddhi)
para abandonar infindáveis preocupações e focar com exclusividade
no caminho espiritual? Não é nada senão Kṛṣṇa, que repetidas vezes
assegura que cuidará pessoalmente de nós se levarmos Suas
instruções a sério.
Kṛṣṇa vem a este mundo para resgatar os virtuosos de seus
problemas [4.8]. Se pudermos compreender que Ele é o amigo
bondoso de todos os seres, encontraremos a paz que nos escapa
[5.29]. Ele pessoalmente traz prosperidade e segurança àqueles que
Lhe são devotados [9.22]. Ele é nosso refúgio (śaraṇam) e verdadeiro
amigo [9.18], impelindo-nos a refugiarmo-nos (śaraṇam) de todos os
problemas apenas Nele, garantindo-nos que encontraremos, assim, a
paz mais elevada e a morada perpétua, e que Ele nos livrará de todas
as transgressões [18.62, 18.66].
Outra vez utilizando a mesma palavra para “refúgio”, Kṛṣṇa diz à
alma: “Busca refúgio (śaraṇam) em buddhi” [2.49]. Assim, buscar
refúgio em buddhi é acolher a razão pura que nos guia para
devotarmo-nos a Deus.
Por compreender essa lógica espiritual, nossa inteligência para de
agonizar por causa dos problemas inevitáveis deste mundo, sejam
eles financeiros, sociais, psicológicos, políticos, históricos ou
quaisquer outros, e aceita avidamente a oferta de Kṛṣṇa de refúgio,
sustento e morada eterna. De fato, Kṛṣṇa afirma próximo ao final da
Gītā que o indivíduo deveria valer-se de buddhi e, desse modo,
dedicar todas as suas ações a Ele, tendo-O como supremo e sempre
pensando Nele [18.57]. Mais uma vez, a buddhi específica de que o
indivíduo vale-se aqui é a razão pura absorta em Deus. Afinal,
aquele que enfim alcança conhecimento após muitos nascimentos
compreende que Kṛṣṇa é tudo [7.19].
Assim, a Gītā apresenta devoção plena a Kṛṣṇa como um ato
supremamente racional, o fruto da razão pura, buddhi. Almas não
chegam a Kṛṣṇa por rejeitarem a razão. Pelo contrário, Kṛṣṇa afirma
que Ele em pessoa dá buddhi-yoga àqueles constantemente
devotados, que, então, vão a Ele mediante essa prática de razão pura
[10.10]. De fato, a prova de buddhi pura é que o indivíduo vê Kṛṣṇa
como a Pessoa Suprema acima de todas as outras pessoas, ciente de
que não há compreensão nem verdade escritural superior [15.20].
De modo inverso, aqueles que carecem de buddhi pensam que
Kṛṣṇa é originalmente e em última análise impessoal, e que assume
forma pessoal para algum propósito. Por carecerem de buddhi (razão
espiritual), eles não compreendem a natureza pessoal superior de
Kṛṣṇa [7.24].
Ainda pior, os irracionais, aqueles com buddhi insignificante,
acreditam que não existe Deus no Universo, nem Verdade ou
fundamento [16.8-9]. Da mesma forma, aqueles com “buddhi não
formada” acreditam ser eles mesmos os únicos autores de suas
ações, sem levar em consideração fatores circundantes e
providenciais [18.16].
Alcançamos razão pura, buddhi, por devotarmos nosso raciocínio
a Kṛṣṇa. Fazemos isso ao levar a Bhagavad-gītā a sério. Kṛṣṇa nos diz
que ofereçamos nossa buddhi a Ele [8.7, 12.14][1] e que fixemos nossa
buddhi Nele [12.8].
Além disso, o próprio Kṛṣṇa é a buddhi daqueles que a possuem
[7.10], uma vez que vive em nosso coração e nos dá conhecimento
[15.15] se o desejarmos.
A Bhagavad-gītā apresenta sua noção mais clara e mais sucinta de
uma ciência espiritual no termo buddhi-yoga. A webpage Oxford
Dictionaries define ciência como “atividade intelectual e prática que
abrange o estudo sistemático do (...) mundo físico e natural através
de observação e experimento.”[2] Deixando de lado a suposição da
petição de princípio de que o indivíduo só pode estudar
sistematicamente “o mundo físico e natural”, focamos aqui nas
dimensões “intelectual e prática” de semelhante estudo. Buddhi
indica inteligência ou razão, e yoga indica prática. É o termo buddhi-
yoga que aponta para uma ciência espiritual.
Assim, Kṛṣṇa alega dar uma compreensão racional (buddhi) da
alma tanto na teoria quanto na prática [2.39]. Esse buddhi-yoga é de
longe superior à ação ordinária [2.50]; Kṛṣṇa a concede àqueles que
Lhe são sempre devotados [10.10]. Por depender de buddhi-yoga, o
indivíduo é capaz de sempre fixar a mente em Kṛṣṇa [18.57].
Vamos resumir os traços essenciais e gerais do yoga, o caminho
espiritual, e então explorar os traços distintos dos principais
caminhos do yoga.
Três vezes na Gītā, Kṛṣṇa fala de uma pessoa num estado
específico de consciência: “Esse é um yogī”. Cada um desses versos
descreve uma qualificação distinta que capacita um yogī verdadeiro
a ver o eu, Deus e outras almas. Desse modo:
Um yogī, ou praticante espiritual, encontra felicidade, prazer e luz
dentro de si – no verdadeiro eu [5.24];
Um yogī situa-se em unidade e vê Kṛṣṇa em todos os seres,
existindo, assim, em Kṛṣṇa em todas as circunstâncias [6.31];
Um yogī, por comparar o eu com outros, vê com equanimidade
em toda parte, na alegria e na tristeza [6.32].
Mais uma vez, buddhi (razão espiritual ou discernimento), ajuda
um yogī a ver adequadamente o eu, Deus e outras almas.
Um yogī é superior a alguém que busca conhecimento (jñānī) ou
ação (karmī) [6.46]. Todavia, o que torna yoga da ação (karma-yoga)
melhor que mera ação? O que torna yoga do conhecimento (jñāna-
yoga) melhor que mero conhecimento? Ou alguém poderia
perguntar: o que transforma ação em yoga da ação? O que
transforma conhecimento em yoga do conhecimento? Para responder
a essas perguntas, examinaremos primeiro esses dois famosos
caminhos do yoga – e então consideraremos aquele que se situa
acima de ambos.

Prática Espiritual (Yoga)


Costuma-se mencionar que a palavra yoga vem da raiz sânscrita
yuj, que significa, no sentido relevante aqui: “unir, ligar, conectar“,
“preparar, deixar pronto”, “utilizar ou ocupar”, “meditar em Deus e
unir-se a Ele”.[3]
Assim, sem nos estendermos sobre questões semânticas
significativas, podemos dizer que yoga – tanto no dicionário sânscrito
quanto na Bhagavad-gītā – refere-se, em primeiro lugar, a uma prática
espiritual na qual se prepara a alma para unir-se a Deus.
A Gītā sabe e respeita o fato de que as pessoas são diferentes e,
então, apresenta caminhos de yoga alternativos. Fiel a seu nome,
karma-yoga (yoga da ação) atrai pessoas ativas que, como a maioria de
nós, deseja agir de forma dinâmica porém espiritual no mundo,[4] ao
passo que jñāna-yoga (yoga do conhecimento) adequa-se àqueles
inclinados a aproximarem-se intelectual e filosoficamente da
Verdade [3.3].
Kṛṣṇa declara que os caminhos de ação e conhecimento, em
última análise, são um só, pois qualquer um dos dois, bem
praticado, concede o benefício de ambos [5.4-5]: um karma-yogī
diligente e devotado vê a alma tanto quanto um filósofo
espiritualista [13.25], e um jñāna-yogī bem-sucedido deve aplicar
conhecimento no mundo [3.25]. Adiante na Gītā, Kṛṣṇa também
ensina dhyāna-yoga (yoga da meditação), projetado para o meditador
místico [13.25, 18.53 etc.].
Embora não classifique a posição de karma-yoga, jñāna-yoga e
dhyāna-yoga, Kṛṣṇa, sim, coloca claramente bhakti-yoga, o yoga do
amor puro, acima de todos os outros yogas [6.47, 12.1-2].
Cada um desses caminhos de yoga será discutido separadamente,
mas primeiro explicarei as características gerais de todos eles.

Equanimidade (Samatvam)
Kṛṣṇa primeiro define yoga como samatvam, “equanimidade” ou
“serenidade” [2.48] – um estado estoico de consciência no qual o
indivíduo firmemente permanece à parte de atração e aversão
mundanas.[5] Essa igualdade, ou equanimidade, é, desse modo, o
oposto de dvandva (dualidades), tais como: felicidade e tristeza,
vitória e derrota, ganho e perda, fama e infâmia, e seu antídoto. Na
seção sobre karma, forneci uma lista dessas dualidades, dizendo lá
que, presos a dualidades e seus extremos de felicidade e tristeza,
amamos e odiamos objetos materiais e esquecemos que nosso
verdadeiro eu existe além de todos os objetos materiais.
Kṛṣṇa explica que um verdadeiro yogī consegue tolerar
dualidades mundanas de objetos e situações agradáveis e
desagradáveis porque todas elas estão fora – isto é, são extrínsecas à
alma pura e, em última análise, separadas dela. O yogī foca-se dentro
de si.
Kṛṣṇa usa esta linguagem de fora e dentro para descrever,
respectivamente, o mundo físico, que a alma percebe através de
sentidos corpóreos materiais, e a realidade espiritual interna, que a
alma percebe diretamente – isto é, não por meio de um corpo físico.
Por exemplo, uma alma desapega-se de contatos externos (o corpo
físico junto com o mundo físico) por descobrir o prazer imperecível
dentro do eu [5.21]. Desse modo, por colocar contatos externos do lado
de fora (ao qual eles pertencem), pratica-se yoga [5.28].
Kṛṣṇa muitas vezes indica consciência interna mediante a palavra
ātmani, “dentro da alma/eu”, como nestes exemplos:
Quando o indivíduo fica satisfeito apenas no eu, seu conhecimento
está fixo [2.55];
Aquele que se deleita apenas no eu, contente no eu, satisfeito apenas
no eu, não possui dever mundano [3.17];
Quando a consciência situa-se apenas no eu, o indivíduo está de
fato vinculado em yoga [6.18];
Para onde quer que a mente divague, é preciso trazê-la de volta
sob o controle apenas do eu [6.26].
Kṛṣṇa também indica consciência interior mediante a palavra antar
– ou interior –, como nestes exemplos:
É um yogī aquele que, com felicidade interior, deleite interior e
verdadeira luz interior, vive como Brahman e alcança nirvāṇa em
Brahman [5.24];
O yogī mais avançado vai a Mim com o eu interior [6.47].
Surpreendentemente, yogīs veem não só dentro de si, mas também
dentro de tudo na natureza. Não deveríamos nos aferrar à natureza
externa, mas deveríamos, sim, ver Deus e outras almas dentro da
natureza. Deste modo:
Um yogī conectado vê a alma em todos os seres [6.29];
Quem vê Kṛṣṇa dentro de tudo e tudo dentro de Kṛṣṇa nunca está
perdido para Kṛṣṇa, nem Kṛṣṇa jamais está perdido para essa pessoa
[6.30];
Um yogī, permanecendo em unidade, presta adoração a Kṛṣṇa em
todos os seres [6.31];
Quem vê o Senhor Supremo residindo igualmente em todos os
seres, vê de verdade [13.28];
Por ver o Senhor igualmente em toda parte, o indivíduo não se
prejudica; ele, então, percorre o caminho mais elevado [13.29];
É o yogī mais elevado aquele que, por comparação com o eu, vê
com equanimidade em toda parte – quer na alegria, quer na tristeza
[6.32];
De fato, esse yogī puro torna-se “um ser, sendo o eu de todos os
seres” [5.7].[6]
Assim, o melhor yogī – uma alma purificada dotada de completa e
profunda empatia universal – se compadece de cada alma como se
fosse essa alma. Semelhante yogī vê cada alma igualmente dentro de
Kṛṣṇa e Kṛṣṇa igualmente dentro de cada alma.
Kṛṣṇa é o fundamento último de samatvam, equanimidade,
também chamado de ekatvam, unidade ou unicidade. Todas as almas
são partes Dele [15.7], e são unas umas com as outras Nele. Já
discutimos em que sentido Kṛṣṇa é tudo [7.19]: Ele é tudo, pois
engloba tudo [11.40], pois é a fonte de tudo [7.4-5, 10.8].
O próprio Kṛṣṇa estabelece o exemplo de visão equânime, pois
Ele é igual para com todos os seres [9.29]. Almas sinceras, inclusive
yogīs, seguem o exemplo de Kṛṣṇa [3.21-23, 4.14]. De fato, aquele que
conhece de verdade Seu vasto poder e yoga também se ocupa em
yoga inabalável [10.7], pois tudo flui de Kṛṣṇa – inclusive o yoga.
Assim como Kṛṣṇa envia chuva ao agricultor, [3.14-15, 9.19], Ele
envia yoga para o yogī. A própria Gītā é yoga [4.1-3].
Assim, conforme declaram tanto Arjuna quanto Sañjaya, Kṛṣṇa é
o senhor do yoga [11.4, 18.75-78], de fato, o magnífico senhor do yoga
[11.9]. Mediante Seu yoga majestoso, Kṛṣṇa mantém e governa todos
os seres [9.5, 11.8]; mediante Seu desnorteador poder do yoga (yoga-
māyā), Ele Se oculta [7.25]; e mediante Seu poder pessoal do yoga, Ele
Se revela [11.47].
Ninguém é igual nem superior a Kṛṣṇa [11.43], e, então, como o
líder natural da criação, Kṛṣṇa estabelece a unidade e igualdade
espiritual de tudo que cria. Kṛṣṇa declara que yoga é equanimidade
[2.48] e que o yogī mais elevado vê com equanimidade em toda parte
[6.32]: dentro de si, dentro dos outros e dentro da natureza. Assim,
um mundo material constituído de matéria morta e almas confusas
magicamente aflora à vida quando vemos Kṛṣṇa em toda parte, tudo
em Kṛṣṇa e a verdadeira natureza espiritual de toda a vida.
Nesse estado libertador, buddhi (razão) está desprendida e livre
em toda parte [18.49]. O indivíduo, desse modo, é equânime perante
felicidade e sofrimento externos, frio e calor [2.16, 12.18]. De fato, ele
torna felicidade e sofrimento iguais [2.38]. Para alguém assim situado
no eu, as dualidades colapsam. Ele vê com igualdade sofrimento e
felicidade, terra e ouro, o agradável e o desagradável, censura e
louvor, honra e desonra. Nesse estado de equanimidade do yoga, o
indivíduo transcende os modos da natureza. Em outras palavras, ele
está liberado [14.24-25].
Em outra passagem, Kṛṣṇa repete que um yogī (literalmente, um
“vinculador”) é considerado conectado ao ver terra, pedra e ouro com
igualdade [6.8]. Da mesma forma, sucesso e fracasso tornam-se iguais
[2.48]; de fato, o indivíduo torna-os iguais [4.22].
No âmbito social, um yogī com buddhi equânime vê a igualdade
espiritual última de amigos, inimigos, pessoas neutras, mediadores,
odiosos, parentes e até mesmo santos e pecadores, e, desse modo,
supera aquele que vê meramente objetos físicos como iguais. Kṛṣṇa
acrescenta que aqueles com buddhi equânime devotam-se ao bem-
estar de todos os seres em toda parte e vão a Kṛṣṇa [12.4]. Em outras
palavras, visão equânime não é meramente consciência passiva e
indiferente, senão que a visão poderosa de que todo ser vivo é
espiritualmente igual a nós mesmos e, desse modo, parte de uma
única família divina faz com que o indivíduo possa cumprir o
célebre mandamento de “amar o próximo como a si mesmo”, com o
sublime acréscimo de que todos os seres vivos – não apenas humanos –
são nossos próximos. Mal é preciso dizer que semelhante visão da
vida traria benefícios ambientais espetaculares.
Samatvam, equanimidade espiritual, requer e inspira verdadeira
compaixão, acima do apego e do ódio que comumente infectam
causas políticas e sociais. Semelhantes causas, baseadas em
dualidade, plantam a semente de futura hostilidade, mesmo
enquanto abordam conflitos atuais.
Assim, Kṛṣṇa descreve aqueles mais queridos a Ele: não odeiam
nenhum ser, são amigáveis e especialmente bondosos com todos os
seres, não têm senso de ego ou possessividade, são equânimes
perante felicidade e sofrimento, e são clementes [12.13]. Ademais,
são equânimes para com inimigos e amigos, equânimes em honra e
desonra, frio e calor, felicidade e sofrimento, calúnia e louvor – pois
são yogīs sempre satisfeitos [12.18-19].
Aqui, “equânime para com inimigo e amigo” não significa que
um yogī é desamparado e irremediavelmente imprático; lembre-se
que Kṛṣṇa ensina isso a Arjuna, um guerreiro atuante que Kṛṣṇa
instrui a lutar. A equanimidade da qual Kṛṣṇa fala é um estado
espiritual da mente que outorga poder mesmo a um guerreiro para
agir da melhor maneira possível. Assim, após a batalha de Kuru-
kṣetra, Arjuna e seus irmãos governaram o mundo com bondade
para com todos – até mesmo antigos inimigos.
Por falar de todos, os sábios estendem sua visão equânime e
bondade para toda a vida, uma vez que todo ser vivo é parte de
Deus [15.7]. Desse modo, o sábio vê com visão equânime tanto pessoas
de alta quanto de baixa classe, assim como vacas, elefantes e cães
[5.18]. É a natureza de brahman (espírito) ser equânime para com
todos; assim, o indivíduo cuja mente situa-se em equanimidade
situa-se em brahman [5.19]. Tendo alcançado existência brahman (vida
espiritual pura), o sujeito é igual para com todos os seres e alcança o
mais elevado amor a Deus [18.54].
Kṛṣṇa deixa claro que um yogī avançado tem visão equânime em
toda parte [6.29] e inteligência equânime em toda parte [12.4]. Ao ouvir
sobre esse ambicioso projeto cognitivo, Arjuna protesta que isso é
muito difícil de atingir, pois a mente é inconstante e instável [6.33-
34]. Kṛṣṇa, entretanto, assegura-lhe que, pela prática espiritual
sincera e desapego, pode-se, de fato, alcançar equanimidade [6.35].
Arjuna, então, pergunta sobre o destino de um yogī que tenta e
falha [3.36-38]. A resposta de Kṛṣṇa inspira e conforta o praticante
espiritual: ninguém que faça o bem neste mundo depara-se com um
mau destino no final. O yogī malsucedido nasce num mundo
superior, levando uma vida abençoada por longos anos celestiais e,
em seguida, obtém um nascimento privilegiado na Terra; ou o yogī
fracassado renasce diretamente na Terra numa família de
espiritualistas sábios, onde consciência e práticas espirituais são
revividas depressa e a perfeição é, por fim, atingida [6.40-45].
Como afirmado, essa perfeição implica visão equânime, e Kṛṣṇa
nos assegura que podemos atingir visão equânime mediante prática
espiritual, que sempre implica a obtenção de existência brahman. O
yogī, vinculado em brahma-yoga, desfruta de prazer imperecível
[5.21]; de fato, o prazer mais elevado advém para um yogī que vive
como brahman [6.27]. Kṛṣṇa ensina que se pratica yoga para se
purificar o eu [5.11, 6.12, 6.45], e que o yogī sábio alcança brahman, o
fato de libertar-se de karma, sem demora [5.7]. Ele também ensina, no
entanto, que o ato de yajña, oferenda, é o único caminho para
libertar-se de karma [3.9]. Yajña, não yoga, transforma oferenda e
ofertante, bem como oblação, fogo e recompensa, em brahman [4.24].
Qual é, então, a relação entre yoga e yajña?

Renúncia (Sannyāsa)

No começo do capítulo seis, Kṛṣṇa reúne yoga e yajña[7] de uma


forma interessante. Tendo ensinado que “yoga é equanimidade”
[2.48], Kṛṣṇa agora afirma que “yoga é renúncia, pois não se torna
um yogī quem não renuncia a vontade egoísta” [6.2].[8]
No entanto, aquele que é um verdadeiro renunciante e, desse
modo, um verdadeiro yogī, desempenha deveres necessários, ao
passo que “o sem-fogo não é yogī” [6.1]. É claro que fogo aqui se
refere a fogo sagrado[9] (literal ou simbólico), que recebe e consome a
oferenda do indivíduo [4.25-30]. O ponto é evidente: um yogī precisa
desempenhar deveres prescritos, e yajña é proeminente dentre esses
deveres. Sem yajña não há yoga.
Para entender essa conexão crucial entre prática espiritual (yoga),
renúncia e oferenda, precisamos analisar de perto o que Kṛṣṇa quer
dizer quando fala de renunciar. Renúncia é um tema central na
Bhagavad-gītā por duas razões: (1) Arjuna quer renunciar a batalha, e
Kṛṣṇa insiste que Arjuna equivoca-se quanto à renúncia; (2) Kṛṣṇa
ensina liberação, e é preciso renunciar apropriadamente este mundo
para alcançar liberação.
Kṛṣṇa usa principalmente duas palavras para denotar renúncia:
tyāga e sannyāsa.[10] Uma diferença notável entre esses sinônimos
destaca o ensinamento da Gītā sobre renúncia.
A palavra tyāga, de várias maneiras,[11] significa de forma
inequívoca “abandonar, renunciar ou deixar algo”. Assim, Kṛṣṇa usa
essa palavra para descrever a alma ao deixar o corpo material no
momento da morte [4.9, 8.6, 8.13]; a rejeição de toda a possessividade
[4.21]; o abandono de todos os desejos nascidos da vontade egoísta
[6.24]; a rejeição de luxúria, ira e cobiça [16.21], etc.
Kṛṣṇa também define tyāga como significando abandonar o fruto
de todas as ações [18.2], e muitas vezes usa a palavra nesse sentido,
[12] bem como no sentido de abandonar apego ao fruto das ações.[13]

Porém, como se afirma em 6.1, não se devem abandonar deveres


prescritos. Desse modo, sacrifício, caridade e austeridade não devem
ser abandonados (na tyājyam); devem ser executados [18.5]. Além
disso, o indivíduo não deve abandonar (na tyajet) seu trabalho
natural na vida [18.48]. De fato, é impossível para uma alma
corporificada abandonar (tyaktum) ações por inteiro. Um renunciante
(tyāgī) é aquele que renuncia o fruto da ação [18.11] etc.
Kṛṣṇa nunca afirma que tyāga, mera rejeição, é yoga. Em vez disso,
yoga é sannyāsa, uma palavra que não significa meramente renunciar
as coisas, mas também confiá-las ou entregá-las positivamente ao
local ou pessoa apropriadas.
A palavra sannyāsa consiste em três elementos semânticos: sam-ni-
āsa, que significa apropriada ou completamente (sam) colocar algo
(āsa) abaixo ou dentro (ni). Assim, sannyāsa pode significar colocar
abaixo (e, desse modo, renunciar) ou colocar dentro (e, dessa forma,
confiar ou entregar algo a outra pessoa).
A Gītā claramente usa a palavra sannyāsa de ambas as formas. No
sentido de abandonar algo, Kṛṣṇa usa essa palavra quando afirma
que não pode ser um yogī quem não abandona o desejo egoísta [6.2];
que um yogī avançado abandona todo o desejo egoísta [6.4]; que quem
abandona a dualidade, e quem não odeia nem anseia, deve ser
conhecido como um renunciante estável [5.3]; e que os eruditos
dizem que renúncia é abandonar ações egoístas [18.2].
Kṛṣṇa enfatiza, entretanto, que meramente abandonar o que é
mundano não libertará o indivíduo sem um programa espiritual
positivo. Assim, não se atinge a perfeição por meio de mera renúncia
[3.4]; yoga da ação (karma-yoga) é melhor que renunciar a ação [5.2]; é
difícil alcançar renúncia sem prática espiritual positiva (yoga) [5.6];
um renunciante (sannyāsī) precisa desempenhar deveres prescritos
[6.1]; e renúncia de deveres prescritos é algo inapropriado [18.7].
Kṛṣṇa usa a palavra sannyāsa[14] para mostrar que um yogī não só
renuncia no sentido negativo de rejeitar, mas também no sentido
positivo de colocar as coisas onde elas pertencem, entregando-as ou
confiando-as a Deus. Nos exemplos seguintes, traduzo o verbo
sannyāsa como confiar:
Ciente do eu superior, o indivíduo confia todas as ações a Kṛṣṇa
[3.30];
Com yoga plenamente focado, o indivíduo confia todas as ações a
Kṛṣṇa [12.6];
Com consciência e devoção, o indivíduo confia todas as ações a
Kṛṣṇa [18.57].
Lembre-se de que, neste mundo, todos precisamos agir a cada
momento [3.5], e a única ação que nos livra do cativeiro de karma é
yajña, oferenda [3.9]. Yoga, em seu sentido mais elevado de prática
espiritual, decerto é uma atividade e, desse modo, pode nos libertar
só quando executado como oferenda. Assim, Kṛṣṇa afirma que, sem
prática espiritual positiva (yoga), mera renúncia conduz à
infelicidade, ao passo que um sábio ocupado em yoga logo alcança o
Absoluto [5.6].
Desse modo, após explicar como uma oferenda espiritual
espiritualiza o artigo oferecido e o ofertante [4.24], Kṛṣṇa de uma só
vez descreve como yogīs oferecem suas várias práticas de yoga ao
Divino – inclusive exercícios respiratórios, meditação e estudo
sagrado [4.25-29]. Kṛṣṇa conclui em 4.30: “Todos esses [yogīs] de fato
entendem de sacrifício; sacrifício remove seus pecados. Por comerem
o remanente nectáreo do sacrifício, eles vão ao eterno brahman”.
É claro que apenas técnicas de yoga – respirar, focar etc. – não
dissipam karma, pois, sem uma oferenda devotada, não passam de
atos físicos e mentais. O indivíduo desenvolve um vínculo (yoga)
com o Absoluto através de yajña, oferecendo suas ações de yoga a
Deus.
Kṛṣṇa, então, reafirma o que disse em 3.9: nem este mundo, nem
qualquer outro, destina-se àqueles que não fazem nenhuma
oferenda [4.31] ou que duvidam desses fatos [4.40]. Assim, yoga
liberta-nos quando oferecemos nossa prática espiritual a Deus: yoga
fornece técnica e disciplina, e yajña dá a intenção e a devoção que
inspiram e espiritualizam a disciplina – como indicado pelo termo
yoga-yajña, a oferenda do yoga [4.28]. É yajña que transforma matéria
em espírito [4.24, 9.16] e dissolve karma [3.9, 4.23]. Na lista de atos
que jamais se devem abandonar – isto é, oferenda, caridade e
austeridade [18.5] – é notável a ausência de yoga.
Yajña destrói nosso kalmaṣa (impureza) [4.30], e o yogī purificado
vê Deus e as almas em toda parte com a sublime visão equânime do
yoga. De fato, a bem-aventurança do yoga advém para um yogī cujo
kalmaṣa (impureza) é assim destruído [6.28-32]. Quem não gira a
roda cósmica do receber e retribuir [3.16], e que, por isso, é um
ladrão [3.12], a viver em vão, dificilmente pode ser um yogī
espiritualista. Todas as almas devem fazer oferendas, e o indivíduo
deveria oferecer seu yoga a Yogeśvara: Kṛṣṇa, o senhor do Yoga. Mais
uma vez, assim como Kṛṣṇa envia chuva ao agricultor que executa
yajña [3.14-15, 9.19], Ele provê yoga ao yogī devotado [6.47, 10.7].
Por fim, como mencionado, Kṛṣṇa descreve Seu ensinamento, a
Bhagavad-gītā, como yoga [4.1-3], e, em seu final, declara que quem
estuda esse ensinamento honra o Senhor através da oferenda de
conhecimento, jñāna-yajña. Yoga, outra vez, é uma oferenda; nesse
caso, oferecer seus estudos a Kṛṣṇa por estudar Seu livro.
Yoga supera yajña mundano [8.28], mas yajña espiritual [4.24] é a
estrutura de todos os caminhos espirituais. Yoga é um subconjunto
de yajña [4.28], mas nunca se diz que yajña é um tipo de yoga. Yajña é
o sine qua non: a única atitude e ato requeridos para almas presas à
roda de karma e que buscam libertar-se de nascimento e morte. O
indivíduo deveria, desse modo, praticar yoga com um espírito de
oferecimento devotado.
PARTE VIII
Karma-yoga (Yoga da Ação)

O Problema de Arjuna
Na parte final desta obra, explicarei os vários caminhos espirituais
da Gītā, a começar por onde Kṛṣṇa começou – por karma-yoga. No
princípio da Gītā, Arjuna erroneamente supôs que buddhi,
consciência espiritual, fosse um estado passivo no qual o indivíduo
retira-se do mundo e não atua nele [3.1, 5.1]. É claro que o motivo era
evitar seu dever de guerreiro de lutar. Para corrigir os equívocos de
Arjuna, Kṛṣṇa lhe ensinou o caminho de karma-yoga.
Na seção anterior, discuti os aspectos universais de todos os
caminhos espirituais, ou yogas, como ensinados na Gītā. Karma-yoga
implica esses aspectos espirituais em comum: samatvam
(equanimidade), sannyāsa (abandono do desejo egoísta) e yajña
(dedicação de sua prática espiritual a Deus).
Assim como Arjuna há muito tempo, os enredados buscadores de
hoje costumam achar que só podem viver uma vida espiritual ao
renunciarem o mundo e isolarem-se na natureza, num monastério
ou num āśrama.
Kṛṣṇa, porém, ensina que podemos atingir a perfeição espiritual
dentro do mundo se espiritualizamos nossa vida e deveres normais
por meio de karma-yoga. Desse modo, Ele afirma que “simplesmente
pela ação [no mundo], reis grandiosos como Janaka atingiram plena
perfeição” [3.20]. De fato, tanto sábios quanto pessoas sem sabedoria
agem neste mundo, mas os sábios agem com intenção pura a fim de
guiar o mundo pelo seu exemplo [3.20, 25].
A maioria das pessoas não se constitui de filósofos disciplinados
ou místicos reclusos. A maioria trabalha para ganhar a vida,
sustentar uma família e buscar prazeres humanos normais. É essa
vida normal que karma-yoga espiritualiza por meios simples: oferecer
o fruto de tudo que fazemos a Deus. Analisemos mais de perto como
funciona karma-yoga.

A Necessidade de Ação
Ao elaborar Seu argumento em favor de karma-yoga, Kṛṣṇa
primeiro estabelece que inação total não é uma opção para uma alma
neste mundo. Fazendo trocadilho com dois significados centrais da
palavra karma – ação e lei do karma (como é comumente conhecida
hoje) –, Kṛṣṇa afirma que o indivíduo não se livra do karma (ação e
reação) simplesmente por não se submeter ao karma (ação), nem
atinge a perfeição simplesmente pela renúncia [3.4]. Por que não?
Porque, neste mundo, ninguém pode parar de agir – nem mesmo
por um momento [3.5]. Até mesmo meditação é um ato, assim como
é um ato renunciar. Por isso, inação total não é uma opção. Até
mesmo sábios agem de acordo com sua natureza. Os seres seguem
sua natureza. O que se logrará com a repressão [3.33]?
Então, todos precisamos agir neste mundo. E porque buscamos o
que agrada e evitamos o que desagrada, agimos para proteger os
frutos da ação, tanto para nós quanto para aqueles que são
próximos. Desse modo, agimos em busca de saúde, prosperidade,
fama, poder, segurança, amor, conforto, conhecimento, prazer
corpóreo etc. No nível mais simples, comemos para satisfazer e
nutrir o corpo. E por aferrarmo-nos aos frutos da ação, somos atados
ao ciclo cármico de nascimento e morte.
Ação Como Yoga e Yajña
Kṛṣṇa nos diz que, como precisamos agir, temos direito de agir,
mas nunca temos direito aos frutos da ação [2.47], conforme
discutimos na seção sobre yajña, fazer oferendas. Em resumo, assim
como a mão se alimenta por alimentar o corpo, do qual ela faz parte,
nutrimos nossa existência por oferecer os frutos da ação a Kṛṣṇa, de
quem somos partes [15.7]. De fato, Kṛṣṇa é a fonte de nossa existência
e nossa habilidade para agir. Mediante essa oferenda, estabelecemos
um estado de yoga, um vínculo divino com a nossa fonte, e ficamos
yukta, vinculados. Por agir de forma egoísta e agarrar o fruto de
nosso trabalho, ficamos a-yukta, desconectados de nossa fonte, assim
como uma folha murcha separada de uma árvore, e, desse modo,
somos atados pelas estritas leis do karma [5.12].
Novamente, somos ativos por natureza. Se tentarmos impedir o
corpo de agir, a mente ainda assim focará hipocritamente nos objetos
dos sentidos. Assim, Kṛṣṇa enfatiza que “karma-yoga é melhor”, uma
vez que ocupa espiritualmente os sentidos ativos [3.6-7], e que
“karma-yoga é melhor que abandonar ações” [5.2].
Da mesma forma, aqueles que são verdadeiros renunciantes
executam ação como dever e oferecem-na ao Senhor [6.1]. É
impossível para uma alma corporificada abandonar a ação por
inteiro; aquele que abandona o fruto da ação é um verdadeiro
renunciante [18.11].
Se não ocuparmos nossa natureza em karma-yoga, ela atuará assim
mesmo, fora dos limites seguros da prática espiritual, e nos arrastará
de volta à plataforma material [18.60] – pois a natureza atuará.
Kṛṣṇa constantemente assegura a Arjuna que ele deve agir neste
mundo, mas que karma-yoga espiritualizará essas ações; de fato,
karma-yoga capacita o indivíduo a ver o eu [13.25].
Desse modo, karma-yoga transforma a própria vida em yajña, uma
oferenda espiritual a Deus, e é o único meio de escapar do cativeiro
de karma [3.9]. Como vimos na seção sobre yajña, o ato de oferecer o
fruto da ação a Deus (karma-yoga) cria um vínculo espiritual (yoga)
que espiritualiza nossas ações [4.24], conduzindo-nos à liberação.
Karma-yoga permite-nos continuar a desempenhar todas as nossas
atividades normais e decentes, mas como uma oferenda (yajña) a
Deus. Assim, dentro de karma (ação) existe akarma, liberdade do
cativeiro de reações materiais [4.18]. Karma-yoga, uma forma de
oferenda, espiritualiza nosso trabalho neste mundo [4.24] porque
oferecemos seus frutos ao Supremo. Karma-yoga capacita-nos a
atingir a perfeição espiritual por oferecermos os frutos de nossa
carreira (ou karma, nesse sentido da palavra) a Deus [18.45-46]. Caso
contrário, nossos feitos e carreira perpetuam karma-bandha,[1] “o
cativeiro do karma” [2.39, 3.9, 9.28], também chamado de “cativeiro de
nascimento” [2.51], uma vez que o karma obriga-nos a nascer
repetidas vezes.
Na prática, entretanto, o que significa oferecer nossas ações (ou
frutos das ações) a Deus, transformando, desse modo, karma em
karma-yoga?

Carreira Como Yoga


A palavra karma tem outro sentido importante que dá um
significado especial a karma-yoga. Karma, muitas vezes, indica a
vocação, dever ou carreira naturais do indivíduo. Uma vez que as
pessoas mantêm tanto a si mesmas quanto seus entes queridos com
os frutos de suas carreiras, e uma vez que sua carreira tende a definir
seu papel primário e sua contribuição geral para a sociedade, karma-
yoga, em primeiro lugar, procura espiritualizar nossa vocação, ou
carreira, na vida.
Em sânscrito, sva significa seu próprio.[2] Após muitas vidas de
karma, acumulamos uma natureza mundana específica, ou estado de
existência, de nome sva-bhāva. Essa não é nossa natureza espiritual
eterna, senão que é um estado condicionado temporário neste
mundo. Contudo, se queremos espiritualizar nossa vida, devemos
ocupar nossa atual natureza mundana em karma-yoga. Caso
contrário, a natureza agirá materialmente e nos atará a este mundo
[18.60]. Assim, a partir da nossa condição dentro de um corpo (nosso
sva-bhāva) advém nosso dever pessoal, vocação ou carreira (nosso
sva-karma) – cujos frutos nos sustentam. Kṛṣṇa afirma que fomos
criados para fazer oferendas [3.10], e fazemos oferendas dentro da
nossa vocação natural. Oferecer os frutos da nossa carreira a Deus
transforma karma em karma-yoga. Por toda a Gītā, Kṛṣṇa nos pede que
ofereçamos todas as nossas ações a Ele.[3] Isso não significa distribuir
cegamente nossos bens ou negligenciar aqueles que precisam de nós,
mas, sim, usar nossos recursos para ajudar os outros num espírito de
devoção.
A cultura védica tradicional, com sua economia agrária pré-
industrial, dividiu a sociedade em quatro vocações principais,
também chamadas varṇas. Kṛṣṇa declara que pessoalmente criou
esse sistema de quatro varṇas baseado não em nascimento, como
num sistema hereditário de casta, mas nas qualidades e no trabalho
natural de cada pessoa [4.13].
Nesta era moderna, cada um de nós deve situar-se dentro desse
sistema a fim de encontrar sua vocação natural. Eis o sistema de
quatro varṇas:
Brāhmaṇas são professores, sacerdotes e guias espirituais da
sociedade; um brāhmaṇa é naturalmente pacífico, autocontrolado,
austero, limpo, clemente, honesto, instruído, sábio e confiante em
Deus [18.42];
Kṣatriyas são governantes e protetores da sociedade; um kṣatriya é
naturalmente heroico, forte, determinado, inteligente, firme na
batalha, generoso e líder [18.43];
Vaiśyas são agricultores e comerciantes da sociedade, e são
naturalmente inclinados a essas vocações [18.44];
Śudras são operários e artesãos da sociedade, e são naturalmente
inclinados a auxiliar os demais varṇas [18.44].
E são nossos velhos amigos, os modos da bondade, paixão e
escuridão, discutidos acima, que determinam nossa natureza,
tornando, desse modo, a lista de vocações um tipo de mapa modal.
Aquele que vive principalmente em bondade manifesta as
qualidades de brāhmaṇa, ao passo que uma pessoa passional acha
natural os deveres de um guerreiro, e assim por diante. A natureza
de Arjuna ata-o a seu dever de guerreiro e o forçará a desempenhá-
lo, quer ele deseje, quer não [18.60]. Assim, se o indivíduo não
aceitar seu dever natural num espírito de karma-yoga, sua natureza o
forçará a agir fora da segurança cultural e espiritual desse caminho
[18.59]. Todo dever neste mundo tem alguma desvantagem; o
indivíduo, no entanto, incorre em grave perigo por rejeitar seu dever
[3.35, 18.47].
Cabe esclarecer aqui que, embora sigamos nossa natureza, temos
livre-arbítrio. Explicarei isso nos termos da filosofia sistemática da
Gītā e, então, ilustrarei as ideias básicas com um exemplo moderno.

Inação na Ação
Em consciência clara, constatamos que a alma simplesmente
testemunha os movimentos e atos de um corpo material que a cobre
assim como roupas cobrem o corpo [2.22]. Desse modo, só uma alma
confundida por egotismo (ahaṅkāra) pensa: “Eu sou o agente”. Na
realidade, todas as ações (corporais) estão sendo executadas pelos
modos da natureza [3.27]. Aquele que conhece esses princípios dos
modos e ações não se aferra às ações, constatando que, quando um
corpo físico atua no mundo físico, “os modos funcionam nos modos”
[3.28]. Assim, quem vê a si mesmo como o não agente vê de verdade
[13.30]. De fato, quando o indivíduo com visão não vê nenhum outro
agente senão os modos, e conhece o que está além dos modos, ele
atinge o próprio estado espiritual puro de Kṛṣṇa [14.19].
Como devemos entender tudo isso? Kṛṣṇa ensina que temos livre-
arbítrio [18.63] e, assim, causamos nossa própria alegria e tristeza
mediante nossas escolhas [13.21]. Kṛṣṇa não nos força a fazer o bem
ou o mal, nem nos força a perseguir os frutos de nossas ações. Em
vez disso, nossa própria natureza condicionada pelos modos (sva-
bhāva) está agindo [5.14-15, 18.41].
Isso pode parecer confuso. Às vezes, Kṛṣṇa afirma que os modos
da natureza executam ações e que não somos agentes. Em outras
passagens, Kṛṣṇa afirma que somos responsáveis por nossas ações e,
assim, sofremos e desfrutamos suas consequências. Kṛṣṇa esclarece
esse paradoxo numa série de declarações nos capítulos treze e
quinze:
A natureza é o motivo para causa, efeito e atividade; a alma
provoca a experiência de alegria e tristeza [13.21].
Somos responsáveis pelos atos do corpo porque nossas escolhas
livres põem a matéria em movimento. O corpo responde à nossa
vontade, mas a ação acontece – só o corpo se move, e não a alma
pura.
Kṛṣṇa ilustra esse ponto com um exemplo: assim como objetos
físicos nunca afetam o espaço que os contém, o corpo, em realidade,
não macula, nem transforma a alma [13.33]. Eis o que isso significa:
objetos existem no espaço; um tecido vermelho no espaço, no
entanto, não torna esse espaço vermelho. O espaço contém um objeto
vermelho, mas não se mistura com ele porque o espaço é mais sutil
do que os objetos que contém. Espaço puro não tem cor, forma ou
textura.
Da mesma forma, a alma é mais sutil do que a matéria, por ser
uma energia superior [7.4-5]. Assim, a matéria nunca toca a alma de
fato. Almas nunca são materiais, assim como espaço nunca é
vermelho, macio, pesado ou leve. Em vez disso, porque acreditamos
que somos o corpo, e aferramo-nos a essa identidade, sentimos que
desfrutamos e sofremos os prazeres e as dores do corpo. Na verdade,
entretanto, existimos à parte do corpo [13.33].
Mediante escolhas e ações, condicionamos nosso corpo a ser bom,
passional ou ignorante. Quando nos deparamos com um corpo, casa,
cidade, música, arte, trabalho, amizade, amor etc. –, qualquer coisa
com modos materiais que atraia nossos próprios modos psicofísicos
– nosso corpo e nossa mente anseiam por esses objetos.
Assim, quando nosso corpo e nossa mente interagem com outros
corpos e mentes, ou outros objetos mundanos, os modos atuam nos
modos e sobre eles. Num sentido superior, nada mais está
acontecendo. Ciente disso, o indivíduo não se aferra a esses modos
[3.28]. À medida que falsamente nos identificamos com nosso corpo
e nossa mente materiais – e seus modos –, acreditamos que nós e
outras pessoas movemo-nos quando o corpo se move.
Da mesma forma, aquele que conhece princípios verdadeiros
(ta va-vit) deveria pensar: “Não faço absolutamente nada“, pois,
mesmo enquanto realiza funções corporais básicas – tais como ver,
ouvir, tocar, comer ou respirar –, na verdade, “os sentidos estão
agindo nos objetos dos sentidos” [5.8-9]. E sentidos físicos não são
nosso eu eterno. Mais uma vez, meramente testemunhamos os atos
do corpo.
Dessa maneira, embora envolvido na ação, aquele que nem se
aferra ao fruto da ação, nem depende de circunstâncias materiais,
não faz absolutamente nada [4.20]. Aquele que possui buddhi, razão
espiritual, vê inação na ação [4.18]: o corpo age enquanto a alma
testemunha.
Consideremos agora um exemplo moderno para ilustrar esse
conceito e como ele se relaciona com karma-yoga. Imagine que você
está dirigindo um carro em alta velocidade e, de repente, percebe
que vai na direção errada – ou pior, rumo a uma colisão. Em alta
velocidade, você não pode parar de imediato o carro, mas pode guiá-
lo para uma pista segura enquanto freia gradualmente.
Da mesma forma, nosso corpo (o veículo da alma) corre através
do tempo com impulso psicológico e comportamental acumulado ao
longo de muitas vidas. Assim, na carreira, relacionamentos e lazer,
buscamos desfrutar os frutos de nossas ações. Mesmo quando vemos
que nossa verdadeira natureza e prazer são espirituais, nossos
desejos, necessidades e propensões possuem impulso por muitas
vidas. Não podemos pará-los instantaneamente. Em vez disso,
devemos guiar nossas ações para canais espirituais enquanto
colocamos um freio nos apegos mundanos. Não importa quão
espiritualizada seja a alma, o corpo agirá de acordo com seus modos
[3.5, 3.28, 33].
Os modos materiais e os deveres que geram são hierárquicos,
sendo virtude e atividade bramânica nascida da virtude os mais
elevados. Kṛṣṇa enfatiza que karma-yoga é o magnífico equalizador.
Todas as pessoas podem atingir a perfeição espiritual plena por
adorar, através da execução do dever, Aquele de quem tudo emana e
por quem tudo é permeado [18.45-46]. Mais uma vez, yoga é
samatvam, equanimidade. Todos em cada varṇa são iguais se
executarem karma-yoga com seriedade, e aqueles que assim o fazem
veem todas as almas como iguais.
No caminho de karma-yoga, aprendemos a oferecer os frutos da
ação a Deus. À medida que o prazer espiritual cresce, superamos
nosso apego pelo prazer material. A prática espiritual desperta nossa
natureza eterna, acima do corpo, deixando-nos livres para satisfazer
nossos sonhos e ideais mais elevados. Caso contrário, como
observado anteriormente, nossos feitos e carreira perpetuam karma-
bandha, “cativeiro do karma” [2.39, 3.9, 9.28], também descrito como
cativeiro de nascimento [2.51].
Embora devamos agir de acordo com a nossa natureza, temos,
sim, uma poderosa escolha a fazer. Se trabalhamos de forma egoísta
e tentamos desfrutar os frutos da ação, nosso trabalho (karma) ata-
nos à rede mortal da natureza. Esse mesmo karma, no entanto, se
oferecido a Kṛṣṇa, transforma-se em karma-yoga, que é libertador
[18.45-46]. Essa é a essência de karma-yoga. Externamente, karma e
karma-yoga podem parecer a mesma ação, mas, internamente,
intenção e consciência diferem de maneira dramática e produzem
resultados opostos. Kṛṣṇa em pessoa mostra como agir neste mundo
sem apego, só para estabelecer um bom exemplo aos demais [3.21-
24, 4.14, 9.7-9].
Contudo, e quanto a intelectuais cuja natureza é buscar a Verdade
no estudo sério e disciplinado? Qual é o seu caminho?
PARTE IX
Jñāna-yoga (Yoga do Conhecimento)

Conhecimento Como um Caminho Espiritual


Kṛṣṇa explica que jñāna-yoga (yoga do conhecimento) é para
pessoas filosóficas, ao passo que karma-yoga (yoga da ação) é para
pessoas ativas no mundo. Kṛṣṇa, no entanto, enfatiza repetidas vezes
que ambos os caminhos são simplesmente aspectos de uma única
posição, ou situação, chamada niṣṭhā[1] [3.3]. Kṛṣṇa afirma a unidade
desses dois yogas: “Indivíduos infantis, não os sábios, alegam que
análise e prática são distintos. Uma pessoa que executa
adequadamente apenas uma alcança o fruto de ambas. O status
atingido pelos métodos analíticos também se alcança pelas práticas
de yoga. Quem vê que análise e prática são uma coisa só vê [de
verdade]” [5.4-5].
Em outras palavras, uma prática espiritual (yoga) baseada em
trabalhar no mundo é melhor que estudo acadêmico desprovido de
tal prática espiritual [6.46]. Igualmente, uma vez que todas as
oferendas e ritos culminam em conhecimento, uma prática com
conhecimento é melhor que meros ritos externos [4.33].
Aqueles que se esforçam num caminho espiritual disciplinado
chegam a ver a alma, ao passo que os irresponsáveis, embora se
esforcem, não podem ver isso, pois carecem de consciência [5.11].
Não basta meramente estudar, por exemplo, o problema da
dualidade; é preciso elevar-se acima da dualidade pela prática
espiritual. Da mesma forma, o indivíduo pode estudar a natureza de
Deus, mas a prática devotada outorga-lhe poder para ver a natureza
espiritual superior e, desse modo, abdicar apegos inferiores [2.59].
Praticados com sinceridade, todos os caminhos espirituais ensinados
na Gītā conduzem a uma experiência direta da alma e Deus [13.25].
Desse modo, karma-yoga verdadeiro conduz a conhecimento
espiritual, e jñāna-yoga sincero conduz o indivíduo a agir
espiritualmente no mundo. Afinal, é nosso conhecimento da vida, e
a meta desse conhecimento, que nos inspira a agir [18.18].
Assim, pessoas filosóficas inclinam-se ao yoga do conhecimento
[3.3]. Buscar conhecimento como um caminho espiritual, e não
meramente para gratificação intelectual, mostra a sua natureza
divina [16.1-3]. Todavia, que tipo de conhecimento os yogīs do
conhecimento buscam?
Examinemos a descrição de Kṛṣṇa sobre conhecimento: sua
estrutura e suas fontes, seus professores e estudantes, sua qualidade
experiencial, seu poder para libertar e seu status como uma oferenda
sagrada. Vamos considerá-los um a um.
Conhecimento é como o Sol: destrói a escuridão e ilumina tudo
[5.16]. O Sol nasce aos poucos, espalhando luz uniformemente,
mesmo antes de emergir acima do horizonte. Da mesma forma,
iluminação pode levar tempo [6.45]. No entanto, o caminho do
conhecimento nos dá luz e felicidade desde o início de nossa prática
[9.2], mesmo antes de realmente vermos Deus como Arjuna o fez.
Ademais, Kṛṣṇa afirma dar todo o conhecimento básico [7.2] e
afirma que se pode constatar pessoalmente esse conhecimento [9.2].
Consideremos, agora, a estrutura do conhecimento espiritual.

Verdadeiros Princípios de Vida (Tattva)


Kṛṣṇa alega ensinar o melhor de todo o conhecimento [14.1],
ciente do qual nada mais resta para ser conhecido [7.2]. Fica claro
que Kṛṣṇa fala aqui dos princípios básicos de conhecimento, e não
de todos os detalhes das centenas de ciências e disciplinas da Terra.
Em sânscrito, a palavra satyam significa verdade, no sentido
simples de que uma afirmação ou conceito é verdadeiro, e não falso.[2]
A palavra ta va[3], entretanto, também traduzida muitas vezes como
verdade, indica um princípio ou categoria de existência reais, básicos
e demonstráveis.
Kṛṣṇa usa o termo ta va em toda a Gītā. É evidente que, quando
afirma dar todo o conhecimento, Kṛṣṇa quer dizer que dá todos os
principais ta vas – ou princípios de vida verdadeiros e reais. Assim,
quando Arjuna pede-Lhe que explique conhecimento [13.1], Kṛṣṇa
responde categoricamente. Conhecimento é conhecer três realidades
fundamentais: (1) o corpo material (ou a natureza material); (2) a
alma, que conhece o corpo, e (3) Deus, que conhece todos os corpos
[13.2-3].
Então, Ele conclui: “A visão do valor de conhecer a verdade –
declara-se que isso é conhecimento (ta va)” [13.12]. Em
contrapartida, “declara-se estar em escuridão o conhecimento (...)
que é escasso e carece de um sentido de verdade (ta va)” [18.22].
Assim, os principais ta vas (ou realidades) são a natureza, a alma
e Deus. E a Bhagavad-gītā, que explica minuciosamente a natureza, a
alma e Deus, é o conhecimento mais elevado [14.1]. Aquele que
estuda esse diálogo imortal ocupa-se na oferenda de conhecimento
[18.70] apresentada na Gītā, conforme explicado na seção sobre yajña.
Dessa maneira, não é surpreendente que Kṛṣṇa nos diga muitas
vezes que devemos compreender Seus ensinamentos “ta vataḥ” –
isto é, de acordo com princípios fundamentais e reais (ta- vas).
Vamos revisar como Kṛṣṇa usa essa palavra.

Matéria e Espírito
Kṛṣṇa primeiro usa o termo ta va no início de Seus ensinamentos,
ao dizer que “observadores da verdade” (isto é, “observadores de
ta va”) viram que elementos eternos (como almas e Deus) nunca
perecem, ao passo que elementos temporários (como corpos e outros
objetos materiais) nunca perduram [2.16]. A Gītā inteira baseia-se
nessa distinção crucial.
Da mesma forma, quando, pela prática espiritual diligente, a alma
enfim vê a si mesma e conhece a bem-aventurança mais elevada, ela,
então, nunca se desvia de ta va, verdadeiros princípios da realidade
[6.20-21].
• Gu ṇa-karma
Ta va também diz respeito a conhecer os funcionamentos internos
da gigantesca máquina de ilusão chamada Universo. Desse modo,
um conhecedor de ta va não se aferra a ações modais mundanas,
ciente de que, em todas essas ações, “os modos atuam nos modos”
[3.28]. Sabendo que alma é um ta va e que matéria (com todos os
seus modos) é outro, um conhecedor de ta va não se aferra a ações
modais, pois uma ação na qual os modos do corpo interagem com os
modos do mundo não é deveras ação da alma (conforme
elaboradamente explicado acima).
De forma semelhante, mesmo durante a realização de atos
básicos, tais como ver, ouvir, tocar, cheirar, comer etc., um
conhecedor de ta va deveria pensar: “Não faço absolutamente nada”
[5.8]. Por quê? Porque “os sentidos movem-se nos objetos dos
sentidos” [5.9] e os sentidos do corpo não são a alma. Corpo e alma
são ta vas diferentes.
Ta va também pode referir-se a componentes verdadeiros de
ações específicas. Desse modo, à medida que inicia o último capítulo
da Gītā, Arjuna quer saber mediante princípios verdadeiros
(mediante ta va) o que significa renunciar o mundo [18.1], uma vez
que compreendeu notoriamente errado esse tema no começo.
• Kṛṣṇa-tattva
Kṛṣṇa usa a palavra ta va quinze vezes na Gītā, com mais da
metade dessas ocorrências referindo-se ao tema último da Gītā – o
próprio Kṛṣṇa. Deste modo:
O indivíduo tem como garantia libertar-se de nascimento e morte
simplesmente por conhecer de verdade (mediante ta va) [4.9] o
nascimento e os feitos divinos de Kṛṣṇa – isto é, ciente de que não
são comparáveis com nosso próprio nascimento e ações mundanos;
Observadores do ta va têm conhecimento e nos ajudam a
conhecer e ver que todas as almas existem em Kṛṣṇa, a Alma de
todos [4.34-35];
Só um dentre milhares de praticantes espiritualistas bem-
sucedidos conhece Kṛṣṇa de verdade (mediante ta va) [7.3];
Caem aqueles que não reconhecem de verdade (mediante ta va)
que Kṛṣṇa é o Senhor e desfrutador de todas as oferendas [9.24];
Aquele que conhece de verdade (mediante ta va) o vasto poder e
yoga de Kṛṣṇa ocupa-se em yoga inabalável [10.7];
Pela devoção pura, é possível conhecer e ver Kṛṣṇa de verdade
(mediante ta va) [11.54];
Pela devoção, o indivíduo reconhece de verdade (mediante ta va)
quem Kṛṣṇa realmente é; por assim conhecê-Lo de verdade (mediante
ta va), ele O alcança [18.55].
A busca de conhecimento como um caminho espiritual (jñāna-
yoga), em última análise, visa ao objeto cognoscível mais elevado:
Kṛṣṇa. Desse modo, após muitos nascimentos, aquele que atinge
conhecimento sabe que Kṛṣṇa é tudo e, assim, entrega-se a Ele [7.19],
pois vedya (“aquilo que deve ser conhecido”) é Kṛṣṇa [9.17, 11.38,
15.15] e jñeyam (também “aquilo que deve ser conhecido”) é Kṛṣṇa
[13.13-18].
No capítulo quatorze, Kṛṣṇa declara que dará outra vez “o melhor
de todo o conhecimento” [14.1]: inabalável devoção a Kṛṣṇa ergue o
indivíduo acima de todos os modos materiais e leva-o à existência
espiritual pura [14.26], visto que Kṛṣṇa é a base de brahman (espírito
absoluto), e da imortalidade imperecível, virtude perpétua e bem-
aventurança mais elevada [14.27].
A obtenção de profundo conhecimento espiritual, entretanto,
requer trabalho de equipe entre escritura, professor e estudante, todos
os quais devem desempenhar seu papel adequadamente.
Consideremos em separado cada membro dessa “equipe de
conhecimento”.

Escritura (Veda, Śāstra, Gītā)


Kṛṣṇa enfaticamente ensina que, mesmo dentro da sagrada
tradição védica, nem todas as escrituras são criadas iguais. Dedicado
à nossa emancipação espiritual, Kṛṣṇa classifica a posição de textos
sagrados não de modo dogmático, mas por seu conteúdo
transparentemente mundano ou espiritual. Kṛṣṇa fala de escritura de
três maneiras: (1) Ele fala de Veda (ou Vedas), em geral de forma
pejorativa; (2) Ele fala de śāstra (escritura), sempre de forma positiva,
e (3) Ele fala de Seu próprio ensinamento, Bhagavad-gītā, como a
escritura mais elevada. Não se poderia esperar menos de um texto
proferido por Deus em pessoa. Vamos rever as três classes de
referência feitas por Kṛṣṇa a textos sagrados.
• Veda

Nas primeiras dez vezes que menciona os Vedas[4], Kṛṣṇa nos


adverte a ficarmos longe deles. Por quê? Os Vedas, e muitas outras
escrituras, promovem numerosos ritos que oferecem recompensas
materiais (por exemplo, hedonismo celestial) a mentes mundanas
ávidas por bons frutos de karma [2.42-43].
Devemos ter em mente que a Bhagavad-gītā e textos espirituais
como o Śrīmad-Bhāgavatam descrevem tanto um paraíso mundano
dentro deste Universo temporal quanto um mundo realmente
espiritual e eterno situado além. O paraíso deste mundo oferece
prazer fugaz [9.21]. De fato, não se pode permanecer para sempre
em qualquer mundo deste Universo [8.16]. Por preocupação
conosco, portanto, Kṛṣṇa nos adverte a ficarmos longe de todas as
escrituras que promovem esse ou aquele rito, voto ou crença como
um caminho para prazeres egoístas.
Dessa maneira, Kṛṣṇa declara que os Vedas focam principalmente
os três modos da natureza, impelindo Arjuna a transcendê-los [2.45].
E uma vez que devoção espiritual a Kṛṣṇa também traz bem-estar
material [9.22], “todos os Vedas têm tanto valor quanto um poço,
quando, por toda parte, fluem águas abundantes” [2.46]. Em outras
palavras, não têm valor algum. Aquele cuja razão atravessou a ilusão
fica indiferente aos Vedas, ou a qualquer escritura que canta a canção
da sereia sobre metas de vida mundanas [2.52]. Quando tais acordos
sagrados não mais desviam a alma, o indivíduo atinge verdadeiro
yoga espiritual [2.53].
Kṛṣṇa continua Sua análise crítica aos Vedas: um yogī que aprende
com Kṛṣṇa como transcender este mundo, transcende também os
Vedas [8.28]. Aqueles que estudam os Vedas, executam os ritos solenes
e viajam ao paraíso deste mundo e saboreiam delícias celestiais, mas
despencam de volta à Terra quando sua conta de bom karma se esgota
[9.20-21]. Como era de se esperar racionalmente, ninguém pode ver
Deus através de tais Vedas [11.48, 11.53].
No capítulo quinze, entretanto, Kṛṣṇa nos mostra os Vedas através
de outra lente. O verdadeiro conhecedor do Veda sabe que este
mundo assemelha-se a uma árvore de cabeça para baixo [15.1] – isto
é, não passa de um reflexo da realidade espiritual. Com efeito, todos
os Vedas destinam-se a conhecer Kṛṣṇa, e Kṛṣṇa conhece os Vedas
[15.15]. Encontramos aqui uma aparente contradição: de um lado,
Kṛṣṇa diz a Arjuna que os Vedas abrangem principalmente os três
modos da natureza [2.45]; por outro, proclama que todos os Vedas
visam a Ele, que está além dos modos [7.13]. Como pode ser assim?
Podemos rastrear uma resposta na própria Gītā. Consideremos
estas afirmações:
1. Aquele que conhece espírito e matéria – inclusive os modos – não
renasce [13.24];
2. Quem vê que os modos fomentam todas as ações mundanas, e
vê o que está além dos modos, atinge a natureza do próprio Kṛṣṇa
[14.19];
3. Ao transcender esses três modos, o indivíduo fica livre das
misérias subjacentes a nascimento, morte e velhice, e desfruta da
imortalidade [14.20].
Assim, levando-se tudo em consideração, os Vedas nos conduzem
através dos modos da natureza, mas o objetivo último é transcender
esses modos e conhecer Kṛṣṇa, que está além deles [7.13].
Conclusão: embora os Vedas falem muito mais deste mundo do
que de Deus, apontam para Kṛṣṇa, em última análise, por meio de
referências ocasionais a Viṣṇu [Kṛṣṇa] como um ser transcendente[5]
que corporifica o ato libertador de sacrifício,[6] ou por nos mostrar a
futilidade última de recompensas mundanas.
Além disso, o significado literal da palavra veda é conhecimento;
Kṛṣṇa, então, diz literalmente em 15.15 que “todas as formas de
conhecimento destinam-se a conhecer-Me”.
Em todo caso, em Sua última menção explícita dos Vedas, Kṛṣṇa
diz: “No mundo e nos Vedas, Eu sou celebrado como a Pessoa
Suprema” [15.18].
• Śāstra
Tendo pesquisado a discussão explícita de Kṛṣṇa sobre os Vedas,
analisemos os cinco usos de Kṛṣṇa do termo śāstra, um termo mais
genérico que significa escritura, no sentido de um texto divino
abalizado.
Tendo explicado que Ele é a Pessoa Suprema acima de todas as
outras almas, atadas ou liberadas, Kṛṣṇa afirma que narrou “o śāstra
mais confidencial” [15.20].
Aquele que rejeita as ordens do śāstra vive mediante atos egoístas
e não pode atingir a perfeição, a felicidade ou o caminho mais
elevado [16.23].
Śāstra, portanto, é nossa evidência ao determinar o que fazer e não
fazer. Cientes do que o śāstra prescreve, deveríamos cumprir nosso
dever [16.24].
Ao ouvir isso, Arjuna pergunta sobre aqueles que rejeitam as
ordens do śāstra, mas, ainda assim, fazem oferendas com fé. Seu
status encontra-se em bondade, paixão ou ignorância? [17.1]
Curiosamente, Arjuna presume que quem abandona as ordens do
śāstra não pode ser uma alma liberada e, então, pergunta de que
forma tal pessoa está atada aos modos da natureza. Kṛṣṇa responde
que depende do indivíduo.
Ele também afirma que só aqueles que ignoram as regras do śāstra
executam penitências nocivas [17.5]; o śāstra nunca prescreve
autoagressão.
Ao contrário de Seu tratamento misto para com os Vedas, Kṛṣṇa
sempre Se refere ao śāstra como positivo e abalizado, e descreve Seu
próprio ensinamento como o śāstra mais elevado, ou mais
confidencial.
• Bhagavad-g t īā
Como Kṛṣṇa é a fonte de tudo [10.8], e uma vez que tanto matéria
quanto espírito, os componentes gêmeos do cosmos, são Sua energia
[7.4-5], nesse sentido, Kṛṣṇa é tudo [7.19, 11.40]. Desse modo, não
podemos verdadeira ou definitivamente entender algo, a menos que
também entendamos Kṛṣṇa. E se desejamos entendê-Lo, aplicam-se
algumas regras epistêmicas de bom senso:
1. Como Kṛṣṇa é a fonte dos deuses e sábios grandiosos, eles não
conhecem Sua origem [10.2]. Por que, então, procurar quando nem
mesmo deuses e sábios iluminados podem encontrá-la?
2. Os seres cósmicos mais elevados não conhecem a forma pessoal
de Kṛṣṇa mediante seus próprios esforços [10.14]. Mais uma vez,
deveríamos ser realistas quanto às nossas chances;
3. Só Kṛṣṇa realmente conhece a Si mesmo [10.15];
4. Kṛṣṇa está disposto a explicar-Se a nós por completo se apenas
ouvirmos [7.1], daí Ele ter falado a Bhagavad-gītā;
5. Para entendermos a Gītā, devemos ouvi-la através da corrente
abalizada de mestres, chamada paramparā [4.1-3].
Kṛṣṇa nos assegura que nos dará todo o conhecimento básico com
profunda vivência [7.2]. Esse conhecimento vivenciado nos
conduzirá à liberação espiritual [9.1]. De fato, uma vez que não
podemos vê-Lo com nossos olhos materiais, Kṛṣṇa pode nos dar
visão divina, como fez com Arjuna, de modo que possamos vê-Lo
realmente [11.8].
Kṛṣṇa implora para ouvirmos Sua palavra suprema, a qual Ele
fala para o nosso bem [10.1]. Ele oferece o melhor de todo o
conhecimento – sabedoria que conduziu à perfeição todos os sábios
anteriores [14.1]. Kṛṣṇa, porém, só pode oferecer; por isso, Ele diz a
Arjuna no final: “Expliquei a ti o conhecimento mais confidencial.
Após refletir sobre isso cuidadosamente, faze o que desejares”
[18.63].
Essa parece ser a última palavra. Contudo, Kṛṣṇa é tão sério em
Seu desejo de nos ajudar que, tendo acabado de dizer a Arjuna que
podia fazer o que quisesse, Ele diz: “Eu te amo ternamente, então
falarei de novo para o teu bem. Ouve mais uma vez Minha palavra
suprema” [18.64].
Mestres Espirituais

• Representantes de Deus

Mencionei acima que devemos receber esse conhecimento através


de paramparā, a corrente contínua de mestres abalizados [4.1-3]. O
conhecimento descende de Kṛṣṇa nessa ininterrupta corrente viva.
Encontramos três exemplos de paramparā na Gītā:
1. Outrora, Kṛṣṇa ensinou Vivasvān, que ensinou seu filho Manu,
que ensinou seu filho Ikṣvāku [4.1-2];
2. Kṛṣṇa renova a sucessão perdida ao falar a Arjuna [4.3];
3. Sañjaya, que começa e termina a narração da Gītā, ouve Kṛṣṇa
falar pela misericórdia de seu mestre Vyāsa [18.75].
Kṛṣṇa explica por que escolheu Arjuna para ouvir pessoalmente
Sua narração regenerativa da Gītā: Arjuna é devoto e amigo de Kṛṣṇa
[4.3]. Quando a mente apega-se a Kṛṣṇa, e o indivíduo refugia-se
Nele, Kṛṣṇa dá todo o conhecimento, explicando como se pode
conhecê-Lo por completo sem dúvida alguma [7.1-2].
Ademais, para aqueles que O amam firmemente, Kṛṣṇa em pessoa
dá buddhi-yoga, inteligência espiritual por meio da qual vão a Ele
[10.10]. Por compaixão, Kṛṣṇa destrói sua ignorância com a
lamparina brilhante do conhecimento [10.11]. Assim, Kṛṣṇa diz:
“Meu devoto entende plenamente este conhecimento” [13.19].
Fica claro que, para entender por completo a Bhagavad-gītā, é
preciso conhecer Kṛṣṇa, e quem O ama pode conhecê-Lo. Seria Kṛṣṇa
parcial com os devotos e injusto com os demais? Ele aborda essa
questão ao dizer que é igual para com todos os seres – sem odiar
nem favorecer ninguém. Kṛṣṇa, no entanto, habita naqueles que
habitam Nele [9.29]. Kṛṣṇa reciproca com todos imparcialmente
[4.11], conforme explicamos na seção sobre Deus.
Muitas pessoas hoje alegam conhecer a Gītā e, desse modo, ser
gurus, mestres espirituais, qualificados. Evidentemente, Kṛṣṇa ensina
que quem segue Arjuna, quem é Seu devoto e amigo, pode conhecer
a Bhagavad-gītā. No entanto, muitos afirmam ser, entre outras coisas,
devotos de Kṛṣṇa e, por isso, ter profundo conhecimento espiritual.
Consideremos, então, como Kṛṣṇa descreve o comportamento e a
mentalidade daqueles que realmente entendem, servem e ensinam
Sua mensagem – isto é, aqueles que são verdadeiros mestres da Gītā.

Observadores da Verdade Categórica


Duas vezes na Gītā, Kṛṣṇa descreve pessoas iluminadas como
ta va-darśīs, “observadores da verdade [categórica]”. Assim, um
observador da verdade vê a diferença entre elementos eternos (almas) e
elementos temporários (corpos) [2.16]. Ta va-darśīs, observadores da
verdade, são qualificados para nos ensinar conhecimento, pois
assimilaram o conhecimento [4.34].
Conforme explicado anteriormente, existem três ta vas, ou
verdades fundamentais, básicos: natureza, almas e Deus. Um
observador de ta va, desse modo, não confunde essas verdades –
isto é, um observador de ta va não:
1. Confunde matéria e espírito, pensando que a alma eterna é o
corpo temporário;
2. Confunde espírito e Deus, pensando que a alma é Deus;
3. Confunde Deus e matéria, pensando que Kṛṣṇa vem a este
mundo num corpo material ou que qualquer objeto material, até
mesmo o Universo material, é Deus num mero sentido não
qualificado.
Desse modo, uma pessoa instruída deve ver, e não confundir,
ta vas, verdades básicas. Felizmente, Kṛṣṇa também nos fornece
sintomas comportamentais pelos quais podemos reconhecer o
mestre verdadeiramente sábio e, assim, buscar um tipo de ciência
espiritual.

Sintomas Comportamentais da Pessoa Deveras


Sábia
Arjuna pergunta duas vezes a Kṛṣṇa sobre as qualidades e o
comportamento de uma pessoa que tenha realmente assimilado o
conhecimento espiritual. Temos aqui os ingredientes de uma ciência
espiritual junto com princípios observáveis.
No primeiro caso, Arjuna pergunta sobre o comportamento do
indivíduo fixo em sabedoria. Kṛṣṇa responde que uma pessoa sábia
abandona todos os desejos egoístas; encontra satisfação no eu apenas
[2.55]; vive livre de anseio, paixão, medo e ira [2.56], e nem saúda
boa fortuna, nem despreza má fortuna [2.57]. Alguém com
conhecimento retira os sentidos dos objetos dos sentidos assim como
uma tartaruga retrai seus membros [2.58]. Verdadeiro desapego
requer experiência genuína de algo superior; caso contrário, o
indivíduo retornará a prazeres inferiores [2.59]. Desse modo,
desapego constante de gratificação mundana é um sinal válido de
apego espiritual, tanto quanto abandonar um brinquedo de infância
é um sinal de que o indivíduo está crescendo e amadurecendo.
No segundo caso, Kṛṣṇa afirma que, por transcender os três
modos materiais, fica-se livre das misérias subjacentes a nascimento,
morte e velhice, e desfruta-se de imortalidade [14.20]. Arjuna, então,
pergunta sobre os sintomas de tal pessoa [14.21]. Kṛṣṇa de novo
responde que a alma liberada revela-se mediante pleno desapego
dos modos mundanos e dualidades, tais como alegria e tristeza,
censura e louvor, honra e desonra, o agradável e o desagradável
[14.23-25]. Kṛṣṇa acrescenta que quem serve o Senhor com bhakti-
yoga indesviável transcende por completo os modos e atinge o
Absoluto [14.26].
Ademais, Kṛṣṇa fornece duas vezes uma extensa lista de
qualidades, características, hábitos e traços decorrentes de
verdadeiro conhecimento. Primeiro, Ele fala de ausência de orgulho,
não-duplicidade, inofensividade, perdão, retidão, serviço a guias
espirituais, limpeza, estabilidade, autocontrole e muitos outros
traços semelhantes, concluindo que isso é conhecimento; o contrário
disso é ignorância [13.8-12].
Da mesma forma, o status mais elevado de conhecimento,
conducente à existência espiritual, inclui características como razão
pura, autocontrole determinado, abandono de apego e aversão,
alimentação leve, dedicação ao yoga da meditação e muitas outras
[18.50-53]. Em última análise, conforme mencionado acima, uma
pessoa com verdadeiro conhecimento constata que o Senhor é tudo
e, desse modo, entrega-se a Ele [7.19].
É importante notar aqui que as descrições acima, em parte
alguma, indicam que uma alma com conhecimento retira-se do
mundo. Pelo contrário, mesmo aqueles que têm conhecimento
desempenham deveres de acordo com sua natureza corpórea [3.33].
Conhecer Deus não é negar o corpo, mas, sim, governá-lo e ocupá-lo
de maneira espiritual sensata. Conforme discutido anteriormente,
verdadeira renúncia é renunciar aos frutos da ação [18.2]. E que
melhor exemplo do que o exemplo do próprio Arjuna, que, com
conhecimento restabelecido, declara a Kṛṣṇa no final: “Estou firme,
livre de dúvidas. Agirei segundo Tua palavra” [18.73].
Por último, Kṛṣṇa descreve a visão e o comportamento de um
paṇḍita[7], uma pessoa realmente erudita:
Um paṇḍita não se lamenta nem pelas almas ainda corporificadas,
nem pelas almas que deixam seus corpos [2.11];
Um paṇḍita empreende todas as ações sem motivo egoísta, pois
conhecimento queimou todo o karma [4.19];
Um paṇḍita vê que filosofia e prática são uma coisa só [5.4];
Um paṇḍita vê a igualdade de todas as almas, a despeito da
diferença de corpo em termos de espécies, gênero ou classe social
[5.18].

Estudantes Sinceros
Se somos tão afortunados de encontrar um verdadeiro mestre da
Bhagavad-gītā, como abordar essa pessoa? A própria Gītā nos
demonstra isso claramente, primeiro pelo exemplo de Arjuna, e,
depois, nos ensinamentos de Kṛṣṇa sobre os deveres de um
estudante espiritualista.
Após fracassar no intento de iluminar-se no capítulo um, Arjuna
constata que precisa de um mestre perfeito e diz a Kṛṣṇa: “(...)
Confuso quanto ao dever, indago sobre aquilo que é o bem
definitivo. Dize-me, sou teu discípulo; ensina-me, pois estou
entregue a Ti” [2.7].
Arjuna se declara um discípulo submisso, mas expressa
livremente suas dúvidas, apresentando perguntas desafiadoras [3.1-
2, 5.1] antes de aceitar tudo o que Kṛṣṇa diz [10.14] e concordar em
executar Sua ordem [18.73].
Aqui, a relação de Arjuna com Kṛṣṇa coincide com a própria
descrição de Kṛṣṇa sobre a relação professor-estudante adequada: o
indivíduo deveria aproximar-se de um mestre sábio (observador de
ta va) com submissão, perguntas minuciosas e serviço devotado.
Essa atitude naturalmente induz os sábios a nos ensinarem tudo o
que sabem [4.34].
Em última análise, aquele que confia na mensagem de Kṛṣṇa
alcança conhecimento, e esse conhecimento traz paz suprema [4.39].
Confiante nesse conhecimento, o indivíduo está unido a Kṛṣṇa [14.2].
Ele deveria esforçar-se para ser como Arjuna, o mais famoso
estudante de Kṛṣṇa.

Visão da Verdade (Dṛṣti)


Porque Arjuna não inveja Deus, Kṛṣṇa lhe ensina o conhecimento
libertador que se pode entender mediante percepção direta [9.2]. Por
toda a Gītā, Kṛṣṇa deixa claro que conhecer a Verdade a fundo é ver a
Verdade. A mensagem de Kṛṣṇa é contundentemente visual. Fé
conduz a conhecimento [4.39], mas o próprio conhecimento deve ser
visto, e não apenas acreditado. Só ao ver a verdade superior pode-se
abandonar objetos dos sentidos mundanos [2.59]. Vamos agora
resumir o papel da visão espiritual na Gītā.
Como discutido anteriormente, Kṛṣṇa fala duas vezes de
observadores da verdade, ou de ta va, que viram a conclusão acerca
de matéria e espírito: formas materiais nunca perduram; espírito
nunca perece [2.16]. Da mesma forma, observadores de ta va veem que
todas as almas existem dentro de Kṛṣṇa [4.34-35], e conhecimento
implica ver a necessidade de conhecer ta va: a verdade fundamental
e categórica [13.12].
Kṛṣṇa fala muitas vezes de ver as realidades básicas de alma,
natureza e Deus, e não confundi-las. Assim, alguns veem que a alma
é maravilhosa [2.29], e encontra-se satisfação ao ver o eu verdadeiro,
mediante o eu, dentro de si mesmo [6.20].
É preciso também ver o que não é verdade. Desse modo, por meio
dos olhos do conhecimento, alcança-se o Supremo ao constatar a
diferença entre corpo e alma e ver como libertar-se da matéria
[13.35]. Da mesma forma, conhecimento implica ver constantemente
o problema penoso subjacente a nascimento, morte, velhice e doença
[13.9], uma vez que isso motiva o indivíduo a buscar liberação. E o
sábio dotado de visão vê os prazeres do mundo como escuridão,
assim como o mundo comum vê a vida santa como inescrutável
[2.69].
Quem se vê como o único agente não vê de verdade [18.16], mas
quem vê que a natureza conduz as ações e que o eu é um não agente,
vê de verdade [13.30]. Da mesma forma, quem vê o tempo todo que
não há nenhum agente além dos modos da natureza e também vê o
que está além dos modos alcança a existência de Kṛṣṇa [14.19].
O indivíduo perplexo não vê a alma partir, habitar ou desfrutrar o
corpo físico, mas aqueles que possuem olhos do conhecimento veem de
fato [15.10]. Yogīs esforçados veem o eu no Eu, mas, mesmo se
esforçando, os irresponsáveis não veem, pois carecem de consciência
[15.11].
Vários caminhos espirituais ensinados na Gītā – yoga da
meditação, yoga do conhecimento, yoga da ação etc. –, todos
capacitam o indivíduo a ver o eu verdadeiro dentro de si mesmo, por
si mesmo [13.25]. Da mesma forma, quem vê que filosofia (jñāna-
yoga) e prática (karma-yoga) são uma coisa só, vê de verdade [5.5].
Discutimos anteriormente que Kṛṣṇa define yoga como visão
equânime, e Ele enfatiza que devemos ver a igualdade de todos os
seres, acima de diferenças corporais. Assim, aquele que aprende com
o sábio vê todos os seres, sem exceção, dentro de Kṛṣṇa, a Alma
Suprema [4.35]. Uma pessoa sábia, um paṇḍita, vê todas as criaturas
igualmente, a despeito de sua classe social ou espécie [5.18]. Uma
alma empenhada no caminho espiritual vê a alma em todos os seres,
e todos os seres na Alma, e, desse modo, vê com equanimidade em
toda parte [6.29]. Isto é, o indivíduo vê Kṛṣṇa em toda parte e tudo
em Kṛṣṇa [6.30]. Kṛṣṇa articula esse ponto em outras passagens
também [9.5, 13.28-29].
Kṛṣṇa fala indiretamente de conhecimento como visão quando
afirma que a alma tem conhecimento por natureza (jñānin), mas que
a ignorância o cobre ou oculta. Desse modo, cinco vezes na Gītā,
Kṛṣṇa afirma que o conhecimento é coberto ou oculto (āvṛtam)[8]: por
luxúria e ira [3.38]; pelo nosso eterno inimigo, a luxúria [3.39, 40];
por “desconhecimento” (ajñāna), ou ignorância [5.15], e pela escuridão
[14.9].
A luz desvela o que a escuridão encobre. Assim, por dissipar a
escuridão do mundo, o Sol nos capacita a ver. Kṛṣṇa por duas vezes
compara conhecimento (consciência) ao Sol: quando nosso
conhecimento destrói a ignorância, então esse conhecimento, como o
Sol, ilumina tudo ao seu redor [5.16]; assim como um sol ilumina
este mundo inteiro, a alma, com conhecimento, proprietária do
campo (corpo), ilumina o campo inteiro [13.34].
Entretanto, os modos inferiores da natureza – paixão e ignorância
– cobrem o conhecimento inato da alma. Mas o modo mais elevado –
virtude, ou bondade – permite que a luz do conhecimento brilhe,
capacitando-nos a ver. Assim, quatro versos explicitamente ligam
virtude, ou bondade, a conhecimento superior: bondade, sendo
imaculada, ilumina [14.6]; quando todos os portões do corpo
(sentidos) são iluminados, quando há conhecimento, o indivíduo
deveria saber que a bondade prospera [14.11]; quando o inverso
ocorre – quando não há luz – o modo da escuridão prospera [14.13];
de fato, a luz do conhecimento sintomatiza a virtude [14.22].
Em essência, o conhecimento da virtude é ver que todos os seres,
com suas naturezas distintas, situam-se como unos no vasto campo
espiritual de brahman [13.31]. Da mesma forma, tal conhecimento
virtuoso vê uma única natureza espiritual imperecível, indivisa em
todos os seres vivos divididos [18.20]. Kṛṣṇa descreve apenas
conhecimento em bondade como visão.
Uma pessoa imersa em paixão e ignorância pode aprender muitas
coisas, mas não verá a verdade espiritual dentro de todos os seres.
Desse modo, pensadores passionais e ignorantes negam a alma e
Deus porque não podem ver nenhum dos dois.
Kṛṣṇa adverte que os modos da natureza cobrem a nossa visão de
Deus [7.13]. Para realmente vermos a verdade que nos libertará,
devemos buscar conhecimento (jñāna) dentro de uma prática
espiritual (yoga) – isto é, jñāna-yoga. Por meio disso, sistematicamente
removemos coberturas cognitivas que ocultam a consciência pura.
Em consciência densa, não podemos compreender o Espírito, que é
muito sutil, existente dentro e fora de todos os seres [13.16].
A Bhagavad-gītā muito poderosamente revela o conhecimento
como visão direta no capítulo onze, quando Kṛṣṇa desvela Sua forma
cósmica ao atônito Arjuna. Em vinte e quatro dos cinquenta e cinco
versos desse capítulo, encontramos quarenta usos do verbo “ver”
(paśya) em várias formas. Kṛṣṇa, Arjuna e Sañjaya, que começa e
termina a narração da Gītā, todos usam extensivamente palavras que
se referem a ver. Repetidas vezes, Kṛṣṇa diz a Arjuna: “Vê!” [11.5-7],
e Arjuna declara repetidamente, “Eu vejo!” [11.15-19]. Essa não é
uma visão comum, pois Arjuna vê o cosmos inteiro presente num só
lugar – isto é, dentro do corpo de Deus [11.7-13]. (Expliquei mais
acerca da visão de Arjuna na seção sobre Deus).

Conhecimento que Liberta


Assim como Janaka e outros reis grandiosos atingiram plena
perfeição por meio de karma-yoga [3.23], a Bhagavad-gītā ensina que o
conhecimento nos libertará de todo o mal – de pecados e da má
fortuna que estes nos causam. Nada purifica como o conhecimento
[4.38]. Conhecimento é o purificador supremo [9.2]. Por intermédio
do barco do conhecimento apenas, até mesmo a pessoa mais
pecaminosa transporá todo o mal [4.36]. Conhecimento remove
todos os pecados [5.17]. Kṛṣṇa ensina o conhecimento mais
confidencial, ciente do qual se fica livre de pecado [9.1]. Por conhecer
Kṛṣṇa como o magnífico senhor dos mundos, não nascido e sem
começo, fica-se livre de todos os pecados [10.3].
Assim, por libertar-nos de pecado, o conhecimento nos liberta de
repetidos nascimentos e mortes. Aquele que deveras conhece a alma
e a natureza jamais renasce [13.24]. Até mesmo pessoas sem
conhecimento que ouvem com fé esse conhecimento de fato
sobrepujam a morte [13.26].
Atos materiais nos aprisionam e atos espirituais nos libertam.
Assim, aquele que conhece karma e não karma está livre do mal [4.16].
A ação mais libertadora é yajña, sacrifício, e aquele que conhece isso
está liberado [4.32]. Um yogī que conhece a maneira certa de deixar
este mundo alcança o lugar mais elevado [8.28].
Conhecimento é um fogo que queima nosso karma [4.19]. Assim
como o fogo ardente transforma madeira em cinzas, da mesma
maneira o fogo do conhecimento transforma todo o karma em cinzas
[4.37]. Assim, ao alcançar conhecimento, atinge-se depressa a paz
mais elevada [4.39]. Aqueles que conhecem, com olhos do
conhecimento, a diferença entre corpo e alma e o caminho para
libertar-se da matéria vão ao Supremo [13.35]. Da mesma forma,
aqueles que possuem olhos do conhecimento veem como a alma aceita,
desfruta e deixa um corpo [15.10].
Kṛṣṇa ensina o conhecimento mais elevado, cientes do qual todos
os sábios alcançaram a perfeição mais elevada [14.1]. E assim como
este mundo, ou qualquer outro, não é para aquele que não faz
oferenda alguma [4.31]; da mesma maneira, nem este mundo, nem
um superior, são para uma alma duvidosa e sem conhecimento
[4.40]. Todavia, aquele que é devotado ao Senhor compreende corpo
e alma e, assim, alcança a natureza do Senhor [13.19].
O conhecimento dissipa as dúvidas [4.41]. Dúvidas surgem do
não saber, mas a espada do conhecimento extirpa as dúvidas da alma
[4.42]. Conhecimento acerca de Kṛṣṇa tem especial poder; ao
constatar que Kṛṣṇa está além do karma, também se fica livre de
karma [4.14]. Após alcançar o conhecimento, o indivíduo jamais cai
de novo na ilusão, pois verá que todos os seres estão em Kṛṣṇa, a
Alma [4.35]. E após muitos nascimentos, aquele que de fato alcança
conhecimento entrega-se a Kṛṣṇa, ciente de que o filho de
Vasudeva[9] é tudo [7.19].

A Oferenda de Conhecimento (Jñāna-yajña)


Centrado em ocupação intelectual, o yoga do conhecimento (jñāna-
yoga), assim como o yoga da ação (karma-yoga), contém todas as
características universais do yoga, inclusive a regra de oferecer sua
prática a Deus. Assim, Kṛṣṇa fala quatro vezes de jñāna-yajña, a
“oferenda do conhecimento”.[10] O que é, então, uma oferenda de
conhecimento?
Considere a oferenda arquetípica: a chuva dada por Deus [9.19]
faz crescerem as sementes dadas por Deus [7.10, 10.39], que, por sua
vez, fornecem alimentos consumidos com a digestão dada por Deus
[15.15] e inspiram uma oferenda grata ao donatário [3.11-12, 3.14-15].
Da mesma forma, o pensador pensa com a inteligência dada por
Deus [7.10, 10.32], dada por Kṛṣṇa dentro do coração [5.15]. Na
verdade, presente dentro do nosso coração, Kṛṣṇa é o nosso
conhecimento, o cognoscível e tudo o que é alcançado pelo
conhecimento [13.18]. Kṛṣṇa também é aquilo que deve ser conhecido
[9.17, 11.38], o cognoscível supremo [11.18] e o único objeto do
conhecimento em “livros de conhecimento” (Vedas) [15.15].
Assim como o alimento do corpo, o alimento da mente também é
dado por Deus, e obviamente pede uma oferenda grata. Desse
modo, mediante jñāna-yajña (a oferenda do conhecimento),
agradecemos a Kṛṣṇa por nossa inteligência e conhecimento, e
usamos essas faculdades dadas por Deus para conhecer e
compreender sua fonte: o próprio Kṛṣṇa. Aqui também, mantemos o
ciclo cósmico a girar, recebendo e retribuindo com gratidão [3.16].
Com efeito, o conhecimento acende o fogo do yoga do autocontrole,
no qual yogīs oferecem todas as ações dos sentidos e da respiração
[4.27].
Kṛṣṇa primeiro define jñāna-yajña como estudo sagrado e o inclui
num cardápio de sacrifícios que yogīs podem oferecer dentro de suas
várias práticas [4.28]. O melhor exemplo de uma oferenda do
conhecimento é a própria Bhagavad-gītā. Kṛṣṇa declara no final da
Gītā que quem estuda Seu diálogo com Arjuna deveras faz uma
oferenda do conhecimento a Kṛṣṇa [18.70]. Desse modo, apenas
aprender a Bhagavad-gītā põe o indivíduo firmemente no caminho
rumo ao conhecimento pleno.
Em outra passagem, Kṛṣṇa chama Seu ensinamento de yoga [4.1-
3]. Aqui novamente verificamos que yoga é uma forma de yajña
(oferenda) – nesse caso, estudo espiritual disciplinado, feito como
uma retribuição à fonte de todo o conhecimento e energia para
aprendê-lo e praticá-lo.
Kṛṣṇa conhece e respeita nossas diferentes naturezas e, por isso,
oferece vários yogas físicos, meditativos e intelectuais; mas todos
destinam-se a ser oferendas devotadas (yajña) e, desse modo, caminhos
espirituais. Todos os praticantes que constatam esse propósito em
comum atingem o Absoluto [4.30]. Assim, o conhecimento é a chave.
Uma oferenda imbuída de conhecimento supera a mera oferenda de
bens materiais [4.33].
Além disso, embora muitos busquem Deus para aliviar o seu
sofrimento, para satisfazer sua curiosidade ou para obter
prosperidade, o melhor buscador é aquele que conhece a glória de
Kṛṣṇa e, assim, busca-O com verdadeira compreensão. De fato,
conhecimento sobre Deus conduz à devoção singular e ocupação
constante em Seu serviço [7.16-17].
PARTE X
Dhyāna-yoga (Yoga da Meditação)

Meditação Como Prática Espiritual


À parte do yoga da ação e do yoga do conhecimento (karma-yoga e
jñāna-yoga), a Bhagavad-gītā ensina o yoga da meditação (dhyāna-yoga).
Assim como a ação no mundo deve ser espiritualmente
transformada em yoga da ação, ou a busca de conhecimento elevada
ao yoga do conhecimento, a meditação, da mesma forma, deveria ser
espiritualmente transformada em yoga da meditação. Meramente
concentrar-se neste ou naquele objeto pode não levar à liberação,
mas a cativeiro abjeto. Por isso, Kṛṣṇa, com desagrado, refere-Se
àqueles que meditam em objetos dos sentidos, ficam apegados a eles
e, por fim, caem na mais profunda ilusão [2.62-63]. Da mesma forma,
aprender como e por que abandonar o fruto de seu trabalho é
melhor do que apenas meditar sem tal renúncia [12.12]. A Gītā, desse
modo, ensina o yoga da meditação, dhyāna-yoga.
Kṛṣṇa menciona duas vezes esse processo pelo nome, ao afirmar
que dhyāna-yoga, assim como os outros caminhos de yoga, pode
capacitar o indivíduo a ver o eu verdadeiro [13.25] e, desse modo,
pode ajudá-lo a alcançar existência espiritual pura [18.52].
À parte desses versos, Kṛṣṇa Se refere à meditação em toda a Gītā.
Costuma-se intitular o sexto capítulo de Dhyāna-yoga (Yoga da
Meditação), embora Kṛṣṇa não use esse termo específico no capítulo.
Ele, entretanto, fala muito sobre meditação como uma prática
espiritual.
Kṛṣṇa afirma onde se deveria meditar: sozinho e em reclusão
[6.10], num lugar puro [6.11]. Ele então diz ao yogī como preparar
um assento de meditação: um assento firme, não muito alto nem
baixo, coberto com pele de veado e grama kuśa [6.11]. Instrui-se,
então, o yogī a sentar-se, focar a mente num ponto, refrear sentidos e
atividades, e praticar yoga para purificar o eu [6.12].
Kṛṣṇa a seguir descreve alinhamento corporal correto: manter
cabeça, pescoço e corpo eretos, firmes e imóveis, com o olhar fixo na
ponta do nariz e sem desviá-lo para outras direções [6.13]. Sereno,
destemido, sob voto de celibato, o indivíduo deveria continuar a
ocupar a mente. De modo significativo, diz-se a ele que fixe a mente
em Kṛṣṇa, dedicando-se a Ele [6.14].
Evidentemente muitas pessoas considerarão imprático viver e
praticar yoga sozinho, em reclusão e sob celibato estrito. Felizmente,
Kṛṣṇa explica que se pode praticar bhakti-yoga (o yoga mais elevado)
[6.47] na companhia dos demais, em oposição à reclusão [9.14, 10.9] e
celibato [3.20][1], os quais a Gītā exige para formas mais técnicas de
yoga, mas de modo algum superiores [6.14, 8.11]. Kṛṣṇa também
menciona celibato como um tipo de austeridade corporal, mas não
como uma prática compulsória [17.14].
Kṛṣṇa completa Seu resumo da prática do yoga clássico ao explicar
a necessidade de moderar alimentação, diversão e sono [6.16]; os
sintomas da serenidade do yoga [6.19]; o estado bem-aventurado da
iluminação [6.20-23]; etapas da meditação avançada [6.24-26];
conquistas superiores e contato com o Absoluto [6.27-28]; e o fato de
ver a Alma (Kṛṣṇa) em todos os seres e todos os seres em Kṛṣṇa,
desse modo conectando-se irrevogavelmente ao Senhor [6.29-30] e
desenvolvendo empatia universal [6.32].
Mas Arjuna tem uma dúvida: e se ele abandonar sua vida
mundana, adotar a prática de yoga, mas depois fracassar. Não teria
ele então estragado tanto sua vida material quanto espiritual,
acabando sem nada [6.33-35, 6.37-39]? Kṛṣṇa tranquiliza Arjuna,
explicando as recompensas gloriosas que advêm para um yogī
sincero, até mesmo aquele que às vezes não é bem-sucedido [6.35-36,
6.40-45].
Kṛṣṇa, desse modo, incita Arjuna a ser um yogī, uma vez que esse
caminho do yoga supera os caminhos de karma, jñāna e tapas (ou
asceticismo) [6.46]. E para que não pensemos que Ele está incitando
Arjuna a abandonar sua vida de guerreiro, Kṛṣṇa revela que Arjuna
não precisa ir nem para um lugar isolado, nem (como um homem
casado) adotar o celibato a fim de praticar o yoga mais elevado. Com
efeito, de todos os yogīs, o mais avançado é aquele cujo eu interior
vai a Kṛṣṇa e que com fé presta adoração ao Senhor [6.47]. Isso
certamente descreve Arjuna, a quem o Senhor Kṛṣṇa Se referiu como
“Meu devoto e amigo” [4.3].
Assim como na discussão anterior sobre karma-yoga e jñāna-yoga,
aqui também o yoga da meditação culmina em devoção a Kṛṣṇa: Ele
é a meta [6.15]. O dhyāna-yogī fixa a mente em Kṛṣṇa [6.15, 6.47],
dedica-se a Ele [6.14] e vai a Ele [6.15].
Em outra passagem, Kṛṣṇa reitera a meta da meditação: o Senhor
em pessoa ergue do oceano de perambulação na morte (o mundo
material) a pessoa devotada que medita exclusivamente Nele, com
total dedicação [12.6-7].
O capítulo oito também retoma o dhyāna-yoga técnico, até mesmo
citando momentos auspiciosos e inauspiciosos para yogīs partirem
deste mundo [8.23-27]. Aqui também, o yogī meditativo deveria fixar
a mente em Kṛṣṇa [8.5, 7], sempre pensando Nele como a Suprema
Pessoa Divina [8.8, 8.10] e como “o observador ancestral e
governante permanente, menor que o menor, criador de tudo, com
forma inconcebível, luminoso como o Sol, além da escuridão” [8.9].
Deveríamos notar que, para um dhyāna-yogī comum, o momento
técnico da partida determina se ele retorna a este mundo ou vai além
dele. Entretanto, aquele que medita em Kṛṣṇa enquanto deixa este
mundo irá a Kṛṣṇa [8.5], sem menção alguma a esquemas de
momento técnico. Aqui, o amor, não a técnica, vence tudo.
Meditação Como Oferenda Espiritual
Como era de se esperar, há também opções de yajña para yogīs
que meditam. Alguns, imersos em meditação, oferecem os cinco
sentidos no fogo simbólico do autocontrole, enquanto outros
oferecem objetos dos sentidos no fogo dos sentidos [4.26]. Alguns
oferecem todas as ações dos sentidos e da respiração no fogo do
autocontrole, feitos para serem queimados pelo conhecimento [4.27].
Para aqueles dedicados aos exercícios respiratórios de prāṇāyāma,
pode-se oferecer inspiração à expiração ou expiração à inspiração
[4.29]. Assim, até mesmo um yogī que vive às custas de ar agradece e
faz oferendas por esse ar. Kṛṣṇa salienta que quem não faz nenhuma
oferenda não pode ser nem um renunciante nem um yogī [6.1].
Mesmo um yogī sábio e desapegado deve fazer oferendas. Jamais
se pode renunciar a própria dívida para com a fonte de tudo, nem o
dever de ajudar os demais, assim como ninguém pode renunciar o
autocontrole, pois esses atos purificam até os sábios [18.5].
Ao recapitular os ensinamentos de Kṛṣṇa acerca de vários yogas,
pode-se sentir a necessidade de informações mais específicas sobre
exatamente como se praticam esses caminhos. Com efeito, é bhakti-
yoga, o mais elevado de todos os yogas [6.47, 12.2], que ilumina
claramente o que significa oferecer ação, conhecimento ou meditação
à Fonte e ao Supremo e, assim, transformar ação, conhecimento e
meditação num verdadeiro caminho espiritual.
Na seção final, consideraremos, em profundidade, o ponto
culminante de todos os caminhos espirituais: o caminho do amor
puro, bhakti-yoga. Esse é o coração da Bhagavad-gītā.
PARTE XI
Bhakti-yoga (O Yoga da Devoção)

Hierarquia de Yogas e Yogīs


Kṛṣṇa aceita diversos caminhos para a liberdade [5.4-5, 13.25 etc.],
mas também classifica suas posições.[1] Inclusivista e cosmopolita, a
Gītā reconhece que algumas etapas no caminho são mais longas em
comparação a outras. Assim, uma oferenda com conhecimento
supera mero ritual [4.33]; um yogī dedicado à prática espiritual
supera meros ascetas, estudiosos e ritualistas [6.46], e, de todos os
yogīs, aquele devotado de coração e alma a Kṛṣṇa (o bhakti-yogī) é o
melhor [6.47].
Karma-yoga requer oferecer os frutos de nossas ações, e, em toda a
Gītā, Kṛṣṇa nos solicita a oferecermos todas as nossas ações a Ele.[2]
Da mesma forma, jñāna-yoga culmina em Kṛṣṇa, conforme
demonstrado claramente na seção sobre o yoga do conhecimento.
Quanto a dhyāna-yoga, o caminho da meditação mística, a Gītā ensina
ao longo de todo o texto que devemos fixar a mente em Kṛṣṇa.[3] Em
última análise, yoga da ação, yoga do conhecimento e yoga da
meditação, todos encontram a sua perfeição no amor puro por Deus
e todas as Suas criaturas: bhakti.
Kṛṣṇa definiu yoga como samatvam (equanimidade), e essa
equanimidade baseia-se na igual presença de Kṛṣṇa em toda parte,
conforme mostrado anteriormente. Kṛṣṇa também define yoga como
sannyāsa, renúncia ou entrega, e, em última análise, o indivíduo
deveria dar tudo a Kṛṣṇa com devoção (bhakti), como também
mostrado anteriormente. E o caminho espiritual disciplinado que
foca diretamente em bhakti é, sem dúvida, bhakti-yoga.
A palavra bhakti vem da raiz verbal bhaj: servir, honrar, reverenciar,
amar, adorar. Desse modo, servir, honrar, reverenciar, amar e adorar a
Deus é bhakti. Quem executa bhakti é um bhakta, um indivíduo
devotado.
Muitas vezes na Gītā, Kṛṣṇa Se refere a “Meus devotos”.[4] Kṛṣṇa
não Se identifica tanto com yogīs místicos ou sábios que não O
amam. Em vez disso, a Gītā afirma que pessoas devotadas deveras
compreendem a Gītā [4.3, 13.19]; alcançam Kṛṣṇa [7.23, 9.34, 11.55,
18.65 etc.]; jamais se perdem [9.31]; são queridas por Kṛṣṇa [12.14,
12.16]; na verdade, extremamente queridas [12.20], e prestam a
devoção mais elevada por ensinar a Bhagavad-gītā a outras almas
devotadas [18.68].
A Bhagavad-gītā reserva o termo mahātmā, “alma grandiosa”, para
Kṛṣṇa [11.13, 20, 37, 50] e devotos de Kṛṣṇa [7.19, 8.15, 9.13],
especialmente Arjuna [18.74]. Vedas, austeridade, caridade e
sacrifício não outorgam poder a alguém para ver Kṛṣṇa; só devoção
pura revela o Senhor [11.54]. Com efeito, Kṛṣṇa enfim estimula
Arjuna a ensinar a Gītā só a pessoas devotadas [18.67].
Por que Kṛṣṇa prioriza devoção tão drasticamente? Por que Ele
afirma que bhakti-yoga é o caminho mais elevado do yoga? Ao fazer
essas afirmações, será que permanece fiel à Sua promessa de ser
igual para com todos, sem favorecer nem odiar ninguém [9.29] e
reciprocar imparcialmente com todos [4.11]?
Para responder a isso, e assim penetrar no coração da Bhagavad-
gītā, precisamos analisar de perto o caminho espiritual mais elevado
da Gītā: bhakti-yoga, o cultivo disciplinado de amor espiritual puro.

Conhecimento Acerca de Kṛṣṇa


Kṛṣṇa discute muitos temas na Gītā, mas fica claro que o tema
último é o próprio Kṛṣṇa. Com efeito, em dez dos dezoito capítulos
da Gītā, o verso final e conclusivo[5] instiga os leitores a
compreenderem ou dedicarem-se a Kṛṣṇa, o Deus Supremo, fonte de
tudo, que, literalmente, faz o mundo girar [9.10].
O próprio Kṛṣṇa é o objeto do conhecimento: aquilo que se deve
conhecer,[6] o objeto supremo do conhecimento [11.18], o verdadeiro
elemento cognoscível de todos os livros de conhecimento [15.15], e aquilo
que se deve alcançar por meio do conhecimento [13.18].
Desse modo, pode-se adotar o caminho da devoção, bhakti-yoga,
como uma resposta natural ao conhecimento. Por exemplo, “após
muitos nascimentos, aquele que tem conhecimento entrega-se a
Kṛṣṇa, constatando que Ele é tudo” [7.19]. Da mesma forma, ao
constatar que Kṛṣṇa é a fonte de tudo, e que tudo emana Dele, o
indivíduo racional adora a Kṛṣṇa com muito sentimento [10.8]. E
aquele que claramente conhece Kṛṣṇa como a Pessoa Suprema
conhece tudo e O adora com todo o seu ser [15.19].
Assim como conhecimento inspira bhakti (devoção), bhakti
também pode invocar conhecimento. Desse modo, porque Arjuna é
Seu amigo devotado (bhakta), Kṛṣṇa lhe ensina os mistérios da
Bhagavad-gītā [4.3]. Não só para Arjuna, mas também para todos que
estão sempre devotados com amor, Kṛṣṇa dá a inteligência (buddhi-
yoga) pela qual eles O alcançam [10.10]; presente dentro deles, Kṛṣṇa
destrói sua ignorância com a brilhante lamparina do conhecimento
[10.11].
Só a devoção pura dota o indivíduo de poder para conhecer Kṛṣṇa
e, assim, vê-Lo e aproximar-se Dele de verdade [11.54]. E é o devoto
de Kṛṣṇa quem compreende a verdade acerca do corpo e da alma,
caracterizada como campo e conhecedor do campo [13.19].
Rumo ao final da Gītā [11.55], Kṛṣṇa repete a palavra ta vataḥ
(mediante verdadeiros princípios) para enfatizar que devoção
(bhakti) capacita o indivíduo a conhecê-Lo categoricamente. Aqueles
que carecem de discernimento espiritual – por desconhecerem a
natureza superior de Kṛṣṇa (param bhāvam ajānantaḥ) como o
magnífico senhor de todos os seres – acreditam que Kṛṣṇa
originalmente é uma existência impessoal que assumiu um aspecto
pessoal [7.24]; assim, minimizam Kṛṣṇa quando Ele aparece em Sua
forma semelhante à humana [9.11]. Em outras palavras, pessoas
devotadas não confundem espírito e matéria e, por isso, conhecem
Kṛṣṇa correta e categoricamente – ta vataḥ. Tal conhecimento liberta
a alma da matéria.
O que significa aqui conhecer categoricamente? Conforme
explicado antes, Kṛṣṇa ensina que conhecimento é conhecer três
categorias de elementos reais: almas, natureza material e Deus [13.2-
3]. A ilusão surge quando misturamos essas três categorias,
confundindo uma com a outra.
Por isso, às vezes pensamos que almas são materiais,
identificando-nos com o corpo [15.8-10]; ou podemos vaidosamente
nos considerar Deus, ou pelo menos senhores de tudo o que
examinamos [16.14]; ou podemos pensar que Deus é material, ou
que Ele desce num corpo material como o nosso [7.13, 7.24]; ou
podemos considerar supremo o universo material total, sem nenhum
Deus acima dele [16.8]. Todos esses erros de categoria fundamental
cobrem nossa consciência pura e transparente e nos separam de
nossa vida eterna e jubilosa.
Em contraste, aquele que conhece categoricamente (ta vataḥ) o
nascimento e as ações divinas de Kṛṣṇa não renasce, senão que vai a
Kṛṣṇa, para obter vida eterna [4.9]. Conhecimento acerca do
nascimento divino de Kṛṣṇa salva o indivíduo de um nascimento
mundano. Da mesma forma, quem sabe que o karma não ata Kṛṣṇa
também não fica atado pelo karma [4.14].
Aquele que conhece Kṛṣṇa como o magnífico senhor dos mundos
está liberto de todos os pecados [10.3]. Cientes desse conhecimento
acerca de Kṛṣṇa, todos os sábios destacados atingiram a perfeição;
por valer-se desse mesmo conhecimento, atinge-se a própria
natureza de Kṛṣṇa [14.1-2]. Aquele que ensina este conhecimento da
Gītā a pessoas devotadas atinge Kṛṣṇa [18.68]. E aquele que
meramente o ouve com fé, sem inveja, está liberado e alcança os
mundos sagrados [18.71].
Um bhakti-yogī cultiva amor puro por Deus com conhecimento
profundo, e não com sentimento cego. Assim, Kṛṣṇa afirma que
quatro tipos de indivíduos aproximam-se de Deus: os que sofrem, os
curiosos, os que buscam prosperidade e os que têm verdadeiro
conhecimento sobre Deus [7.16]. Desses, aquele que possui
conhecimento tem devoção singular, pois Kṛṣṇa é extremamente
querido àqueles que deveras O conhecem, e eles Lhe são queridos
[7.17]. Com efeito, aquele que conhece Kṛṣṇa, e que está sempre ao
Seu lado, é como o próprio âmago do Senhor [7.18]. Essa pessoa com
conhecimento entrega-se por inteiro a Deus [7.19]. Evidentemente, o
conhecimento desempenha um papel vital na verdadeira devoção
espiritual: conhecer Kṛṣṇa é amá-Lo.
Se a consciência de Kṛṣṇa é tão simples e sublime, por que tantas
pessoas não conhecem Kṛṣṇa? Lembre-se da afirmação de Kṛṣṇa de
que o indivíduo é liberto por ouvi-Lo com fé e sem inveja [18.71].
Kṛṣṇa, em outra passagem, vincula fé (ou confiança) à ausência de
inveja: aqueles que sempre seguem Seus ensinamentos, confiando e
não invejando, ficam livres do karma [3.31]. Da mesma forma, Kṛṣṇa
ensinará esse conhecimento libertador a Arjuna porque ele não
inveja Deus [9.1]. Pessoas demoníacas, entretanto, desprezam e
invejam Deus, que habita no seu próprio corpo e nos corpos dos
demais [16.18]. A Gītā não deve ser falada àquele que inveja Kṛṣṇa
[18.67]. Por outro lado, quem confia em Kṛṣṇa atinge o conhecimento
[4.39].
Como explicar essa ligação vital entre ausência de inveja e
conhecimento? De dentro do nosso coração, Kṛṣṇa nos dá
conhecimento ou ignorância [15.15] em retribuição justa à nossa
atitude para com Ele [4.11, 9.29]. Algumas pessoas simplesmente não
gostam da ideia de uma Pessoa Suprema, que é o Senhor [16.8]; para
elas, Kṛṣṇa apresenta o mundo ateu que desejam. Em outras
palavras, Ele respeita nosso livre-arbítrio. Kṛṣṇa não Se impõe a nós;
por isso, temos a liberdade de agir baseados em nossa inveja e não
acreditar em Deus. Quando, afinal, cansamo-nos da falta de sentido,
Kṛṣṇa nos mostra o verdadeiro sentido da vida.
Em última análise, cada um de nós se eleva ou se degrada: o eu,
apenas, é amigo ou inimigo do eu; é nossa escolha [6.5-6]. Assim,
próximo ao fim da Gītā, Kṛṣṇa diz a Arjuna para considerar
cuidadosamente tudo o que Ele ensinou e, então, fazer o que desejar
[18.63].
Por fim, Kṛṣṇa pergunta a Arjuna se ele ouviu a mensagem com
atenção unidirecionada e se a sua ilusão, nascida da ignorância, está
dissipada [18.72]. Arjuna responde que, pela graça de Kṛṣṇa, sua
ilusão se dirimiu, sua memória foi recobrada. Ele agora está firme e
executará a instrução de Kṛṣṇa [18.73]. Essas são as últimas palavras
ditas por Arjuna e Kṛṣṇa na Bhagavad-gītā.
Kṛṣṇa escolheu Arjuna para ouvir a Gītā precisamente porque ele
é o amigo devotado do Senhor [4.3]. Por milênios, os devotos de
Kṛṣṇa têm aceitado que, para compreender a Gītā verdadeira e
profundamente, e colher suas ricas recompensas espirituais, é
preciso seguir Arjuna, o estudante exemplar da Gītā. O que significa,
então, praticar bhakti-yoga e, assim, seguir o caminho do grandioso
Arjuna?

Como Alcançar Kṛṣṇa


Naturalmente enaltecemos aquilo que é deveras magnífico em
beleza, poder, bondade e sabedoria. Por isso, em todo o mundo, as
pessoas louvam a Deus em canções, danças e orações, e também
encontramos esse processo atemporal em bhakti-yoga.
Assim, Arjuna diz que, ao ouvir as glórias do Senhor, o mundo se
regozija e abraça seu Criador, e que isso é feito corretamente [11.36].
Almas grandiosas, fixas em votos devocionais, estão sempre
louvando a Deus e curvando-se perante Ele com devoção [9.14]. Elas
habitam em Kṛṣṇa [12.8] e, desse modo, não têm nenhum sentido
profundo de um lar material neste mundo [12.19].
Ao oferecer uma folha, flor, fruta ou água para Kṛṣṇa, as pessoas
devotadas deveras oferecem seu próprio eu a Kṛṣṇa,[7] pois seus
corações vão junto com suas oferendas [9.26].
Como explicado anteriormente, as palavras bhakti (devoção) e
bhakta (devoto) originam-se do verbo sânscrito bhaj: servir, honrar,
reverenciar, amar, adorar. A Gītā muitas vezes usa esse verbo para
descrever os devotos do Senhor. Nos exemplos a seguir, a palavra
adorar sempre se traduz a partir do verbo sânscrito bhaj:
Aquele que adora Kṛṣṇa situado em todos os seres é um
verdadeiro yogī que reside em Kṛṣṇa [6.31];
O yogī mais elevado adora Kṛṣṇa com fé [6.47];
Até mesmo aqueles que adoram Kṛṣṇa com motivos materialistas
estão fazendo o bem [7.16];
Aqueles que estão livres de dualidade adoram Kṛṣṇa com votos
sólidos [7.28];
Almas grandiosas adoram Kṛṣṇa, cientes de que Ele é a origem
eterna de todos os seres [9.13];
Kṛṣṇa habita naqueles que O adoram com devoção [9.29];
Tendo vindo a um mundo temporário e infeliz, adora o Senhor!
[9.33];
Por constatar que Kṛṣṇa é a fonte de tudo, os sábios O adoram
[10.8];
Kṛṣṇa ilumina o caminho da liberação para aqueles que O adoram
com amor [10.10];

Ú
Aquele que conhece Kṛṣṇa como a Pessoa Última conhece tudo e
O adora com todo o seu ser [15.19].
Esse último verso demanda atenção especial: verdadeira bhakti
significa oferecer tudo o que fazemos a Kṛṣṇa [9.27], para adorá-Lo
com todo o nosso ser [15.19]. Isso requer prática espiritual séria.
Assim, um devoto deveria ocupar-se em bhakti-yoga sem desvio
[13.11, 14.26], pois se alcança a Suprema Pessoa Divina por meio de
bhakti, devoção, mas também pela força da prática espiritual, yoga
[8.11]. O devoto querido a Kṛṣṇa é sempre um yogī, um praticante
espiritualista sério [12.14].
Assim, aqueles que transcendem o pecado e cujos atos são
piedosos, que estão livres da ilusão da dualidade, adoram Kṛṣṇa
com votos sólidos [7.28]. Kṛṣṇa enfatiza que Seu querido devoto
transcende todos os tipos de dualidade, e, dessa maneira, não se
exulta nem odeia, não lamenta nem anseia, não se aferra à ventura
nem ao pesar etc. [12.17-19].
Kṛṣṇa está acima dos três modos da natureza,[8] e, para encontrar
Kṛṣṇa, é preciso elevar-se acima desses modos, que nos
desencaminham para a atração e a repulsão materiais. Na verdade,
os modos da natureza – bondade, paixão e escuridão – confundem o
mundo inteiro, escondendo Deus da nossa visão [7.13]. É difícil
superar essa energia ilusória divina, māyā[9], mas aqueles que se
entregam a Kṛṣṇa transpõem Sua energia ilusória [7.14].
Mais adiante, numa discussão sobre os modos da natureza,
Arjuna pergunta a Kṛṣṇa como é possível transcender todas as três
qualidades e alcançar a transcendência [14.21]. Após descrever o
caráter e a consciência de uma alma transcendente, Kṛṣṇa conclui
que, por servir Deus com indesviável bhakti-yoga, o indivíduo
transcende por inteiro as qualidades da natureza e atinge a
existência espiritual [14.26].
Pessoas avançadas em qualquer área naturalmente se associam
com outras pessoas avançadas nesse campo, seja música, esportes,
academicismo, artes marciais, belas artes, política ou qualquer outra
coisa. Então, Kṛṣṇa ensina que Seus devotos naturalmente se
associam e encorajam uns aos outros. Com mentes fixas em Kṛṣṇa,
iluminam-se uns aos outros, sempre falando de Kṛṣṇa, enchendo
suas vidas de alegria e satisfação [10.9]. Com efeito, aquele que
ensina a Bhagavad-gītā aos devotos de Kṛṣṇa realiza o mais elevado
ato de devoção e decerto alcançará Kṛṣṇa [18.68].
Kṛṣṇa não quer que Seus devotos amorosos fiquem enredados em
assuntos mundanos e recomenda que permaneçam afastados
(udāsīna) [12.16], assim como Ele o faz [9.9]. Na verdade, esse estoico
desprendimento de preocupações passionais leva o indivíduo para
além das agitações dos modos da natureza [14.23].
Kṛṣṇa oferece repetidas vezes proteção e abrigo àqueles que
buscam refúgio Nele. Pessoas perplexas não se aproximam de Kṛṣṇa,
preferindo o “abrigo” da existência sem Deus [7.15] ou da luxúria
insaciável [16.10] – ou de preocupações infindáveis que só terminam
com a morte [16.11]. Com efeito, aqueles que ignoram os
ensinamentos de Kṛṣṇa efetivamente se abrigam em seu próprio
egotismo [18.59]. Muitas almas, entretanto, abrigaram-se em Kṛṣṇa e
alcançaram Sua natureza [4.10]. Assim, em última análise, uma
pessoa sábia não deveria depender nem dos frutos da ação [6.1] nem
de qualquer outro ser [3.18]. Ela deveria encontrar abrigo (āśraya) em
Kṛṣṇa apenas, conforme a Gītā recomenda repetidamente:
Podemos conhecer Kṛṣṇa se praticamos vida espiritual sob Seu
abrigo [7.1];
Aqueles que se esforçam por libertar-se de velhice e morte
encontram abrigo em Kṛṣṇa [7.29];
Até mesmo indivíduos de nascimento problemático percorrem o
caminho mais elevado quando aceitam abrigo em Kṛṣṇa [9.32];
Pessoas incapazes de praticar estritamente a vida espiritual
encontram abrigo em Kṛṣṇa por trabalhar em Seu nome [12.10];
Por executar todas as suas ações para Kṛṣṇa e abrigado Nele, por
Sua misericórdia, o indivíduo alcança o lugar perpétuo e imperecível
[18.56].
Além disso, Kṛṣṇa é abrigo (śaraṇam) [9.18], e Ele nos incita a
irmos só a Ele em busca de refúgio (śaraṇam) com todo o nosso ser, de
modo que, por Sua misericórdia, alcancemos a paz mais elevada e a
morada eterna [18.62]. Por fim, no famoso clímax da Gītā, Kṛṣṇa
incita Arjuna a abandonar sua confiança em todos os outros dharmas,
ou deveres, e ir apenas a Ele em busca de refúgio (śaraṇam), dizendo:
”Eu te livrarei de todos os males; não te preocupes” [18.66].
Há também momentos em que Kṛṣṇa aconselha Arjuna a valer-se
de abrigos relacionados a Kṛṣṇa:
Almas grandiosas abrigam-se na natureza divina [9.13];
Aqueles que se abrigam no conhecimento que Kṛṣṇa ensina
alcançam Sua própria natureza [14.2];
O indivíduo deveria buscar abrigo em buddhi, inteligência
espiritual [2.50], a qual Kṛṣṇa concede a pessoas devotadas [10.10];
Por abrigar-se nessa razão espiritual prática (buddhi-yoga), o
indivíduo pensará sempre em Kṛṣṇa [18.57].
Kṛṣṇa pessoalmente satisfaz todas as necessidades daqueles que
sempre pensam Nele e estão, desse modo, sempre vinculados a Ele
[9.22]. Kṛṣṇa promete a Arjuna que Seu devoto nunca perece [9.31].
Para aqueles que sempre meditam em Kṛṣṇa e dedicam todos os
seus atos a Ele, Kṛṣṇa em pessoa, e prontamente, ergue-os do oceano
de perambulação na morte [12.6-7] – o vasto mundo material, onde
almas vagueiam em corpos mortais.
Kṛṣṇa reciproca imparcialmente com todos; a despeito de como
nos aproximemos Dele, Kṛṣṇa responde em conformidade [4.11].
Kṛṣṇa é igual para com todos os seres, sem favorecer nem odiar
ninguém. No entanto, Ele habita naqueles que devotadamente
habitam Nele. Desse modo, alcançamos os benefícios únicos e
supremos de bhakti-yoga na proporção de nossa devoção. Kṛṣṇa
deixa claro que o objetivo é constante amor puro, muitas vezes
falando de constância e pureza quando descreve o que a devoção
deveria ser.

Constância na Prática Devocional


Kṛṣṇa nos pede que devotemos a Ele tudo o que fazemos [9.27], e
seis vezes nos encoraja a estarmos sempre conectados (ocupados) à
prática devocional ou enaltecermos aqueles que já estão.
Dos quatro tipos de benfeitores que se aproximam de Deus, o
melhor é aquele dotado de conhecimento e devoção singular, que
está sempre conectado [7.17]:
Kṛṣṇa é fácil de alcançar para um yogī sempre ocupado que se
lembra Dele constantemente [8.14];
Aqueles que estão firmes em seus votos devocionais, glorificam
continuamente o Senhor e se esforçam com devoção, sempre ocupados
[9.14];
Kṛṣṇa pessoalmente supre as necessidades daqueles que estão
sempre ocupados em suas práticas devocionais [9.22];
Kṛṣṇa dá inteligência espiritual libertadora para aqueles sempre
ocupados em suas práticas devocionais [10.10];
Os melhores yogīs estão sempre ocupados em suas práticas
devocionais [12.2].
O leitor deveria notar que a palavra traduzida como ocupado ou
conectado é yukta, derivada da mesma raiz de yoga. Desse modo, se
yoga significa conectar, yukta significa conectado. Em outras palavras,
estar ser sempre yukta é estar sempre imerso em sua prática
espiritual, yoga.
Kṛṣṇa afirma consistentemente que quem sempre segue Seus
ensinamentos com fé e sem inveja está liberto de todo karma [3.31].
Além disso, os sábios encontram satisfação e alegria por sempre falar
sobre Kṛṣṇa [10.9]. Seu querido devoto é sempre um yogī satisfeito
[12.14]. Por isso, Kṛṣṇa nos incita a sempre fixarmos a mente Nele
[18.57].

Pureza na Prática Devocional


A palavra sânscrita anya significa outro ou algo mais. A forma
negativa an-anya significa, assim, nenhum outro, único ou exclusivo.
Kṛṣṇa usa esta palavra an-anya oito vezes na Gītā e sempre para
descrever a natureza pura e inadulterada de bhakti ou bhakti-yoga:
Kṛṣṇa é fácil de alcançar para aqueles que sempre se lembram
Dele com suas mentes situadas em nada mais [8.14];
Almas grandiosas adoram Kṛṣṇa com suas mentes situadas em
nada mais [9.13];
Kṛṣṇa satisfaz todas as necessidades daqueles que não pensam em
nada mais [9.22];
Pode-se alcançar a Pessoa Suprema por meio da bhakti (devoção)
que não tem nenhum outro objeto [8.22];
O indivíduo é capaz de conhecer, ver e aproximar-se de Kṛṣṇa de
verdade por meio da bhakti que não tem nenhum outro objeto [11.54];
Até mesmo uma pessoa de comportamento muito ruim pode ser
completamente corrigida por adorar a Kṛṣṇa sem nenhum outro
objeto [9.30];
Kṛṣṇa em pessoa salva do oceano material aqueles devotados a
Ele com o yoga que não tem absolutamente nenhum outro objeto
[12.6];
Conhecimento verdadeiro implica bhakti indesviável
acompanhada de yoga que não tem nenhum outro objeto [13.11].
Deveríamos notar nessas passagens que não se trata de modo
algum de um estado mental sectário, já que tudo existe em Kṛṣṇa, e
Kṛṣṇa existe em tudo [6.30] – e já que, num sentido, Kṛṣṇa é tudo
[7.19, 11.40]. O ponto é evidente: Kṛṣṇa contém tudo o que existe, e
devoção amorosa pura a Kṛṣṇa inclui os benefícios de todos os
outros processos espirituais.
Assim, como nosso amigo benquerente [5.29], Kṛṣṇa nos incita a
nos devotarmos a Ele [9.34, 9.33, 18.65]. Kṛṣṇa garante a Arjuna que
a batalha já está ganha por intermédio de Sua graça e que ele deveria
simplesmente ser o instrumento do Senhor [11.33].
A história mostra que, em nome de Deus, muitas pessoas
prejudicaram os outros, assim como a própria Terra. Será que os
ensinamentos da Gītā abrem margem teológica para o indivíduo
prejudicar seres inocentes em nome de Kṛṣṇa? Felizmente, não!

Compaixão para com Todos os Seres 


À medida que devotamos nossas ações a Deus, o gosto superior
da devoção gradualmente nos desprende dos modos da natureza.
Um sintoma essencial de progresso nesse caminho é a preocupação
real com todas as criaturas de Deus. Embora à parte de assuntos
mundanos, o devoto de Kṛṣṇa importa-se muito com o bem-estar
último de todas as almas.
Kṛṣṇa afirma duas vezes que quem está deveras devotado a Ele
também está dedicado ao bem-estar de todos os seres [5.25, 12.4]. A
alma sábia não é um mero humanista, senão que é um amigo
misericordioso para com todos [12.13].
Kṛṣṇa fala de Si mesmo como Pai e Mãe do mundo [9.17, 14.4].
Assim como os pais amam seus filhos por igual, a despeito dos
diferentes graus de talento material, Kṛṣṇa é igual para com todas as
almas [9.29, 13.28] – e espera que Seus devotos também o sejam
[18.54]. Essa igualdade implica benevolência e beneficência
universais, desejando e fazendo o bem a todos. Afinal, o próprio
Kṛṣṇa é gentil para com todos os seres [5.29], vendo a igualdade
última de todas as almas [5.18, 18.54].
O devoto de Kṛṣṇa não perturba os outros [12.15] e não odeia
nenhum ser [11.55, 12.13]. Tanto sabedoria quanto austeridade
requerem ahiṁsā, nunca ferir ou prejudicar [13.8, 17.14]. Só aqueles
situados nos modos mais obscuros da natureza ocupam-se em atos
prejudiciais e violentos [18.25, 18.27].
Devemos ter em mente aqui que a palavra sânscrita ahiṁsā refere-
se especificamente a não causar danos de maneira maliciosa. Desse
modo, ao ratificar ahiṁsā, Kṛṣṇa não enaltece hipocritamente não
violência por um lado e, por outro, incita Arjuna a lutar contra não
combatentes inocentes. Em vez disso, Ele e Arjuna, juntos, estão
restaurando justiça para o mundo e protegendo os inocentes [2.31-
33].
Pessoas demoníacas, entretanto, executam atos horríveis contra o
bem-estar do mundo [16.9]. Aqueles situados em escuridão
submetem-se a austeridades para derrotar e arruinar os outros
[17.19]. Verdadeira espiritualidade implica misericórdia para com
todos os seres [16.2]. Kṛṣṇa pessoalmente vem a este mundo para
defender e reviver a justiça (dharma) e salvar os virtuosos [4.8].
A seguir, exploramos bhakti-yoga como a forma mais elevada de
yajña (fazer oferendas à nossa fonte divina), que é, em si mesma, a
única maneira de escapar do cativeiro do karma [3.9].

A Oferenda de Amor Puro


Yajña (oferenda) inspira todos os yogas, ou caminhos espirituais,
da Gītā. Como o yoga mais elevado, bhakti-yoga naturalmente
constitui a oferenda suprema. Vou explicar.
Melhor do que mera oferenda de bens materiais é a oferenda da
própria mente aberta à verdade espiritual: a oferenda do
conhecimento (jñāna-yajña) [4.33]. Realiza-se essa oferenda do
conhecimento mediante aprendizagem com os sábios [4.34], e o
conhecimento assim adquirido é de que todos os seres existem
dentro da Alma Suprema: Kṛṣṇa [4.35].
Somos partes eternas de Kṛṣṇa [15.7] e, desse modo, nutrimos
nossa própria existência por fazermos oferenda a Ele [15.7]. A parte
naturalmente serve o todo, assim como a mão, parte do corpo,
naturalmente se alimenta por fornecer comida ao estômago. Da
mesma forma, regamos a árvore inteira por regarmos sua raiz, e
Kṛṣṇa é a raiz de toda a existência. Assim, por servir Kṛṣṇa, servimos
melhor a nós mesmos e todas as almas – ou, por nutrir nossa ligação
eterna (yoga) com Deus, nutrimos melhor a nós mesmos e todas as
almas.[10]
Alcançamos, desse modo, a verdade mais elevada por
oferecermos mente e razão a Kṛṣṇa [8.7, 12.14], pois mente e razão,
em última análise, são a própria energia de Kṛṣṇa [7.4]. Mais uma
vez, isso não significa que perdemos nossa mente e razão; ao
contrário, significa que as purificamos e iluminamos. Entender
oferenda espiritual é saber que tudo que oferecemos volta para nós
sublimado e imortalizado, conduzindo-nos ao Absoluto [4.30]. Kṛṣṇa
é a fonte de tudo [10.8], o Ser Supremo sobre quem o Universo é
tecido [7.8].
A ligação íntima entre as formas mais elevadas de yoga e yajña
claramente emergem em dois versos muito semelhantes, em que
Kṛṣṇa diz: “Sê consciente de Mim, devotado a Mim, faze oferendas a
Mim, reverencia-Me; por conectar assim tua alma, devotado por
inteiro a Mim, virás apenas a Mim. (...) Prometo realmente isso a ti,
pois Eu te amo” [9.34, 18.65]. E em outro verso, no qual Ele afirma:
“Aquele que faz oferenda a Mim, vem a Mim” [9.25].
Com efeito, alcança-se paz por saber que Kṛṣṇa é o desfrutador
[5.29]. Após descrever a futilidade da oferenda a deuses, que
concedem apenas recompensas temporárias [9.20-21], Kṛṣṇa afirma
que traz pessoalmente todas as dádivas necessárias para aqueles que
vão a Ele [9.22]; que quem faz oferendas a deuses está de fato
fazendo-as a Deus, mas de forma indireta e irregular [9.23]; e que, na
verdade, Ele é o desfrutador e senhor de todas as oferendas [9.24].
Karma-yoga, jñāna-yoga e dhyāna-yoga envolvem, respectivamente,
ocupar as próprias ações, estudos e meditação na prática espiritual
disciplinada. Em cada caminho, por oferecer sua prática ao Divino, a
pessoa completa o ciclo cósmico de receber e retribuir e, assim,
torna-se um bom cidadão cósmico, uma alma civilizada. Bhakti-yoga,
o caminho da oferenda de amor puro, inclui e envolve ações, estudos
e meditação, elevando-os ao seu grau espiritual último ao infundir
cada atividade com amor puro por Deus e todas as Suas criaturas.
Por transformar assim a própria vida numa oferenda espiritual
contínua, bhakti-yoga emerge como o mais elevado dos yogas
espiritualistas.
Kṛṣṇa descreve bhakti-yoga como uma oferenda espiritual de toda
a vida para a fonte da vida: “Tudo o que fizeres, tudo o que comeres,
tudo o que sacrificares ou deres em caridade, toda a austeridade a
que te submeteres, faze disso uma oferenda a Mim” [9.27]. Nesse
verso, a palavra oferenda traduz arpaṇa, o mesmo termo-chave que
Kṛṣṇa usou em 4.24 para descrever como yajña (oferenda)
espiritualiza aquele que oferece e tudo o que é oferecido. Desse
modo, em bhakti-yoga, o indivíduo oferece, e assim espiritualiza, toda
a sua vida, abrindo seu caminho para a mais elevada liberação em
Kṛṣṇa, como discutiremos na próxima seção. Por ora, eis aqui um
exemplo simples de como bhakti-yoga funciona na prática como uma
oferenda pura.
Inspirados pela afirmação de Kṛṣṇa de que Ele aceitará até mesmo
uma folha, uma flor, fruta ou água, se oferecido com bhakti
(devoção), passamos a oferecer uma maçã a Kṛṣṇa com uma simples
reverência e oração. Primeiro, vamos admitir que somos nós quem
está com fome, e não Kṛṣṇa – nós queremos a maçã. Contudo,
aprendemos na Bhagavad-gītā que a maçã, em última análise, não é
absolutamente uma maçã; é energia pura brevemente modelada na
forma de maçã, completa com sabor e nutrientes [13.20]. Essa
energia pura, agora aparecendo como uma maçã, emana de Kṛṣṇa
[10.8].
Pela análise convencional, sementes, terra, chuva e sol produzem
a macieira. Examinemos essa lista: Kṛṣṇa é a semente perpétua de
todas as criaturas, inclusive macieiras [7.10, 9.18, 10.39, 14.4]. A
semente precisa de solo, e a terra também vem de Kṛṣṇa [7.4]. Uma
semente no solo precisa de chuva, e Kṛṣṇa retém e lança a chuva
[9.19]. Agora só precisamos de sol, e isso também é Kṛṣṇa [7.8].
Você pode adivinhar o resto: o corpo que come a maçã também é
energia de Kṛṣṇa; nós, almas, meramente testemunhamos os
sentidos do corpo – tato e paladar – a interagir com o seu objeto, a
maçã [5.8-9]. As almas são a energia superior de Kṛṣṇa [7.5]. Assim,
Ele é a vida da nossa vida [7.9], pois somos partes Dele [15.7].
Ao considerar tudo o que foi exposto, oferecer a Kṛṣṇa o fruto do
nosso trabalho, neste caso, uma maçã, com uma reverência amigável
e uma palavra de gratidão e, desse modo, convidá-Lo para desfrutar
da maçã antes de nós, é o mínimo que podemos fazer. Devemos
distinguir yajña (oferenda) de dāna (caridade), ou dar a alguém
necessitado. Kṛṣṇa não precisa de nossa maçã, mas precisamos
purificar a nossa alma por aprendermos gratidão e devoção. Quanto
mais a nossa oferenda é deveras devotada, e não superficial ou
mecânica, mais avançamos espiritualmente.
Quando Kṛṣṇa aceita nossa oferenda, Seu poder espiritual
espiritualiza a maçã [4.24], transformando-a em yajña-śiṣṭa, um
remanescente de sacrifício [3.13, 4.30]. Ao comer a maçã,
espiritualizamos o nosso corpo e fazemos dele um aliado em nossa
jornada para a liberação. Ficamos livres de ofensas passadas (mau
karma) e atingimos verdadeira existência espiritual [4.30].
Devoção é a chave. Quando o nosso amor por Deus se fortalece
tanto que queremos que Kṛṣṇa desfrute da maçã mais do que nós
queremos desfrutá-la, nós estamos agindo como almas puras e
nossas ações não acumulam karma material. Agimos para Deus, e
não para nós mesmos. Comemos para manter nosso corpo saudável,
de modo que possamos servir Aquele que amamos. Esse devotado
amor ativo chama-se bhakti. A Gītā nos assegura que, quando agimos
para Deus (yajña), nosso karma dissolve-se inteiramente [4.23].
Esse mesmo princípio é válido para qualquer outro caminho
espiritual que Kṛṣṇa ensina. Um karma-yogī dedica sua vocação
natural a Kṛṣṇa. Porém, assim como, no início, o indivíduo oferece
piedosamente a maçã a Deus, no entanto a quer sobretudo para si
mesmo, da mesma maneira, no início, ele oferece piedosamente sua
vocação a Deus, mas está apegado sobretudo ao trabalho mundano
de professor, governante, proprietário ou operário. À medida que
cresce espiritualmente, sua devoção por Kṛṣṇa supera o apego à
carreira. Ele permanece na sua profissão, mas o apego transfere-se
para Deus. Da mesma forma, o estudante ou o filósofo piedosos aos
poucos aprendem a amar Kṛṣṇa ainda mais do que seu próprio
intelecto prodigioso, e o meditador supera o apego a visões místicas
e a poder sobre o corpo e apaixona-se por Kṛṣṇa.
Para concluir nossa analogia da maçã, plantar uma semente de
maçã, regá-la, colher as maçãs, limpá-las e cortá-las etc. – todos esses
atos elevam-se à plataforma espiritual quando os executamos com
devoção (bhakti), por vermos com clareza que fazem parte de nossa
oferenda amorosa a Deus. Devoção é nosso vínculo natural com
Deus, e, por oferecer-Lhe uma maçã ou qualquer outra posse
material, cumprimos o propósito último da matéria: servir à vontade
infinitamente benevolente de seu Criador.
Kṛṣṇa nos diz para oferecermos a Ele tudo o que fazemos. Essa é a
essência da vida espiritual em bhakti-yoga e na Gītā – a perfeição da
vida em si, pois somos partes eternas de Kṛṣṇa [15.7].
PARTE XII
Mukti (Liberação)

Liberação Negativa (Liberdade de)


Palavras como livre e liberdade têm um sentido tanto negativo
quanto positivo, com o negativo indicando que o indivíduo está livre
de restrição indesejada, controle, escravidão, subjugação, dominação
etc., e o positivo indicando que ele está livre para agir e viver como
deseja.
A Bhagavad-gītā fala amplamente sobre liberdade de e liberdade para,
pois a meta de Kṛṣṇa é libertar a alma. Primeiro, iremos considerar o
aspecto negativo da liberdade, e, depois, o positivo.
De modo geral, Kṛṣṇa fala de ser liberado [4.32, 18.71], ou
alegremente liberto do cativeiro [5.3], acrescentando que qualidades
divinas conduzem à liberação [16.5]. Mais especificamente, Kṛṣṇa fala
de ser liberado dos três modos da natureza [2.45, 14.20-26], e o termo
guṇātīta[1] é sinônimo de liberado.
A Gītā também ensina a libertar-se do apego [3.9, 4.23, 18.26] e das
qualidades negativas que o apego produz: luxúria e ira [5.26]; desejo,
medo e raiva [5.28]; ou os três portões de entrada para a escuridão –
luxúria, ira e cobiça [16.22].
Kṛṣṇa fala sobre libertar-se de dualidades, tais como: apego e
aversão [2.65], ódio e anseio [5.3], exultação, intolerância, medo e
aflição [12.15], ou felicidade e tristeza [15.5].
Ele também fala, em geral, de ficar livre da dualidade (nirdva-
ndva) [2.45, 5.3], de ir além da dualidade (dvandvātīta) [4.22] e de ficar
livre da ilusão da dualidade (dvandva-moha) [7.28].
Kṛṣṇa fala de ficar livre de todo infortúnio (aśubha) e de todos os
pecados ou ofensas [3.13, 10.3], e Ele pessoalmente liberta de todos
os pecados aqueles que vão apenas a Ele em busca de refúgio [18.66].
A Gītā fala sobre libertar-se do cativeiro do karma [2.39, 3.21, 4.14],
que se manifesta como os inevitáveis frutos, ou consequências, de
nossas ações mundanas [9.28]. Assim, pode-se agir neste mundo sem
reação aprisionadora [4.22] e atingir perfeita liberdade do karma
[18.49].
É o karma que nos obriga a nascer e morrer repetidas vezes neste
mundo. Então, ficar livre do karma é libertar-se do ciclo de
nascimentos e mortes. Já que renascimento implica repetição da
morte, Kṛṣṇa abrevia ao falar algumas vezes de libertar-se do
nascimento e, outras vezes, de libertar-se da morte.
Assim, por um lado, Kṛṣṇa descreve liberação como não-
renascimento [4.9, 8.15, 8.16] e a pessoa liberada como aquela que não
renasce [13.24] ou que está livre do cativeiro de nascimento [2.51]. Ele
também fala de espiritualistas bem-sucedidos como aqueles que vão
ao não-retorno [5.17, 8.26].
Mais uma vez, no entanto, Kṛṣṇa fala daquele que se qualifica para a
imortalidade [2.15] e daqueles que, por meio de vários caminhos
espirituais, sobrepujam a morte [13.26], que, com sucesso, buscam
libertação da velhice e da morte [7.29] e que estão livres de misérias
subjacentes a nascimento, morte e velhice [14.20].
Deveríamos ter claro em mente que todas essas coisas das quais
ganharemos liberdade – os problemas do cativeiro, três modos da
natureza, apego, ira, luxúria, cobiça, dualidades, infortúnio, pecado,
karma, nascimento, velhice e morte – não passam de diferentes
facetas de uma única condição, que pode ser chamada de ilusão.
Assim, estar totalmente livre dos modos da natureza é estar livre de
dualidades, que é estar livre de apegos, que é estar livre de ação
cármica aprisionadora, que é estar livre de nascimento, morte,
renascimento e, de novo, morte.
Esse, então, é o aspecto negativo da liberdade – liberdade de. O
que a Gītā nos ensina sobre o lado positivo da liberação? Para que
estado mais desejável a liberação espiritual conduz?

Liberação Positiva (Liberdade para)


Verdadeira liberdade implica em liberdade positiva para fazer
tudo o que é digno, valioso e benéfico para nós e para aqueles que
amamos. Como veremos, liberação é um estado de espírito, um tipo
de ação e um lugar.
• Paz (Śānti)
Começamos esta análise de metas e recompensas positivas da
liberdade, de acordo com a Gītā, com uma qualidade que todos
podemos apreciar: śānti (paz), estar livre de perturbação indesejada,
dor, frustração, tristeza etc. Aqui, como em outros estados e
qualidades positivos, Kṛṣṇa descreverá uma versão virtuosa porém
mundana, bem como uma outra mais espiritual, da mesma
qualidade.
Kṛṣṇa faz algumas observações de bom senso sobre paz:
Sem paz, onde está a felicidade? [2.66];
Quem não se perturba por desejos egoístas que adentram a mente
alcança paz [2.70];
Aquele que abandona possessividade e egotismo atinge paz [2.71];
Paz advém da abdicação [12.12].
Kṛṣṇa também fala de paz deveras espiritual, alcançada num
estado iluminado:
Ao obter conhecimento, o indivíduo logo alcança paz suprema
[4.38];
Ao abandonar os frutos da ação, um praticante conectado alcança
paz definitiva [5.12];
Por conhecer Kṛṣṇa, encontra-se a paz [5.29];
O yogī, por sempre conectar o eu, atinge o nirvāṇa da paz mais
elevada, que reside em Mim [6.15];
Uma alma virtuosa e devota, retificada da má conduta, alcança
paz perpétua, pois Meu devoto jamais perece [9.31];
Śānti (paz) é parte da natureza divina [16.2];
Aquele que vai apenas a Kṛṣṇa em busca de refúgio, rapidamente
alcança paz suprema pela graça de Kṛṣṇa [18.62].
• Graça (Pras āda)
Relacionado com śānti (paz) está um estado de espírito sublime
chamado prasāda, que, na Gītā, significa uma serena clareza de
espírito que deixa o indivíduo num estado de graça. Aqui também,
encontramos tanto um uso básico quanto mais aprofundado dessa
palavra.
Kṛṣṇa introduz o termo no segundo capítulo, onde Ele afirma que
uma alma consumada e autocontrolada atinge prasāda: clareza serena
e graça [2.64]. Nesse estado de prasāda, todas as misérias diminuem,
e a razão (buddhi) logo se estabiliza [2.65]. Ademais, prasāda da mente
– mantê-la clara, serena e em graça – é uma austeridade mental
[17.16], uma vez que a mente costuma procurar de modo irracional
estados mais passionais. E felicidade no modo material da bondade
surge da clareza serena (prasāda) do eu e da razão [18.37]. Assim,
prasāda fortalece buddhi, e essa razão serena produz felicidade
virtuosa.
Junto com o substantivo prasāda, Kṛṣṇa usa o adjetivo prasa-nna, o
qual descreve o indivíduo num estado de graça ou clareza, e pode
também indicar um estado de benevolência ou gentileza para com os
demais. Assim, Kṛṣṇa descreve a Si mesmo como prasanna,
benevolamente disposto, para com Arjuna e, desse modo, inclinado
a mostrar-lhe a forma pessoal do Senhor [11.47]. Além disso, uma
alma que alcançou brahman, existência espiritual, torna-se uma alma-
prasanna – imersa em graça iluminante e apaziguadora, sem nada
pelo que ansiar ou lamentar [18.54].
• Sucesso, perfeição (siddhi)

Kṛṣṇa muitas vezes usa a palavra siddhi, que significa sucesso,


realização plena, e até mesmo perfeição e beatitude espiritual. Kṛṣṇa
também usa a forma sam-siddhi, acrescentando a siddhi o sufixo sam,
que aqui significa plenamente, intensamente, completamente. Assim, a
palavra saṁsiddhi enfaticamente significa pleno sucesso, completa
perfeição etc.
Kṛṣṇa decerto sabe que algumas pessoas realmente aspiram à
perfeição espiritual, ao passo que outras buscam só um tipo de
autoaprimoramento mundano. A palavra siddhi pode aplicar-se a
ambas, uma vez que atingir metas virtuosas e mundanas também é
uma forma de siddhi.
Assim, aqueles que buscam siddhi, sucesso em suas ações
mundanas, fazem oferendas aos deuses e rapidamente recebem o
siddhi que buscam: prosperidade material [4.12]. Em geral, deve-se
prestar atenção ao lugar, agente, instrumento, esforço e providência
para atingir siddhi, sucesso em qualquer ação, seja própria ou
imprópria [18.14-15].
A palavra siddhi também pode referir-se aos poderes místicos que
se obtêm através da prática avançada do yoga. Nesse sentido, a
palavra siddha, com o sentido de aperfeiçoado ou consumado, pode-se
aplicar a yogīs, sábios ou seres celestiais que aperfeiçoam estes ou
outros poderes superiores. Assim, nos versos identidade do capítulo
dez, Kṛṣṇa diz que, dentre siddhas, seres aperfeiçoados, Ele é Kapila,
o sábio divino [10.26].
Dentro da forma cósmica de Kṛṣṇa, Arjuna vê sociedades de
sábios grandiosos e siddhas (seres aperfeiçoados) entrarem na forma
do Senhor que tudo devora [11.21]; todos os siddhas celestiais olham
atônitos para o Senhor [11.22]; e todas as sociedades consumadas
(siddha) curvam-se ante o Senhor ao ouvirem Suas glórias [11.36].
Kṛṣṇa ensina o melhor conhecimento, cientes do qual todos os
sábios grandiosos alcançaram a perfeição mais elevada (siddhi) [14.1].
Mediante completo desapego, autocontrole e renúncia, alcança-se
a perfeição (siddhi) de ficar livre do karma [18.49]. Kṛṣṇa explica como
se alcança essa perfeição: em última análise, é preciso devotar-se a
Kṛṣṇa [18.50-54].
Kṛṣṇa nos adverte, entretanto, que nem todos que buscam ou
alcançam uma perfeição específica podem compreendê-Lo. Com
efeito, dentre milhares de seres humanos, talvez um busque de fato a
perfeição (siddhi), e, daqueles que se esforçam e atingem a perfeição
que elegeram como preferida, só uma alma rara entenderá Kṛṣṇa de
verdade [7.3].
Ele dá estes exemplos de siddhi espiritual:
Kṛṣṇa ensina que cada membro da sociedade pode alcançar plena
perfeição (saṁsiddhi) por executar seus respectivos deveres num
humor de adoração ao Senhor [18.45-46]. O rei Janaka e outros
governantes santos alcançaram plena perfeição (saṁsiddhi)
precisamente desta maneira, apenas por executarem seus deveres
em karma-yoga [3.20].
O indivíduo plenamente aperfeiçoado em yoga (yoga-saṁ-siddhi)
descobre a sabedoria mais purificante [4.38].
Kṛṣṇa explica como yogīs sinceros atingem plena perfeição
(saṁsiddhi), mesmo que isso leve várias vidas [6.40-45], e o estágio
mais elevado de semelhante yoga bem-sucedido é adorar Kṛṣṇa
[6.47].
Por executar suas ações para Kṛṣṇa, o indivíduo atinge a perfeição
(siddhi) [12.10].
Um alerta: aquele que rejeita textos sagrados de sabedoria como a
Bhagavad-gītā não pode atingir a perfeição (siddhi) [16.23], senão que
permanece emaranhado nos modos da natureza [17.1-2].
• Purificação (Śuddhi, Pavitra)
Kṛṣṇa nos ensina a praticar yoga para autopurificação [5.11, 6.12],
pois uma alma purificada, através de perfeita empatia, torna-se a
própria alma de todos os seres, e não é maculada por ações [5.7].
Viver com pureza é um bem divino [16.3], e manter uma vida pura
requer disciplina mental ou austeridade [17.16]. Um yogī alcança
pleno sucesso só quando está totalmente purificado de pecados
[6.45]. Também é necessário razão purificada para alcançar vida
espiritual verdadeira [18.51].
Em todos os versos acima, Kṛṣṇa usa várias formas do verbo śudh,
“purificar ou ser purificado”, tais como: śuddhi (purificação ou
pureza), saṁśuddhi (plena purificação ou pureza), viśuddha
(purificado) etc.
A Gītā também usa quatro vezes a palavra pavitram (purificador)
da seguinte forma:
Não há purificador como o conhecimento espiritual [4.38]. Assim,
os ensinamentos de Kṛṣṇa são o purificador último [9.2]. Kṛṣṇa é o
próprio purificador [9.17], pois Ele é o conhecimento [13.18] e a fonte
do conhecimento [15.15]. De fato, como afirma Arjuna, Kṛṣṇa é o
purificador supremo [10.12].
Purificar é remover impurezas, isto é, remover tudo o que é
estranho, prejudicial, degradante, contaminante ou censurável. A
própria noção de purificar um objeto indica que esse possui um
estado puro e recuperável.
Assim, falar de purificar a alma é indicar que ela tem uma
natureza original pura. Liberação espiritual, portanto, é libertar a
alma de tudo que não é o eu puro.
Kṛṣṇa também explica isso de outra forma: luxúria e ira cobrem a
alma, assim como a fumaça cobre o fogo, a poeira cobre um espelho
ou o ventre cobre o embrião [3.37-38]. Desse modo, nosso inimigo
perpétuo, a luxúria, cobre nossa consciência [3.39]. Luxúria, ou desejo
egoísta, infecta os nossos sentidos, mente e razão, confundindo-nos
por cobrir nossa consciência [3.40].
Da mesma forma, ignorância (não conhecimento, em sânscrito),
cobre nosso conhecimento e nos confunde [5.15]. Kṛṣṇa oculta ou cobre
a Si mesmo de nossa visão por meio de yoga-māyā, Seu poder de
ilusão mística, em consequência do que não O reconhecemos [7.25].
Quando somos descuidados, equivocados ou loucos, a escuridão
cobre nosso conhecimento [14.9]. E a razão espiritual obscurece
quando está coberta pelo modo da natureza da escuridão [18.32].
Essas muitas referências ao conhecimento coberto correspondem à
imagem de purificação. Todos possuímos conhecimento perfeito
sobre Deus; precisamos simplesmente o descobrir, desvelar. Fazemos
isso ao purificar nossa existência através de prática espiritual (yoga),
removendo de nossas mentes e corações tudo o que não é verdadeiro
e puro. O que resta é a consciência imaculada e cristalina da
realidade: as almas, a natureza e Deus.
Quando descobrimos quem realmente somos, naturalmente
descobrimos nosso lar verdadeiro. Como seres eternos, temos uma
morada eterna, conforme explicado em toda a Bhagavad-gītā. Porém,
o que é esse lar perpétuo? Como a Bhagavad-gītā o descreve?
Brahman, o Imperecível Supremo
Na Bhagavad-gītā, Kṛṣṇa ensina que brahman (espírito), o
imperecível supremo, é tanto um destino espiritual quanto um
estado espiritual de existência para almas; brahman é eterno e
pessoal, sua natureza sendo o Eu Superior [8.3]. Esse é o significado
primário de brahman na Gītā, mas vamos rever rapidamente outros
significados. Kṛṣṇa por duas vezes chama a totalidade da energia
material de brahman [14.3-4][2], uma vez que Ele é sua fonte [10.8] e
ela é Sua natureza separada [7.4]. Kṛṣṇa também Se refere à escritura
védica como brahman [3.15, 6.44] – um uso normal, se não primário,
dessa palavra. E, por duas vezes, Ele chama de brahman a sagrada
sílaba Om [8.13, 17.23].
Kṛṣṇa, entretanto, usa principalmente o termo brahman em seu
sentido mais célebre e importante, como encontrado na seção sobre
conhecimento dos Vedas, as Upaniṣads[3]. Lá, brahman refere-se,
sobretudo, à existência pura e eterna compartilhada por Deus e pelas
almas.
Por mais de um milênio, teólogos indianos sofisticados têm
argumentado e especulado sobre o significado preciso de brahman
nas Upaniṣads, assim como estudiosos e místicos ocidentais ao longo
dos últimos séculos. Alguns têm afirmado que um brahman monista
impessoal é a verdade mais elevada, no qual almas liberadas se
fundem, desprendendo-se de sua identidade individual e
personalidade. E já que Kṛṣṇa fala de brahman na Gītā, alguns têm
argumentado que Ele defende esse tipo de liberação impessoal na
unidade absoluta. Entretanto, uma análise cuidadosa do que a Gītā
realmente diz sobre brahman fornece um quadro muito diferente.
Vamos começar.
Brahman, existência espiritual, situa-se acima dos três modos da
natureza [14.26], além da morte [4.30, 7.29, 13.13, 14.27]. Ademais,
ele traz prazer espiritual ilimitado e primoroso. Assim, pleno contato
com brahman traz alegremente felicidade infindável [6.28] e prazer
sem limites. No entanto, para encontrar esse prazer interior
interminável, o indivíduo ocupado em brahma-yoga não deve aferrar-
se a contatos externos [5.21], produzidos pelo contato dos sentidos
com seus objetos. E, para saborear esse prazer imperecível, é preciso
também saber que brahman é subordinado a Kṛṣṇa [13.13], pois Ele é
o Brahman Supremo [10.12], a base do brahman imortal e
imperecível, e a fonte do prazer absoluto [14.27].
Kṛṣṇa ainda declara que se compreende brahman plenamente por
refugiar-se Nele [7.29]. Ao ouvir isso, Arjuna de imediato pergunta:
“O que é esse brahman?” [8.1]. Kṛṣṇa responde que brahman é o
imperecível supremo, e sua natureza é o Eu Superior [8.3]. Outra vez,
brahman não é impessoal, pois sua natureza é um eu individual.
Kṛṣṇa declara duas vezes que uma alma pode qualificar-se para a
existência brahman ou partilhar dela (brahma bhūyāya kalpate). Em
ambos os casos, a alma atinge brahman não por declarar-se Deus,
mas, sim, por devoção a Deus, Kṛṣṇa, que é tanto a base de brahman
[14.27] quanto o próprio Brahman Supremo.
Eis aqui dois casos: aquele que serve o Senhor com bhakti-yoga
indesviável transcende por completo os modos da natureza e, assim,
qualifica-se para a existência brahman [14.26]; da mesma forma,
aquele que pratica assiduamente vida espiritual qualifica-se para a
existência brahman e alcança devoção suprema a Kṛṣṇa nesse estado
brahman [18.54].
Por três vezes, Kṛṣṇa descreve uma alma que passou a existir
como brahman (brahma-bhūta): um yogī com felicidade interior, deleite
interior e verdadeira luz interior existe como brahman [5.24]. Até
mesmo esse yogī, no entanto, alcança paz por constatar que Deus é o
magnífico senhor de todos os mundos e o amigo querido de todos os
seres [5.29]. Felicidade última advém para um yogī impecável de
mente serena e paixão aquietada, que passou a existir como brahman
[6.27]. Esse processo leva a ver Kṛṣṇa em todos os seres e todos os
seres em Kṛṣṇa [6.29-31], pois yoga culmina em devoção a Kṛṣṇa
[6.47]. De fato, o yogī brahma-bhūta é aquele que encontra prazer e
luz internamente, e é o próprio Kṛṣṇa que reside dentro do coração
do yogī [6.47, 15.15, 18.61].
Por último, aquele que passou a existir como brahman é igual para
com todos os seres e alcança devoção suprema a Kṛṣṇa [18.54].
Assim, devoção a Kṛṣṇa não é um degrau para a fusão numa
realidade impessoal. Em vez disso, é precisamente na plataforma
brahman que, enfim, alcança-se amor puro por Deus.
Por cinco vezes, Kṛṣṇa apresenta nirvāṇa como uma meta
espiritual, e os quatro primeiros casos qualificam-na como brahma-
nirvāṇa. O termo sânscrito nirvāṇa é gramaticalmente negativo, já
que nir-vāṇa significa “sem vāṇa”. A palavra vāṇa, oriunda da raiz vā,
significa o soprar (do vento, maré ou fogo). Desse modo, nir-vāṇa, tanto
aqui como no budismo, tradicionalmente significa acabar com as
rajadas de desejo material e renascimento, extinguir o fogo do desejo
egoísta, parar com a maré de reencarnação etc. No sentido literal de
nirvāṇa, busca-se liberdade da indesejável maré de nascimento e
morte. A palavra nirvāṇa, por si só, não especifica um estado positivo
além de vāṇa. Assim, o termo brahma-nirvāṇa usado por Kṛṣṇa
acrescenta o elemento supremamente positivo brahman ao processo
eliminatório de nirvāṇa. Consciência positiva de brahman extingue o
fogo materialista, pois o indivíduo para (nir-) as ondas (vāṇa) de
renascimento e percebe o Brahman Absoluto. E conhecer o brahman é
viver em brahman [5.20]. Assim, ele não só fica livre da ilusão, mas
também livre para experimentar a felicidade mais elevada em
brahman.
Com certeza, se Kṛṣṇa quisesse descrever brahman como uma
meta impessoal, eis aqui a oportunidade, considerando o termo
impessoal brahma-nirvāṇa, que consiste de uma palavra neutra
(brahman) e um conceito privativo (nir-vāna). Aqui também, no
entanto, Kṛṣṇa não menciona nem um destino impessoal para a alma
nem a perda de identidade pessoal.
Ao contrário, brahma-nirvāṇa aparece três vezes no capítulo cinco
[5.24-26], o qual termina com uma sonora declaração da supremacia
pessoal de Kṛṣṇa sobre todos os mundos [5.29]. Brahma-nirvāṇa
também aparece no fim do capítulo dois [2.72], após Kṛṣṇa ter
ensinado explicitamente nesse mesmo capítulo que Ele próprio e
todas as almas existem eternamente como indivíduos [2.12]. Por
último, para deixar claro que nirvāṇa também existe dentro de Deus,
Kṛṣṇa afirma no capítulo seis que o nirvāṇa da paz mais elevada
existe solidamente dentro Dele [6.15]. Esse capítulo também termina
declarando a supremacia de bhakti-yoga [6.47], que repousa numa
relação pessoal amorosa entre a alma e Deus.
Kṛṣṇa enfatiza que quem atinge brahma-nirvāṇa extirpa a
dualidade preconceituosa e trabalha para o bem-estar de todos os
seres [5.25]. Assim, brahma-nirvāṇa aumenta compaixão e
sensibilidade pessoal ao invés de extingui-las. Afinal, ao ver a si
mesma como brahman individual, a pessoa vê todos os outros seres
igualmente como brahman, pois brahman é a verdadeira natureza
compartilhada de todos os seres. Brahma-nirvāṇa não é para aqueles
absortos em gostar ou desgostar dos corpos de outras pessoas. Em
vez disso, aquele que encontra felicidade interior, prazer interior, luz
interior, alcança brahma-nirvāṇa e, assim, existe como brahman
(espírito puro), mesmo neste mundo [5.24]. Corpos diferem; almas
são iguais. Desse modo, brahma-nirvāṇa revela e fomenta profunda
unidade entre todos os seres.
Kṛṣṇa enfatiza a equanimidade perfeita de brahman. Assim, acolher a
igualdade espiritual de todas as criaturas é situar-se em brahman
[5.19]. Da mesma forma, quem percebe que um estado de unidade
espiritual subjaz à natureza diversa de todas as criaturas, une-se com
o brahman expansivo [13.31]. Quem vive como brahman é igual para
com todos os seres e alcança devoção suprema a Kṛṣṇa, de quem
todos os seres são partes [18.54].
Kṛṣṇa fala três vezes de ir a brahman [4.24, 4.30, 8.24], duas vezes
de alcançar brahman [5.6, 18.50], e uma vez de situar-se em brahman
[5.20] e de avançar para brahman [13.31]. Nenhuma dessas descrições
revela explicitamente um destino impessoal ou monista para a alma.
Por duas vezes, Kṛṣṇa fala literalmente de unidade (ekatvam). Um
yogī que habita em unidade adora Kṛṣṇa, que está presente em todos
os seres [6.31]. Aqui, unidade não funde alma e Deus num só ser,
senão que promove a unidade de todos os seres precisamente
porque Deus está presente de forma igual em todos eles.
Os bhakti-yogīs sempre louvam o Senhor, empenhando-se com
votos sólidos, reverenciando e adorando a Deus [9.14]. Outros ainda,
por realizarem uma oferenda de conhecimento (jñāna-yajña), adoram
o Senhor quer na unidade, quer na separação, quer na forma múltipla
que está voltada para toda parte [9.15]. Aqui, unidade (ekatvam)
refere-se a uma das muitas opções para adorar a Deus, e não para
tornar-se Deus. De fato, todas essas opções se localizam dentro de
jñāna-yajña, que, por definição, é uma oferenda (yajña) de um inferior
a um superior. Assim, o verso 9.15 não defende nada parecido com
monismo, mas, sim, reafirma o dever da alma de adorar Deus.
Kṛṣṇa afirma em outra passagem que uma alma avança para
brahman (brahma sampadyate) por ver que os estados distintos dos
seres situam-se em unidade [13.31]; Kṛṣṇa também afirma muitas vezes
que os seres situam-se dentro Dele [6.29, 6.30, 9.4, 9.6]. Mais uma vez,
fica claro que o Uno é Kṛṣṇa.

Alcançando Kṛṣṇa
Conforme explicado anteriormente, a Gītā fala de transcender a
morte [2.15, 13.26]; de ficar livre das misérias subjacentes a
nascimento, morte e velhice e desfrutar a imortalidade [14.20]; de
ficar livre do cativeiro de nascimento e ir a um lugar sem moléstia
[2.51]; de ir ao lugar de onde nunca se retorna [5.17], ou não-retorno
[8.26]; e de jamais renascer [13.24].
Embora tentadoras, essas opções espirituais ainda são um pouco
vagas. O que é a imortalidade? O que é o lugar sem moléstia, de onde
nunca se retorna etc.? Para responder a essas questões vitais, devemos
nos voltar para um conjunto especial de versos da Gītā que não só
prometem o libertar-se da morte e da moléstia, mas que também
falam mais especificamente sobre a vida eterna. Esses versos
descrevem a viagem da alma rumo ao próprio Kṛṣṇa:
Aquele que compreende o nascimento e a ação divinos de Kṛṣṇa
não renasce, senão que vai a Kṛṣṇa [4.9];
Por esforçarem-se pelo libertar-se de velhice e morte, as almas
refugiam-se em Kṛṣṇa [7.29];
Ao alcançar Kṛṣṇa, o indivíduo não renasce neste triste mundo
temporário, pois ele foi à perfeição suprema e completa [8.15];
Ao alcançar Kṛṣṇa, não há mais nascimento [8.16];
Ao alcançar a morada suprema de Kṛṣṇa, eles nunca retornam
[8.21];
Ao ir àquele lugar da Pessoa Original, eles jamais retornam [15.4];
Ao ir à morada suprema de Kṛṣṇa, eles não retornam [15.6].
Nesses versos, a Gītā fala de ir a Kṛṣṇa, ao lugar onde Ele mora, à
Sua morada suprema. Consideraremos agora com maiores detalhes
a linguagem usada para descrever a viagem da alma rumo a Kṛṣṇa e
Sua morada.
• Padam

A palavra sânscrita padam pode significar lugar, local, morada ou


casa. Essa palavra aparece pela primeira vez na Gītā quando Kṛṣṇa
diz que aqueles que estão libertos do cativeiro de nascimento vão ao
lugar sem moléstia [2.51].
Mais adiante, Kṛṣṇa esclarece que esse padam, ou lugar, é Sua
morada: deve-se buscar aquele lugar, indo ao qual eles jamais
retornam; lá, o indivíduo se entrega à Pessoa Original [15.4]. Almas
purificadas e liberadas vão àquele lugar imperecível; o Sol não o
ilumina, nem a Lua, nem o fogo. Ao ir para lá, eles jamais retornam,
pois essa é a morada suprema de Kṛṣṇa [15.6].
Perto do fim da Gītā, Kṛṣṇa fala uma última vez desse padam, que
é Sua morada suprema: aqueles que especificamente se refugiam em
Kṛṣṇa alcançam, por Sua misericórdia, esse lugar perpétuo e
imperecível [18.56].
• Sthānam
O termo sânscrito sthāna (como o português estar, estado, status,
estação etc.) pode significar um estado de existência contínuo, um lugar
de permanência – e, desse modo, lugar, localidade, morada, residência etc.
Kṛṣṇa ensina que o yogī que parte com sucesso deste mundo
alcança o sthāna, ou lugar, supremo original [8.28]. Mais adiante, Kṛṣṇa
ordena que nos refugiemos Nele apenas, pois assim, por Sua
misericórdia, alcançaremos o sthāna perpétuo [18.62] – isto é, Sua
morada.
• Param āṁ gatim

Kṛṣṇa fala cinco vezes do destino supremo[4] (parā ou paramām


gatim) e deixa bem claro que se chega lá mediante devoção a Kṛṣṇa,
pois aquele destino supremo é Sua morada:
Por lembrar-se constantemente de Kṛṣṇa enquanto deixa o corpo,
o indivíduo vai àquele destino supremo [8.13];
Além desta natureza, há outra natureza, que é eterna. Quando
todas as criaturas estão perecendo aqui, aquele mundo superior não
perece. Chamam-no de destino supremo. Ao alcançá-lo, eles jamais
retornam, pois é a suprema morada de Kṛṣṇa [8.20-21];
Quem quer que se abrigue em Kṛṣṇa vai ao destino supremo [9.32];
Por ver o Senhor igualmente situado em toda parte, o indivíduo
não se prejudica e vai ao destino supremo [13.29];
Livre de luxúria, ira e cobiça, os três portões de entrada para a
escuridão, o indivíduo se ajuda e vai ao destino supremo [16.22].
A essa altura, sabemos o que é esse lugar.
• Dh āma
O sentido primário da palavra sânscrita dhāma é lugar de residência,
casa, morada, domicílio. Kṛṣṇa e Arjuna, por duas vezes cada, usam
dhāma de maneiras interessantes.
Kṛṣṇa por duas vezes refere-Se a “aquela Minha morada suprema”
da seguinte maneira (e como vimos acima):
“Ainda superior a esse imanifesto encontra-se outro imanifesto
eterno, o qual não perece quando todos os seres estão
desaparecendo. Chamam esse imanifesto imperecível de caminho
mais elevado, alcançando o qual eles não retornam; pois essa é Minha
morada suprema” [8.20-21].
“O Sol não a ilumina, nem a Lua, nem o fogo. Após irem para lá,
eles jamais retornam. Essa é Minha morada suprema” [15.6].
Vemos que a morada suprema de Kṛṣṇa é autoluminosa e tão
atrativa que, uma vez alcançando-a, “eles jamais retornam”.
Arjuna fala por duas vezes da morada suprema de Kṛṣṇa e, em
ambas as ocasiões, declara que Kṛṣṇa é a morada suprema [10.12,
11.38]! Consoante com a afirmação de Arjuna, Kṛṣṇa, então, diz a ele:
“Fixa tua mente apenas em Mim, investe tua razão em Mim.
Doravante, residirás apenas em Mim, sem dúvida” [12.8]. Assim, a
morada de Kṛṣṇa é uma extensão espiritual do Supremo. Conhecer e
amar Kṛṣṇa é residir em Kṛṣṇa. A Gītā afirma a natureza
profundamente pessoal de Deus e da liberação. Aqueles que
reciprocam o próprio amor puro de Kṛṣṇa por eles vão à morada
eterna, que é seu lar verdadeiro.
Assim como pais amorosos anseiam que o filho desobediente
volte para casa, Kṛṣṇa deixa claro que Seu próprio mundo eterno nos
aguarda. É notável que, pelo menos dezesseis vezes, Ele esclarece
explicitamente como a alma, que é parte de Kṛṣṇa, pode “vir a
Mim”, “alcançar-Me” etc.[5] De fato, Kṛṣṇa nos assegura que, se
apenas nos lembrarmos sempre Dele e sempre nos ocuparmos em
devoção, poderemos facilmente alcançá-Lo [8.14].
No início da Bhagavad-gītā, Arjuna tentou, mas não conseguiu,
resolver seus problemas profundos. Ele, então, aceitou Kṛṣṇa como
seu mestre e declarou ao Senhor: “Sou Teu discípulo; ensina-me,
pois estou entregue a Ti” [2.7].
A palavra entregue (prapanna) vem da raiz pra-pad, que,
literalmente, significa ir para frente ou aproximar-se. Na literatura
devocional sânscrita, como a Bhagavad-gītā, este verbo pra-pad
costuma significar aproximar-se em busca de refúgio – e, nesse sentido,
submeter-se, entregar-se ou devotar-se.
Ao usar esse mesmo verbo, Kṛṣṇa explica o seguinte:
Ele reciproca imparcialmente com todos os seres da mesma
maneira que eles se aproximam (pra-pad) Dele [4.11];
Aqueles cujo conhecimento é roubado por muitos desejos
materiais aproximam-se (pra-pad) de outras deidades [7.14], no
sentido de deuses, e não Deus;
Aqueles que se submetem (pra-pad) a escrituras que oferecem
recompensas mundanas permanecem enredados na mortalidade
[9.21];
A divina energia ilusória de Kṛṣṇa (māyā) é difícil de superar, mas
aqueles que se aproximam (pra-pad) de Kṛṣṇa atravessam-na [7.14];
Após muitos nascimentos, aquele que tem conhecimento entrega-
se (pra-pad) a Kṛṣṇa, ciente de que Ele é tudo [7.19];
O indivíduo deveria buscar pelo lugar onde Se encontra a Pessoa
Original e, então, entregar-se (pra-pad) a Ele [15.4].
Evidentemente, fazer tudo isso requer fé. Vamos, portanto,
analisar as palavras sânscritas equivalentes a fé. Da palavra asti, “ele,
ela ou isso existe”, vem a palavra āstikya, fé que Deus existe [18.42].
Contudo, para indicar fé, Kṛṣṇa quase invariavelmente usa a palavra
śraddhā, que indica não só um estado mental de crença, mas também
um ato dinâmico de o indivíduo depositar sua confiança.[6] Vejamos
como Kṛṣṇa usa essa palavra:
Aqueles que sempre seguem o ensinamento de Kṛṣṇa com fé
(śraddhā) estão libertos de todo o karma [3.31];
Aqueles que têm fé (śraddhā) logram o conhecimento [4.39];
Os melhores yogīs adoram Kṛṣṇa com fé (śraddhā) [6.47];
Superiores a místicos impersonalistas são aqueles que adoram
Kṛṣṇa com fé (śraddhā) transcendental [12.2];
Aqueles que honram os ensinamentos imortais de Kṛṣṇa,
depositando neles sua fé (śraddhā), são extremamente queridos a
Kṛṣṇa [12.20];
Fé (śraddhā) surge em todos, e aqueles que não aceitam
ensinamentos sagrados desenvolverão fé segundo os três modos da
natureza e, assim, determinarão sua existência materialmente [17.1-
3];
Uma pessoa disposta a ouvir a Bhagavad-gītā com fé (śraddhā), e
sem inveja, pode alcançar os belos mundos daqueles que executam
feitos sagrados [18.71];
Por outro lado, uma pessoa incrédula e ignorante, uma alma cheia
de dúvidas, está perdida neste mundo e no próximo, e não alcança
felicidade verdadeira [4.40];
Aqueles que não creem no caminho da Gītā não alcançam Kṛṣṇa.
Eles retornam ao caminho da perambulação na morte [9.3] – isto é, o
mundo de repetidos nascimentos e mortes;
Declara-se estar em escuridão uma oferenda executada sem fé
[17.13];
Afirma-se que, sem fé, tudo o que é oferecido, dado ou executado
como austeridade é irreal, agora e no porvir [17.28].
• Mad-bh āva
No começo desta obra, expliquei que Deus e as almas são tanto
unos quanto diferentes, conforme claramente explicado na própria
linguagem da Gītā. Assim, Deus e as almas são ambos puruṣa
(pessoas), mas Kṛṣṇa é parama puruṣa (a Pessoa Suprema), u ama
puruṣa (a Pessoa Última) etc.
Kṛṣṇa é Deus. Ao longo da Gītā, no entanto, Ele revela Sua
unidade conosco por nos convidar a alcançarmos “Meu estado de
existência” (mad-bhāva) [4.10, 8.5, 13.9, 14.19].
Em dois versos muito importantes, Kṛṣṇa fala daqueles que não
entendem Seu estado de existência ou natureza superior (param
bhāvam).
Os irracionais, sem conhecer a natureza superior de Kṛṣṇa (param
bhāvam), que é imperecível e suprema, acreditam que um ser amorfo
assume uma forma pessoal visível [7.24].[7]
Da mesma maneira, sem conhecer a natureza superior de Kṛṣṇa
(param bhāvam), os tolos desdenham Dele enquanto Kṛṣṇa assume
uma forma semelhante à humana [9.11].
Kṛṣṇa descreve essa natureza superior, que os tolos e irracionais
não conseguem entender. Assim, quando Arjuna pede a Kṛṣṇa que
explique brahman (espírito) [8.1], Kṛṣṇa responde que brahman é o ser
imperecível supremo e que sua natureza é o Eu Superior [8.3]. Aqui
é importante notar que a palavra sânscrita usada para traduzir
natureza é bhāva. Kṛṣṇa especificamente diz que o Eu Superior é “a
natureza própria, ou pessoal” (sva-bhāva) de brahman.
Kṛṣṇa também diz que, além até mesmo da região mais sutil deste
mundo (o avyakta), encontra-se uma natureza eterna. Aqui também a
palavra equivalente a natureza é bhāva. Assim, não há dúvida de que
o param bhāva de Kṛṣṇa (natureza ou estado de existência superior) é
eterno – brahman ou existência espiritual. No entanto, Ele é pessoal,
como explicado elaboradamente nesta obra.
Ao falar de Sua forma em 9.11, Kṛṣṇa usa a palavra tanu. Essa
palavra não foi incluída antes na lista de palavras usadas na Gītā que
significam “corpo” porque tanu também significa pessoa ou eu.[8] A
palavra tanu é assim encontrada em 7.21, onde Kṛṣṇa afirma que
concede fé inabalável a quem quer que deseje adorar qualquer tanu.
Nesse contexto, tanu claramente refere-se à forma, personalidade ou
eu não de Deus, mas de um determinado deus.
Assim, quando Kṛṣṇa fala de tolos que zombam Dele quando
aparece para nós num tanu semelhante ao humano, não podemos
concluir automaticamente que Kṛṣṇa está descrevendo Seu próprio
corpo como uma forma material que cobre Seu verdadeiro Eu.
Afinal, o corpo de Kṛṣṇa é inconcebível [8.9]. Esse ponto geral foi
abordado em minha discussão sobre o corpo de Deus.
PARTE XIII
Conclusão
Comecei este ensaio ressaltando que a milenar Bhagavad-gītā é um
pequeno livro que condensa um poder espiritual imenso há
milênios. Contida na epopeia Mahā-bhārata e falada pelo próprio
Supremo Deus Kṛṣṇa, a Gītā nos eleva, de forma sistemática e
racional, das profundezas do desespero existencial para as alturas
brilhantes da bem-aventurança eterna.
A jornada começa com uma simples distinção que Kṛṣṇa inculca
em Seu perplexo e sofredor amigo Arjuna: “Tu e Eu sempre
existimos e sempre existiremos”. Deus criou um mundo material
efêmero, inclusive nossa Terra, onde almas assim inclinadas podem
tentar explorar a matéria tanto quanto queiram. Fazemos isso ao
entrar em corpos mortais, identificando-nos com esses corpos como
se fôssemos matéria e, em seguida, tentando no máximo de nossa
capacidade possuir o que gostamos e evitar o que não gostamos
dentre as ofertas fugazes da natureza.
Presos nessa dualidade mundana, esquecemos por inteiro nossa
identidade eterna. Assim como um homem vaidoso exulta quando
bem vestido, e lamenta quando mal vestido, agarramo-nos à nossa
cobertura corpórea como se fosse nosso eu e, assim, depositamos
nossas fortunas nas marés oscilantes de sucesso e prazer corpóreos.
Então, perambulamos pelo Universo, sob as leis do karma,
assumindo corpos superiores e inferiores de acordo com a virtude
ou malícia de nossos atos, e sofrendo repetidos nascimento, velhice,
doença e morte.
Presos na agonia e excitação desta festa a fantasia cósmica,
esquecemos que estamos todos usando máscaras materiais e que
nossa identidade real é incomensuravelmente maior que todos os
papéis mortais que desempenhamos com tanto orgulho.
Para nos despertar e resgatar, o Senhor Kṛṣṇa em pessoa vem a
este mundo e nos ensina. Esse ensinamento é a Bhagavad-gītā. O
Senhor Kṛṣṇa nos estimula a não nos aferrarmos à matéria, a nos
desapegarmos de modo que fiquemos livres para ascender à nossa
verdadeira vida espiritual. Para fazermos isso, precisamos ver que
todas as experiências materiais, quer agradáveis, quer
desagradáveis, não passam de produtos de três qualidades primárias,
ou modos, de vida: virtude (mundana), paixão e escuridão. Todas as
almas, e o Deus que as ama, existem além dessas coberturas modais.
Por respeitar nossas naturezas individuais, Kṛṣṇa nos oferece uma
variedade de métodos disciplinados, caminhos de yoga, todos
conducentes à nossa liberação e iluminação. Pessoas “comuns” que
trabalham, mantêm famílias e vivem no mundo podem atingir a
perfeição através de karma-yoga, o yoga da ação. Pessoas inclinadas a
uma vida mais retirada de estudo e filosofia podem alcançar a
liberação através de jñāna-yoga, o yoga do conhecimento. Para os
místicos, o cardápio divino da Gītā oferece dhyāna-yoga, o yoga da
meditação. Kṛṣṇa, no entanto, enfatiza que o caminho mais elevado é
devotar-se plenamente a Ele em bhakti-yoga, o yoga do amor puro.
Uma dinâmica comum essencial perpassa esses caminhos: todos
devem ser executados como uma oferenda espiritual (yajña) ao
Supremo. Kṛṣṇa enfatiza que temos direito de realizar o dever
nascido de nossa natureza, mas não podemos reivindicar o fruto de
nosso trabalho – isso pertence a Deus. Recebemos a própria vida, o
poder de raciocinar e o desejo de sermos produtivos como uma
dádiva do Senhor. Assim, por oferecermos de volta os frutos do
trabalho cuja capacitação recebemos de Deus, mantemos uma roda
cósmica a girar – o ciclo de reciprocidade, de receber e retribuir –,
que forma a base da justiça, da civilização e do próprio amor. Desse
modo, abraçar qualquer um dos caminhos de yoga é oferecer a nossa
natureza à sua Fonte, tornando nossas vidas, e o Universo,
completos.
Em última análise, somos partes divinas de Deus, mas agora
desejos egoístas cobrem nossa consciência divina. A Gītā nos mostra
como podemos facilmente descobrir – literalmente des-cobrir – nossa
consciência pura. Assim como a água pura é naturalmente clara e
higienizante, a consciência pura é, por natureza, transparente e bem-
aventurada.
Quando o mundo, enquanto comunidade global, novamente girar
a roda cósmica, retribuindo os frutos de suas buscas políticas,
econômicas, culturais, sociais e intelectuais à Fonte de tudo, a
própria Terra recuperará sua natureza divina original e as pessoas
serão felizes.
Em consciência pura, pode-se, enfim, ver o próprio Kṛṣṇa em Sua
incrível forma espiritual, que é materialmente inconcebível. Arjuna
alcançou essa meta mais elevada mediante plena devoção a Deus. E
Arjuna, afinal, é o estudante ideal da Bhagavad-gītā.
Tentei no máximo de minha capacidade levá-lo a fundo no texto
sânscrito original da Gītā e compartilhar com você as maravilhas a
serem vistas lá. Que a Gītā seja sua amiga vitalícia à medida que
você progride em direção à perfeição pessoal![1]
Concluído em 28 de dezembro de 2013
Santa Mônica, Califórnia.
Tradução Literal da Bhagavad-gītā
Capítulo 1
1 Dhṛta-rāṣṭra disse: No campo do dharma[1], o campo dos Kurus,
meus filhos e os filhos de Pāṇḍu reuniram-se, ávidos por lutar. O que
fizeram eles, Sañjaya?
2 Sañjaya disse: Ao ver o exército dos Pāṇḍavas[2] arregimentado,
o rei Duryodhana aproximou-se de seu mestre e falou as seguintes
palavras:
3 Ó mestre, contempla o imenso exército dos filhos de Pāṇḍu,
arregimentado por teu astuto estudante, o filho de Drupada. 4 Aqui
estão heróis, arqueiros grandiosos equivalentes a Bhīma e Arjuna em
batalha: Yuyudhāna, Virāṭa e o grande quadriga[3] Drupada; 5
Dhṛṣṭaketu, Cekitāna, Kuntibhoja, Purujit; Śaibya, o líder dos
homens, e o heroico rei Kāśi;[4] 6 o corajoso Yudhāmanyu, o valente
U amaujas, o filho de Subhadrā e os filhos de Drupada – todos eles
grandes quadrigas.
7 Ó melhor dos duas vezes nascidos[5], toma conhecimento
também dos excelentes homens que lideram meu exército.
Menciono-os para compreensão mútua: 8 tu, senhor, bem como
Bhīṣma, Karṇa, o vitorioso lutador Kṛpa, Aśva hāmā e Saumada i.
9 Muitos outros heróis estão prontos a dar suas vidas por mim; todos
peritos em batalha, eles atacam com diversas armas. 10 Protegida
por Bhīṣma, nossa força está completa; mas a força deles, defendida
por Bhīma, é incompleta. 11 Permanecendo firmes em todos os
postos designados, cada um de vós deve proteger Bhīṣma!
12 Despertando seu[6] estado de espírito, o Kuru sênior, o avô[7],
soprou seu búzio vigorosamente, trompeteando o som de um leão.
13 Em seguida, tambores de guerra, tímpanos, címbalos, búzios e
cornetas foram tocados repentinamente. O som tornou-se
tumultuoso.
14 Então, Mādhava e Pāṇḍava,[8] de pé sobre uma magnífica
quadriga veloz, atrelada a cavalos brancos, sopraram seus búzios
divinos. 15 Hṛṣīkeśa soprou o Pāñcajanya, Dhanañjaya soprou o
Devada a.[9] Vṛkodara[10], de feitos espetaculares, soprou o
magnífico búzio Pauṇḍra. 16 O rei Yudhiṣṭhira, filho de Kuntī,
soprou o Anantavijaya. Nakula e Sahadeva sopraram o Sughoṣa e
Maṇipuṣpaka. 17 Virāṭa, Dhṛṣṭadyumna, o grandioso arqueiro
Kāśya, o grande quadriga Śikhaṇḍī, o invicto Sātyaki, 18 o filho de
braços magníficos de Subhadrā, e também Drupada e seus filhos,
todos sopraram búzios sucessivamente, ó senhor da vasta Terra. 19
Aquele som grandioso, estremecendo o céu e a terra, dilacerou os
corações dos filhos de Dhṛta-rāṣṭra.
20 Ao ver os filhos de Dhṛta-rāṣṭra agrupados para a batalha, ó
senhor da vasta Terra, o Pāṇḍava Arjuna[11], erguendo seu arco,
prestes a disparar mísseis, falou as seguintes palavras a Hṛṣīkeśa
[Kṛṣṇa].
21 Arjuna disse: Ó Acyuta[12], posiciona meu veículo entre os dois
exércitos enquanto observo aqueles que estão postados firmes,
ávidos por lutar. 22 Contra quem devo guerrear neste monumental
empreendimento bélico? 23 Contemplo aqueles [guerreiros]
reunidos aqui prontos para lutar, ávidos por satisfazer o mal-
intencionado filho de Dhṛta-rāṣṭra na batalha.
24 Sañjaya disse: Ó Bhārata[13], assim abordado por Guḍākeśa
[Arjuna], Hṛṣīkeśa pôs aquela quadriga suprema entre ambos os
exércitos. 25 Diante de Bhīṣma, Droṇa e todos os governantes da
vasta Terra, disse Ele: “Arjuna, contempla estes Kurus reunidos.”
26 Lá, Arjuna contemplou avôs, mestres, tios, irmãos, filhos, netos
e amigos, sogros e benquerentes, postados em ambos os exércitos. 27
Fitando todos os seus parentes que permaneciam firmes, Arjuna se
desesperou; repleto de imensa compaixão, ele falou o seguinte.
28 Arjuna disse: Ó Kṛṣṇa, ao ver nossa própria gente tão próxima,
ávida por lutar, os membros do meu corpo se enfraquecem e minha
boca seca. 29 Meu corpo treme, meus pelos se arrepiam, o
Gāṇḍīva[14] escorrega da minha mão e minha pele realmente arde. 30
Não tenho forças para ficar de pé, minha mente gira, ó Kṛṣṇa, e
tenho maus presságios. 31 Não prevejo bem algum, Kṛṣṇa, em matar
nossa própria gente na batalha, tampouco busco vitória, reino ou
prazeres. 32 O que é um reino para nós, Kṛṣṇa? O que são prazeres
mundanos ou a própria vida, quando aqueles por causa de quem
buscamos reino, prazeres e alegrias – 33 essas mesmas pessoas –
confrontam-nos em batalha, sacrificando vida e fortuna: mestres,
pais, filhos e avôs, 34 tios, sogros, netos, cunhados e outros parentes
próximos? Não os quero matar mesmo que estiverem nos matando,
Madhusūdana, – 35 não por um reino cósmico, muito menos pela
imensa Terra. Ó Kṛṣṇa, Janārdana, que alegria pode haver em matar
os filhos de Dhṛta-rāṣṭra?
36 O pecado residiria em nós se matássemos estes agressores; por
isso, não deveríamos matar os filhos de Dhṛta-rāṣṭra e outros
parentes. Como, de fato, podemos ser felizes matando nossa própria
gente, Kṛṣṇa? 37 Mesmo que eles, com mentes infectadas pela
ganância, não vejam crime em arruinar uma família ou ofensa em
ferir amigos, 38 nós vemos claramente o mal causado por se arruinar
a família, ó Janardana. Como podemos não saber disso? Como,
então, podemos não renunciar a esse pecado?
39 Quando se arruína a família, seus dharmas perpétuos se
perdem; quando o dharma se perde, o a-dharma vence a família
inteira. 40 Quando o a-dharma[15] vence, as mulheres da família se
corrompem; quando as mulheres se corrompem, Kṛṣṇa, surge a
confusão de classes.[16] 41 Semelhante confusão conduz somente ao
inferno tanto a família quanto seus assassinos. Os antepassados
caem, privados de arroz e ritos de água. 42 Esses crimes dos
assassinos de famílias produzem confusão de classes, destruindo os
dharmas da linhagem e os dharmas perpétuos da família. 43 Seres
humanos com dharmas familiares devastados decerto residem no
É
inferno, Janārdana. É isso que ouvimos. 44 Ai de nós! Gananciosos
por felicidade régia, decidimos cometer um mal enorme, prontos
para matar nossa própria gente. 45 Se os filhos de Dhṛta-rāṣṭra, com
armas em punho, fossem me matar, desarmado e rendido em
batalha, isso seria melhor para mim.
46 Sañjaya disse: Após falar assim no campo de batalha, Arjuna,
abandonando o arco e flechas, sentou-se na quadriga, com sua mente
dilacerada pelo pesar.
Capítulo 2
1 Sañjaya disse: Quando a compaixão apoderou-se assim de
Arjuna e lágrimas encheram seus olhos confusos, Madhusūdana[1]
falou as seguintes palavras.
2 O Senhor disse: Neste desafio, como a fraqueza recaiu sobre ti?
O nobre não a saúda, Arjuna, pois ela não conduz ao paraíso, mas à
infâmia. 3 Não ceda à impotência, Pārtha; isso não condiz contigo,
fustigador de adversários. Abandona a reles fraqueza de coração e
levanta-te!
4 Arjuna disse: Bhīṣma e Droṇa merecem meu respeito,
Madhusūdana. Como os posso contra-atacar com flechas em batalha,
ó matador de inimigos? 5 Melhor é viver de mendicância neste
mundo do que matar semelhantes mestres, pois eu viveria de
espólios manchados de sangue por matar tais mestres
consideravelmente nobres, embora cobicem lucro. 6 Nem sabemos o
que mais nos vale a pena: subjugá-los ou sermos subjugados por
eles. Os filhos de Dhṛta-rāṣṭra estão diante de nós. Matando-os, não
desejaremos viver.
7 A piedade equivocada enfraqueceu minha natureza. Confuso
quanto ao dever, eu Te pergunto: o que seria o bem definitivo? Dize-
me, sou Teu discípulo; ensina-me, pois estou entregue a Ti. 8 Não
vejo o que poderia dissipar o pesar que está secando-me os sentidos
– mesmo ganhando um inigualável reino próspero na Terra com a
soberania dos deuses.
9 Sañjaya disse: Após dirigir-se assim a Hṛṣīkeśa, o fustigador de
adversários Guḍākeśaḥ[2] disse a Govinda[3]: “Não lutarei”, e ficou

Ó
em silêncio. 10 Ó Bhārata, no meio de dois exércitos, Hṛṣīkeśa, quase
rindo, falou as seguintes palavras ao desesperado Arjuna.
11 O Senhor disse: Lamentas o que não é lamentável e, no entanto,
proferes palavras sábias. Pessoas instruídas não se lamentam nem
pelos que partiram nem pelos que não partiram. 12 Jamais Eu não
existi, ou tu, ou estes governantes do povo; tampouco deixaremos de
existir em algum momento. 13 No corpo, a alma corporificada
experiencia infância, juventude e velhice; do mesmo modo, o
indivíduo obtém outro corpo. Isso não confunde o sábio.
14 Kaunteya, contatos materiais, assim como calor e frio, dão
prazer e dor; impermanentes, vêm e vão. Tolera-os, Bhārata. 15 Ó
melhor dos homens, uma pessoa sábia, equânime na dor e no prazer,
imperturbável por esses contatos, ganha a imortalidade.
16 O irreal não tem existência, o real não tem não-existência. Com
efeito, observadores da verdade enxergam a certeza de ambos. 17
Toma conhecimento do indestrutível que permeia tudo isto;
ninguém pode destruir aquilo que não perece. 18 Afirma-se que os
corpos da alma corporificada eterna, indestrutível e imensurável se
acabam. Portanto, Bhārata, luta! 19 Nem quem pensa que a alma
mata, nem quem pensa que ela morreu têm compreensão. A alma
nem mata nem é morta. 20 A alma nunca nasce e nunca morre; tendo
existido, jamais deixará de existir. Não-nascida, eterna, perpétua,
primordial, ela não morre quando o corpo morre.
21 Pārtha, ciente de que a alma é indestrutível, eterna, não-nascida
e imperecível, como pode alguém matar e quem ela mata ou faz com
que mate? 22 Assim como o indivíduo veste roupas novas, após
descartar as que estão velhas; a alma corporificada, da mesma forma,
após descartar corpos velhos, veste novos.
23 Armas não cortam a alma; fogo não a queima; água não a
molha; vento não a definha. 24 Não se pode cortar, queimar, molhar
nem definhar a alma. Ela é eterna, vai a toda parte, apesar do que é
estacionária, imóvel e perpétua. 25 Afirma-se que a alma é
imanifesta, inconcebível e imutável. Assim, ciente disso, não
deverias te lamentar.
26 E mesmo que acredites que a alma sempre nasce e sempre
morre, homem de braços magníficos, não deverias te lamentar. 27 De
fato, para quem nasce, a morte é certa, assim como o nascimento é
certo para o morto. Portanto, por um assunto inevitável, não
deverias te lamentar. 28 Os seres são imanifestos no princípio,
manifestos no estado intermediário e decerto imanifestos no fim,
Bhārata. Por que te lamentas sobre isso, Arjuna?
29 Alguns veem a alma como uma maravilha, outros falam dela
como uma maravilha, e ainda outros ouvem que ela é uma
maravilha. Alguns, no entanto, mesmo após ouvir, não a
compreendem. 30 Jamais se pode matar a alma corporificada em
cada um de seus corpos; por isso, não deves te afligir por ser algum.
31 Além disso, considerando teu dharma, não deverias hesitar.
Para um guerreiro, não há nada melhor do que uma batalha justa. 32
Felizes, Pārtha, são os guerreiros vencedores de tal batalha que surge
por conta própria, escancarando os portões do paraíso. 33 Agora, se
não lutares nesta batalha justa, então, por abandonar teu dharma e
tua reputação, incorrerás em pecado. 34 As pessoas proclamarão tua
infâmia perpétua, e, para quem é tido em alta consideração, infâmia
é pior do que a morte. 35 Grandes quadrigas[4] pensarão que fugiste da
luta por medo; serás desonrado diante daqueles que te têm em alta
consideração. 36 Teus inimigos ridicularizarão tua força proferindo
muitas palavras indizíveis. Que dor é pior que essa? 37 Se morto,
alcançarás o paraíso; vencedor, governarás a imensa Terra. Portanto,
levanta-te, Kaunteya! Decide-te por lutar na batalha! 38 Tratando
como iguais prazer e dor, ganho e perda, vitória e derrota, ocupa-te
na guerra e não incorras em pecado.
39 Isso é razão, analiticamente ensinada. Agora ouve sobre isso na
prática. Com semelhante razão, Pārtha, conseguirás livrar-te das
amarras do karma. 40 Nesse caso, esforço algum é em vão; não há
retrocesso. Mesmo muito pouco desse dharma liberta o indivíduo de
enorme perigo. 41 Aqui, filho de Kuru, a razão decidida é singular,
ao passo que o raciocínio do indeciso é multirramificado; na
verdade, interminável.
42-43 Absortas em alcançar o paraíso, almas egoístas sem
sabedoria deleitam-se na retórica dos Vedas, Pārtha. Alegando que
nada mais existe, proclamam que aquelas floridas palavras, repletas
de rituais, proporcionam bom nascimento e frutos da ação, e
conduzem à aquisição de bens e poder. 44 Para aqueles que se
aferram a bens e poder, com suas mentes por esses conquistadas, a
razão decidida com pleno foco não ocorre. 45 Os Vedas centram-se
nas três qualidades;[5] situa-te além das três qualidades, Arjuna –
para além da dualidade. Permanece sempre em bondade, com
autodomínio, sem preocupar-se com aquisições. 46 Para um
brāhmaṇa sábio, todos os Vedas têm tanto valor quanto um poço
quando, por toda parte, fluem águas abundantes.
47 Tens direito apenas à ação, e nunca a seus frutos. Não te deixes
motivar pelos frutos da ação nem te aferres à inação. 48 Firme em
yoga, executa ações sem apego, sendo equânime em sucesso e
fracasso, pois se diz que yoga é equanimidade, Dhanañjaya.
49 Ação é, de longe, inferior à prática da razão, Dhanañjaya; busca
abrigo na razão. Mesquinhos são aqueles motivados pelos frutos. 50
Conectado à razão, o indivíduo abandona, nesta vida, tanto a ação
boa quanto a ação má. Sendo assim, prepara-te para o yoga. Yoga é
maestria nas ações. 51 Conectados à razão, os sábios abandonam os
frutos nascidos da ação. Salvos do cativeiro de nascimento, eles vão
para o lugar livre de moléstia.
52 Quando tua razão transpuser o matagal da ilusão, ficarás
indiferente ao que foi ouvido e ao que se há de ouvir. 53 Quando tua
razão, confusa pelo ouvir[6], permanecer inabalável, imóvel, em
plena concentração, alcançarás yoga.
54 Arjuna disse: Keśava, qual é a linguagem de alguém firme em
sabedoria, fixo em plena concentração? O que fala alguém de mente
estável, e por que fica ou se vai?
55 O Senhor disse: Quando o indivíduo, satisfeito pelo eu apenas
no eu, rejeita todos os desejos egoístas da mente, Pārtha, declara-se
que ele possui firme sabedoria. 56 Livre de paixão, medo e ira, com a
mente imperturbável perante misérias, aquele que não mais anseia
por prazeres é considerado um sábio de mente estável. 57 A
sabedoria está solidamente fixa naquele que é impassível em toda
parte, quer deparando-se com o bem, quer com o mal – que não se
deleita nem despreza. 58 A sabedoria está solidamente fixa naquele
que retira por completo os sentidos de seus objetos, assim como a
tartaruga recolhe seus membros.
59 Os objetos dos sentidos afastam-se da alma corporificada que
se abstém deles, mas o gosto permanece; no entanto, até o gosto
cessa ao se enxergar algo melhor. 60 Kaunteya, mesmo que uma
pessoa inspirada se empenhe, os sentidos turbulentos arrastam a
mente à força. 61 Controlando todos esses sentidos, ela deve
permanecer conectada, devotada a Mim. A sabedoria está
solidamente fixa naquele que regula os sentidos.
62 Quando uma pessoa contempla os objetos dos sentidos, surge
apego a eles. O desejo brota do apego, e do desejo, nasce a ira. 63 Da
ira vem a confusão; da confusão, a perda de memória; da perda de
memória, a destruição da razão. Pela destruição da razão, o eu se
desvanece.
64 Empregando os objetos dos sentidos com sentidos
autocontrolados, livre de deleite e ódio, a alma consumada alcança
clareza. 65 Na clareza, desenvolve-se o desprendimento de todos os
pesares. Com uma mente clara, o intelecto rapidamente torna-se
estável.
66 O desconectado não raciocina. O desconectado não se
concentra. O desconcentrado não tem paz. E para quem não está em
paz, onde está a felicidade? 67 Com efeito, enquanto os sentidos
vagueiam, aquele sentido ao qual a mente se entrega rouba a
sabedoria do indivíduo, assim como o vento leva à deriva um barco
no mar. 68 Portanto, homem de braços magníficos, a sabedoria está
solidamente fixa naquele que afasta por completo os sentidos dos
objetos dos sentidos.
69 Durante a noite de todos os seres, o autocontrolado desperta, e
os seres despertam durante a noite do sábio dotado de visão. 70 Tal
como o mar permanece estável, imóvel, enquanto as águas entram
nele e o inundam, do mesmo modo, aquele em quem todos os
desejos assim entram alcança paz, e não aquele que deseja
[desfrutar] desejos. 71 Abandonando todos os desejos, uma pessoa
que vive livre de anseio, livre de eu e meu, atinge paz. 72 Esse é o
status de brahman, Arjuna, após alcançar o qual o indivíduo não se
confunde; permanecendo nele, mesmo na hora final, ele se eleva ao
nirvāṇa[7] em brahman.
Capítulo 3
1 Arjuna disse: Keśava, se achas que razão é melhor que ação, por
que me ocupas nesta ação horrível? 2 Por meio dessa instrução
equívoca, simplesmente confundes minha razão. Para resolver isso,
dize-me exatamente aquilo pelo qual posso atingir o bem maior.
3 O Senhor disse: Já falei a ti, homem impecável, que o caminho
estável é de dois tipos neste mundo: para os analíticos, é pelo yoga
do conhecimento, e para os ativos, pelo yoga da ação. 4 O indivíduo
não desfruta do fato de livrar-se da ação por não executar ações, nem
alcança por completo a perfeição apenas pela renúncia. 5 Com efeito,
ninguém jamais permanece inativo, nem mesmo por um momento;
os modos da natureza forçam todos a agir. 6 Aquele que refreia os
sentidos funcionais,[1] mas, na mente, segue pensando nos objetos
dos sentidos, é uma alma confusa cuja conduta se considera falsa. 7
Melhor, Arjuna, é quem adota o yoga da ação com os sentidos
funcionais, refreando mentalmente os sentidos. 8 Executa a ação
necessária, pois ação é melhor do que inação; não consegues nem
mesmo a manutenção corpórea sem ação.
9 Este mundo é o cativeiro do karma[2], exceto para o karma (ação)
feito como oferenda. Executa ações com esse propósito, Arjuna, livre
de apego. 10 Outrora, o senhor das criaturas gerou criaturas junto
com sacrifício e disse:
“Por meio disto, prosperareis! Que isto conceda vossos desejos
preferidos. 11 Que os deuses prosperem por meio disto, e que os
deuses vos façam prosperar. Prosperando com ajuda mútua,
atingireis o bem mais elevado. 12 Prósperos em virtude do sacrifício,
os deuses decerto vos concederão os prazeres desejados. Aquele que
desfruta dessas dádivas sem retribuir aos donatários não passa de
um ladrão. 13 Por comer remanentes de sacrifício, os virtuosos
livram-se de toda ofensa, mas os desventurados que cozinham para
si mesmos comem pecado. 14 Criaturas vivem à base de alimento. O
alimento provém da chuva. A chuva vem do sacrifício. O sacrifício
origina-se do dever. 15 Fica sabendo que o dever advém de brahman.
Brahman origina-se do Imperecível. Portanto, o onipresente brahman
reside sempre no sacrifício.”
16 Um ciclo é assim posto a girar. Aquele que não o mantém
girando, um hedonista de vida errante, vive inutilmente, Pārtha. 17
Mas um ser humano que pode se deleitar apenas no eu,
autossatisfeito, contente no eu apenas, não possui dever. 18 Essa
pessoa não tem interesse em agir nem em não agir, nem em
depender de qualquer ser. 19 Portanto, sempre desapegado, executa
ação. Uma pessoa desapegada, que assim executa ação, decerto
alcança a transcendência. 20 De fato, apenas por meio da ação, reis
como Janaka elevaram-se à perfeição. Simplesmente em
consideração ao bem-estar do mundo, deverias agir.
21 Tudo que o indivíduo mais eminente faça, pessoas comuns
fazem exatamente igual, seguindo o padrão que ele estabelece. 22
Pārtha, nos três mundos, não há nada que Eu precise fazer, nada que
Eu não tenha atingido ou precise atingir. E, ainda assim, ocupo-Me
em ação. 23 Deveras, Pārtha, se acaso Eu parasse de Me ocupar
cuidadosamente em ação, todas as pessoas seguiriam Meu caminho.
24 Estes mundos seriam levados à ruína se Eu não executasse ação.
Eu causaria confusão. Eu prejudicaria estas criaturas.
25 Bhārata, assim como o insensato age apegado à ação, o sábio
deveria agir desapegado, almejando o bem-estar do mundo. 26 Os
sábios, vinculados em yoga, não deveriam produzir uma ruptura na
razão[3] dos ignorantes apegados à ação, mas deveriam, sim,
encorajar todos os deveres por meio de sua execução.
27 As ações estão sendo realizadas inteiramente pelos modos da
natureza; uma alma confundida pelo egotismo acredita deste modo:
“Eu sou o agente”. 28 Todavia, ciente de princípios verdadeiros, ó
homem de braços magníficos, e com a percepção de que os modos
funcionam nos modos, o indivíduo não se aferra nem aos modos
nem à ação. 29 Aqueles que estão confundidos pelos modos da
natureza aferram-se às ações dos modos.[4] Aquele que conhece tudo
não deveria desviar o tolo que não conhece tudo.
30 Entregando todas as ações a Mim mediante consciência do eu
superior, tornando-se livre de anseio e possessividade, luta sem
fervor. 31 Aquelas pessoas que sempre acatam essa Minha
conclusão, confiantes e sem inveja, decerto libertam-se do karma. 32
Entretanto, aqueles que se ressentem e não acatam Minha conclusão
– fica sabendo que estão perdidos e são desajuizados, confusos
acerca de todo o conhecimento.
33 Mesmo alguém com conhecimento age de acordo com sua
natureza. Os seres seguem sua natureza. O que se logrará com a
repressão? 34 Apego e aversão habitam em cada objeto dos sentidos.
Não se deveria ficar sob seu controle, pois decerto obstruem o
caminho. 35 Melhor é o próprio dharma imperfeito que o dharma
alheio bem executado. Perda no próprio dharma é melhor, pois o
dharma alheio traz perigo consigo.
36 Arjuna disse: Então, o que impele uma pessoa a cometer
pecado, mesmo a contragosto, como se envolvida à força?
37 O Senhor disse: É a luxúria, é a ira, provenientes do modo da
paixão. Eis o descomunal devorador, o imenso mal. Fica sabendo
aqui que ele é o inimigo. 38 Ele cobre este mundo assim como a
fumaça cobre o fogo, a poeira cobre um espelho, o ventre cobre um
embrião. 39 Kaunteya, esse adversário perene sob a forma de
luxúria, esse fogo insaciável, cobre o conhecimento do conhecedor.
40 Afirma-se que reside nos sentidos, mente e razão e, através deles,
confunde a alma corporificada, cobrindo-lhe o conhecimento. 41
Portanto, melhor dos Bhāratas, primeiro controlando os sentidos,
mata esse mal que destrói o conhecimento e a sabedoria.
42 Dizem que os sentidos são superiores, e, acima dos sentidos,
está a mente. A razão está ainda acima da mente. Porém, essa [alma]
está acima da razão. 43 Assim, após racionalizar o que está além da
razão[5], estabilizando o eu por meio do eu, ó homem de braços
magníficos, mata esse adversário traiçoeiro sob a forma de luxúria.
Capítulo 4
1 O Senhor disse: Ensinei este yoga imperecível a Vivasvān;
Vivasvān o expôs a Manu; Manu o transmitiu a Ikṣvāku. 2 Reis-
sábios, desse modo, aprenderam-no tal como recebido em sucessão
[discipular]. Após muito tempo aqui, ele se perdeu. 3 Hoje, ensino-te
esse mesmo antigo yoga; na verdade, esse mistério supremo, pois és
Meu devoto e amigo.
4 Arjuna disse: Teu nascimento é posterior; o nascimento de
Vivasvān, anterior. Como é que primeiro Tu lhe ensinaste?
5 O Senhor disse: Tanto tu quanto Eu passamos por muitos
nascimentos, Arjuna. Estou ciente de todos eles; tu não, fustigador
de adversários. 6 Embora Eu seja a Alma não-nascida e imutável e
senhor dos seres, apareço pelo poder do Meu próprio Eu,
permanecendo em Minha própria natureza. 7 Bhārata, sempre que o
dharma se enfraquece e o a-dharma aflora, manifesto Meu Eu. 8 Para
libertar os virtuosos, destruir os perversos e restaurar o dharma, Eu
apareço em cada era. 9 Aquele que assim conhece de verdade Meu
nascimento e Meus feitos divinos, jamais renasce ao deixar o corpo,
senão que vem a Mim, Arjuna.
10 Livres de paixão, medo e ira, absortos em Mim, muitos
encontraram refúgio em Mim. Purificados por austeridade e
conhecimento, eles chegaram ao Meu estado de existência. 11 Como
quer que alguém se aproxime de Mim, Eu o aceito dessa mesma
maneira. Os seres humanos seguem absolutamente Meu caminho,
Pārtha.
12 Ansiando por sucesso nas ações, as pessoas aqui fazem
oferendas a deidades. Sucesso nascido da ação advém depressa no
reino humano. 13 De acordo com divisões de modo e ação, Eu criei o
sistema de quatro varṇas[1]. Embora o tenha criado, fica sabendo que
sou o não-agente imutável.[2] 14 Ações não Me maculam, nem cobiço
os frutos da ação. Aquele que assim Me conhece não fica atado pelas
ações. 15 Cientes disso, mesmo os antigos, buscando liberação,
executaram ação. Portanto, executa ação tal qual o fizeram os antigos
em tempos remotos.
16 O que é ação? O que é inação? Até sábios ficam confusos
quanto a isso. Assim, explicarei ação a ti, por cujo conhecimento te
libertarás do mal. 17 Na verdade, deve-se discernir ação, deve-se
discernir ação errada e deve-se discernir inação. Profundo é o
caminho da ação. 18 Aquele que consegue ver inação na ação e ação
na inação é perspicaz dentre seres humanos, e está conectado
enquanto executa todas as ações.
19 O indivíduo perspicaz diz que aquele cujos esforços estão
todos desprovidos de intenção egoísta é um sábio cujo karma é
queimado pelo fogo do conhecimento. 20 Abandonando apego ao
fruto da ação, sempre satisfeito e independente – embora ocupado
em ação, ele, na verdade, nada faz. 21 Livre de anseio, com a mente e
o eu refreados, abandonando todo senso de propriedade e
executando ação só para suster o corpo, ele não incorre em pecado.
22 Plenamente satisfeito com ganho espontâneo, além da
dualidade, livre de inveja, equânime em sucesso e fracasso – mesmo
enquanto age, ele não fica atado. 23 O karma se dissolve por
completo para alguém livre de apego, que está liberto, agindo por
sacrifício, com a mente fixa em conhecimento. 24 A oferenda é
brahman: brahman verte a oblação-brahman no fogo-brahman, e,
mediante esse pleno foco na ação-brahman, apenas o brahman será
alcançado.
25 Alguns yogīs reverentemente prestam sacrifício aos deuses
apenas. Alguns, mediante sacrifício apenas, oferecem sacrifício ao
fogo-brahman. 26 Outros oferecem os sentidos, tal como a audição, ao
fogo do autocontrole. Outros oferecem objetos dos sentidos, tal como
o som, ao fogo dos sentidos. 27 Alguns oferecem todas as ações dos
sentidos ou ações respiratórias ao fogo do yoga do autocontrole,
aceso pelo conhecimento. 28 Da mesma maneira, algumas pessoas
esforçadas, de votos estritos, [adotam] sacrifício do objeto,[3]
sacrifício da austeridade, sacrifício do yoga ou sacrifício do
conhecimento mediante estudo sagrado. 29 Alguns oferecem o
alento inalado ao alento exalado ou o alento exalado ao alento
inalado. Parando os movimentos de inspiração e expiração, eles se
valem do controle da respiração. Alguns restringem o comer e
oferecem o alento inalado ao alento inalado. 30 Todos esses de fato
entendem de sacrifício; sacrifício remove seus pecados. Por comerem
o remanente nectáreo de sacrifício, eles vão ao eterno Brahman. 31 Ó
melhor dos Kurus, aquele que não executa sacrifício não possui este
mundo. O que se dizer, então, do próximo?
32 Assim, múltiplos sacrifícios difundiram-se diante de Brahman.
Fica sabendo que todos eles nascem da ação; ciente disso, serás
liberto. 33 Pārtha, fustigador de adversários, melhor do que sacrifício
do objeto é sacrifício do conhecimento, pois cada uma das ações
culmina em conhecimento.
34 Aprende isso mediante submissão, indagação minuciosa e
serviço. Os conhecedores ensinarão conhecimento a ti, pois viram a
Verdade. 35 Ciente disso, não retornarás à ilusão, Pāṇḍava, pois
assim verás todos os seres no Eu – isto é, em Mim.
36 Mesmo que sejas o mais pecaminoso dentre todos os
pecadores, apenas por intermédio do barco do conhecimento
transporás todo mal. 37 Arjuna, assim como o fogo ardente
transforma gravetos em cinzas, do mesmo modo, o fogo do
conhecimento transforma todos os karmas em cinzas. 38 Neste
mundo, não há purificador como o conhecimento. Com o tempo, o
indivíduo aperfeiçoado em yoga pessoalmente o encontra no eu. 39
Uma pessoa de fé obtém conhecimento e devota-se a ele, com os
sentidos sob pleno controle. Obtendo conhecimento, em breve
atinge-se paz suprema. 40 A alma ignorante, incrédula e cética não
chega a coisa alguma. Nem este mundo, nem outro superior, nem
felicidade pertencem à alma cética.
41 Dhanañjaya, ações não atam quem renunciou a ação através do
yoga, dirimiu a dúvida mediante conhecimento e recuperou o eu. 42
A dúvida do teu coração nasce da ignorância. Portanto, extirpando-a
com a espada do conhecimento, situa-te em yoga! Levanta-te,
Bhārata!
Capítulo 5
1 Arjuna disse: Kṛṣṇa, enalteces renúncia às ações, e depois, outra
vez, o yoga[1]. Dize-me, em definitivo, qual dos dois é melhor.
2 O Senhor disse: Tanto renúncia [às ações] quanto yoga da ação
concedem o bem mais elevado. Dentre os dois, porém, yoga da ação é
superior a renunciar à ação. 3 Aquele que nem odeia nem anseia
deve ser conhecido como um renunciante perene situado além da
dualidade, facilmente liberto do cativeiro, ó homem de braços
magníficos.
4 Indivíduos infantis, não os sábios, alegam que análise e prática
são distintos. Uma pessoa que executa adequadamente apenas um
alcança o fruto de ambos. 5 O status atingido pelos métodos
analíticos também se alcança pelas práticas de yoga. Quem vê que
análise e prática são uma coisa só vê [de verdade].
6 É difícil, no entanto, atingir renúncia sem yoga, ó homem de
braços magníficos. Vinculado em yoga, um sábio logo atinge o
Absoluto. 7 Vinculado em yoga, um eu purificado, que conquista o
eu e os sentidos – um eu, sendo o eu de todos os seres[2] – não se
macula, embora atue.
8 “Não faço absolutamente nada.” Assim um conectado
conhecedor da verdade deveria pensar. Enquanto vê, escuta, toca,
cheira, come, caminha, sonha; 9 respira, conversa, solta, agarra, e até
mesmo abre e fecha os olhos – o indivíduo deveria manter esta
convicção: os sentidos movem-se nos objetos dos sentidos. 10 Quem
abandona apego e confia ações ao Absoluto não se macula pelo
pecado – assim como uma pétala de lótus intocada pela água. 11
Com corpo, mente, razão e mesmo sentidos puros, os yogīs executam
ação para autopurificação, após abandonar o apego.
12 Quem está vinculado em yoga e abandona o fruto da ação
atinge paz duradoura. Quem está desconectado e se aferra ao fruto
fica atado pela ação egoísta. 13 Por renunciar mentalmente a todas as
ações, uma alma corporificada autogovernada permanece feliz na
cidade dos nove portões,[3] sem atuar e sem fazer com que se atue.
14 O Senhor não cria nem meios de ação, nem ações para as
pessoas, nem seus laços ao fruto da ação; prevalece a própria
natureza de cada um. 15 O Onipotente não assume pecado ou boa
ação de alguém. A ignorância cobre o conhecimento; ela confunde as
pessoas. 16 Contudo, para aqueles cujo conhecimento destrói a
ignorância do eu, o sol do conhecimento revela o Supremo. 17
Aqueles cuja razão, eu, devoção e refúgio repousam Nele – vão ao
não-retorno, com suas impurezas removidas pelo conhecimento.
18 Os sábios veem com igual visão um brāhmaṇa letrado e
humilde, uma vaca, um elefante e até um cão e aquele que cozinha
cães. 19 Neste mundo mesmo, aqueles cujas mentes situam-se em
equanimidade conquistam a criação. O brahman é deveras equânime
e sem falhas. Portanto, eles se situam no brahman.
20 O indivíduo não deveria se regozijar ao obter aquilo que
agrada, nem se lamentar ao obter o que é desagradável. Com razão
estável, sem se confundir, um conhecedor do Brahman situa-se no
Brahman. 21 Desapegado de contatos externos, o eu encontra prazer
no eu. Vinculado pelo yoga ao Brahman, esse eu encontra felicidade
imperecível. 22 De fato, aqueles prazeres nascidos do contato com os
sentidos não passam de fontes de sofrimento, Kaunteya, pois
começam e terminam. Um sábio não se deleita com eles.
23 Antes de deixar o corpo, quem é capaz de tolerar, nesta vida
mesmo, o ímpeto nascido de luxúria e ira é uma pessoa feliz,
vinculada em yoga. 24 Com felicidade interior, deleite interior e
verdadeira luz interior, semelhante yogī, por ser Brahman, atinge
nirvāṇaem Brahman. 25 Sábios autocontrolados, seus pecados
dissipados, obtêm nirvāṇa em Brahman. Sua dualidade extirpada,
deleitam-se com o bem de todos os seres. 26 Para aquelas sábias
almas livres de desejo e ira, que se esforçam com mentes
controladas, o nirvāṇa em Brahman vem ao seu encontro. 27 Após
deixar de lado contatos externos, fixar os olhos bem entre as
sobrancelhas, igualar os alentos inspirados e expirados que se
movem no nariz; 28 absorto em alcançar liberdade, com sentidos,
mente e razão controlados, desprovido de desejo, medo e ira –
sempre assim, um sábio com certeza está liberto.
29 Por conhecer-Me como o desfrutador de sacrifício e
austeridade, o magnífico senhor de todos os mundos e um amigo
bondoso de todos, alcança-se paz.
Capítulo 6
1 O Senhor disse: Desapegado do fruto da ação, aquele que
executa ação como dever é renunciante e yogī, não o sem-fogo[1],
nem o inativo. 2 O que chamam de renúncia, fica sabendo que é yoga,
Pāṇḍava, pois ninguém se torna um yogī sem renunciar ao desejo
egoísta. 3 Para um sábio que busca elevar-se ao yoga, diz-se que ação
é o meio; só para alguém elevado em yoga, diz-se que o cessar é o
meio. 4 Decerto quando o indivíduo não se aferra nem aos objetos
dos sentidos nem às ações, abandonando todo o desejo egoísta, diz-
se, então, que ele se elevou ao yoga.
5 Deveria elevar-se o eu por meio do eu; não se deveria degradar
o eu. De fato, apenas o eu é amigo do eu; apenas o eu é inimigo do
eu. 6 O eu é amigo daquele eu mediante o qual apenas o eu se
conquista; mas esse mesmo eu pode atuar como inimigo, devido à
inimizade do não eu.[2] 7 Para indivíduos pacíficos que conquistam o
eu, o Eu Superior[3] se estabelece por completo perante frio e calor,
alegria e tristeza, bem como na honra e desonra.
8 Uma alma satisfeita com conhecimento e sabedoria, que se situa
no topo com os sentidos subjugados, diz-se estar conectada – um
yogī para quem barro, pedra e ouro são iguais. 9 Ainda melhor é
alguém com razão equânime em meio àqueles de bom coração,
amigos, inimigos, pessoas neutras, mediadores, odiosos e afins, e
mesmo em meio a santos e pecadores.
10 Sozinho, recluso, o eu e a mente refreados, sem ser cobiçoso
nem possessivo, um yogī deve sempre vincular o eu em yoga. 11
Num local puro, após estabelecer seu assento firme não muito alto
nem baixo, coberto de tecido, pele de antílope e grama kuśa 12 – e
sentar-se ali, tornando a mente unidirecionada, seus pensamentos e
atividades sensoriais refreados, ele deveria praticar yoga para
autopurificação. 13 Estável e imóvel, mantendo corpo, cabeça e
pescoço alinhados, focado bem na ponta do nariz, sem mirar em
direção alguma, 14 o eu calmo, livre de medo, firme no voto de
castidade, pensamentos em Mim, a mente sob controle – ele deveria
permanecer vinculado em yoga, dedicado a Mim. 15 Desse modo,
constantemente conectando o eu, um yogī de mente disciplinada
alcança o nirvāṇa da paz mais elevada, que reside em Mim.
16 O yoga, no entanto, não ocorre para aquele que come em
demasia ou que apenas jejua, nem para aquele que tem o hábito de
dormir demais ou só fica acordado. 17 [Porém,] yoga[4], que põe fim
ao sofrimento, ocorre para alguém cujas ações são dotadas de comer
e lazer adequados[5], esforço adequado, sono e vigília adequados. 18
Quando a mente, sob estrito controle, reside apenas no eu, sem
perseguir desejo egoísta algum, então diz-se que o indivíduo está
vinculado em yoga. 19 Compara-se um yogī de mente controlada,
praticando o yoga do eu, a uma lamparina que, protegida do vento,
não tremula.
20 Aquilo no qual a mente se acalma, refreada pela prática de
yoga, no qual o indivíduo fica satisfeito por ver o eu no Eu por meio
do eu,[6] 21 no qual conhece felicidade interminável além dos
sentidos, uma felicidade aceitável à razão, onde uma vez situado ele
não se afasta da verdade, 22 e ao adquirir o qual constata que não há
aquisição maior; situado no qual não se deixa desviar mesmo por
forte sofrimento – 23 a isso se chama yoga, o desvincular do vínculo
com o sofrimento. O indivíduo destina-se a praticar yoga com
convicção e mente intrépida.
24 Após abandonar por inteiro todos os desejos egoístas nascidos
da vontade e regular o conjunto de sentidos por meio da mente
apenas, 25 deve-se pouco a pouco chegar à quietude através da
razão sustentada com determinação. Ao fixar a mente com firmeza
no eu, não se deveria ponderar sobre nada mais; 26 e de onde quer
que a mente instável e inconstante divague, o indivíduo deveria
fazê-la recuar, trazendo-a sob o controle do eu apenas.
27 A felicidade última advém para um yogī de mente satisfeita e
paixão subjugada, que se abstém de impureza, tendo se unido a
Brahman. 28 Assim, um yogī, livre de impureza e sempre conectando
o eu, alcança alegremente interminável felicidade por meio de pleno
contato com Brahman.
29 Com visão equânime em toda parte, o eu vinculado em yoga vê
o Eu em todas as criaturas e todas as criaturas no Eu. 30 Para aquele
que Me vê em toda parte e vê tudo em Mim, Eu não estou perdido,
nem essa pessoa está perdida para Mim. 31 Um yogī é aquele que
reside em unidade e honra-Me em todas as criaturas. De qualquer
modo que viva, esse yogī vive em Mim. 32 Por comparação consigo
mesmo, aquele que vê com equanimidade em toda parte, quer na
alegria, quer na tristeza, é respeitado como o yogī mais elevado,
Arjuna.
33 Arjuna disse: Esse yoga com equanimidade que ensinas não
parece um estado duradouro, devido à instabilidade, Madhusūdana.
34 Pois a mente é deveras instável, tempestuosa, forte e teimosa,
Kṛṣṇa. Parece mais difícil refreá-la do que o vento.
35 O Senhor disse: Sem dúvida, homem de braços magníficos, a
mente se move de um lado para outro, difícil de refrear. Todavia,
pode-se capturá-la com prática e impassibilidade, Kaunteya. 36 Acho
difícil para uma alma indisciplinada atingir yoga, mas uma alma
controlada e esforçada é capaz de alcançá-lo pelos meios corretos.
37 Arjuna disse: Kṛṣṇa, qual é o destino de uma pessoa de fé cuja
mente desvia-se do yoga – que para de se esforçar, sem atingir a
perfeição do yoga? 38 Frustrada no caminho espiritual, ambos os
caminhos perdidos,[7] sem alicerce algum, ela não perece como uma
nuvem fendida? 39 Eis minha dúvida, Kṛṣṇa; deves dissipá-la por
completo. Além de Ti, decerto não há outro dissipador dessa dúvida.
40 O Senhor disse: Pārtha, jamais nesta vida ou na próxima essa
pessoa está arruinada. Querido amigo, decerto nenhum benfeitor
depara-se com um mau destino. 41 Após alcançar os mundos dos
benfeitores e lá habitar por miríades de anos, quem fracassou no
yoga nasce num lar puro e próspero. 42 Ou então nasce numa família
de yogīs sábios. Decerto, neste mundo, semelhante nascimento é bem
mais difícil de atingir. 43 Lá, ele se reconecta à compreensão obtida
na vida passada e, então, continua a se esforçar pela perfeição, filho
de Kuru. 44 Por essa prática anterior apenas, o indivíduo é
inevitavelmente trazido de volta; na busca de entender o yoga, ele
supera o Brahman-Verbo [8]. 45 Empenhando-se com verdadeiro
esforço, completamente limpo de impurezas e aperfeiçoado após
várias vidas, o yogī atinge o estado mais elevado.
46 Um yogī supera ascetas, e considera-se até que supera os
eruditos. Um yogī supera ritualistas. Portanto, sê um yogī, Arjuna. 47
E de todos os yogīs, considero como o mais vinculado em yoga aquele
cujo eu interior foi a Mim, que Me reverencia com fé.[9]
Capítulo 7
1 O Senhor disse: Ouve, Pārtha, como por praticar yoga sob Minha
proteção, com a mente fixa em Mim, tu Me conhecerás por completo
sem dúvida alguma. 2 Ensinarei a ti na íntegra esse conhecimento e
sabedoria, ciente dos quais, nada mais restará para ser conhecido
aqui. 3 Dentre milhares de pessoas, uma se esforça pela perfeição, e,
daquelas que se esforçam e têm sucesso, uma Me conhece de
verdade.
4 Terra, água, fogo, ar, espaço, mente, razão e egotismo – eis
Minha separada natureza óctupla. 5 Esta é inferior, ó homem de
braços magníficos, mas fica sabendo de Minha outra natureza
superior que anima o mundo: a entidade viva. 6 Compreende que
essas duas naturezas são a fonte de todos os seres – e que Eu sou a
origem e dissolução do cosmos inteiro.
7 Não há nada mais além de Mim, Dhanañjaya. Tudo isto repousa
em Mim como pérolas num cordão. 8 Sou o sabor na água,
Kaunteya, a luz da Lua e do Sol, o Om sagrado em todos os Vedas, o
som no espaço, a bravura nos homens. 9 Sou a fragrância pura na
terra, o esplendor no fogo, a vida em todos os seres e a austeridade
naqueles que são austeros. 10 Conhece-me, Pārtha, como a semente
perene de todos os seres, a razão dos racionais, o esplendor do
esplêndido. 11 Dos fortes, sou a força livre de desejo e paixão.
Dentre os seres, sou o desejo que não se opõe ao dharma, ó melhor
dos Bhāratas. 12 De fato, fica sabendo que todos os estados
virtuosos, passionais e obscuros originam-se apenas de Mim. Eu, no
entanto, não estou neles; eles estão em Mim.
13 Desconcertado por esses três estados modais, este mundo
inteiro não Me reconhece, que, imutável, estou acima desses
[estados]. 14 Esta Minha divina ilusão modal é deveras difícil de
superar. Aqueles que se aproximam apenas de Mim atravessam esta
ilusão.
15 Aqueles que agem mal não se aproximam de Mim: os tolos, os
mais baixos dos homens, aqueles cujo conhecimento é roubado pela
ilusão e aqueles que recorrem a estados ímpios. 16 Quatro tipos de
pessoas benfeitoras adoram a Mim, Arjuna: aquela que sofre, a que
busca conhecimento, aquela que ora por riqueza e aquela que tem
conhecimento, ó melhor dos Bhāratas. 17 Dentre essas, aquela que
tem conhecimento, sempre conectada em devoção singular, é
superior. Sou extremamente querido por quem tem conhecimento, e
essa pessoa também é querida por Mim.
18 Deveras todas essas são nobres; aquela que tem conhecimento,
no entanto, aceito como Meu próprio Eu, pois essa alma conectada
reside só em Mim, a meta última. 19 Após muitos nascimentos,
aquele que tem conhecimento aproxima-se de Mim, ciente de que
“Vāsudeva [Kṛṣṇa] é tudo.” Essa alma grandiosa é muito difícil de
encontrar.
20 Seguindo várias regras, regidos por suas próprias naturezas,
aqueles cujo conhecimento foi roubado aproximam-se de outras
divindades. 21 Quem quer que deseje adorar qualquer forma,
fielmente devotado, a cada um Eu concedo fé inabalável. 22 Com
essa fé, empreende-se adoração e, desse modo, obtêm-se desejos na
verdade concedidos apenas por Mim. 23 Mas [só] um fruto efêmero
advém àqueles que possuem pouco insight. Os que oferecem
sacrifícios aos deuses vão aos deuses. Meus devotos decerto vão a
Mim.
24 Sem conhecer Minha natureza superior, última e imutável,
pessoas sem sabedoria consideram-Me uma existência amorfa que
assume individualidade visível. 25 Não Me revelo a todos. Este
mundo confundido, coberto pela ilusão mística, não reconhece a
Mim – não nascido e imutável. 26 Conheço o passado, presente e
futuro de [todos] os seres, Arjuna. Mas a Mim ninguém conhece.
27 Bhārata, ó fustigador de adversários, devido à confusão da
dualidade oriunda de desejo e ódio, todos os seres entram em ilusão
ao nascerem. 28 Porém, aqueles que executaram atos piedosos, cujas
más ações cessaram, que estão livres de semelhante perplexidade,
adoram-Me com votos sólidos. 29 Dependentes de Mim, aqueles que
se esforçam por livrar-se de velhice e morte compreendem o
Brahman na íntegra, o eu superior e a ação como um todo. 30 Com
percepção vinculada em yoga, aqueles que Me conhecem como o
princípio superior da divindade, natureza e sacrifício, conhecem-Me
até no momento da passagem.
Capítulo 8
1 Arjuna disse: O que é Brahman, o que é o Eu Superior e o que é
ação, ó Pessoa Última? Que princípio governa a natureza? Que
princípio se diz governar os deuses? 2 Quem governa o sacrifício
aqui neste corpo, Madhusūdana, e como? E de que forma almas
disciplinadas podem conhecer-Te na hora da passagem?
3 O Senhor disse: Brahman é o imperecível supremo; afirma-se
que sua natureza é o Eu Superior.[1] A criação que gera o estado de
existência de um ser denomina-se karma. 4 Um estado perecível é o
princípio da natureza, e o princípio da divindade é a Pessoa. Apenas
Eu, aqui neste corpo, sou o princípio do sacrifício, ó melhor dos
portadores de um corpo.
5 Na hora final, aquele que parte lembrando-se apenas de Mim
enquanto se desprende do corpo, vai ao Meu estado de existência;
quanto a isso, não há dúvida. 6 De fato, o indivíduo decerto alcança
o mesmo estado de que se recorda enquanto deixa o corpo,
Kaunteya, seja qual for esse estado, pois ele sempre causou esse
estado de existência vindouro.[2] 7 Em todos os momentos, portanto,
lembra-te de Mim e luta. Com razão e mente focados em Mim, sem
dúvida virás apenas a Mim.
8 Com mente inabalável, vinculado por meio de yoga disciplinado,
alcança-se a suprema Pessoa divina, sempre pensando Nele. 9 O
indivíduo deveria lembrar-se [Dele] como o observador ancestral e
governante permanente, menor que o menor, o criador de tudo, com
forma inconcebível, luminoso como o Sol, além da escuridão. 10 Na
hora da passagem, repleto de devoção e poder de yoga, a mente
imóvel, fixando o ar vital entre as sobrancelhas, ele alcança essa
suprema Pessoa divina.
11 Agora descreverei brevemente a ti aquilo que os conhecedores
dos Vedas denominam “o lugar imperecível”, no qual entram ascetas
livres de paixão, desejando o qual seguem princípios castos. 12 Por
restringir todos os portões [corporais], fixar a mente no coração e
posicionar o ar vital no topo da cabeça, o indivíduo situa-se na
plataforma de yoga. 13 Enquanto ressoa o Absoluto sob a forma do
monossílabo Om e continuamente se lembra de Mim, ele parte,
então, do corpo e alcança o destino mais elevado.
14 Pārtha, Eu sou fácil de alcançar para o yogī sempre conectado
que, a todo momento, lembra-se de Mim com a mente sempre
indesviável. 15 Após alcançarem-Me, almas grandiosas jamais
retornam ao nascimento neste transitório reino de sofrimento, pois
atingiram a perfeição última. 16 Todos os reinos, desde a Terra até
mesmo a morada de Brahmā, são lugares dos quais é preciso
retornar. Contudo, ao Me alcançar, Kaunteya, jamais se renasce.
17 Aqueles que conhecem corretamente dia e noite sabem que o
dia de Brahmā perdura por mil eras, assim como sua noite. 18 Com a
chegada do dia, todos os seres manifestos emergem daquilo que se
chama “o imanifesto” e, com o advento da noite, são reabsorvidos ali
mesmo no imanifesto. 19 Repetidas vezes vindo a existir, Pārtha, esse
próprio conjunto de criaturas, à noite, é irremediavelmente
reabsorvido e, de dia, surge [de novo].
20 Ainda superior a esse imanifesto encontra-se outro imanifesto
eterno, o qual não perece quando todos os seres estão
desaparecendo. 21 Chamam esse imanifesto imperecível de
“caminho mais elevado”, alcançando o qual eles não retornam, pois
essa é Minha morada suprema. 22 Pela devoção exclusiva, pode-se
decerto alcançar essa Pessoa Suprema, em quem [todos] os seres
existem e por quem este mundo inteiro é permeado.
23 Ó melhor dos Bhāratas, agora direi a ti quais são aqueles
momentos nos quais os yogīs de partida retornam ou não retornam.
24 Pessoas conhecedoras de Brahman que partem durante o fogo, a
luz, o dia, a Lua cheia e a jornada semestral do Sol pelo norte vão a
Brahman. 25 Retorna, porém, aquele yogī que parte durante a
fumaça, a noite, a Lua minguante e a jornada semestral do Sol pelo
sul, alcançando a luz da Lua. 26 Agora, consideram-se perpétuas
essas claras e escuras passagens do mundo; por um caminho, não se
retorna, e pelo outro, sim. 27 Por conhecer esses dois caminhos,
Pārtha, um yogī nunca se deixa confundir; por isso, fica sempre
vinculado em yoga, Arjuna. 28 Um yogī, ciente de tudo isso, supera
qualquer fruto auspicioso ordenado nos Vedas, em sacrifícios,
penitências e também em caridades – e chega ao status supremo
original.
Capítulo 9
1 O Senhor disse: A ti que não invejas, ensinarei este mais
magnífico mistério – conhecimento combinado com sabedoria –,
ciente do qual te livrarás de infortúnio. 2 Soberana ciência, soberano
mistério, este é o purificador último. Assimilado pela percepção
direta, é virtuoso, muito alegre de praticar e imperecível. 3 Aqueles
que não confiam nesse dharma não Me alcançam, fustigador de
adversários, mas, sim, retornam à estrada dos ciclos de morte.
4 Permeio todo este mundo com Meu aspecto invisível. Todos os
seres situam-se em Mim; não Me situo neles. 5 E [no entanto] os
seres não se situam em Mim. Contempla Meu yoga[1] majestoso!
Sustento os seres, e não Me situo neles, pois Meu Eu causa a
existência dos seres. 6 Compreende que, assim como o magnífico
vento, que vai a toda parte, sempre permanece no espaço; do mesmo
modo, todos os seres situam-se em Mim.
7 Ao final da era, Kaunteya, todos os seres vão à Minha natureza,
e, no início da era, Eu os gero de novo. 8 Utilizando Minha própria
natureza, repetidas vezes gero esta multidão inteira de seres, que são
impotentes sob o poder da natureza. 9 E essas ações não Me atam,
situado como alguém que se encontra à parte, Dhanañjaya –
desapegado dessas ações.
10 Sob Minha supervisão, a natureza produz aquilo que é móvel e
imóvel; por esse motivo, Kaunteya, o mundo gira em seus ciclos. 11
Sem conhecer Meu estado superior de existência como o magnífico
senhor dos seres, tolos desdenham de Mim enquanto me ocupo sob
uma forma humana. 12 Com esperanças vãs, ações vãs e
conhecimento vão, os desajuizados aferram-se a uma natureza
ilusória, demoníaca e ímpia.
13 Porém, almas grandiosas, Pārtha, refugiadas na natureza
divina e cientes da fonte imutável dos seres, adoram-Me com mentes
indesviáveis. 14 Sempre Me louvando e empenhando-se com votos
sólidos, reverenciando-Me com devoção, sempre conectadas, elas Me
veneram. 15 Outros, no entanto, ao ofertarem com uma oferenda de
conhecimento, veneram-Me na unidade, na separação e na forma
múltipla que está voltada para toda parte.
16 Sou o rito, a oferenda e a bênção – apenas Eu, a erva curativa, o
mantra, a manteiga clarificada e a oblação. 17 Sou o pai, a mãe, o
criador e o avô deste mundo; sou o cognoscível, o purificador e a
sagrada vibração Om; de fato, sou o Ṛg-Veda, Sāma-Veda e Yajur-Veda.
18 Sou o caminho, o sustentáculo, o Senhor, a testemunha, a morada
e o refúgio; o amigo bondoso, a origem, a dissolução, o suporte, o
receptáculo e a semente imperecível. 19 Sou Eu quem fornece calor e
quem retém e lança chuva. Apenas Eu sou a imortalidade, ó Arjuna
– bem como a morte, a existência e a não existência.
20 Aqueles que conhecem as três ciências,[2] bebedores de soma
purificados do pecado, venerando-Me com oferendas, rogam por
acesso ao paraíso. Ao aproximarem-se do meritório mundo de
Surendra, eles desfrutam no paraíso os prazeres celestiais dos
deuses. 21 Após desfrutarem o vasto mundo celestial e esgotarem
seu mérito, ingressam [outra vez] no mundo mortal. Tendo assim
devidamente seguido o dharma dos três Vedas e seus desejos
desejados, eles atingem só idas e vindas.
22 Pessoas que Me adoram sem pensar em ninguém mais, sempre
diligentes – a elas, Eu trago suporte e segurança. 23 Aqueles, no
entanto, que com devoção e fé fazem oferendas a outras divindades
– até eles fazem oferendas a Mim apenas, Kaunteya, incorretamente.
24 Pois sou o único Senhor e desfrutador de todas as oferendas. No
entanto, eles não Me reconhecem de verdade e, por isso, caem.
25 Aqueles comprometidos com deuses vão aos deuses, aqueles
comprometidos com ancestrais vão aos ancestrais, adoradores de
espíritos vão aos espíritos, mas Meus adoradores vão a Mim. 26
Quando alguém dedica a Mim com devoção uma folha, flor, fruta ou
água, Eu aceito esse presente devotado de uma alma dedicada. 27
Tudo o que fizeres, tudo o que comeres, tudo o que sacrificares, tudo
o que presenteares, qualquer dificuldade a que te submeteres – faze
disso uma oferenda a Mim. 28 Desse modo, ficarás livre dos bons e
maus frutos, que são cativeiro de karma. Como uma alma liberta
vinculada pelo yoga da renúncia, virás a Mim.
29 Sou igual para com todos os seres; nem odeio nem favoreço.
Todavia, aqueles que Me veneram com devoção estão em Mim, e de
fato Eu estou neles. 30 Mesmo que o indivíduo comporte-se muito
mal, se Me ama com exclusividade, deve ser considerado virtuoso,
por estar corretamente determinado. 31 Ele logo se torna uma alma
dhármica e ingressa na paz duradoura. Ó Kaunteya, declara que
alguém devotado a Mim não se perde. 32 De fato, Pārtha, aqueles
que se refugiam em Mim, quer provenham até mesmo de ventres
ruins, quer sejam mulheres, comerciantes, agricultores ou operários
– também alcançam a meta mais elevada. 33 O que se dizer, então,
de brāhmaṇas puros, devotos e santos régios? Assim, tendo vindo a
este mundo impermanente e infeliz, adora-Me! 34 Sê consciente de
Mim, devotado a Mim, faze oferendas a Mim, reverencia-Me; por
conectar desse modo tua alma, devotado por inteiro a Mim, virás
apenas a Mim.
Capítulo 10
1 O Senhor disse: Mais uma vez, homem de braços magníficos,
ouve Minha palavra suprema. Por desejar teu bem, pois és amado,
falarei a ti. 2 Nem multidões de deuses, nem sábios grandiosos
conhecem Minha origem, pois sou inteiramente a fonte dos deuses e
sábios grandiosos. 3 Aquele que Me conhece como não-nascido e
sem começo, o magnífico senhor dos mundos, não se confunde
dentre os mortais e está livre de todos os pecados.
4 Razão, conhecimento, ausência de perplexidade, perdão,
verdade, disciplina, serenidade, felicidade, infelicidade, gênese, não
existência, perigo e segurança; 5 inofensividade, equanimidade,
satisfação, austeridade, caridade, fama, infâmia – esses estados em
várias formas originam-se apenas de Mim. 6 Os antigos sete sábios
grandiosos e os quatro manus nascem da Minha mente e
compartilham da Minha natureza. A progênie deste mundo advém
deles. 7 Aquele que conhece de verdade esse Meu vasto poder e yoga
ocupa-se em inabalável yoga. Quanto a isso, não há dúvida.
8 Eu sou a fonte de tudo; de Mim, tudo emana. Por constatarem
isso e repletos de sentimento, indivíduos inteligentes devotam-se a
Mim. 9 Seus pensamentos estão em Mim, suas vidas repousam em
Mim. Iluminando-se uns aos outros e sempre falando sobre Mim,
eles encontram satisfação e prazer. 10 Àqueles que estão sempre
conectados e prestam adoração com amor, Eu dou o yoga da razão,
pelo qual eles vêm a Mim. 11 Para eles apenas, por uma questão de
misericórdia, Eu dissipo com a lamparina brilhante do conhecimento
a escuridão nascida da ignorância, pois habito no âmago da alma.
12 Arjuna disse: Tu és o Brahman supremo, a morada suprema e o
purificador último; a eterna Pessoa divina e o Deus original – não
nascido e onipotente. 13 Todas as pessoas com visão, tais como
Devarṣi Nārada, Asita, Devala e Vyāsa, falam isso a Teu respeito, e
de fato estás me dizendo isso em pessoa. 14 Keśava, aceito como
verdade tudo que me dizes. Nem deuses, nem demônios conhecem
Tua personalidade, Senhor. 15 Só Tu mesmo conheces Teu próprio
Eu mediante Teu próprio Eu, ó Pessoa Suprema, que causa a
existência dos seres! Senhor dos seres! Deus dos deuses! Mestre do
mundo! 16 Gentilmente descreve por completo Teus vastos poderes
divinos – poderes pelos quais continuas a permear estes mundos.
17 Ó Yogī, como deveria compreender-Te enquanto esteja sempre
meditando em Ti? E em quais diversos estados, Senhor, devo
meditar em Ti? 18 Janārdana, relata outra vez com pormenores Teu
yoga e Teu vasto poder. Não me sacio de ouvir esse néctar.
19 O Senhor disse: Ouve! Relatarei, de fato, Meus vastos poderes,
melhor dos Kurus – os principais, pois não há fim para Minha
expansão. 20 Sou a alma, Guḍākeśa, presente no coração de todo ser.
Com efeito, sou o início, meio e fim dos seres. 21 Dos ādityas, sou
Viṣṇu; dentre corpos luminosos, o Sol radiante. Dos maruts, sou
Marīci; dentre as mansões lunares, a Lua. 22 Dos Vedas, sou o Sāma-
Veda; dos deuses, sou Vāsava; dos sentidos, sou a mente, e dos seres,
sou a consciência. 23 Dos rudras, sou Śaṅkara; dentre yakṣas e rakṣas,
o senhor da riqueza. Dos vasus, sou o Fogo; sou Meru dentre picos
altíssimos. 24 Dos sacerdotes, Pārtha, fica sabendo que sou
Bṛhaspati, o principal. Dos líderes militares, sou Skanda, e dos
corpos d’água, sou o oceano. 25 Dos sábios grandiosos, sou Bhṛgu;
das palavras, sou o monossílabo imperecível. Dos sacrifícios, sou o
recitar silencioso; dos objetos estáveis, o Himālaya.
26 Das árvores, sou a figueira sagrada, e dos sábios divinos,
Nārada. Dos gandharvas, sou Citra-ratha, e sou o sábio Kapila dentre
os seres perfeitos. 27 Dos cavalos, fica sabendo que sou Uccaiḥśravā,
que surgiu do néctar; dos elefantes líderes, Airāvata, e dos seres
humanos, seu governante. 28 Das armas, sou o raio; dentre vacas,
Kāma-dhuk[1]. Sou o progenitor Kandarpa. Das serpentes, sou
Vāsuki. 29 E sou Ananta dentre nāgas. Dos imensos seres aquáticos,
sou Varuṇa; dos ancestrais, sou Aryamā, e dos subjugadores, sou
Yama [senhor da morte]. 30 Dos daityas, sou Prahlāda; dos
impulsionadores, sou o Tempo; das feras, sou o leão, senhor das
feras, e dentre seres alados, sou Garuḍa, filho de Vinatā. 31 Dos
purificadores, sou o vento purificante; dos portadores de arma, sou
Rāma; dos grandes peixes, sou o tubarão, e sou Jāhnavī [o Ganges]
dentre águas correntes.
32 Das criações, sou o início e o fim e, de fato, o meio, Arjuna. Das
ciências, sou a ciência do eu. Daquelas declarações afirmativas, sou a
conclusão clara. 33 Das letras, sou a letra A, e das palavras
compostas, sou o par. Apenas Eu sou o Tempo imperecível; Eu, o
Criador voltado para todas as direções. 34 Sou a morte que tudo leva
e o advento de tudo que virá. Do feminino, sou a fama, a beleza, a
fala, a memória, a razão, a firmeza e o perdão. 35 Assim também,
dos hinos sou o Hino magnífico; e dos cânticos metrificados, o
Gāyatrī. Dos meses, sou o cabeça da trilha;[2] das estações, a mina de
flores.[3]
36 Dos enganadores, sou o jogo de dados. Sou o esplendor do
esplêndido. Sou a vitória. Sou a determinação. Sou a essência do
essencial. 37 Dos Vṛṣṇis, sou Vāsudeva; dos Pāṇḍavas, Arjuna. De
fato, dos sábios sou Vyāsa; dos pensadores, o erudito Uśanā. 38 Sou
o bastão dentre domadores e sou a conduta moral dentre aqueles
que buscam vitória. E, deveras, dos segredos sou o silêncio. Dos
sábios, sou a sabedoria. 39 E sou aquilo que é a semente de todos os
seres, Arjuna. Nenhum ser, móvel ou imóvel, pode existir sem Mim.
40 Não há fim para Meus vastos poderes divinos, fustigador de
adversários. Da vasta extensão do Meu poder, dou só um exemplo.
41 Fica sabendo que cada um dos seres que possui poder, beleza ou
verdadeira excelência brota de uma parte do Meu esplendor. 42
Contudo, então, que necessidade tens de aprender tanto, Arjuna?
Com um único fragmento de Mim mesmo, sustento firmemente este
Universo inteiro.
Capítulo 11
1 Arjuna disse: Para me favorecer, falaste o mistério supremo
chamado Eu Superior.[1] Aquelas palavras dissiparam minha ilusão.
2 Ó pessoa com olhos de pétalas de lótus, ouvi de Ti com
pormenores sobre o surgimento e desaparecimento dos seres, e sobre
Tua imperecível majestade. 3 Senhor Supremo, ó pessoa mais
elevada, agora desejo ver Tua forma senhoril, tal como Tu mesmo
descreveste! 4 Mestre, se achas possível que eu veja, mostra-me Teu
Eu imperecível, ó senhor do Yoga.
5 O Senhor disse: Contempla, Pārtha, Minhas formas divinas às
centenas e milhares, de muitos tipos e cores, em muitos formatos. 6
Contempla ādityas, vasus, rudras, os gêmeos aśvins e maruts.
Contempla, Bhārata, muitas maravilhas nunca antes vistas! 7
Contempla agora o mundo inteiro num lugar, em Meu corpo,
Guḍākeśa, com aquilo que é móvel e imóvel e tudo mais que desejar
contemplar! 8 Porém, és incapaz de ver-Me com teus olhos apenas.
Dou-te olhos divinos. Contempla Meu Yoga majestoso!
9 Sañjaya disse: Após falar assim, ó rei, o magnífico senhor do
yoga, Hari, revelou, então, a Pārtha Sua forma majestosa suprema: 10
muitas bocas e olhos, muitas visões maravilhosas, muitos
ornamentos divinos, muitas armas divinas erguidas! 11 Portava
vestimentas, guirlandas divinas, aromas e unguentos divinos, todos
miraculosos, celestiais, intermináveis – voltado para toda parte! 12
Se mil sóis pudessem nascer de uma só vez no céu, essa luz talvez se
assemelhasse à luz dessa Alma Grandiosa.
13 Lá, no corpo do Deus dos deuses, Pāṇḍava contemplou o
Universo inteiro num lugar, ainda que variadamente dividido. 14
Repleto de espanto, pelos do corpo arrepiados, Dhanañjaya,
curvando sua cabeça perante Deus [Kṛṣṇa], falou, então:
15 Arjuna disse: Ó Deus, em Teu corpo, contemplo o Senhor
Brahmā no assento de lótus, todos os deuses e diferentes sociedades
de seres, todos os sábios e serpentes divinas. 16 Em todos os lados,
contemplo Tua forma infinita, com muitos braços, abdomens, faces e
olhos. Não vejo fim, nem meio, tampouco Teu início, Senhor
Cósmico, Forma Cósmica. 17 Contemplo-Te com coroa, maça e disco
– um aglomerado de esplendor a reluzir por toda parte, difícil de
observar na íntegra, brilhante como fogo abrasador e o Sol!
Imensurável!
18 És imperecível, o cognoscível último. És o receptáculo
supremo. És o protetor imperecível do dharma eterno. Considero-Te a
Pessoa eterna. 19 Contemplo-Te, sem começo, meio ou fim, de
proezas intermináveis e braços infindáveis, cujos olhos são a Lua e o
Sol, e Tua boca, um fogo abrasador que consome oblações à medida
que aqueces o mundo com Teu esplendor. 20 Da Terra ao céu, apenas
Tu permeias este espaço e todas as direções. Ao ver esta Tua
maravilhosa forma feroz, Grandiosa Alma, os três mundos tremem.
21 De fato, estas sociedades de deuses entram em Ti; alguns,
temerosos, oram de mãos postas, dizendo: “Que prosperemos!”
Sábios grandiosos e seres perfeitos enaltecem-Te com plenos
louvores fervorosos. 22 Rudras, ādityas, vasus, todos os sādhyas, viśvas,
maruts e bebedores de calor,[2] grupos de gandharvas, yakṣas, asuras e
siddhas – todos simplesmente admiram-Te, espantados! 23 Ó homem
de braços magníficos, ao verem Tua monumental forma com muitas
bocas e olhos, muitos braços, coxas e pés, muitos abdomens e muitos
dentes horrorosos – os mundos estremecem, bem como eu. 24 De
fato, vendo-Te tocar o céu, a flamejar com muitas cores, bocas
escancaradas, imensos olhos em chamas, meu eu interior treme. Ó
Viṣṇu, não encontro nem paz nem suporte. 25 Simplesmente por ver
Teus dentes horrorosos e Teus rostos semelhantes ao fogo do Tempo,
não distingo as direções. Não encontro refúgio. Ó senhor dos deuses,
sê clemente! Ó morada do mundo!
26 Todos estes filhos de Dhṛta-rāṣṭra, com grupos de governantes
terrenos, Bhīṣma, Droṇa e aquele filho de Sūta, mesmo juntos com
nossos melhores combatentes, 27 todos a se precipitarem, entram em
Tuas bocas que possuem dentes horrorosos e aterrorizantes. Alguns
[combatentes] são claramente vistos presos entre os dentes, com
cabeças pulverizadas.
28 Assim como muitas corredeiras dos rios lançam-se apenas para
o mar, esses heróis do mundo mortal entram em Tuas bocas
violentamente abrasantes. 29 Assim como mariposas, rumo à
destruição, entram no fogo abrasante com força total; da mesma
forma, estes mundos, rumo à destruição, entram em Tuas bocas com
força total. 30 Lambendo ferozmente todos os mundos por todos os
lados com Tuas bocas flamejantes, Viṣṇu, Teus raios incineram o
Universo, enchendo-o de radiância. 31 Declara para mim! Quem és
Tu, pessoa de forma feroz? Permite-me reverenciar-Te, Deus
excelentíssimo. Sê clemente! Desejo entender a Ti, que és o Primeiro.
Não compreendo Tuas ações.
32 O Senhor disse: O Tempo – destruidor do mundo, expandido,
encarregado aqui de recolher os mundos – sou Eu. Mesmo sem ti,
todos os combatentes situados nos exércitos oponentes não viverão.
33 Portanto, levanta-te! Obtém glória ao vencer os inimigos! Governa
um reino próspero! Eu sozinho já os matei; tu, Savya-sācī, sê apenas
um instrumento! 34 Mata aqueles mortos por Mim: Droṇa, Bhīṣma,
Jayadratha, Karṇa e ainda outros heróis guerreiros. Não hesites!
Luta! Vencerás os adversários na batalha.
35 Sañjaya disse: Após ouvir essas palavras de Keśava, o coroado
Arjuna, trêmulo, curvou-se de mãos postas. Extremamente
amedrontado, a voz embargada, inclinando-se para frente, ele falou
outra vez com Kṛṣṇa.
36 Arjuna disse: Corretamente, Hṛṣīkeśa, o mundo se regozija
ante Tua glória e se afeiçoa a Ti. Demônios temerosos fogem em
todas as direções e todas as sociedades consumadas se prostram. 37
E por que não deveriam reverenciar a Ti, Grandiosa Alma, Primeiro
Criador – superior até mesmo a Brahmā? Ó infinito senhor dos
deuses, morada cósmica, és o imperecível, existência e não
existência, e o que está além. 38 Deus original, és a pessoa
primordial, és o supremo local de repouso deste Universo, o
conhecedor, o cognoscível, a morada suprema. Permeias o Universo,
ó Forma Infinita!
39 Tu és Vāyu, Yama, Agni, Varuṇa, Śaśāṅka, Prajā-pati e o bisavô.
Reverencio-Te. Permite-me reverenciar e reverenciar a Ti mil vezes –
e de novo e ainda mais! Reverencio, reverencio-Te! 40 Reverencio-Te
de frente, então por trás. Permite-me reverenciar-Te por todos os
lados, ó Tudo! Ó Proeza Infinita, Força Imensa. Englobas tudo, por
isso és tudo.
41-42 Por considerar-Te um amigo, tomei liberdades, sem
conhecer esta Tua glória. Por loucura ou amor, eu falava: “Ó Kṛṣṇa,
Yādava, amigo!” Só para provocar, insultei-Te, Acyuta, ao me
divertir, repousar, sentar e comer – a sós ou mesmo acompanhados.
Por isso, imploro a Ti, o imensurável, que me perdoes.
43 Tu és o Pai do mundo móvel e imóvel, e és o venerável Mestre
dos mestres do mundo. Ninguém se equipara a Ti – o que se dizer
de alguém ser superior? Incomparável é Teu poder, mesmo em
[todos os] três mundos. 44 Portanto, curvando-me, prostrando meu
corpo, imploro a Ti, Senhor adorável, sê bondoso comigo. Como de
pai para filho, amigo para amigo, amante para amante, ó Deus, sê
indulgente comigo!
45 Ao ver o que jamais fora visto, estou emocionado e minha
mente está agitada de medo. Sê bondoso, senhor dos deuses,
Morada do Mundo. Mostra-me só aquela forma de Deus. 46 Desejo
ver-Te apenas assim: com coroa e maça, disco na mão. Ó pessoa com
milhares de braços, ó Forma Cósmica, aparece apenas nessa forma
com quatro braços.
47 O Senhor disse: Por estar satisfeito contigo, Arjuna, através do
Meu yoga pessoal, revelei esta excepcional forma primordial, feita de
esplendor, universal, infinita, nunca antes vista por qualquer outro.
48 Não é pelos Vedas, sacrifícios ou estudos, não é por presentes, nem
ritos, nem severas penitências que alguém, à exceção de ti no reino
humano, pode ver-Me em tal forma, herói Kuru. 49 Não fica
alarmado nem perplexo ao ver semelhante forma assustadora
Minha. Com o medo dissipado, a mente jubilosa, contempla outra
vez esta Minha forma apenas!
50 Sañjaya disse: Ao falar assim a Arjuna e apaziguar essa pessoa
temerosa, a Grandiosa Alma, Vāsudeva, revelou Sua própria forma,
assumindo novamente um belo corpo sublime.
51 Arjuna disse: Janārdana, ao ver esta Tua sublime forma
semelhante à humana, estou agora restabelecido, racional, natural.
52 O Senhor disse: A Minha forma que acabas de contemplar é
muito difícil de ver. Até deuses sempre anseiam por uma visão desta
forma. 53 Não é pelos Vedas, nem austeridades, nem doações, nem
sacrifícios que posso ser visto como tu Me viste. 54 No entanto, pela
devoção exclusiva, Arjuna, assim é possível conhecer e ver a Mim de
verdade, e alcançar-Me, ó fustigador de adversários. 55 Aquele que
executa ações para Mim, tendo-Me como supremo, que é devotado a
Mim e desprovido de apego, e que não odeia ser algum – essa
pessoa vem a Mim, Pāṇḍava.
Capítulo 12
1 Arjuna disse: Os devotos, desse modo, adoram a Ti, sempre
conectados; enquanto outros adoram o Invisível perene. Qual deles
melhor compreende yoga?
2 O Senhor disse: Aqueles que Me adoram com fé transcendental,
sempre conectados, fixando suas mentes em Mim, Eu considero
como os mais vinculados em yoga. 3 Porém, aqueles que adoram o
Invisível inefável e perene, que existe em toda parte, inconcebível,
imutável, imóvel e fixo; 4 que controlam o conjunto de sentidos, que
julgam com imparcialidade em toda parte, dedicados ao bem de
todos os seres – atingem apenas a Mim.
5 Aqueles cuja mente está apegada ao Invisível submetem-se a um
transtorno bem maior. Com dificuldade, o ser corporificado faz a
passagem invisível. 6 No entanto, aqueles que entregam todas as
ações a Mim, devotados a Mim, que Me adoram por meio de
meditação com yoga puro e exclusivo, 7 com suas mentes fixas em
Mim – Eu os ergo sem demora do oceano de ciclos de morte, ó
Pārtha.
8 Fixa tua mente apenas em Mim, investe tua razão em Mim;
doravante residirás apenas em Mim, sem dúvida. 9 Se és incapaz de
focar por completo tua mente em Mim com firmeza, procura
alcançar-Me pela prática de yoga, Dhanañjaya. 10 Se nem mesmo és
capaz de praticar, devota-te à Minha obra; por trabalhar para Mim,
decerto alcançarás a perfeição. 11 Se isso também és incapaz de
fazer, então, refugiado em Meu yoga e com autodomínio, abandona
todos os frutos da ação.
12 Conhecimento é melhor do que prática. Meditação supera
conhecimento. Abdicação do fruto da ação é melhor do que
meditação. A paz advém de imediato da abdicação.
13 Sem odiar nenhum ser, amigável e também bondoso, sem eu
nem meu, equânime na tristeza e alegria, clemente; 14 um yogī
sempre satisfeito, autodisciplinado, de convicção firme, que investe
mente e inteligência em Mim – alguém assim devotado a Mim é
querido por Mim. 15 Aquele que não aflige o mundo e que o mundo
não aflige, que está livre de exultação, intolerância, medo e aflição,
esse também é querido por Mim.
16 Imparcial, decente, perito, neutro, sem perplexidade, abdicado
em todas as empreitadas – alguém assim devotado a Mim é querido
por Mim. 17 Aquele que não se exulta, nem odeia, nem se aflige,
nem anseia – uma alma devotada que abdica na ventura e no pesar –
esse é querido por Mim. 18 Igual para com inimigo e amigo, honra e
desonra; equânime no frio, calor, alegria e tristeza; desprovido de
apego; 19 equânime na calúnia e elogio, silencioso, satisfeito com
qualquer coisa, sem residência, de mente estável – essa pessoa
devotada é querida por Mim. 20 Deveras, aqueles que veneram esse
dharma imortal conforme descrito, confiantes nele, dedicados a Mim
– esses devotos são extremamente queridos por Mim.
Capítulo 13
1 Arjuna disse: Keśava, quero entender a natureza e a alma, o
campo e o conhecedor do campo, o conhecimento e o cognoscível.
2 O Senhor disse: Este corpo, Kaunteya, denomina-se “o campo”.
Seus conhecedores chamam aquele que o compreende de
“conhecedor do campo”. 3 Compreende que Eu também sou o
conhecedor do campo em todos os campos, Bhārata. Considero que
conhecimento é esse conhecimento do campo e do conhecedor do
campo.
4 Agora, ouve-Me falar, em resumo, o que é esse campo – sua
natureza, transformações e fonte – e quem lhe outorga poder. 5 Isso é
cantado de muitas maneiras e com diversos hinos por pessoas com
visão e, de fato, pelas palavras racionais e conclusivas do Brahma-
sūtra.
6 Os elementos densos, egotismo, razão, o imanifesto, os onze
sentidos[1] e os cinco objetos dos sentidos; 7 desejo, ódio, felicidade,
tristeza, a amálgama, consciência e vontade – isso, em suma,
denomina-se “o campo com transformações”.
8 Ausência de orgulho, ausência de duplicidade, inofensividade,
perdão, retidão, serviço aos mestres espirituais, limpeza,
estabilidade, autocontrole; 9 impassibilidade ante objetos dos
sentidos, ausência de egotismo, reflexão sobre as dolorosas
imperfeições subjacentes a nascimento, morte, velhice e doença; 10
desapego, não obsessão acerca de filhos, cônjuge, lar etc., constante
equanimidade perante acontecimentos desejados e indesejados; 11
devoção inabalável a Mim através de yoga exclusivo, afluência a um
lugar recluso, desagrado para com reuniões públicas; 12 constância
no autoconhecimento e visão do valor de conhecer a verdade –
declara-se que isso é conhecimento. O contrário disso é ignorância.
13 Declararei a ti o cognoscível, conhecendo o qual o indivíduo
desfruta do imortal: o Brahman sem começo, subordinado a Mim e
que se diz ser nem existente nem não existente. 14 Em toda parte,
estão suas mãos e pés; em toda parte, seus olhos, cabeça e boca. Ele
ouve em toda parte neste mundo. Englobando tudo, ele permanece.
15 Semelhante a todos os modos dos sentidos, ele é desprovido de
todos os sentidos; desapegado, sozinho sustenta tudo – livre dos
modos e governante dos modos. 16 Fora e dentro dos seres, imóvel e,
no entanto, móvel, é muito sutil para ser compreendido, muito
distante e próximo. 17 Indiviso nos seres, situa-se como se dividido.
Sustentador dos seres, deve ser conhecido como devorador e
produtor. 18 Das luzes, é aquela luz além da escuridão. É o
conhecimento, o cognoscível e a meta do conhecimento – presente no
coração de todos.
19 Assim, descrevem-se, em resumo, campo, conhecimento e
cognoscível. Por compreender isso, Meu devoto alcança Meu estado
de existência.
20 Fica sabendo que tanto a natureza quanto a alma, na verdade,
não têm começo. Fica sabendo também que as transformações e os
modos originam-se da natureza. 21 Afirma-se que a natureza é o
motivo para causa, efeito e atividade. Declara-se que a alma é o
motivo para a experiência de alegria e tristeza. 22 De fato, presente
na natureza, a alma experiencia os modos nascidos da natureza.
Aferrar-se aos modos causa o nascimento da alma em bons e maus
ventres.
23 Testemunha, permissor, mantenedor, desfrutador, magnífico
Senhor – afirma-se, de fato, que Ele é o Eu Supremo neste corpo, a
Pessoa mais elevada. 24 Aquele que assim conhece a alma e a
natureza, junto com os modos, não renasce, a despeito de como viva
no presente.
25 Alguns veem o eu no Eu mediante o eu através de meditação;
outros, através do yoga da análise; e outros, por meio do yoga da
ação. 26 Outros ainda, sem saber disso, aproximam-se ao ouvir de
terceiros. Dedicados a ouvir, até eles deveras sobrepujam a morte. 27
Fica sabendo que qualquer entidade em absoluto, fixa ou móvel,
nasce quando campo e conhecedor do campo se conectam.
28 Vê de fato aquele que vê o Senhor Supremo igualmente situado
em todos os seres, imperecível enquanto eles perecem. 29 Na
verdade, por ver o Senhor habitando igualmente em toda parte, o
indivíduo não maltrata o eu mediante o eu. Então, ele percorre o
caminho mais elevado.
30 As ações estão sendo feitas por completo pela natureza apenas.
Vê de fato aquele que vê o eu como não agente. 31 Quando se
percebe que [todos] os estados distintos dos seres situam-se no Uno
e expandem-se apenas a partir Daquilo, então se avança rumo a
Brahman. 32 Sem começo, livre dos modos, essa Alma Suprema
imutável não decai. Embora presente no corpo, Ele nem age nem é
maculado. 33 Assim como o espaço onipresente, devido à sua
sutileza, não se polui; da mesma maneira, o eu que permeia o corpo
não se polui. 34 Assim como um sol ilumina todo este mundo, o uno
no campo ilumina todo o campo, Bhārata. 35 Alcançam o Supremo
aqueles que, desse modo, com os olhos do conhecimento, sabem a
diferença entre campo e conhecedor do campo, e como os seres se
libertam da natureza.
Capítulo 14
1 O Senhor disse: Mais uma vez declararei o conhecimento último
de todo conhecimento, cientes do qual todos os sábios foram daqui à
perfeição suprema. 2 Por terem-se valido deste conhecimento, eles
chegaram a compartilhar Minha natureza. Mesmo no momento da
criação, eles não nascem; e na dissolução, não ficam perplexos.
3 Meu ventre é o Grandioso Brahman.[1] Nele, Eu coloco o
embrião. Desse modo, advém a gênese de todos os seres, Bhārata. 4
Quaisquer formas que venham a estar em todos os ventres,
Kaunteya, o Grandioso Brahman é seu ventre; Eu, seu Pai que dá a
semente.
5 Bondade, paixão, escuridão – modos nascidos da natureza –
atam o corporificado imutável ao corpo, ó homem de braços
magníficos. 6 Dentre eles, a bondade, sendo impoluta, dá luz e é
livre de moléstia. Ela ata por meio do apego a felicidade e
conhecimento, ó homem impecável. 7 Fica sabendo que anseio,
decorrente de apego e desejo, é o próprio âmago da paixão. Esta ata
o corporificado, Kaunteya, por meio do apego à ação. 8 Fica sabendo
que a escuridão, nascida da ignorância, confunde todos os seres
corporificados. Ela ata por meio da loucura, preguiça e sono.
9 Fica sabendo que bondade prevalece na alegria, Bhārata; e
paixão, na ação; ao passo que escuridão, por cobrir o conhecimento,
prevalece na loucura. 10 Ao superar paixão e escuridão, a bondade
emerge, Bhārata; do mesmo modo, paixão supera bondade e
ignorância, e ignorância supera bondade e paixão.
11 Quando ocorre clareza em todos os portões deste corpo,
quando há conhecimento, então, fica sabendo que a bondade
prospera. 12 Ganância, esforço, empreendimento, estresse, ânsia –
esses aparecem quando a paixão prospera, melhor dos Bhāratas. 13
Nenhuma clareza, nenhum esforço, só loucura e ilusão – esses
aparecem quando a escuridão prospera, filho de Kuru.
14 Por encontrar-se com a morte enquanto a bondade prospera, o
corporificado alcança os mundos imaculados dos conhecedores mais
elevados. 15 Por encontrar-se com a morte enquanto a paixão
prospera, o indivíduo nasce entre aqueles que se aferram à ação. E,
então, por morrer em escuridão, ele nasce do ventre de tolos.
16 Dizem que o fruto da ação virtuosa é bom e impoluto,
enquanto o fruto da paixão é sofrimento, e o fruto da escuridão é
ignorância. 17 Conhecimento surge da bondade; e, da paixão, apenas
ganância. Loucura e delírio provêm da escuridão, assim como
ignorância.
18 Para cima vão aqueles situados em bondade, ao passo que
aqueles situados em paixão ficam no meio, e aqueles que vivem na
qualidade mais baixa, a escuridão, descem. 19 Uma pessoa com
visão que percebe não haver nenhum outro agente senão os modos,
e que vê o que está além dos modos, alcança Meu estado de
existência. 20 Por sobrepujar esses três modos que surgem do corpo,
o corporificado fica livre das misérias subjacentes a nascimento,
morte e velhice, e desfruta do imortal.
21 Arjuna disse: Por meio de quais sintomas se reconhece o
indivíduo que sobrepujou esses três modos, Mestre? Qual é sua
conduta? E como ele transcende esses três modos?
22 O Senhor disse: Aquele que não odeia clareza, esforço ou
mesmo ilusão quando aparecem, Pāṇḍava, nem sente falta deles
quando cessam; 23 que está situado como que à parte, não desviado
pelos modos, que pensa “os modos estão agindo”, permanecendo
firme sem oscilar; 24 que está situado em si mesmo, constante, igual
perante tristeza e alegria, terra, pedra e ouro, eventos agradáveis e
desagradáveis, censura e louvor de si; 25 que é equânime na honra e
desonra, igual para com amigos e inimigos, um renunciante em
todos os esforços – afirma-se que esse indivíduo sobrepujou os
modos.
26 E aquele que Me serve com bhakti-yoga indesviável sobrepuja
por completo esses modos e qualifica-se para a existência Brahman.
27 De fato, Eu sou a base do Brahman imortal e imperecível, do
dharma perpétuo e da felicidade absoluta.
Capítulo 15
1 O Senhor disse: Falam de uma figueira imperecível com raízes
para cima e ramos para baixo. Suas folhas são os hinos védicos.
Aquele que a conhece, conhece o Veda. 2 Seus ramos estendem-se
para baixo e para cima, florescendo nos modos. Os objetos dos
sentidos são seus novos brotos; e as raízes, presas às ações,
espalham-se por baixo em todas as direções no mundo humano.
3 Não se percebe aqui sua forma verdadeira, nem seu fim, começo
e base. Após derrubar, com a firme arma do desapego, essa figueira
profundamente enraizada, 4 deve-se, então, buscar aquele lugar,
alcançando o qual eles jamais retornam, [e decidir-se]: “Submeto-me
apenas a Ele, a Primeira Pessoa, de quem procedeu a origem antiga”.
5 Livres de prepotência e confusão, com o defeito do apego
derrotado, sempre fixos no Eu Superior, afastados dos desejos,
libertos das dualidades denominadas felicidade e tristeza – aqueles
que não estão confusos vão a esse lugar imperecível. 6 O Sol não o
ilumina, nem a Lua, nem o fogo. Após irem lá, jamais retornam. Essa
é Minha morada suprema.
7 No mundo dos viventes, o ser vivo eterno, parte de Mim apenas,
preside os sentidos, que se baseiam na matéria e cujo sexto é a
mente.[1] 8 Esse mestre adquire e deixa um corpo, e levando esses
[sentidos], vagueia como o vento que leva aromas de uma fonte. 9
Situado acima da visão, audição, tato, paladar, olfato e mente, ele
visita os objetos dos sentidos. 10 Indivíduos confusos não o
percebem enquanto ele falece, nem de fato enquanto permanece [no
corpo], nem enquanto desfruta, ligado aos modos. Aqueles que
possuem olhos do conhecimento veem. 11 Yogīs esforçados veem-no
a residir no Eu. Os irresponsáveis e insensatos, embora se esforcem,
não veem isso.[2] 12 O esplendor do Sol que ilumina o mundo
inteiro, e o da Lua e do fogo – fica sabendo que é Meu próprio
esplendor. 13 Ao entrar na Terra, Eu mantenho os seres com vigor;
ao tornar-Me a Lua feita de néctar, nutro todas as plantas. 14 Ao
tornar-Me o fogo digestivo que reside nos corpos dos seres que
respiram, misturo-Me com a inspiração e expiração e digiro os
quatro tipos de alimento.[3] 15 Eu habito no fundo do coração de
todos. De Mim vêm memória, conhecimento e esquecimento. Por
meio de todos os Vedas, apenas Eu devo ser conhecido. Criei o
Vedanta e apenas Eu conheço o Veda.
16 Estas duas pessoas existem no mundo: as perecíveis e as
deveras imperecíveis. Perecíveis são todos os seres; diz-se que o
imperecível situa-se no topo. 17 Mas a Pessoa Última é outra,
chamada de Alma Suprema. Ele é o Senhor imutável – que sustenta
os três mundos ao entrar neles.
18 Porque Eu sou supremo, além do perecível e até do
imperecível, sou desse modo celebrado no mundo e no Veda como a
Pessoa Última. 19 Aqueles que não estão perplexos e assim Me
conhecem como a Pessoa Última, conhecem tudo e devotam-se a
Mim com todo o seu ser, Bhārata. 20 Homem impecável, dessa
maneira narrei a ti a escritura mais confidencial. Após saber isso, é
preciso ser sábio, com o dever cumprido, Bhārata.
Capítulo 16
1 Destemor, pureza do ser, perseverança no yoga do
conhecimento, generosidade, disciplina, sacrifício, estudo sagrado,
austeridade, honestidade; 2 inofensividade, veracidade, ausência de
raiva, abdicação, paz, ausência de calúnia, bondade para com os
seres vivos, ausência de cobiça, gentileza, modéstia, constância; 3
energia, perdão, determinação, limpeza, ausência de agressão,
ausência de arrogância – esses existem em alguém nascido com
atributos divinos.
4 Quem nasce com atributos ímpios possui fraude,
convencimento, malícia, ira, aspereza e ignorância. 5 Compreende-se
que atributos divinos conduzem à liberdade; os ímpios, ao cativeiro.
Não te preocupes, Pāṇḍava, nasceste com atributos divinos.
6 Os seres possuem apenas duas naturezas neste mundo: divina e
ímpia. A divina foi extensivamente ensinada. Pārtha, ouve-Me falar
sobre a ímpia.
7 Pessoas ímpias não sabem o que fazer nem o que não fazer. Nem
limpeza, nem boa conduta, nem veracidade existem nelas. 8 Alegam
que o mundo não possui verdade, nem fundamento, nem Senhor –
que surgiu da interação e baseia-se em nada mais do que motivos
egoístas. 9 Por manterem-se firmes nesse ponto de vista, essas almas
perdidas e malignas, de pouca razão e atos selvagens, aparecem para
destruir o mundo. 10 Hipócritas cheias de orgulho e presunção,
aferram-se ao desejo insaciável. Elas continuam em delírio,
formulando concepções irreais, devotadas ao impuro. 11 Resignadas
até a morte à ansiedade imensurável, estão convencidas de que a
gratificação dos desejos é suprema. 12 Atadas por centenas de
grilhões de desejos, repletas de luxúria e ira, esforçam-se por meios
injustos para arrecadar riqueza destinada ao prazer egoísta.
13 “Alcancei a satisfação deste anseio hoje; atingirei a satisfação
daquele. Esta riqueza é minha; esta outra riqueza será minha. 14
Matei aquele inimigo; matarei outros ainda. Sou o senhor! Sou o
desfrutador! Sou perfeito, poderoso, feliz! 15 Sou rico, de
ascendência nobre. Quem mais é como eu? Realizarei sacrifícios,
darei caridade e me divertirei.” Assim a ignorância os confunde.
16 Divagando por muitos estados mentais, envoltos na rede de
ilusão, aferrados à gratificação do desejo, caem num inferno imundo.
17 Tomados completamente por autoestima, obstinados, repletos de
orgulho e presunção devido à riqueza, hipocritamente realizam
oferendas só de nome, sem consideração pelas regras. 18 Odiando-
Me em seus próprios corpos e nos dos outros, os invejosos valem-se
por completo de egotismo, força, insolência, desejo e fúria. 19 Eu
lanço perpetuamente esses odiosos, cruéis e mais baixos dos homens
nas transmigrações em úteros deveras demoníacos. 20 Por cair num
ventre demoníaco nascimento após nascimento, decerto sem Me
alcançar, semelhantes tolos vão ao estado mais baixo.
21 Esse portão do inferno, que arruína a alma, é tríplice: luxúria,
ira e cobiça. Portanto, o indivíduo deveria abandonar esses três. 22
Livre desses três portões que conduzem à escuridão, ele faz um bem
enorme para a alma e, então, vai ao estado mais elevado.
23 Ao evitar a regra das escrituras, aquele que vive mediante ação
baseada nos desejos não alcança nem a perfeição, nem a felicidade,
nem o estado mais elevado. 24 Portanto, ao determinar dever e não
dever, a escritura é teu parâmetro. Por conhecer a regra declarada da
escritura, deverias cumprir teu dever aqui.
Capítulo 17
1 Arjuna disse: Qual é o status daqueles que fazem sacrifício com
fé, mas evitam a regra das escrituras? É bondade, paixão ou
escuridão?
2 O Senhor disse: A fé da alma corporificada, nascida de sua
natureza, é de três tipos: boa, passional e obscura. Ouve sobre isso. 3
Todos têm fé, Bhārata, de acordo com sua natureza. A pessoa é feita
de fé. Ela se torna exatamente aquilo no que acredita.
4 Aqueles situados em bondade, fazem sacrifício a deuses;
aqueles situados em paixão, a espíritos e guardiões.[1] Outras
pessoas, situadas em escuridão, fazem sacrifício a falecidos e legiões
de fantasmas. 5 Repletas de desejo e paixão, pessoas ligadas a fraude
e egoísmo submetem-se à horrível austeridade, 6 insensatamente
flagelando os elementos do corpo – e a Mim também, presente no
corpo. Fica sabendo que essas pessoas são de determinação ímpia.
7 Agora, até comida é apreciada por todos de três maneiras, bem
como a oferenda, austeridade e caridade. Ouve sobre essas divisões.
8 Aqueles situados em bondade desfrutam de alimentos que
aumentam a longevidade, energia, força, saúde, felicidade e
contentamento, e que são saborosos, atraentes, duradouros e
substanciosos. 9 Alimentos apreciados pelos passionais são amargos,
azedos, salgados, muito quentes, picantes e ardentes; produzem dor,
aflição e doença. 10 Aqueles situados em escuridão gostam de
alimento que está estragado, insípido, pútrido e rançoso – e até de
sobras impuras.
11 Uma oferenda em bondade, fixada pelo preceito, é oferecida
com plena concentração por aqueles que não buscam frutos, com a
É
mente apenas pensando: “É correto oferecer”. 12 Mas fica sabendo
que uma oferenda passional é oferecida com hipocrisia, buscando o
fruto, ó melhor dos Bhāratas. 13 Consideram como obscura uma
oferenda desprovida de preceito, sem partilha de alimento, privada
de mantra, sem presentes aos sacerdotes e despojada de fé.
14 Honra a deuses, gurus, duas vezes nascidos e sábios; limpeza,
retidão, castidade e inofensividade – afirma-se que esses abrangem a
austeridade corpórea. 15 Fala verdadeira, agradável e benéfica, que
não perturba, bem como estudo regular das escrituras – afirma-se
que esses abrangem a austeridade da fala. 16 Serenidade da mente,
gentileza, quietude, autocontrole e pureza do ser – afirma-se que
esses abrangem a austeridade mental.
17 Consideram estar em bondade a austeridade tripla sustentada,
com a fé mais elevada, por pessoas conectadas que não buscam
frutos. 18 Considera-se estar em paixão a austeridade instável,
impermanente, feita com hipocrisia em troca de respeito, prestígio e
honra. 19 Declara-se estar em escuridão a austeridade feita com
obstinação tola e autoflagelo ou para destruir um inimigo.
20 Pensando: “é correto dar”, considera-se estar em bondade um
presente dado a alguém que não serve o doador, no lugar e
momento certos, para o receptor certo. 21 Considera-se estar em
paixão um presente dado com má vontade para obter serviço em
troca – ou, de novo, visando ao fruto. 22 Declara-se estar em
escuridão um presente desrespeitoso, insultante, dado no lugar e
momento errados para o receptor errado.
23 Considera-se Om tat sat uma indicação tripla de Brahman; por
meio dele, outrora decretaram-se brāhmaṇas, Vedas e oferendas. 24
Portanto, com a entoação de Om, atos autorizados de sacrifício,
caridade e austeridade sempre prosseguem entre expositores de
Brahman; 25 e com tad, aqueles que buscam liberação, sem visar aos
frutos, executam atos de sacrifício, austeridade e vários atos de
caridade. 26 Sat é recitado em estado verdadeiro e virtuoso, e
também é, desse modo, utilizado em ação louvável, Pārtha. 27
Declara-se que estabilidade no sacrifício, austeridade e caridade
constituem sat; e ação com esse propósito chama-se, desse modo, sat.
28 Sem fé, tudo que é oferecido, dado e feito como austeridade ou
boa ação chama-se não sat, Pārtha, e não é tad[2] – nem agora nem no
futuro.
Capítulo 18
1 Arjuna disse: Ó homem de braços magníficos, matador de Keśi,
ó Hṛṣīkeśa, gostaria de saber, separadamente, a verdade sobre
renúncia e abdicação.
2 O Senhor disse: Os sábios conhecem renúncia como deixar de
lado ações egoístas; os esclarecidos chamam de abdicação o abdicar
de todos os frutos da ação. 3 Alguns sábios afirmam que a ação é
falha e deve-se abdicá-la; outros afirmam que não se devem abdicar
atos de sacrifício, caridade e austeridade. 4 Ouve Minha conclusão
sobre abdicação, melhor dos Bhāratas. Descrevem-se três formas de
abdicação, ó homem-tigre. 5 Não se deve abdicar sacrifício, caridade
e austeridade; esses devem ser feitos. Sacrifício, caridade e
austeridade purificam até os sábios. 6 Por isso, o indivíduo deveria,
de fato, executar essas ações, abdicando apego e frutos. Eis Meu
ponto de vista categórico e final, Pārtha.
7 Renunciar a ação prescrita não é correto; declara-se estar em
escuridão abdicá-la devido à confusão. 8 Aquele que abdica o dever
por temor a desconforto físico, pensando: “isso é penoso”, abdica
meramente em paixão e não pode obter o fruto da abdicação. 9
Quando se cumpre o dever prescrito, Arjuna, pensando apenas:
“isso deve ser feito”, e abandonam-se apego e fruto – considera-se
que essa abdicação está em bondade.
10 Um renunciante inteligente, repleto de bondade, com as
dúvidas dissipadas, não odeia o dever inconveniente, nem se aferra
ao conveniente. 11 Aquele que porta um corpo não pode de fato
abdicar as ações por inteiro. Afirma-se, no entanto, que aquele que
abdica os frutos da ação é alguém que abdicou. 12 Os três tipos de
fruto da ação – desejado, indesejado e mesclado – advêm para
aqueles que não abdicam, mas nunca para os renunciantes.
13 Ó homem de braços magníficos, aprende Comigo, conforme
ensinado no sāṅkhya[1] conclusivo, estas cinco causas para o sucesso
em todas as ações: 14 lugar, agente, meios diversos, esforços diversos
– e, claro, a Providência. 15 Qualquer ação certa ou errada que uma
pessoa empreenda com o corpo, mente e fala, essas cinco são as
causas. 16 Sendo assim, uma pessoa obtusa de razão não formada,
que vê apenas o eu como agente, não vê de fato. 17 Aquele cuja
natureza não é egocêntrica, cuja razão não está maculada, não mata
mesmo quando mata essas pessoas, nem está atado.
18 Conhecimento, o que é cognoscível e conhecedor são os três
tipos de ímpeto para a ação. Meios, ação e agente são a soma tripla
da ação. 19 Segundo a análise dos modos, afirma-se que
conhecimento, ação e agente são de três tipos. Ouve devidamente
sobre esses também.
20 Aprende que conhecimento em bondade é aquele por meio do
qual se vê uma única realidade imutável em todos os seres, indivisa
no dividido. 21 Aprende que conhecimento em paixão é aquele por
meio do qual se veem separadamente em todos os seres várias
naturezas de tipos separados. 22 Porém, declara-se estar em
escuridão o conhecimento que se aferra irracionalmente a uma tarefa
como se fosse tudo, que é escasso e carece de um sentido de verdade.
23 Afirma-se estar em bondade a ação prescrita, livre de apego,
feita sem paixão, nem aversão, por alguém que não busca o fruto. 24
Contudo, afirma-se estar em paixão a ação feita por alguém que
busca prazer egoísta ou feita com egotismo e muita dificuldade. 25
Afirma-se estar em escuridão a ação empreendida em ilusão, que
ignora consequências, desperdícios, danos e limites humanos.
26 Diz-se estar em bondade um agente livre de apego e
autopromoção, repleto de determinação e decisão, imutável no
sucesso e fracasso. 27 Afirma-se estar em paixão um agente apegado,
que busca o fruto da ação, ganancioso, violento, impuro, repleto de
excitações e miséria. 28 Declara-se estar em escuridão um agente
inadequado, vulgar, teimoso, depravado, malicioso, ranzinza e
procrastinador.
29 Ouve, Dhanañjaya, sobre os três tipos de divisão modal da
razão e determinação, expostos completa e individualmente. 30
Razão em bondade entende comprometimento e
descomprometimento, dever e não dever, perigo e ausência de
perigo, cativeiro e liberdade, Pārtha. 31 Mediante razão em paixão,
entende-se imprecisamente dharma e não dharma, dever e não dever,
Pārtha. 32 Coberta pela escuridão, a razão que acha que não dharma é
dharma, e entende tudo ao contrário, Pārtha, é razão em escuridão.
33 Determinação pela qual mente, vida, sentidos e dever são
sustentados com yoga indesviável é determinação em bondade,
Pārtha. 34 Determinação que é ávida pelos frutos, que sustenta o
dharma, desejo e interesse com apego, é determinação em paixão,
Pārtha. 35 E determinação estúpida, que não abdica de sono, medo,
lamentação, depressão e até loucura, é determinação em escuridão,
Pārtha.
36 Mas, agora, ouve-Me falar, melhor dos Bhāratas, sobre os três
tipos de felicidade que o indivíduo desfruta por meio da prática,
alcançando o fim do sofrimento. 37 Aquilo que é como veneno no
princípio e assemelha-se a néctar no final, afirma-se que é felicidade
em bondade, nascida de clareza e autocompreensão. 38 Felicidade
proveniente do contato dos sentidos com seus objetos assemelha-se a
néctar no princípio e veneno no final, e considera-se estar em paixão.
39 Felicidade que ilude a alma no início e no resultado, decorrente
de sono, preguiça e loucura, declara-se estar em ignorância.
40 Não há ser na Terra, nem mesmo entre os deuses no céu, que
esteja livre desses três modos nascidos da natureza. 41 Para
brāhmaṇas, kṣatriyas, vaiśyas e śūdras,[2] fustigador de adversários,
seus modos nascidos da natureza dividem seus deveres.
42 Calma, disciplina, austeridade, pureza e paciência, bem como
retidão, conhecimento, sabedoria e fé em Deus são qualidades de um
brāhmaṇa, nascidas de sua natureza. 43 Heroísmo, poder,
determinação e habilidade, bem como caridade, uma natureza
governante e não fugir de uma luta são qualidades de um kṣatriya,
nascidas de sua natureza. 44 Agricultura, proteção às vacas e
comércio são atividades de um vaiśya, nascidas de sua natureza; e a
atividade de um śudra, nascida de sua natureza, consiste em auxiliar.
45 Cada pessoa, dedicada à própria atividade, atinge completa
perfeição. Ouve como o indivíduo encontra a perfeição, ocupado em
sua própria atividade.
46 Aquele de quem os seres emanam e por quem tudo isto é
permeado – por adorá-Lo mediante seu dever, um ser humano
encontra a perfeição. 47 Melhor é seu próprio dharma imperfeito do
que o dharma alheio bem executado. Executando o dever
estabelecido por sua natureza, o indivíduo não incorre em ofensa. 48
Não se deveria abandonar o trabalho inato, ainda que falho. Falhas
decerto encobrem todos os empreendimentos, assim como a fumaça
encobre o fogo.
49 Autocontrolado, com a razão desapegada em toda parte e
anseios dissipados, o indivíduo, mediante renúncia, atinge a
perfeição suprema de libertar-se do karma. 50 Aprende comigo numa
sinopse simples como o indivíduo que atinge a perfeição também
alcança Brahman, o status mais elevado de conhecimento. 51
Conectado pela razão pura, por resolutamente refrear o eu,
abandonar objetos dos sentidos, tais como o som, livrar-se de paixão
e aversão; 52 buscar reclusão, comer pouco, com fala, corpo e mente
controlados, sempre focado no yoga da meditação, apoiado na
impassibilidade; 53 abdicar de egotismo, poder, orgulho, luxúria, ira
e propriedade; pacífico, sem “meu” – ele se qualifica para a existência
Brahman.
54 Por viver em Brahman, uma alma serena não se aflige, nem
anseia – e, igual para com todos os seres, alcança a devoção mais
elevada a Mim. 55 Pela devoção, o indivíduo reconhece a Mim,
Minha amplitude e o que Eu sou de verdade. Por conhecer-Me de
verdade, ele logo retorna a Mim. 56 Embora sempre execute todas as
ações, sob Meu abrigo e por Minha graça, ele atinge a posição eterna
e imperecível.
57 Mediante consciência, entregando todas as ações a Mim e
dedicado a Mim, valendo-te do yoga da razão, permanece sempre
consciente de Mim. 58 Consciente de Mim, por Minha graça,
atravessarás todos os obstáculos. Por outro lado, se por egotismo não
escutares, estarás perdido. 59 Se, confiante no egotismo, pensares:
“não lutarei”, essa decisão está errada. A natureza te impelirá. 60
Kaunteya, estás atado por teu trabalho nascido de tua natureza.
Aquilo que, por ilusão, não desejas fazer, farás mesmo contra tua
vontade.
61 O senhor de todos os seres reside no local do coração, Arjuna,
fazendo todos os seres perambularem enquanto viajam em ilusão na
máquina [corpórea]. 62 Dirige-te apenas a Ele para refugiar-te com
todo o teu ser, Bhārata. Por Sua graça, alcançarás paz suprema, a
morada perpétua.
63 Assim, ensinei a ti o conhecimento mais secreto do que o
segredo. Após refletir sobre isso plenamente, faze o que desejares. 64
Mais uma vez, ouve Minha palavra suprema, a mais secreta de
todas. És muito amado por Mim, então falarei para o teu bem. 65 Sê
consciente de Mim e devotado a Mim, faze oferendas a Mim,
reverencia-Me. Virás apenas a Mim. Prometo realmente isso a ti, pois
Eu te amo. 66 Abandonando todos os dharmas, vem apenas a Mim
em busca de refúgio. Eu te livrarei de todos os males. Não te
preocupes.
67 Jamais se deve falar isso para o indisciplinado, o não devoto,
para quem não quer ouvir, nem para aquele que Me inveja. 68
Aquele que explicar este segredo supremo entre Meus devotos
presta a devoção mais elevada a Mim e sem dúvida virá apenas a
Mim. 69 Nenhum outro dentre os seres humanos é mais querido por
Mim, nem haverá qualquer outro na Terra mais querido que essa
pessoa. 70 E considero que quem estuda este nosso diálogo
dhármico adora-Me por meio da oferenda da razão. 71 E uma pessoa
de fé e sem inveja que possa ouvir – essa também está liberta e pode
alcançar os mundos prósperos daqueles que executam atos piedosos.
72 Ouviste isso, Pārtha, com a mente unidirecionada? Tua
confusão causada pela ignorância desapareceu, Dhanañjaya?
73 Arjuna disse: Por Tua graça, Acyuta, a ilusão se desfez; a
memória foi recuperada. Estou firme, livre de dúvidas. Executarei
Tua palavra.
74 Sañjaya disse: Assim, ouvi esse diálogo maravilhoso e
arrepiante entre Vāsudeva e Pārtha, a alma grandiosa. 75 Pela graça
de Vyāsa, ouvi esse supremo mistério do yoga, pessoalmente falado
pelo próprio Kṛṣṇa, o senhor do Yoga. 76 Ó rei! Por lembrar e
lembrar esse diálogo maravilhoso entre Keśava e Arjuna, regozijo-
me incessantemente! 77 E por lembrar isto, por lembrar a forma mais
incrível de Hari, imenso é meu encanto, ó rei! E regozijo-me
repetidas vezes! 78 Onde estiver Kṛṣṇa, o senhor do Yoga, onde
estiver Pārtha, que empunha um arco, lá haverá fortuna, vitória,
poder e firme conduta correta. Assim concluo.
Bibliografia
Bhaktivedānta Svāmī Prabhupāda, A.C., trad. e com. Bhagavad-
gītā Como Ele É. 2ª ed. Los Angeles: Bhaktivedanta Book Trust, 1989.
MacDonell, Arthur Anthony. A Sanskrit Grammar for Students.
Londres: Oxford University Press, 1927.
Monier-Williams, Monier. A Sanskrit-English Dictionary. Oxford
Clarendon Press, [1899] 1974.
Radhakrishnan, S., trad. e com. A Bhagavadgītā. 1ª ed. Nova York:
Harper & Row, 1973.
Schweig, Graham M. Bhagavad-gītā: The Beloved Lord’s Secret Love
Song. Nova York: HarperOne, 2007.
Agradecimentos
Com profundo reconhecimento, agradeço àqueles cuja ajuda
inestimável tornou este livro possível. Apresento aqui uma lista
parcial, com desculpas sinceras àqueles que podem ter sido
negligenciados.
Agradeço primeiro a meu mestre espiritual, Srila Prabhupada,
sem o qual eu não saberia praticamente nada sobre a Bhagavad-gītā,
nem sobre mim mesmo. Dele é o mérito neste trabalho; minhas, as
deficiências. Agradeço e estimo a todos os seus mestres precedentes,
que preservaram o texto sagrado através de longos séculos.
Meus agradecimentos devem ir para Ali Krishna (Alysia Radder),
que brilhante e amorosamente ajudou a fundar e desenvolver nossa
equipe de mídia; Brahma Tirtha (Bob Cohen), meu alter ego, que
prestou valiosa ajuda a este e todos os meus outros projetos; Aja,
meu querido irmão espiritual, que emprestou sua mão perita à
revisão e produção; minha irmã espiritual e velha amiga Maya Priya
(Candace Long), que projetou e formatou o livro; Duhkha Hantri
(Donna DeAngelis), velha amiga e irmã espiritual, que fez a edição
do texto e prestou inestimável ajuda com todos os meus livros
anteriores; Krishna Kshetra Swami (Kenneth Valpey), um querido
irmão espiritual e erudito talentoso, que revisou a tradução;
Giridhari (Gustavo Dauster), meu querido discípulo, que sempre
ajuda com tudo; Adwaita Chandra (Alister Taylor), meu velho amigo
e parceiro de caminhadas, cuja editora saiu de seu curso para
trabalhar conosco neste livro; e Danesha (Daniel Laflor), que
desenhou a capa.
Meus agradecimentos também ao meu mentor de sânscrito em
Harvard, Dr. Michael Witzel, e à “experiência” em Harvard, que me
ajudou a traduzir não só para um público de praticantes, mas para o
público em geral também. Por fim, ofereço minha sincera gratidão
aos meus queridos pais já falecidos, cujo incansável amor e
generosidade tornaram possíveis mais coisas do que posso narrar, e
agradeço aos meus irmãos Allen e Robert por sua generosidade e
apoio.
N.E.: Para nomes próprios sânscritos da equipe de produção,
inclusive do autor, optamos por usar a ortografia não acadêmica que
é familiar à maioria das pessoas.
Notas

Guia Completo da Bhagavad-gītā

PARTE I - Introdução

1.
Uma nota para os leitores: utilizam-se itálicos ao longo da
minha tradução da Gītā para enfatizar palavras-chave e frases,
bem como para destacar palavras traduzidas que são jargões ou
simbólicas no sânscrito original.[voltar]

2.
O primeiro capítulo da Gītā, arcano para muitos por suas
longas listas de nomes de guerreiros, é emocionante para quem
conhece toda a história do Mahā-bhārata que o precede.[voltar]

3.
Os números em colchetes indicam os números do verso da Gītā.
Por exemplo: [2.7] refere-se ao capítulo dois, verso sete. [voltar]

4.
Além de ajudar a fundamentar a trigonometria, Arya-bhata
[476-550 d.C.] escreveu livros de astronomia (dentre os quais
uma efeméride), que foi considerada abalizada durante séculos
por cientistas e matemáticos tanto europeus como islâmicos. O
primeiro satélite da Índia e uma cratera lunar receberam seu
nome, assim como uma universidade e um instituto de ciência.
[voltar]

5.
Esses estudiosos invariavelmente situam a Gītā após a época de
Buda, cujo nascimento se acredita ter sido no século VI a.C.
Suas razões: a Gītā usa por cinco vezes [2.72; 5.24, 25, 26; 6.15] a
palavra nirvāṇa, um termo muitas vezes usado por Gautama
Buda. Fica claro que temos três possibilidades aqui: 1) Kṛṣṇa
tomou emprestado o termo de Buda; 2) Buda tomou
emprestado o termo de Kṛṣṇa, e 3) Kṛṣṇa e Buda
independentemente usaram a mesma palavra. Num
proeminente fórum acadêmico que inclui muitos dos principais
indólogos do mundo, recentemente perguntei se há uma
evidência definitiva para a primeira possibilidade – isto é, que
Kṛṣṇa tomou emprestado de Buda o termo nirvāṇa. Ninguém
foi capaz de fornecer qualquer evidência para isso, e um
estudioso sênior escreveu: “Não acho que podemos descartar a
possibilidade de que o termo seja pré-budista“. Não obstante, a
maioria dos estudiosos ocidentais continua a supor, escrever e
ensinar que a Gītā deve ser posterior ao budismo, pois ela usa o
termo nirvāṇa. Enfim...[voltar]

PARTE II - Pessoas Individuais Eternas (Purusa)

1.
2.15, 2.21, 2.60, 3.4, 9.3; Arjuna: 13.1, 13.20-22, 13.24, 17.3.
[voltar]

2.
Aqui, amor e ódio indicam uma mentalidade dualística
passional na qual uma emoção alimenta a outra: adoramos uma
pessoa e negligenciamos ou denegrimos outras. Kṛṣṇa não se
refere aqui ao amor puro ou espiritual.[voltar]

PARTE III - Três Modos da Natureza (Guṇa)

1.
Os elementos primários da natureza são: terra (sólidos), água
(líquidos), ar (gases), fogo (elementos radiantes), éter (espaço),
mente (o assento das emoções e sentidos), razão (nossa
faculdade analítica) e ego (nossa identidade material
completa). [voltar]

2.
Esta noção de matéria é, de certa forma, análoga à substância
de Aristóteles. [voltar]

3.
17.2-4, fé; 17.8-10, alimento; 17.11-13, sacrifício; 17.17-19,
austeridade; 18.7-9, renúncia; 18.20-22, conhecimento; 18.23-25,
ação; 18.26-28, o agente; 18.30-32, razão; 18.33-35, determinação;
18.37-39, felicidade; 4.13, 18.41-44, vocação; 14.5-8, cativeiro;
14.14-16, 18, nossa próxima vida. [voltar]
4.
3.5, 3.34, 8.19, 9.8, 18.60. [voltar]

5.
2.61, 2.64, 5.13, 6.26, 6.36. [voltar]

PARTE IV - Ação, Reação, Cativeiro (Karma)

1.
Não só a antiga cultura védica e, mais tarde, a hindu, mas
muitas civilizações, tais como inca, maia, hopi, babilônica,
grega antiga, budista, jainista etc., veem o tempo como cíclico.
[voltar]

2.
Textos mais elaborados, como os Purāṇas, descrevem um tipo
de reencarnação cósmica na qual múltiplos universos, repetida
e ciclicamente, nascem e morrem. [voltar]

3.
Cf. Demiurgo (literalmente “servidor público”), o criador de
Platão, no diálogo Timeu. [voltar]

4.
3.27, 16.18, 17.5, 18.24, 18.58 etc. [voltar]
PARTE V - Sacrifício ou Oferenda (Yajña)

1.
Assim, com o alemão herr, o italiano signore, o português senhor,
o espanhol señor, o francês monsieur e mesmo com o inglês sir,
um indivíduo educadamente dirige-se a homens com uma
palavra que significa Senhor ou deriva-se desta. E, na maioria
desses casos, há um equivalente feminino preciso. Então, temos
o sânscrito deva (deus). [voltar]

2.
“Desfrutador” traduz a palavra sânscrita bhoktā, que também
pode significar “aquele que possui, governa, experiencia e
consome”. [voltar]

3.
6.30, 9.3, 13.28-29. [voltar]

4.
Especialmente as Upaniṣads, Brahma-sūtras, comentários sobre
essas obras e seções filosóficas do Mahā-bhārata. [voltar]

5.
As palavras eu superior traduzem o sânscrito adhyātman,
composto por adhi, “sobre, acima, superior” e ātman, “eu,
alma”. A palavra ātman é muitas vezes usada sozinha para
indicar o eu eterno ou a alma. Contudo, visto que o sânscrito
também usa ātman como um pronome reflexivo (como, por
exemplo, em ātma-kṛtaḥ, “que se fez por si mesmo”, o prefixo
adhi, “sobre, acima” etc. às vezes é adicionado a ātman para
enfatizar que se refere ao eu eterno, ou alma. [voltar]

PARTE VI - Deus (Kṛṣṇa)

1.
Judaísmo, cristianismo e islamismo, em várias formas, têm a
origem de seu monoteísmo no patriarca Abraão. [voltar]

2.
Meu velho amigo, o catedrático Graham Schweig, escreve
eloquentemente sobre este último ponto na introdução à sua
própria tradução da Bhagavad-gītā. [voltar]

3.
Em sânscrito, como em outros idiomas, tais como espanhol,
português, italiano etc., um verbo conjugado sozinho implica
no pronome. Em sânscrito, porém, diferente dessas línguas, um
pronome sozinho implica no verbo ser/estar. Assim, aham asmi
significa eu sou, mas pode-se transmitir o mesmo significado,
embora menos enfaticamente, apenas com aham (eu) ou apenas
asmi (sou). [voltar]

4.
Veja também 13.18. [voltar]

5.
Veja também 15.12-13. [voltar]

6.
Veja também 9.17. [voltar]

7.
Kṛṣṇa salienta o mesmo ponto em 9.4.[voltar]

8.
Veja também 9.19. [voltar]

9.
Veja também 9.18. [voltar]

10.
Na psicologia da Gītā, a mente é a faculdade cognitiva que
gosta e desgosta, e também coordena as atividades dos
sentidos. [voltar]

11.
Veja também 15.14. [voltar]

12.
Cabeça da Trilha indica Mārga-śīrṣa: novembro-
dezembro. [voltar]

13.
Sāma-veda é o Veda dos cânticos, uma das escrituras védicas
primordiais (veja também 9.17).[voltar]

14.
“Aquele que não perece” é outra referência à sílaba sagrada Om
(veja também 8.13, 9.17, 17.23-24). [voltar]

15.
O hino magnífico refere-se ao bṛhat-sāman [10.35], um famoso
hino védico. [voltar]

16.
Veja também 9.2 e 9.16. [voltar]

17.
Veja também 11.32. [voltar]

18.
Meru é uma montanha maravilhosamente alta em torno da
qual os planetas giram. [voltar]

19.
Uccaiḥ-śravas é o cavalo do deus do Sol. [voltar]

20.
Airāvata é o elefante do Senhor Indra. [voltar]
21.
Vajra é a fabulosa arma de raio do Senhor Indra. [voltar]

22.
Kāma-dhuk é a vaca mística do sábio Vasiṣṭha, a qual provê
todos os desejos. [voltar]

23.
Vāsuki é um rei-serpente celestial. [voltar]

24.
Garuḍa é a águia divina que carrega o Senhor Viṣṇu. [voltar]

25.
Manus são os patriarcas e legisladores originais da
humanidade. [voltar]

26.
Kṛṣṇa também declara isso em 9.18 e 14.4. [voltar]

27.
2.15, 2.21, 2.60, 3.4, 9.3, 13.20-22, 13.24 e 17.3; Arjuna: 13.1.
[voltar]

28.
2.72, 4.24, 5.20, 5.24, 6.27, 14.26, 18.53-54 etc. [voltar]
29.
Veja 2.13, 2.22, 2.30, 2.59, 3.40, 5.13, 14.5, 14.7, 14.8, 14.20 e 17.2.
[voltar]

30.
Eis aqui uma amostra de tais versos: 8.2, 8.22, 13.23, 13.3, 13.16,
13.17, 13.28, 15.14, 15.15, 16.18 e 18.61. [voltar]

31.
Veja 2.51, 4.9, 4.14, 5.17, 7.29, 8.21, 13.26, 15.4 e 14.20. [voltar]

32.
Veja 3.13, 4.16, 9.1, 10.3, 18.66 e 18.71. [voltar]

33.
Dicionário de Sânscrito Monier-Williams, de Oxford. [voltar]

PARTE VII - Yoga

1.
Nesses dois versos, Kṛṣṇa usa o termo arpita, “oferecido”, uma
forma do termo usada para “oferenda” em 4.24, quando
descreve a oferenda a brahman (brahma-arpaṇam). Arpaṇam é um
substantivo neutro, e arpita é um particípio passado passivo.
Tendo assim oferecido (arpita) sua razão dada por Deus [7.4] de
volta a Deus, o indivíduo executa um tipo essencial de
yajña. [voltar]
2.
h p://www.oxforddictionaries.com/definition/english/science. [
voltar]

3.
A mesma raiz yuj, que produz a palavra yoga, também nos
fornece uma palavra encontrada quarenta e seis vezes na Gītā:
yukta, um particípio passado passivo. Assim, visto que yoga
significa “vincular”, yukta significa “vinculado”; e visto que
yoga significa “ocupar-se”, yukta significa “ocupado”. Como tal,
“afirma-se que quem está em yukta é um yogī” [6.8]. [voltar]

4.
Na Gītā, as palavras yoga e yogī às vezes significam karma-yoga e
karma-yogī [2.39, 3.3, 5.4-5 etc.], sendo este, de longe, o maior
grupo de yoga, uma vez que a maioria das pessoas opta por
trabalhar no mundo. [voltar]

5.
Kṛṣṇa usa a palavra samatvam, ou sama (“sereno, equânime”),
nesse sentido em muitos versos: 2.15, 2.38, 4.22, 5.18, 6.8-9,
12.14, 12.18, 13.10, 14.24. Ele também usa um sinônimo próximo
(tulya) no mesmo sentido de ser equânime em face de
dualidades materiais: 12.19, 14.24-25. [voltar]

6.
“Sendo o eu de todos os seres” indica plena empatia
espiritual. [voltar]
7.
Yajña denota uma oferenda ou sacrifício a Deus ou Seus
representantes. [voltar]

8.
A palavra saṅkalpa pode significar vontade ou volição em geral,
mas Kṛṣṇa sempre usa esse termo para exprimir uma vontade
egoísta que é preciso abandonar a fim de avançar
espiritualmente [4.19, 6.2, 6.4, 6.24]. [voltar]

9.
Fogo é agni em sânscrito, cognato com o latim ignis (fogo), com
o inglês ignate e o português ígneo. [voltar]

10.
Kṛṣṇa também usa formas do verbo hā (abandonar) duas vezes:
uma vez para avisar Arjuna que ele abandonará dever e fama
se não lutar [2.33], e, outra vez, para afirmar que a Gītā ensina o
indivíduo a abandonar o cativeiro do karma [2.39]. [voltar]

11.
Como um substantivo (tyāga), particípio indeclinável (tyaktvā, e
uma vez, parityajya); substantivo agente (tyāgī ou parityāgī);
particípio presente (tyajan), particípio passado passivo (tyakta),
infinitivo (tyaktum) e gerúndio (tyājya). [voltar]

12.
2.51, 4.20, 5.12, 12.11-12, 18.6, 18.9-11. [voltar]
13.
2.48, 4.20, 5.10-11, 18.6, 18.9-10. [voltar]

14.
Kṛṣṇa usa essa palavra de várias maneiras: como substantivo
(sannyāsa), particípio indeclinável (sannyāsya), substantivo
agente (sannyāsī) e particípio passado passivo
(sannyasta). [voltar]

PARTE VIII - Karma-yoga (Yoga da Ação)

1.
Também chamado karma-bandhana, que significa a mesma
coisa. [voltar]

2.
Sva é cognato com o espanhol su, o português seu/sua, o
italiano suo/sua, o francês son/sa etc. Todas essas palavras
indicam posse: “dele, dela, seu próprio.” [voltar]

3.
3.30, 9.27, 12.6, 12.10, 18.56, 18.57. [voltar]

PARTE IX - Jñāna-yoga (Yoga do Conhecimento)


1.
Forma-se a palavra niṣṭhā a partir de ni (embaixo ou dentro) e
sthā (status ou situação). Desse modo, ni-ṣṭhā indica “uma
situação ou posição firme [no plano espiritual]” e, portanto,
“devoção”. Também se encontra o prefixo ni em san-ni-āsa, ou
sannyāsa (renúncia). [voltar]

2.
Kṛṣṇa usa a palavra dessa maneira em 10.4, 16.2, 16.7, 16.8,
17.15 e 18.65. [voltar]

3.
Forma-se ta va a partir de tat (aquilo), e tva, um sufixo
semelhante ao sufixo dade em português, que denota “um
estado ou condição”. Tat é um pronome demonstrativo neutro
que, neste contexto, refere-se a um objeto real cuja existência
pode ser demonstrada. Ta va significa, desse modo, “o estado ou condição
de ser um objeto demonstrável e real” – isto é, “um princípio ontológico
verdadeiro”. [voltar]

4.
Vedas, neste contexto, indica os quatro antigos textos
ritualísticos: Ṛg-veda, Yajur-veda, Sāma-veda e Atharva-veda.
Kṛṣṇa deixará claro qual é o problema. [voltar]

5.
Ṛg-veda 1.22.17, 1.22.18, 1.154.2, 1.156.4 etc. [voltar]

6.
Tai arīya Saṁhitā 5.5.1.4 etc. [voltar]

7.
A palavra sânscrita paṇḍita chegou ao inglês como pundit e ao
português como pândita. [voltar]

8.
Por utilizar uma forma dessa mesma palavra, Kṛṣṇa diz que Ele
está oculto (samāvṛta) mediante Seu próprio poder místico, e
não pela ignorância [7.25]. [voltar]

9.
“Filho de Vasudeva” é uma referência a Kṛṣṇa, que apareceu
como o filho do príncipe Yadu de nome Vasudeva. [voltar]

10.
4.28, 4.33, 9.15, 18.70. [voltar]

PARTE X - Dhyāna-yoga (Yoga da Meditação)

1.
O rei Janaka, que Kṛṣṇa cita aqui como exemplar, era um
célebre devoto chefe de família e sogro do Senhor Rāma, que Se
casou com a filha de Janaka, Sītā. [voltar]

PARTE XI - Bhakti-yoga (O Yoga da Devoção)


1.
4.33, 6.46, 12.1-3, 12.8-12 etc. [voltar]

2.
3.30, 9.27, 12.6, 12.10, 18.56, 18.57. [voltar]

3.
Eis aqui alguns exemplos: 6.14-15, 6.31, 7.1, 7.7, 8.7, 10.9, 12.2,
12.8, 12.14, 13.11 e 18.57. [voltar]

4.
4.3, 7.23, 9.31, 9.34, 11.55, 12.14, 12.16, 12.20, 13.19, 18.65,
18.68. [voltar]

5.
5.29, 6.47, 7.30, 9.34, 10.42, 11.55, 12.20, 14.27, 15.20,
18.78. [voltar]

6.
9.17, 11.38, 13.1, 13.13, 13.17, 13.18. [voltar]

7.
Kṛṣṇa diz que quem faz oferenda com devoção (bhaktyā praya-
cchati) oferece, na verdade, sua própria alma (prayata-ātmanaḥ) [9.26]. [voltar]

8.
4.14, 7.13, 13.15, 13.32, 14.19. [voltar]
9.
Kṛṣṇa também fala diretamente de māyā, Seu poder de ilusão,
em 7.25 e 18.61; e, em 4.6, menciona Sua ātma-māyā espiritual,
por meio da qual Ele desce a este mundo. [voltar]

10.
O Bhāgavata-purāṇa articula esses pontos em 4.31.14: yathā taror
mūla niṣecanena tṛpyanti tat-skandha-bhujopaśākhā, prāṇopahārāc ca
yathendriyānam tathaiva sarvārhanam acyutejyā. [voltar]

PARTE XII - Mukti (Liberação)

1.
Guṇātīta deriva-se de guṇa (qualidade/modo), ati (além) e ita
(ido); literalmente “que foi para além dos modos [da natureza
material]”. [voltar]

2.
O eminente comentador do Vedānta, Rāmānuja, sinaliza em seu
comentário à Gītā 14.3 que mesmo a literatura Śruti mais antiga
às vezes designa a natureza material como brahman: śrutāv api
kvacit prakṛtir api brahma iti nirdiśyate. [voltar]

3.
As Upaniṣads são o corpo da tradição védica de textos
filosóficos e teológicos, alguns muitos antigos, outros um pouco
menos. [voltar]
4.
Destino Supremo: em minha tradução da Gītā (encontrada
aqui), algumas vezes traduzo gati como caminho, já que essa
palavra vem do verbo gam (ir). Versos como 8.21, entretanto,
deixam claro que gati, nesse contexto, significa não só um
caminho ou rumo, mas também um lugar, especificamente o
lugar para onde se vai, um destino. [voltar]

5.
4.9, 7.23, 8.7-8, 8.10, 9.25, 9.28, 9.34, 10.10, 11.55, 12.4, 12.9, 18.55,
18.65-66, 18.68. [voltar]

6.
Śraddhā é tanto um substantivo quanto um verbo, que significa
depositar (dhā) confiança (śrad). [voltar]

7.
Para sanscritistas, algumas observações sobre o verso:
avyaktaṁ vyaktim āpannam manyante mām abuddhayaḥ, param bhāvam ajāna-nto
mamāvyayam anu amam. Pode-se conjecturar que tanto avyaktam como vyaktim
podem servir como o primeiro objeto de manyante, com a palavra restante sendo o
objeto de āpannam. Entretanto, āpannam deve ser uma aposição a avyaktam, uma vez
que vyaktim é feminina e poderia assim produzir āpannām, caso estivessem essas
duas palavras em aposição. Então, o significado é: os irracionais (abuddhayaḥ)
consideram (manyante) a Mim (mām) como sendo um avyaktam (ser impessoal
imanifesto) que assumiu (āpannam) existência pessoal visível (vyaktim). [voltar]

8.
“Tanu também significa pessoa, ou eu”, como nas expressões
svakā tanu, “a própria pessoa do indivíduo”, ou iyaṁ tanur
mama, “este é meu eu.” Esses exemplos são do Monier-
Williams. [voltar]

PARTE XIII - Conclusão

1.
Ciente de que poucos leitores da Bhagavad-gītā são fluentes em
sânscrito, esforçei-me ao longo desta obra para ajudar o leitor a
penetrar no texto original, ocasionalmente traduzindo ou
parafraseando o mesmo verso de várias maneiras, de modo a
indicar seu âmbito semântico. [voltar]

Tradução Literal da Bhagavad-gītā

Capítulo 1

1.
Dharma significa justiça, lei sagrada, dever. Dharma é também
uma força cósmica divina que recompensa aqueles que a
respeitam e pune aqueles que a violam. Assim, a Bhagavad-gītā
começa num campo sagrado que favorece a justiça.[voltar]

2.
Pāṇḍavas são os filhos de Pāṇḍu. [voltar]

3.
Grande quadriga é um epíteto comum de um grandioso
guerreiro de quadriga. [voltar]

4.
Uma observação aos estudiosos de sânscrito: para fins de
fluência da leitura, clareza e/ou ritmo de linguagem, pequenas
alterações na ordem dos nomes ou termos listados serão
ocasionalmente encontradas nesta tradução. [voltar]

5.
“Duas vezes nascidos” denota os membros das três classes
superiores (professores, governantes e
comerciantes/agricultores) que culturalmente “renasciam” ao
receberem instruções sagradas. [voltar]

6.
De Duryodhana. [voltar]

7.
Bhīṣma. [voltar]

8.
Mādhava e Pāṇḍava indicam Kṛṣṇa e Arjuna. [voltar]

9.
Hṛṣīkeśa: Kṛṣṇa; Dhanañjaya: Arjuna. [voltar]

10.
Vṛkodara significa “estômago de lobo”, um comedor voraz, e
refere-se a Bhīma, o irmão mais velho de Arjuna. [voltar]

11.
Arjuna, que, por levar o magnífico macaco Hanuman em sua
bandeira de guerra, chama-se aqui de Kapi-dhvaja (bandeira de
macaco). [voltar]

12.
Acyuta: o Infalível, Kṛṣṇa. [voltar]

13.
Bhārata: Dhṛta-rāṣṭra. [voltar]

14.
Gāṇḍīva: o famoso arco de Arjuna. [voltar]

15.
A-dharma (antônimo de dharma): injustiça, infração da lei e
abandono do dever. [voltar]

16.
Confusão de classes: varṇa-saṇkara.[voltar]

Capítulo 2

1.
Kṛṣṇa, aquele que matou o demônio Madhu. [voltar]

2.
Hṛṣīkeśaṁ: Kṛṣṇa, senhor dos sentidos; Guḍākeśaḥ: Arjuna,
aquele que subjuga o sono ou aquele que tem cabelo
espesso. [voltar]

3.
Govinda: Kṛṣṇa. [voltar]

4.
Grandes guerreiros de quadriga. [voltar]

5.
As três qualidades são: bondade, paixão e escuridão – as três
qualidades de todas as coisas e experiências materiais. [voltar]

6.
“Ouvir”, em sânscrito śruti, indica a seção karma-kāṇḍa, que
trata de rituais mundanos com o objetivo de alcançar ganho
material. O verso anterior, 2.52, também se refere a isso
mediante as palavras “tudo o que foi ouvido e o que se há de
ouvir” (śrotavyasya śrutasya ca). Ademais, veja os versos 2.42-45,
que também encorajam indiferença às seções mundanas dos
Vedas. [voltar]

7.
Nirvāṇa significa “cessação, extinção” – neste caso, de todas as
paixões materiais que causam sofrimento e renascimento.
Nirvāṇa em Brahman, o Absoluto, indica que os desejos
materiais do indivíduo cessam ao se alcançar um objeto
espiritual superior – como ensinado em Bg. 2.59. [voltar]

Capítulo 3

1.
Os cincos sentidos funcionais são as mãos, pernas, voz, órgão
reprodutivo e órgão excretor. [voltar]

2.
A palavra sânscrita karma significa, literalmente, ação. Toda
ação não executada como sacrifício produz uma reação, atando-
nos a este mundo. [voltar]

3.
Ruptura na razão: pessoas comuns estão apegadas a seus
deveres mundanos. Se um sábio as instrui a renunciar, elas
podem perder o entusiasmo por seus deveres mundanos, e
ainda serem incapazes de levar uma vida espiritual pura. É
melhor, conforme ensina Kṛṣṇa, encorajar tais pessoas a
executar seus deveres e oferecer os frutos de seu trabalho a Ele.
Assim, karma (trabalho mundano) torna-se karma-yoga, uma prática
espiritual que permite às pessoas continuarem junto a suas famílias e deveres
vocacionais. [voltar]

4.
Ações dos modos: ações executadas dentro dos três modos
mundanos (guṇas): bondade, paixão e escuridão (sa va, rajas,
tamas).
Ações espirituais são guṇa-atīta, transcendentes aos
modos mundanos. Veja os versos 14.21, 25, 26. [voltar]

5.
Racionalizar o que está além da razão: a razão deveria
compreender seus próprios limites e buscar o conhecimento
mais elevado através de devoção. Embora apenas a razão não
possa alcançar Deus, a revelação de Deus, corretamente
entendida, é racionável. [voltar]

Capítulo 4

1.
“Sistema de quarto varṇas” indica as quarto ordens vocacionais:
brāhmaṇas (professores e sacerdotes); kṣatriyas (governantes e
guerreiros); vaiśyas (agricultores e comerciantes); śūdras
(operários, servidores, ajudantes de todo tipo). [voltar]

2.
“Fica sabendo que sou o não-agente imutável”: Kṛṣṇa não
executa atividades egoístas, e, como um ser espiritual puro, não
possui dever dentro do sistema de quatro varṇas que Ele cria.
Assim, Kṛṣṇa é o não-agente, ou não-executor. [voltar]

3.
Sacrifício de objeto significa oferecer ao fogo objetos materiais,
tais como manteiga; ou oferecer artigos típicos de adoração, tais
como incenso, lamparina, água, tecido, flor e abano; ou oferecer
alguns dos próprios recursos a uma deidade. [voltar]
Capítulo 5

1.
Arjuna considera que yoga é ação espiritual, incompatível com
o abandonar da ação. [voltar]

2.
”Sendo o eu de todos os seres” indica a obtenção de plena
empatia espiritual. [voltar]

3.
Cidade dos nove portões: o corpo humano com nove portões –
dois olhos, dois ouvidos, duas narinas, boca, órgão genital e
ânus. [voltar]

Capítulo 6

1.
Sem-fogo: quem rejeita o sacrifício de fogo, ou sacrifício em
geral, simbolizado pelo fogo. Veja 4.25-27, onde Kṛṣṇa usa o
termo agni (fogo) simbolicamente. [voltar]

2.
A tradução densa reflete rigorosamente o sânscrito. Aqui, a Gītā
fornece uma doutrina bastante existencial: devemos assumir
responsabilidade por nós mesmos. Apenas o eu é amigo ou
inimigo do indivíduo. A “inimizade do não eu” refere-se a
nosso ego falso, nosso “eu material corpóreo”, uma identidade
ilusória que trabalha contra o interesse último da alma
eterna. [voltar]

3.
Eu Superior: o Senhor residente no coração de todos; tendo
conquistado a mente, alcança-se o Senhor no coração. [voltar]

4.
A palavra yoga, da raiz verbal yuj, significa muitas coisas, mas
seu significado basilar é vincular, conectar etc. Este verso
repetidas vezes emprega o cognato yukta, em geral traduzido
aqui como vinculado (veja a nota seguinte). Assim, Kṛṣṇa faz
uma consideração clara: o vínculo em yoga ocorre para aqueles
que conectam suas atividades ao Absoluto através de devoção,
sacrifício etc., como explicado muitas vezes na Gītā. [voltar]

5.
“Adequado” é yukta em sânscrito, que também significa
conectado. Comer, dormir etc. são adequados quando estão
vinculados à vontade de Deus e, assim, sustentam uma prática
espiritual bem-sucedida que visa retornar a Deus. [voltar]

6.
“Ver o eu no Eu por meio do eu”: por praticar yoga, enxerga-se
o próprio eu como parte do Eu Supremo [voltar]

7.
Ambos os caminhos perdidos: o indivíduo pôs em risco sua
carreira mundana mediante renúncia espiritual, e então
fracassou nessa prática espiritual. [voltar]

8.
“Brahman-Verbo” indica o discurso dos Vedas que ensina ritos
para obtenção de recompensas mundanas; veja 2.42-46. [voltar]

9.
“O mais vinculado em yoga”: uma vez que a palavra yoga
significa vínculo, conexão etc., estar mais vinculado é ser o
vinculador, ou yogī, mais consumado e bem-sucedido. [voltar]

Capítulo 8

1.
Brahman, em última análise, é uma Suprema Pessoa
Eterna. [voltar]

2.
O indivíduo assume responsabilidade pessoal pelo seu estado
futuro de existência. [voltar]

Capítulo 9

1.
“Yoga”, aqui, denota poder místico. [voltar]

2.
“Três ciências” denota o Ṛg-Veda, Sāma-Veda e Yajur-
Veda. [voltar]

Capítulo 10

1.
Kāma-dhuk, “outorgadora de desejos,” é uma vaca celestial que
satisfaz todos os desejos. [voltar]

2.
Cabeça da trilha: Mārga-śīrṣa (novembro-dezembro). [voltar]

3.
Mina de flores: primavera. [voltar]

Capítulo 11

1.
O mistério de que uma Suprema Pessoa Eterna (Kṛṣṇa) é a
fonte de tudo. [voltar]

2.
Sábios que se nutrem por “beber” vapor de comida
quente. [voltar]

Capítulo 13

1.
Onze sentidos: visão, audição, olfato, paladar e tato; braços,
pernas, fala, órgão reprodutivo e anus; a mente. [voltar]

Capítulo 14

1.
O Grandioso, Brahman. O Grandioso (mahat) refere-se ao
mahat-ta va, o magnífico princípio, a energia material total, a
qual o Senhor impregna com o agregado de almas carregadas
de karma. Esse mahat, a energia material total, é a energia de
Kṛṣṇa, como Ele explica em 7.4, e assim é também Brahman em
última análise. [voltar]

Capítulo 15

1.
Sentidos cujo sexto é a mente: a mente é considerada como
sendo um sexto sentido que coordena os outros cinco. [voltar]

2.
A tradução dos versos 9, 10 e 11 reflete o fato de que seu
sânscrito acaso contém os pronomes masculinos “ele” e “a
ele”. [voltar]

3.
Quatro tipos de alimento: os que são engolidos, mastigados,
lambidos ou chupados. [voltar]

Capítulo 17

1.
Espíritos e guardiões indicam yakṣas e rakṣas, que podem
também se referir a grupos específicos de seres etéreos e, às
vezes, perigosos. [voltar]

2.
Tad é literalmente o pronome demonstrativo neutro isto e, desse
modo, significa uma verdade real ou objeto que pode ser
demonstrado e conhecido. Assim, ações aparentemente
piedosas executadas sem fé não são a coisa real em si – ou seja,
não é o isto real. [voltar]

Capítulo 18

1.
Sāṅkhya:antigo sistema filosófico que enumera entidades
fundamentais e descreve suas relações. [voltar]
2.
Brāhmaṇas: professores e sacerdotes; kṣatriyas: governantes e
guerreiros; vaiśyas: proprietários de terras e comerciantes;
śūdras: operários, artesãos etc. [voltar]

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