Professional Documents
Culture Documents
A Depressão Entre A Terapia e A Política - Uma Breve Conversa Com Mark Fisher, Por Gabriel Peters
A Depressão Entre A Terapia e A Política - Uma Breve Conversa Com Mark Fisher, Por Gabriel Peters
A depressão entre a terapia e a política: uma breve conversa com Mark Fisher, por Ga-
briel Peters
Duas ressalvas se fazem necessárias aqui. Em primeiro lugar, tal aspecto ético-político da
depressão pode ser sublinhado sem que seja preciso, acredito eu, romantizar ou idealizar
uma experiência de extraordinário sofrimento, a demandar atenção e cuidado pelos
caminhos disponíveis – inclusive, quando necessário, o caminho neurofarmacológico. Em
segundo lugar, o significado ético-político dos índices de depressão deriva sobretudo de
seu caráter de sintoma social, como um índice de que algo está bastante errado com o
capitalismo contemporâneo, não como uma ameaça efetiva à continuidade desse sistema.
Mesmo sendo a principal causa de incapacitação para o trabalho no mundo, por exemplo,
a depressão não impacta decisivamente uma condição socioeconômica na qual o
capitalismo tem à sua disposição um amplo exército empregatício de reserva e um vasto
contingente de indivíduos constrangidos ao subemprego, ao trabalho precário, à
autoexploração e assim por diante. Um combate social e político por mudanças sistêmicas
nesse domínio depende, é claro, de um enorme montante de atividade para o qual são
necessários montantes idênticos de energias motivacionais. A ironia trágica é o fato de
que a depressão, como um modo de inatividade crônica ou “patológica”, mina justamente
aquelas motivações para a ação que seriam necessárias para o combate às suas fontes
sistêmicas. Como pode lutar contra o capitalismo quem mal consegue levantar da cama?
(Hedva, 2020)
Pessoas estão deprimidas porque o mundo é deprimente?
Para além desse paradoxo prático, uma leitura sistêmica e política da depressão tem de
enfrentar a hegemonia ideológica de perspectivas individualistas e individualizantes na
psiquiatria biomédica, na psicologia clínica, nos meios de comunicação de massa e no
próprio senso comum. A bem da verdade, tão dominante é essa visão individualista que a
crítica a ela parece estrategicamente justificada em simplesmente “torcer o bastão para o
lado oposto”, abraçando uma conclusão coletivista: as pessoas estão deprimidas porque o
mundo é deprimente. Para introduzir nuances nessa conclusão, poderíamos mapear as
correspondências entre, de um lado, sintomas individuais de quadros depressivos e, de
outro, características “depressogênicas” – ou, mais simplesmente, deprimentes – das
coletividades contemporâneas. Pensemos, por exemplo, em um sintoma característico: a
corrosão de qualquer esperança de que o futuro possa ser melhor do que o presente. Tal
corrosão é uma resposta ao menos inteligível, em princípio, a uma crise de futuro de
alcance genuinamente civilizacional, relacionada a catástrofes ecológicas que, outrora
anunciadas como ameaça apocalíptica, já estão em curso – é o caso, sabemos, da mudança
climática. Ao instaurar uma “vida a crédito” (Bauman, 2010) baseada na areia movediça do
endividamento, o capitalismo oferece outra fonte de comprometimento do futuro e, por
extensão, de perda de esperança. Quando pressões financeiras empurram muitos
indivíduos ao que David Graeber chama de “trabalhos merda” (shitty Jobs) (Graeber,
2018), não admira que eles se sintam relutantes a realizarem-se pelo engajamento
contínuo com a atividade infinda.
Ademais, como tendência geral, se muitos empregos são ruins, o desemprego é pior ainda.
Tal qual disseram pós-marxistas (e.g., Vandenberghe, 2002), a disponibilidade de um
exército de desempregados dispostos a – quando não desesperados para – aceitar
trabalhos precarizados ou degradantes enfraquece, por sua própria natureza, a crítica
marxista ao caráter alienante dos empregos existentes. As privações econômicas e as
feridas simbólicas derivadas do desemprego empurram muitas pessoas à procura de um
emprego no qual possam ser propriamente “exploradas”. Um mecanismo semelhante na
relação emprego/desemprego se aplica à depressão: tudo o mais mantido constante,
desempregados são mais vulneráveis a ficarem deprimidos do que pessoas empregadas,
mesmo nos casos em que estas últimas não gostam de seus empregos. Na medida em que,
como vimos com Alain Ehrenberg, as performances exigidas dos trabalhadores no novo
capitalismo incluem uma fachada de bom-humor e afabilidade, é possível que a queda no
desemprego também leve os afetados a aceitarem o próprio sofrimento de maneira mais
aberta do que os que permanecem empregados.
“se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o
que ainda precisa ser explicado é por que indivíduos particulares têm baixos níveis de
serotonina. Isto requer uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental
é urgente caso a esquerda queira desafiar o realismo capitalista” (Ibid.: 43).
De fato. Suponha-se, para dar outro exemplo, um veterano de guerra que desenvolve
síndrome de estresse pós-traumático em função de sua experiência de haver sido
torturado quando feito prisioneiro por um exército inimigo: afirmar que suas vivências
daquele distúrbio dependem de processos materiais no seu cérebro é tão óbvio quanto
reconhecer que ele não teria tais vivências caso não houvesse atravessado processos
cujas raízes são sociais de cabo a rabo, como a guerra, a prisão e a tortura.
Por um lado, como vimos, é possível até surpreender uma lucidez sociológica na postura
que toma o fechamento dos próprios horizontes de futuro não como um fracasso
individual, mas como uma realidade sistêmica (p.ex., os becos ecológicos sem saída em
que a humanidade já se colocou). Frente ao caráter descartável de qualquer membro
individual da força de trabalho, para dar outra ilustração, o senso da futilidade da própria
conduta também parece outro traço depressivo de “realismo”. Por outro lado, para
defensores de uma política de saúde mental de esquerda como Fisher, o “realismo
depressivo” não deve ser visto como apreensão da natureza das coisas, mas, ao contrário, como
um sintoma patológico do realismo capitalista. O senso de inevitabilidade, bem como a crise
de imaginação que barra de saída a procura de caminhos alternativos, são os alvos, não os
alicerces, de uma politização do debate sobre depressão.
Conclusão
Como o próprio Fisher reconhecia, criticar a substituição da política pela terapia não
precisa acarretar o programa reverso de uma substituição completa da terapia pela
política. Sim, a diminuição da incidência de quadros de depressão no mundo
contemporâneo é algo que tem precondições sistêmicas, as quais são em larga medida
imunes a formas individualizadas de tratamento. Mas a luta política pela transformação
daquelas circunstâncias sistêmicas tem ela própria, por seu turno, precondições psíquicas.
Nas palavras de Mikkel Frantzen, “lidar com a depressão – e outras formas de psicopatologia –
não é apenas parte, mas uma condição de possibilidade para um projeto emancipatório hoje”
(2019: s/p). Continua o autor:
“compreender a depressão através de lentes políticas não significa que o problema da depressão
possa ser imediatamente resolvido por meios políticos. Há um horror na depressão que não pode
e não deve ser traduzido muito rapidamente para a esfera da política, independentemente de
nossas aspirações críticas e revolucionárias. A dor física é insuportável, seu corpo está inerte e se
sente pesado demais, sua mente não está funcionando, e você não pode escapar ao sentimento
de estar preso, estagnado, que a corrida já terminou e que o presente – que é inferno – é tudo o
que há e tudo que pode-se imaginar que haverá. Seria uma ofensa dizer ‘bem, é só política’”
(Frantzen, 2019: s/p).
FRANTZEN, M.K. “A future with no future: depression, the left, and the politics of mental
health”. Los Angeles Review of Books, December 16, 2019.
GRAEBER, D. Bullshit jobs: a theory. New York: Simon & Schuster, 2018.
JAMESON, Fredric. Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke
University Press, 1991.
STUCKLER, D.; BASU, S. The body economic: why austerity kills. New York: Basic Books,
2013.
VANDENBERGHE, F. “Working out Marx: Marxism and the end of the work society”.
Thesis Eleven, n.69, p.21-46, 2002.
Para citar este texto: PETERS, Gabriel. A depressão entre a terapia e a política: uma breve
conversa com Mark Fisher. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 19 de setembro de
2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/10/19/politica-terapia-mark-
fisher/
2 C O M E N TÁ R I O S E M “ A D E P R E S S Ã O E N T R E A T E R A P I A E A P O L Í -
TICA: UMA BREVE CONVERSA COM MARK FISHER, POR GABRIEL
PETERS”
Pingback: Bruno Latour: As Ilusões da Modernidade, por Graham Harman -
Pingback: Sofrimento como protesto: uma nota sobre Susan Bordo e a leitura
feminista da "psicopatologia", por Gabriel Peters -
Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são
processados.
assinar