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A depressão entre a terapia e a política: uma breve conversa com Mark Fisher, por Ga-
briel Peters

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OUTUBRO 19, 2022

Por Gabriel Peters

Ativismo da inatividade? Depressão como gesto político

Este micropost é desdobramento de um artigo – e, aliás, de uma palestra – em que aponto


para algumas causas sistêmicas do sofrimento depressivo nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Ao explorar as fontes sociais de sofrimentos comumente enfrentados
apenas como problemas individuais, a requerer soluções igualmente restritas ao plano
individual (p.ex., tratamento psiquiátrico e/ou psicoterapêutico), a sociologia prepara o
caminho para uma política da depressão. Deixando-se de lado, só por ora, o problema real
da inflação de diagnósticos psiquiátricos, os índices que levaram a Organização Mundial
de Saúde a anunciar que o mundo enfrenta uma pandemia global de depressão podem ser
lidos como sintomas sociais ou mesmo alarmes civilizacionais. O capitalismo
contemporâneo, baseado em modelos de individualidade e formas de subjetividade
voltados à atividade ininterrupta, tem feito a indivíduos de carne e osso exigências
maiores do que eles podem cumprir. Na medida em que cresce o número de indivíduos
que, pelo seu estado depressivo, revelam-se indispostos a – ou incapazes de – responder
àquelas exigências irrazoáveis, a pandemia de depressão expõe sua face de um efeito
colateral sistêmico do próprio capitalismo.

Pois bem: se as raízes estruturais do sofrimento depressivo em escala pandêmica


encontram-se no imperativo da atividade individualizada inerente ao capitalismo atual,
diz o raciocínio, o alvo de uma política de combate à depressão é nada menos do que o
sistema capitalista in toto. Mais ainda: a depressão, assim como outras formas de suposto
“fracasso” frente aos modelos de autorrealização individual propostos pelo capitalismo
contemporâneo, poderia ser imbuída de um significado ético-político próximo a um
“ativismo da inatividade” – uma espécie de recusa às demandas estruturais que o mundo
contemporâneo faz às nossas individualidades em diversos âmbitos da vida, a começar
por aquele do trabalho (índice mais frequente das consequências “incapacitadoras” da
condição depressiva).     

Duas ressalvas se fazem necessárias aqui. Em primeiro lugar, tal aspecto ético-político da
depressão pode ser sublinhado sem que seja preciso, acredito eu, romantizar ou idealizar
uma experiência de extraordinário sofrimento, a demandar atenção e cuidado pelos
caminhos disponíveis – inclusive, quando necessário, o caminho neurofarmacológico. Em
segundo lugar, o significado ético-político dos índices de depressão deriva sobretudo de
seu caráter de sintoma social, como um índice de que algo está bastante errado com o
capitalismo contemporâneo, não como uma ameaça efetiva à continuidade desse sistema.
Mesmo sendo a principal causa de incapacitação para o trabalho no mundo, por exemplo,
a depressão não impacta decisivamente uma condição socioeconômica na qual o
capitalismo tem à sua disposição um amplo exército empregatício de reserva e um vasto
contingente de indivíduos constrangidos ao subemprego, ao trabalho precário, à
autoexploração e assim por diante. Um combate social e político por mudanças sistêmicas
nesse domínio depende, é claro, de um enorme montante de atividade para o qual são
necessários montantes idênticos de energias motivacionais. A ironia trágica é o fato de
que a depressão, como um modo de inatividade crônica ou “patológica”, mina justamente
aquelas motivações para a ação que seriam necessárias para o combate às suas fontes
sistêmicas. Como pode lutar contra o capitalismo quem mal consegue levantar da cama?
(Hedva, 2020) 
Pessoas estão deprimidas porque o mundo é deprimente? 

Para além desse paradoxo prático, uma leitura sistêmica e política da depressão tem de
enfrentar a hegemonia ideológica de perspectivas individualistas e individualizantes na
psiquiatria biomédica, na psicologia clínica, nos meios de comunicação de massa e no
próprio senso comum. A bem da verdade, tão dominante é essa visão individualista que a
crítica a ela parece estrategicamente justificada em simplesmente “torcer o bastão para o
lado oposto”, abraçando uma conclusão coletivista: as pessoas estão deprimidas porque o
mundo é deprimente. Para introduzir nuances nessa conclusão, poderíamos mapear as
correspondências entre, de um lado, sintomas individuais de quadros depressivos e, de
outro, características “depressogênicas” – ou, mais simplesmente, deprimentes – das
coletividades contemporâneas. Pensemos, por exemplo, em um sintoma característico: a
corrosão de qualquer esperança de que o futuro possa ser melhor do que o presente. Tal
corrosão é uma resposta ao menos inteligível, em princípio, a uma crise de futuro de
alcance genuinamente civilizacional, relacionada a catástrofes ecológicas que, outrora
anunciadas como ameaça apocalíptica, já estão em curso – é o caso, sabemos, da mudança
climática. Ao instaurar uma “vida a crédito” (Bauman, 2010) baseada na areia movediça do
endividamento, o capitalismo oferece outra fonte de comprometimento do futuro e, por
extensão, de perda de esperança. Quando pressões financeiras empurram muitos
indivíduos ao que David Graeber chama de “trabalhos merda” (shitty Jobs) (Graeber,
2018), não admira que eles se sintam relutantes a realizarem-se pelo engajamento
contínuo com a atividade infinda.

Ademais, como tendência geral, se muitos empregos são ruins, o desemprego é pior ainda.
Tal qual disseram pós-marxistas (e.g., Vandenberghe, 2002), a disponibilidade de um
exército de desempregados dispostos a – quando não desesperados para – aceitar
trabalhos precarizados ou degradantes enfraquece, por sua própria natureza, a crítica
marxista ao caráter alienante dos empregos existentes. As privações econômicas e as
feridas simbólicas derivadas do desemprego empurram muitas pessoas à procura de um
emprego no qual possam ser propriamente “exploradas”. Um mecanismo semelhante na
relação emprego/desemprego se aplica à depressão: tudo o mais mantido constante,
desempregados são mais vulneráveis a ficarem deprimidos do que pessoas empregadas,
mesmo nos casos em que estas últimas não gostam de seus empregos. Na medida em que,
como vimos com Alain Ehrenberg, as performances exigidas dos trabalhadores no novo
capitalismo incluem uma fachada de bom-humor e afabilidade, é possível que a queda no
desemprego também leve os afetados a aceitarem o próprio sofrimento de maneira mais
aberta do que os que permanecem empregados.        

No rastro das tempestades econômicas que atravessaram o mundo desde 2008, um


conjunto de pesquisas estatísticas se debruçou sobre as consequências psíquicas do
endividamento. Tais pesquisas confirmam a sugestão intuitiva de que dívidas tornam as
pessoas mais propensas à depressão e ao suicídio. Um desses estudos (Meltzer et al.
2011) empresta um rosto numérico a tais conexões ao concluir, por exemplo, que
endividados tendem a pensar duas vezes mais em suicídio do que não endividados,
quando controladas toda uma série de variáveis intervenientes (demográficas,
econômicas, sociais e de estilo de vida). Outro estudo com estadunidenses mostrou, por
seu turno, que indivíduos com pagamentos de sua hipoteca em atraso tinham uma
probabilidade nove vezes maior de desenvolver sintomas de depressão se comparados
àqueles com pagamentos em dia (Stuckler; Basu, 2013: 127).

Mark Fisher e o realismo capitalista

A dívida hiperbólica assombra o futuro. A insatisfação com o trabalho domina o presente.


Uma vez que ambas se atrelam a um capitalismo que proscreve mesmo a imaginação de
alternativas, a perda de esperança que marca tantos quadros depressivos aparece como
uma resposta compreensível a tal conjuntura. Chamando-a de “realismo capitalista”
(2009), Mark Fisher a definiu como o estado histórico no qual  “é mais fácil imaginar o fim
do mundo do que o fim do capitalismo” – uma frase, salvo engano, atribuída tanto a
Fredric Jameson quanto a Slavoj Zizek. Dado que a referência a alternativas utópicas
sempre foi um complemento importante nas teorias críticas do sistema capitalista, a
alusão que a definição faz à imaginação é crucial para apreender a radicalidade do
fenômeno. Para além da tese amplamente propalada de que o capitalismo é o único
sistema econômico e político viável, o realismo capitalista tende a tornar “impossível até
mesmo imaginar uma alternativa coerente a ele” (Ibid.: 78).

Ao identificar-se com o realismo, a justificação ideológica do sistema capitalista, diz Fisher


na trilha de Badiou, procura menos exibi-lo como “ideal” ou “maravilhoso” do que
apresentar “todo o resto” como horrível (Ibid.: 11). Eis um traço em que o realismo
capitalista se assemelha ao que já foi chamado de “realismo depressivo” na psicologia: não
um apreço pelas coisas como são, mas a suspeita ou destruição da esperança de que
condições melhores sejam possíveis. A semelhança não é apenas de estrutura, nota Fisher,
mas indício de que as causas estruturais da condição depressiva se encontram na etapa
tardia do capitalismo.

O argumento de Fisher, detalhado e repleto de achados surpreendentes como é, não cabe


em um resumo. Porém, ainda que não tenhamos espaço para discutir o tema aqui, cabe
dizer de antemão que o autor inglês, por óbvio, não negava que sintomas depressivos
possuem alguma forma de manifestação material nos cérebros dos indivíduos por eles
afligidos. O que Fisher sustentava era a existência de causas sociais dessa própria
manifestação, uma vez que as subjetividades humanas, assim como seus suportes
neurofisiológicos, estão abertas a influências oriundas do mundo social:

“se for verdade, por exemplo, que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o
que ainda precisa ser explicado é por que indivíduos particulares têm baixos níveis de
serotonina. Isto requer uma explicação social e política; e a tarefa de repolitizar a doença mental
é urgente caso a esquerda queira desafiar o realismo capitalista” (Ibid.: 43).

De fato. Suponha-se, para dar outro exemplo, um veterano de guerra que desenvolve
síndrome de estresse pós-traumático em função de sua experiência de haver sido
torturado quando feito prisioneiro por um exército inimigo: afirmar que suas vivências
daquele distúrbio dependem de processos materiais no seu cérebro é tão óbvio quanto
reconhecer que ele não teria tais vivências caso não houvesse atravessado processos
cujas raízes são sociais de cabo a rabo, como a guerra, a prisão e a tortura.

Por um lado, como vimos, é possível até surpreender uma lucidez sociológica na postura
que toma o fechamento dos próprios horizontes de futuro não como um fracasso
individual, mas como uma realidade sistêmica (p.ex., os becos ecológicos sem saída em
que a humanidade já se colocou). Frente ao caráter descartável de qualquer membro
individual da força de trabalho, para dar outra ilustração, o senso da futilidade da própria
conduta também parece outro traço depressivo de “realismo”.  Por outro lado, para
defensores de uma política de saúde mental de esquerda como Fisher, o “realismo
depressivo” não deve ser visto como apreensão da natureza das coisas, mas, ao contrário, como
um sintoma patológico do realismo capitalista. O senso de inevitabilidade, bem como a crise
de imaginação que barra de saída a procura de caminhos alternativos, são os alvos, não os
alicerces, de uma politização do debate sobre depressão.  

 A parada é difícil. Com o pessimismo do intelecto, Fisher mapeia a avassaladora força do


realismo capitalista como uma formação ideológica, encarnada em práticas e instituições,
que subjaz ao sofrimento depressivo. Com o otimismo da vontade, ele quer revelar a
historicidade daquela formação e, assim, mostrar que o senso de inescapabilidade
“absoluta” que marca tanto o realismo capitalista quanto o realismo depressivo são ilusões
patológicas. Como escreveu Frantzen (2019: s/p), é somente combinando os dois veios de
análise que se torna possível “desenvolver um discurso sobre a depressão que não seja”, ele
próprio, “deprimente” (Frantzen, 2019: s/p).

 Na estimativa da Organização Mundial de Saúde, a depressão se tornou a principal causa


global não apenas de incapacitação para o trabalho, mas também de suicídios.
Considerados os vínculos entre depressão e realismo capitalista, há uma significação
trágica no fato de que Fisher, sistematizador da ideia de que hoje é mais fácil imaginar o
fim do mundo do que o fim do capitalismo, terminou por colocar fim à sua própria vida. Eis
um território que deve ser percorrido com o máximo possível de cautela e delicadeza. De
um lado, é óbvia e terrivelmente relevante que um dos intérpretes mais inteligentes e
sensíveis da depressão como um efeito histórico do realismo capitalista tenha cometido
suicídio. De outro lado, não devemos ceder à tentação, ao mesmo tempo simplista e
injusta, de supor que o suicídio de Fisher seja uma espécie de fonte-mestra do significado
de toda a biografia e legado intelectual do autor – um reducionismo retrospectivo que, de
Sylvia Plath a uma multidão de desconhecidos, é costumeiramente aplicado à narrativa de
vidas que terminam com a morte auto-infligida.

O serviço de prevenção ao suicídio do Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece


atendimento gratuito e sigiloso, por telefone ou chat, todos os dias, 24 horas por dia.

Conclusão

Como o próprio Fisher reconhecia, criticar a substituição da política pela terapia não
precisa acarretar o programa reverso de uma substituição completa da terapia pela
política. Sim, a diminuição da incidência de quadros de depressão no mundo
contemporâneo é algo que tem precondições sistêmicas, as quais são em larga medida
imunes a formas individualizadas de tratamento. Mas a luta política pela transformação
daquelas circunstâncias sistêmicas tem ela própria, por seu turno, precondições psíquicas.
Nas palavras de Mikkel Frantzen, “lidar com a depressão – e outras formas de psicopatologia –
não é apenas parte, mas uma condição de possibilidade para um projeto emancipatório hoje”
(2019: s/p). Continua o autor:

“compreender a depressão através de lentes políticas não significa que o problema da depressão
possa ser imediatamente resolvido por meios políticos. Há um horror na depressão que não pode
e não deve ser traduzido muito rapidamente para a esfera da política, independentemente de
nossas aspirações críticas e revolucionárias. A dor física é insuportável, seu corpo está inerte e se
sente pesado demais, sua mente não está funcionando, e você não pode escapar ao sentimento
de estar preso, estagnado, que a corrida já terminou e que o presente – que é inferno – é tudo o
que há e tudo que pode-se imaginar que haverá. Seria uma ofensa dizer ‘bem, é só política’”
(Frantzen, 2019: s/p).

Ante um cenário no qual a ética da autorrealização tende a esvaziar o espaço da política


da emancipação, aquilo de que necessitamos não é substituir a primeira pela segunda,
mas vinculá-las como os domínios interdependentes que são.

Mais sobre isto depois.         


Referências

BAUMAN, Z. Vida a crédito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

FISHER, M. Capitalist realism. Winchester: Zero Books, 2009

FRANTZEN, M.K. “A future with no future: depression, the left, and the politics of mental
health”. Los Angeles Review of Books, December 16, 2019.

GRAEBER, D. Bullshit jobs: a theory. New York: Simon & Schuster, 2018.

HEDVA, J. Sick woman theory.


https://johannahedva.com/SickWomanTheory_Hedva_2020.pdf

JAMESON, Fredric. Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke
University Press, 1991.

STUCKLER, D.; BASU, S. The body economic: why austerity kills. New York: Basic Books,
2013. 

VANDENBERGHE, F.  “Working out Marx: Marxism and the end of the work society”.
Thesis Eleven, n.69, p.21-46, 2002.

Para citar este texto: PETERS, Gabriel. A depressão entre a terapia e a política: uma breve
conversa com Mark Fisher. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 19 de setembro de
2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/10/19/politica-terapia-mark-
fisher/

             

TAGS • CAPITALISMO • DEPRESSÃO • GABRIEL PETERS • MARK FISHER

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