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Omito da sociedade amorfaea questao da democracia. E comum se ouvir que a Sociedade Civil no Brasil é amorfa. Com isto se tem em mente que as associagdes voluntirias ~ partidos politicos, sindicatos e demais gru- pos de defesa de interesses coletivos ~ raramente conse- guiram aglutinar as camadas populares no sentido de le. var adiante suas reivindicagdes. De fato, quando se compara a sociedade brasileira com alguns paises avangados, verifica-se que a participa- cio em associagdes voluntarias € extremamente baixa Poucos so os que participam de associagdes de bairro, grupos profissionais ou sindicatos e partidos politicos Nu cidade de Si Paulo, por exemplo, uma pesquisu reu- ada em 1973 revelou que 93", das pessoas que com- poem a classe de renda baixa ndo participam de nenhu- 4 associagdo voluntiria a idéia de que a Sociedade morta, fr gelatinosa”, A idéia de tal fragilidade adquire novas dimensdes quando se aponta para o fato de que as camadas populares nio apresentam formas de auto- ss NO que diz Fespeito 2 preservagio ou conquista de , saneamento etc... Neste particular, 0 fe mais flagrante tulver seja a expulsiv das ¢ | Quem tratou adequadamente da participasio social das camadas populares foi BERLINCK, Manoel ~ Marginalidade Social e Relagdes de Classe em Si Vores, 1975, 2 das pobres para a periferia da cidade, quando investi- mentos piblicos e privados valorizam determinadas 4- reas, Exemplo tipico neste sentido so as obras do Me- Ur, que causam enorme especulagio imobi reus afetadas € 0 resultado final: 0s pobres saem e 0s ri- cos entram sem que haja, por parte daqueles que perde- ram, a possibilidade de defender seus interesses. Eniretanto, preciso qualificar tais colocagdes, a fim de situar nos devidos termos a questio do amorfismo social, E preciso afirmar, inicialmente, que os conflitos sociais tm aflorado de maneira intensa em varios mo~ mentos da historia brasileira, Pera nao mencionar acon- tecimentos recentes, basta apontar que houve épocas de intensa mobilizagdo em que as camadas populares conse- guiram desenvolver formas de farticipagdo e reivindica- cdo que ndo deixaram de ter influéncia no péndulo do poder do Estado. Basta pensar no periodo populista, quando as associagdes voluntarias tinham nao sd 0 que dizer como o que diziam, muitas vezes, precisava ser le- Nao obstante tais fatos, é freqilente caracterizar a fragilidade da Sociedade Civil em termos de uma espécie de “vocagio metafisica’, como se 0 povo brasileiro fos- se, por sua propria natureza, impregnado por uma espé- cie de conformismo pacifico e passivo. Semelhante visao tem sido um ingrediente ideoldgico bastante utilizado para justificar o intenso controle que o Estado historica- menie tem exercido sobre as iniciativas sociais e politicas das camadas populares. Isto é, dada a fragilidade “natu- ral” da Sociedade Civil, cabe ac Estado suprir suas “de- ficigncias”, tutelando-a dentro dos pardmetros conside- tados desejaveis e permissiveis pelo Poder instituido. Por detras desta visio reside a idéia de que as mas- sas so incapazes para as furgdes de governo. Seria como se 0 ato de governar fosse, por definigdo, o privilé- gio de uma elite, restrita e iluminada, que sabe o que €0 certo ¢o errado para o conjunto da sociedade. Neste tipo de ideologia, as camadas populares no sé seriam des- 2 classificadas para interferir no processo decisério, como também todas as vezes que o fizessem haveria uma de- gradagdo da politica. * Esta postura de cunho eminentemente elitista e au- toritaria tem raizes em discursos ideolégicos mais abran- gentes, Em primeiro lugar, em certos cfrculos da cultura dominante, impera a ideologia de que a sociedade brasi- leira —& diferenga do que se passa lé fora - € harmoniosa. Esta maneira de pensar encontra respaldo em certas in- terpretagdes da histéria brasileira, segundo as quais tudo © que foi feito por estes lados dos trdpicos realizou-se pa- cificamente: 0 Descobrimento do Brasil, foi por acaso; a Independéncia feita sem sangue, um grito foi o suficiente para o Pais encontrar sua autonomia nacional. Em su- ma, tudo o que se passou por aqui, processou-se sem vio- féncias: a histéria desenrolou-se com naturalidade, Uma ver abolida a escravidao apagada essa pagina negra da nossa histéria, os ex-escravos foram naturalmente absor- vidos ao convivio da sociedade: passou-se a viver numa “democracia racial Em segundo lugar, 0 complemento destas interpre- tagdes € que 08 conifitos sociais sao vistos como excep- nais, como algo que nao faz parte das tradigdes har- ménicas da “patria brasileira”. Assim, por exemplo, as ereves € contestagdes que marcaram a Primeira Republi- ca teriam sido realizadas por elementos estranhos, apoia- dos em ideologias espiirias e alheias ao corpo social bra- sileiro, por natureza um corpo social sadio, sem cont tos. O que orienta tal postura talvez seja a idéia de con- taminacéo social '. Ou seja: a sociedade brasileira é boa por natureza, mas também € fragil e, portanto, pode ser facilmente impregnada por interesses estranhos, Neste 2 Paca uma andlise das tradigdes autritrias © elitstas, veja - KORNHAUSER, William ~ The Potics of Mass Society, The Free Press, New York, 4 edigdo, 1965. 4 A idtia de contaminagdo social pode der encontrada em PARETO, Vilfredo ~ The Mind and Society (2 volumes), London, 1963. Ao nivel de uma interpretacdo ps cologica dos componentes da personalidede fascist va: ADORNO. T. W. et ali The Authoritarian Perscnality, Scence Edluons, New York, 2 volumes, 1964 2B particular, é comum se ouvir em certo tipo de discurso que, quando um grupo se afasta de seus caminhos “natu- rais”, isto 6, quando critica, denuncia ou pressiona, o faz porque foi contaminado por algum germe estranho a0 seu corpo. Da perspectiva deste discurso ideolégico, as reivindicagdes, 0 debate social ou as pressdes sio facil- mente percebidos como conspiragdes que pdem em risco a ordem social. Neste tipo de colocacao, as relagdes entre Estado ¢ Sociedade Civil sdo invertidas: ndo so mais os grupos sociais que devem controlar o Estado, através de canais coletivos de representagdo e participagio, mas a0 contrario, cabe ao Estado garantir 0 que, na dtica dos valores dominantes, constitui a “boa sociedade”’. Dai de- correm afirmagdes de que 0 Direito emana do Estado. Dai a necessidade de guiar a Sociedade Civil até o dia em que, com o passar dos tempos, ela perca a sua imaturida- de ¢ desenvolva os anti-corpos que a autodefendam da contaminacao a que esta sujeita. Nesta visio elitista e autoritaria, a politica é consi- derada como algo estanque, especial e restrito aos pou- cos que sabem 0 que é desejavel para todos. Nesta visio, a maioria nfo deve interferit nos processos decisdrios porque, pelo menos por enquanto, ela é pueril, inapta, contamindvel e, como conseqiéncia, precisa ser guiada por um minguado grupo de esclarecidos. Semelhante interpretagdo da sociedade, como no poderia deixar de ser, tem conseqiiéncias diretas na ma- neira pela qual a economia ea politica se concretizam e como, em ultima andlise, se alicercam os projetos de desenvolvimento do Pais. Neste sentido, € necessario apontar, de imediato, uma questo que permeia este con- junto de ensaios e que sera detalhada nos capitulos sub- seqiientes, Refere-se ao fato de que a expansio econémi- ca do Brasil recente poder ser caracterizada como um processo dilapidador. Dilapidador na medida em que tem depredado parte da méo-de-obra que leva adiante os processos produtivos. Assim, frise-se, de um lado, que, no perfodo por muitos denominado de “milagre brasi- 4 leiro”, os saldtios minimo e mediano dos trabalhadores urbanos decresceram em termos reais em contraste com que ocorreu em periodos anteriores. * De outro, aponte-se 0 aumento da mortalidade infantil, da jornada de trabalho edo tempo de locomogao gasto por aqueles que utilizam 0s transportes coletivos, bem como a alta taxa de desem- prego que atinge substancialmente os grupos etirios mais idosos. Para levar a cabo um modelo de crescimento que acirrou a deterioragdo dos niveis de vida, tornou-se ne- cessdrio desarticular e reprimir as iniciativas dos multi- plos © numerosos grupos que foram alijados dos benefi- cios do desenvolvimento. Enquanto tais processos per- durarem, qualquer concepgio de Democracia estard comprometida, posto que um crescimento econémico de carater nitidamente selvagem supde que a Sociedade Ci- vil seja mantida desativada em termos de ndo levar adiante a defesa dos interesses vitais das camadas popu- lares. E de se supor que o empobrecimento ¢ deteriora- cdo dos padrdes de consumo vitais persistirdo, enquanto as organizacdes instrumentais na defesa dos interesses coletivos ~ fundamentalmente, partidos politicos e sindi- catos - continuarem sob tutela ¢ controle do Estado. En- quanto a ideologia dominante - segundo a qual o “deba- te social aumenta os custos da produgio” - tiver forga para se realizar no dia-a-dia, a Sociedade Civil estard comprometida naquilo que ela tem de essencial: 0 direito de debater e de se organizar em torno de interesses coleti- vos. O revigoramento e autonomia da Sociedade Civil & a luta fundamental que perpassa toda a questio da De- mocracia, Nesta dtica, a Politica néo pode continuar sendo 0 privilégio de alguns poucos iluminados. Contu- do, nio se trata, obviamente, apenas de Democracia politica entendida “strictu sensu” como escolha dos go- 4 Osalirio mediano é aguele que abrange, no conjunto dx trabalhadores, os S072 de emunerago mais bax, 26 vernantes ¢ ampliagio da representagio partidaria, pois sua contrapartida necessiria € a democratizacao dos be- neficios econdmicos € sociais. ‘Assim, parece necessario por um xeque a questo da Sociedade Civil ¢ de suas relagdes com o Estado, funda- mentalmente no que diz respeito 20 papel a ser desempe- nhado pelas classes subulternas no quadro necessaria- mente complexo, contraditorio e conflitante deste rela- cionamento, Estas no podem mais ser equacionadas como mera mercadoria que se vende no mercado de tra- balho a pregos geralmente irrisdrios. E preciso retomar nesta equagdo a tradicional questao da cidadania, enten- dida na sua acepcao clissica, isto € 0 conjunto de dire tos e deveres de participar no s6 na criagio das obras sociais como no controle destas obras. Ou seja: « amplia- Go € garantia dos direitos e deveres implicitos no exerci- cio da cidadania supdem, de imediato, « possibilidade no s6 de usufruir dos beneficios materiais e culturais do desenvolvimento, como também, sobretudo, a de inter- ferir nos destinos desse desenvolvimento

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