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Sobre levar os outros a sério Como devemas viver? Certamente, os seres humanos sempre refletiram sobre fnatural do que qualquer outra. Como os caminhos se fazem ao andar, devemos tinuamente improvisar modos de vida conforme avangamos, abrindo novas mesmo quando seguimos os rastros de nossos predecessores. Contudo, ino 0 fazemos sozinhos, mas na ar ace Como 05 fios de uma para o problema de como chegar a um destino ainda uma abordagem do problema do mundo, independentemente de suas 5 das suas circunstancias e de seus lugares de residéncia. E este o idefendo nessas paginas. Devo chami-lo de antropolagia. Pode nio ser 7 es € confuses acerca da dis sio muitas, ¢ seria magante examinar todas elas. Nao pego desculpas por apre- sentar uma visio pessoal, marcada pela minha prOpria carreira como estudante € como professor da disciplina, talvez, nao tanto do que a antropologia seja, mas do que eu penso que ela deveria aspirar a ser. Outros poderio discordar, mas isso seria um sinal de vitalidade, ndo de fraqueza. Seja como for, a antropologia seri sempre uma disciplina em aberto: ela nao pode se constituir de maneira mais definitiva do que a vida social da qual ela se ocupa. Assim, a hist6ria da antropo- logia nfo pode ser narrada como uma historia do inicio ao fim. Tampouco pode- mos dormir sobre nossos louros, como se, ap de erros, de ignorincia preconceito, tivéssemos finalmente emengido & iluminagio, H& muito trabalho ser feito, ¢ este livro é tanto sobre refazer a antropologia para o futuro quanto sobre recontar 0 seu pasado, ‘Agora, vocé pode pensar que o problema acerca de como viver pertence, na verdade, a filosofia, e vocé no estaria errado. Afinal, trata-se de uma questo que toca nos préprios alicerces da existéncia humana neste nosso mundo. Nés nos de- nominamos seres humanos, mas o que significa ser humano? O nome que a cién- cia nos deu, enquanto um: suposta sapiéncia ou sabedoria? Como sabemos, pensamos, imaginamos, perce- ‘Demos, agimos, lembramos, aprendemos, utilizamos a linguagem ¢ convivemos com os outros de maneiras tio distintas ¢, ao mesmo tempo, tio vatiadas? De ‘que formas ¢ com que principios nés nos organizamos em sociedades, construf- ‘mos instituig6es, administramos a justica, exercemos o poder, cometemos atos de violéncia, nos relacionamos com 0 ambiente, cultuamos os deuses, doentes, enfrentamos a morte, ¢ assim por diante? Essas questtes 108 fil6sofos se dedicaram longamente a elas. Assim como os antropétogos. Mas cis a diferenga. Os filésofos sio almas reclusas, mais inclinadas a voltar-se para dentro, em um exame cuidadoso dos textos candnicos de pensadores como eles prdprios ~ em sua maioria, embora nao exclusivamente, homens brancos mor- tos ~ do que a se envolverem diretamente com as realidades desordenadas da vida cotidiana. Os antropélogos, ao contrétio, praticam a sua filosofia no mundo, Eles estudam ~sobretudo por meio de um envolvimento profundo na observacio, no dislogo e na pritica participativa — com os povos entre os quais eles elegem trabalhar. A escolha depende das experiéncias e dos interesses particulates, mas, ‘em prinefpio, poderia ser qualquer povo, em qualquer lugar, Na minha definigéo, a antropologia & a flosfia com as pesions dentro ‘Nunca, na histéria da humanidade, esse tipo de filosofia foi tio necessério. Evidéncias de que o mundo vive um momento critico esto por toda parte ¢ sio desanimadoras. Com uma populagio estimada em 7,6 billhes de pessons ~¢.com . & Homa sapiens, mas em que consiste a nossa 1 projesdo de superar os 11 bilhdes a0 final do século ~ nunca fomos a +os0s e nunca vivemos, em média, por tanto tempo. Atualmente, mais da mietade da populacio mundial vive em cidades e, em sua maioria, nfo tiram mais a suit subsisténcia da terra, como faziam seus antepassados. As cadeias producivas de alimentos e de outros produtos atravessam o globo. Florestas esto sendo devas tadas, faixas de terra cultivvel foram entregues 3 produgio de ma, a mineragii su a terra, A industria humana, sobrenu combustiveis fésseis em escala massiva, afeta o clima do mundo, aumentando a probabilidade de eventos pote! a escassez de Agua ¢ de outros itens bisicos motivou mundo permanece refém de um sistema de produgio, distr jecido a poucos, nao apenas privou condenadas & insegu- planeta, Nao sem razio, alguns declararam 0 terrestre: 0 Antropoc Este mundo-n undo que temos. Por mais que sonhemos com a vida em outros planet hd nenhum outro mundo para onde possamos escapar. Tampouco € possivel voltar ao passado, de modo a bus- car uma rota alternativa para o presente. Estamos onde estamos € 6 podemos seguir em frente a partir daf/Como Karl Marx observou hé muito tempo, os nas sob circunstincias que nio sfo de sua esc nascer em outro momen- to, As nossas condigoes atuais foram moldadas pelas ages de geragBes passadas {que no podem ser desfeitas, assim como as nossas prdprias agdes, por sua vez, conformario irremediavelmente as condigdes do futuro. Como, entio, devemos viver agora, para que haja vida para as gerag6es fururas? © que poderia tornar a vida sustentével, nao para alguns em detrimento de outros, mas para todos? Para abordar questdes dessa magnitude precisamos de toda a ajuda disponivel. Nao E como se as respostas estivessem por af, em algum lugar, precisando apenas ser descobertas. Nao encontraremos segredo em nenhuma doutrina ou filosofia, em nenhum ramo da ciéncia ou visio de mundo nativa. Também nfo é posstvel 1, A observagio de Marx esti em seu ensaio de 1852, 0 18 brumrio de Luts Banaparte: “Os homens fuzem sua prdpria histria [ele escreveu], mas no a fazem como querem; nio a fazem sob circunstincias de sua escolha, ¢ sim sob as circunstincias existentes, legadas ¢ transmitidas pelo pasado”, haver nenhuma solugdo definitiva. A histéria repleta de tentativas monumentais de pdr um fim a ela, tentativas necessariamente fadadas ao fracasso enquanto houver vida. Encontrar 0 nosso caminho em meio as ruinas é uma tarefa de todos nés. E ai que entra a antropologia, ¢ ¢ por isso que — em nosso mundo incerto — ela tem tanta importincia, O problema nao é que estejamos desprovidos de informaggo ou de conheci- mento, A rio, © mundo esté cheio deles e, com o avango digital, o fluxo se transformou em uma inundagio. De acordo com um estudo recente, cerca de 2,5 milhdes de artigos cientificos sio publicados todo ano, ¢ 0 miimero de publicagdes desde 1665 jé ultrapassou a marca dos 50 milhdes*. Os especialis- tas, munidos de instrumentos especializados na coleta de dados ¢ de técnicas icadas de modelagem, esto dispostos a oferecer suas projegdes. Devemos ouviclos, assim como devemos ouvir os pesquisadores imersos nas disciplinas das artes e humanidades, cujas reflexes fornecem os contextos que nos permitem compreender melhor © nosso dilema atual. No entanto, cientistas ¢ humanis- tas tém algo em comum, a saber, um senso de que eles so capazes de tomar a medida do mundo a partir de wgar além dele, 14 do alto ou muito ‘Do seu ponto de car 0 que, para 0 resto de \cionamento do universo; as, 0 cérebro; psicélogos, mercado; socidlogos, a sociedade, ¢ assim por di ropologia também, durante boa parte da historia da disciplina, poderes superiores semelhantes, especifica- nte © de descrever os contextos, variavelmente denominados “sociais” ou interior dos quais as obras e as vidas de outros povos poderiam ser interpretadas ou mesmo justificadas. 0 que se segue, terci izer sobre essa reivindicagio. No entanto, no concordo com ela. O tipo de antropologia que propésito diferente. Nio se trata de possibilidades futuras. A antropologia, em minha opinio, prospera nesse en- 2. JINHA, A.E, “Article 60 million: an estimate of the number of scholarly articles in exis- tence”, In: Lenrned Publishing, 23, 2010, p. 258-263, —— gajamento da imaginagio e da experiéncia. O que ela oferece ndo é um qumitimt de conhecimento, a ser somado As contribuigées de outras disciplinas, todas de- terminadas a revirar © mundo por informagio e a transformé-la em produtos do conhecimento. meu tipo de antropologia, na realidade, nao se dedica absoluta- mente & “produgio de conhecimento”. Ela aspira a uma relagio completamente diferente com 0 mundo. Para os ant 08, asi para os povos entre (os quais eles trabalham, o mundo nao € o objeto de estudo, mas o set meio. Eles estio, desde 0 imersos em seus processos € relagdes. Os criticos podem considerar isso uma fraqueza ou uma vulnerabilidade. Para eles, isso revela uma falta de objetividade. Mas, para nés, essa é a propria fonte da qual a antropologia retira sua forga. Pois © nosso propésito no é 0 conhecimento objetivo. O que buscamos, ¢ esperamos obter, ¢ sabedoria, Eles nao sio, de forma alguma, equi- valentes; ¢ eles podem, inclusive, operar em desacordo. © conhecimento busca fixar as coisas nos conceitos ¢ nas eategorias de pen- samento, explicé-las torné-las, até certo ponto, previsiveis. Frequentemente, fa- Jamos de nos armar de conhecimento, ou de usé-lo para fortalecer nossas defesas, para que possamos enfientar melhor as adversidades, Ele nos dé poder, controle € aventurar-se pelo mundo € assumir o risco de se expor ao que acontece Ii. E compartilhar da presenga de outros, prestar atengio, importar-se. O c to fixa € nos tranquiliza; a sabedoria desestabiliza e perturba. O conhecimento arma € controla; a sabedoria desarma e abnega. O conhecimento tem seus desa~ fios, a sabecoria tem seus caminhos, mas, enquanto os desafios do conhecimen- to se encerram em suas solugdes, os caminhos da sabedoria se abrem para um processo de vida. Agora, é claro que no estou sugerindo que podemos abrir nto. Mas precisamos de sabedoria também. Na conjuntura inou bruscamente em diregio ao primeiro, afastando:se da moderar 0 conhecimento transmitido pela da imaginagio. Entre as diferentes classes de pesquisadores, os antropdlogos so conheci- dos por sua disposigo em aprender com aqueles que, em um mundo obcecado pelo avango do conhecimento, poderiam ser rejeitados como incultos, analfabe- tos ou mesmo ignorantes. Trata-se de povos cujas vozes, alhcias aos meios de mminantes, permaneceriam, de outro modo, si (0s antropdlogos demonstraram repetidas vezes, esses povos sao mais sdbios que (5 seus superiores supostamente mais instru(dos. E, com o mundo chegando ao ia coma sabedoria da experiéncia limite, ndo podemos nos dar ao luxo de ignorar sua sabedoria. Temos muito 0 que aprender, se nos permitirmos ser ensinados por outros com experiéncias a partilhar, No entanto, esses outros foram eludidos por estudiosos que, em sua jond-los em suas pesquisas mais como infor- ‘mantes do que como professores, interrogados pelo que pode set extraido de suas ‘mentes ao invé sobre o mundo. Mé- todos elaborados foram desenvolvidos para manté-los a distancia. Os métodos sfo os guardides da objetividade, acionados para garantir que os resultados da pesquisa ndo sejam contaminados por um envolvimento muito fntimo ou afetivo dos pesquisadores com os povos que eles estudam. Para a antropologia, contudo, esse envolvimento ¢ essencial. Todo estudo demanda observagio, mas, na an- tropologia, a observagio se d& nao pela objetificagio dos outros, mas prestando atengao a eles, vendo 0 que fazem ¢ escutando o que dizem. Estudamos com as pessoas, ao invés de fazer estudos sobre elas. Chamamios esse modo de trabalho de “observagio participante”. Ele € um dos fundamentos da disciplina, A observagio participante demanda tempo. Nao € raro os antropélogos pas- sarem muitos anos no que eles chamam de “campo”. Situado, a principio, em um lugar desconhecido, possivelmente como uum héspede indesejado, o pesquisador estd, em grande medida, moralmente obrigado aos seus anfitri6es ou anfitrias Os antropdlogos jd escreveram extensivamente sobre a instituigao da didiva € demonstraram como os princ{pios de dar e receber estio no amago da vida coti- diana. Mas esses principios também sao fundamentais para a prética do trabalho de campo antropoldgico. E um exercicio fundado na generosidade, em receber de bom grado o que Ihe é oferecido, ao invés de procurar obter, por ras ou subterfiigios, 0 que nao é. Isso é 0 que diferencia o campo do laboratério. No campo, é preciso esperar para que as coisas acontegam, ¢ aceitar 0 que ¢ ofe- recido quando Ihe ¢ oferecido. E por isso que o trabalho de campo demora tanto. ratério, por outro lado, é um lugar engenhosamente montado, equipado com instrumentos por meio dos quais as coisas sio forcadas ou levadas a revelar seus segredos, conhecidos pela ciéncia como “dads”. Embora, literalmente, um dado seja uma coisa dada (do latim dare, “dar”), no vocabulétio cientifico cle lo que esté disponi aleance do observador ~ um itou dos fluxos da vida nos quais ele inicialmente foi for- mado. Apenas quando as coisas jd se consolidaram em fatos discretos que elas podem ser consideradas. Por isso tendemos a pensar nos dados, antes de tudo, como quantitativos. Devemos considerar a observagio participante, entio, uma vez que ela é pra- ticada no campo 20 invés de no laboratério, como um método para coletar dados que no sio quantitativos, mas qualitativos: dados que no que muitos manuais de antropologia a descrevem. Porém, algo me incomodla na prépria ideia de “dados qualitativos”. Pois a qualidade de um fendmeno s6 pode estar na sua presenga ~ no modo como ele se abre ao seu entorno, inclusive Aqueles que o observam, No entanto, no momento em que transformamos a qua le em um dado, o fendmeno ¢ isolado, separado da matriz. de sua formagao. Coletar dados qualitativos é como abrir-se para 0s outros apenas para virar-lhes as costas, atentando para o que eles dizem pelo que isso diz sobre eles. A generosi- dade se torna uma fachada para a expropriagio. Poucos iriam to longe quanto Ireniius Eibl-Bibesfeldt, o fundador austriaco da “etologia humana”, que estava to determinado a coletar dados sobre as pessoas sem 0 sett consentimento que projetou uma cimera com um refletor de 90 graus, permitindo que ele fotogra- fasse seus objetos inadvertidamente enquanto apontava para outra diregio. Iss0 foi um embuste tremendo, Mas ainda hé certa duplicidade em fingir participar da conversa com seus anfitrides, de boa-fé, mas usar isso, na verdade, como um meio para coletar informag6es sobre eles. Os antropélogos frequentemente en- fatizam a importincia, no trabalho de campo, de estabelecer boas relagoes. Mas relagio pode significar tanto amizade quanto descrigéo. E correto se aproximar das pessoas para descrevé-las? A palavra que os antropélogos usam para descrever as pessoas ¢ etmgrafia. ‘A observacio participante é, entio, um meio para a etnografia? A maioria dos antropdlogos diria que sim; de fato, na cabega de muitos, método € resultado fo tZo confundidos que a prépria prética da observagio participante equivale a0 trabalho etnogréfico. Mas eu discord. Reiterando, a observagio participante ¢ ‘uma forma de estudar com as pessoas. Nao se trata de descrever outras vidas, mas de unir-se a elas na tarefa comum de encontrar formas de viver. Aqui, eu afirmo, reside a diferenga entre a etnografia e a antropologia. Assim, para 0 antro 0, a observacio participante no €, absohutamente, um método para a coleta de dados. Ela é um compromisso de aprender fazendo, semelhante a0 do aprendiz ou do aluno. Afinal, nio estucamos com nossos professores na universidade pen- sando em prestar conta do que eles dizem, ou em descrevé-los para a posteridade. ‘Ao contrério, nos permitimos ser educados por eles. Para nés, assim como para nossos professores, essa eduucagio & transformadora. Certamente, isso também vale para a educagio a que nos submetemos durante a observagio participante no campo. Em resumo, 0 objetivo primordial da antropologia nao ¢ emog mas educativo. Em minha opiniso, a importincia da antropologia reside preci- samente no seu potencial de educar e, através dessa educagio, de transformar vidas — as nossas proprias ¢ as daqueles entre os quais trabalhamos. Mas esse potencial apenas se concretizaré se estivermos dispostos a aprender com eles. E niio aprenderemos nada se nao os levarmos a sério. io.éa regra miimeto um do meu tipo de antropologia. Isso Jpara o que eles fazem e dizem, Mais do que isso, de~ ‘vemos encarar os desafios que eles colocam as nossas concepsdes sobre como as coisas so, 0 tipo de mundo em que vivemos e como nos relacionamos com ele. Nao temos que concordar com nossos professores, ou presumir que eles estio nds estamos errados. Temos o direito de discordar. Mas no podemos nos esquivar do desafio. De fato, a histéria vergonhosa da antropologia oferece € cexemplifica muitas estratégias para fazer justamente iss0/ Elas i sio de que esses povos s20 irracionais ou incapazes de pensamento l6gico, de que cles sio reféns da superstigio ancestral, de que o seu pensamento é caracteristico de estigios anteriores do desenvolvimento humano, da inocéncia infantil A matu- ridade, de que eles operam com base em informagoes falsas ou equivocadas, de que 0 seu comportamento é determinado pela tradigSo, de que eles sio incapazes de distinguir o fato da imaginagZo ou de estabelecer o limite entre o literal € 0 metaférico/ A maioria dos antropélogos contemporineos, corrtamente, repudia cessas estratégias, defendendo o principio de que os outros povos no podem ser classificados com base em nenhuma escala de razdo, inteligéncia ou maturidade ‘que possa justificar levar o seu pensamento € as suas priticas menos a sério do {que as nossas préprias. No entanto, muitos ainda subscrevem ao que poderia ser chamado de “suspensio voluntéria da descrenga”, andloga & dos frequentadores de teatro que, durante a perférmance, se permite serem levados para o mundo de faz. de conta encenado no palco como se ele fosse real. Contudo, assumir essa posic¢ao € negar que as palavras € as agbes dos outros, especialmente quando elas contrariam 0 nosso entendimento, tenham qualquer relagio com a realidade. Isso também ¢ uma estratégia para nos protegermos, para nos convencermos de que, independentemente do que esses povos dizem ‘ou fazem, a realidade-como-a-conhecemos permanece intacta. Vestindo o manto da onisciéncia, declaramos que o mundo percebido e encenado pelos povos, € que para cles ¢ totalmente real, é, na verdade, uma construgio feita de conceitos, crengas e valores que compdem 0 que comumente chamado de sua “cultura”, (Os mundos humanos, insistimos, so construfdos culturalmente - exceto, é claro, (© nosso, uma ver que, imersos na luz, da razio, somos capazes de ver 0 que cles no podem, particularmente, que essas diferentes construgées no sio mais do que fabricagées alternativas de uma dada realidade. A visio deles est suspensa em uma teia de significados, a nossa esté fundada no fato objetivo. Somos es- pectadores na galeria da diversidade humana; eles so os retratos. Nés podemos ver © que hé dentro, cles nfo podem emxergar 0 que hé fora. Essa estratégia é reproduzida sempre que tratamos o que os povos fazem e dizem nao como ligées com as quais podemos aprender, mas como evidéncias a partir das quais construir ‘um caso. Ela equivale a tratar essas coisas como sintomas de outra, da mio in- visivel da cultura que, sem © conhecimento dos préprios sujeitos, determina o seu pensamento ¢ as suas priticas. Certamente, isso trai a antropologia. Pois levar os outros a sério nao significa encerrar 0 caso, mas abri-se ppara imaginagdes enriquecidas pela sua experiéncia, [As questdes em jogo, aqui, vao além daquelas a respeito de como podemos conbecer © mundo. Fundamentalmente, elas si0 quest6es sobre como pode haver \do a ser conhecido. No vocabulatio inescrutavel da filosofia, questoes do o tipo, sobre o saber, so epistemoldgicas; as do segu mtoligicas, Embora a passagem da epistemologia & ontol enigmética, ela € de profunda importincia, Darei um exemplo para porgué, Durante a década de 1980, um dos antropélogos mais pet jindo scus animais, suas plantas e, particularment de Hallowell, suas conversas com Berens influ pensamento, Em uma dessas conversas, a dupla retomava o tema igada pela observacdo de que, na gramitica do idioma Ojibwa, izada pelos linguistas, a palavra “pedra” parecia pertencer a uma classe geralmente atribuida a seres animados, ao invés de inanimados. Intrigado, Hallowell perguntou: “Todas as pedras que vemos aqui, ao nosso redor, esto ivas?” Apds uma longa reflex4o, Berens respondeu assim: “Nao! Mas algumas "3. A resposta, relembra Hallowell, deixou uma impresséo duradoura. Mas ido sabia bem o que pensar dela. ‘Como alguém pode sugerir seriamente que algo tio inerte como uma pedra possa estar vivo? E, se algumas podem estar vivas, por que no todas? Uma forma de abordar essas questdes seria pressupor que as atitudes que as pessoas assumem em relagao As coisas podem ser de dois tipos. H4 uma atitude pritica do senso comum, tipica da vida cotidiana, ¢ uma atitude carregada de fé ¢ ideologia, reservada para ocasides de natureza ritual ou cerimonial imbuidas de associagdes simbdlicas. Em um tratado sobre as formas elementares da religido, publicado pela primeira vez em 1912, Emile Durkheim — fundador, na Franga, da disci- plina da sociologia - denominou essas atitudes, respectivamente, de profanas ¢ sagradas*. Consideremos as mesas, por exemplo. Geralmente, pensamos em me- 3, HALLOWELL, ALL, “Ojibwa ontology, behavior and word view”. In: DIAMOND, S. (eA). Culture in History: Esays in Honor of Paul Radin, Nova York: Columbia University Tress, 1960, p. 19-52, A citago conta dap. 24. 4, DURKHEIM, &, The Elementary Forms ofthe Religions Lif 2. ed. Londres: Allen 8 ‘Unwin, 1976 [‘Trad. Joseph Ward Swain), muir a ela poderes extraordinérios, I. Poderia ser esse 0 caso entre os Ojibwa € ibwa, assim como para os povos de todo ite na- ser consagradas ¢ parecerem, para aqueles que as veem dessa maneira, ser dotadas cde uma espécie de aura ou forga vital. Foi isso 0 que Berens quis dizer 20 afirmar que algumas pedras esto vivas? A jerada evidéncia ivamente, tomando ‘como realidade o que elas sabem, na vida cotidiana, que ¢ irre Figura 1 Chefe Wiliam Berens sentado junto 3s pedras vivas de seus ancestral uma foto tirada por A. Em nossa era secular & muito ficil desconsiderar © que os outrps dizem ¢ fazem, quando contradizem nossa sensibilidade, como mero ritual, Nossos re- tratos de culturas exéticas tendem a ser pintados em cores rituals, Mas, como Hallowell sabia, teria sido um insulto a inteligéncia de seu amigo seguir por esse ‘caminho. Pois a sua declaragio nfo foi dogmitica, Ele nfo afirmou que as pedras esto vivas e ponto, como se isso fosse uma conclusio precipitada, determinada pela tradicao, apesar de toda a evidéncia em contrétio, Pelo contrétio, Berens sé chegoua sna conclusio apés uma longa reflexio, B, como ele explicé-1o a Hallowell, o seu julgamento foi baseado na experiéncia observou que algumas pedras podiam mover-se livremente, e até mesmo produ- zir sons semelhantes & fala. Nés, claro, que estamos convencidos de que as pedras no podem fazer tais coisas, supomos q isso. Mas, se Berens estivesse aqui agora, certamente ele gostaria de saber como, experiéncia e imaginago podem ser tio facilmente distingui- nos nossos sonhos? O mi cle tenha imaginado ou sonhado com nos nos atentar para isso. Is estivermos preparados para tratar suas palavras vem ¢ falam seja t20 obvi descendo por encostas cobertas de cascalhos com 0 seu préprio peso ou levadas pela gua, pelo gelo ou pelas ondas do mar. E elas produzem sons quando se chocam, umas nas outras ou em outras coisas. E como se cada pedra tivesse uma vor propria, assim cor fala como 0 modo que nés 10s temos de tornar a nossa presenga aud ‘mesmo nao poderia ser dito das pedras e seus ruidos? Nesse sentido, elas tamt podem falar. Prestaratengio &s coisas — observar os seus movimentos ¢ escutar os seus sons — flagrar 0 mundo em ago, como surfar a crista de uma onda sempre a ponto de quebrar. Longe de chegar atrasado a um mun os dados “yf foram langa- os humanos. Se enten dos, é estar I4, presente e alerta, no momento mesmo em que ele toma forma. Nese momento, a experiéncia e a imaginagfo se fundem ¢ o mundo ganha vida. a percepeio das correntes de formacio do mundo, pod testemunhar a vivacidade das cosas, incuindo as pedras € . Mas isso implica conceber a vida de uma maneira muito diferente la pela ciéncia, Nao se trata de algum ingrediente secreto, ocul- das coisas que julgamos possui-lo € que, por isso, elas atuam no palco do mundo. Ao invés disso, trata-se de conceber a vida como a poténcia dos e das correntes de energia que atravessam 0 mundo trazendo ja ¢ mantendo-as no lugar em seu espago ¢ tempo* determina- 10 é que a vida esteja nas pedras. Ao contririo, as pedras estio da existéncia e da transformagio dizer ~ é conhecida como animismo. Antes religides, baseado na crenga equivocada na 10 agora € considerado uma postica da vida a ciéncia em sua compreensio da plenitude da existéncia. E isso 0 que implica levar os outros a sério. Dois homens adultos — um professor norte-americano e um ancido Ojibwa —~ conversando sobre pedras? O exemplo pode parecer trivial, ou mesmo absurdo. ‘Mas espero ter convencido o leitor de que o seu didlogo abre questoes fundamen- tais sobre © mundo em que vivemos, sobre 0 nosso lugar nele e, de fato, sobre 1 propria vida. Certamente, esse & apenas um exemplo dos incontiveis didlogos que antropélogos mantiveram com povos de todo © mundo, toxlos os quais deriam, potencialmente, levantar quest6es da mesma magnitude. O giro as ques- tes relativas a0 ser, que t com Hallowell, ganhou tanto impulso desde antropdlogos, hoje, filam de uma “virada ontolégica”. No I= apesar de ter sido um dos homens mais perspicazes de seu onge demais. Finalmente, ¢ tragicamente, ele abandonou lo do seu artigo ~ “Ontologia, comportamento € cosmovisio diz. tudo, Nele, o Chefe Berens reaparece como um “ancido” as pedras apenas atestam a visio recebida -1. No podemos mais nos dar ao Iuxo de sermos to complacentes ia. Pois, como nunca, tornou-se evidente que as certezas existenciais desprezado como a mais pi forjar abordagens altemativas a0 problema de como viver, que possam sanar a ruptura entre os modos de conhecer o mundo e os de habiti-lo, entre a ci + No dsl pem gus par a dpa pee dde espago como uum period de tempo, Pareceu-me interessante, neste contexto, manter os dois [NT] © a natureza. Essa reconciliagio é um passo necessério em diregéo a um futuro. indefinido ¢ sustentével. Que fique claro: no estou sugerindo que os chamados povos “nativos”, ‘como os Ojibwa, cujos ancestrais viveram da terra por milénios antes da che- gada dos colonizadores europeus, tenham todas as respostas certas 35 questdes sobre como viver. Tampouco estou sugerindo que as chamados “ocidentais”, cujos ancestrais foram cimplices na empresa colonial, estejam errados em todas clas. Ninguém tem as respostas. Mas temos abordagens diferentes, baseadas na cexperiéncia pessoal e no que aprendemos com outros, ¢ vale a pena comparé-las. ia como disciplina é motivada por um compromisso com a validade desse exereicio comparativo. Contudo, comparar nao é justapor formas estabe- lecidas de pensamento e pritica, como se clas jé estivessem sedimentadas nas _mentes € nos corpos dos povos dessa ou daquela tradigio. Pois o pensamento nao se restringe & replicagao do que jé foi pensado, assim como a pritica nao se limita a0 que ja foi feito, Ao invés disso, 0 que comparamos so modes de pensamento ede agdo que, continuamente, ultrapassam todos os limites langadios em seu ca- minho, Nao se trata de catalogar a diversidade dos modos de vida humanos, mas 10 didlogo. Trata-se, ademais, de um didlogo no qual todos aqueles esto prestes a serem transformados. Em suma, 0 propésito da antropologia é estabelecer um diglogo da vida humana mesma. Esse didlogo — essa vida — ndo € apenas sabre o mundo. Em certo sentido, como argumentarei ros capitulos a seguir, ele é 0 mundo. O tinico mundo em que todos habiramos.

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