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JÜRGEN HABERMAS

ESTUDOS ALEMÃES
...
Série coordenada por
EDUARDO PORTELLA,
EMMANUEL CARNEIRO LEÃO,
MONIZ SODRÉ, GUSTAVO BA YER.

Consciência Moral
e
Ficha catalográfica elaborada pela Equipe de Pesquisa da ORDECC
Agir Comunicativo

Habermas, Jürgen
Hl 14 Consciência moral e agir comunicativo/Jürgen Haber-
mas; tradução de Guido A. de Almeida. -.Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1989.
... p. (Biblioteca Tempo Universitário n. 0 84. Estudos
Alemães).
Tradução de:Moralbewusstsein und kommunikatives
Handeln.
1. Filosofia 2. Epistemologia- Ciências Sociais. 1. Título
II. Série

CDU 165
ISBN 85-282-0008-6

tempo brasileiro

Rio de Janeiro - RJ - 1989


11. J. Piaget, Biologie et connaissance (Biologia e Conhecimento) 3 - NOTAS PROGRAMÁTICAS PARA A
Paris 1967; trad. alemã: Frankfurt 1974. FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA DO
12. L. Kohlberg, "The Claim to Moral Adequacy of a Highest DISCURSO
Stage of Moral Judgement'' (''A Pretensão de Adequação Mo-
ral de um Mais Alto Estádio do Juízo Moral"), in: Journal of
Philosophy 70, 1973, 632, 633.
13. L. Kohlberg, "From Is to Ought" ("Do É para o Deve"), in:
Th. Mischel (1971), 208, 213.
14. Ibid., 215.
15. Ibid., 154. I - Considerações propedêuticas.
16. Ibid., 223. 1. A propósito da fenomenologia do fato moral.
17. Kohlberg, (1973), 633. 2. Abordagens objetivistas e subjetivistas da ética.
18. Kohlberg, in: Mischel (1971), 222 s.
19. Ibid., 156, 165. II - O princípio da universalização como regra de argumenta-
20. Cf. neste vol., mais abaixo, p. 171 ss. ção.
3. Pretensões de validez assertóricas e normativas no agir co-
municativo.
4. O princípio moral ou o critério da universalização de máxi-
mas de ação.
5. Argumentação versus participação - um excurso.
III - A étíca do Discurso e seus fundamentos na teoria da ação.
6. É necessária e possível uma fundamentação do princípio mo-
ral?
7. Estrutura e valor posicional do argumento pragmático-
transcendental.
8. Moralidade e eticidade.

Em seu mais recente livro, A. Macintyre desenvolve a tese de que


o projeto do Esclarecimento de fundamentar uma moral seculari-
zada, independente das suposições da metafísica e da religião, fra-
cassou. Ele aceita como resultado incontestável do Esclarecimento
aquilo que Horkheimer constatara outrora numa intenção crítica -
que a razão instrumental, restrita à racionalidade meio-fim, tinha
que relegar a determinação dos fins eles próprios a decisões e ati-
tudes emocionais cegas.

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"Reason is calculative; it can assess truths of fact and tencionais. 3 Os fenômenos morais descobrem-se, como procurarei
mathematical relations and nothing more. ln the realm of mostrar na parte II, a uma investigação formal pragmática do agir
practice it can speak only of means. About ends it must be comunicativo, no qual os atores se orientam por pretensões de va-
silent. " 1 lidez. Deve ficar claro por que a ética filosófica - diferentemente,
por exemplo, da teoria do conhecimento - pode assumir sem mais
(" A razão é calculadora. Ela pode avaliar verdades de a figura de uma teoria especial da argumentação. Na Parte III, co-
fato e relações matemáticas e nada mais. No âmbito da locarei a questão fundamental da teoria moral, a saber, como o
prática, só pode falar de meios. Sobre os fins, ela tem que princípio da universalização, que é o único a possibilitar nas ques-
se calar. ' ') tões práticas um acordo argumentativo pode ser, ele próprio fun-
Desde Kant, isso é contestado pelas éticas cognitivistas que, num damentado. Este é o lugar para a fundamentação transcendental da
ou noutro sentido, se aferram à idéia de que as questões práticas ética a que Apel procede a partir de pressuposições pragmáticas
são "passíveis de verdade". universais da argumentação. Todavia, veremos que essa "deriva-
ção'' não pode pretender o status de uma fundamentação última e
Nessa tradição kantiana encontram-se atualmente importantes também veremos por que uma pretensão tão forte não deveria de
abordagens teóricas tais como a de Kurt Baier, Marcus George modo algum ser erguida. O argumento transcendental-pragmático
Singer, John Rawls, Paul Lorenzen, Ernst Tugendhat e Karl-Otto na forma proposta por Apel é fraco demais até mesmo para que-
Apel; elas coincidem na intenção de analisar as condições para brar a resistência do céptico conseqüente a toda forma de moral
uma avaliação imparcial de questões práticas, baseada unicamente racional. Esse problema vai, finalmente, obrigar-nos a retornar,
em razões. Entre essas teorias, a tentativa de Apel não é, certa- pelo menos com algumas alusões sumárias, à crítica de Hegel à
mente, a que é desenvolvida da maneira mais detalhada; não obs- moral kantiana, para dar ao primado da eticidade diante da moral
tante, considero a ética do Discurso, que já se pode discernir em um sentido não-capcioso (imune a tentativas de ideologização
esboço, éomo a abordagem mais promissora na atualidade. Que!º neo-aristotélicas e neo-hegelianas).
tornar plausível essa avaliação do estado atual da argumentaçao (1) A observação de Maclntyre lembra uma crítica da razão
apresentando um programa de fundamentação correspondente. Ao
instrumental que se volta contra certas concepções unilaterais es-
fazer isso, vou apenas de passagem debater outras abordage~s pecíficas da moderna compreensão do mundo, em particular contra
cognitivistas; antes de mais nada, vou me concentrar na elaboraçao
a tendência obstinada a reduzir o domínio das questões que se dei-
da problemática comum a essas teorias, que as distingue das abor-
xam resolver com razões ao cognitivo-instrumental. Questões mo-
dagens não-cognitivistas. ral-prácticas do tipo: "O que devo fazer?" são afastadas da discus-
De início (1), quero destacar a validez deôntica das no~as e as são racional na medida em que não podem ser respondidas do
pretensões de validez que erguemos com atos de fal_:t ligados a ponto de vista da racionalidade meio-fim. Essa patologia da cons-
normas (ou regulativos) como constituindo aqueles fenomeno~ que ciência moderna requer uma explicação no quadro de uma teoria
uma ética filosófica tem que poder explicar. Ficará cla~o entao. <:) da sociedade ;4 a ética filosófica, que é incapaz de fornecê-la, tem
que as posições filosóficas conhecidas, a saber, as teonas defimto- que proceder terapeuticamente e mobilizar, contra o deslocamento
rias de gênero metafísico e as éticas intuicionis13:s ~o valor, po~ ~m dissimulador dos fenômenos morais fundamentais, as forças de au-
lado e as teorias não-cognitivistas como o emot1v1smo e o dec1S10- to-saneamento da reflexão. Neste sentido, a fenomenologia lingüís-
nism'o, por outro lado, já deixam escapar os f~n~menos qu~ preci- tica da consciência ética, que P. F. Strawson levou a cabo em seu
sam de explicação, ao assimilarem as propos1çoes normativas ao célebre ensaio sobre "Freedom and Resentment" ("Liberdade e
modelo errôneo das valorações e proposições descritivas ou das Ressentimento"), pode desenvolver uma força maiêutica e abrir os
proposições vivenciais e imp~rativas. Coisa semelhante v~l~ p~a olhos ao empirista que se apresenta como céptico moral para suas
um prescriptivismo que se onenta pelo modelo das propos1çoes m- próprias intuições morais na vida quotidiana.

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Strawson parte de uma reação emotiva que, por causa de seu
caráter insistente, é adequada para demonstrar até mesmo ao mais kin~s of love. But it cannot include the range of reactive
empedernido dos homens, por assim dizer, o teor de realidade das f~e_lmg_s and ~ttitudes which belong to involvement or par-
experiências morais; ele parte, a saber, da indignação com que re- ttc_ipatt~m with others in inter-personal human relation-
agimos a injúrias. Essa reação sem ambigüidade consolida-se e ships: it cannot include resentment, gratitude, forgiveness,
pereniza-se num ressentimento que fica a arder escondido, se a anger: or the sort of love which two adults can sometimes
ofensa não for d.e alguma maneira "reparada". Esse sentimento be said to feel reci~rocaly for each other. If your attitude
persistente revela a dimensão moral de uma injúria sofrida, porque to~ards so~eone is wholly objective, then though you
não reage imediatamente, como o susto ou a raiva, a um ato de might fight him, y_ou cannot quarrel with him, and though
ofensa, mas à injustiça revoltante que um outro comete contra you may _talk _to him, even negotiate with him, you cannot
mim. O ressentimento é a expressão de uma condenação moral reason w1!h h1m. You can at most pretend to quarrel or to
(que se caracteriza antes pela impotência).6 Partindo do exemplo reason, w1th him. " 7 '

do ressentimento, Strawson faz quatro observações importantes. . ("P_od~-se dar ~e _muitas maneiras uma tonalidade emo-
(a) Para as ações que lesam a integridade de outrem, o autor ou ciona~ a at~tude obJetlva, mas não de todas as maneiras: ela
um terceiro pode eventualmente apresentar desculpas. Tão logo pode mclu1;1" ~na ou até mesmo amor, se bem que nem to-
aceite um pedido de desculpas, o atingido não se sentirá mais ofen- das as ~spec1es de a~or. Mas ela não pode incluir a gama
dido ou diminuído exatamente da mesma maneira; sua indignação de s~ntlmentos e atitudes reativos que pertencem ao en-
inicial não vai se perenizar como ressentimento. As desculpas são volv1m~nto ou à participação com outros nas relações hu-
como que reparos a que procedemos em interações perturbadas. mai~as_ mterpe~soais: ela não pode incluir ressentimento,
Para identificar, agora, o gênero desses distúrbios, Strawson dis- grattda~, perdao, .raiva ou a espécie de amor do qual se
tingue duas espécies de desculpas. Em um dos casos, referimo-nos pode dizer que dois adultos às vezes sentem reciprocamen-
a circunstâncias que tomem plausível a idéia de que não seria intei- te? um pelo ou~r~. Se a sua atitude diante de alguém é in-
ramente apropriado sentir o ato de injúria como o infligir de uma teirame?te ObJe!•v~, então, muito embora você possa
injustiça: "Sua intenção não era isso", "Ele não pôde evitar", combate-!º• voce nao pode discutir com ele e, muito em-
"Ele não tinha outra escolha", "Ele não sabia que ... " são alguns b~ra voce possa falar com ele e até negociar com ele, você
dos exemplos para o tipo de desculpas que fazem ver sob outra luz ~~o pode a~~men~r com ele. Você pode, no máximo, fin-
a ação que se sente como ofensiva, sem pôr em dúvida a imputabi- g1r que esta d1scutmdo, ou argumentando, com ele.").
lidade do agente. Mas este é exatamente o caso quando chamamos
a atenção para o fato de que se trata de uma criança, de um louco, Ess~ consider~ção leva Strawson à conclusão de que as reações
de um bêbado - que o ato foi cometido por alguém que estava fora ~s~oais do_ ofendido, por exemplo, os ressentimentos, só são pos-
de si, ou fortemente estressado, por exemplo, sofrendo as seqüelas si~eis na ~tlt~de performativa de um participante da interação. A
de uma grave doença etc. Esse tipo de desculpas convida-nos a ver atttu~e ~Qietlvante de um não-participante suprime os papéis co-
o própn·o ator sob uma outra luz, a saber, de tal modo que não se ~umcac1onais da primeira e da segunda pessoas e neutraliza o âm-
possa mais lhe atribuir sem restrições as qualidades de um sujeito bito dos fenômenos morais em geral. A atitude da terceira pessoa
imputável. Nesse caso, devemos assumir uma atitude objetivante faz desaparecer esse âmbito fenomenal.
que exclui de antemão as censuras morais: , _(b) Essa observação também é importante por razões metodo-
logicas: o filósofo moral tem que adotar uma perspectiva a partir da
"The objective attitude may be emotionally toned in qual possa per~eber os fenômenos morais enquanto tais. Strawson
many ways, but not in all ways: it may include repulsion
and fear, it may include pity or even love, though not all
mostra como diferentes sentimentos morais estão entrelaçados
c?m os outro~ em relações internas. As reações pessoais do 0
dido, como vimos, podem ser compensadas por desculpas. Inver-
:!~
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sarnente, a pessoa atingida pode perdoar a injustiça que sofreu. ~ssa observação toma mais clara a posição das éticas desen-
Aos sentimentos do ofendido corresponde a gratidão daquele a v~lvidas na ~rspectiva de um observador e que resultam numa
quem se faz um benefício e à condenação da ação injusta a admira- remterpretaçao. das intuições morais do quotidiano. Mesmo que
ção da boa. Inúmeras são as nuances do nosso sentimento para ~ fos~em verdadeiras, as éticas empiristas não poderiam alcançar um
indiferença, o desprezo, a malevolência, a satisfação, o reconhec~- ~f~ito esclarecedor porque não atingem as intuições da prática quo-
mento, o encorajamento, o consolo etc. Naturalmente, os senti- tidiana:
mentos de culpa e de obrigação são centrais. Neste complexo de
atitudes afetivas, passível de ser esclarecido ~la análise da lingua- . "The human c?mmi_tme~t to participation in ordinary
gem, o que interessa a Strawson inicialmente é o fato de que todas mterpersonal relatlonships is, I think, too thoroughgoing
essas emoções estão insertas numa prática quotidiana à qual só te- and deeply rooted for us to take seriously the thought that
mos acesso numa atitude performativa. É só l}Ssim que a rede de a general theoretical conviction might so change our world
sentimentos morais adquire uma certa inevitabilidade: o engaja- that, in it, there were no longer any such things as inter-
mento que assumimos na medida em que pertencemos a um mund? personal relationships as we normally understand them ...
da vida não é algo que possamos revogar a nosso bel-prazer. A ~ti- A sustained objectivity of inter-personal attitude, and the
tude objetivante em face de fenômenos que devemos ter percebido human isolation which that would entail, does not seem to
de início a partir da perspectiva de um participante é secundária re- be so?1ething of which human beings would be capable,
lativamente a isso: even if some general truth were a theoretical ground for
it. ',9
"We look with ao objective eye on the compulsive be- ('' O compromisso humano com a participação nas relações
haviour of the neurotic or the tiresome behaviour of a very interpessoais ordinárias é, acredito, por demais abrangente
young child, thinking it in terms of treatment or training. e arraigado em nós para levarmos a sério o pensamento de
But we can sometimes look with something like the sarne que uma convicção teórica geral poderia modificar o nosso
eye on the behaviour of the normal and the mature. We mundo a tal ponto que não haveria mais nada de parecido
have this resource and can sometimes use it: as a refuge, com as relações interpessoais, tais como as entendemos
say, from the strains of involvement; or as ao aid to policy; normalmente (... ) Uma constante objetividade na atitude
or simply out of intellectual curiosity. Being human, we interpessoal e o isolamento humano que isso acarretaria
cannot, in the normal case, do this for long, or alto- não parece ser algo de que os seres humanos sejam capa-
gether. "' zes, mesmo se uma verdade geral fornecesse uma razão
teórica para isso.")
("Olhamos com um olhar objetivo o comportamento
compulsivo do neurótico ou o comportamento enfadonho Enquanto a filosofia moral se colocar a tarefa de contribuir para
de uma criança muito novinha, pensando em ,termos de tra- o aclaramento das intuições quotidianas adquiridas no curso da
tamento ou adestramento. Mas às vezes podemos olhar socialização, ela terá que partir, pelo menos virtualmente, da ati-
com um olhar parecido para o comportamento d~ pessoa tude d~s participantes da prática comunicativa quotidiana.
normal e amadurecida. Dispomos desse recurso e as vezes (c) E só a terceira observação que leva ao âmago moral das rea-
podemos usá-lo: como um refúgio, dig~?s, das ~ensões ções afetivas até aqui analisadas. A indignação e o ressentimento
do envolvimento; ou como uma linha política; ou simples- são dirigidos contra outra pessoa determinada, que fere a nossa in-
mente por curiosidade intelectual. Humanos que somos, tegridade; mas essa indignação não deve seu caráter moral à cir-
não podemos, no caso normal, fazer isso durante muito cunstância de que a interação entre duas pessoas particulares tenha
tempo ou de modo algum.") sido perturbada. Mas antes à infração de uma expectativa norma-

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tiva subjacente que tem validez não apenas para o Ego e o Alter, "O que devemos fazer?" à questão técnica da produção social, ra-
mas para todos' os membros de um grupo social, e ~té m~s~o no cional quanto à adequação dos meios aos fins, de efeitos desejá-
caso de normas morais estritas, par~ todos os atores tmputáve1s em veis. Ele compreende de antemão as normas corno instrumentos
geral. É só assim que se explica o fenômeno do sentimenJo de cul- que se podem justificar, do ponto de vista da utilidade social, corno
pa, que acompanha a autocensura d~ autor da infração. A censura mais ou menos adequados aos fins:
do ofendido corresponderão os escrupulos de quem cometeu uma
injustiça, se este reconhecer que feriu ao mesmo tempo, na pessoa "But the social utility of these practices ... is not what
do ofendido, uma expectativa impessoal, ou em todo o caso supr~- is now in question. What is in question in the (... ) justi-
pessoal, e subsistindo igualmente para amba~ as partes._ Os s~nti- fied sense that to speak in terms of social utility alone is to
mentos de culpa e de obrigação remetem alem do part1culansmo leave out sornething vital in our conception of these prac-
daquilo que concerne a um indivíduo em uma sit~ação dete~na- tices. The vital thing can be restored by attending to that
da. Se as reações afetivas, dirigidas em situaçoes determmadas cornplicated web of attitudes and feelings which form an
contra pessoas particulares, não estivessem ass~iada_s a essa essential part of the moral life as we know it, and which are
forma impessoal de indignação, dirigida contra a v1olaçao de _ex- quite opposed to objectivity of attitude. Only by attending
to this range of attitudes can we recover frorn the facts
pectativas de comportamento ~eneralizadas o~ normas, el~s sena~
destituídas de caráter moral. E só a pretensao a uma vahdez um- as we know them a sense of what we mean, i. e. of ali we
versai que vem conferir a um interesse, a uma vontade ou a uma rnean, when, speaking the language of morais, we speak of
desert, responsibility, guilt, condernnation, and justice. " 12
norma a dignidade de uma autoridade mo~al. 10 •
(d) Em conexão com esse traço peculiar da val1dez moral, po- ("Mas a utilidade social dessas práticas (... ) não é o que es-
de-se fazer uma outra observação. Há manifestamente uma cone- tá em questão agora. O que está em questão é o senti-
xão interna entre, por um lado, a autoridade de normas e manda- mento justificado (... ) de que falar apenas em termos de uti-
mentos vigentes, a obrigação em que os destinatários das norma~ lidade social é deixar de fora algo que é vital em nossa con-
se encontram de fazer o que é mandado e deixar de fazer o que e cepção dessas práticas. Esse algo vital pode ser restaurado
proibido, e, por outro lado, aquela pretensão impessoal com que ~e atentando para essa complicada teia de atitudes e senti-
apresentam as normas de ação e os mandamentos, a saber: que sao mentos que formam urna parte essencial da vida moral tal
legítimos - e que, em caso de necessidade, se pode most~ar q~e corno a conhecemos e que se opõem em tudo à objetivi-
são legítimos. A indignação e a censura dirigidas contra a v1ol~ao dade da atitude. É apenas ao atentar para essa gama de ati-
das normas só podem se apoiar em última análise num conteudo tudes que poderemos recuperar a partir dos fatos tais corno
cognitivo. Quem faz uma tal censura quer dizer com isso que o os conhecemos, um sentido daquilo que queremos dizer,
isto é, de tudo o que queremos dizer quando, ao falar a
culpado· pode eventualmente se justificar - por exemplo, recu-
linguagem da moral, falamos em mérito, responsabilidade,
sando corno injustificada a expectativa normativa à qual apela a
culpa, condenação e justiça.'')
pessoa tornada de indignação. "Dever fazer algo" significa "terra-
zões para fazer algo". _ Strawson reúne neste ponto suas diferentes observações. Ele
Todavia desconheceríamos a natureza dessas razoes se redu- insiste na idéia de que só poderemos evitar que o sentido das justi-
zíssemos a ~uestão: "O que devo fazer?" a urna questão de rn_era ficações moral-práticas das maneiras de agir nos escape, se não
prudência e, deste modo, a aspectos do comportamento em v1s_ta perdermos de vista a rede de sentimentos morais tecida na prática
de fins. É assim que se comporta o empirista que reduz a questão comunicativa quotidiana e se localizarmos corretamente a questão:
prática: "O que devo fazer?" às questões: "O que quero fazer?" e "') que devo, o que devemos fazer?":
"Como posso fazê-lo?". 11 Também não adianta recorrer ao po~to '' Inside the general structure or web of hurnan attitudes
de vista do bem-estar social quando o utilitarista reduz a questão: and feelings of which I have been speaking, there is end-

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less room for modification, redirection, criticism, and jus- devia ajudá-lo", "Ele me tratou de maneira indigna", "Ela com-
tification. But questions of justification are internai to the portou-se esplendidamente" etc.
structure or rela~e to modifications internai to it. The exist- Quando esses proferimentos são contestados, a pretensão de
ence · of the general frame\\ ork of attitudes itself is some- validez a eles associada é colocada em questão. O outro pergunta
thing we are given with the fact of human society. As a se a asserção é verdadeira, se a recriminação ou a autorecrimina-
whole, it neither calls for, nor permits, an externai 'ration- ção, se a exortação ou o reconhecimento são corretos. Pode ser
al' justification. " 13 • que o locutor relativize em seguida a pretensão inicialmente er-
guida e apenas insista que o bastão com toda certeza lhe parecia
('' Dentro da estrutura geral ou da teia de atitudes e sen- torto, ou que ele teve a clara sensação de que "ele" não deveria
timentos humanos de que estive falando, há um espaço in- ter feito isso, ao passo que "ela" se comportou, sim, de maneira
finito para modificações, redirecionamentos, críticas e jus- esplêndida etc. Ele pode, finalmer.te, aceitar uma expl:cação fisica
tificações. Mas as questões de justificação são internas à de sua ilusão óptica, que tem lugar quando se mergulha um bastão
estrutura ou relacionam-se com modificações internas a dentro dágua. A explicação esclarecerá o estado de coisas proble-
ela. A existência do quadro geral de atitudes é ela própria mática, seja desculpando-a, criticando-a ou justificando-a. Um ar-
algo que nos é dado juntamente com o fato da sociedade gumento moral desenvolvido está para essa rede de atitudes afeti-
humana. Em seu conjunto, ele não requer nem permite vas morais assim como um argumento teórico está para o fluxo das
uma justificação 'racional' externa.") percepções:
A fenomenologia do fato moral proposta por Strawson chega,
"ln ethics, as in scienct-, intorrigible but conflicting
portanto, aos seguintes resultados: - que o mundo dos fenômenos
reports of personal experience (sensible or emotional) are
morais só se descobre a partir da atitude performativa dos partici-
replaced by judgements aiming at universality and impar-
pantes em interações;
tiality - about the'real value', the 'real colour', the 'real
- que os ressentimentos e as reações afetivas em geral reme-
shape' of an object, rather than the shape, colour or value
tem a critérios suprapessoais para a avaliação de normas e manda-
mentos; one would ascribe to it on the basis of immediate expe-
- e que a justificação prático-moral de um modo de agir visa rience alone. " 15
um outro aspecto, diferente da avaliação afetivamente neutra de re- ("Na ética, como na ciência, os relatos não-corrigíveis
lações meio-fim, mesmo que esta possa ser derivada de pontos de mas conflitantes da experiência pessoal (sensível ou emo-
vista do bem-estar social. cional) são substituídos por juízos visando a universalidade
Não é por acaso que Strawson analisa sentimentos. Manifesta- e a imparcialidade - sobre o 'valor real', a 'cor real', o
mente, os sentimentos têm, relativamente à justificação moral das 'formato real' de um objeto e, não, o formato, cor ou valor
maneiras de agir, um significado semelhante ao que as percepções que atribuiríamos a ele com base na experiência imediata
têm para a explicação teórica de fatos. apenas.")
(2) Em SU!i investi~ação: "The Place of_Reason in Ethics" ("O Ao passo que a crítica teórica às experiências quotidianas en-
Lugar da Razão na Etica", 1950) (que aliás, é um bom exemplo ganosas serve para corrigir opiniões e expectativas, a crítica moral
para o fato de que, na filosofia, é possível colocar as boas questões serve para modificar maneiras de agir ou corrigir juízos sobre elas.
sem encontrar as boas respostas), Toulmin traça um paralelo entre O paralelo que Toulmin traça entre a explicação teórica de fa-
sentimentos e percepções. 14 Opiniões, como por exemplo: "O bas- tos e a justificação moral de maneiras de agir, entre as bases empí-
tão está torto'', funcionam em geral no quotidiano como mediações ricas das percepções, por um lado, e dos sentimentos, por outro,
não-problemáticas de interações; o mesmo vale para proferimentos não é tão espantoso assim. Se "dever fazer algo" implica "ter boas
afetivos da forma seguinte: "Como é que pude fazê-lo!", "Você razões para fazer algo'', então as questões que se referem à deci-

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são por ações guiadas por normas ou à escolha das próprias nor- Com estes e semelhantes argumentos é que se manobra na dire-
mas de ação, devem ser passíveis de verdade: "To believe in the ção de uma ética cognitivista; mas, ao mesmo tempo, a tese de que
objectivity of morais is to believe that some moral statements are as questões práticas são "passíveis de verdade" sugere uma assi-
true. " 16 ("Crer na objetividade da moral é crer que alguns enun- milação dos enunciados normativos aos enunciados descritivos. Se
ciados morais são verdadeiros.:'.) Mas, certamente, o sentido de partimos - com razão, no meu modo de ver - do fato de que
"verdade moral" precisa ser aclarado. os enunciados normativos podem ser válidos ou não-válidos; e se,
Alan R. White enumera dez razões diferentes para se afirmar como indica a expressão "verdade moral", interpretamos as pre-
que as proposições deônticas podem ser verdadeiras ou falsas. tensões de validez, que são objetos de controvérsia em argumenta-
Normalmente, exprimimos as proposições deônticas no indicativo ções morais, segundo o modelo imediatamente disponível da ver-
e damos assim a entender que os enunciados normativos, de ma- dade de proposições; então nos veremos levados, - erroneamente,
neira análoga aos enunciados descritivos, podem ser criticados acredito - a compreender a possibilidade de tratar as questões
isto é, refutados e fundamentados. À objeção óbvia de que, nas ar~ práticas em termos de verdade como se os enunciados normativos
gumentações morais, o que está em questão é o que deve ser feito pudessem ser "verdadeiros" ou "falsos" no mesmo sentido que os
e não como as coisas se passam, White responde com a seguinte enunciados descritivos. Assim, por exemplo, o intuicionismo
observação: apóia-se numa assimilação das proposições de conteúdo normativo
a proposições predicativas do tipo: "Esta mesa é amarela" ou
"ln moral discussion about what to do, what we agree "Todos os cisnes são brancos". G. E. Moore examinou detalha-
on or argue about, assume, discover or prove, doubt or damente como os predicados "bom" e "amarelo" se comportam
know is not whether to do so and so but that so-and-so is um relativamente ao outro. 18
the right, better, or only the best thing to do. And this is Para os predicados axiológicos, ele desenvolve a doutrina das
something that can be true or false. I can believe that it propriedades não-naturais, que, analogamente à percepção das
ought to be done or is the best thing to do, but I cannot be- propriedades das coisas, podem ser apreendidas numa intuição
lieve a decision any more than I can believe a command or
ideal ou derivadas de objetos ideais. 19 Por essa via, Moore quer
a question. Coming to the decision to do so-and-so is the
mostrar como a verdade de proposições de conteúdo normativo e
best or the right thing to do. Moral pronouncemehts may
que são intuitivamente evidentes pode ser comprovada pelo menos
entail answers to the question 'What shall Ido?', they do
indiretamente. Só que esse gênero de análise é colocado numa
not give such answers."
pista errada pela transformação de proposições deônticas típicas
("Na discussão moral sobre o que fazer, aquilo sobre o em proposições predicativas.
que estamos de acordo ou discutimos, aquilo que presu- Expressões como 'bom' ou 'correto' deveriam ser comparadas
mimos, descobrimos ou provamos, duvidamos ou sabemos com predicados de ordem superior, como 'verdadeiro', e não com
não é se vamosfazer isso ou aquilo, mas que isso ou aquilo predicados de propriedade como 'amarelo' ou 'branco'. A proposi-
seja a coisa correta a fazer, ou a melhor, ou a única. E isso ção:
é algo que pode ser verdadeiro ou falso. Posso crer que (l) Nas circunstâncias dadas, devemos mentir pode ser, é ver-
deve ser feito ou é a melhor coisa a fazer, mas não posso dade, corretamente transformada em:
crer uma decisão, assim como tampouco posso crer uma (1 ') Nas circunstâncias dadas, é correto mentir (é bom no sen-
ordem ou uma pergunta. Chegar à decisão de que fazer tido moral).
isso ou aquilo é a melhor coisa ou a coisa certa a fazer. Os
Mas aqui a expressão predicativa "é correto" ou "é bom" tem
pronunciamentos morais podem acarretar respostas à ques-
tão: 'O que é que vou fazer?', mas não dão tais respos- um papel lógico diferente do papel da expressão "é amarelo" na
proposição:
tas.")

72 73
(2) Esta mesa é amarela. falsa de que é a validez veritativa das proposições descritivas e só
Tão pronto o predicado axiológico "bom" assume o sentido de ela que determina o sentido em que as proposições em geral podem
validez de "moralmente bom", reconhecemos a assimetria. Pois ser fundadamente aceitas.
apenas as seguintes proposições são comparáveis; Visto que a tentativa intuicionista de captar as verdades morais
(3) É correto (corretamente prescrito) que 'h', tinha que fracassar já pelo simples fato que as proposições norma-
(4) É verdade (é o caso) que 'p', nas quais 'h' e 'p' substituem tivas não podem ser verificadas ou falsificadas, isto é, não podem
(1) e (2). Essas formulações metalingüísticas expressam as preten- ser testadas pelas mesmas regras de jogo que as proposições des-
sões de validez implicitamente contidas em (1) e (2). Pode-se de- critivas, só restava, no quadro da pressuposição que mencionamos
preender da forma proposicional de (3) e (4) que a análise da atri- acima, a alternativa de recusar em bloco a possibilidade de tratar
buição ou da negação de predicados não é o caminho correto para as questões práticas em termos de verdade. Naturalmente, os sub-
explicar as pretensões de validez expressas com "é correto" e "é ietivistas não negam os fatos gramaticais que atestam que efetiva-
verdade''. Se quisermos comparar entre si pretensões de correção mente, no mundo da vida, não cessamos de discutir sobre questões
e pretensões de verdade, sem assimilar imediatamente uma a outra, práticas como se estas fossem decidíveis com base em boas ra-
será preciso aclarar como 'p' e 'h' podem ser fundamentados em zões. 21 Mas eles explicam essa confiança ingênua na possibilidade
cada caso - como é que podemos indicar boas razões pró e contra de fundamentar normas e mandamentos como uma ilusão suscitada
a validez de (1) e (2). pelas intuições morais da vida quotidiana. Por isso, os cépticos
Devemos mostrar em que consiste o caráter específico da justi- morais devem assumir uma tarefa muito mais pretensiosa em face
ficação de mandamentos. Toulmin percebeu isso muito bem: dos cognitivistas que, como Strawson, querem apenas explicitar o
saber intuitivo dos participantes imputáveis de interações; eles têm
"Rightness is not a property; and when I asked two que explicar contra-intuitivamente o que nossos juízos morais, con-
people which course of action was the right one I was not trariamente à sua pretensão de validez manifesta, realmente signi-
asking them about a property - what I wanted to know ficam e que_ funções os sentimentos correspondentes de fato preen-
was whether there was any reason for choosing one course chem.
of action rather than another (... ). All that two people need O modelo lingüístico para essa tentativa é fornecido pelos tipos
(and ali that they have) to contradict one another about in proposicionais aos quais manifestamente não vinculamos nenhuma
the case of ethical predicates are the reasons for doing this pretensão de validez discursivamente resgatável: proposições for-
rather than or the other. '.ai muladas na primeira pessoa, nas quais damos expressão a prefe-
rências subjetivas, desejos e aversões, ou imperativos, com os
("' A correção' não é uma propriedade; e, quando per- quais gostaríamos de levar uma outra pessoa a um determinado
guntei a duas pessoas, qual era a linha de ação correta, não comportamento. A abordagem emotivista ou a imperativista deve
estava fazendo uma pergunta sobre uma propriedade - o tornar plausível a suposição de que o significado obscuro das pro-
que eu queria saber era se havia uma razão qualquer para posições normativas pode-se reduzir em última análise ao signifi-
escolher uma linha de ação de preferência a outra (... ). cado de proposições vivenciais ou exortativas ou a uma combina-
Tudo o que precisam (e têm) duas pessoas para se contra- ção das duas. Nessa leitura, o componente normativo do signifi-
dizerem uma a outra no caso de predicados éticos são as cado de proposições deônticas exprime sob forma cifrada ou bem
razões para fazer isto de preferência a isso ou aquilo.") atitudes subjetivas ou bem tentativas de persuasão ou bem as duas
coisas.
Com igual clareza, Toulrnin viu também que a resposta subjeti-
vista ao fracasso do objetivismo ético de Moore e outros é apenas "'This is good' means roughly the sarne as 'I approve
o verso da mesma moeda. Ambos os lados partem da premissa of this; do as well', trying to capture by this equivalence

74 75
both the function of the moral judgement as expressive of golpe o mundo das intuições morais do quotidiano. Segundo essas
the speaker's attitude and the function of the moral judge- doutrinas, numa perspectiva científica só se pode falar empirica-
ment as designed to influence the hearer's altitudes. " 22 mente sobre a moral. Neste caso, assumimos uma atitude objeti-
('"Isto é bom' significa grosseiramente o mesmo que vante e restringimo-nos a descrever que funções preenchem as
'aprovo isso; faz o mesmo', tentando capturar com essa proposições e os sentimentos que, do ponto de vista interno dos
equivalência tanto a função do juízo moral enquanto este participantes, são qualificados como morais. Essas teorias não
exprime a atitude do falante quanto a função do juízo mo- querem e não podem concorrer com as éticas filosóficas; elas
ral enquanto destinado a influenciar as atitudes do ouvin- aplainam em todo o caso o caminho para as investigações empíri-
te.") cas, após ter ficado aparentemente claro que as questões práticas
não são passíveis de verdade e que as investigações éticas no sen-
A abordagem prescriptivista, desenvolvida por R. M. Hare em tido de uma teoria normativa são desprovidas de objeto.
· •The Language of Morais' ,2 3 , amplia a abordagem imperativista na Todavia, justamente essa asserção meta-ética não é tão incon-
medida em que os enunciados deônticos são analisados segundo o troversa como pressupõem os cépticos. O ponto de vista não-cog-
24
modelo de uma conexão entre imperativos e valorações. O com- nitivista é sustentado sobretudo com dois argumentos: (a) com a
ponente central do significado consiste então no fato de que o fa- observação empírica de que, normalmente, a controvérsia em
lante, por meio de um enunciado normativo, recomenda ou pres- questões de princípio morais não pode ser dirimida, e (b) com o já
creve a um ouvinte uma determinada escolha entre alternativas de mencionado fracasso da tentativa de explicar a validez veritativa
ação. Mas, como essas recomendações ou prescrições _se b~seiam das proposições normativas, quer no sentido do intuicionismo,
em última análise em princípios que o falante adotou arb1tranamen- quer no sentido do direito natural clássico (um ponto que não pre-
te os enunciados de valor não constituem o modelo verdadeira- ciso abordar), quer no sentido de uma ética material dos valores
m~nte decisivo para a análise semântica das proposições deônticas. (Scheler, Hartmann). 26 A primeira objeção fica invalidada se for
O prescriptivismo de Hare redunda antes em um decisionismo éti- possível indicar um princípio que, em princípio, permita levar a um
co; a base para a fundamentação de proposições de conteúdo nor- acordo em argumentações morais. A segunda objeção cai por terra
mativo é constituída por proposições intencionais, a saber, aquelas tão logo se abandona a premissa de que as proposições normativas,
proposições com as quais o falante exprime a escolh_a de princípi~s desde que se apresentem de todo com uma pretensão de validez, só
e, em última instância, a escolha de uma forma de vida. Esta, mais poderiam ser válidas ou não-válidas no sentido de uma verdade
25
uma vez, não é passível de justificação. proposicional.
Embora a teoria decisionista de Hare explique, melhor do que Na vida quotidiana, associamos aos enunciados normativos
as doutrinas emotivistas e as imperativistas em sentido estrito, o pretensões de validez que estamos prontos a defender contra a crí-
fato de que efetivamente discutimos sobre questões práticas com tica. Discutimos questões práticas do tipo: "O que devo/devemos
base em razões, todas essas abordagens meta-éticas levam à fazer?'', na pressuposição de que a resposta não possa ser qual-
mesma conclusão céptica. Elas explicam que o sentido de nosso quer uma; nós nos acreditamos capazes em princípio de distinguir
vocabulário moral consiste na verdade em dizer algo que encontra- as normas e mandamentos corretos dos falsos. Se, por outro lado,
ria sua forma lingüística mais adequada em proposições vivenc~ais, as proposições normativas não são passíveis de verdade em sentido
imperativas ou proposições intencionais. A nenhum desses tipos estrito, por conseguinte não no mesmo sentido em que os enuncia-
proposionais pode-se associar uma pretensão de ve_rdade o~ qual- dos descritivos podem ser verdadeiros ou falsos, temos que colocar
quer pretensão de validez destinada à argumentaçao. Por isso, a o problema de explicar o sentido de "verdade moral" ou - se esta
presunção de que haveria coisas como "verdades_ mo_r~s" exprim~ expressão já aponta na direção errada - o sentido de "correção
uma ilusão inspirada pelo modo de compreender m~u1t1vo do quoti: normativa", de tal modo que não caiamos na tentação de assimilar
diano. As abordagens não-cognitivistas desvalonzam de um so um dos tipos proposicionais ao outro. Temos que partir da suposi-
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ção mais fraca de uma pretensão de verdade analoga à verdade e bérn pudermos identificar urna pretensão de validez especial, asso-
retornar à versão do problema que Toulmin dera à questão funda- ciada a mandamentos e normas, e isso já no plano em que surgem
mental da ética filosófica: "What kind of argument, of reasoning is os primeiros dilemas morais: no horizonte do mundo da vida, no
it proper for us to accept in support of moral decisions?" ("Que qual Strawson também teve que procurar os fenômenos morais
espécie de argumento, de raciocínio convém aceitar para apoiar para mobilizar contra o céptico as evidências da linguagem quoti-
27
nossas decisões morais?" ). Toulmin não se atém mais à análise diana. Se não for verdade que já aqui, nos contextos do agir comu-
semântica de expressões e frases, mas concentra-se na questão nicativo, logo antes de toda reflexão, surgem pretensões de vali-
quanto ao modo de fundamentação das proposições normativas, dade no plural, não deveremos esperar uma diferenciação entre
quanto àforma dos argumentos que aduzimos pró ou contra nor- verdade e correção normativa no plano da argumentação.
mas e mandamentos e quanto aos critérios das "boas razões" que Não quero repetir a análise do agir orientado para o entendi-
nos motivam, graças ao discernimento, a reconhecer certas exigên- mento mútuo que levei a cabo em outro lugar29 , mas gostaria de
cias como obrigações morais. Ele efetua a passagem para o plano lembrar uma idéia fundamental. Chamo comunicativas às intera-
da teoria da argumentação com a questão: "What kinds of thing ções nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para co-
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make a conclusion worthy of belief?" ("Que espécie de coisa dá ordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso
credibilidade a uma conclusão?"). medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de
validez. No caso de processos de entendimento mútuo lingüísticos,
II os atores erguem com seus atos de fala, ao se entenderem uns com
os outros sobre algo, pretensões de validez, mais precisamente,
As .considerações propedêuticas que fiz até aqui tiveram por pretensões de verdade, pretensões de correção e pretensões de
objetivo defender a abordagem cognitivista da ética contra as sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo objetivo (en-
manobras de evasão dos cépticos relativamente aos valores e, ao quanto totalidade dos estados de coisas existentes), a algo no
mesmo tempo, encaminhar uma resposta para a questão: em que mundo social comum (enquanto totalidade das relações interpesso-
sentido e de que maneira podem ser fundamentados os mandamen- ais legitimamente reguladas de um grupo social) ou a algo no
tos e normas morais. Na parte construtiva de minhas considera- mundo subjetivo próprio (enquanto totalidade das vivências a que
ções quero, primeiramente, lembrar o papel das pretensões deva- têm acesso privilegiado). Enquanto que no agir estratégico um atua
lidez normativas na prática quotidiana, a fim de explicar em que a sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma intera-
pretensão deontológica, associada a mandamentos e normas, se ção, no agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro
distingue da pretensão de validez assertórica e a fim de fundamen- para urna ação de adesão - e isso em virtude do efeito ilocucioná-
tar por que é recomendável abordar a teoria moral sob a forma de rio de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita.
uma investigação de argumentações morais (3). Em seguida, intro- Que um falante possa motivar racionalmente um ouvinte à acei-
duzirei o princípio da universalização (U) corno o princípio-ponte tação de semelhante oferta não se explica pela validade do que é
que torna possível o acordo em argumentações morais, aliás numa dito, mas, sim, pela garantia assumida pelo falante, tendo um
versão que exclui a a_plica_ção monológica desta regra de argumenta- efeito de coordenação, de que se esforçará, se necessário, para
ção (4). Finalmente, confrontando-me com considerações de Tu- resgatar a pretensão erguida.Sua garantia,o falante pode resgatá-la,
gendhat, quero mostrar que as fundamentações morais dependem no caso de pretensões de verdade e correção, discursivamente, isto
da efetiva realização de argumentações, não por razões pragmáti- é, aduzindo razões; no caso de pretensões de sinceridade, pela
cas relativas ao equihbrio de poder, mas, sim, por razões internas consistência de seu comportamento. (Que alguém pense sincera-
relativas à possibilitação de discernimentos morais (5). mente o que diz é algo a que só se pode dar credibilidade pela con-
(3) A tentativa de fundamentar a ética sob a forma de urna ló- · seqüência de suas ações, não pela indicação de razões.) Tão logo o
gica da argumentação moral só tem perspectiva de sucesso se tam- · ouvinte confie na garantia oferecida pelo falante, entram em vigor
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aquelas obrigações relevantes para a seqüência da interação que (1) Não se deve matar ninguém
estão contidas no significauo do que foi dito. Assim, por exemplo, ( 1') É um mandamento não matar ninguém
no caso de ordens e instruções, as obrigações de agir valem em Nós nos referimos de diferentes maneiras às normas de ação
primeira linha para o destinatário; no caso de promessas e declara- dessa espécie realizando atos de fala regulativos tais como: dar
ções, para o falante; no caso de acordos e contratos, simetrica- ordens, fechar contratos, abrir sessões, fazer advertências, permi-
mente para os dois lados; no caso de recomendações e advertên- tir exceções, dar conselhos, etc. Todavia, uma norma moral re-
cias com teor normativo, assimetricamente para os dois lados. clama sentido e validez também independentemente de ser ou não
Diferentemente do que acontece nesses atos de fala regulativos, proclamada e reivindicada. Uma norma pode ser formulada por
do significado de atos de fala constatativos resultam obrigações meio de uma proposição como (1), sem que essa formulação, (por
apenas na medida em que falante e ouvinte se põem de acordo para exemplo, o assentamento de uma frase) tenha que ser compreen-
apoiar seu agir em interpretações da situação que não contradigam dida como um ato de fala, isto é, como outra coisa senão uma ex-
os enunciados aceitos em cada caso como verdadeiros. Quanto ao pressão impessoal . para a norma ela própria. Proposições
significado dos atos de fala expressivos, deles seguem-se imedia- como (1) representam mandamentos aos quais podemos nos referir
tamente obrigações de agir na medida em que o falante especifica secundariamente, desta ou daquela maneira, por meio de atos de
aquilo com que seu comportamento não está ou não cairá em con- fala. Não há, do lado dos fatos, nenhum equivalente disso. Não
tradição. Graças à base de validez da comunicação voltada para o existem proposições assertóricas que, deixando de lado, por assim
entendimento mútuo, um falante pode, por conseguinte, ao assumir dizer, os atos de fala, possam, como as normas, adquirir autono-
a garantia de resgatar uma pretensão de validade criticável, mover mia. Se essas proposições devem ter de todo um sentido pragmáti-
um ouvinte à aceitação de sua oferta de ato de fala e assim alcançar co, elas têm que ser empregadas em um ato de fala. Não há a pos-
para o prosseguimento da interação um efeito de acoplagem asse- sibilidade de proferir ou empregar proposições descritivas tais co-
gurando a adesão. mo:
(2) O ferro é magnético
Todavia, a verdade proposicional e a correção normativa, logo (2 ') É verdade que o ferro é magnético
as duas pretensões de validade discursivamente resgatáveis que de tal modo que elas conservem sua força assertórica como (1) e
nos interessam, desempenham o papel da coordenação de ações de (1 '), logo independentemente do papel ilocucionário de uma classe·
maneira diferente. Que elas tenham sua "sede" em diferentes ele- determinada de atos· de fala.
mentos da prática comunicativa quotidiana é algo que se pode Essa assimetria explica-se pelo fato de que as pretensões de
comprovar por uma série de assimetrias. verdade residem apenas em atos de fala, enquanto que as preten-
À primeira vista, as proposições assertóricas empregadas em sões de validez normativas têm sua sede primeiro em normas
atos de fala constatativos parecem estar para os fatos numa rela- e só de maneira derivada em atos de fala. 30 Para
ção análoga à maneira pela qual as proposições normativas empre- empregar um modo de falar ontológico, podemos reduzir essa as-
gadas em atos de fala regulativos se relacionam a relações inter- simetria ao fato de que as ordenações da sociedade, diante das
pessoais legitimamente ordenadas. A verdade das proposições sig- quais podemos adotar um comportamento conforme ou desviante,
nifica a existência de estados de coisas assim como, analogamente, não são constituídas independentemente de toda validez, como as
a correção das ações significa o preenchimento de normas. À se- ordenações da-natureza, em face das quais só adotamos um atitude
gunda vista, no entanto, aparecem diferenças interessantes. Assim, objetivante. A realidade social, à qual nos referimos com atos de
os atos de fala se relacionam com as normas de maneira diferente fala regulativos, já está desde o início numa relação interna com
do que com os fatos. Consideremos o caso de normas morais que pretensões de validade normativas. Ao contrário, as pretensões de
se deixam formular sob a forma de proposições deônticas univer- verdade não são de modo algum inerentes às entidades elas pró-
sais e incondicionais: prias, mas apenas aos atos de fala com que nos referimos às enti-
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dades no discurso constatativo de fatos, a fim de representar esta- ell'pmca, ou seja, produzida pelas armas ou por bens materiais,
dos de coisas. numa crença na legitimidade cujos componentes não são simples
Por um lado, pois, o mundo das normas, graças às pretensões de se analisar. Esses amálgamas, porém, são interessantes na me-
de validez normativas nele insertas, tem, em face dos atos de fala dida em que constituem um indício de que não basta a entrada em
regulativos, uma espécie singular de objetividade, de que não des,- vigor positivista das normas para assegurar duradouramente sua
fruta o mundo dos fatos em face dos atos de fala constatativos. E validez social. A imposição duradoura de uma norma depende
verdade, porém, que aqui só se pode falar de "objetividade" no também da possibilidade de mobilizar, num dado contexto da tra-
sentido da independência do "espírito objetivo". Pois, por outro dição, razões que sejam suficientes pelo menos para fazer parecer
lado, as entidades e fatos são independentes, num sentido inteira- legítima a pretensão de validez no círculo das pessoas a que se en-
mente distinto, de tudo aquilo que atribuímos ao mundo social na dereça. Aplicado às sociedades modernas, isso significa: sem legi-
atitu<le de conformidade às normas. Assim, por exemplo, as nor- timidade, não há lealdade das massas. 31
mas dependem de que as relações interpessoais ordenadas de ma- Mas, se a validez social de uma norma depende também, a
neira legítima não cess'em de ser reproduzidas. Elas adquiririam um longo prazo, de ser aceita como válida no círculo daqueles a que é
caráter "utópico" no mau sentido e perderiam mesmo o seu senti- endereçada; e se esse reconhecimento por sua vez se apóia na ex-
do, se a elas não acrescentássemos, ao menos em pensamento, ato- pectativa de que a correspondente pretensão de validez pode ser
res e ações capazes de seguir ou satisfazer as normas. Em contra- resgatada com razões; então, entre a "existência" de normas da
posição, estamos forçados conceptualmente a supor que os estad~s ação, por um lado, e a esperada possibilidade de fundamentação
de coisas também existam independentemente de serem ou nao das correspondentes proposições deônticas, por outro lado, sub-
constatados por meio de proposições verdadeiras. siste uma conexão para a qual não há nenhum paralelismo no lado
As pretensões de validez normativas mediatizam manifesta- ôntico. Certamente, há uma relação interna entre a existência de
mente, entre a linguagem e o mundo social, uma dependência recí- estados-de-coisas e a verdade das correspondentes proposições as-
proca que não existe para a relação da linguagem e do mundo obje- sertóricas, mas não entre a existência de estados de coisas e a ex-
tivo. É a esse entrelaçamento l.! pretensões de validez, que têm pectativa de um determinado círculo de pessoas de que essas pro-
sua sede em normas e pretensões de validez erguidas com atos de posições possam ser fundamentadas. Essa circunstância pode ex-
fala regulativos, que também se vincula o caráter ambíguo da vali- plicar por que a questão quanto às condições da validade dos juízos
dez deôntica. Ao passo que entre os estados de coisas existentes e morais sugere imediatamente a passagem para uma lógica dos Dis-
os enunciados verdadeiros existe uma relação unívoca, a "existên- cursos práticos, ao passo que a questão pelas condições de vali-
cia'' ou a validez social das normas não quer dizer nada ainda dade de juízos empíricos exige considerações gnoseológicas e epis-
acerca da questão se estas também são válidas. Temos que distin- temológicas que são num. primeiro momento independentes de uma
guir entre o fato social do reconhecimento intersubjetivo e o fato lógica dos Discursos teóricos.
de uma norma ser dig11a de reconhecimento. Pode haver boas ra- (4) Não posso abordar aqui as linhas básicas da teoria da argu-
zões para considerar como ilegítima a pretensão de validez de uma mentação que desenvolvi 32 a partir de Toulmin33 • Para o que se se-
norma vigente socialmente; e uma norma não precisa, pelo simples gue vou pressupor que a teoria da argumentação possa ser levada a
fato de que sua pretensão de validez poderia ser resgatada discur- cabo sob a forma de uma "lógica informal", porque um acordo so-
sivamente, encontrar também um reconhecimento factual. A impo- bre questões teóricas ou moral-práticas não pode ser imposto nem
sição de normas está duplamente codificada, porque os motivos dedutivamente nem por evidências empíricas. Na medida em que
para o reconhecimento de pretensões de validez normativas podem se impõem com base em relações de conseqüência lógicas, os ar-
remeter tanto a convicções quanto a sanções, ou a uma mescla gumentos não trazem à luz nada de substancialmente novo; e, na
complicada de discernimento e violência. Em regra geral, o assen- medida em que têm um conteúdo substancial, apóiam-se em expe-
timento motivado racionalmente associar-se-á a uma aceitação riências e necessidades que podem ser diversamente interpretadas
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çamento a determinados grupos e indivíduos não é, de modo al-
à luz de diferentes teorias com a ajuda de diferentes sistemas de gum, urna condição suficiente para mandamentos morais válidos, já
descrição e que, por isso, não oferecem nenhum fundamento últi- que, manifestamente, podemos conferir essa forma a mandamentos
mo. Ora, no discurso teórico, a ponte que serve para vencer a dis- imorais. De um outro ponto de vista, a exigência seria excessiva-
tância entre as observações singulares e as hipóteses universais é mente restritiva, já que pode ser sensato tornar até mesmo as nor-
lançada por diversos cânons da indução. No discurso prático, mas de ação não-morais, cujo domínio de validade é especificado
34
é preciso um princípio-ponte correspondente. Eis por que todas social e espacio-temporalmente, por objeto de um Discurso prático
as investigações a propósito da lógica da argumentação moral con- e submetê-las a um teste de universalização (relativamente ao cír-
duzem imediatamente à necessidade de introduzir um princípio culo dos concernidos).
moral que, enquanto regra de argumentação, desempenha um papel Outros autores não entendem de maneira tão formalista a exi-
equivalente ao do princípio da indução no Discurso da ciência em- gência de consistência exigida pelo princípio da universalização.
pírica. Eles gostariam de ver evitadas contradições tais como as que sur-
É interessante que autores de diversa proveniência filosófica gem quando casos iguais são tratados desigualmente e casos desi-
deparem sempre de novo, na tentativa de indicar semelhante prin- guais igualmente. R.M. Hare dá a essa exigência a forma de um
cípio moral, com princípios que têm por base a mesma idéia. Pois postulado semântico. Corno no caso da atribuição de ~re~i~ados
todas as éticas cognitivistas retornam a intuição que Kant exprimiu descritivos ('- é vermelho'), também no caso da atnbmçao de
no imperativo categórico. A mim interessam aqui, não as diferen- predicados de conteúdo normativo ('- é de grande valor', _'- é
tes formulações kantianas, mas a idéia subjacente que deve dar bom', ' - é correto' etc) é preciso comportar-se em conformidade
conta do caráter impessoal ou universal dos mandamentos morais com a regra e empregar a mesma expressão em todos os casos que
válidos. 35 O princípio moral é compreendido de tal maneira que se assemelham nos aspectos relevant~s em cada situação. No que
exclui corno inválidas as normas que não possam encontrar o as- concerne aos juízos morais, essa exigência de consistência significa
sentimento qualificado de todos os concernidos possíveis. O prin- ao fim e ao cabo que cada um, antes de basear seu juízo numa de-
cípio-ponte possibilitador do consenso deve, portanto, assegurar terminada norma, deve examinar se ele pode querer que qualquer
que somente sejam aceitas corno válidas as normas que exprimem outro, que se encontre numa situação comparável, reclame a
urna vontade universal; é preciso que elas se prestem, para usar a mesma norma para o seu juízo. Isso posto, contudo, estes ou seme-
fórmula que Kant repete sempre, a urna "lei universal". O Impera- lhantes postulados só se prestariam corno princípio moral, ~e ~u-
tivo Categórico pode ser entendido como um princípio que exige a dessem ser entendidos no sentido da garantia de urna forrnaçao im-
possibilidade de universalizar as maneiras de agir e as máximas ou parcial do juízo. Mas o significado da irnparciali~ade dificil~ente
antes, os interesses ·que elas levam em conta (e que, por conseguin- pode ser obtido a partir do conceito do uso consistente da lingua-
te, tomam corpo nas normas da ação). Kant quer eliminar como gem.
inválidas todas as normas que "contradizem" essa exigência. Ele K. Baier37 e B. Gert3 8 chegam mais perto desse sentido do
tem "em vista aquela contradição interna que aparece na máxima princípio da universalização quando exigem que as nor~as rnor~s
de um agente quando sua conduta só pode atingir seu objetivo na válidas possam ser ensinadas universalmente e defendidas pubh-
medida em que ela não é a conduta universal". 36 É verdade, po- carnente. Algo de semelhante vale tarnbern, para M . G . s·mger, 39
rém, que a exigência de consistência que se pode depreender des- quando este exige que sejam válidas apen~s as normas que ass~~u-
sas e semelhantes concepções do princípio-ponte, levou a mal-en- rern um tratamento igual. No entanto, assim corno o teste ernpmco
tendidos formalistas e leituras seletivas. da admissão de possibilidade de contradizer não assegura ainda
O princípio da universalização não se esgota absolutamente na urna formação imparcial do juízo, assim tampouco urna norma não
exigência de que as normas morais devem ter a forma de proposi- pode ainda ser tida corno expressão de um interesse cornu?1, a to-
ções deônticas universais e incondicionais. A forma gramatical das dos os possíveis concernidos quando ela aparece corno aceitavel a
proposições normativas que proíbe urna referência ou um endere-
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alguns deles sob a condição de uma aplicação não-discriminante. A como uma regra de argumentação que possibilita o acordo em D~s-
intuição que ·se exprime na idéia da possibilidade de universaliza- cursos práticos sempre que as matérias possam ser regradas no 1~-
ção das máximas quer dizer mais do que isso: as normas válidas teresse igual de todos os concernidos. E só com a fundamentaçao
têm que merecer o reconhecimento por parte de todos os concerni- desse princípio-ponte que poderemos dar o passo para a ética do
dos. Mas, então, não basta que alguns indivíduos examinem: Discurso. Todavia, dei a (U) uma versão que exclui uma aplicação
- se podem querer a entrada em vigor de uma norma contro- monológica desse princípio; ele só regra as argumentações entre
versa relativamente às conseqüências e efeitos colaterais que te- diversos participantes e contém até mesmo a perspectiva para ar-
riam lugar se todos a seguissem; ou gumentações a serem realmente levadas a cabo, às quais estão ad-
- se todo aquele que se encontrasse em sua situação poderia mitidos como participantes todos os concernidos. Sob esse aspec-
querer a entrada em vigor de semelhante norma. to, nosso princípio de universalização distingue-se da conhecida
Em ambos os casos, a formação do juízo efetua-se relativa- proposta de John Rawls.
mente à posição e à perspectiva de alguns e não de todos os con- Este gostaria de ver assegurada a consideração imparcial de to-
cernidos. Só é imparcial o ponto de vista a partir do qual são passí- dos os interesses afetados pela iniciativa do sujeito; que julga mo-
veis de universalização exatamente aquelas normas que, por en- ralmente, de colocar-se num estado originário fictício excluindo os
carnarem manifestamente um interesse comum a todos os concer- ·diferenciais de poder, garantindo liberdades iguais para todos e
nidos, podem contar com o assentimento universal - e, nesta me- deixando cada um na ignorância das posições que ele próprio as-
dida, merecem reconhecimento intersubjetivo. A formação impar- sumiria numa ordenação social futura, não importa como organiza-
cial do juízo exprime-se, por conseguinte, em um princípio que da. Como Kant, Rawls operacionaliza de tal maneira o ponto de
força cada um, no círculo dos concernidos, a adotár, .quando da vista da imparcialidade que cada indivíduo possa empreender por si
ponderação dos interesses, a perspectiva de todos os outros. O só a tentativa de justificar normas básicas. Isso vale também para
princípio da universalização deve forçar aquela troca de papéis os filósofos morais eles próprios. Conseqüentemente, Rawls en-
universal que G. H. Mead descreve como "ideal role-taking" tende a parte material de sua própria investigação, por exemplo o
("adoção ideal de papéis") ou "universal discourse ".40 Assim, desenvolvimento do princípio do benefício médio, não como uma
a
toda norma válida deve satisfazer condição: contribuição de um participante da argumentação para a formação
- que as conseqüências e efeitos colaterais, que (pre- discursiva da vontade acerca das instituições básicas de uma so-
visivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses ciedade capitalista avançada, mas justamente como resultado de
de cada um dos indivíduos do fato de ser ela 'universal- uma "teoria da justiça" para a qual ele tem uma competência a tí-
mente seguida, possam ser aceitos por todos os concerni- tulo de especialista. _
dos (e preferidos a todas as conseqüências das possibilida- Mas, quando se tem presente a função coordenadora das açoes
des alternativas e conhecidas de regragem). 4 1 que as pretensões de validez normativas desempenham na prática
Não devemos, contudo, confundir esse princípio de universali- comunicativa quotidiana, percebe-se por que os problemas que de-
zação com um princípio no qual já se exprima a idéia fundamental vem ser resolvidos em argumentações morais não podem ser supe-
de uma ética do Discurso. De acordo com a ética do Discurso, rados monologicamente, mas exigem um esforço de cooperação.
uma norma só deve pretender validez quando todos os que possam Ao entrarem numa argumentação moral, os participantes prosse-
ser concernidos por ela cheguem (ou possam chegar), enquanto guem seu agir comunicativo numa atitude reflexiva com o objetivo
participantes de um Discurso prático, a um acordo quanto à vali- de restaurar um consenso perturbado. As argumentações morais
dez dessa norma. Esse princípio ético-discursivo (D), ao qual vol- servem, pois, para dirimir consensualmente os conflitos da ação.
tarei a propósito da fundamentação do princípio da universalização Os conflitos no domínio das interações governadas por normas re-
(U), já pressupõe que a escolha de normas pode ser fundamentada. montam imediatamente a um acordo normativo perturbado. Are-
No momento, é desta pressuposição que se trata. Introduzi (U) paração só pode consistir, conseqüentemente, em assegurar o re-

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conhecimento intersubjetivo para uma pretensão de validez ini- real e não seja possível monologicamente, sob a forma de uma ar-
cialmente controversa e em seguida <iesproblematizada ou, então, gumentação hipotética desenvolvida em pensamento. Antes de
para uma outra pretensão de validez que veio substituir a primeira. prosseguir o exame da controvérsia entre os cépticos e os cogniti-
Essa espécie de acordo dá expressão a uma vontade comum. Mas, vistas éticos, gostaria de abordar uma concepção desenvolvida re-
se as argumentações morais devem produzir um acordo desse gê- centemente pc•=- Ernst Tugendhat, que se opõe frontalmente a esta.
nero, não basta que um indivíduo reflita se poderia dar seu assen- Tugendhat atém-se, por um lado, à intuição que enunciamos sob a
timento a uma norma. Não basta nem mesmo que todos os indiví- forma do princípio da universalização: uma norma só vale como
duos, cada um por si, levem a cabo essa reflexão, para então regis- justificada quando é "igualmente boa" para cada um dos concerni-
trar os seus votos. O que é preciso é, antes, uma argumentação dos. E se isto é ou não o caso é algo que os próprios concernidos
"real", da qual participem cooperativamente os concernidos. Só devem constatar num Discurso real. Por outro lado, Tugendhat re-
um processo de entendimento mútuo intersubjetivo pode levar a chaça a hipótese (a) e recusa para a hipótese (b) uma interpretação
um acordo que é de natureza reflexiva; só então os participantes ético-discursiva. Muito embora queira escapar às conclusões do
podem saber que eles chegaram a uma convicção comum. cepticismo axiológico, Tugendhat comparte a. hipótese céptica bá-
Nessa perspectiva, também o Imperativo Categórico precisa de sica de que a validez deôntica das normas não se deixa compreen-
reformulação no sentido proposto: "Ao invés de prescrever a to- der em analogia com a validez veritativa das proposições. Mas, se
dos os demais como válida uma máxima que eu quero que seja uma a validez deôntica das normas tem um sentido volitivo e não cogni-
lei universal, tenho que apresentar minha máxima a todos os de- tivo, o Discurso prático tem que servir também para outra coisa
mais para o exame discursivo de sua pretensão de universalidade. que não o aclaramento argumentativo de uma pretensão de validez
O peso desloca-se daquilo que cada (indivíduo) pode querer sem controversa. Tugendhat entende o Discurso como um dispositivo
contradição como lei universal para aquilo que todos querem de assegurando por meio de regras da comunicação que todos os con-
comum acordo reconhecer como norma universal. ,,4z De fàto, a cernidos disI!<)nham da mesma chance de participar da constituição
formulação indicada do princípio da universalização visa a realiza- de um compromisso equitativo (fair). A necessidade da argumenta-
ção cooperativa da argumentação de que se trata em cada caso. ção explica-se por razões que têm a ver com a possibilitação da
Por um lado, só uma efetiva participação de cada pessoa concer- participação e não do conhecimento. Inicialmente, quero esboçar a
nida pode prevenir a deformação de perspectiva na interpretação problemática a partir da qual Tugendhat desenvolve essa tese.44
dos respectivos interesses próprios pelos demais. Nesse sentido A problemática. - Tugendhat distingue regras semânticas que
pragmático, cada qual é ele próprio a instância última para a ava- estabelecem o significado de uma expressão lingüística, de regras
liação daquilo que é realmente de seu próprio interesse. Por outro pragmáticas que determinam a maneira pela qual falante e ouvinte
lado, porém, a descrição segundo a qual cada um percebe seus in- empregam comunicativamente tais expressões. As proposições
teresses deve também permanecer acessível à crítica pelos de- que, como os compon~ntes ilocucionários de nossa linguagem, só
mais. As necessidades são interpretadas à luz de valores culturais; podem ser empregadas' comunicativamente exigem uma análise
e como estes são sempre parte integrante de uma tradição parti- pragmática - quer surjam p.uma situação de fala actual ou apenas
lhada intersubjetivamente, a revisão dos valores que presidem à "em pensamento". Outras proposições podem ser despojadas,
interpretação das necessidades não pode de modo algum ser um aparentemente sem perda de significado, de suas pressuposições
assunto do qual os indivíduos disponham monologicamente.43 pragmáticas e empregadas monologicamente; elas servem prima-
(5) Excurso. - Uma ética do Discurso sustenta-se ou cai por riamente para o pensamento e não para a comunicação. A essa es-
terra, portanto, com as duas suposições seguintes: (a) que as pre- pécie pertencem as propo.;ições assertóricas e intencionais: seu
tensões de validez normativas tenham um sentido cognitivo e pos- significado pode ser explicitado exaustivamente com o auxílio de
sam ser tratadas como pretensões de verdade; (b) que a fundamen- uma análise semântica. Em consonância com uma tradição remon-
tação de normas e mandamentos exija a efetuação de um Discurso tando a Frege, Tugendhat parte da suposição de que a validez veri-

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tativa das proposições é um conceito semântico. De acordo com vista a dinâmica do aumento do saber e, sobretudo, o crescimento
essa concepção, a fundamentação dos enunciados também é um do saber teórico e se examinamos a maneira pela qual, por exem-
assunto monológico; assim, por exemplo, a questão se um predi- plo, as proposições existenciais gerais, proposições condicionais ir-
cado pode ser atribuído ou não a um objeto é uma questão que reais, proposições com índice temporal etc. são fundamentadas na
todo sujeito capaz de julgar pode decidir por si próprio com base comunidade de argumentação dos cientistas, as idéias sobre a veri-
em regras semânticas. O mesmo vale para a fundamentação de ficação derivadas de uma semântica da verdade perdem sua plausi-
proposições intencionais. Para isso não é preciso nenhuma ar- bilidade .46 São justamente as controvérsias substanciais que não se
gumentação organizada intersubjetivamente, mesmo que, de fato, deixam decidir com argumentos cogentes baseados na aplicação
devamos levar a cabo cooperativamente semelhantes argumenta- monológica de regras semânticas; foi, aliás, por causa disso que
ções, isto é, sob a forma de uma troca de argumentos entre vários Toulmin se viu levado à sua abordagem pragmática de uma teoria
participantes. Ao contrário, a justificação de normas (diferente- da argumentação informal.
mente da fundamentação de proposições) é uma questão não ape- O argumento. - Se partimos, agora, da referida pressuposição
nas contingentemente, mas essencialmente comunicativa. A ques- semanticista, coloca-se a questão: por que são de todo necessários
tão se uma norma controversa é igualmente boa para todo partici- os Discursos reais para a justificação de normas? O que é que que-
pante é uma questão que precisa ser decidida segundo regras remos dizer quando falamos em fundamentação de normas, se se
pragmáticas sob a forma de um Discurso real. Com a justificação proibem todas as analogias com a fundamentação de proposições?
das normas entra em jogo, por conseguinte, um conceito genuina- As razões - responde Tugendhat - que surgem no.s Discursos
mente pragmático. práticos são razões pró ou contra a intenção ou a decisão de aceitar
Para a continuação da análise de Tugendhat, importa sobretudo um determinado modo de agir. O modelo fornece a fundamentação
a suposição de que as questões da validez são questões exclusiva- para uma proposição intencional na primeira pessoa. Tenho boas
nente semânticas. Dada essa pressuposição, o sentido pragmático razões para agir de uma determinada maneira, quando é do meu in-
da justificação de normas não pode se referir a algo como a "vali- teresse ou quando é bom para mim realizar fins correspondentes.
dez" de normas, - em todo o caso, não quando essa expressão é Em primeiro lugar, pois, trata-se de questões do agir teleológico:
entendida em analogia com a verdade de proposições. Uma outra ·' O que quero fazer?" e "O que posso fazer?", não da questão
coisa tem que se ocultar por trás disso: a idéia de uma imparciali- moral: "O que devo fazer?". Tugendhat põe em jogo o ponto de
dade que se refere antes à formação da vontade do que à formação vista deontológico ao ampliar a fundamentação das intenções pró-
do juízo. prias de cada um de modo a abranger a fundamentação das inten-
O que é problemático nessa abordagem é a pressuposição se- ções coletivas de um grupo: "Com que modo de agir em comum
manticista, pressuposição essa que não posso discutir aqui em de- queremos nos comprometer?", ou: "A que modo de agir comum
talhe. O conceito semântico da verdade e, sobretudo, a tese de que queremos nos obrigar?". Com isso, entra em cena um elemento
a controvérsia em tomo da validade de proposições só pode ser pragmático. Pois, quando o modo de agir carente de fundamenta-
decidida foro interno segundo regras semânticas resultam de uma ção é de natureza coletiva, os membros do coletivo têm que chegar
.análise que se orienta pelas proposições predicativas de uma lin- a uma decisão comum. Eles têm que tentar convencer-se mutua-
guagem sobre coisas e acontecimentos. 45 Esse modelo é inade- mente de que- é d~ interesse de cada um que todos ajam assim. Em
quado porque proposições elementares como: "Esta bola é verme- semelhante processo, cada um indica ao outro as razões por que
lha'' representam componentes da comunicação quotidiana sobre ele pode querer que um modo de agir seja tomado socialmente
cuja verdade normalmente nenhuma controvérsia surge. Temos obrigatório. Cada pessoa concernida tem que poder convencer-se
que procurar exemplos analiticamente fecundos nos pontos onde de que a norma proposta é, nas circunstâncias dadas, "igualmente
surgem controvérsias substanciais e onde as pretensões de verdade boa" para todos. E é a semelhante processo que chamamos justa-
são sistematicamente colocadas em questão. Mas, se temos em mente de Discurso prático. Uma norma que passa a vigorar por

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essa via pode-se chamar ''justificada'', porque a decisão alcançada
argumentativamente indica que ela merece o predicado "igual- al factor. It is the morally obligatory respect for the au-
mente boa para cada um dos concernidos". tonomy of the will of everybody concemed that makes it
Se se entende a justificação das normas nesse sentido, também necess,ary to require an agreement" (MS, 10 s.).
ficará claro - é o que pensa Tugendhat - o significado dos Dis- ("E isso, pois, que me parece ser a razão por que as
cursos práticos. Eles não podem ter um sentido primariamente questões morais e, em particular, as questões de morali-
cognitiyo. Pois a questão a se resolver racionalmente, a saber, se dade política têm que ser justificadas num discurso entre as
um modo de agir é, em cada caso, do interesse próprio, esta ques- pessoas concernidas. A razão disso não é, como Habermas
tão, cada indivíduo tem que respondê-la, ao fim e ao cabo, por si pensa, que o processo da argumentação moral seja em si
só: as proposições intencionais, com efeito, devem poder ser ftm- mesmo essencialmente comunicativo, mas é o inverso:
damentadas monologicamente segundo regras semânticas. En- uma das regras que resultam da argumentação moral -
quanto empreendimento intersubjetivo, a argumentação só é ne- que, enquanto tal, pode ser levada a cabo no pensamento
cessária porque é preciso, para a fixação de uma linha de ação co- solitário - prescreve que só são moralmente justificadas
letiva, coordenar as intenções individuais e chegar. a uma decisão as normas legais às quais se chega num acordo de que par-
comum sobre essa linha de ação. Mas é só quando a decisão re- ticipem todos os concernidos. E podemos ver agora que o
sulta de argumentações, isto é, se ela se forma segundo as regras aspecto irredutivelmente comunicativo não é um fator cog-
pragmáticas de um Discurso, que a norma decidida pode valer nitivo mas volitivo. É o respeito moralmente obrigatório
como justificada. Pois é preciso garantir que toda pessoa concer- pela autonomia da vontade de todos os concernidos que
nida tenha a chance de dar espontaneamente seu assentimento. A toma necessária a exigência de um acordo.")
forma da argumentação deve evitar que alguns simplesmente sugi-
ram ou mesmo prescrevam aos outros o que é bom para eles. Ela Essa concepção moral ainda seria insatisfatória mesmo que
deve possibilitar, não a imparcialidade~ do juízo, mas a ininjluen- aceitássemos a pressuposição semanticista em que ela se apóia.
ciabilidade ou a autonomia da formação da vontade. Nesta medi- Pois ela não pode dar conta daquela intuição que é muito difícil de
da, as regras do Discurso têm elas próprias um conteúdo normati- negar: a idéia da imparcialidade, que as éticas cognitivistas desen-
vo; elas neutralizam o desequilíbrio de poder e cuidam da igual- volvem sob a forma de princípios de universalização, não se deixa
dade de chànces de impor 05 interesses próprios de cada um. reduzir à idéia de um equilíbrio de poder. O exame da questão: se é
A forma da argumentação resulta assim da necessidade da parti- lícito atribuir a uma norma o predicado destacado por Tugendhat
cipação e do equilíbrio de poder: de "igualmente boa para todos", exige a avaliação imparcial dos
interesses de todos os concernidos. Essa exigência não é satisfeita
"This then seems to me the reason why moral ques- pela simples distribuição igual das chances de impor os interesses
tions, and in particular questions of political morality, must próprios. A imparcialidade da formação do juízo não pode ser
be justified in a discourse among those concerned. The rea- substituída pela autonomia da formação da vontade. Tugendhat
son is not, as Habermas thinks, that the process of moral confunde as condições para o alcance discursivo de um acordo ra-
reasoning is in itself essentially communicative, but it is cionalmente motivado com as condições para a negociação de um
the other way around: one of the roles which result from compromisso equitativo (fair). Num caso presume-se que as pes-
moral reasoning, which as such may be carried through in soas concernidas discirnam o que é do interesse comum delas to-
solitary thinking, prescribes that only such legal norms are das; no outro caso, parte-se da suposição de que não está em jogo
morally justified that are arrived at in an agreement by eve- nenhum interesse universalizável. Num Discurso prático, os parti-
rybody concemed. And we can now see that the irreduci- cipantes tentam ter clareza sobre um interesse comum; ao negociar
bly communicative aspect is not a cognitive but a volition- um compromisso, eles tentam chegar a um equihbrio entre interes-
ses particulares e antagônicos. Também os compromissos estão
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submetidos a condições restritivas, porque é de se supor que um exprime, diversa do puro arbítrio daquele que se submete ou se
equilíbrio equitativo (fair) só pode ter lugar mediante a participação opõe a uma pretensão de poder imperativa. A assimilação das pre-
com iguais direitos de todos os concernidos. Mas semelhantes tensões de validez às pretensões de poder retira toda base ao em-
orincípios da formação de compromissos teriam que ser justifica- preendimento do próprio Tugendhat no sentido de distinguir as
dos, de sua parte, em Discursos práticos, de tal sorte que estas não normas justificadas das que não o são. Tugendhat quer reservar as
estejam de novo submetidas à mesma pretensão de equilíbrio entre condições da validade a uma análise semântica e separá-las das re-
interesses concorrentes. gras do Discurso a se analisarem pragmaticamente; mas, ao fazer
Tugendhat tem que pagar um preço pela assimilação das argu- isso, reduz o processo da justificação, organizado intersubjetiva-
mentações a processos de formação da vontade; ele não consegue mente, a um processo de comunicação contingente e desligado de
manter de pé a distinção entre a validade e a validez social das toda referência à validez.
normas: Quando se confunde a dimensão da validade das normas, sobre
as quais os proponentes e os oponentes podem disputar com base
"To be sure we want the agreement to be a rational em razões, com a validez social das normas que estão de fato em
vigor, a validez deôntica é privada de seu sentido autônomo. Durk-
agreement, an agreement based on arguments and if possi-
ble on moral arguments, and yet what is finally decisive is heim advertiu em suas impressionantes análises contra a falácia
thefactual agreement, and we have no right to disregard it genética que consiste em reduzir o caráter obrigatório das normas
by arguing that it was not rational... Here we do have an de ação à ~isposiçã? para a obediência em face de um poder de
act which is irreducibly pragmatic, and this precisely be- mando sanc10nado. E por isso que Durkheim se interessa pelo caso
cause it is not an act of reason, but an act of the will, an originário do sacrilégio e, de modo geral, por normas pré-estatais.
act of collective choice. The problem we are confronted A infração das normas é castigada porque estas reclamam validez
with is not a problem of justification but of the participa- em virtude de sua autoridade moral; mas não é porque estejam as-
tion in power, in power of who is to make the decisions sociadas a sanções forçando a conformidade que elas desfrutam de
about what is permitted and what not" (MS, 11). validez.
("Certamente, queremos que o acordo seja um acordo É aqui que lança raízes a reinterpretação empirista dos fenôme-
racional, um acordo baseado em argumentos e, se possí- nos morais: a validez normativa é erroneamente assimilada ao po-
vel, em argumentos morais, e, no entanto, o que é decisivo der imperativo. Essa estratégia conceptual continua a ser seguida
é o acordo factual e não temos o direito de desprezá-lo, por Tugendhat mesmo quando ele reduz a autoridade das normas
alegando que não era racional. .. Aqui, sim, temos um ato justificadas à universalização dos imperativos que os concernidos
que é irredutivelmente pragmático e isso, precisamente, endereçam a si próprios em cada caso, sob a forma de proposições
porque não é um ato de razão, mas um ato de vontade, um intencionais. Contudo, o que de fato se exprime na validez deôn-
ato de escolha coletiva. O problema com que nos defron- tica é a autoridade de uma vontade universal, partilhada por todos
tamos não é um problema de justificação, mas da partici- os concernidos, vontade esta que se despiu de toda qualidade im-
pação no poder, no poder de quem deve tomar as decisões perativa e assumiu uma qualidade moral porque apela a um inte-
sobre o que é e o que não é permitido.") (MS, 11). resse universal que se pode constatar discursivamente, e que, por
conseguinte, pode ser apreendido cognitivamente e discernido na
Essa conseqüência não pode ser harmonizada com a intenção perspectiva do participante.48
de defender o núcleo racional de um acordo moral produzido ar- Tugendhat priva a validez da norma de seu sentido cognitivo e
gumentativamente contra objeções cépticas. Ela é incompatível insiste, no entanto, na necessidade de justificar as normas. Essas
com a tentativa de dar conta da intuição segundo a qual, no "sim" intenções antagônicas explicam um interessante déficit de funda-
e no "não" dado a normas e mandamentos, é outra coisa que se mentação. Tugendhat parte da questão semântica de como com-

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preender o predicado "igualmente bom para todos"; por isso, pre- se à norma. A diferença é que, agora, temos dois níveis de
cisa fundamentar por que as normas que merecem justamente esse semelhantes crenças. Há um nível inferior de crenças
predicado podem ser aceitas como justificadas. Pois o termo ''jus- pré-morais que concernem à questão se o endosso de uma
tificado" não significa, inicialmente, outra coisa senão que os con- norma é do interesse de um indivíduo A e se é do interesse
cernidos têm boas razões para se decidirem por uma linha de ação do indivíduo B etc. Agora, são apenas essas crenças empí-
comum; qualquer imagem do mundo religioso ou metafísico s~rvirá ricas pré-morais que estão sendo pressupostas, ao passo
como um reservatório de "boas razões". Por que devenamos que a crença moral de que a norma está justificada se todos
chamar de "boas" apenas aquelas razões que podem ser subordi- podem concordar com ela não está pressuposta, mas, sim,
nadas ao predicado "igualmente bom para todos"? Do ponto d~ o resultado do proce~so comunicativo de justificar um para
vista da estratégia argumentativa, essa questão tem um valor posi- o outro uma linha de ação comum com base nessas crenças
cional semelhante ao do nosso problema, que deixamos proviso- pré-morais" (MS, 17).
riamente em suspenso e que se formulou na questão por que o É fácil entender que os participantes da argumentação com
princípio da universalização deveria ser aceito como regra de ar- orientações axiológicas concorrentes possam se pôr mais depressa
gumentação. de acordo quanto a linhas de ação comuns, se recorrerem a pontos
Tugendhat recorre, agora, à situação conhecida em que as ima- de vista mais abstratos e neutros relativamente a conteúdos con-
gens do mundo religiosas e metafísicas perderam sua fo;ça de con- troversos. Mas com esse argumento não se ganha muita coisa.
vicção e passaram a concorrer umas com as out!as a titulo de p~- Pois, em primeiro lugar, é possível que também haja outros pontos
tências subjetivadas da fé e, em todo o caso, de1xaran:1 de ~arantir de vista formais, que estejam no mesmo plano de abstração e pro-
dogmas de fé coletivamente obrigatórios. Nessa s1tuaça~,. um porcionem uma chance de acordo equivalente. Tugendhat teria que
ponto de vista neutro quanto ao conteúdo, como aquele ex~mdo fundamentar por que devemos privilegiar precisamente o predicado
que toda pessoa concernida tenha boas razões P3:1"ª a adoçao_ de por ele proposto. Em segundo lugar, a preferência por pontos de
uma linha de ação comum, é manifestamente supenor a detei:m!na- vista de nível superior, mais formais, fica plausível, num primeiro
dos pontos de vista conteudísticos, mas dependentes da trad1çao: momento, apenas para aquela situação inicial contingente na qual
"Where the moral conceptions relied on higher beliefs reconhecemos (não inteiramente por acaso) nm;sa situação con-
the~e higher beliefs also consisted in the belief that some- temporânea. Se nos colocamos numa outra situação na qual, diga-
thing being the case is a reason for wanting to submit to the mos, uma única religião teria encontrado uma difusão universal e
norm. What is different now is that we have two levels of digna de fé, vemos imediatamente que é preciso uma outra es-
such beliefs. There is a lower level of premoral beliefs pécie de argumentos para explicar por que as normas morais só
which concern the question whether the endorsement of a podem ser justificadas recorrendo a princípios e procedimentos
norm is in the interest of the individual A and whether it is universais e não a proposições credenciadas dogmaticamente. Para
in the interest of an individual B etc. lt is now only these fundamentar a superioridade de um modo de justificação reflexivo
premoral empirical beliefs that are being presupposed, and e das representações jurídicas e morais pós-tradicionais desenvol-
the moral belief that the norm is justified if everybody can vidas nesse nível, é preciso uma teoria normativa. Mas é exa-
agree to it is not presupposed but the result of the commu- tamente neste ponto que se interrompe a cadeia de argumentos de
nicative process of justifying to each other a common Tugendhat.
course of action on the basis of those premoral beliefs'' Esse déficit de fundamentação só pode ser compensado se, ao
(MS, 17). invés de começarmos semanticamente com a aplicação do signifi-
("Onde as concepções morais dependiam de crenças cado de um predicado, exprimirmos o que se quer dizer com o pre-
superiores, estas consistiam também na crença de que o dicado "igualmente bom para todos" por meio de uma regra de ar-
fato de algo ser o caso é uma razão para querer submeter- gumentação para Discursos práticos. Poderemos, então, fazer a

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tentativa de fundamentar essa regra da argumentação pela via de tra o formalismo ético que Hegel apresentara contra Kant. Nesse
uma investigação das pressuposições pragmáticas das argumenta- ponto, o cognitivista inteligente não hesitará em dar um passo em
ções em geral. Ficará claro, então, que a idéia da imparcialidade direção aos escrúpulos ponderados de seu oponente.
está arraigada nas estruturas da própria argumentação e não pre- Na forma exterior de minha exposição, não sigo exatamente a
cisa ser inserida nela como um conteúdo normativo adicional. marcha ideal das sete rodadas de discussão que acabei de esboçar.
Contra as arraigadas reduções empiristas do conceito de racionali-
III dade e contra as correspondentes reinterpretações das experiências
morais básicas, fiz valer fenomenologicamente (na 1.ª secção) a
Com a introdução do princípio da universalização, deu-se um rede de sentimentos e atitudes morais que se encontra tecida na
primeiro passo para a fundamentação de uma ética do Discurso. prática quotidiana. Em seguida (na 2.ª secção) abordei as tentativas
Podemos recapitular o conteúdo sistemático das considerações fei- de explicação meta-ética que contestam a suposição de que as
tas até agora sob a forma de um diálogo entre os advogados do questões práticas são passíveis de verdade. Esse escrúpulo reve-
cognitivismo e do cepticismo. Na primeira r~~dà, trato~-se de lou-se sem objeto, porque abandonamos a falsa identificação das
abrir os olhos do céptico inveterado para o domm10 dosfenomenos pretensões de validez normativas e assertóricas e mostramos (na
morais. Na segunda rodada, o tema em discussão foi a poss~bili- 3.ª secção) que a verdade proposicional e a correção normativa as-
dade de decidir as questões práticas em termos de verdade. Vimos sumem papéis pragmáticos diversos na comunicação quotidiana. O
que o céptico pôde mobilizar, no papel do subjetivista ético, boas céptico não se deixou impressionar com isso e renovou sua dúvida
razões contra o objetivista ético. Todavia, o cognitivista conseguiu afirmando que as pretensões de validez associadas a mandamentos
salvar sua posição, limitando-se a asserir para os enunciados nor- e normas não se deixam fundamentar. Essa objeção caduca se se
mativos uma pretensão de validez análoga à da verdade. A terceira admite o princípio da universalização (introduzido na 4. ª secção) e
rodada foi aberta com a observação realista do céptico de que, em se é possível comprovar (c;omo acontece na 5.ª secção) que, no
questões de princípio morais, freqüentemente deixa de ser possí- caso deste princípio moral, se trata de uma regra de argumentação
vel, mesmo com boa vontade, chegar a um consenso. Diante do comparável ao princípio da indução e não de um princípio da parti-
fato de um pluralismo das orientações axiológicas, fato esse que cipação dissimulado. Nesse estádio do diálogo, o céptico exigirá
predispõe a um estado de ânimo céptico, o cognitivista tem que se uma fundamentação para este princípio-ponte também. Contra a
esforçar por comprovar a existência de um princípio-ponte que objeção da falácia etnocêntrica, vou QlObilizar (na 6. ª secção a se-
possibilite o consenso. Feita a proposta de um princípio moral, a guir) a proposta feita por Apel de uma fundamentação transcen-
questão do relativismo cultural domina a próxima rodada da argu- dental-pragmática da ética. Modificarei o argumento de Apel (na
mentação. O céptico faz a objeção de que, no caso de 'U', se trata 7.ª secção) de tal modo que eu possa abandonar sem prejuízos a
de uma generalização precipitada de nossa própria cultura ociden- pretensão a uma "fundamentação última". Contra as objeções que
tal, enquanto que o cognitivista responderá a esse desafio com uma o céptico quiser apresentar de novo nesse sentido, será possível
fundamentação transcendental de seu princípio moral. Na quinta (na 8. ª secção) defender o princípio da ética do Discurso mos-
rodada, o céptico faz a sua jogada fazendo outros reparos contra trando como as argumentações morais estão inseridas nos contex-
uma estratégia de fundamentação transcendental-pragmática, que tos do agir comunicativo. Essa ligação interna entre a moral e a
o cognitivista enfrentará com uma versão mais cautelosa do argu- eticidade não limita a universalidade das ·pretensões de validez
mento de Apel. Na sexta rodada, o céptico pode sempre, diante morais; ela subordina, porém, os Discursos práticos a restrições,
dessa fundamentação auspiciosa de uma ética ~o Discurso, refu- às quais os Dircursos teóricos não estão submetidos da mesma
giar-se ainda na recusa do Discurso. Veremos, porém, como essa maneira.
manobra o deixa numa situação desesperadora. O tema da sétima e (6) A exigência de uma fundamentação do princípio moral não
última rodada da discussão é a renovação céptica das reservas con- parece descabida, se levamos em conta que, com o Imperativo Ca-

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tegórico, Kant (como os seus seguidores cognitivistas com suas va- No que concerne a Kant, este baseia a fundamentação do Im-
riações do princípio da universalização) dá expressão a uma intui- perativo Categórico, na medida em que não recorre simplesmente a
ção moral cujo alcance é questionável. Certamente, apenas as um "fato da razão", nos conceitos, dotados de conteúdo normati-
normas de ação que, em cada caso, encarnam interesses universa~ vo, da autonomia e da vontade livre; com isso, expõe-se à objeção
lizáveis correspondem às nossas idéias de justiça. Mas este ''moral de umapetitio principii. Em todo o caso, a fundamentação do Im-
point of view" ("ponto de vista moral") poderia exprimir as idéias perativo Categórico está tão entrelaçada com a arquitetônica do
morais particulares de nossa cultura ocidental. A objeção que Paul sistema kantiano que não seria fácil defendê-la a partir de outras
Taylor levantou contra a proposta de K. Baier pode ser estendida a premissas. Quanto aos teóricos contemporâneos da moral, estes
todas as formulações do princípio da universalização. Em face das não chegam a propor uma fundamentação para o princípio moral,
evidências antropológicas, temos que admitir que o código moral mas limitam-se, como se pode ver por exemplo na concepção rawl-
que as teorias morais kantianas interpretam é apenas um entre mui- siana de um equilíbrio reflexivo (reflective equilibrium),50 a uma
tos: reconstrução do saber pré-teórico. Isso vale também para a pro-
posta construtivista da edificação metódica de uma linguagem para
"However deeply our own conscience and moral out-
argumentações morais; pois a introdução, normalizadora da lingua-
look may have been shaped by it, we must recognize that
gem, de um princípio moral tira sua força de convicção exclusiva-
other societies in the history of the world have been able to
mente da explicação conceptual de intuições encontradas. 5 '
function on the basis of other codes ... To claim that a per-
Nesse estádio da argumentação, não chega a ser uma dramati-
son who is a member of those societies and who knows its
zação dizer que os cognitivistas se viram em dificuldades com a exi-
moral code, nevertheless does not have troe moral convic- 52
gência de uma fundamentação do princípio da universalização.
tions is, it seems to me, fundamentally correct. But such a
Assim, o céptico sente-se encorajado a radicalizar sua dúvida
claim cannot be justified on the ground of our concept of
the moral point of view for that is to assume that the moral quanto à possibilidade da fundamentação de uma moral universalis-
code of liberal westem society is the only genuine morali- ta, afirmando sua impossibilidade. Tal é sabidamente o papel que
ty. ,,49 H. Albert assumiu com "Tratado Sobre a Razão Crítica',5 3 ao
transpor para o domínio da filosofia prática o modelo epistemoló-
("Por mais r,rofundamente que nossa própria consciên- gico do exame crítico desenvolvido por Popper, para tomar o lugar
cia e perspectiva moral possam ter sido moldadas por ele, do pensamento tradicional da fundamentação e justificação. A ten-
temos que reconhecer que outras sociedades na história do tativa da fundamentação de princípios morais enreda o cognitivista,
mundo puderam funcionar com base em outros códigos ... tal é a tese, no "trilema de Münchhausen", que consiste em ter de
Pretender que uma pessoa que pertença a essas sociedades escolher entre três alternativas igualmente inaceitáveis, a saber, ou
e conheça seu código moral não tem, no entanto, verdadei- admitir um regresso infinito, ou romper arbitrariamente a cadeia da
ras convicções morais é, parece-me, fundamentalmente derivação ou, finalmente, proceder em círculos. Esse trilema, to-
correto. Mas essa pretensão não pode ser justificada com davia, tem um valor posicional problemático. Ele só aparece com a
base em nosso conceito dó ponto de vista moral, pois isso pressuposição de um conceito semântico de fundamentaçã~, que
é presumir que o código moral da sociedade liberal ociden- se orienta pela 'relação dedutiva entre proposições e que se apóia
tal é a única moralidade genuína.'') unicamente no conceito da inferência lógica. Essa concepção dedo-
Há, portanto, uma suspeita fundamentada de que a pretensão tivista da fundamentação é, manifestamente, seletiva demais para a
de universalidade que os cognitivistas éticos erguem para o princí- exposição das relações pragmáticas entre atos de fala argumentati-
pio moral por eles preferido em cada caso se deve a uma ''falácia vos: os princípios da indução e da universalização só são introdu-
etnocêntrica". Eles não podem, pois, furtar-se à exigência de fun- zidos como regras da argumentação para lançar uma ponte sobre o
damentação do céptico. hiato lógico nas relações não-dedutivas. Por isso, nã~ se deve es-

100 101
perar para esses princípios-ponte eles próprios uma fundamentação exame crítico e cujo conteúdo proposicional contradiz o princípio
dedutiva, que é a única admitida no trilema de Münchhausen. (f). Tal é efetivamente o caso, pois o oponente, ao apresentar sua
A partir desse ponto de vista, K. O. Apel submeteu o falibilismo objeção, pressupõe inevitavelmente a validade pelo menos daque-
a uma metacrítica convincente e invalidou a objeção do trilema de las regras lógicas que não podem ser substituídas, caso compre-
54
Münchhausen. Não preciso abordar detalhadamente esse ponto. enda o argumento apresentado como uma refutação. Mesmo o cri-
Pois, no contexto de nossa problemática, cabe sobretudo a K. O. ticista, ao participar de uma argumentação, já aceitou como válido
Apel o mérito de haver desobstruído a dimensão entrementes so- um acervo mínimo de regras irrecusáveis da crítica. E essa consta-
terrada da fundamentação não-dedutiva das normas éticas básicas. tação é incompatível com (f).
Apel renova o modo da fundamentação transcendental com os Esse debate sobre uma "lógica mínima",56 levado a cabo no in-
meios fornecidos pela pragmática lingüística. Ao fazer isso, utiliza terior do campo crítico-racionalista, interessa a Apel na medida em
o conceito da contradição performativa, que surge quando um ato que infirma a asserção de impossibilidade do céptico. Ele não libe-
de fala constatativo 'Cp' se baseia em pressuposições não-contin- ra, porém, os cognitivistas éticos do ônus da prova. Ora, essa con-
gentes cujo conteúdo proposicional contradiz o enunciado asserido trovérsia também chamou a atenção para o fato de que a regra da
'p'. Partindo de uma reflexão de Hintikka, Apel ilustra o signifi- contradição performativa a se evitar pode ser aplicada não somente
cado das contradições performativas para a compreensão de argu- a atos de fala e argumentos isolados, mas ao discurso argumenta-
mentos clássicos da filosofia da consciência com base no exemplo tivo como um todo. Com a "argumentação em geral", Apel conse-
do •Cogito ergo sum'. Se exprimirmos o juízo de um oponente sob gue um ponto de referênci/l que é tão fundamental para análise de
a forma do ato de fala: '• Duvido de que eu exista'', o argumento de regras não-rejeitáveis quanto o "eu penso" ou a "consciência em
Descartes poderá ser reconstruído com a ajuda de uma contradição geral" para a filosofia da reflexão. Assim como o interessado numa
performativa. Para o enunciado: teoria do conhecimento não pode retroceder aquém de seus pró-
(1) Eu não existo (aqui e agora) prios atos de conhecimento (e, de certa maneira, fica preso na au-
o falante ergue uma pretensão de verdade; ao mesmo tempo, ao to-referencialidade do sujeito cognoscente), assim tampouco aquele
proferi-la, ele faz uma inevitável pressuposição de existência cujo que desenvolve uma teoria da argumentação moral pode retroceder
conteúdo proposicional pode ser expresso pelo enunciado: da situação que é determinada por sua própria participação em ar-
(2) Eu existo (aqui e agora) gumentações (por exemplo, com o céptico, que segue como uma
(sendo que, em ambas as proposições, o pronome pessoal se refere sombra cada um de seus passos). Para ele, a situação da argumen-
à mesma pessoa). 55 tação é "irretrocedível" no mesmo sentido que o conhecer também
De maneira análoga, Apel descobre agora uma contradição per- é para o filósofo transcendental. O teórico da argumentação torna-
formativa na objeção do "falibilista conseqüente" que, no papel do se consciente da auto-referencialidade de sua argumentação da
céptico ético, contesta a possibilidade da fundamentação de princí- mesma maneira que o teórico do conhecimento se torna consciente
pios morais, apresentando o trilema mencionado acima. Apel ca- da auto-referencialidade de seu conhecimento. Essa conscientiza-
racteriza o estado da discussão por meio da tese do proponente, ção significa ao mesmo tempo abandonar o esforço inauspicioso de
que afirma a validade universal do princípio da universalização e uma fundamentação dedutiva de "últimos" princípios e voltar-se
pela objeção do oponente, que se apóia no trilema de Münchhau- para a explicação de pressuposições "incontornáveis", isto é, uni-
sen (t) e, de (t), infere que as tentativas de fundamentar a validade versais e necessárias. O teórico assumirá agora, a título de expe-
universal de princípios são desprovidas de sentido: tal seria o prin- riência, o papel do céptico, a fim de examinar se a rejeição de um
cípio do falibilismo (f). Mas o oponente comete uma contradição princípio moral proposto cai numa contradição performativa com
performativa no. caso em que o proponente pode comprovar-lhe pressuposições incontornáveis da argumentação moral em geral.
que, ao engajar-se nessa argumentação, ele faz certas pressuposi- Por essa via indireta, ele pode provar ao céptico que este, pela
ções inevitáveis em todo jogo da argumentação voltado para o simples razão de se engajar numa determinada argumentação com

102
o objetivo de refutar o cognitivismo ético, faz inevitavelmente any proof, being presuppositions of reasoning rather than
pressuposições argumentativas cujo conteúdo proposicional con- conclusions from it, but to go on to argue that commitment
tradiz sua objeção. Apel estiliza essa forma da refutação performa- to them is rationally inescapable, because they must, logi-
tiva do céptico num modo de fundamentação que descreve da se- cally, be assumed if one is to engage in a mode of thought
guinte maneira: essential to any rational human life. The claim is not ex-
actly that the principies are true, but that their adoption
'' Aquilo que não posso contestar sem cometer uma au- is not a result of mere social convention or free personal de-
to-contradição atual e, ao mesmo tempo, não posso fun- cision: that a mistake is involved in repudiating them while
damentar dedutivamente sem uma petitio principii lógico- continuing to use the form of thought and discourse in
formal pertence àquelas pressuposições pragmático- question.' .ss
transcendentais da argumentação, que é preciso ter reconhe- ('' A estratégia dessa forma de argumentação consiste
cido desde sempre, caso o jogo de linguagem da argumenta- em aceitar a conclusão céptica de que esses princípios não
ção deva conservar seu sentido. " 57 são passíveis de prova alguma, sendo pressupostos da ar-
gumentação antes que conclusões dela, para argumentar
A fundamentação exigida do princípio moral proposto poderia, em seguida que é inevitável comprometer-se com elas,
por conseguinte, assumir a forma de que toda argumentação, não porque elas têm que, logicamente, ser assumidas na me-
importa o contexto em que é levada a cabo, se baseia em pressu- dida em que é preciso engajar-se num modo de pensamento
posições pragmáticas, de cujo conteúdo proposicional pode-se de- essencial para qualquer vida humana racional. O que se
rivar o prfocípío de universalização 'U'. pretende não é exatamente que os princípios sejam verda-
(7) Depois de ter-me certificado da possibilidade de uma fim- deiros, mas que sua adoção não seja um resultado da mera
damentação pragmático-transcendental do princípio moral, gosta- convenção social ou da decisão pessoal livre: que é um
ria de apresentar o argumento ele próprio. Quero primeiro -indicar erro repudiá-las enquanto se continuar a usar a forma de
algumas condições às quais os argumentos pragmático-trans- pensamento e discurso em questão.''
cendentais devem satisfazer, a fim de, com base nesses crité-
rios, avaliar as duas propostas mais conhecidas, a saber, a de R. S. A influência de Collingwood mostra-se na aplicação da análise
Peters e a de K. O. Apel (a). Em seguida, gostaria de dar ao argu- pressuposicional à maneira de colocar e tratar determinadas ques-
mento pragmático-transcendental uma versão que resista às obje- tões:
ções conhecidas (b). Finalmente, quero mostrar que essa funda-
mentação da ética do Discurso não pode assumir o valor posicional '' A presuppositional justification should show, that one
de uma fundamentação última e também por que não é preciso re- was committed to certain principies by raising and conside-
clamar para ela esse status (c). ring a certain range of questions" (ibid. 41).
(a) Na Inglaterra, propagou-se a partir de Collingwood um tipo ("Uma justificação pressuposicional deveria mostrar
de análise que corresponde bastante bem ao procedimento que que estávamos comprometidos com certos princípios ao
Apel caracterizou como pragmático-transcendental. A. J. Watt de- levantarmos e considerarmos uma certa ordem de ques-
nomina-a "analysis of the presuppositions of a mode of discourse" tões.")
("análise das pressuposições de um modo de discurso") e descreve
sua estrutura da seguinte maneira: Semelhantes argumentos visam a comprovação da inevitabili-
dade das pressuposições de determinados Discursos; e deveria ser
"_The strategy of this form of argument is to accept the possí~el obter princípios morais a partir do conteúdo proposicional
sceptical conclusion that these principies are not open to de semelhantes pressuposições. O peso desses argumentos será

104 105
tanto maior quanto mais universal for a espécie de Discursos para muito maior importância são os argumentos indicando o
os quais se puder comprovar pressuposições de conteúdo normati- que qualquer indivíduo tem que pressupor, na medida em
vo. A rigor, os argumentos só devem se chamar "transcendentais" que utiliza uma forma pública de discurso, ao discutir se-
quando se dirigem a Discursos ou competências correspondentes riamente com os outros ou consigo próprio o que deve fa-
que sejam tão universais que não possam ser substituídos por equi- zer. De maneira semelhante, poder-se-ia investigar as
valentes funcionais: tais Discursos ou competências devem ser pressuposições da utilização do discurso científico. Esses
constituídos de tal sorte que só possam ser substituídos por outros argumentos tratariam, não de espreitar as idiossincrasias
do mesmo gênero. É importante, pois, especificar qual é exata- individuais, mas de esquadrinhar os pressupostos públi-
mente o domínio de objetos ao qual o procedimento da análise cos.")
pressuposicional deve ser aplicado.
Por outro lado, a delimitação do domínio de objetos não deve Só esses pressupostos públicos são comparáveis às condições
prejulgar o conteúdo normativo de suas pressuposições; de outro transcendentais, para as quais Kant direcionara sua análise; é só
modo cometer-se-á umapetitio principii evitável. R. S. Peters pre- para elas que vale a inevitabilidade dos pressupostos de Discursos
tende satisfazer a ambas as condições. Ele restringe-se aos Discur- não-substituíveis e, neste sentido, universais.60
sos práticos, ou seja, àqueles processos de entendimento mútuo Peters tenta derivar, então, dos pressupostos dos Discursos
que servem para responder questões práticas do tipo: "O que de- práticos determinadas normas básicas, primeiramente um princípio
vo/devemos fazer?''. Peters quer discriminar assim uma ordem au- de equidade (fairness) ("all people's claims should be equally con-
to-substitutiva de Discursos e, ao mesmo tempo, evitar decisões sidered" - "as pretensões de todas as pessoas deveriam ser
prévias de caráter normativo com a delimitação de Discursos prá- igualmente consideradas"), em seguida princípios mais concretos
ticos: como, por exemplo, o da liberdade de opinião. Todavia, Peters faz
apenas considerações ad hoc, ao invés de identificar um a um os
"It is always possible to produce ad hominem argu- pressupostos relevantes dos Discursos práticos e de submeter seu
ments pointing out what any individual must actually pre- conteúdo a uma análise sistemática. Não considero de modo algum
suppose in saying what he actually says. But these are as análises de Peters como destituídas de valor; mas, na forma em
bound to be very contingent, depending upon private idio- que ele as leva a cabo, elas se expõem a duas objeções.
syncrasies, and would obviously be of little use in develop- A primeira objeção é uma variante da censura de petitio princi-
ing a general ethical theory. Of far more importance are oii; ela redunda na afirmação de que Petérs só extrai dos pressu-
arguments pointing to what any individual must presup- postos do Discurso aqueles conteúdos normativos que introduzira
pose in so far as he uses a public form of discourse in se- anteriormente na definição implícita daquilo que gostaria que se en-
riously discussing with others or with himself what he tendesse por '' Discurso prático''. Essa objeção poderia ser levan-
ought to do. ln a similar way one might inquire into the tada, por exemplo, contra a derivação semântica do princípio do
presuppositions of using scientific discourse. These argu- tratamento igual. 61
ments would be concerned not with prying into individual Apel tenta enfrentar essa objeção alegando que não restringe a
9
idiosyncrasies but with probing public presuppositions. ,.s análise pressuposicional a argumentações morais, mas, sim, apli-
("É sempre possível apresentar argumentos ad homi- ca-se às condições da possibilidade do discurso argumentativo em
nem indicando o que qualquer indivíduo deve efetivamente geral. Ele quer mostrar que todo sujeito capaz de falar e agir, tão
pressupor ao dizer o que ele efetivamente diz. Mas estes logo entre numa argumentação qualquer a fim de examinar critica-
argumentos só podem ser muito contingentes, dependentes mente uma pretensão de validez hipotética, tem que aceitar pres-
de idiossincrasias privadas e, obviamente, seriam de pouca supostos de conteúdo normativo. Com essa estratégia argumenta-
utilidade no desenvolvimento de uma teoria ética geral. De tiva ele consegue atingir até mesmo o céptico que se obstina em

106 107
dar um tratamento meta-ético a questões da teoria moral e se re- quanto ator. Não é assim que se pode fundamentar a validez de
cusa de maneira conseqüente a deixar-se atrair para argumentações uma norma de ação, por exemplo de um direito fundamental, san-
morais. Apel gostaria de levar esse céptico a tomar consciência de cionado pelo Estado, de livre expressão do pensamento. Pois não é
que ele já se engajou, com sua primeira objeção e sua primeira de- de modo algum óbvio que as regras que são inevitáveis no interior
fesa, num jogo argumentativo e, assim, com pressuposições com as dos Discursos também possam reclamar validez para a regulação
quais se envolve em contradições performativas. Também Peters do agir fora das argumentações. Mesmo que os participantes da ar-
vale-se ocasionalmente dessa versão mais radical, por exemplo gumentação estivessem i:orçados a fazer pressuposições de con-
quando da fundamentação do princípio da liberdade de opinião: teúdo normativo ((por exemplo, a respeitarem-se mutuamente en-
quanto sujeitos imputáveis, tratarem-se mutuamente enquanto par-
"The argument need not be based simply on the mani- ceiros iguais em direito, atribuírem-se uns aos outros sinceridade e
fest interest of anyone who seriously asks the question: relacionarem-se cooperativamente uns com os outros63 ), eles pode-
'What ought I to do?". For the principie of liberty, at least riam, no entanto, se livrar dessa necessitação pragmático-
in the sphere of opinion, is also surely a (general presuppo- transcendental tão logo saíssem do círculo da argumentação. Essa
sition of this form of) discourse into which any rational necessitação não se transfere imediatamente do Discurso para o
being is initiated when he laboriously leams to reason. ln agir. De toda maneira, a força, reguladora da ação, do conteúdo
matters where reason is paramount it is argument rather normativo trazido à luz nos pressupostos pragmáticos da argumen-
than force or inner illumination that is decisive. The condi- tação precisaria de uma fundamentação particular.
tions of argument include letting any rational being contri-
bute to a public discussion. ',6 2 Não se pode comprovar semelhante transferência, como tentam
(" O argumento não precisa se basear simplesmente no fazê-lo Peters e Apel, extraindo normas fundamentais imediata-
interesse manifesto de qualquer um que ponha seriamente mente éticas das pressuposições da argumentação. As normas fun-
a questão: "O que devo fazer?". Pois o princípio da liber- damentais do direito e da moral não são absolutamente da compe-
dade, pelo menos na esfera da opinião, é seguramente tência da teoria moral; elas devem ser consideradas como conteú-
também um (pressuposto geral dessa forma de) discurso no dos que precisam ser fundamentados em Discursos práticos. Como
qual qualquer ser racional se vê iniciado quando aprende as circunstâncias históricas mudam, cada época lança sua própria
labonosamente a raciocinar. Nos assuntos em que a razão luz sobre as representações básicas de natureza moral-prática.
é soberana, é a argumentação, mais do que a força ou a Mas, certamente, em semelhantes Discursos, já recorremos sem-
iluminação interna, que é decisiva. As condições da argu- pre a regras argumentativas de conteúdo normativo; e são estas
mentação incluem a hberdade para qualquer ser racional de que podem ser derivadas de um modo pragmático-transcendental.
contribuir para uma discussão pública.") (b) Por isso, precisamos retomar ao problema da fundamenta-
ção. do princípio da universalização. O papel que o argumento
Todavia, apesar desses argumentos, surge uma segunda obje- pragmático-transcendental pode assumir aí pode ser descrito, ago-
ção, que não é tão fácil de infirmar. É claro que a liberdade de opi- ra, como um argumento a que se pode recorrer para comprovar
nião, no sentido de uma repulsa de intervenções externas no pro- como o princípio da universalização, que funciona como regra da
cesso da formação da opinião, pertence aos pressupostos pragmá- argumentação, é implicado por pressuposições da argumentação
ticos inevitáveis em toda argumentação; mas, com esse argumen- em geral. Essa exigência está satisfeita, se se puder mostrar que:
to, pode-se quando muito trazer o céptico ao discernimento de que
já deve ter reconhecido, enquanto participante da argumentação, - todo aquele que aceita as pressuposições comunicacionais uni-
um correspondente "princípio da liberdade de opinião". Esse ar- versais e necessárias do discurso argumentativo e que sabe o
gumento não tem alcance suficiente para convencê-lo também en- que quer dizer justificar uma norma de ação tem que presumir

108 109
implicitamente a validade do princípio da universalização (seja e contribuições etc.68 Do catálogo de regras organizado por Alexy,
na versão indicada acima, seja numa versão equivalente). tomo os seguintes exemplos:

Convém distinguir (do ponto de visV>. do cânon aristotélico) três (2.1) A todo falante só é lícito afirmar aquilo em que ele próprio
planos de pressupostos argumentativos: pressupostos no plano ló- acredita.
gico dos produtos; no plano dialético dos procedimentos e no plano (2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que não for objeto da
65
retórico dos processos. As argumentações são destinadas antes discussão tem que indicar uma razão para isso.
de mais nada a produzir argumentos concludentes, capazes de con- Algumas dessas regras têm manifestamente um conteúdo ético.
vencer com base em propriedades intrínsecas e com os quais se po- Neste plano, fazem-se valer pressuposições que o Discurso com-
dem resgatar ou rejeitar pretensões de validez. Neste plano estão,. parte com o agir orientado para o entendimento mútuo em geral,
por exemplo, as regras de uma lógica mínima, que foram discutidas por exemplo, relações de reconhecimento recíproco.
na escola de Popper, ou aquelas exigências de consistência para as Mas seria dar o segundo passo antes do primeiro se recorrês-
quais Hare, entre outros, chamou atenção. Atenho-me, por simpli- semos imediatamente aos fundamentos da argumentação que são
cidade, ao catálogo dos pressupostos argumentativos levantado por da alçada da teoria da ação. É verdade que os pressupostos para
R. Alexy. 66 No plano lógico-semântico, as seguintes regras67 po- uma competição sem restrições em busca de melhores argumentos
dem ser tomadas como exemplos: são relevantes para os nossos fins, na medida em que são incompa-
tíveis com as éticas tradicionais, as quais têm que subtrair a toda
(1.1) A nenhum falante é lícito contradizer-se. crítica um núcleo dogmatizado de convicções fundamentais.
(1.2) Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto a tem Considerado a partir de aspectos processuais, o discurso argu-
que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se mentativo apresenta-se, finalmente, como um processo comunica-
assemelhe a a sob todos os aspectos relevantes. cional que, em relação com o objetivo de um acordo racionalmente
(1.3) Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão motivado, tem que satisfazer a condições inverossímeis. No dis-
em sentidos diferentes. curso argumentativo, mostram-se estruturas de uma situação de
fala que está particularmente imunizada contra a repressão e a de-
Neste plano, pressupõem-se regras lógicas e semânticas que sigualdade: ela apresenta-se como uma forma de comunicação sufi-
não têm conteúdo ético algum. Elas não oferecem para o argu- cientemente aproximada de condições ideais. Eis por que tentei, há
mento pragmático-transcendental nenhum ponto de partida apro- tempos, descrever os pressupostos da argumentação como deter-
priado. minações de uma situação de fala ideal;69 e a razão por que o pre-
A partir de pontos de vista procedurais, as argumentações apa- sente ensaio merece a caracterização de um "esboço" prende-se,
recem, em seguida, como processos de entendimento mútuo que sobretudo, ao fato de que não posso, neste ponto, proceder ao ne-
são regulados de tal maneira que proponentes e oponentes possam, cessário trabalho de precisão, elaboração e revisão de minha antiga
numa atitude hipotética e liberados da pressão da ação e da expe- análise. Mas, hoje ainda, parece-me acertada a intenção de recons-
riência, examinar as pretensões de validez que se tornaram pro- truir aquelas condições universais de simetria que todo falante
blemáticas. Neste plano estão pressupostos pragmáticos de uma competente, na medida em que pensa entrar de todo numa argu-
forma especial da interação, a saber, tudo o que é necessário para mentação, tem que pressupor como suficientemente preenchidas.
uma busca cooperativa da verdade, organizada como uma compe- Mediante uma investigação sistemática das contradições performa-
tição, assim como, por exemplo, o reconhecimento da imputabili- tivas, é possível comprovar a pressuposição de algo como uma
dade e da sinceridade de todos os participantes. A elas pertencem "comunidade ilimitada da comunicação" - idéia que Apel desen-
também as regras gerais de competência e relevância para a distri- volve a partir de Peirce e Mead. Os participantes de uma argumen-
buição dos encargos de argumentação, para a ordenação dos temas tação não podem se esquivar à pressuposição de que a estrutura de

110 111
sua comunicação, em razão de caracteristicas a se descreverem em contradições performativas. Ao fazer isso, temos que apelar à
formalmente, exclui toda coerção atuando do exterior sobre o pro- pré-compreensão intuitiva com a qual todo sujeito capaz de falar e
cesso de entendimento mútuo ou procedendo dele próprio, com agir entra em argumentações. Neste ponto, só posso mostrar com
exceção da coerção do argumento melhor, e que ela assim neutra- base em exemplos como se poderia levar a cabo semelhante análi-
liza todos os motivos, com exceção do motivo da busca coopera- se.
tiva da verdade. Para este plano, Alexy propôs, partindo de minha A seguinte frase:
análise; as seguintes regras do Discurso: 70 (1) Com boas razões acabei convencendo H de que p.
(3.1) E lícito a todo sujeito capaz de falar e agir participar de Dis- pode ser compreendida como um relato sobre a conclusão de um
cursos. Discurso no qual o falante levou um ouvinte, por meio de razões, a
(3.2) a. É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção. aceitar a pretensão de verdade associada com a asserção 'p', isto é,
b. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no a aceitar 'p' como verdadeiro. Ao significado da expressão 'con-
Discurso. vencer' pertence, em geral, a idéia de que um sujeito forma sua
c. É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes desejos e opinião com base em boas razões. Por isso, a proposição:
necessidades. 71 '
(1)* Por meio de uma mentira acabei por convencer H de que p
(3.3) Não é lícito impedir falante algum, por uma coerção exercida é paradoxal; ela pode ser corrigida no sentido de:
dentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitos esta-
belecidos em (3.1) e (3.2). (2) Por meio de uma mentira acabei persuadindo H a acreditar (fiz
com que acreditasse) que p.
A propósito disso, darei agora algumas explicações. A regra
(3.1) determina o círculo dos participantes potenciais no sentido de Se não nos contentamos com a indicação lexical do significado
uma inclusão de todos os sujeitos, sem exceção, que disponham da de 'convencer', mas queremos explicar por que (l)* é um paradoxo
capacidade de participar em argumentações. A regra (3.2) assegura semântico que se pode resolver por meio de (2), podemos partir da
a todos os participantes chances iguais de contribuir para a argu- relação interna que subsiste entre as duas expressões: "convencer
mentação e de fazer valer seus próprios argumentos. A regra (3.3) alguém de algo" e "alcançar um acordo fundamentado sobre al-
exige condições de comunicação que tomem possível o prevaleci- go". As convicções assentam-se em última instância num con-
mento tanto do direito a um acesso universal ao Discurso, quanto senso ensejado discursivamente. Mas, erttão, (1)* significa que H
do direito a chances iguais de participar dele, sem qualquer repres- deve ter formado sua convicção sob condições em que não é possí-
são, por sutil e dissimulada que seja (e, por isso, de maneira iguali- vel formar convicções. Pois estas contradizem as pressuposições
tária). pragmáticas da argumentação em geral, neste caso a regra (2.1).
Que esta pressuposição seja o caso não apenas ocasional, mas ine-
Se o objetivo, agora, não deve ser privilegiar definitcriamente vitavelmente em toda argumentação é o que se pode mostrar ainda
uma forma ideal da comunicação (o que, de fato, prejulgaria todo o tomando claro, para um proponente que se empenha em defender a
resto), é preciso mostrar que, no caso das regras do Discurso, não verdade de (1)*, como ele se enreda, ao fazer isso, numa contradi-
se trata simplesmente de convenções, mas de pressuposições inevi- ção performativa. Ao apresentar uma razão qualquer para a ver-
táveis. dade de (1)* e ao entrar assim numa argumentação, o prn.ponente já
Ora, as pressuposições elas próprias podem ser identificadas aceitou a pressuposição de que jamais pode convencer um opo-
tomando claro, para quem conteste as reconstruções que foram nente com auxílio de uma mentira e de que poderia, quando muito,
propostas inicialmente de maneira hipotética, como ele se envolve persuadi-lo a aceitar algo como verdadeiro. Mas, então, o con-
teúdo da asserção a ser fundamentada contradiz uma das pressupo-

112 113
s1çoes sem as quais o proferimento do proponente não pode ser em que medida essa presunção tem ou não, no caso dado, um cará-
considerado como uma fundamentação. ter contrafactual.
Analogamente, deveria ser possível comprovar contradições Ora, visto que os Discursos estão submetidos às limitações do
performativas para os proferimentos de um proponente que qui- espaço e do tempo e têm lugar em contextos sociais ; visto que os
sesse fundamentar a seguinte proposição: participantes de argumentações não são caracteres inteligíveis e
também são movidos por outros motivos além do único aceitável,
(3)* Depois de excluir A, B, C ... da discussão (ou, conforme oca- que é o da busca cooperativa da verdade; visto que os temas e as
so, depois de tê-los reduzido ao silêncio ou de ter-lhes im- contribuições têm que ser ordenados, as relevâncias asseguradas,
posto nossa interpretação), podemos finalmente nos conven- as competências avaliadas; é preciso dispositivos institucionais
cer de que N é legítima, a fim de neutralizar as limitações empíricas inevitáveis e as in-
fluências externas e internas evitáveis, de tal sorte que as condi-
sendo que, no que toca a A, B, C ... , devemos aceitar que eles (a) ções idealizadas, já sempre pressupostas pelos participantes da ar-
pertencem ao círculo daqueles que seriam concernidos pela entrada gumentação possam ser preenchidas pelo menos numa aproxima-
em vigor da norma N e (b) não se distinguiriam em nenhum as- ção suficiente. Essas necessidades triviais da institucionalização de
pecto relevante dos demais participantes. Em toda tentativa de Discursos não contradizem de modo algum o conteúdo parcial-
fundamentar (3)*, o proponente teria que se colocar em contradi- mente contrafactual das pressuposições do Discurso. As tentativas
ção com os pressupostos argumentativos mencionados em (3.1) a de institucionalização obedecem antes, por sua parte, a representa-
(3.3). ções normativas do objetivo visado que tiramosinvoluntariamente
É verdade, porém, que, ao apresentar essas pressuposições sob da pré-compreensão intuitiva da argumentação em geral. Essa as-
a forma de regra, Alexy enseja o equívoco de que todos os Discur- serção pode ser verificada empiricamente com base naquelas habi-
sos realmente efetuados teriam que satisfazer a essas regras. Mani- litações, imunizações, regulamentos etc. por meio dos quais os
festamente, tal não é o caso em muitos casos - e, em todos os ca- Discursos teóricos foram institucionalizados na atividade científica
sos, é com aproximações que temos que nos contentar. O equívoco e os Discursos práticos, por exemplo, na atividade parlamentar.72
pode se prender inicialmente à ambigüidade da palavra "regra". Se se quiser evitar uma "fallacy of misplaced concreteness" ("fa-
Pois as regras ·do Discurso no sentido de Alexy não são constituti- lácia da concretude fora de lugar") será preciso distinguir cuidado-
vas para o Discurso no mesmo sentido, por exemplo, em que as samente as regras do Discurso das convenções servindo para a ins-
regras do xadrez são constitutivas para as partidas de xadrez real- titucionalização de Discursos, logo para fazer valer o conteúdo
mente jogadas. Enquanto que as regras do xadrez determinam uma ideal das pressuposições argumentativas sob condições empíricas.
prática de jogo factual, as regras do Discurso são apenas a repre- Se, após essas explicações apressadas e sob reserva de análises
sentação de pressuposições pragmáticas, feitas tacitamente e sabi- mais precisas, aceitamos as regras provisoriamente estabelecidas
das intuitivamente, de uma prática discursiva privilegiada. Se se por Alexy, passamos a dispor, no que concerne à idéia dajustifica-
quiser comparar seriamente a argumentação com a prática do jogo ção de normas, de premissas suficientemente fortes para a deriva-
de xadrez, os equivalentes das regras do jogo de xadrez serão en- ção de 'U'.
contrados antes naquelas regras segundo as quais os diversos ar- Se todos os que entram em argumentações têm que fazer, entre
gumentos são construídos e trocados. Essas regras têm que ser efe- outras coisas, pressuposições cujo conteúdo pode ser apresentado
tivamente seguidas, caso deva ter lugar uma prática argumentativa sob a forma das regras do Discurso (3.1) a (3.3); e se, além disso
isenta de erros. Ao contrário, as regras do Discurso (3.1) a (3.3) compreendemos as normas justificadas como regrando matérias
devem significar apenas que os participantes da argumentação têm sociais no interesse comum de todas as pessoas possivelmente
que presumir um preenchimento aproximativo e suficiente para os concernidas, então todos os que empreendem seriamente a tenta-
fins da argumentação das condições mencionadas, não importa se e tiva de resgatar discursivamente pretensões de validez normativas
114 115
aceitam intuitivamente condições de procedimento que equivalem filosófica. ' D' é a asserção-alvo que o filósofo tenta fundamentar
a um reconhecimento implícito de 'U'. Pois, das mencionadas re- em sua qualidade de teórico moral. O programa de fundamentação
gras do Discurso resulta que uma norma controversa só pode en- esboçado descreve a via que talvez se possa designar agora como a
contrar assentimento entre os participantes de um Discurso práti- mais auspiciosa, a saber, a fundamentação pragmático-transcen-
co, se 'U' é aceito, isto é: dental de uma regra de argumentação com conteúdo normativo.
Esta é, certamente, seletiva, ainda que formal; ela não é compatí-
- se as conseqüências e efeitos colaterais, que previsivelmente vel com todos os princípios morais e jurídicos conteudísticos, mas,
resultam de uma obediência geral da regra controversa para a enquanto regra de argumentação, não prejulga nenhuma regula-
satisfação dos interesses de cada indivíduo, podem ser aceitos mentação conteudística. Todos os conteúdos, mesmo que concir-
sem coação por todos. nam normas de ação as mais fundamentais, têm que ser colocados
na dependência de Discursos reais (ou empreendidas substitutiva-
Tendo mostrado, porém, como o princípio da universalização mente, levadas a cabo advocatoriamente). O teórico moral pode
pode ser fundamentado por via da derivação pragmático-transcen- participar delas enquanto concernido, eventualmente enquanto pe-
dental a partir de pressuposições argumentativas, a ética do Dis- rito, mas ele não pode proceder a esses Discursos por sua própria
curso ela própria pode ser reduzida ao princípio parcimonioso 'D' conta. Uma teoria moral, que entre no terreno dos conteúdos,
segundo o qual: como por exemplo a teoria da justiça de Rawls, deve ser entendida
como uma contribuição para um Discurso desenvolvido entre ci-
- só podem reclamar validez as normas que encontrem (ou pos- dadãos.
sam encontrar) o assentimento de todos os concernidos en- (c) Kambartel caracterizou a fundamentação pragmático-trans-
quanto participantes de um Discurso prático. 73 cendental da ética do Discurso como um procedimento no qual o
proponente tenta "convencer" o oponente, "que pergunta pela
A fundamentação esboçada da ética do Discurso evita confu- fundamentação de um princípio racional formulado argumentati-
sões quanto ao uso da expressão 'princípio moral'. O único princí- vamente, de que ele já se colocou com a intenção de sua pergunta,
74
pio moral é o referido princípio da universalização, que vale como corretamente entendida, no terreno mesmo desse princípio". O
regra da argumentação e pertence à lógica do Discurso prático. 'U' que se pergunta, então, é que status essa espécie de fundamenta-
tem que ser cuidadosamente distinguido: ção pode pretender. Uma das partes recusa falar de todo em fun-
damentação, visto que (como frisa G. F. Gethmann) o reconheci-
- de quaisquer princípios ou normas básicas conteudísticas, que mento de um pressuposto, diferentemente de algo fundamentado,
só podem constituir o objeto de argumentações morais; seria sempre hipotético, ou seja, dependente da colocação de um
- do conteúdo normativo das pressuposições da argumentação, fim previamente aceito. Em face disso, os pragmáticos transcen-
que podem ser explicitadas sob a forma de regras (como em dentais apontam para o fato de que a obrigação de reconhecer
3.1-3.3); como válido o conteúdo proposicional de pressuposições inevitá-
- de 'D', o princípio da ética do Discurso, que exprime a idéia veis é tanto menos hipotética, quanto mais universais forem os
fundamental de uma teoria moral, mas não pertence à lógica da Discursos e correspondentes competências a que se aplicar a aná-
argumentação. lise proposicional. Não podemos, com o "fim" da argumentação
em geral, proceder tão arbitrariamente como procedemos com fins
As tentativas feitas até agora de fundamentar uma ética do Dis- contingentes da ação; esse fim está de tal modo entrelaçado à
curso padecem do fato de que as regras da argumentação são cur- forma de vida intersubjetiva de sujeitos capazes de falar e agir que
to-circuitadas com conteúdos e pressupostos da argumentação - e não podemos propô-lo nem tampouco evitá-lo voluntariamente. A
confundidas com "princípios morais" enquanto princípios da ética outra parte sobrecarrega a pragmática transcendental, mais uma

116 117
vez, com a ambiciosa pretensão de uma fundamentação última, te para relações de implicação imanentes aos conceitos,
visto que ela deve possibilitar (como sublinha, por exemplo, W. tampouco poderá haver uma possibilidade qualquer de jus-
Kuhlmann) uma base absolutamente segura, subtraída ao falibi- tificar a priori um sistema conceptual, pois, por princípio,
lismo de todo conhecimento empírico e feita de um saber pura e deve ficar em aberto a questão se os sujeitos cognoscentes
simplesmente infalível. "O que não se deixa contestar sensata- não mudarão um dia sua maneira de pensar sobre o mun-
mente - sem autocontradição - porque tem que ser pressuposto do. ,,16
no caso da argumentação sensata e o que, pelas mesmas razões,
tampouco se deixa fundamentar sensatamente - sem petitio prin- Schõnrich opõe-se provocativamente a uma sobrecarga dessa
cipii - por derivação, eis aí uma base segura, que nada poderá forma fraca de análise transcendental com a observação:
abalar. Já reconhecemos sempre, enquanto argumentadores, e isso "A aceitação astuciosamente extraída ao céptico de de-
de maneira necessária, os enunciados e regras pertencentes a essas
pressuposições e não somos capazes de retroceder, duvidando, terminadas relações de implicação conceptuais não pode
aquém delas, seja para contestar, seja para aduzir razões para sua pretender, assim, outra coisa senão uma validez quase-
,,. • ,,77
validez. ''75 empmca.
Cumpre dizer, a esse propósito, que o tipo de argumentos que O fato de que Apel, no entanto, se aferra obstinadamente à pre-
H. Lenk caracterizou como petitio tollendi só é apropriado para tensão de fundamentação última da pragmática transcendental ex-
demonstrar a impossibilidade de rejeitar determinadas condições plica-se, no meu entender, por um retomo inconseqüente a figuras
ou regras; com a ajuda deles a única coisa que se pode mostrar a do pensamento que ele próprio invalidara ao levar a cabo uma
um oponente é que ele reivindica performativamente algo que de- enérgica mudança de paradigma da filosofia da consciência para a
veria ser suprimido. filosofia da linguagem. Não é por acaso que, em seu interessante
A comprovação de contraclições performativas presta-se à iden- ensaio sobre o a priori da comunidade de comunicação, ele lembra
tificação de regras sem as quais o jogo da argumentação não fun- Fichte, que "gostaria de dissolver" pouco a pouco o fato da razão
ciona: se se quer realmente argumentar, não há nenhum equiva- "em sua mera facticidade, procurando compreendê-lo e reefetuá-lo
lente para ela. Assim, a falta de alternativas dessas regras fica com discemimento". 78 Muito embora Apel fale do "dogmatismo
provada para a prática da argumentação, sem que esta, porém, fi- metafisico residual" de Fichte, ele baseia, se entendo bem, apre-
que ela própriafundamentada. Certamente, os participantes já têm tensão de fundamentação última da pragmática transcendental exa-
que ter reconhecido essas regras como um fato da razão pelo sim- tamente nessa identificação reflexiva de uma operação previamente
ples motivo de que eles passam a argumentar. Mas, uma dedução efetuada de maneira intuitiva, isto é, tão.:somente sob as condições
transcendental no sentido de Kant não pode ser efetuada com se- da filosofia da consciência. A partir do momento em que nos mo-
melhantes meios argumentativos. Para a investigação pragmático- vemos no plano analítico da pragmática da linguagem, essa identi-
transcendental das pressuposições argumentativas feita por Apel ficação nos é vedada. Isso fica claro se destacarmos as etapas da
vale a mesma coisa que vale para a investigação semântico-trans- fundamentação da maneira esboçada acima e se as levarmos a cabo
cendental dos juízos de experiência, feita por Strawson: separadamente, uma após a outra. Pois a fundamentação da ética
do Discurso exige, de acordo com o programa apresentado:
"O sistema conceptual que subjaz à nossa experiência
deve sua necessidade à falta de alternativas. Fica· assim (1) a indicação de um princípio de universalização que funcione
provado que toda tentativa de desenvolver um sistema como regra da argumentação;
conceptual alternativo fracassa porque recorre a elementos (2) a identificação de pressupostos pragmáticos da argumenta-
estruturais do sistema concorrente a ser substituído ... En- ção que sejam inevitáveis e tenham um conteúdo normati-
quanto o método de Strawson voltar-se, assim, tão-somen- vo;

118 119
(3) a exposição explícita desse conteúdo normativo, por exem- Ao contrário, a ética do Discurso vai inserir-se, então, no círculo
plo, sob a forma de regras do Discurso; e das ciências reconstrutivas que têm a ver com os fundamentos ra-
(4) a comprovação de que há uma relação de implicação mate- cionais do conhecer, do falar e do agir. Se não aspirarmos mais ao
rial entre (3) e (1) em conexão com a idéia de justificação de fundamentalismo da filosofia transcendental tradicional, consegui-
normas. remos novas possibilidades de controle para a ética do Discurso.
Ela poderá, em concorrência com outras éticas, ser mobilizada
A etapa da análise designada no item (2), para a qual o fio con- para a descrição de representações morais e jurídicas empirica-
dutor é fornecido pela busca de contradições performativas, ba- mente constatadas, ela poderá ser inserida em teorias do desenvol-
seia-se num procedimento maiêutico, que serve para: vimento da consciência moral e jurídica, tanto no plano do desen-
volvimento sociocultural quanto no plano da ontogênese, e assim
(2a) chamar a atenção do céptico, que apresenta uma objeção, tomar-se accessível a um controle indireto.
para pressupostos dos quais ele tem um saber intuitivo; Tampouco precisamos nos aferrar à pretensão de fundamenta-
(2b) dar uma forma explícita a esse saber pré-teórico, de modo ção última da ética, tendo em vista sua presuntiva relevância para,
que o céptico possa reconhecer suas intuições na descrição o mundo da vida. As intuições morais do quotidiano não precisam
dada; e do esclarecimento do filósofo. Neste caso, a auto-compreensão da
(2c) examinar com base em contra-exemplos a afirmação feita filosofia como uma espécie de terapêutica, tal como inaugurada por
pelo proponente da falta de alternativas para os pressupos- Wittgenstein, parece excepcionalmente vir a calhar. E ética filosó-
tos explicitados. fica tem, em todo o caso, uma função esclarecedora em face das
confusões que ela própria provocou na consciência das pessoas
As etapas da análise (b) e (c) contêm inequivocamente elemen- cultas - logo, apenas na medida em que o cepticismo axiológico e
tos hipotéticos. A descrição que permite converter um 'know o positivismo jurídico se instalaram como ideologias profissionais e
how' em um 'know that' é uma reconstrução hipotética que só penetraram na consciência quotidiana através do sistema educa-
pode restituir as intuições de uma maneira mais ou menos correta; cional. Ambas neutralizaram com interpretações erradas as intui-
por isso, ela precisa de uma confirmação maiêutica. E a afirmação ções adquiridas de maneira espontaneamente natural no processo
de que não há alternativa alguma para uma dada pressuposição, de socialização; em circunstâncias extremas, eles podem contribuir
que esta pertence antes ao estrato das pressuposições inevitáveis, para desarmar moralmente os estratos acadêmicos alcançados pelo
isto é, universais e necessárias, tem o status de uma suposição; ela . .
ceptic1smo cu1tura179
.
tem que ser verificada com base em casos, do mesmo modo que a (8) Todavia, a disputa entre o cognitivista e o céptico ainda não
hipótese de uma lei. Certamente, o saber intuitivo das regras que está definitivamente decidida. Este não se dá por satisfeito com a
os sujeitos capazes de falar e agir têm que empregar para de todo renúncia a pretensões de fundamentação última e com a perspec-
poderem participar de argumentações não é, de certo modo, falível tiva de confirmações indiretas da teoria do Discurso. Em primeiro
- mas, certamente, são faliveis nossa reconstrução desse saber lugar, ele pode pôr em dúvida a solidez da derivação pragmático-
pré-teórico e a pretensão de universalidade que a ele associamos. transcendental do princípio moral (a). E, mesmo que tivesse de
A certeza com que praticamos nosso saber das regras não se trans- admitir que a ética do Discurso possa vir a ser fundamentada por
fere para a verdade das propostas de reconstrução das pressuposi- essa via, ele não teria gasto ainda toda a sua munição. Em segundo
ções hipoteticamente universais; pois estas propostas não podemos lugar, o céptico pode alinhar-se na frente (ressuscitada por motivos
colocá-las em discussão a não ser da mesma maneira que um lógico políticos) desses neo-aristotélicos e neo-hegelianos que observam
ou um lingüista faz com suas descrições teóricas. que, com a ética do Discurso, não se ganhou ainda muita
Todavia, nenhum dano sofremos .se negamos à fundamentação coisa para o propósito propriamente dito da ética filosófica, porque
pragmático-transcendental o caráter de uma fundamentação última. o que ela oferece é um formalismo no melhor dos casos vazio e, em

120 121
seus efeitos práticos, até mesmo funesto (b). Gostaria de abordar mais. Pela recusa da argumentação ele não pode, por exemplo,
essas duas objeções "derradeiras" do céptico na medida apenas nem mesmo indiretamente, negar que comparte uma forma de vida
em que for necessário para aclarar os fundamentos da ética do sócio-cultural, que cresceu em contextos do agir comunicativo e aí
Discurso na teoria da ação. Por causa da inserção da moralidade reproduziu sua vida. Numa palavra, ele pode renegar a moralidade,
na eticidade, a ética do Discurso também está sujeita a restrições mas não a eticidade das relações vitais em que, por assim dizer, se
- se bem que não a restrições tais que possam invalidar sua fun- mantém o dia todo. De outro modo, teria que se refugiar no suicí-
ção crítica e fortalecer o céptico em seu papel de propugnador do dio ou numa grave doença mental. Em outras palavras, ele não
contra-esclarecimento. pode desvencilhar-se da prática comunicativa do quotidiano, na
(a) A circunstância de que a estratégia de fundamentação da qual está obrigado continuamente a tomar posição por "sim" ou
pragmática transcendental se torna dependente das objeções de um por "não"; na medida em que continua simplesmente a viver, não
céptico não é uma vantagem apenas. Esses argumentos só pegam é possível imaginar sequer a título de experiência fictícia uma ro-
no caso de um oponente que faz ao proponente o obséquio de se binsonada com que o céptico conseguisse demonstrar de maneira
engajar de todo numa argumentação. O céptico que previr que será muda e impressiva seu salto para fora do agir comunicativo.
pego em contradições performativas recusará de antemão o jogo do Ora, vimos que os sujeitos que agem comunicativamente, ao se
logro - e recusará toda e qualquer argumentação. O céptico con- entenderem uns com os outros no mundo, também se orientam por
seqüente priva o pragmático transcendental de uma base para seus pretensões de validez assertóricas e normativas. Por isso, não
argumentos. Assim, por exemplo, ele pode comportar-se, em face existe nenhuma forma de vida sócio-cultural que não esteja pelo
da própria cultura, como um etnólogo que assiste cheio de pasmo menos implicitamente orientada para o prosseguimento do agir co-
as argumentações filosóficas, como se estas fossem o rito incom- municativo com meios argumentativos - por mais rudimentar que
preensível de uma tribo estranha. Esse olhar ensaiado por Nietzs- tenha sido o desenvolvimento das formas de argumentação e por
che foi, com efeito, posto de novo em voga por Foucault. O estado mais pobre que tenha sido a institucionalização dos processos discur-
dl:!, discussão muda de um golpe: se pross~guir em suas reflexões, o sivos do entendimento mútuo. Tão logo as consideremos como in-
cognitivista só poderá falar sobre o céptico, não mais com ele. terações reguladas de maneira especial, as argumentações dão-se a
Normalmente, ele capitulará e confessará que não há mais remédio conhecer como forma de reflexão do agir orientado para o enten-
contra o céptico que age como o passageiro que decide saltar fora; dimento mútuo. É às pressuposições do agir voltado para o enten-
ele dirá que, de fato, é preciso pressupor a disposição para a argu- dimento mútuo que elas tomam de empréstimo os pressupostos
mentação e, de modo geral, a disposição a prestar-se contas de pragmáticos que descobrimos no plano procedural. As reciproci-
suas ações, caso não deva perder todo o sentido o tema de que se dades que alicerçam o reconhecimento mútuo de sujeitos imputá-
ocupa a teoria moral. Subsistirá um resto decisionista, que não se veis já estão insertas no agir em que se enraízam as argumenta-
deixaria eliminar argumentativamente - é neste ponto que o fator ções. Eis por que a recusa de argumentação do céptico radical se
volitivo faria valer os seus direitos. revela como uma demonstração vazia. Nem mesmo aquele que
Parece-me, no entanto, que o teórico moral não deve se con- salta fora da argumentação de maneira conseqüente consegue sal-
formar com isso. Um céptico que, por seu mero comportamento, tar fora da prática comunicacional quotidiana; ele permanece preso
pudesse tirar-lhe o tema das mãos, não teria, é verdade, a última aos pressupostos desta - e estes, por sua vez, são pelo menos
palavra, mas ficaria por asssim dizer perfonnativamente com a ra- parcialmente idênticos aos pressupostos da argumentação em ge-
zão - ele manteria sua posição de maneira muda e impressiva. ral.
Nesse estado da discussão (se ainda se pode falar disso), pode- Naturalmente, seria preciso ver em detalhe que conteúdos nor-
mos nos socorrer da reflexão de que o que o céptico fez com seu mativos uma ,málise pressuposicional do agir orientado para o en-
comportamento foi renunciar à sua qualidade de membro da comu- tendimento mútuo poderia trazer à luz. Temos um exemplo com A.
nidade dos que argumentam - nada menos, mas tampouco nada Gewirth, que fez a tentativa de derivar normas éticas básicas das

122 123
estruturas e pressuposições pragmáticas do agir dirigido para fins. 80 tural, da integração social e da socialização - e esses processos,
Ele aplica a análise pressuposicional ao conceito da capacidade de como mostrei em outro lugar,85 só poderiam efetuar-se por meio do
agir espontaneamente e em vista de um fim para mostrar que todo agir orientado para o entendimento mútuo. Não há nenhum meio
sujeito que age racionalmente tem que considerar como bens se1;1 equivalente que seja capaz,. de preencher essas funções. Eis por
âmbito de ação e os recursos para a realização de fins em geral. E que, para os indivíduos também, que não podem adquirir e afirmar
interessante, porém, que o conceito do agir teleológico não seja su- sua identidade a não ser através da apropriação das tradições,
ficiente para fundamentar o conceito de um direito a tais "bens ne- através do pertencimento a grupos sociais e através da participação
cessários" da mesma maneira pragmático-transcendental com que em interações socializadoras, a escolha entre o agir comunicativo e
se pode fundamentar esses bens eles próprios.81 Se, ao contrário, o agir estratégico só está em aberto num sentido abstrato, isto é,
escolhemos como base o conceito do agir comunicativo, podemos caso a caso. Eles não têm a opção de um salto prolongado para
obter pela mesma via metódica um conceito de racionalidade que fora dos contextos do agir orientado para o entendimento mútuo.
deveria ser suficientemente forte para prolongar a derivação Este salto significaria a retirada para dentro do isolamento moná-
pragmático-transcendental do princípio moral até o interior da base dico do agir estratégico - ou para dentro da esquizofrenia e do
82
de validez do agir orientado para o entendimento mútuo. Mas suicídio. A longo prazo, ele é autodestruidor.
- d
este é um ponto em que nao posso me eter aqm. . g3
(b) Caso o céptico tenha acompanhado a argumentação que
Quando se substitui o conceito do agir orientado para fins pelo prosseguiu por cima de sua cabeça e caso tenha percebido que o
conceito mais abrangente do agir orientado para o entendimento salto demonstrativo para fora da argumentação e do agir orientado
mútuo com o fim de colocá-lo na base de uma análise pragmático- para o entendimento mútuo leva-o a um impasse existencial, talvez
transcendental, é verdade que uma yez mais se põe em liça o cép- ele se disponha afinal a aceitar a fundamentação proposta do prin-
tico com a questão se essa priorização de um conceito normativo cípio moral e a introdução do princípio da ética do Discurso. Mas,
do agir social não leva necessariamente a prejulgar o objetivo certamente, ele faz isso apenas para esgotar as possibilidades de
moral-teórico de toda a investigação.84 Se partimos da suposição de argumentação que ainda lhe restam: ele põe em clúvida o sentido
que os tipos do agir orientado para o entendimento mútuo e do agir mesmo de semelhante ética formalista. O enraizamento da prática
orientado para o sucesso formam uma disjunção completa, é jus- argumentativa nos contextos do agir comunicativo dentro do
tamente a opção da passagem do agir comunicativo para o agir es- mundo da vida recordara-lhe, de qualquer modo, a crítica de Hegel
tratégico que oferece ao céptico uma nova chance. Pois ele poderia a Kant; o céptico vai, agora, fazer valer essa crítica contra o cogni-
agora obstinar-se, não apenas em não argumentar, mas também em tivista.
não mais agir comunicativamente - retirando assim a base por Segundo uma formulação de A. Wellmer, essa objeção significa
uma segunda vez a uma análise pressuposicional que, partindo do que:
Discurso, recorre ao agir.
"É apenas na aparência que conseguimos, com a idéia
Para fazer frente a isso, é preciso mostrar que os contextos do de um 'Discurso isento de dominação', um padrão objetivo
agir comunicativo constituem uma ordem auto-substitutiva. Vou com que 'medir' a racionalidade prática de indivíduos ou
renunciar aquí a argumentos conceptuais e contentar-me-ei com sociedades. Na realidade, seria uma ilusão crer que pode-
uma observação empírica que torna plausível a posição central do ríamos nos emancipar da facticidade, por assim dizer nor-
agir comunicativo. A possibilidade de escolher entre o agir comu- mativamente carregada, de nossa situação histórica, com
nicativo e o agir estratégico é abstrata, porque ela só está dada na todo o legado de normas e critério:.; de racionalidade nela
perspectiva contingente do ator individual. Na perspectiva do presentes, a fim de lançar um olhar, como que 'de lado',
mundo da vida a que pertence cada ator, não é possível dispor li- para a história como um todo e para a nossa posição dentro
vremente desses modos de agir. Pois as estruturas simbólicas de dela. Uma tentativa nessa direção só poderia terminar na
todo mundo da vida reproduzem-se sob as formas da tradição cul- arbitrariedade teórica e no terror prático. " 86
124
125
Não preciso repetir os contra-argumentos que Wellmer desen- Por conseguinte, é apenas relativamente a normas e sistemas de
volve em sua brilhante exposição; mas quero pelo menos enumerar normas destacadas da totalidade do contexto de vida social que os
os aspectos sob os quais a objeção do formalismo merece ser trata- participantes podem tomar a distância que é preciso para adotar e.?1
da. face delas uma atitude hipotética. Os indivíduos socializados nao
podem comportar-se hipoteticamente em face da forma de vida ou
i.) O princípio da ética do Discurso refere-se a umprocedimen- da biografia em que se formou sua própria identidade. Disso tudo
to, a saber, o resgate discursivo de pretensões de validez normati- resulta a delimitação do domínio de aplicação de uma ética deonto-
vas; nessa medida, a ética do Discurso pode ser corretamente ca- lógica: ela estende-se apenas às questões práticas que podem ser
racterizada como formal. Ela não indica orientações conteudísti- debatidas racionalmente, e isso com a perspectiva de consenso.
cas, mas um processo: o Discurso prático. Todavia, este não é um Ela não tem a ver com a preferência de valores, mas com a validez
processo para a geração de normas justificadas, mas, sim, para o e-
deôntica de normas de ação.
xame da validade de normas propostas e consideradas hipoteti-
iii.) Subsiste, porém, a dúvida se o procedimento da ética do
camente. Os Discursos práticos têm que fazer com que seus conteú-
Discurso na fundamentação de normas não se baseia numa idéia
dos lhes sejam dados. Sem o horizonte do mundo da vida de um de-
exaltada e até mesmo perigosa em seus efeitos práticos. Com o
terminado grupo social e sem conflitos de ação numa determinada
princípio da ética do Discurso as coisas se passam como com os
situação, na qual os participantes considerassem como sua tarefa a
outros princípios: ele não pode regular os problemas de sua própria
regulação consensual de uma matéria social controversa, não teria aplicação. A aplicação de regras exige uma inteligência prática que
sentido querer empreender um Discurso prático. A situação inicial está pré-ordenada à razão prática interpretada no sentido da ética
concreta de um acordo normativo perturbado, ao qual os Discur- do Discurso e, em todo o caso, não está submetida, de sua parte, a
sos práticos se referem em cada caso como um antecedente, de- regras do Discurso. Mas, então, o princípio da ética do Discurso
termina os objetos e problemas que "estão na vez" de serem deba- só pode tomar-se eficaz recorrendo a uma faculdade que vem ligá-
tidos. Formal, por conseguinte, esse procedimento não o é no sen- lo aos pactos locais da situação hermenêutica inicial e trazê-lo de
tido da abstração de conteúdos. Em sua abertura, o Discurso pre- volta ao provincianismo de um determinado horizonte histórico.
cisa justamente que os conteúdos contingentes "dêem entrada" Isso é incontestável, se consideramos os problemas da aplica-
nele. Todavia, esses conteúdos serão processados no Discurso de ção na perspectiva da terceira pessoa. Esse discernimento refle-
tal sorte que os pontos de vista axiológicos particulares acabem por xivo do hermeneuta não invalida, contudo, a pretensão do princí-
ser deixados de lado, na medida em que não são passíveis de con- pio do Discurso, pretensão essa que transcende todos os pactos lo-
senso; não será esta seletividade que torna o processo imprestável cais: pois a este princípio o participante da argumentação não pode
para a solução de questões práticas? se furtar enquanto, numa atitude performativa, levar a sério o sen-
ii.) Se definimos as questões práticas como questões do "bem tido da validez deôntica das normas e não objetivá-las como fatos
viver", que se referem em cada caso ao todo de uma forma de vida sociais ou como uma simples ocorrência no mundo. A força trans-
individual, o formalismo ético é de fato decisivo: o princípio da cendente de uma pretensão de validez entendida frontalmente
universalização funciona como uma faca que faz um corte entre "o também é eficaz empiricamente e não pode ser ultrapassada pelo
bom" e "o justo", entre enunciados valorativos e enunciados estri- discernimento reflexivo do hermeneuta. A história dos direitos
tamente normativos. Os valores culturais encerram, é verdade, fundamentais nos Estados constitucionais modernos dá uma quan-
uma pretensão de validez intersubjetiva, mas encontram-se tão en- tidade de exemplos do fato que as aplicações de princípios, desde
trelaçados com a totalidade de uma forma de vida particular que que sejam reconhecidos, de modo nenhum oscilam ~e situação
não podem originariamente pretender uma validez normativa no para situação, mas seguem, sim, um curso orientado. E o próprio
c,entido estrito - eles candidatam-se, em todo o caso, a materiali- conteúdo universal dessas normas que traz à consciência dos con-
zar-se em normas que dêem vez a um interesse universal. cernidos, no espelho de faixas de interesse cambiantes, a parciali-

126 127
dade e a seletividade das aplicações. As aplicações podem falsifi- tantes de imposições estratégicas. O problema de uma ética da res-
car o sentido mesmo da norma; até mesmo na dimensão da aplica- ponsabilidade que leva em consideração a dimensão temporal é tri-
ção inteligente, podemos operar de uma maneira mais ou menos vial no que concerne ao princípio, posto que é possível tomar à
81
parcial. Nela são possíveis processos de aprendizagem. própria ética do Discurso os pontos de vista da ética da responsabi-
iv.) De fato, os Discursos práticos estão sujeitos a restrições lidade para uma avaliação das conseqüências futuras do agir coleti-
que, em vista de uma auto-compreensão fundamentalista, devem vo. Por outro lado, desse problema resultam questões de uma ética
ser recordadas. Essas restrições, Wellmer destacou-as com toda a política que se ocupa das aporias de uma práxis visando objetivos
clareza desejável num manuscrito ainda inédito sobre '' Reason and da emancipação e que tem de recolher aqueles temas que, outrora,
the Limits of Rational Discourse" (" A Razão e os Limites do Dis- encontraram seu lugar na teoria marxista da revolução.
curso Racional"). É nesta espécie de restrições, às quais os Discursos práticos es-
Em primeiro lugar, os Discursos práticos, nos quais se deve tão sempre sujeitos, que o poder da história se faz valer em face
tratar também da adequação da interpretação de necessidades, das pretensões e .interesses transcendentes da razão. O céptico
conservam uma conexão interna com a crítica estética, por um la- inclina-se, todavia, a dramatizar essas limitações. O âmago do pro-
do, e com a crítica terapêutica, por outro lado; e essas duas fo~as blema consiste simplesmente no fato de que os juízos morais, que
fa argumentação não estão sujeitas à premissa de Discursos 1:1g~- dão respostas desmotivadas a questões descoµ.textualizadas, re-
rosos, segundo a qual sempre, em princípio, se deve poder atmgrr querem uma compensação. Basta aclarar as operações abstrativas,
um acordo racionalmente motivado, sendo que "em princípio" às quais as morais universalistas devem sua superioridade sobre
significa a seguinte reserva idealizadora: desde que a argumentação todas as morais convencionais, para que o velho problema da rela-
possa ser conduzida de maneira suficientemente aberta e prolon- ção entre moralidade e eticidade apareça sob uma luz trivial.
gada pelo tempo necessário. Mas, se as diferentes formas da argu- Para o participante do Discurso que examina hipóteses, a atua-
mentação podem formar, ao fim e ao cabo, um sistema e não po- lidade de seu contexto de experiências no mundo da vida empali-
dem ser isoladas uma da outra, uma vinculação com as formas me- dece; a normatividade das instituições existentes aparece-lhe tão
nos rigorosas da argumentação vem gravar também a pretensão refrangida quanto a objetividade das coisas e acontecimentos.
mais rigorosa do Discurso prático (bem como do Discurso teórico No Discurso, percebemos o mundo vivido da prática comunicati-
e do Discurso explicitador) com uma hipoteca que provém do si- va quotidiana como que a partir de uma retrospectiva artificial; pois
tuamento histórico-social da razão. à luz das pretensões de validez examinadas hipoteticamente, o
Em segundo lugar, os Discursos práticos não podem ser libera- mundo das relações ordenadas institucionalmente vê-se moralizado
dos, na mesma medida em que o Discurso teórico e o Discurso ex- de maneira análoga à maneira pela qual o mundo dos estados de
plicitador, da pressão dos conflitos sociais. Eles são menos "libe- coisas existentes é teorizado - o que até então valera inquestiona-
rados da ação" porque, com as normas controvertíveis, fica afe- velmente como um fato ou como uma norma pode, agora, ser ou
tado o eqüilíbrio das relações de reconhecimento. A controvérsia não ser o caso, pode ser válido ou não. A arte moderna deu, aliás,
em torno das normas permanece arraigada, mesmo quando é con- no domínio da subjetividade, um empurrão comparável no sentido
duzida com meios discursivos, na "luta pelo reconhecimento". da problematização; o mundo das vivências é estetizado, isto é, li-
Em terceiro [ugar, os Discursos práticos assemelham-se, como berado das rotinas da percepção quotidiana e das convenções do
todas argumentações, a ilhas ameaçadas de se verem submersas agir quotidiano. Convém, por isso, ver a relação entre moralidade
pelas ondas no oceano de uma prática onde o modelo da solução e eticidade como parte de um contexto mais complexo.
consensual dos conflitos da ação não é de modo algum dominante. Max Weber viu o racionalismo ocidental como caracterizado,
Os meios do entendimento mútuo não cessam de se verem desalo- entre outras coisas, pelo fato de terem se formado na Europa cultu-
jados pelos instrumentos da violência. Por isso, o agir que se guia ras de especialistas, que elaboram a tradição cultural numa atitude
por princípios éticos tem que se arranjar com os imperativos resul- reflexiva e, ao fazerem isso, isolam uns dos outros os elementos

128 129
estritamente cognitivos, estético-expressivos e moral-práticos. Eles de tal modo a identidade de grupos e indivíduos que constituem
especializam-se respectivamente em questões de verdade, questões uma parte integrante da respectiva cultura ou personalidade. As-
de gosto e questões de justiça. Com essa diferenciação interna das sim, a formação do ponto de vista moral vai de mãos dadas com
chamadas "esferas de valor" - da produção científica, da arte e uma diferenciação no interior da esfera prática - as questões mo-
da crítica, do direito e da moral - separam-se no plano cultural os rais que podem, em princípio, ser decididas racionalmente do
elementos que formam no interior do mundo da vida uma síndrome ponto de vista da possibilidade de universalização dos interesses
difícil de dissolver. É só com essas esferas de valor que surgem as ou dajustiça, são distinguidas agora das questões valorativas, que
perspectivas reflexivas a partir das quais o mundo da vida aparece se apresentam sob o mais geral dos aspectos como questões do
como a "práxis" com a qual a teoria deve ser mediatizada, como a bem viver (ou da auto-realização) e que só são accessíveis a um
"vida" com a qual a arte queria, de acordo com as exigências sur- debate racional no interior do horizonte não-problemático de uma
realistas, se reconciliar, ou justamente: como a "eticidade" com forma de vida historicamente concreta ou de uma conduta de vida
que a moralidade tem que se pôr em relação. individual.
Na perspectiva de um participante de argumentações morais, o Com a evidenciação dessas operações abstrativas da moralida-
mundo da vida posto à distância e no qual se entrelaçam obvieda- de, duas coisas ficam claras: o ganho de racionalidade que o isola-
des culturais de origem moral, cognitiva e expressiva apresenta-se mento das questões de justiça propicia e a seqüela de problemas
como a esfera da eticidade. Aí os deveres encontram-se de tal que daí G<!rivam para a mediação da moralidade e da eticidade. No
modo enredados com os hábitos concretos da vida, que eles podem horizonte de um mundo da vida, os juízos práticos tiram tanto a
tirar sua evidência das certezas ligadas ao pano de fundo. As ques- sua concretude, quanto a sua força motivadora da ação, de uma li-
tões de justiça só se colocam aí no interior do horizonte de ques- gação interna com as idéias inquestionavelmente válidas <lo bem
tões já respondidas desde sempre sobre o bem viver. Sob o olhar viver, ou com a eticidade institucionalizada em geral. Em seu âm-
moralizante e sem indulgência do participante do Discurso, essa bito, nenhuma problematização pode ir tão fundo que ponha a per-
totalidade perdeu sua validez nativa, a força normativa -do factual der as vantagens da eticidade existente. É exatamente o que ocorre
ficou tolhida - as instituições que nos são familiares podem se com as operações abstrativas que o-ponto de vista moral exige. Por
tomar outros tantos casos de justiça problematizada. Diante deste isso Kohlberg fala em passagem ao estádio pós-convencional da
olhar, o legado de normas tradicionais desintegrou-se, dividindo-se consciência moral. Neste estádio, o juizo moral desliga-se dos pac-
no que pode ser justificado a partir de princípios e naquilo que só tos locais e da coloração histórica de uma forma de vida particular;
conserva uma validez factual. A fusão no mundo da vida entre va- ele não pode mais apelar para a validez desse contexto do mundo
lidade e validez social dissolveu-se. Ao mesmo tempo, a práxis da vida. E as respostas morais conservam tão-somente a força de
quotidiana dissociou-se em normas e valores, ou seja, no compo- motivação racional dos discernimentos; elas perdem com as evi-
nente da esfera prática que se pode submeter às exigências de uma dências inquestionáveis, que formam o pano de fundo de um
rigorosa justificação moral e em um outro componente, não passí- mundo da vida, a força de impulsão de motivos empiricamente efi-
vel de moralização e abrangendo as orientações axiológicas inte- cazes. Para tomar-se eficaz m. prática todamoral universalista tem
gradas em modos de vida individuais ou coletivos. que compensar essas perdas de eticidade concreta, com que ela a
princípio se acomoda por causa da vantagem cognitiva. As morais
De certo, os valores culturais transcendem o desenrolar factual universalistas dependem de formas de vida que sejam, de sua par-
da áção; eles condensam-se nas síndromes históricas e biográficas te, a tal ponto "racionalizadas", que possibilitem a aplicação inte-
das orientações axiológicas à luz das quais os sujeitos podem dis- ligente de discernimentos morais universais e propiciem motiva-
tinguir_ o. "b~~ viver" d~ r~_produção de _sua vida como "simples ções para a transformação dos discernimentos em agir moral. Ape-
sobrev1venc1a . Mas as 1de1as do bem viver não são representa- nas as formas de vida que vêm, neste sentido, "ao encontro" de
ções que se tenham em vista como um dever abstrato; elas marcam morais universalistas preenchem as condições necessárias para re-

130 131
14. St. Toulmin, An Examination of the Place of Reason in Ethics
vogar as operações abstrativas da descontextualização e da desmo-
tivação. (Um Exame do Lugar da Razão na Ética), Cambridge 1970,
121 ss.
15. Toulmin 1970, 125.
Notas do 3.° Capítulo 16. Kai Nielsen, On Moral Truth (Sobre a Verdade Moral), in: N.
1. A. Maclntyre, After Virtue, London 1981, 52; M. Horckhei- Rescher (org.), Studies in Moral Philosophy (Estudos de Filo-
mer, Zur Kritik der instrumentellen Vernunft (Para a Crítica sofia Moral), American Philosophical Quarterly, Monograph
da Razão Instrumental), Frankfurt 1967 (em inglês: Oxford Series, vol. I, Oxford 1968, 9 ss.
1947), cap. l: Meios e Fins. 17. A. R. White, Truth (Verdade), New York, 1971, 61.
2. R. ~immer, Universalisierung in der Ethik (Universalização 18. G. E. Moore, Principia Ethica (1903), trad. alemã: Stuttgart
na Etica), Frankfurt 1980. 1970, esp. cap. 1.
3. W. K. Frankena, Artalytische Ethik (Ética Analítica), Muni- 19. G. E. Moore, A Reply to my Critics (Uma Réplica aos meus
que 1972, 117 ss. Críticos), in: P. A. Schilpp (ed.), The Philosophy of G. E.
4. Cf. a Introdução e a Consideração Final de minha Theorie des M9ore, Evanston 1942.
kommunikativen Handelns (Teoria do Agir Comunicativo), 2 20. Toulmin, 1970, 28.
vols., Frankfurt 1981. 21. A. J. Ayer, On the Analysis of Moral Judgements (Sobre a
5. P. F. Strawson, Freedom and Resentment (Liberdade e Res-· Análise dos Juízos Morais), in: M. Munitz (ed.), A Modem In-
sentimento), Londres 1974. Strawson, porém, tem em vista um troduction to Ethics (Uma Introdução Moderna à Ética), New
outro tema. York, 1958, 537.
6. Também Nietzsche, como se sabe, estabelece uma conexão 22. ~aclntyre 1981, 12; cf. C. L. Stevenson, Ethics and Language
genética entre o ressentimento do ofendido e injuriado e a mo- (Etica e Linguagem), Londres 1945, cap. 2.
ral universalista da compaixão. Cf. a esse respeito J. Haber- 23. Oxford 1952.
mas, Die Verschlingung von Mythos und Autklãrung (O En- 24. Hare 1952, 3.
trelaçamento entre Mito e Esclarecimento), in: K. H. Bohrer 25. Cf. a interessante observação sobre "justificações completas"
(org.), Mythos und Moderne (Mito e Modernidade), Frankfurt em Hare, 1952, 68 s.: "The truth is that, if asked to justify as
a. M. 1983, 405 ss. completely as possible any decision, we have to bring in both
7. Strawson 1974, 9. effects - to give content to the decision - and principies, and
8. Strawson 1974, 9 s. the effects in general of observing those principies, and so on,
9. Strawson 1974, 11 s.; nesta passagem, Strawson refere-se a um until we have satisfied our inquirer. Thus a complete justifica-
determinismo que vê na imputabilidade, que os participantes tion of a decision would consist of a complete account of its ef-
da interação se atribuem reciprocamente, uma ilusão. fects, together with a complete account of the principies which
10. Strawson 1974, 15. it observed, and the effects of observing those principies for, of
11. Para a diferenciação das respostas possíveis a essas três cate- course, it is the effects (what obeying them in fact consists in)
gorias de questões, cf. L. Krüger, Über das Verhãltnis von which give content to the principies too. Thus, if pressed to
Wissenschaftlichkeit und Rationalitãt (Sobre a Relação da justify a decision completely, we have to give a complete spe-
Cient~cidade e da Racionalidade), in: H. P. P. Duerr (org.), cification of the way of life of which it is a part." (" A verdade
~er W1ssenschaftler und das Irrationale (O Cientista e o Irra- é que, se solicitados a justificar tão completamente quanto
c1onal), vol. II, Frankfurt 1981, 91 ss. possível qualquer decisão, temos que levar em conta tantos os
12. Strawson 1974, 22. efeitos - para dar conteúdo à decisão - quanto os princípios,
13. Strawson 1974, 23. bem como os efeitos em geral da observação desses princípios

132 133
e assim por diante, até satisfazer nosso inquiridor. Assim, uma Última das Normas?), in: Funkkolleg Ethik, Studienbegleit-
justificação completa de uma decisão consistiria numa enume- brief 8 (Telecurso Ética, Apostila 8), Weinheim 1981, 32.
ração completa de seus efeitos, juntamente com uma enumera- 32. J. Habermas, Wahrheitstheorien (Teorias da Verdade), in H.
ção completa dos princípios que ela observou e dos efeitos da Fahrenbach (org.), Festschrift für W. Schulz (Volume Come-
observação desses princípios, pois, naturalmente, são os efei- morativo para W. Schulz), Pfullingen 1973, 2ll ss., e J. Ha-
tos (que são de fato aquilo em que consiste obedecê-los) que bermas, Theorie des kommunikativen Handelns (Teoria do
também dão conteúdo aos princípios. Assim, se instados a jus- Agir Comunicativo), Frankfurt 1981, vol. l, 44 ss.
tificar completamente uma decisão, temos de dar uma especifi-
33. The Uses of Argument, Cambridge 1958, trad. alemã: Kron-
cação completa do modo de vida da qual ela faz parte.") Uma berg 1975.
outra variante do decisionismo é desenvolvida por H. Albert
numa perspectiva weberiana a partir do criticismo de Popper, 34. Quanto à lógica do Discurso prático, cf. Th. A. McCarthy,
mais recentemente in: H. Albert, Fehlbare Vemunft (Razão Kritik der Verstãndigungsverhãltnisse (Crítica das Relações de
Falível), Tübingen 1980. Entendimento Mútuo), Frankfurt 1980, 352 ss.
35. Wimmer 1980, 174 ss.
26. A propósito do pano de fundo histórico da filosofia do valor,
36. G. Patzig, Tatsachen, Normen, Sãtze (Fatos, Normas, Propo-
da qual o intuicionismo de Moore e a ética material dos valores
sições), Stuttgart 1980, 162.
de Scheler não passam de variantes, cf. o excelente capítulo
37. The Moral Point of View (0 Ponto de Vista Moral), Londres
sobre "Valores" em H. Schnãdelbach, Philosophie in
1958, trad. alemã: Düsseldorf 1974.
Deustschland (A Filosofia na Alemanha) 1831-1933, Frankfurt
38. The Moral Rules (As Regras Morais), New York 1976, trad.
1983, 198 ss.
alemã: Frankfurt 1983.
27. Toulmin 1970, 64.
39. Generalization in Ethics (A Generalização na Ética), New
28. Toulmin 1970, 74. York 1961, trad. alemã: Frankfurt 1975.
29. Habermas 1981, vol. 1, cap. 3: Soziales Handeln, Zwecktãtig- 40. G. H. Mead, Fragments on Ethics (Fragmentos sobre a Ética),
keit und Kommunikation (Agir Social, Atividade Teleológica in: Mind, Self, Society (A Mente, o Eu e a Sociedade), Chi-
e Comunicação), 367 ss. cago 1934, 379 ss., a esse respeito: H. Joas, Praktische Inter-
30. Poderíamos, em todo o caso, colocar as teorias, enquanto sis- subjektivitãt (Intersubjetividade Prática), Frankfurt 1980, 120
temas de nível superior de enunciados, ao lado das normas. ss.; Habermas 1981, vol. 2, 141 ss.
Mas a questão se coloca se as teorias podem ser verdadeiras 41. G. Nunner, referindo-se a B. Gert (1976), 72, fez a objeção de
ou falsas no mesmo sentido que as descrições, predições e ex- que 'U' não basta para destacar, dentre as normas que satisfa-
plicaçõ,~s delas deriváveis, enquanto que as normas são tão zem as condições mencionadas, as normas morais em sentido
corretas ou incorretas como as ações pelas quais são realizadas estrito e para excluir as demais normas (por exemplo: "Deves
ou infringidas. sorrir ao cumprimentar as outras pessoas"). Se entendo bem,
31. Cf. J. Habermas, Legitimationsprobleme im modemen Staat essa objeção cai por terra se nos cingimos a chamar de "mo-
(Problemas de Legitimação no Estado Moderno), in: J. Ha- rais'' apenas as normas que são universalizáveis em sentido es-
bermas, Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus trito, ou seja, que não variam segundo os espaços sociais e os
(Para a Reconstrução do Materialismo Histórico), Frankfurt tempos históricos. Naturalmente, essa terminologia da teoria
1976, 271 ss. Quanto à relação entre a fundamentação de nor- moral não coincide com a terminologia descritiva do sociólogo
mas, a entrada em vigor e a imposição de normas, cf. também ou do historiador, que descreve como regras morais as regras
W. Kuhlmann, 1st eine philosophische Letztbegründung von específicas de cada época e cultura que valham como tais aos
Normen mõglich? (É Possível uma Fundamentação Filosófica olhos de quem. pertence à época e cultura em questão.

134 135
42. T. Me Carthy, Kritik der Verstãndigungsverhãltnisse (Crítica Racional), Zeitschrift für philosophische Forschung 24 (1970),
das Relações de Entendimento Mútuo), Frankfurt 1980, 371. 183 ss.
43. S. Benhabib, the Methodological Illusions of Modem Political 57. Apel 1976, 72 s.
Theory. The Case of Rawls and· Haberrnas. Neue Hefte für 58. A. J. Watt, Transcendental Argurnents and Moral Principies,
Philosophie, 21, 1982, 47 ss. Philosophical Quarterly 25, 1975, 40.
44. Refiro-me, no que se segue, à terceira das conferências que 59. R. S. Peters, Ethics and Education (1966), Londres 1974, 114
Tugendhat pronunciou em 1981, no quadro das Christian ss.
Gauss Lectures, na Universidade Princeton: Morality and 60. O próprio Peters aponta esse fato: "If it could be shown that
Cornrnunication, MS 1981. certain principies are necessary for a forrn of discourse to have
45. E. Tugendhat, Einführung in die sprachanalytische Philosophie rneaning, to be applied or to have point, then this would be a
(Introdução à Filosofia Analítica da Linguagem), Frankfurt very strong argurnent for the justification of the principie in
1976. question. They would. show what anyone rnust be cornrnitted
46. M. Durnrnett, What is a Theory of Meaning? (0 Que É urna to who uses it seriously. Of course, it would be open for
Teoria do Significado?), in: G. Evans, J. McDowell (eds.), anyone to say that he is not so cornrnitted because he does not
Truth and Meaning (Verdade e Significado), Oxford 1976, 67 use this forrn of discourse or because he will give it up now
ss; Haberrnas 1981, vol. l, 424 ss. that he realizes its presuppositions. This would be quite a fêa-
47. Haberrnas 1981, vol. 2, 75 ss. sible position to adopt in relation, for instance, to the dis-
48. G. H. Mead fixou esse aspecto no conceito do "generalized course of witchcraft or astrology; for individuais are not neces-
other" ("outro generalizado"). Cf. a esse respeito Haberrnas sarily initiated into it in our society, and they can exercise their
1981, vol. 2, 61 ss. e 141 ss. discretion about whether they think and talk in this way or not.
49. P. Taylor, The Ethnocentric Fallacy, The Monist 47 (1963), Many have, perhaps rnistakenly, given up using religious lan-
570. guage, for instance, because they have been brought to see that
50. J. Rawls, Theorie der Gerechtigkeit (Teoria da Justiça), its use cornrnits thern to, e g. saying things which purport to
Frankfurt 1975, 38 ss., 68 ss. be true for which the truth conditions can never be produced.
51. P. Lorenzen, O. Schwernrner, Konstruktive Logik, Ethik und But it would be a very difficult position to adopt in relation to
Wissenschaftstheorie (Lógica, Ética e Epistemologia Construc- moral discourse. For it would entail a resolute refusal to talk or
tiva), Mannheirn 1973, 107 ss. think about what ought to be done." (" Se se pudesse mostrar
52. Wiínrner, 1980, 358 s. que certos princípios são necessários para que urna forma de
53. Tübingen 1968. discurso tenha significado, seja aplicado ou tenha relevância,
54. K. O. Apel, Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft (O então isso seria um argumento muito forte para ajustificação
A priori da Comunidade de Comunicação), Frankfurt, 1973, dos princípios em questão. Eles mostraria com que coisas teria
vol. 2, 405 ss. que se comprometer qualquer um que o utilizasse seriamente.
55. K. O. Apel, Das Problem der philosophischen Letztbegrün- Naturalmente, qualquer um teria a liberdade de dizer que não
dung irn Lichte einer transzendentalen Sprachpragrnatik (O tem esses compromissos, porque não utiliza essa forma de dis-
Problema da Fundamentação Filosófica Última à Luz de uma curso ou porque vai abandoná-la agora que percebeu suas
Pragmática Transcendental da Linguagem), in: B. Kanitsch- pressuposições. Seria perfeitamente possível adotar seme-
neider (org.), Sprache und Erkenntnis (Linguagem e Conheci- lhante posição relativamente, por exemplo, ao discurso da
mento), Innsbruck 1976, 55 ss. bruxaria ou da astrologia; pois os indivíduos não são necessa-
56. H. Lenk, Philosophische Logikbegründung und rationaler Kri- riamente iniciados nele em nossa sociedade e depende de seu
tizisrnus (Fundamentação Filosófica da Lógica e Criticismo arbítrio pensar e falar dessa maneira ou não. Muitos renuncia-

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ram, talvez equivocadamente, a usar a linguagem religiosa, por Constructiva), Frankfurt 1974, 54 ss. Kambartel chama de
exemplo, porque foram levados a ver com que se comprome- fundamentadas aquelas normas para as quais se pode obter
tem ao usá-la - por exemplo, a dizer coisas que pretendem ser num '' diálogo racional'' o assentimento de todos os concerni-
verdadeiras e para as quais as condições de verdade jamais po- dos. A fundamentação depende de um "diálogo racional (ou do
dem ser apresentadas. Mas seria uma posição muito difícil de projeto de semelhante diálogo) que leva ao assentimento por
adotar em relação ao discurso moral. Pois ela acarretaria uma parte de todos os concernidos numa situação comunicacional
recusa resoluta a falar ou pensar acerca do que deve ser fei- não distorcida simulada para ela" (68).
to.") Peters 1974, 115 s. 74. F. Kambartel, Wie ist praktische Philosophie konstruktiv mõ-
61. Peters 1974, 121. glich? (Como é Possível a Filosofia Prática de um Ponto de
62. Peters 1974, 181. Vista Construtivo?), in: Kambartel 1974, 11.
63. Kuhlmann 1981, 64 ss. 75. Kuhlmann 1981, 57.
64. Faço assim uma revisão de afirmações anteriores, cf. J. Ha- 76. G. Schõnrich, Kategorien und Transzendentale Argumenta-
bermas, N. Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder Sozial- tion, Frankfurt 1981, 196 s.
technologie (Teoria da Sociedade ou Tecnologia Social), 77. Schõnrich, loc. cit., 200.
Frankfurt 1971, 136 ss. de maneira semelhante Apel 1973, 424 78. Apel 1973, vol. 2, 419: "Nosso procedimento consiste quase
ss. sempre no seguinte: a) efetuamos algo, nessa efetuação guia-
65. B. R. Burleson, On the Foundation of Rationality, Journal of dos sem dúvida por uma lei da razão imediatamente ativa em
the American Forensic Association 16, 1979, 112 ss. nós. - O que propriamente somos ness~ caso, em nosso pró-
66. R. Alexy, Eine Theorie des praktischen Diskurses, in: W. prio e mais alto cume, onde nos deixamos absorver nele culmi-
Oelmüller (org.), Normenbegründung, Normendurchsetzung nando, ainda é, no entanto, facticidade. - Em seguida: b) in-
(Fundamentação de Normas, Imposição de Normas), Pader- vestigamos e descobrimos nós mesmos a lei que justamente
born 1978. nos guiava mecanicamente nesse primeiro efetuar; portanto,
67. Alexy, in: Oelmüller 1978, 37 - numeração modificada. nós o penetramos na gênese de sua determinidade. Ora, dessa
68. Na medida em que são de natureza especial e não podem ser maneira, vamos nos elevar dos elementos fácticos aos genéti-
obtidos a partir do sentido de uma competição em torno dos cos; o qual genético, no entanto, pode ser de novo, sob um ou-
melhores argumentos, trata-se de dispositivos institucionais, tro aspecto, fáctico, caso em que, por isso, somos forçados a
que se situam (cf. mais abaixo) em um outro plano. elevar-nos de novo para aquilo que, em relação com essa facti-
69. Habermas, in Fahrenbach 1973, 211 ss. cidade, é genético, até que cheguemos à gênese absoluta, à gê-
70. Alexy, in Oelmüller 1978, 40 s. nese da doutrina da ciência (J. G. Fich ..:;, Werke (Obras),
71. Manifestamente, essa pressuposição não é relevante para os (Medicus), Leipzig 1910 s., vol. IV, 206.
Discursos teóricos, nos quais se analisam tão-somente preten- 79. As coisas se passam diferentemente com a relevância política
sões de validez assertóricas; ela pertence, no entanto, às pres- de uma ética do Discurso, na medida em que ela concerne aos
suposições pragmáticas da argumentação em geral. fundamentos prático-morais do sistema jurídico, e, de maneira
72. Cf. J. Habermas, Die Utopie des guten Herrschers (A Utopia geral, à deslimitação política do domínio privado da moral. Sob
do Bom Senhor), in: J. Habermas, Kleine politische Schriften esse aspecto, ou seja, para a iniciação de uma práxis emancipa-
1-IV, Frankfurt 1981, 318 ss. tória, a ética do Discurso pode adquirir o significado de uma.
73. Uma formulação algo diferente do mesmo princípio encontra- orientação para a ação. Mas isso, é verdade, não enquanto éti-
se em F. Kambartel, Moralisches Argumentieren (Argumenta- ca, logo, de uma maneira imediatamente prescriptiva, mas tão
ção in: F. Kambartel (org.), Praktische Philosophie und kons- somente pela via indireta que passa por uma teoria crítica da
truktive Wissenschaftstheorie (Filosofia Prática e Epistelogia sociedade que se tornou fecunda para interpretações da situa-

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ção e na qual ela se vê inserida - por exemplo, para o fim da
diferenciação entre interesses particulares e interesses univer- more on their reason, that they ought to be more concerned
salizáveis. with first-hand justification, ist to claim that they are systemat-
80. É o que mostra A. Maclntyre 1981, 64 s.: "Gewirth argues ically falling down on a job on which they are already enga-
that anyone who holds that the prerequisites for his exercise of ged. It is not to commit some version of the naturalistic fallacy
rational agency are necessary goods is logically committed to by basing a demand for a type of life on features of human life
holding also that he has a right to these goods. But quite clear- which make it distinctively human. For this would be to repeat
ly the introduction of the concept of a right needs justifica- the errors of the old Greek doctrine of function. Rather it is to
tion both because it is at this point a concept quite new to Ge- say that human life already beares witness to the demands of
wirth 's argument and because of the special character of the reason. Without some acceptance by men of such demands
concept of a right. It is first of all clear that the claim that I their life would be unintelligible. But given the acceptance of
have a right to do or have something is a quite different type of such demands they are proceeding in a way which is inappro-
claim from the claim that I need or want or will be benefited by priate to satisfying them. Concern for truth is written into hu-
something. From the first - if it is the only relevant considera- man life." (Dizer. .. que as pe~soas devem confiar mais em sua
tion - it follows that others ought not to interfere with my at- razão, que elas deviam ter maior interesse por justificações de
tempts to do or have whatever it is, whether it is for my own primeira mão, é pretender que elas estão sistematicamente fra-
good or not. From the second it does not. And it makes no dif- cassando numa tarefa na qual já estão engajadas. Não é come-
ference what kind of good or benefits is at issue." (" Gewirth ter uma versão da falácia naturalista, ao basear a exigência de
argumenta que qualquer um que sustente que os pré-requisitos um tipo de vida em aspectos da vida humana, que a tomam
para seu exercício de uma agência racional são bens necessá- distintivamente humana. P0ts isso seria repetir os erros da an-
rios está logicamente comprometido a sustentar também que tiga doutrina grega da função. Mas é, antes, dizer que a vida
ele tem um direito a esses bens. Mas está muito claro que a in- humana já dá testemunho c::-is exigências da razão. Sem alguma·
trodução do conceito de um direito precisa de uma justificação, aceitação pelos homens de tais exigências, sua vida seria inin-
por duas razões ao mesmo tempo: porque é, neste ponto, um teligível. Mas, dada a aceitação de tais exigências, eles estão
conceito inteiramente novo no argumento de Gewirth e por procedendo de uma maneira que é imprópria a satisfazê-los. O
causa do caráter especial do conceito de direito. Antes de mais interesse pela verdade está inscrito na vida humana.") R. S.
nada, está claro que a pretensão de que tenho um direito a fa- Peters, Education and the education of teachers (Eaucação e a
zer ou ter alguma coisa é uma pretensão de tipo muito dife- Educação de Professores), Londres 1977, 104 s.
rente da pretensão de que preciso ou quero ou estou determi- 84. Th. A. McCarthy formulou essa questão de maneira muit-o
nado a ser beneficiado por algo. Da primeira - se ela é a única aguda in: W. Oelmüller (org.), Transzenientalphilosophische
consideração relevante - segue-se que os outros não devem Normenbegründungen (Fundamentações Transcendental-Filo-
interferir com minhas tentativas de fazer ou ter qualquer coisa sóficas de Normas) 1979, 134 ss.
que seja, não importa se é para o meu bem ou não. Da segun- 85. Habermas 1981, vol. 2, 212 ss.
da, isso não se segue. E não faz nenhuma diferença que espé- 86. A. Wellmer, Praktische Philosophie und Theorie der Gesells-
cie de bens ou benefícios está em causa."). chaft (Filosofia Prática e Teoria da Sociedade), Konstanz
82. Habermas 1981, vol. l, cap. I e III. Cf. S~. K. White, On the 1979, 40 s. .
Normative Structure of Action (Sobre a Estrutura Normativa 87. Referi-mo aqui ao conceito de "aprendizado normativo", de-
da Ação), The Review of.Politics, 44, Abril 1982, 282 ss. senvolvido por Tugendhat, in: G. Frankenberg, U. Rõdel,
83. R. S. Peters tem, de resto, propagado semelhante estratégia de Von der Volkssouveranitãt zum Minderheitsschutz (Da Sobe-
análise em outros contextos: "To say ... that men oughfto rely rania do Povo à Proteção das Minorias), Frankfurt 1981.

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