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conseguin enganchar a folia, e como de costume, os cantadores tiveram que sair, fazer um circulo e rezar para liberar a alma do falecido folio, visivelmente apegada aos desejos terrenos. Para no me limitar apenas aos exemplos contidos em Folias de Reis, quero terminar os exemplos etnogrificos dos apetites do sentir com o relato de um imperador de outro tipo de grupo: 0 ‘Terno dos ‘Temerosos. Em Januéria existem formas particulares de distinguir as agremiagses populares. A primeira distingio é entre Térno e Reis, sendo o primeiro grupos liderados por mulheres - como 0 Terno das Ciganas, Terno das Pastorinhas ¢ Terno das Lavadeiras - e 0 segundo grupos liderados por homens - como o Reis dos Figueiredos, Reis de Bois e Reis de Cacetes. Outta distingio importante € aquela entre os segmentos da macrocategoria Reis. Asim, chamam um terno de folia tradicional de Reis de Caixa, em razio do carter distintivo do instrumento percussivo ser um elemento diferencial; ha também o Reis de Bois, relative aos grupos que realizam a tradicional e folclérica expressio cultural do bumba-meu-boi; 0 Reis dos Cacetes, que, como instrumento percussivo € performitico, se utilizam dos cacetes, cilindricos bastées de madeira. Curiosamente, 0 Terno dos Temerosos, historicamente liderado por homens”, pertence a este tiltimo grupo, mas também por uma razio histérica: em seu principio o grupo tinha uma presenga massiva de mulheres em suas fileiras. Embora atualmente o terno seja composto em sua maioria por homens, os Temerosos continuam recebendo sua denominagio de Terno. Seu mito de origem remete ao conflito entre ibéricos € mouros nos tempos que antecederam as grandes navegagdes. As populagées crists menos afortunadas nao dispunham de armas sofisticadas para enfrentar os mouros, € em razdo disso, integravam as fileiras da batalha com os bastées artesanais de madeira. Essas populagdes mais pobres viviam no litoral € era composta especialmente por pescadores ¢ marujos, € por isso, essas agremiagbes reproduzem vestimentas ambientadas neste imagindrio. Assim como entre os ibéricos, sempre houve um claro marcador de classe entre os integrantes dos Temerosos, que em sua origem eram também pescadores da estigmatizada “Rua de Baixo”, que se conformou historicamente como um local % Joo Damascena, atual imperador dos Témerosos, me listou todos seus antecessores: Luizinho das Mangueiras, Adalberto, Albino, Chico Doce do Céco e Berto Preto. 43 de refiigio para libertos da escravidio”, o que também evidencia o marcador racial. Pelo vinculo ‘com as Aguas, os Terno dos Temerosos se apresenta como uma “marujadas”, mas diferente das tradicionais litorineas, as quais Camara Cascudo (1954, p. 390) define como 0 nome dado aos bailes ruisticos ¢ as festas matutas e regionais da beira-mar, os Témerosos, por suas particularidades regionais, e pela distincia considervel do mar, é uma “marujada de agua doce”. © também folclorista Renato Almeida (1942, p. 206) realga outra face que pode explicar a associagdo destas agremiagdes com a estética maruja, a saber, as “histérias tragico-cémicas das rnaus perdidas ao acaso das ondas, na cavalaria dos oceanos, (..) onde a bravura ¢ © penar dos marujos sdo evocados com emotiva simplicidade”. Além dos instrumentos percussivos, Pedro Almeida, pesquisador e marujo dos ‘Temerosos, me conta que hé outra distingio nitida entre as tradicionais Folias de Reis e 0 seu terno: “ao passo que os Reis de Caixa parte do sagrado e vdo para o profano, os Temerosos partem do profano e vai para o sagrado”. A distingao sagrado/profano, extensiva nas ciéncias sociais (cf. Eliade, 2001), embora nao to disseminada entre os sujeitos, parece bastante pertinente aos, integrantes dos Temerosos, ¢ Joio Damascena, atual imperador do terno, atribui as rezas e cantos, solenes o sagrado; jé as contra-dangas e festividades, sua face profana, No entanto, 0 profano nao estd isento do sagrado, ao contrério, coexistem e se interligam. “Normalmente todas as coisas que liga a parte profana & sagrada, os batuques, as folias de caixa, os $0 Gongalo, os Reisados, essas promessas todas que se faz ppra quem ji passou deve sim guardar toda essa ceriménia ¢ este respeito, porque sendo,jé teve caso de fazer mal feito ca pessoa volta pra cobrar de novo, a pedir de novo, porque falou que nio valeu a promessa, que nio foi executada como pediu, que nao se pagou, que nfo se dangou os niimeros de roda, os dobrados, as voltas, nfo foram bem desenvolvidas”. (Joso Damascena, Januéria, ‘XX/XX) ® Conta Edilberto Fonseca que, provavelmente, “a concentrasio de uma populasio significativamente negra na regido da Rua de Baixo tenha se dado em Fangio também das oportunidades de sobrevivéncia que 0 rio oferecia aos escravos recém libertos (..) Como nao possufam terras, seria mais ficil para eles constituirem comunidades & beira rio, dele tirando a sobrevivéncia por meio de oficios e atividades que tinham como principal referéncia, fossem como pescadores, barqueiros, remeiros, peixeiros ou vazanteiros” (F. Fonseca, 2009, p.108). 44 “A pessoa volta pra cobrar de novo” justamente por esses apetites da sensibilidade. O préprio Damascena me contou uma série de histérias de aparigGes em sonhos de promesseiros, que no haviam cumprido com suas obrigagSes em vida. Também, foi justamente o atual imperador do Terno dos ‘Temerosos quem me ensinou que os Imperadores ¢ Imperadoras, em suma, os responsiveis por suas Folias, possuem um atributo adicional em relagio aos demais: “a capacidade de terem certo trdmite entre esse mundo eo outro, entre os vivas e as mortos”. Por estar diante de um Imperador, ou seja, diante de alguém capaz de ter este tramite entre vivos e mortos, € de se imaginar que eu tentaria explorar as experiéncias de Damascena entre este mundo € 0 outro. A principal delas, ele me conta, se relaciona ao apetite do sentir: a presenga de Berto Preto, o marujo fundador do Terno, sempre é nitida quando Damascena sai com seus marujos. “A. presenga do Berto fica muito vistvel assim pra mim quando a gente ti realmente na folia de janeiro, no tempo da folia (..) Ele era realmente rigoroso. © Berto, eu sentia muito ele quando a gente dangava na porta da casa dele quando a vitiva dele era viva, Na primeira noite eu safa na rua de baixo a primeira casa que eu dangava era na frente da casa da viva do Berto Preto” (Joi Damascena, Janusria, XX, XX). Seu vinculo com Berto sempre foi especial. Quando crianga, Imperador primeiro no permitia que criangas dangassem junto aos adultos. No entanto, o rigoroso lider sempre permitiu a participagao do joven Damasceno, ¢ um dia até disse a seu pai “ndo, Josefino, o Joao é um menino diferente, 0 Jodo é um menino homem, o Jodo é um menino que sabe comportar”. Com a morte de Berto Preto, outros Imperadores assumiram o terno, mas Jodo sabia que chegaria a sua vez, HA XX anos, Damasceno, jé adulto, & 0 responsavel pelos Temerosos, sempre que sai em janeiro - no “tempo das folias” -, 0 novo Imperador sente a presenga do antigo. Mas nao um sentir metaférico, em pensamentos ou alusées. Néo: “a presenga do Berto _fica muito visivel”. O “sentir”, uma sensibilidade distante, abstrata, torna-se mais tatil, afinal, ele passa a ser “visto”. A presenga de Berto adquire nitide7, ou seja, se converte & qualidade do que é claro, transparente. Adicionado ao ato de dangar na casa da vitiva do Berto, momento em que as lembrangas ¢ intimidades sio acionadas, também pelo vinculo estabelecido com a familia do morto, 0 carter tétil do sentir, por mais ambiguo que isso parega, ¢ agravado. 45 “Ble aceitava quem quisesse acompanhar folia, mas a primeira coisa que ele cobrava era ‘otha olha como comporta, otha olha como comporta, porque isso aqui ndo € coisa de bagunga, isso aqui eu t6 fazendo pra Deus’ (Jodo Damascena, Janusria, XXX). Jodo sempre soube que a atribuigéo herdada exigia responsabilidades, e por isso se recordava com frequéncia do rigor de seu predecessor diante das exigéncias e da face sagrada da Folia, mesmo diante dos momentos mais profanos. As oragées que antecedem a saida do terno, que tive oportunidade de acompanhar, é sucedido de um sermao de Damascena, no qual cle recorda quem sao aqueles jovens, de onde vieram, a onde pertencem, qual o histérico do grupo, ¢ os estigmas que sofreram, assim como os libertos da “Rua de Baixo”, assim como os ibéricos pobres que guerrearam. Na condigao de um Imperador capaz de tramite entre vivos ¢ mortos, é também neste momento, em que Damascena repete o rito de Berto, que ele novamente sente a presenga de seu predecessor. “A presenga dele ali era visivel assim pra mim, parece que na hora que eu tava falando para os meninos, dando os aconsethamentos, era como se eu tivesse ouyindo ele, como ele falava com a gente quando eu era menino, ‘olha o comportamento, olha que a gente ta indo pro centro, olha que tem gente que fica olhando para nés, nds somos da periferia, nés somos negros, essa coisa toda’ E ainda hoje é como se cle estivesse ali, eu sinto que cle esta ali” (Joao Damascena, Janudria, XX) De certo modo, Berto Preto ainda interfere em seu antigo terno para garantir 0 comportamento adequado dos marujos, e diferentemente dos folides antigos de So Romio, nfo precisam soprar o ouvido daqueles que tém sono para lembrar de seus compromissos, deveres € obrigagées. £ um pouco mais sutil, mas néo deixa de marcar presenga. A dimensao do sentir nas sensibilidades entre vivos e mortos pode assumir formas diferentes, mas a alma do morto, 20 agir sobre os vivos, sempre tem algo a dizer - entenda este verbo em seu sentido metafrico ou literal. Também dizem os vivos, ou melhor, cantam. E ainda que em Agua doce, no profundo interior do sertio, os marujos do Sdo Francisco anualmente retornam 4 “Rua de Baixo”, como os pescadores negros que ali viviam, seus ancestrais, e dangam com seus corpos se seus bastdes, € no ritmo percusivo que emana das madeiras em colisio, cantarolam, a uma s6 vor, que 46 Quem me ensinou a nadar Quem me ensinou a nadar Foi, foi marinheiro Foi os peixinbos do mar Foi, foi marinheiro Foi os peixinos do mar 47

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