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© Copyright 2016 Os organizadores © Copyright 2016 Letra e Voz ‘Todos os direitos desta edigho reservados § Letra e Vox aga, seinpresto@7 HISTORIA F Letra € Voz Sumario Rua Dr. Joao Ferraz, 67 Consetho editorial Sio Paulo — SP ~ 03059-040 el Daphne Patai (UMass Amherst) pai calieseehenrery Fernando Luiz Cassio (UFABC) letraevoz@gmail.com Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL) > 4 Gerardo Necoechea Gracia (INAH) reparagdo de originaise revisio iircia Ramon de'Otivcica (Odes cpsnoreaee es Marcia Ramos de Olivera (dese) lark ance Marilda Aparecida de Menezes (UFCG) ‘M@nica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM) Rdeczo 11 Diagramagio e capa Ricardo Santhiago (Unicamp) ears a: srnaiorxiacs Richard Céndida Smith (UC Berkeley) So PARTE I - HISTE Deas palavras. 1 Alguns comenti Ricardo Santhiag O conceito de pt Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagao (CIP) Historia piblica no Brasil: Sentidosetineririos / Ana Maria Mauad, Juniele Rabslo de Almeida, Ricardo Santhiago, (rganizador) ~ Sto Paulo Letra ¢ Vor 2016 978-95-69959-2-4 1. Hsin piblia 2. Membria - Aspectos Socais 1 Mauad, Ana Maria. I ‘Almeida, Joniele Rabela de. IL Santhingo, Ricardo Dp 908 Indices para catalogo sistemtico: 1. Histéeia pablica = 909 Ricardo Santhiago DUAS PALAVRAS, MUITOS SIGNIFICADOS Alguns comentarios sobre a historia piblica no Brasil “Um espectro esti rondando os corredores da academia’, escreveu Alessandro Portel diversita della storia orale” A popularidade que esse ensaio hoje canénico adquiriu ~ traduzido para uma série de idiomas e incessantemente reedi- tado ~ sugere que nao apenas na Italia, como também em outras paisagens i, na virada dos anos 1970 para os anos 1980, em “Sulla intelectuais, a pratica a que 0 autor se refere, a histéria oral, era tida como um fantasma ameacador, pronto para conspurcar tradigdes consagradas € tentar mentes cautelosas. Os dias em que a histéria oral era detestada ¢ excomungada parecem re- motos (Com o aparecimento do gravador, um monstro com o apetite de uma ténia, nbs temos hoje, através de sua criatura, a hist6ria oral, uma sobrevi- véncia artificial de trivialidades, em proporgao alarmante’, escreveu Barbara Tuchman, em 1972). A hist6ria pablica, sua prima-irma, no foi contudo igualmente abencoada. Seja como uma simples expresso de identificagao profissional ou como referéncia a um movimento de facto, a jungao dessas duas palavras tem sido vista, pelo menos em nosso pais, com suspeita e apre- ensio - ou ao menos com uma dose equivalente de precaucao e entusiasmo. Esta é uma situago que vem se alterando rapidamente. Ha dez ou quin- ze anos, digamos, a expressio “hist6ria piiblica” era praticamente desco- nhecida no Brasil ~ embora ja houvesse histéria piiblica onde quer que se olhasse. Quem sabe essa expresso aludiria historia das instituigdes pblicas, a historia feita a partir de arquivos publicos, 4 maneira como 0 piblico leigo compreende a histéria... Hoje, 0s problemas sao, sobretu- do, da ordem da indefinicao e da controvérsia; dificilmente da ignorancia, 10 texto fo publica pla primeira ver na ein So oer uo «wm spud (em 2981) em nalts no ory ‘Workshop our, como "On the Feats of Oral Histor. No Bra o ens fet publicado apenas em 197, ma revista Poets Hira. como tno “O quer 8 sia orl ferent” (19970) 424 | HISTORIA POBLICA No BRASIL “Historia publica” jé se torou um rétulo cada vez mais popular em artigos, livros, encon- tros cientificos, debates, palestras, cursos. ‘Tao pouco familiar quanto o nome era a existéncia de estruturas institucionais dedica- das (ou mesmo receptivas) a discutir a hist6ria publica: suas possibilidades e seus limites, suas forgas e suas fraquezas, suas técnicas e suas implicacbes tedricas. Esta 6, também, uma situacdo superada: esta instalado um espaco de diélogo vigoroso e interdisciplinar ~ entronizado no campo da Histéria, mas ramificado para outras areas, como a Educacio, as Comunicagées, os Estudos do Patriménio (sem falar nas dreas “publicas’: Sociologia Piablica, Antropologia Piblica, e, talvez mais notavelmente, a Arte Piblica). E um espaco de agregacdo que, por outro Jado, precisa lidar com sua contraface: todo um legado extenso, ‘mas fragmentado, de empreendimentos passiveis de serem abracados pela histéria péblica. Estudei ¢ continuo estudando o desenvolvimento da histéria oral no Brasil, dos anos 1950 aos dias de hoje, incluindo seu processo de institucionalizacao. Fazendo isso, compre- endi perfeitamente as muitas fungSes assumidas por um campo intelectual. Além das varias conexées entre as duas praticas, por sua natureza’, entendo que elas também se aproximem_ em um mesmo dilema: aquele que avalia as perdas e ganhos traduzidos por seus elementos de institucionalizago, Aqui, quero me aventurar em algumas observacGes iniciais (feitas no calor da hora, frise-se, e por um participante do “movimento”) sobre 0 caminho de institucionalizagao da historia piblica no Brasil, guiando-me fundamentalmente por duas perguntas, Primeiro: qual a utilidade do campo da histéria pablica no Brasil, se é que ele tem alguma? Segundo: quais sao as perspectivas e as expectativas institucionais projetadas sobre esse campo? UMA MOVIMENTACAO Pelo menos desde a emergéncia das midias, inimeros escritores, jomalistas, cineastas, ar- tistas e outros agentes tém enformado e difundido o verbo, 0 som e a imagem do passado para audiéncias nio académicas. Com o agucamento de demandas sociais por historia e memoria, a disseminagio de recursos tecnoldgicos e, por fim, a popularizacdo da internet, as formas adquiridas pelo chamado “espirito piblico da historia” se multiplicaram, pouco ou nada dependendo da instituicdo de um campo formalizado de debates. Em parte, isso é 0 que justifica frequentes desafios a utilidade desse campo. Nao é inco- ‘mum escutar questionamentos como: Por que dar um novo nome a uma velha pratica? A pri- 2 A respeito das cones entre histria plese hstria oral eee os easios“Palatas no Leo eno espa: A gravogo «| ‘de iti ora” (2011) ¢ “Hist ral histria plc: Museu, rox ea “alr das bordss™ (205). Verb os textes de Lins SS SS Ste Shoper e Miche esc, net volume MAUAD, ALMEIDA @ SANTHIAGO [ORG] | 25 meira coisa a se dizer é que essa ndo é uma insatisfacdo generalizada, Em reunides cientifi- cas, cursos e oficinas, é comum escutar frases como: “Eu sempre fiz historia piiblica, s6 no sabia o nome’; “Finalmente descobri 0 nome daquilo que eu faco". Se isso sinaliza para um entendimento nebuloso da complexidade da histéria pablica, também sugere quao podero- sa é a expressio, estimulando argumentos que transcendem o questionamento meramente terminologico. Trata-se de uma expresso vivaz, plastica, Ademais, quais seriam as alter- nativas? Hist6ria aplicada? Para-hist6ria? Historia paralela? Hist6ria amadora? [gualmente problematicos, nenhum desses nomes ~ ja efetivamente sugeridos, aqui e acoli - favorece mais do que “historia piblica” uma identificagio miitua nem o didlogo internacional esta- belecido sob essa rubrica. Na possibilidadle de denominagao a posteriori (alcunhar como “historia piblica” atividades sealizadas ha décadas no campo historiogrifico ou midistico, por exemplo), reside algo bas- ‘ante revelador daquilo que poderiamos entender como uma espécie de resisténcia ao encas- ‘s curso e contando com a colaboracio de outros autores convidados, “Talvez a principal Sto fruto de anilise, mas de juizos de valor marcados por uma redefini¢io valorativa > Sgnificado de historia publica. Juizos, em geral, metodologicamente mal conduzidos: ESsardo Bueno ¢ Leandro Narloch nao so os melhores exemplos, nem os exemplos mais specsentativos, de jomnalistas que tém produzido obras de cunho histérico; sao somente 30 | HISTORIA PUBLICA No BRASIL 05 jornalistas que melhor servem a esse fim deslegitimador. Nao é preciso enumerar uma, quantidade bastante grande de jornalistas ou “amadores” que ofereceram contribuigdes basilares para a historiografia da muisica popular brasileira, por exemplo ~ no contribui- des anedaticas nem memorialisticas, mas contribuigdes historiogrificas.” Fazer do debate “historiadores versus jornalistas” algo central para o campo da historia pablica nao apenas: estreita possibilidades de didlogo e fortifica muros corporativos como também consiste em ‘um empobrecimento enorme de uma discussio complexa. Existe outra maneira de enxergar isso. Bardouin Jurdant (2006), um divulgador cientifico da Université Paris 7, comega um ensaio de sua autoria citando uma frase do fisico Michel Crozon: “Divulgo para melhor compreender o que faco”. Tanto a frase quanto os insights a0, seu redor sao faseinantes: 0 que se ilumina é 0 exercicio autorreflexivo que essa pritica de divulgagio, de socializacao do conhecimento, demanda. A acio de “traducir” para o grand piblico corresponderia um desejavel efeito colateral: refletir seriamente sobre o que mante: ow exclu, sobre o quanto de background acrescentar, sobre a explicitagdo dos pressuposto que dentro de uma comunidade cientifica sio dados por certo ~ nao se traduz apenas li guagem, mas todo um quadro de referencias. ensaio de Jurdant me lembrou uma outra imagem: a da bissola. Uma das coisas mais perspicazes que jé se escreveu sobre a histéria oral foi a ideia da propria historia oral come uma “bassola’, como alguma coisa que funcionaria como um “laboratério epistemolgico” para o historiador, avivando problemas que nao so especificos das fontes orais, mas que atingem a pesquisa histérica como um todo. O sentido dessa imagem, trazida por Marie! de Moraes Ferreira (2002), é o de que a historia oral obrigaria 0 historiador a enfrentar cer tos problemas, impedindo-o de varré-los para debaixo do tapete. A histéria publica parec: ter uma fungio paralela, e seu campo também tem servido a uma funcio paralela: evil que a questo dos varios priblicos da histéria, que perpassa toda a atividade historiadora, ds pesquisa a escrita, fique encoberta."* Todos sabemos de cor que a pesquisa é uma atividade social; que s6 se realiza ple ‘mente quando comunicada, desde o projeto de pesquisa (primeiro elemento que “informe! a. uma comunidade cientifica a existéncia de um plano de investigaeo), passando pela so cializagao entre pares e chegando, enfim, & historia publica ou a outras priticas nas quai as distingdes entre agentes produtores e receptores so mais nitidas. Todos comunicame nossas pesquisas: a diferenca est no piiblico que queremos atingir e nos meios que em pregamos para fazer isso. O que vem acontecendo é que a circulagio da expresstio “hist6ri piiblica” esta suscitando que praticas e reflexdes anteriores sejam revistas & luz desse con ceito; que a preocupagao com a publicizagdo de resultados de pesquisa passe a constar ‘maneira programada da agenda de umn mimero maior de historiadores. Em suma, a hist6r= 10 Jot Goal Vin de Moraes fe isa no adirvel(ereconfortante) artigo “Os prteieshstorodoes da msica popula urto= so Bras” 206) 11 Uma image coreata¢ oer por Linda Shapes, em artigo public neste volume a hstria ora cmo um esp de pre: «hist pbi ~ wm “stra bla a dis MAUAD, ALMEIDA & SANTIAGO [ORG] | 31 piiblica foi colocada em pauta; tem se organizado, também, como um espaco de debates que precisa de tempo para ser apropriadamente dimensionado ~ mas que ja tem estruturas visiveis e resultados sélidos. Diante disso, quais seriam as perspectivas para a historia publica feita no Brasil? A partir do momento em que o campo ja esti relativamente estruturado em plano doméstico, qual seria o proximo passo possivel? Talvez, como jé coloquei, a internacionalizagao ~ de- liciosamente sedutora (especialmente quando garante, com facilidade, 0 cumprimento de certas expectativas), mas que talvez deva ser vista com cautela. AINTERNACIONALIZAGAO E SEUS PROBLEMAS HA pouco mais de 20 anos, uma conferéncia internacional de histéria oral na Columbia University (a primeira, entre varias, acontecida fora da Europa), em 1994, foi a primeira a contar com uma participagio massiva de pesquisadores brasileiros. Trata-se de um evento extremamente significativo dentro da historia da hist6ria oral brasileira, por marcar a inser- 20 decisiva dessa comunidade de praticantes e de pensadores no panorama internacional. Desde entio, a historia oral brasileira vem se internacionalizando progressivamente; minha pergunta, a esse respeito, é: por que a internacionalizagao “intelectual”, digamos assim, nao foi tGo robusta quanto a intemacionalizagdo “politica"?? Lé, minha reivindicagdo é por ‘mais internacionalizagio. Aqui, minha reivindicagdo é por menos ~ ou, melhor dizendo, por ‘uma internacionalizac3o com cautela. Ja estamos plenamente internacionalizados no que iz respeito ao nosso pensamento: temos um pluralismo epistemol6gico muito grande que ‘nos permite aprender e apreender a partir de diversos quadros de referéncia ~ podemos até snesmo incorporar perspectivas pés-coloniais sem denegar tudo aquilo que haviamos ab- sorvido antes de elas chegarem, Carecemos, apenas, de uma internacionalizacio estratégi- a, que permita & producdo intelectual brasileira ocupar um lugar de relevancia no circuito de distribuigao internacional do conhecimento. Vale a pena perseguir esse raciocinio comparando o desenvolvimento politico ¢ institu- ional das reas da histéria oral e da histéria piblica, no Brasil e nos Estados Unidos. Em +1994, quando a hist6ria oral brasileira se apresentou como um coletivo para a comunidade internacional, essa comunidade intemacional jé existia. Havia revistas, conferéncias, livros — no apenas em inglés, mas efetivamente internacionais. [sso era possivel em funcao de corganizacdes locais, ou nacionais, ou mesmo continentais, prévias, que fizeram com que +2 Associacdo Internacional de Histéria Oral (IOHLA) fosse criada ¢ pudesse se consolidar ~ diante de muitos questionamentos, naturalmente, mas dentre os quais nao estava sua precipitagdo, Isso ofereceu uma retaguarda institucional importante para legitimar a IOHA, Jevando até ela as figuras mais atuantes no campo. Mesmo que tenham ocorrido estranha- mentos entre correntes de trabalho, inevitaveis conflitos de geracio, disputas interconti- "Sobre osgieads deste event para a comunidae baneir de histo orl ver Santingo Core 2013) 32 | HISTORIA PUBLICA NO BRASIL nnentais, a legitimidade da instituigio nao ficou na berlinda: tendo prezado seu passado, ten- do feito gestos de reconhecimento ao legado que assumia, a associacio tornow-se (¢ ainda 8) um lugar reconhecivel para os praticantes de hist6ria oral em nivel mundial No caso da historia piiblica, ainda hoje nao existe uma comunidade internacional forma: da. Essa seria uma oportunidade fantastica para empreendermos aquele didlogo intelectual criativo, cosmopolita, do jeito que achamos que deveria ser: nd como “inser¢o", mas com “participagdo” na elaboragio de um mesmo produto, Mas entio por que a cautela? Be porque somos de certa forma carentes de pares. A historia publica nio é a historia or. no sentido de que é muito menos organizada, menos institucionalizada, menos comunic da. Existe uma instituigdo extremamente ativa nos Estados Unidos, é verdade: o Natio Council on Public History, que organiza congressos anuais e publica o The Public Historta tum dos dois periédicos relevantes da area, Mas a organizacao em tomo da hist6ria pébls ca, em nivel local, parece ainda muito frigil. Na Australia, o Australian Centre for Publi History é efetivamente um nicleo de pesquisa dentro de uma universidade ~ mas alean Public History Review ¢ pela reputac certa articulagio nacional por publicar o periédico que Paula Hamilton Paul Ashton angariaram no exterior. Nos outros paises ja versados public history ~ Canada ¢ Inglaterra ~ as experiéneias so pulverizadas. Da América Lat pouco se sabe ~ mas, seguramente, 0 Brasil esta na dianteira em termos institucionais. Uma movimentagio recente, entretanto, sinaliza para uma articulacao internacio! ‘Trata-se da Federaco Internacional de Histéria Pablica, fundada em agosto de 2010 ( cialmente como parte do International Congress of Historical Sciences), apés um ano trabalhos preparat6rios (Noiret 2011; Jones, 2010), estimulados pelo principal articulador, movimento, o italiano Serge Noiret, a partir de sua percep¢o de que faltava 4 Europa. pt meiramente, e depois a0 mundo, uma “tradi¢ao disciplinar” de historia publica tao sedime tada quanto a americana. Em principio, somos informados de que “o propésito da Federas a prt & 0 de estimular, promover e coordenar ~ em nivel internacional -, a pesquisa, eo ensino em historia piblica’. Mas é dificil entender como isso pode acontecer se como um desdobramento organico do florescimento institucional de redes locais, regio e nacionais, Também, embora “estimular” e “promover” possam ser tarefas atribuidas a ciedades cientificas, nesse caso especifico seria bem vinda uma sensibilidade historica q antes de qualquer coisa, se ocupasse em reconhecer as experiéncias ¢ reflexBes; as tradic disciplinares e interdisciplinares (¢ as indisciplinadas, também); as instineias de aprecia: hh décadas, em intimeros paises ~ antes de desejar “coordené-las” € crivo, que existem indo for esse 0 caso, estaremos condenados a ver repetidas (e, em tiltima instancia, a repe colocagées como a de Noiret (2014): “Mas por que a Rede (Brasileira de Historia Pablice uma rede federal descentralizada de historiadores pertencentes a diferentes universidac= ‘usa termo ‘internacional’ para uma conferéncia sobre histéria publica brasileira?”. E d: “= saps = perguntar se a Federagio que o autor dirige tem precedéncia sobre 0 uso do termo. moma 2 MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO [ORG] | 33 4 histéria piblica ~ no é dificil perceber - tem se conformado de diferentes maneiras ‘es paisagens nacionais e institucionais, maneiras que podem acabar sendo negli- no afa de se divulgar e instalar uma perspectiva (uma perspectiva entre muitas ‘nunca é demais repetir) sobre essa pritica. Embora nao lance mio de documen- ‘eSiciais e coletivamente deliberados, a Federagio, por exemplo, insiste em promover a publica como uma “disciplina’, com um tipo especifico de “formagao” que traré a == novo “profissional”. Nesse sentido, um texto que Marcello Ravveduto publicou re- as discussdes ocorridas em uma mesa redonda sob sua coordenagao, realizada na idade de Salerno, em 2013, ¢ instrutivo (o texto, frise-se, nao representa a Federacio, se aproxima de suas ideias; o presidente da mesma, Serge Noiret, alids, participou da redonda). Do relato de Ravveduto, trés argumentos inflamados ~ recorrentes no discurso de in- malizago que a Federacao leva a cabo, cujo corolério é a autonomia disciplinar da ig publica ~ parecem preocupantes. Primeiro, uma espécie de reivindicagao exclusi- a do controle sobre as representacdes populares do passado, o que socobra a prépria ° ‘cdo inicial de amplos segmentos da histéria publica, que emergiram do questiona- a de monop3lios sobre a interpretacao histérica (Por exemplo, Ravveduto assume que a Sscussio sobre “histéria publica digital” tem um papel fundamental “para evitar que 0 ==po da comunicacdo online se submeta ao dominio de historiadores caseiros [improvvi- 1 | ==]. atribuindo, assim, ao public historian, a tarefa de realizar uma ‘gramitica hist6rica’ Z ‘S52 2 geracio dos ‘nativos digitais”). Segundo, a ideia de que esse campo possuiria suas 5 ‘Peeprias categorias profissionais. Sabemos que a expresso “historiador puiblico” é recor- b ==stemente colocada em questo ~ e, a meu ver, sua serventia maior consista em prover = atalho linguistico, embora eu mesmo prefira falar em “praticantes de histéria pablica”, == contempla as possibilidades diferentes, e mutaveis, de engajamento com essa pritica 2x2 Ravveduto, porém, nao s6 0 papel de public historian (como “um profissional que lida ‘som piblicos heterogéncos interessados tanto na historia quanto na meméria’) é aceitivel ‘somo, segundo ele, a conjugacio da pratica da histéria com o saber cientifico poderia ge- ‘== novas especialidades profissionais: “passadores de historia’, “mediadores da memoria ‘“passatori di storia’, “mediatori della memoria’). Terceiro, a reivindicagao de uma formago specifica para o “historiador piblico”, sob a forma de queixas sua inexisténcia. Jé se dis- © | catiu muito sobre o significa “formar para a histéria publica’, e essa complexa problemati- 38 | acto deveria nos impedir de dizer, sem compromissos maiores, que ha uma deficiéncia - ou ‘© | gue 0s “historiadores puiblicos” possuiriam um “método” particular e caracteristico para se | “passar” historia e meméria a piiblicos “heterogéneos”, nitidamente distinto daquele dos 1) | “Bistoriadores nao publicos” ou de outros profissionais que atuam na area, 1. Se visbes particulares sobre a historia piblica (informadas por insergées institucionais, ‘tradigdes intelectuais, predilecdes pessoais, ou o que quer que seja) tornam-se instrumen- 3¢ tos reguladores, ou ao menos caracterizadores, de associagSes profissionais, até mesmo a possibilidade de que diferentes visdes se conflitem e disputem preponderancia pode ficar 34 | HISTORIA PUBLICA No BRASIL debilitada, Soma-se a isso a divida ja levantada: em que medida pode ser bem-sucedido um movimento institucional que nao se constitui a partir do legado intelectual do campo em, cujo nome fala? Eventos bem organizados, realizados periodicamente, em diferentes paises fe continentes, com ampla representatividade geografica, podem significar muito pouco, como 16s ji subiamos e como as fake academic conferences tém relorgaco. A internacional zacdo no é um valor em si e, no caso da histéria pablica, parece que ela s6 teria valor se compreendesse (em tudo o que a palavra sugere) 0s individuos que tém efetivamente (0 neado esse tertitério pelo menos pelas iltimas cinco décadas; se izesse pequenos gestos de teconhecimento a esse trabalho. Nao se trata da presenga destes individuos, mas do fato de que a presenga deles denotara uma cultura de hist6ria piblica mais generosa, mais elistcs. ainda irreconhecivel nas articulagdes internacionais do momento. Contribuigées significativas a literatura internacional podem ser oferecidas por nossa produgio ~ de modo geral,extremamente articulada a debates teéricos e metodolégicos correntes, € a0 mesmo tempo informada por uma pratica original e desafiadora, ao passo) em que grande parte da producéo estrangeira consiste em relatos de experiéncia (muitas vezes trabalhos meramente descritivos) ou em teorizagdo de cunho mais abstrato. Os bons, trabalhos de historia publica produzidos em nosso pais conseguem mesclar as duas tem reflexes menos impressionistas que as empreendidas por virios de nossos pares. les possuem, também, uma inclinagio interessante para a des crigao analitica do processo de construgio do conhecimento hist6rieo, partindo da préprs constituicao de seus assuntos como objetos de pesquisa. Some-se a isso a dimensdio que campo de debates da histéria piblica rapidamente adquiriu em nosso pais, ¢ 0 resul. sera a percepedo de que estamos em posicio de avaliar as possibilidades de internacio zagio que se apresentam. déncias, propondo ilagdes, conexdes, CONCLUINI Nao canso de repetir uma frase que David King Dunaway me disse em uma entrevista q gravamos alguns anos atris: ‘A historia pablica é a institucionalizagio de um espirito que muitos historiadores tém tido, por milhares de anos", Um comentario muito apropriads porque lembra que 0 impulso de aproximar a historia e seus piblicos é antigo e duradours ¢ porque insinua que esse impulso adquiriu feigbes diferentes no curso do tempo ¢ tambe= no espaco. No Brasil, ao que parece, o ainda jovem movimento de “institucionalizagao” tem feito j= a0 “espitito’, Primeiro, reconhecendo seu proprio passado, celebrando ¢ problematizan= ¢9 tantos trabalhos de valor que tém sido produzidos por décadas longe de sua aleunha, m= muito perto de sua inspiraglo. Segundo, nao se enclausurando nem se convertendo em ur corporagio de “historiadores piblicos"; pelo contrario, abrindo-se para a multidiseipl MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO [ORG] | 95 ‘= para o trabalho colaborativo, com tantos agentes que tém a historia e o piblico em de interesses. Terceiro, voltando-se ao local, ao regional, ao nacional ~ a historia, do Brasil, enfim - sem renegar o que aprendeu e pode aprender com tantas experi ‘quanto for possivel, em tantos idiomas quanto for vidvel. dos desafios que 0 campo enfrentaré no futuro sio, de certa forma, universais: ‘enfrentados pelas varias “historias pablicas” nas diferentes paisagens em que ela se ju. Outros sdo desafios de uma segunda ordem: os desafios bem brasileiros ligados & “a de nosso pais, & historia de nossas instituicdes de conhecimento, & Historia enquan- ‘plina e campo intelectual aqui estabelecido, as nossas concepcdes de publico, de pablico, de universidade pablica (e gratuita), de intelectual piblico. Cosmopolita ou fagica, libertéria ou inventiva, arrojada ou independente - defina-se como quiser, ‘historia publica tera mais chances de sucesso se descartar o facil apelo a binarismos e ar seu frescor, aquele que, nos iiltimos anos, tem levado tantas pessoas a repetir, ‘participes de um mesmo espiito piblico: “Finalmente encontrei um nome para o que ‘para o que quero fazer”. a s > s s aT eo YT

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