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Algumas coordenadas de leitura de A interpretacdo dos sonhos Renata Udler Cromberg+ CO inicio do primeiro paragrafo do capitulo I de A interpretagao dos sonhos (Freud, 1900), é daqueles textos de Freud que nao falam s6 do que est4 por vir em seguida. Falam também do préprio estado de espirito de Freud, dos obstaculos que teve que enfrentar, nos convidam a enfrentar dilemas mais amplos que se colocam para ele em relacdo a criagao do campo psicanalitico. Quando por uma “angousta garganta” desembocamos, de repente, em uma altura da qual partem diversos caminhos ¢ a partir da qual nos oferece um panorama variado em distintas diregdes, haveremos de nos deter um momento e meditar até onde devemos voltar primeiro os nossos olhos. Analogamente nos sucede agora, depois de levar ao fim a primeira interpretagao onfrica. Mantenho a tradugao em espanhol, “angousta garganta”, que em portugués é substitufda por estreito desfiladeiro, pois ela alude a angistia e a garganta de Irma pela qual Freud acabou de passar, examinando-a, no capitulo IL, ao interpretar 0 sonho princeps da psicanilise. Mas, a0 ultrapassd-la, ele esté no cume do qual se avista um variado panorama. Para mim, esta imagem geografica traduz Freud no dpice de seu espléndido isolamento, prestes a se desfazer com a prdpria escritura € ¥Pelcanalista. Membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae. Digitalizada com CamScanner Freud: Um ciclo de leituras 14 publicacdo de A interpretagdo dos sonhos. Este espléndido isolamento, centro de sua neurose, centro de sua andlise, € 0 que se potencializa cebeu ter tocado 0 dedo em uma regio jamais explorada m, € que 0 levou a sero primetro 2 mapeéar este ‘terreno psiquico onde 0 sonho se dava, como, ele um dia disse a Flies. E assim que, apés estar mergulhado em um inferno intelectual”, como atestam suas cartas a Fliess, ele nos diz do envolvimento na luminosidade de um stbito descobrimento. O que nos diz ent4o? Primeiro,-o.que.o sonho ‘ndo 6. Nao é um som_inegular emitido_por_um_instrumento musical, provocado por um impulso cego de uma forga exterior, mas é som musical produzido pelas maos-de_um_ lisico. Estranha metéfora para quem nfo era 14 muito fa de miisica. Além disso, isto mesmo que ele nega ao sonho, seré totalmente revisto nos textos sobre sonho da década de 20 quando tem que se defrontar com o impulso cego, entrépico e produtor de caos das forgas exteriores-interiores que habitam regides mais obscuras que o campo das representagGes, que esto para além dele. Nada a estranhar, j4 que também na década de 20 a negacao seré uma primeira forma de admissao do inconsciente na consciéncia. Devemos entender o valor da andlise do sonho da injegao de Irma como uma espécie de porto que segurou Freud na hora da derrocada de todos os valores, quando ele diz na carta 69 (Freud, 1897) que ja nao cré na sua teoria da neurose, ou seja, na sua teoria de que o acontecimento de seducdo infantil que estaria na base da neurose posterior tivesse sido um acontecimento real. Nessa carta ele diz duas coisas importantes para colocd-lo no rumo de sua teoria sobre os sonhos. A primeira, de que no inconsciente.no_existe-signo_de_realidade, de : impossivel distinguir_a-verdade frente.a_uma_ficcdo afetivamente-carregada. Esta aberta, aqui, a via da distingdo entre realidade_psiquica_e_realidade_material.que_seré_um dos _pilares fundamentais da obra A_interpretagdo-dos-sonhos, por sua vez a obra fundamental deste novo campo que se constitui na aurora do século ia ae a ee A aoe é are derrocada geral de todos priineias aera : os Sonhos ae . amie afiangados e minhas gee OWT tae aan’ foe eee ee Lastima que no se ca viver no mundo Soe neemaee eee : ees greco-romano praticando a onirocricia, como Artemidoro de Dalcis que Freud cita no inicio do capitulo Il. Freud diré, numa nota, que © que diferencia a sua técnica quando ele per’ por homem algu' Digitalizada com CamScanner Mesai 15 da de Artemidoro é que enquanto este segue o principio da associagao, mas confia nas associagdes despertadas no interpretador para decifrar © sonho, ainda que leve em conta as circunstancias de cada sujeito, Freud_confia ao préprio sujeito_do_sonho_o trabalho de_interpretacio, 86 levando em conta 0 que ao mesmo ocorre sobre cada elemento onirico e nao ao que ao intérprete pudesse ocorrer. Mas Foucault (1985) nos mostra toda a riqueza do trabalho de Artemidoro. Para este, existem dois tipos de vis6es noturnas, Os sonhos enupnia (réve) € os sonhos oneiroi (songe). Os primeiros traduzem os afetos atuais do sujeito, aqueles que acompanham a alma em sua trajetéria (se se esté enamorado, deseja-se a presenga do objeto amado, sonha- se que ele est 14; se se estd privado de alimento, experimenta-se a necessidade de comer, sonha-se que esta se alimentando). Esta forma de sonho tem um valor diagnéstico simples; ela se estabelece na atualidade (do presente para o presente); ela manifesta para 0 sujeito que dorme o seu prdprio estado; traduz 0 que, na ordem do corpo, € falta ou excesso, € 0 que, na ordem da alma, € medo ou desejo. Diferentes séo os sonhos oneiroi. O oneiros € 0 que to on eirei, “o que diz o ser”; ele diz 0 que ja é, no encadeamento do tempo, e se produzird como acontecimento num futuro mais ou menos proximo. Ele também é 0 que age sobre a alma e que a excita-oreinei; 0 sonho modifica a alma, amolda-a e a modela; coloca-a em disposicées e provoca nela movimentos que correspondem ao que lhe € mostrado. Oneiros refere-se também a Iros, mendigo de ftaca, que levava as mensagens que lhe eram confiadas. Enupnion e oneiron se opdem termo a termo. O primeiro fala do individuo, 0 segundo dos acontecimentos do mundo; um deriva dos estados do corpo e da alma, 0 outro antecipa 0 desenrolar da cadeia do tempo; um manifesta 0 jogo do demais ou do demasiado pouco na ordem dos apetites e das aversdes, 0 outro assinala 4 alma e, ao mesmo tempo, a amolda. Por um lado, os sonhos de desejo dizem o real da alma em seu estado atual; por outro, os sonhos do ser dizem o futuro do acontecimento na ordem do mundo. No texto de Artemidoro nio existe um cédigo daquilo que convém ou nao fazer, mas ele é, segundo Foucault, o revelador de uma ética do sujeito que ainda existia correntemente na época de Artemidoro. : Sera esta ética do sujeito que Freud fara ressurgir a a radicalidade quando entrega ao proprio sujeito o papel de i eeciaiatida € ao intérprete o papel de uma escuta que é caixa de ressonancia, Digitalizada com CamScanner 16 Freud: Um ciclo de leituras que 0 desejo do intérprete no seja superado de forma alguma com, atesta a problemdtica sempre levantada do desejo do analista, neste bane sempre perigoso entre transferéncia, sugestéo e hipnose. Se podemos pensar que Freud traga 0 campo psicanalitico a partir do sonho, e 9 sonho neste campo, mais préximo ao primeiro tipo de sonhos de ‘Artemidoro, tanto a expresso “o umbigo do sonho” que ele coloca no limite deste campo, como as problematizagoes que fard a partir da nogao de Id introduzida na década de 20, apontam para o segundo tipo de sonhos de Artemidoro. Mas serao os autores p6s-freudianos que levario a frente a problemitica do tempo e da articulagao dos desejos transgeracionais em um mesmo sujeito que Freud enfatiza em um texto como “Sonho e telepatia”. Poderfamos brincar e dizer: “Que bom que Freud nao pode viver interpretando sonhos, pois isso 0 fard ir atrés de como 0 sonho € possivel e do porqué ele Ihe parece tao importante como manifestagao psiquica plena de sentido”. Nao nos esquegamos de que 0 sonho apareceu no meio da cadeia psiquica de seus pacientes, a partir da idéia patoldgica, e que foi isso que fez Freud comegar a interpreta-los. Mas € a partir dele que Freud inventard um aparelho de sonhar que se configuraré como 0 proprio aparelho psiquico. O sonho é um fendmeno psiquico acabado, uma realizagao de desejos, um ato compreensivel da nossa vida, fruto de uma atividade de pensamento complicada. Fa luz deste descobrimento que levar4 Freud a criar um aparelho psiquico que dé conta da produgaio do sonho e que acabard sendo 0 ponto de partida para a compreensdo de todas as manifestag6es psiquicas. Se 0 sonho nasce da complicagao e se Freud faz seu descobrimento neste “inferno intelectual”, como diz a Fliess, portanto, nesta complicagao, talvez possamos nos deter. A complicagio é esta palavra profunda com que os neoplaténicos, como aponta Deleuze (1987), designam o estado origindrio que precede todo © desenvolvimento, todo o desdobramento, toda a explicagéo. A complicagio conserva sempre a frescura de um comego de mundo e nio cessa de emitir signos primordiais, signos que o intérprete devera decifrar, interpretar. Se Procurarmos na vida alguma coisa que corresponda a situagdo. das esséncias originais, encontré-la-emos neste estado profundo que € 0 sono. Quem dorme mantém em cfrculo em torno de si 0 fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos, essa maravilhosa liberdade Digitalizada com CamScanner Mesa 1 17 que s6 cessa com 0 despertar, quando se € coagido a escolher segundo a ordem do tempo redesdobrado. © sonho e a descoberta do sonho como fendmeno psiquico, ambos se fazem como obra, 0 uno criado a partir deste turbilhao de multiplicidade de pensamentos, imagens, trajetos e tempos. Mezan (1982) aponta que a anterioridade de A interpretagdo dos sonhos em relagdo aos “Trés ensaios para uma teoria da sexualidade”, apés 0 descobrimento do papel da fantasia sexual infantil, se deve a uma escolha da vertente da produgio do inconsciente para decifrar 0 mecanismo da repressio. Escolha que se da porque a via de explorar a sexualidade nao era evidente, além de esta envolver uma faceta biolégica ainda muito obscura, e porque o inconsciente poderia nao ter a ver s6 com a esfera do sexual. Do lado da exploragao do inconsciente havia um método — 0 da livre associago — e um conceito — 0 de defesa —, que entendia os fenémenos psiquicos como resultado de uma transagdo permanente de forgas. Mas voltemos ao nosso pardgrafo do capitulo III de A interpretagao dos sonhos. Diz Freud: “Mas no mesmo instante em que comegamos a regozijar-nos de nosso descobrimento, vemo-nos sufocados por um actimulo de interrogagdes” (1900). A luz ira sempre transmutar-se em sombra, em brumas. E af vemos Freud levantar estas interrogacdes que siio os varios caminhos que se avistavam, mas que so também o plano da obra j4 que apontam para o contetido de cada um dos capitulos. capitulo 1, onde Freud: faré um exaustivo levantamento da literatura existente sobre os sonhos, foi escrito conjuntamente com 0 capitulo Vil. E sempre com espirito enfadado que o faz, como atestam alguns trechos de sua correspondéncia com Fliess: A literatura que estou lendo me reduziu a um estado de absoluta imbecilidade. Ler € um terrivel castigo imposto a qualquer um que pretenda escrever. Tira deste tudo de préprio a ponto que com freqiiéncia j4 nem me recordo o que ha de novo no que me proponho a expor, ainda que tudo seja novo. A leitura se estende interminavelmente ¢ até agora nao consigo ver seu fim. (Freud, 1898 - carta 100) Faltava um primeiro capitulo de introdugao a bibliografia que rose também julgou necessério, para facilitar a leitura do que seeue, eats capitulo estd escrito mas me custou muitos dissabores. A maioria Digitalizada com CamScanner x Freud: Um ciclo de Jeituras 18 leitores ficarao atrapalhados nestas redes ¢ nao poderao chegar a ver aBela Adormecida. (Freud, 1899 — carta 112) lo 1 é uma certa tolerancia com a bibliografia, os cientistas com um machado para fazer eud, 1899 — carta 114). d, do capitulo II a0 VI, é indutivo e empirico, los de sonhos que Freud vai induzindo nho. No capitulo 111, Freud mostra onho € realizagao de desejos para, A razio deste capitul 3 armar “se nao queremo: oe dre livro” (Fr lascas de meu po © método de Freu ou seja, € através dos exemp! iéias e conclusdes sobre 0 So! certas id i a a generalidade da afirmagao de que 0 st lestrinchar a forma deformada e absurda com que ele no capitulo IV, d Z , nos aparece. Desdobra af aexisténcia de um contet jo. manifesto_e de. um_contetido-latente-do-sonho_devido a existéncia dere psiquicos. diferentes-na.formagao do so 9 desejo. ea censura. Estes pertencem a instancias diferentes e € a primeira vez que Freud vai desmontar no texto a primazia da consciéncia como produtora de seus contetidos, passo fundamental para a desmontagem da questao filosdfica da primazia da Razao. Freud, no entanto, alertar4, em uma nota, quanto a inclinacao de considerar agora 0 conteiido latente mais importante do que 0 contetido manifesto, Dird que 0 sonho € os dois. A_deformagaio aracio_do afeto do sonho da representa: mantendo_afastada_a_representa¢: da_copsciéncia_pela_censura, por ela expressar um desejo que € ameacador para a instancia por ela representada. O afeto_do-sonho_ganha_outras _Tepresentagdes que é, portanto, fr _dissimulam_aidéia. A deformagio é, portanto, um meio de dissimulagao que.est4 a servico da intengao repressora. Portanto, no final desse capitulo, Freud ampliard sua primeira conclusao, dizendo que o sonho - eo a : fa | ae disfargada de um desejo reprimido. No capitulo v, Freud ee ard as fontes do sonho e seu material no recente, no indiferente, no int fantil, no somatico, nos sonhos tipicos relacionados a coordenadas eee obrigat6rias do ser humano, que aparecem desde logo nos ‘ pane et ise contetidos sexuais infantis, Em todo sonho pode se achar com os acontecimentos do dia imedi a lo di i Traumtag, dia do sonho. A partir daf, 0 sige dee? wi beda de qualquer época de nossa vida, por pried ae ae dos acontecimentos do dia do Seid an ial et se tae ‘0, as impressdes recentes, possam » através de ele : mentos eae Tecentes de maior ii intermedidrios, as j — valor psfquico, favorecendo a Gee impressGes i¢40 onirica. Digitalizada com CamScanner Mesa 1 19 No sonho podem emergir impresses de ee ee de nossa vida ee eo dispoe nossa memoria em vigilia, No sonho continua das quais nao dispo® Hots impulsos infantis. Isso se revela com tal vendo 2 ca oe elo com o infantil, 0 desejo de nossa primeira valor a Freud, one uma condigio essencial do sonhar. A formula eee rie 9 sonho é uma realizagio disfargada de um desejo agora 5S infantil e sexual. O sonho é também o guardido do repouso Pegaso ds dormir é a principal colaboragiio somatica com a formagio do sonho. i neste sentido que os estimulos nervosos externos e os soméaticos internos contribuem para a formagio do sonho. No capitulo vi, Freud investiga as relagdes entre as idéias latentes com as manifestas, mostrando os instrumentos de trabalho do sonho que conduzem & sua aparéncia deformada e que permitem também 0 trabalho inverso da interpretagdo. Sio eles 0 trabalho da condensagio, 0 processo do deslocamento, os meios de representagdo do sonho, a condigao de figurabilidade, a representagao simbélica, 0 trajeto dos afetos no sonho ea elaborag&o secundaria. O capitulo Vil é escrito de maneira hipotética e conjuntural, ou seja, langando mao de hipéteses sobre o aparelho psiquico que conduzam A compreensao de como é possivel a produgdo do fenédmeno onirico, onde o sonho passa a ser citado como exemplo, e nao mais como material de onde partiré a construgao. Esta mudanga de método ocorre porque Freud vai construindo o aparelho psfquico & medida que escreve o capitulo. Ele nao esté 14 para ser descrito; ele precisa ser construfdo. E por isso que esse capitulo é tao fascinante, mas também tio dificil, porque vamos construindo-o junto com Freud, 4 medida que o lemos. Mas mesmo nesse capitulo, a indugao nao é abandonada. Roustang nos chama a atengio de como Freud caminha com uma lentidao surpreendente, a mesma que se encontra em uma sesso de anélise. Freud nao pode fazer economia de um martelamento, de um exame minucioso e exaustivo, pois sua tinica demonstracaio possivel € a realizacdo de um percurso no qual todos os elementos dispontveis devem estar integrados sem que se perca qualquer etapa, de tal maneira que, onda apés onda, haja a erosiio do obstéculo, porque 0 mar nao pode usar da argumentagio vinda do continente. Freud nao deduz, a partir de um conceito bem estabelecido, um certo ntimero de consequéncias; ele pratica a arte da indugio progressiva pelo jogo das introdugdes Sucessivas. O estilo de Freud, nesse capitulo, faz exatamente 0 que ele Digitalizada com CamScanner 20 Freud: Um ciclo de leituras revela como processo caracteristico do sonho: nao responde as Objecdes de modo frontal; faz um desvio e desloca a atengaio do leitor para um outro problema. Um dos movimentos caracteristicos do estilo desse capitulo VII é alongar fiando, continuar fiando, juntar fiando. Freud Nada prova porque nao tem esta possibilidade, Porque provar, deduzir, demonstrar, “explicar significa reconduzir ao conhecimento e nao hg atualmente nenhum conhecimento psicolégico sob o qual possamos ordenar aquilo que se pode inferir, como fundamento explicativo, do exame psicolégico dos sonhos.” Portanto, Freud s6 poder induzir, aproximar, juntar, para finalmente estabelecer baldeacdes, como quem € obrigado a trocar de trem para ir a certo lugar. Poder-se-ia dizer também que ele troca de fio para melhor retomar o precedente, tecé- los em conjunto. O aparelho psiquico que Freud constréi no decorrer do capitulo VII é 0 préprio capitulo Vil. A escrita de Freud é a0 mesmo tempo uma deriva constante: 0 que surge de nao-desejado e uma comprovagaio constante — puxar 0 fio até a primeira articulagao légica. (Roustang, s/d.) Laplanche (1980) focaliza o capitulo VII de A interpretagdo dos sonhos como exemplo supremo de uma tépica. A psicologia que abre 0 titulo refere-se a uma psicologia geral e tedrica que Freud nao tardaré a chamar de metapsicologia, a sua feiticeira. Os dois pontos que interessam a ele nesse Ultimo capitulo referem-se a uma questao de contetido: 0 sonho € sempre uma realizagao de desejo e uma questao de forma, 0 sonho toma uma forma alucinatéria. O préprio desenhar sucessivo de trés formas do aparelho psiquico sao o testemunho de que Freud nao tem nada pronto sobre ele e nos convida a repetir, pela leitura, 0 percurso de sua construgdo, que é 0 percurso da escritura. No desenho que Freud vai construindo do aparelho psfquico, no item b desse capitulo, os lugares psfquicos vio sendo construfdos como Virtuais onde se formam imagens, como aquilo que est entre as lentes de um telesc6pio. Esses lugares so especializados e exteriores uns em relaco 40s outros, segundo 0 tipo de ligagdo interna que neles ee . as fazer com que as associagdes funcionem em cada dS orden ae perce Esses lugares se ordenam numa espécie sentido privilegiado queé ° nip iss ae rae a ere i a Para trds e € esse fancionainente-a;pri was oa Ee fimeionar Tegresstio. A regressio pressuy Oat Cun il uleeararac tn poe que a censura, que os limiares de Digitalizada com CamScanner Mesa 1 21 jlidade dessas barreiras ou dessas valvulas possa rte que o aparelho seja capaz de funcionar de outro modo; baixar, de a Fr outro modo, mas numa espécie de percurso muito ao ae a wuezague com numerosos “cotovelos”, diz Freud, com aA) rg 608 um esquema que ilustra exatamente 0 que ele eae esse percurso da formagio do sonho. Na formagao do sonho temos pensamentos da véspera(1), ses e raciocinios que esto, na maioria das vezes, no ponto de partida do sonho. Esses pensamentos e Preocupagies da véspera, que subsistem € continuam a funcionar atirante © sono, nao bastariam em absoluto para produzir um sonho, se nao fossem procurar algo com que estio em relagdo associativa € que se encontra ao nivel do inconsciente(2). Seguimos, portanto, um percurso regrediente: os restos diurnos vo procurar os pensamentos inconscientes, e é af que se situa a contribuigao energética, 0 essencial do desejo do sonho. Esses pensamentos inconscientes, diz. Freud, desejariam abrir caminho até a consciéncia e a motilidade(3), mas, durante o sonho, a motilidade esta, por definigao, posta fora do circuito. Nao ha saida possivel, a menos que se acorde, e justamente o sonho existe para conservar 0 sono e 0 repouso do corpo. Nao nos chocamos sequer contra uma barreira, mas contra uma espécie de inativagdo dessa extremidade(3). Portanto, um novo cotovelo, um retorno em diregiio da extremidade P perceptiva(4). E por este movimento profundamente regrediente, regressivo, que a percepgio se vé ativada e € 0 que pode fornecer uma explicagio para 0 carter alucinatério do sonho. Depois, uma vez reativadas certas percepges, certas imagens particularmente vivas (imagens geralmente visuais), temos ainda um retorno do lado do mais consciente, do mais racional(5) a que se pode dar o nome de elaboragéio secundaria. A partir de algumas imagens, provavelmente muito esparsas, produz-se ainda um tltimo trabalho, a elaboragao secundaria, que faz de tudo isso uma espécie de romance mais ou menos coerente, que somos capazes de relatar. (p. 161) Laplanche (1980) traz ainda uma contribuigao genial a este desenho de Freud ao propor o enrolamento do tanque. Ele nos propde primeiro tridimensionalizar este tanque e depois enrold-lo como um toro de madeira, oco. Esta sugestdo supera uma dificuldade apontada por Freud © segue uma sugest’o sua de uma nota de 1919, de levar em a que P=Cs, ou seja, que a consciéncia estava tanto em PB coe em CS, ho. © toro permite também Portanto, nas duas extremidades do aparel censura, a permeab eni preocupago Digitalizada com CamScanner @Q Freud: Um ciclo de leituras a representagdo de uma comunicagao reciproca entre um interior e exterior, com uma insergdo de P no corpo. um ¥ O sonho como paradigma da situagao analitica A partir desta consideragao sobre a construgao de um aparelh psiquico que dé conta do caréter alucinatério do sonho, gostaria de enfocar a posigdo, que é a minha também, de que o sonho é 0 Paradigma da situagdo psicanalitica. Ele ido é uma parte ou contetido privilegiady dela, mas cumpre uma fungao referencial fundamental. Recortarei entio um fragmento de minha clinica de uma andlise que terminou hé seis anos, ap6s sete anos de duragdo, que possa apontar para o sonho como paradigma da fala e escuta na situago psicanalitica. José entra na sessao e deita-se, j4 dizendo que enquanto estava na sala de espera achou que Norberto estava comigo na sala, falando sobre ele. Norberto foi o meu colega que me indicou a ele e, desde 0 inicio de sua andlise, que j4 ia pelo seu quinto ano, era uma figura que rondava a sua andlise numa posigao de alguém diante do qual ele era apenas um menino que nunca iria crescer. Fala de que ainda tem a sensagio de que de alguma maneira N. estd 14. Conta-me, entao, um sonho: estava com sua namorada deitado numa carroga e passeavam pela fazenda onde tinha nascido. Namoram e se acariciam e em algum momento ele tenta introduzir o dedo na vagina de sua namorada. Isto Ihe traz muito desconforto. Apés 0 relato do sonho, comenta que € este mesmo desconforto que sente ali, com esta histéria de N. estar presente. Que é como se seus genitais ficassem em suspenso, pendurados em um varal, onde ele os via, mas nao conseguia se apropriar deles. A sesso percorre varios caminhos e eu nio falo nada. Mais para © final da sesso, ele lembra-se que adorava, quando menino, passear com o pai na carroga pela fazenda e que sempre ia atrés da carroga olhando para o céu, extasiado, imerso em um mundo paradisfaco. Bra uma situagao muito prazerosa para ele. Passa, ento, a dizer como ele via 0 pai desse lugar como uma figura muito poderosa, que sabia tudo, era muito forte e valente, insuperdvel, e ele um menino que 0 seguia e obedecia. Que 0 pai o salvava de todas as situagdes perigosas. Detém- Se, entio, e conta, como se estivesse dando um exemplo: “Certa vez, eu estava em um desses passeios, quando apareceu uma cobra e 0 Digitalizada com CamScanner Mesa 1 3) itou; imediatamente eu deslizei pela roda e me alojei atras cavalo se na empinou € meu pai aflito disse para eu pular da carroga. tet elect ‘otegia?” Fez-se um siléncio carregado i rr ji le era corajoso € me pI . arn i Viu om a e apés um tempo, que eu ndo saberia dizer quanto foi, de ee “Mas vocé deslizou para fora da carroga antes que seu eu lhe : aj Ihe dissesse”. Ele imediatamente me diz com jabilo: “Mas era o ae estava me preparando para Ihe dizer no instante em que vocé oe En, hoje em dia, preferiria ter esperado mais alguns segundos para que ele tivesse dito e eu concordado com ele. O que se passou nesta sessao naquilo que eu gostaria de ressaltar? O sonho foi o paradigma da sessio. Nao foi apenas um contetido dela, mas criou 0 campo transferencial onde 0 fantasma veio entrar em cena para ser percebido e dissipado nesta sua configuracao. Podemos perceber isto de varias maneiras. Assim, o fantasma do pai poderoso e do menino impotente protegido por ele, que nao podia crescer, se apossar de seus genitais e penetrar uma mulher, que tinha medo de que esta penetracao pudesse levd-lo a um mundo paradisiaco, mas perigoso, ja que sem a intervengao do pai nao poderia deslizar para fora e poderia entio sentir seus genitais perdidos, em suspenso, este fantasma foi trazido pelo sonho, embora isto sé saibamos a posteriori. Mas ele se transferiu para a situacao analitica, 4 medida que no podia falar por si, tinha que ter um homem maior falando dele para mim, isto, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que fazia uma rica sessio analitica com sua fala. Além disso, 0 sonho instala a associagao livre do lado dele e minha escuta em atencio flutuante, uma escuta por imagens de uma fala que quer configurar um desenho oculto, 0 desenho do desejo inconsciente que quer ser nomeado dando um rosto préprio a essa crianga que o campo da sessao faz vir & tona. O que se passa aqui € uma espécie de cinema particular que a fala dele, na sua capacidade metaférica, vai propiciando em mim. Evidente que a imagem da fazenda que estd em mim nao é a mesma da que ele fala. Lango mio das minhas Tepresentagdes-coisa, dos meus tragos de meméria, para acompanha- lo langar m&o das suas. No entanto, podemos chegar juntos a uma mesma interpretacao, no levantar de uma repressio que simultaneamente Constituiu o fantasma-e foi pela fantasia obrigada a se constituir. Se ajustéssemos uma lente de aumento ao momento em que 2 interpretagio se constituiu, provavelmente foi a discrepancia entre 0 dito © 0 mostrado pela imagem que a disparou. “Vocé viu como ele era Digitalizada com CamScanner @ Freud: Um ciclo de leituras corajoso e me protegia” nao combina com a imagem de ter deg); para fora da carroga antes, nem com 0 fato de que Provavelns ly pai poderia muito pouco por ele quando o cavalo empinou se ele a 0 estivesse fora da carroga. A forga da fantasia do Prazer q Jig submetido a um pai eternamente poderoso e onipotente 8uiou a . sobre 0 pai, ainda que 0 resto do trabalho associativo Na sessiio i sido o que permitiu suplantd-la, ao menos nesta Sessiio, ou acontecimento interpretativo simultaneo s6 foi possivel Porque a ce pode se dar na sessao, nao na sua cotidianidade, mas através da ae com o pensamento habitual com suas TepresentacGes, através do despojamento. O sonho traz uma dimensio cinematogréfica 4 SeSsio, Uma vida em movimento pede para ser escutada com o olho e Vista pelos ouvidos. Nao permitir que 0 império do entendimento aprisione 9 real imagem com suas categorias abstratas, j4 que ndo se trata de uma busca inutil de significagdes ja dadas. Isto estaria presente, por exemplo, se eu, numa fala interpretativa apressada, trouxesse significagdes j4 prontas, dizendo em algum momento algo do complexo de Edipo, da homossexualidade em relagao ao pai ou a rivalidade etc., se eu tentasse desmascarar 0 fantasma como se ele fosse universal e geral e nfo se expressasse de uma forma totalmente singular. 3% No capitulo 1, utilizando-se de alguns autores, Freud (1900) ird examinar a questéo do sonho como pensamento por imagens. Seo ~Caracteristico do estado de vigilia € que a atividade mental procede por conceitos.e. nao por imagens, o.sonho pensa principalmente. por.imagens 2-que_jd se repara no estado anterior ao.sonho.quando_aparecem ZepresentacOes_inyoluntérias.que. sio.imagens. A incapacidade para aquele trabalho de representagdo que sentimos como intencionalmente voluntaria e a aparigfo de imagens enlagadas sempre a esta dispersdo, sdo caracteres essenciais para a vida onirica,Q-sonho pensa Sta eee eet imagens, visas sida que nao deixe de trabalhar também com imagens auditivas e, em menor escala, com as impresses dos demais sentidos. Aqueles elementos de contetido que se conduzem como imagens, aqueles mais semelhantes as Percepgoes do que As representacdes mnémicas, constituem algo caracteristico e peculiarissimo do fendmeno onftico. Q_sonho alucina, Spor alucinagées. Desta forma ele dramatiza uma damos completo eréditoa eee oie d3 oa 4 alucinagao. Esta caracteristica é o aue separa Digitalizada com CamScanner “ Mesa 1 25 ho do devaneio, que jamais é confundido com a Tealidade. A ° rt de subjetiva da alma aparece como objetiva, dado que a aie de percepgao acolhe os produtos da fantasia ‘CORNY de rodutos sensoriais se tratasse. A alma, aqui, continua se conduzindo normalmente & conforme seu mecanismo peculiar. Os elementos onfricos nfo so de nenhum modo meras representagGes, mas verfdicas e verdadeiras experiéncias da alma. Se esta erra € porque nao pode submeter a imagem a prova de realidade, submetendo 0 sonho & lei da causalidade. Mas concretamente seu afastamento do mundo exterior é também a causa da fé que a alma presta a0 ee oe subjetivo. go gm a 0 andi se coloca € a da Gu) de na GG i juase sempre no lit onde as palavras, os mos, fazem_umi diferente do que ii or. Esse momento feliz de inusitado encontro entre analisando e analista no acontecimento interpretativo da sessio que eu trouxe como exemplo, é carregado de uma vivéncia do inusitado apés. uma paciente espera no interior de uma reverberago da palavra_O_ inusitado desta experiénci ca_inteiramente. passivel de descricao, faz.com que-se-tenha da _palavras, uma aproximagio de como uma vez Fédida definiu a psicandlise. No capitulo VI de A interpretagdo dos sonhos (1900), quando Freud apresenta como se dé a consideracao & figurabilidade no sonho, ele mostra como as idéias latentes abstratas e_incolores_do-sonho-sio_ substituidas_por outras expressGes_verbais-mais_plasticas_e concretas, permitindo os contatos e identidades que_o trabalho_de.condensa¢ao.e_. deslocamento precisam até o ponto de crid-los, quando nao existem, pois Os teiTiOs COiICTEtOS so em todos os idiomas mais ricos em conexGes que os abstratos. A palavra aparece, ento, como de grande importancia para a formagao dos sonhos porque a ela convergem miiltiplas representagdes, favorecendo a condensagio e 0 disfarce. Mas as idéias latentes se transformam em contetido manifesto especialmente por meio de sua figurabilidade, por meio de imagens visuais. Entre as diversas conexdes acessérias as idéias latentes essenciais, tera Preferéncia aquela que permita uma representagao visual e a elaboragdo onfrica nao fugird ao trabalho de fundir primeiro em uma distinta forma verbal a idéia abstrata irrepresentdvel plasticamente, se com isso conseguir dar-lhe uma representacdo e por fim ao sufoco psicol6gico capi jetivit suspiros, 0s rit Digitalizada com CamScanner 26 Freud: Um ciclo de leituras do pensamento obstrufdo. Este esvaziamento do contes do 4 em outra forma distinta, pode também simultaneamente 0 eot6yicg servigo do trabalho de condensagao e criar conexées tocar sg : modo nao existiriam, com uma idéia diferente, a aif de Outry vez, ter mudado de antemao sua forma expressiva em favor do Por sya propésito. ‘0 Mesmo Fédida (1991) reflete sobre este transito entre a fala do anali ea escuta do analista no interior do pensamento por imagen, sandy paradigma é 0 sonho. * CUjo Olhar e escutar nao solicitam a linguagem se forem impacientes por saber: entao, eles s6 agitam questées j4 prontas, Cujo alarido ensurdece a linguagem... A fala do doente s6 avanga em seu Pr6prio relembrar-se daquilo que Ihe aconteceu, se ele souber — por assim dizer, do interior — onde ela vai... Falar junto ao terapeuta significa sempre um colocar & prova a capacidade de escuta do terapeuta... Cada paciente em seu tratamento solicita o terapeuta na fonte de sua linguagem colocando esta tiltima 4 prova de sua renovagio, de sua poténcia poiética... Olhar da atengao singular sem o qual a fala nao conseguiria fazer-se questao de seu relembrar. Esse olhar é 0 desenho interno da fala, ou talvez, melhor ainda, aquele desenho que a linguagem confia ao olhar, quando o olhar deixa-se conduzir por aquilo que vé. E o visfvel no diz nada A vista enquanto a linguagem nao puder torné-lo visivel. Tal como o poeta, o analista deixa o desenho das coisas recolher-se na escritura das palavras ao sair do sono que a fala cotidiana da lingua as mantém. O que poderia ser chamado de atividade poética de merdfora, caso tal expressio seja considerada conveniente para designar o espaco que a palavra engendra para tomar ressondncia daquilo que vé, que toca, que sente. Quando a linguagem encontra-se ameagada pelo dominio da vista, ela sé consegue livrar- se deste dominio porque as palavras dispdem da magia das transformagdes de uma sensagio em outra, néo por jogo de correspondéncias, mas por ressondncia. Tornar visivel é atribuir sensagio, sensorialidade ao visual desfascinado da vista. (pp. 14-16) Penso que a escuta pelas imagens ndo é a tinica possivel em uma andlise, mas é a que mais coloca 0 ouvido na posigao de um olho capaz de acompanhar 0 curso de uma fala, de se aproximar da disposi¢éo iconsciente, criando um pensamento por imagens, um cinema singular ue possibilita ao analista atingir a figuragao do fantasma. Digitalizada com CamScanner Mesa 1 27 zqida ainda nos diz que 2 referéncia ao sonho possui um valor Lae a para se tratar da linguagem na psicanilise. Ele essencial de ee nos perguntar com Freud, sob que condicdes relembra Se acne da fungio do sonho alguém pode se chamar de en ae 0 que nao é uma questiio de maior ou menor espaco aia A gle no tratamento, mas envolve 0 trabalho do analista no an diz respeito 2 linguagem. O sonho pode ser tratado como um objeto comportamental, valendo principalmente pela informagao que fornece a respeito de preocupagoes pré-conscientes que, em contrapartida, solicitam do analista uma agdo verbal interpretativa, cuja fungiio € da ordem do desempenho. Evidentemente, conceber o “trabalho” psicanalitico em termos de estratégias da comunicagao nao tem nada mais a ver com a psicandlise...(p. 43) Caso o interesse do analista dirija-se aos dispositivos ¢ aos processos de comunicagio, o sonho perde sua fungdo referencial e, juntamente com ele, aquilo que significa psicanaliticamente pensar, associar, escutar. A fala sofre, entao, os efeitos do abandono de.um paradigma segundo o qual o sonho é teoria da transferéncia. (p. 45) Transferéncia das idéias latentes abstratas e incolores as idéias plasticas e concretas, figurdveis em imagens, que suscitam a transferéncia, através de cadeias de elementos intermedidrios dos elementos de maior valor psfquico aos mais indiferentes, transferéncia do infantil aos restos diurnos, das imagens esparsas as palavras que iro nos contar a hist6ria do sonho. A transferéncia é 0 que possibilita esta fantdstica'e complicada atividade mental geradora do sonho, mas também da situagao analitica, convidando o analista & sua complicada atividade mental. Complicag%o que, como vimos com Deleuze, € estado originario que precede a criagéio. A complicagio é, pois, sua poténcia. Um outro fragmento clinico talvez possa aqui ajudar-me a apontar uma consideragao que se fez muito recentemente, para mim, sobre a capacidade conjuntiva da linguagem que o pensamento por imagens permite. Nesta sesso, a analisanda falava sobre a crianga que ndo era escutada, sobre como nao falava do que sentia porque seus pals nao davam valor & sua expressiio. A voz deles era sempre uma voz de mando. Isto dava, para ela, uma pista para 0 que sentia como sua incapacidade de acesso ao que sentia e porque tinha uma imagem do seu espago psiquico como conglomerados dispersos que ndo se ligavam Digitalizada com CamScanner Freud: Um ciclo de leituras Depois, @ questo do nao escutar, que tinha a ver com ce ae vai por outros caminhos até que, pela repetigao dos Significante sintoma, Val Pot ela: “Nao pode falar, nfo pode escutar’. Ela f, . fala ee - “Quando vocé falou isso, parece que se abrican uma ees minhos para eu percorrer aqui. Mas fico muito assustaga, oa tito medo do desconhecido, como se a tua fala fosse a dos meys a Eu, entio, digo: “Como uma voz de mando?’ Ela me diz; Me . ae isto, como se vocé nao estivesse vindo junto comigo”, pao sesso com uma sensacao de frustragao, como SE €U tivesse cortado 0 desenho interno de sua fala, ao falar-Ihe a partir da escuta da repetigao significante. Isto ird se confirmar na sesso seguinte, quando ela senta-se a0 invés de deitar. Permanecera ai por varias sessdes. ‘Andavamos passeando no borde delicado de uma severa depressdo e vinhamos tentando construir-uma rede de ligages psiquicas que pudesse evitar 0 buraco negro depressivo para poder elabord-lo. Apesar de nao sentir minha interpretagio como incorreta, pois ela incidiu sobre um n6é condensado de elementos que se desdobraram em varios caminhos, achei que realmente ela teve um efeito de mando, cortando a possibilidade de estar junto, acompanhando, entregando-a de novo a sensagées depressivas, sofrimento demasiado, que talvez pudesse ter sido evitado, ainda que esses caminhos abertos pela interpretagao puderam ser retomados apés algumas semanas. Foi pensando nisto que me surgiu 4 mente um texto de Miller (1984) onde, no final de sua conferéncia, um certo doutor Aray trazia a incémoda e insistente questo sobre se o significante deveria ser tomado como representagdo-coisa ou representagdo-palavra. Ele apontava af para uma diferenga entre Freud e Lacan, pois Freud dizia que a verdadeira linguagem do inconsciente era visual, enquanto o pré- consciente era formado por palavras. Miller responde que o significante em Lacan estava ao nivel do que Freud chamava representagao-coisa. Mas ele também responde que a linguagem nao era fundamentalmente ; ‘al, era também vocal, oral, escrita, e que Lacan, ao dizer que © inconsciente era estruturado como linguagem, compreende a linguagem €m sua estrutura, independentemente de sua realizagao, independentemente do tipo de materialidade significante que pode encamar a linguagem a decifrar. es a He que o Dr. Aray e Miller ndo se entenderam iu para mim foi que j4 que nao se trata mais, 28 entre si- Digitalizada com CamScanner Mesa 1 29 alista, de manter a ilusio da linguagem como comunicacio, ditas pelo outro so compreendidas naquilo que querem a também de impedir uma capacidade conjuntiva da ue me parece a possibilidade trazida por um pensamento por imagens, aquele que eu nao ties manter na sesso a0 fazer prevalecer a escuta da repetigado significante no plano do pré- consciente. No pensamento por imagens reverberam e sao solicitadas percepgdes e afecgdes que criam imtensidades que Permitem um estar junto que, se ndo € da ordem de uma coincidéncia, permitem a revivéncia de percepgoes € afecgdes pré-verbais que estao presentes no infantil ao qual a sesso analitica faz regredir formalmente. Como coloca Deleuze (1992), a imagem como bloco de sensagées (perceptos e afectos) que podem ser revividos e até mesmo ganharem o testemunho verbal ou acompanharem o testemunho verbal de outras facetas da cena infantil rememorada. ‘A menos que se queira gravitar, siderar melancolicamente na constatacdo estéril da castragéo com 0 peso opressivo de uma transcendéncia inexoravel do lugar simb6lico que cabe a cada um de nés pela nossa hist6ria e pela hist6ria do mundo. A fungao dita paterna do corte pode vir a ter este efeito de mando estéril quando a fungio imaginativa fica relegada 4 confusdo com a escuta imaginarizada. A fungio imaginativa do analista que est4 na base da compreensio da linguagem em sua poténcia poiética se distingue radicalmente da chamada escuta imaginarizada. Esta dltima ocorre quando 0 analista, atravessado por seu imagindrio, por suas fantasias — mal ou nao analisadas -, precipita interpretagdes que tém muito mais a ver com seu inconsciente ou por uma visio imagindria da teoria psicanalitica do que com o caminho da fala que dé acesso ao inconsciente de seu analisando. Jé a escuta que mantém a fungao imaginativa do analista considera 0 pensamento por imagens trazido pelo sonho como paradigma da fala- escuta que mais se aproxima da disposi¢ao inconsciente. Pois ainda ape se tente exorcizar a mae do primeiro narcisismo, ela subsiste invisivel no umbigo, as portas do caos césmico que nos habita. A velha fei iceira, a nossa metapsicologia, j4 dizia Freud. E preciso nao desconfiar desta velha feiticeira, Ela nao é perversa, ela tem a serenidade dos inocentes. (Tennenbaum, 1995). Ela tece as malhas do sonho com os fios dete do trabalho de luto, pois a vida e a morte transitam na aproximag destes dois trabalhos. para o ani onde as palavras dizer, nao se trat Jinguagem. E esta Digitalizada com CamScanner 30 Freud: Um ciclo de leituras O trabalho de luto é um desfazer a tecitura Construfda investimento nos objetos ¢ experiéncias que, por serem ee transit6rios, ou por no serem o que deles esperévamos, oy Por isl sermos 0 que eles esperavam, se perderam. Ele os transforma em tagn, de meméria, liberando a libido para novos investimentos. A dor sq transforma em Eros, a morte em renascimento. O trabalho do sonho é a tecitura construfda a cada noite, que recolhe estes tragos mnémicos para fazé-los retornar temporariamente a vida pelo investimento que os faz monumento, anulandg temporariamente a transitoriedade, confundindo os tempos, criando g eternidade. Talvez o paradigma do trabalho da tecitura invisfvel do aparelho psiquico seja a tecitura da trama uterina que tece a bolsa placentaria alimentadora que ira se desfazer, entregando 0 fruto, ou que tece a trama do tecido que se liberard pelo sangue que ao mesmo tempo em que encerra um ciclo de fertilidade, recomega outro. Podemos pensar que hd um amadurecimento que rompe a tecitura psiquica e libera a obra, ele nao precisa de um corte violento“Quando esta tecitura psiquica estanca, a circulagao est4 impedida, nao hd sonho, nao ha trabalho psiquico; algo precisa vir cortar e desfazer esta trama melancolizada para liberar uma capacidade conectiva e conjuntiva renovada que permite o fruto, qualquer que ele seja, se fazer e se separar daquilo que o produz e nao ficar a tamponar masoquisticamente um buraco assustador. Mas talvez precisdssemos agregar um terceiro trabalho a ser exigido ao aparelho psiquico: o trabalho do poder. O trabalho do poder € aquele que luta contra o inevitdvel automatismo da economia narcfsica que rege o eu. Ele o leva a desejar construir um monumento pétreo em praca puiblica, exibidor de feitos grandiosos, ainda que o prego seja a morte antecipada, morte em vida que o transforma em ilusao de gloria. Ele nunca esta satisfeito com seus contornos, escravizado que esté a um eu ideal que algum dia teve uma fungao tecida por esta mae primeira, Mas que 0 fixou no lugar de uma crianga tirdnica e onipotente a ter Sempre que transformar-se, pela vigilancia de um supereu em ideais de eu. q Mas a vida s6 pode ser sonho, ela s6 pode se constituir pelo desejo, Se esse eu puder contribuir, como Freud 0 disse em A interpretagado dos sonhos, com seu desejo de dormir. Digitalizada com CamScanner Mesa 1 a nevitdvel automatismo da &conomia narefsica, eu pode se constituir da mesma matérig ele reconhece, Nas suas fungdes atuais u desejo infantil de ser grande que to e que podem Constituir este eu como e pode dar vazio ao ser € ao sonho, de se desfazer” quando a velha feiticeira que nao Ihe pertence, que vem sempre de fora e que a faz desaparecer, para dnixar que 0 caos criador nos invada no eterno devir que constrol a vida como sonho, que faz a vida ser feita pelo mesmo material dos sonhos, Afastando-se 40 1 que o faz ser sempre um Cae dos sonhos. Isto se da quando as marcas mnémicas de se revivem por este reconheciment si, self, identidade porosa qu Esse “eu ndio tem medo convoca a vassoura “Fallus” Bibliografia DeLeuzE, Gilles (1987). “Os signos”, cap. IV, “Os signos da arte e a esséncia”, in Proust e os signos. Rio de Janeiro, Forense Universitaria. ___ (1992). “Percepto, afecto e conceito”, in O que é a filosofia?. Rio de Janeiro, Editora 34, Fénipa, Pierre (1991). “Do sonho & linguagem”, in Nome, figura e memoria. Sio Paulo, Escuta. FoucauLT, Michel (1985). “Sonhar com os préprios prazeres”, in Historia da sexualidade 3. O cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal. Freup, Sigmund (1900). A interpretagao dos sonhos, vol. I. Madrid, Biblioteca Nueva, 1973. —— (1892-1899), “Cartas 69, 75, 100, 112, 114”, in Los origenes del psicoandlisis. Madrid, Alianza, 1983. LapLancue, Jean (1980). “A anguistia na tépica”, in A angiistia. Sao Paulo, Martins Fontes. Mezan, Renato (1982). “Os demdnios da alma”, in A trama dos conceitos. Sao Paulo, Perspectiva. Miter, Jacques-Alain (1984). “La transferencia de Freud a Lacan”, in Recorrido a Lacan - Ocho Conferencias de Caracas. Buenos Aires, Editorial del primero encontro del campo freudiano. Roustana, Frangois (s/d.). “O estilo de Freud”, apostila. TENNENBAUM, Carla (1995). “Rashomon: uma nova vers: conto”, inédito. io para 0 Digitalizada com CamScanner

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