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Carnap
Carnap
SÃO CARLOS
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E METODOLOGIA DAS CIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
SÃO CARLOS
2013
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
Ao meu estimado orientador Prof. Dr. Mark Julian Richter Cass (in memorian),
pela paciência, orientação, esforço, dedicação, pelas valiosas sugestões, pelo grande e
cuidadoso trabalho de revisão do conteúdo e por suas enormes contribuições na melhoria
deste texto. Um muito obrigado é pouco.
Ao meu atual orientador Prof. Dr. Bento Prado Neto, por ter aceitado continuar
a orientação deste trabalho, pelo apoio e confiança depositados e pelas orientações e
correções.
Aos professores, Prof. Dr. Pedro Malagutti, Profª. Drª. Itala D’Ottaviano, Prof.
Dr. Luciano Vicente e Profª. Maria do Carmo Sodré Ayres, pelas orientações, ajudas e
incentivos.
A todas as pessoas cujos nomes não se encontram aqui, mas que, de alguma
forma, contribuíram para que este trabalho se realizasse.
“Importante e urgente como libertar criaturas humanas de prisões
inumanas é ir em socorro de verdades prisioneiras de
sistemas de ideias que as retêm e asfixiam.”
Dom Hélder Câmara
The purpose of this thesis is analyze the changes in the thinking of Rudolf
Carnap in relation to the analysis of language before the innovations of the work of Alfred
Tarski. To this end, we will seek to explain the syntactic analysis of language presented by
Carnap in his work "Logical Syntax of Language". Secondly, the semantic analysis of the
language proposed by Alfred Tarski. To then discuss the influence of Tarski in the later work
of Rudolf Carnap.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 17
1. Introdução .................................................................................................................... 18
CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 34
2. Introdução .................................................................................................................... 35
3. Introdução .................................................................................................................... 78
1
Nós entenderemos o mundo, ou a realidade, ou os fatos, ou estados-de-coisas, etc., como algo extralinguístico,
ou seja, como algo que não pertence à linguagem.
2
Verdade e falsidade são chamadas de valores-de-verdade de uma sentença.
INTRODUÇÃO 11
línguas naturais. A versão clássica dessa antinomia pode ser descrita pela seguinte sentença:
“Esta sentença é falsa”, sobre a qual não podemos decidir seu valor-de-verdade.
Do ponto de vista de Russell, o estudo da gramática é capaz de jogar muito
mais luz numa questão filosófica do que é comumente suposto por um filósofo e, assim, a
solução dos problemas filosóficos estaria no estudo da lógica-matemática e da filosofia
matemática. Ele considerava que a lógica, da qual ele acreditava que a matemática com todas
as suas complexidades poderia ser derivada, era um esqueleto adequado da linguagem capaz
de expressar as declarações filosóficas.
Vejamos, de maneira panorâmica, a análise do Atomismo Lógico de Russell: a
linguagem deveria ser concebida basicamente como uma coleção indefinidamente larga de
declarações simples ou elementares, chamadas de sentenças atômicas, e de composições de
declarações elementares (através de conectivos lógicos como “e”, “ou” e “não”), chamados de
funções-verdade de suas sentenças constituintes. A verdade das sentenças atômicas era
estabelecida por meio extralógico, isto é, uma sentença atômica é feita verdadeira através do
que hoje é chamado vagamente por “correspondência com os fatos”. E a verdade e falsidade
de uma função-verdade de sentenças atômicas só poderiam ser determinadas através da
verdade ou falsidade das sentenças atômicas por elas constituídas. Além disso, o mundo
deveria consistir de um número de fatos atômicos indefinidamente largos para os quais as
sentenças atômicas verdadeiras correspondessem; e como as proposições atômicas são
concebidas como independentes, logicamente, esses fatos devem ser concebidos como sendo
independentes extralogicamente; sem tal correspondência entre linguagem e fato parece, para
os atomistas lógicos, que seria impossível falar sobre o mundo. Desse modo, o mundo é
tomado ser de estrutura idêntica a, e representado perfeitamente por, uma linguagem com a
estrutura da lógica apresentada na obra Principia Mathematica de Russell e Whitehead, cuja
gramática seria perfeita, diferentemente da enganosa língua natural (URMSON, 1956, p. 14-
21).
Neste ponto, temos duas instâncias de naturezas diferentes sendo relacionadas:
de um lado, um sistema lógico estruturado sob a base de sentenças atômicas, de outro, um
mundo estruturado sob a base de fatos atômicos e a relação entre elas se dá por meio de uma
verdade extralógica. Várias perguntas surgem de imediato: O que seriam as sentenças
atômicas (suas formas e relações)? O que seriam os fatos atômicos? Como se dá essa
correspondência entre elas?
INTRODUÇÃO 12
consequências da nossa decisão de usar símbolos lógicos). Todas as demais sentenças, que
não se enquadrassem nessas duas categorias, seriam sem sentido, como o eram as sentenças
metafísicas.
De fato, inicialmente o critério dos positivistas lógicos em relação ao sentido
de sentenças sintéticas, chamado de “princípio da verificação”, procurava identificar o sentido
com as condições de verdade extralógica que as sentenças da filosofia faziam a respeito do
mundo. Assim, uma sentença teria sentido se fosse possível determinar o seu método de
verificação, isto é, se fosse possível determinar as condições que fariam com que ela fosse
considerada verdadeira (caso em que as condições por ela estabelecidas de fato se
verificassem) ou falsa (caso em que as condições por ela estabelecidas não se verificassem).
Desse modo, as sentenças metafísicas são consideradas sem sentido, por não proverem um
método de verificação.
Com efeito, os positivistas lógicos procuraram desenvolver sua análise sob o
ponto de vista de que o sentido de uma sentença é dado pelo seu método de verificação. Um
exemplo desse pensamento pode ser encontrado na obra a “Construção Lógica do Mundo”
(1928) de Rudolf Carnap, em que o estudioso descreve um sistema linguístico chamado de
linguagem fenomenológica, o qual era fundamentado na lógica, que estava sob forte
influência do Principia Mathematica de Russell e Whitehead, e na redução do mundo para o
“dado sensível”, isto é, uma maneira de reconstruir o mundo a partir da percepção interna
(sensações) das experiências individuais (1928, p. 7).
Para Carnap, essa linguagem era potencialmente capaz de descrever todas as
sentenças com sentido em termos dos “dados sensíveis”, isto é, a verdade de uma sentença
seria diretamente verificada através da pessoa a cuja experiência a sentença se refere.
No entanto, essa concepção de sentenças em termos de dados sensíveis foi
muito criticada. Uma das principais objeções era a dificuldade em se estabelecer a que partes
do mundo as sentenças elementares supostamente faziam referência. Se cada um de nós é
limitado a interpretar qualquer sentença como sendo a descrição de nossas próprias
experiências individuais, é difícil ver como poderemos comunicar o todo, isto é, o mundo.
Uma outra importante objeção era que a redução do mundo às sentenças em
termos de dados sensíveis, expressadas num sistema lógico, não poderia ser vista como uma
relação lógica, pois é uma relação de instâncias de naturezas diferentes. Então, o que poderia
ser essa redução? Alegará o próprio Carnap, e outros positivistas lógicos, que falar de
INTRODUÇÃO 14
3
Cf. CARNAP, 1937, p. 7-8.
INTRODUÇÃO 15
1. Introdução
• O esforço do trabalho científico tem por objetivo alcançar uma ciência unificada,
mediante a aplicação da análise lógica (1929, p. 12). Isto é, construir uma linguagem
que abarcasse apenas as sentenças analíticas e sintéticas a posteriori, excluísse as
sentenças sem sentido (como as sentenças da metafísica), e que servisse de
fundamento para a filosofia e para toda ciência.
4
Cf. CARNAP, 1929, p. 10-12.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 21
O referido artigo trata de maneira menos técnica dos assuntos da obra e os dois
textos defendem a identificação da filosofia com a linguagem fenomenológica5. Contudo,
Carnap descreve nesses trabalhos não a totalidade da construção dessa linguagem, mas
somente apresenta sua concepção de como ela poderia ser executada, e, após estabelecer as
regras através das quais se operacionaliza o projeto de construção, dá o artigo e a obra por
encerrados. Essa construção estava envolvida com consideráveis dificuldades e essa pode ter
sido uma das razões pela a qual ele não completou o trabalho.
O projeto de construção da linguagem fenomenológica estava fundamentado na
“logística”, que se refere à lógica moderna iniciada por Frege e que se encontrava sob forte
influência do Principia Mathematica de Russell e Whitehead, e na redução do mundo para o
“dado dos sentidos”6 ou “objetos autopsicológicos”, isto é, uma maneira de reconstruí-lo a
partir de uma percepção individual interna (sensações) dos objetos extralinguísticos (1928, p.
7). Segundo o comentador Anders Wedberg:
5
A palavra “fenomenológica” utilizada na expressão “linguagem fenomenológica” não tem sua origem num
empréstimo à corrente filosófica que nasce com Husserl. A linguagem fenomenológica não é propriamente o da
análise “dos modos subjetivos nos quais se constitui uma objetividade”, mas sim o de uma descrição dos
fenômenos quase à la Ernst Mach (preservando toda a distância que os separa), e talvez essa expressão tenha
sido efetivamente tomada de empréstimo ao vocabulário da física. (PRADO NETO, 2007, p. 52).
6
Sobre os equívocos em utilizar a palavra “dado”, Cf. SCHLICK, 1932, p. 40-43.
7
Grifos do autor e os colchetes são nossos.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 22
objetos complexos é algo distinto da experiência de uma mera soma de elementos sensoriais”
(SMITH, 1998, p. 51), ou seja, não podemos considerar como percepção básica de um objeto
um acumulado de percepções individuais, mas a percepção dos objetos como um todo. Por
exemplo, a audição de uma música, em que notamos que esta é diferente da simples sequência
das notas musicais utilizadas. Carnap adota esta posição, para propor a impossibilidade de
reduzir percepções (ou experiências) a parcelas sensoriais menores e, com isso, estabelecer
esta forma de impressão como o objeto epistemológico mínimo de sua linguagem.
Desse modo, determinadas porções de experiência (objetos autopsicológicos)
nos permitem produzir sentenças (declarações elementares), representando experiências
elementares do tipo Gestalt, como por exemplo “agora há um triângulo no meu campo visual”
ou “no quarto ao lado, há uma mesa de três pernas”, as quais servem como base para a
construção das outras sentenças da linguagem fenomenológica, isto é, as outras sentenças
seriam funções-verdade das sentenças a respeito de objetos autopsicológicos. É importante
notar que, com isso, ele não está dizendo que as experiências elementares sejam elementos
definidos; ele apenas está dizendo que “sentenças podem ser feitas a respeito de certos lugares
no fluxo da experiência” (1928, p. 109).
Para Carnap, essa linguagem fenomenológica era potencialmente capaz de
descrever todas as sentenças com sentido e eliminar o discurso metafísico. O critério de
sentido dessas sentenças seria o de verificação e de conteúdo factual, o qual ele apresenta em
“Pseudoproblemas na Filosofia”:
diz que está vendo alguma coisa vermelha, como saberemos que o que ela chama de vermelho
não seria azul para nós? Assim, na medida em que as palavras de uma pessoa se referem ao
conteúdo de sua experiência, elas podem ser inteligíveis apenas para ela mesma.
Schlick procurou responder a essa objeção, tomando como base a sua distinção
entre estrutura e conteúdo de uma experiência. Segundo ele, uma linguagem fundamentada
em dados sensíveis seria incomunicável quanto ao conteúdo, mas não quanto à sua estrutura
(SCHLICK & CARNAP, 1988, p. XIII). Para ele, embora nada possa garantir que os dados
sensíveis associados por um sujeito ao vocábulo “dor” sejam os mesmos que outra pessoa
associa a esse termo, pode-se constatar que o mesmo é usado em situações comuns, isto é, que
se reconhecem os mesmos comportamentos associados à palavra “dor” (SCHLICK, 1934, p.
79-80). Ou ainda, a mesa que uma pessoa percebe pode ser diferente daquela que nós
percebemos, mas nós estaríamos de acordo em dizer que certas coisas são mesas e outras não.
Assim, para Schlick, as diferenças de conteúdo devem ser desconsideradas,
mas é possível estabelecer nossas experiências como ordenadas pelas suas semelhanças. Essa
semelhança de estrutura que nos proporciona um mundo comum; é apenas a descrição desse
mundo comum, isto é, da estrutura, que é comunicável.
No entanto, segundo um dos grandes divulgadores da filosofia do positivismo
lógico, Alfred Ayer (1956, p. 206-209), essa distinção entre conteúdo e estrutura de uma
experiência não parece ser sustentável. Se nós não pudermos saber o que uma pessoa entende
por mesa como poderemos analisar o que ela entende por “mesas semelhantes”? Qual é o
argumento que o comportamento de uma pessoa, enquanto revelando nada do conteúdo de sua
experiência, apresenta a estrutura de sua experiência como sendo a mesma que a nossa?
Schlick sugere que, mesmo que não compreendamos o significado das palavras quando uma
pessoa as usa, sabemos que ela as aplica para a mesma coisa.
Porém se não sabemos nada sobre o conteúdo de sua experiência, como
saberemos se a pessoa aplica suas palavras de um modo consistente com o nosso? Com essas
questões, Ayer não está querendo afirmar que pessoas diferentes não conseguem se entender,
ou que isso não é provado pelo seu comportamento, mas, deseja sustentar que não há
justificativa para separar estrutura e conteúdo e contra-argumentar que estrutura pode ser
comunicável enquanto conteúdo não. Assim, para o filósofo, há razões suficientes para
duvidar da aplicação do uso de uma linguagem para sentenças sobre estrutura tanto quanto
para sentenças sobre conteúdo de uma experiência.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 25
(1) “Em 6 de maio de 1935, às 16 horas, existe uma mesa redonda e preta em meu quarto.”
(2a) “Se, em maio,... alguém está em meu quarto e olha em tal ou qual direção, tem uma
percepção visual de tal ou qual tipo.”
(2a’), (2a’’), etc. Sentenças similares acerca de outros aspectos possíveis da mesa.
(2b) “Se ... alguém está em meu quarto e esfrega suas mãos nesta ou naquela direção, tem
percepções táteis deste ou daquele tipo”.
(2b’), (2b’’), etc. Sentenças similares acerca de outras aproximações possíveis à mesa.
(2c), etc. Sentenças similares acerca de possíveis percepções de outros sentidos.
não exista nem uma mesa preta redonda em meu quarto, nem qualquer observador. (1) então é
falsa e (2a) é uma sentença de implicação universal:
“(∀x) (x está ... em meu quarto e olha ...) → (x percebe ... )”,
(dessa maneira, (2a) pode ser formulada em palavras como: “Para qualquer pessoa, ou não, é
o caso de que ela está em meu quarto em maio ... e olha ... ou ela tem uma percepção visual
deste ou daquele tipo”). Ora, segundo nossa suposição inicial, para toda pessoa x é falso que x
está naquele momento no quarto e olha ...; em símbolos:
Como (4) é uma disjunção e (5) é verdadeira por suposição, então (4) é
verdadeira e, logo, (2a) também é verdadeira (e analogamente toda sentença das outras
sentenças da série (2)), enquanto (1) é falsa. Assim, a redução para dados dos sentidos mostra-
se inválida. Ou, dito de outra forma, não é logicamente possível reduzir sentenças da ciência
às sentenças condicionais sobre a possibilidade de percepção de um determinado objeto
extralinguístico (físico).
Esse exemplo de que tratamos é uma sentença sobre um objeto físico
diretamente perceptível, se tomarmos como exemplo sentenças acerca de átomos, elétrons,
campo elétrico e semelhantes, seria ainda mais claro que a redução, em termos de percepção,
não é possível.
Enfim, Carnap foi chegando à conclusão de que a linguagem fenomenológica
não era adequada para uma análise filosófica do conhecimento. Na própria obra a
“Construção Lógica do Mundo” (1928), o filósofo já se apresentava como “tolerante” em
relação à qual linguagem utilizar na reconstrução do mundo (CARNAP, 1963, p. 51-52).
Poderíamos, diz ele, utilizar como linguagem básica a linguagem da física, que estabelece
relações entre pontos espaços-temporais do contínuo espaço-temporal8, em vez de começar a
8
Cf. §62 em CARNAP, 1928, p. 99-100.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 27
Otto Neurath afirmava que todo discurso com sentido está inserido nos
sistemas linguísticos das ciências, que deveriam, segundo ele, ser unificados por meio de uma
linguagem e de uma sintaxe única para facilitar a comunicação entre os diversos ramos das
ciências e evitar qualquer discurso metafísico. Especialmente Neurath, dentre os membros do
Círculo de Viena, incentivava o debate em torno da unificação das ciências e da construção de
uma linguagem única para todas elas, o que, segundo ele, seria a linguagem fisicalista.
A partir de 1931, encontramos as primeiras obras dele ligadas a esse tipo de
linguagem, a qual o autor propunha em oposição à linguagem fenomenológica. Por exemplo,
a obra “Sociologia Empírica” (Empirical Sociology) (1931c), estabelece de que forma a
unificação das ciências sociais pode ser feita em uma base fisicalista; os artigos, “Fisicalismo:
A filosofia do Círculo de Viena” (Physicalism: The Philosophy of the Viennese Circle)
(1931a), “Fisicalismo” (Physicalism) (1931b), “Sociologia e Fisicalismo” (Sociology and
Physicalism) (1931d) e “Sentenças Protocolares” (Protocol Sentences) (1932), tratam dos
pontos de discordância com os outros filósofos do Círculo de Viena.
Diferentemente de Carnap, em a “Construção Lógica do Mundo” (1928),
Neurath não propõe que o programa construcional da ciência se dê sob a base de objetos
autopsicológicos (NEURATH, 1932, p. 204), como se fosse um edifício sendo erguido a
partir de seus alicerces. Pelo contrário, o filósofo propõe a seguinte metáfora no seu artigo
“Sentenças Protocolares”: somos como marinheiros que precisam reconstruir seu barco em
mar aberto, nunca podendo desmontá-lo em uma doca seca e lá reconstruí-lo com os melhores
materiais (1932, p. 201). Para ele, não há como tomar sentenças sobre objetos
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 28
“Protocolo de Otto às 3:17 horas: [às 3:16 horas, Otto disse a si mesmo: (às 3:15 horas, Otto
percebeu que havia uma mesa no quarto)].”,
Sentenças são sempre comparadas com sentenças, certamente, não com alguma
‘realidade’, e nem com ‘coisas’, como o Círculo de Viena pensava até agora. (...) Se
uma sentença é feita, ela deve ser confrontada com a totalidade das sentenças
existentes. Caso concorde com elas, é anexada a elas; se não concorda, ela é
declarada “não-verdadeira” e rejeitada. (...) Não pode haver outro conceito de
verdade para a ciência. (NEURATH, 1931b, p. 53).9
9
Grifos do autor.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 29
Quem toma a sério a coerência como único critério da verdade, deve considerar as
lendas poéticas tão verdadeiras quanto um relato histórico ou as proposições de um
manual de química, sendo suficiente que as lendas sejam de tal tipo, que não
encerrem nenhuma contradição. (SCHLICK, 1934, p. 71).
Mas Neurath (1932, p. 205), não se utiliza apenas do critério de coerência, para
ele as sentenças protocolares são construídas a partir de um sujeito (o substantivo pessoal da
sentença), em um processo no espaço e no tempo, isto é, a sentença tem conteúdo factual que
ocorreu, ou ocorrerá, em um determinado tempo e espaço. Quando se trata de uma sentença
protocolar, que descreve uma predição, ela poderá ser checada (ou controlada) apenas se nós
indicarmos “quando” e “onde” uma mudança nessa predição ocorrerá (1931b, p. 54).
Essa é a grande diferença em relação às sentenças sobre objetos
autopsicológicos: as sentenças protocolares estão condicionadas a um determinado espaço e
tempo. E mais, as sentenças protocolares são intersubjetivas, pois os substantivos pessoais
podem ser substituídos por coordenadas e coeficientes de estados físicos. Não há distinção
entre o “eu” e o outro em um protocolo, “pode-se distinguir um protocolo-Otto de um
protocolo-Karl, mas não um protocolo próprio de um protocolo dos outros” (NEURATH,
1932, p. 206)10.
Cada sentença protocolar se relaciona com a ciência unificada da mesma forma
que as outras, não importa se foram feitas “por mim” ou por outra pessoa. Com isso, para
Neurath, “todo o quebra-cabeça das outras mentes está resolvido” (1932, p. 206)11. Em “A
Unidade da Ciência” (The Unity of Science) (1934), o próprio Carnap (1934, p. 66-67), afirma
que a linguagem fisicalista é a única linguagem intersubjetiva conhecida, e como a ciência é
10
Grifos do autor.
11
Grifos do autor.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 30
12
Grifo do autor.
CAPÍTULO 1. LINGUAGEM FENOMENOLÓGICA E FISICALISTA 31
não há nenhuma disputa real entre eles: uma vez que estão simplesmente sugerindo diferentes
métodos de construção da linguagem da ciência, ambos são possíveis e legítimos (CARNAP,
1932a, p. 457).
Os métodos a que Carnap está se referindo para a construção da linguagem da
ciência são os que ele apresentou em “A Unidade da Ciência”, segundo os quais as sentenças
protocolares se situam fora da linguagem do sistema, criando uma estrutura fundacionalista. O
outro é o apresentado por Neurath em “Sentenças Protocolares”, que postula que a linguagem
protocolar é um jargão universal situado no domínio da linguagem do próprio sistema da
ciência. Assim, Carnap apresenta as duas propostas, deixando claro desde o início qual é seu
objetivo:
1: está chovendo
2: está nevando
3: está chovendo granizo
4: fraco
5: forte
respectivamente; “sche bim” e “sche bum” para neve fraca e forte, e “he bim” se estiver
chovendo granizo levemente. Assim, é possível construir outro dicionário, o qual possibilita a
tradução de enunciados da linguagem do estrangeiro para sentenças da nossa linguagem
(1932a, p. 459):
Neurath já expôs sua linguagem fisicalista, Carnap se dedica a exemplificar o segundo tipo
(B) (1932a, p. 464-465).
Enfim, após apresentar as duas formas de linguagem e mostrar que elas podem
ser construídas de maneira consistente, Carnap passa a compará-las. Sua conclusão é de que a
primeira forma de linguagem (a sua do artigo “A Unidade da Ciência”), na qual as sentenças
protocolares estão fora do sistema, tem a vantagem de qualquer linguagem poder se tornar
uma linguagem protocolar, desde que sejam construídas regras de tradução apropriadas. A
segunda forma de linguagem (semelhante à apresentada em “Sentenças Protocolares” por
Neurath), tem a vantagem de unificar a linguagem do sistema e de não haver necessidade de
regras de tradução (1932a, p. 469). E, em seguida, ele afirma:
(...) em todas as teorias do conhecimento até agora tem restado certo absolutismo:
nas realistas, um absolutismo do objeto, nas idealistas (incluindo a fenomenológica),
um absolutismo do “dado”, da “experiência”, do “fenômeno imediato” (...) no
positivismo lógico (...), ele toma a forma de um absolutismo da sentença-primitiva.
(...) Pesando os vários pontos mencionados, a segunda forma de linguagem do tipo
B (...) parece ser a mais adequada entre as formas de linguagem atualmente
discutidas na filosofia da ciência (CARNAP, 1932a, p. 469-470).
13
Destaque do autor.
Capítulo II
2. Introdução
Mas o que resta, então, para a filosofia, se todas as sentenças que afirmam alguma
coisa são de natureza empírica e pertencem à ciência factual? O que resta não são
sentenças, nem uma teoria, nem um sistema, mas apenas um método: o método da
análise lógica (...). No seu uso positivo, o método da análise lógica serve para
clarificar conceitos e sentenças com significado, para lançar os fundamentos lógicos
da ciência factual e da matemática. (...) É esta tarefa de análise lógica, de
investigação dos fundamentos lógicos, que se pretende referir com a expressão
“filosofia científica”, por contraste com a metafísica. (CARNAP, 1932b, p. 77).15
17
Cf. TARSKI, 1933, p. 153.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 37
O intento de Carnap pode ser visto como a busca por traduzir de maneira mais
clara todas as declarações filosóficas proferidas através da língua natural por meio da
construção de uma sintaxe geral aplicável a qualquer linguagem, chamada de “lógica da
ciência” (1937, p. 153 e 282).
Aparte das questões das ciências individuais, apenas as questões da análise lógica da
ciência, de suas sentenças, termos, conceitos, teorias, etc., são deixadas como
questões genuinamente científicas. Nós chamaremos este complexo de questões de
lógica da ciência. (...) Então, de acordo com essa visão, uma vez que a filosofia está
purificada de todo elemento não científico, apenas a lógica da ciência permanece.
(...) a lógica da ciência toma o lugar do inextricável emaranhado de problemas que
é conhecido como filosofia. (CARNAP, 1937, p. 279).20
18
Logística se refere à lógica moderna iniciada por Frege e que estava sob forte influência do Principia
Mathematica de Russell e Whitehead.
19
Grifos do autor.
20
Grifos do autor.
21
Grifos do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 38
sintáticas. Segundo ele: “não assumiremos que símbolo (...) designe qualquer coisa” (1937, p.
5), afirmando que não se deve supor que os símbolos tenham referência extralinguística.
Fixados os símbolos de uma linguagem, a sintaxe desta diz respeito às
possíveis estruturas e relações de ordem e tipo dos símbolos. Os símbolos quando colocados
em série formam as expressões. Uma expressão da linguagem é chamada de sentença quando
consiste em tal e tal modo, de símbolos de tal e tal tipo, ocorrendo em tal e tal ordem (1937, p.
4).
22
Destaque do autor e colchetes nossos.
23
Carnap define sentenças compostas como sentenças que podem ser construídas a partir de sentenças
elementares por meio de aplicações finitas de operações de regras de formação.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 39
“Px” e “Ix”, respectivamente, onde x é uma variável numérica. A sentença “(∀x)(Px ∨ Ix)”
pode ser deduzida das classes infinitas de sentenças: CP = {P0, P2, P4, P6, P8, ..., Pn, ...},
onde n é um número natural par (para facilitar, vamos admitir que zero pertença ao conjunto
dos números pares), e CI = {I1, I3, I5, I7, ..., Im, ...}, onde m é um número natural ímpar.
Carnap dividiu as regras de transformação definidas e indefinidas em dois
métodos dedutivos (1937, p. 99-100):
24
Grifos do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 41
estabelecer as relações entre estas, aplicável a qualquer linguagem. Porém, como Carnap
afirma em sua autobiografia, essa “Sintaxe Geral” não foi nada mais que um esquema
programático para um futuro trabalho, que foi tratado de maneira fragmentada e, às vezes, não
totalmente satisfatória (1963, p. 104).
Enfim, Carnap apresentou a análise sintática da linguagem relativa às duas
linguagens e à Sintaxe Geral e, quando necessário, destacaremos em qual delas a nossa
discussão estará envolvida. No próximo tópico, apresentaremos a sintaxe pura e a sintaxe
descritiva que são necessárias para a construção do modo formal do discurso.
respeito às propriedades dos animais, às relações destes uns com os outros e com demais
objetos; por outro lado, as sentenças lógicas dizem respeito às sentenças da zoologia e às
conexões lógicas entre elas, aos caracteres lógicos das definições ocorrendo naquela ciência,
aos caracteres lógicos das teorias e hipóteses que podem ser (ou tenham sido) desenvolvidas,
e assim por diante (1937, p. 277).
Para Carnap, as frequentes obscuridades presentes nas declarações filosóficas
eram devidas ao uso do “modo material do discurso”, isto é, a forma como expressamos as
declarações filosóficas usando a língua natural. O hábito de formular sentenças, neste modo
de discurso, fazem-nos pensar que estamos lidando com objetos extralinguísticos tais como
números, coisas, propriedades, experiências, estados de coisas, espaço, tempo, verdade,
designação etc. O “modo material do discurso” é constituído de sentenças quase-sintáticas que
são aquelas que não são genuinamente sintáticas (1937, p. 239). Uma vez que fosse possível
traduzir as sentenças quase-sintáticas para sentenças sintáticas em uma determinada
linguagem, Carnap considerava que as disputas filosóficas desapareceriam.
Desse modo, uma sentença lógica, ou uma sentença-objeto, ou um sentença
quase-sintática só terá sentido se puder ser expressa ou traduzida através da sintaxe pura ou
descritiva da linguagem em questão. Apenas essas sentenças expressas ou traduzidas nessa
linguagem pertencerão à lógica da ciência, serão chamadas de “sentenças sintáticas” e
constituirão o “modo formal do discurso” (1937, p. 238 e 280).
A tentativa, ou a efetiva tradução dessas sentenças para sentenças sintáticas,
permite a classificação delas em sentenças analíticas, ou sentenças sintéticas, ou pseudo-
sentenças (sentenças sem sentido). Para um melhor esclarecimento dessa classificação,
trataremos, nos próximos tópicos, separadamente, das sentenças lógicas, sentenças-objetos e
sentenças quase-sintáticas.
d-termos c-termos
(depende do método de derivação) (depende do método de consequência)
Derivação Consequência
Demonstrável Analítico
Refutável Contraditório
Derivação (d-método):
Definição: A derivação de um conjunto de premissas 1, 2, ..., m (este conjunto é sempre
finito e pode ser zero), é uma série de sentenças de qualquer tamanho finito, tal que toda
sentença da série é uma das premissas, ou uma definição25, ou derivável diretamente26 de uma
ou mais das sentenças que a precede na série. Se n é uma sentença final de uma derivação
com as premissas 1, 2, ..., m, então n é dito derivável de 1, 2, ..., m (1937, p. 28).
Demonstrável (d-método):
Definição: uma sentença é demonstrável quando é derivável de uma série nula de premissas e,
por isso, de qualquer sentença (1937, p. 28). Uma derivação sem premissas é chamada uma
“prova”. Uma prova é uma série de sentenças, das quais cada uma é uma sentença primitiva27,
ou uma definição, ou é diretamente derivável das sentenças que as precedem na série. A
sentença final de uma prova é chamada de uma sentença demonstrável (1937, p. 29).
Refutável (d-método):
Definição: uma sentença é refutável quando sua negação é demonstrável (1937, p. 28).
Consequência (c-método):
Definição: Uma sentença 1 é chamada uma consequência da classe de sentenças 1 (a classe
pode ser finita ou infinita), se 1 pertence a toda a classe sentencial i que satisfaça as
25
Uma definição explícita (CARNAP, 1937, p. 23) consiste de uma sentença da forma “ℨ1 = ℨ2” ou “ 1 ≡ 2”,
onde ℨ1 (uma expressão numérica) ou 1 (uma sentença) é chamado definiendum, e contém o símbolo que está
sendo definido, e ℨ2 ou 2 é chamado definiens. O símbolo “=” representa a identidade entre expressões
numéricas e “≡” representa a equivalência entre sentenças (CARNAP, 1937, p. 49).
26
3 é dito “diretamente derivável” de 1 ou de 1 e 2, quando, com a ajuda de uma das regras de inferência
(são apresentadas 4 regras de inferência na Linguagem I, cf. CARNAP, 1937, p. 32), 3 pode ser obtida de 1,
ou de 1 e 2.
27
Segundo Carnap, é usual não formular todo o sistema de regras de inferência, completando esse sistema com
sentenças demonstráveis na base do sistema total de regras que são chamadas sentenças primitivas. A escolha
dessas regras e sentenças primitivas é arbitrária. O sistema pode ser alterado omitindo uma sentença primitiva e
estabelecendo, no seu lugar, uma regra de inferência, e inversamente. (CARNAP, 1937, p. 29). Ele apresenta um
esquema de sentenças primitivas para a Linguagem I, cf. CARNAP, 1937, p. 30.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 45
seguintes duas condições: 1. 1 é uma subclasse de i; 2. Toda sentença que seja uma
consequência direta de uma subclasse de i pertence a i. (1937, p. 172).
Válido (c-método):
Definição: uma sentença é válida quando é consequência de uma série nula de premissas
(1937, p. 173-174).
Contraválido (c-método):
Definição: uma sentença é contraválida quando sua negação é válida (1937, p. 174).
Um sistema é dito consistente quando uma sentença deste e sua negação não
são verdadeiras ao mesmo tempo nesse sistema. E um sistema é dito ser completo, quando
qualquer sentença, , formulável neste, é tal que ou sua negação é demonstrável nesse
próprio sistema; em caso contrário, esse sistema é dito incompleto. Tal teorema de Gödel
significa, portanto, que existem sentenças aritméticas tais que nem elas, nem suas negações,
são demonstráveis no sistema da aritmética que se adotar (como, no caso, da Linguagem I).
28
Os colchetes são nossos.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 46
Uma sentença é dita reduzida quando pode ser transformada em uma forma
padrão (usualmente mais simples), a partir das 9 regras: RR 1-9. Trata-se de um procedimento
que permite converter qualquer sentença dada em outra sintaticamente equivalente, adequada
ao prosseguimento das etapas seguintes. Essa padronização permite visualizar as
características lógicas importantes de uma sentença, para usá-las de maneira simplificada e
organizada. Apresentaremos um resumo das 9 regras (1937, p. 103-105):
RR 1: Todo símbolo definido deve ser eliminado com ajuda de sua definição (na Linguagem
II, todas as definições são explícitas).29
RR 3: Regras para expressões com dois ou mais termos com disjunção e conjunção:
a. Se dois termos de uma disjunção (ou conjunção) são iguais, então, o primeiro deve ser
cancelado.
b. Se 1 é uma disjunção (ou uma conjunção), da qual os dois termos tem a forma 2 e
~ 2, então, 2 deve ser substituído por , o modelo das sentenças analíticas (ou ~ , o
modelo das sentenças contraditórias, respectivamente)30.
c. Se 1 é uma disjunção da qual um membro é , então 1 deve ser substituído por .
d. O termo ~ de uma disjunção deve ser cancelado.
e. O termo de uma conjunção deve ser cancelado.
f. Se 1 é uma conjunção da qual um membro é ~ , então 1 deve ser substituído por
~ .
29
Um símbolo definido na Linguagem II é uma constante indefinida ou uma constante definida através de uma
cadeia de definições das quais nenhum operador ilimitado ocorre (cf. CARNAP, 1937, p. 45). Uma definição
explícita consiste de uma sentença da forma “ 1 ≡ 2”, onde 1 (uma sentença) é chamado definiendum, e
contém o símbolo que está sendo definido, 2 é chamado definiens (cf. CARNAP, 1937, p. 23). Uma vez que
toda definição é explicita na Linguagem II, é possível eliminar um símbolo definido, ocorrendo em 1, através
de variáveis quantificadas (cf. CARNAP, 1937, p. 89-90).
30
Carnap designa a “equação-zero”, em símbolos “0=0”, como o símbolo , que ele utiliza como o modelo para
as sentenças analíticas (cf. CARNAP, 1937, p. 84).
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 48
(∃x)yFx≡¬(∀x)y(¬Fx)31.
31
Cf. Sentenças primitivas PSII9 em CARNAP, 1937, p. 91. A simbologia que utilizamos para os
quantificadores limitados é semelhante ao de Carnap que utiliza as variáveis x e y como os limitantes do
quantificador. Por exemplo, a sentença “(∀x)3(Vermelho(x))” significa o mesmo que:
“Vermelho(0)∧Vermelho(1)∧Vermelho(2)∧Vermelho(3)”, isto é, “toda posição até 3 é vermelha” (cf.
CARNAP, 1937, p. 21).
32
Uma expressão é chamada descritiva quando apresenta predicados descritivos, ou seja, predicados que
expressam propriedades de um objeto linguístico, ou de uma posição, ou uma relação entre vários objetos
linguísticos ou posições, e functors descritivos, ou seja, functors que expressam propriedades e relações de
posição por meio de números; uma expressão é chamada lógica quando não apresentam predicados e functors
descritivos, isto é, aquelas que expressam apenas propriedades e relações lógico-matemáticas. Cf. CARNAP,
1937, p. 13-14 e 25.
33
Cf. CARNAP, 1937, p. 22-23 e 92.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 49
de sentenças. Por exemplo, da sentença do modo material do discurso “x é verde”, que pode
ser traduzido para o modo formal do discurso como “Verde(x)”, formamos a sentença com um
quantificador universal limitado: “(∀x)3[Verde(x)]”, que pela regra pode ser transformada na
sentença “Verde(0)∧Verde(1)∧Verde(2)∧Verde(3)”.
34 R
Essa equivalência é garantida pelo Teorema 34b.1: 1 e são sempre mutuamente deriváveis. (CARNAP,
1937, p. 105).
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 50
expressos formalmente através da série de expressões numéricas: 0, 0’, 0’’, 0’’’, …, obtida a
partir de “0” pela aplicação reiterada da operação de acrescentar o símbolo “ ’ ”, ou através de
“functors”, ou seja, uma função especial que carrega (ou preserva) as relações e estruturas dos
subconjuntos de objetos de uma categoria para outra definidos como ( ) = ′, e
aplicando ao número “0” obtemos a série: 0, u(0), u( u(0)), … Carnap assume os
elementos da série, os quais chama de “expressões acentuadas”, como o conjunto domínio das
sentenças lógicas (TRANJAN, 2010, p. 250). Isto é, a valoração para termos de ordem zero
(de tipo lógico 0, ou seja, termos individuais35), é sempre uma expressão acentuada, como
afirma a regra VR 1.a. Por exemplo, se “x” designa um variável sintática de ordem zero da
Linguagem II, a classe de valoração de “x” será as expressões acentuadas da linguagem: 0, 0’,
0’’, 0’’’, ...
A valoração para uma expressão argumento rg de n termos, do tipo t1, t2, t3,
..., tn (variáveis sintáticas), é uma classe ordenada de valorações que pertencem aos tipos t1 até
tn respectivamente (regra de valoração VR 1.b). Por exemplo, para uma expressão argumento
com 2 variáveis sintáticas x1 e x2, a classe de valoração de x1 e x2 serão os pares ordenados de
expressões acentuadas, (V1, V2), em que a primeira coordenada V1 é a classe de valoração de
x1 (uma expressão numérica por VR 1.a) e a segunda V2 a classe de valoração de x2 (uma
expressão numérica por VR 1.a).
A valoração para uma sentença r( rg), r indica uma expressão predicado e
rg indica um argumento de tipo lógico t1, cujos termos são do tipo {t1}, é uma classe de
valorações do tipo t1 (regra de valoração VR 1.c). Por exemplo, r( rg) pode ser “Primo(x)”
que significa “x é um número primo”, onde “Primo” é uma expressão predicado e “x” é um
argumento de “Primo” (1937, p. 13-14). Assim, a classe de valoração da variável sintática “x”
seria uma expressão numérica, como “ 0’’’ ”, enquanto a classe de valoração do predicado
“Primo” seria um conjunto de expressões numéricas, como {0’’, 0’’’, 0’’’’’, 0’’’’’’’}.
A valoração para uma sentença u( rg1)= rg2, onde rg1 é do tipo lógico t1
e rg2 é do tipo lógico t2, cujos termos são do tipo (t1 : t2), é uma correlação muitos-para-um
por meio da qual, para toda valoração do tipo t1, exatamente uma valoração do tipo t2 está
correlacionada (regra de valoração VR 1.d). Por exemplo, u( rg1)= rg2 pode ser
“Soma(x1, x2) = x3” que significa “a soma de x1 e x2 é x3” onde “Soma” é um functor e x1, x2 e
x3 são variáveis sintáticas, como x1 = 0’’, x2 = 0’’’ e x3 = 0’’’’’. Assim, a classe de valoração
das variáveis sintáticas são expressões numéricas, enquanto a classe de valoração do functor
35
Carnap apresenta uma classificação dos “tipos” de expressões. Cf. CARNAP, 1937, p. 85.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 51
“Soma” seria o conjunto das tríades ordenadas de expressões numéricas, como {(0, 0’, 0’’),
(0’’, 0’’’, 0’’’’’), (0’, 0’, 0’’)}.
Nesse sentido, o primeiro conjunto de regras de valoração (regras VR 1.a-d)
indica como realizar a construção da classe de valorações de tipos lógicos cada vez mais
elevados com base nas classes de valorações de tipos lógicos mais simples. Todas essas regras
remetem, portanto, à valoração de tipo lógico mais simples, que é a valoração de variáveis
numéricas com expressões acentuadas (TRANJAN, 2005, p. 101).
Carnap fornece ainda um segundo tipo de regras que estabelece de que modo,
dentro de uma sentença, a valoração das expressões deve ser feita. Como o primeiro conjunto
de regras de valoração (VR 1), indicava as classes de valorações associadas a cada tipo lógico,
o segundo conjunto de regras (VR 2), indica quais as restrições quanto à valoração das
expressões de acordo com a função que elas têm dentro de uma sentença. A ideia é garantir
coerência na valoração dos diferentes termos de uma sentença. Em resumo, a regra VR 2.a
afirma que a expressão acentuada “0” será tomada como valoração para expressões numéricas
da forma “0”; Pela VR 2.b, se em uma sentença aparece a variável livre x e, em outra posição
dessa mesma sentença, a expressão “ x’ ” (que indica o sucessor de x), a valoração de x’ fica
determinada pela valoração de x. Se x receber como valoração uma expressão acentuada “ 0’’
”, então x’ deve receber como valoração o sucessor dessa expressão, no caso, “ 0’’’ ”;
Segundo a regra VR 2.c, seja as valorações 1 até n satisfazer os termos 1 até n de uma
expressão, então, a classe ordenada 1, 2, ..., n será tomada como a valoração dessa
expressão; Segundo a regra VR 2. d, primeiramente, seja 1 ser uma expressão da forma
r( rg) e sejam as valorações 1 e 2 satisfizerem r e rg respectivamente, então, a
valoração que está correlacionada por 1 para a valoração 2 será tomada como a valoração
de 1; depois, seja 1 ser uma expressão da forma u( rg1) e sejam as valorações 1 e 2
EvR 1. Seja a sentença parcial ter a seguinte forma sintática r( rg), isto é, r indica uma
expressão predicado de determinado tipo lógico e rg indica um argumento do tipo lógico
exigido por r; e seja a valoração 1 e 2 satisfazerem rg e r respectivamente. Se a
valoração 1 pertence à valoração 2, então é substituído por ; caso contrário por ~ .
Por exemplo, seja “Primo (A)” uma sentença na qual “Primo” é uma expressão
de predicado numérico e, consequentemente, “A” é uma expressão numérica. Desse modo, a
valoração de A será uma específica expressão acentuada VA, ao passo que a valoração de
Primo será um específico conjunto de expressões acentuadas VP (o conjunto de expressões
numéricas ao qual o predicado se aplica). Por essa regra, as sentenças parciais “Primo(A)”
deverão ser substituídas por , caso VA pertença a VP; caso contrário, deverão ser substituídas
por ~ . Mais especificamente, se tomarmos como valoração para A, por exemplo, o número
“3”, isto é, VA = 0’’’ (como se escolhêssemos o número 3 para o lugar da expressão numérica
A), uma possível valoração para Primo seria VP = {0’’, 0’’’, 0’’’’’, 0’’’’’’’}, ou seja, a
expressão Primo estaria sendo valorada pelo predicado numérico {2, 3, 5, 7}; Assim, a
expressão acentuada “ 0’’’ ” pertence ao conjunto de expressões {0’’, 0’’’, 0’’’’’, 0’’’’’’’},
isto é, valoração VA pertence a VP. No caso dessas valorações, portanto, a regra EvR 1
determina que a sentença Primo(A) seja substituída por . Se A fosse valorada por outra
expressão numérica, digamos “ 0’’’’ ” (VA = 0’’’’), então VA não pertenceria a VP, e a
sentença deveria ser substituída por ~ .
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 53
EvR 2. Seja a sentença parcial ter a seguinte forma sintática 1 = 2, isto é, a forma de
uma definição explícita; e seja a valoração 1 e 2 satisfazerem 1 e 2 respectivamente. Se
a valoração 1 é idêntica à valoração 2, então é substituído por ; caso contrário por ~ .
em que 1 e 2 são sentenças simples abertas ou fechadas, e se, para certa valoração das
expressões de , 1 é transformada em ℜ , e 2 é transformada em ~ ℜ ; então, pela regras de
avaliação, é transformada em “ ∧ ~ ”. Aplicando as regras de redução, no caso a regra
RR 3.b, obtemos a sentença ~ .
Finalmente, todo esse aparato técnico vem dar apoio à importante definição de
analiticidade da Linguagem II, que, em resumo, quer dizer o seguinte: A definição de
analítico será estruturada de tal modo que uma sentença será chamada analítica se e,
somente se, toda sentença que resulta de por meio da avaliação na base de uma valoração
for analítica; e será chamada contraditória quando pelo menos uma dessas sentenças
resultantes forem uma sentença contraditória. Carnap (1937, p. 111-112) descreve 3 regras –
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 54
DA 1-3 – para definir analítico e contraditório, as quais começam pela definição que abrange
as classes sentenciais (DA 1), depois as sentenças (DA 2) e, por fim, as sentenças com n
quantificadores (DA 3).
seja analítica (ou contraditória), que a classe das sentenças reduzidas das sentenças de
1 seja analítica (ou contraditória, respectivamente).
B. Toda sentença de 1 é reduzida e lógica. É condição necessária e suficiente para que
1 seja analítica que toda sentença de 1 seja analítica. É condição necessária e
suficiente para que 1 seja contraditória que pelo menos uma sentença de 1 seja
contraditória.
C. As sentenças de 1 são reduzidas e pelo menos uma delas é descritiva36.
a. Uma sentença aberta ocorre em 1. Seja 2 ser a classe que resulta de 1
36
Uma sentença é chamada de descritiva quando apresenta predicados descritivos e functors descritivos. Cf.
CARNAP, 1937, p. 13-14 e nota 22.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 55
A. 1 não é uma sentença reduzida. É condição necessária e suficiente para que 1 seja
analítica (ou contraditória) que ℛ (a sentença reduzida de
1 1) seja analítica (ou
contraditória, respectivamente).
B. 1 é uma sentença reduzida e aberta (da forma 1x). É condição necessária e
suficiente para que 1 seja analítica (ou contraditória) que a sentença fechada
seja analítica que 2 seja analítica para toda valoração de x1. É condição
necessária e suficiente para que 1 seja contraditória que 2 seja contraditória
para pelo menos uma valoração de x1.
seja analítica que 2 seja analítica para pelo menos uma valoração de x1. É
condição necessária e suficiente para que 1 seja contraditória que 2 seja
contraditória para toda valoração de x1.
c. 1 tem a forma ou ~ . É condição necessária e suficiente para que 1 seja
analítica que 1 tenha a forma . É condição necessária e suficiente para que
1 seja contraditória que 1 tenha a forma ~ .
D. 1 é uma sentença reduzida, fechada e descritiva. É condição necessária e suficiente
para que 1 seja analítica (ou contraditória) que a classe contendo apenas a sentença
1, representado simbolicamente por { 1}, seja analítica (ou contraditória,
respectivamente).
quando, para pelo menos uma valoração 1 de x1, ou 2 de x2, ..., ou n de xn, 2 é
contraditório em relação à 1, ou 2, ..., ou n.
37
A expressão “ 1 + {~(∀x1)(∀x2)...(∀xn)( ix1x2...xn)}” representa a classe de sentenças 1 acrescida da
sentença “~(∀x1)(∀x2)...(∀xn)( ix1x2...xn)”.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 57
38
Cf. Sentenças Primitivas da Linguagem II em CARNAP, 1937, p. 91-92. A demonstração da analiticidade das
sentenças primitivas segue dos teoremas 34i.2-14 (cf. 1937, p.125-128) e 34h.1-2 (cf. CARNAP, 1937, p. 121-
123).
39
Toda definição na Linguagem II é uma sentença da forma “ 1 = 2”, onde 1 (uma expressão argumento) é
chamado definiendum e 2 é chamado definiens. A demonstração da analiticidade de todas as definições de II
segue da regra de redução RR 1 e o teorema 34e.7 (cf. CARNAP, 1937, p. 115).
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 58
2.2.2 Sentenças-Objetos
Se uma declaração filosófica for dada, então a tradução dela, no modo formal
do discurso, não precisa sempre ser entendida, mas deve sempre ser possível. Sentenças que
não determinam univocamente sua tradução são, assim, demonstradas serem desprovidas de
sentido. De modo geral, sentenças que não fornecem um mínimo de indicação para determinar
a sua tradução são consideradas fora do domínio da lógica da ciência e, portanto, incapazes de
qualquer discussão (1937, p. 313).
As sentenças metafísicas são um tipo de sentenças-objetos, as que tratam de
objetos que não pertencem ao domínio da física, isto é, que não fazem referência aos
processos no espaço e no tempo. Como essas sentenças não lidam com objetos da física, não
podem ser expressas ou traduzidas em sentenças sintáticas. Elas eram chamadas de pseudo-
sentenças e estavam excluídas do domínio da lógica da ciência (1937, p. 278).
Desse modo, para Carnap, uma sentença que não pudesse ser traduzida para
uma sentença sintática era considerada sem sentido; apenas aquelas que puderem ser
traduzidas é que terão sentido e poderão ser classificadas em sentenças analíticas, ou
contraditórias, ou sintéticas. No tópico anterior, apresentamos as sentenças lógicas que,
através da tradução para sentenças sintáticas, tinham a possibilidade de ser classificadas em
sentenças analíticas ou contraditórias. Agora, quando uma sentença sintática não pode ser
classificada, nem como sentença analítica, nem como sentença contraditória, ela será
considerada sintética.
Em geral, as sentenças-objetos que permitem a descrição de algum domínio
específico (como o da física), traduzidas para sentenças sintáticas, eram consideradas
sintéticas, mas também é possível que algumas dessas sentenças-objetos sejam analíticas ou
contraditórias, o que é contemplado nos casos da definição de analiticidade. Por exemplo,
suponhamos que o predicado “Verde” (de um tipo lógico qualquer), seja um predicado
introduzido na Linguagem II. Em geral, a sentença “Verde(A)” – em que A é um argumento
(variável ou constante) do tipo lógico adequado – será sintética. Porém, uma sentença como
“Verde(C)∨~Verde(C)”, (assumindo que C seja uma constante), deverá, certamente, ser
considerada analítica. Já uma sentença como “Verde(C)∧~Verde(C)”, deverá ser considerada
contraditória.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 59
A análise mesmo das sentenças sintáticas que podem ser classificadas como
sentenças sintéticas era tratada apenas sintaticamente, isto é, com regras de formação e
transformação apenas internas à linguagem (voltaremos nesse assunto nos próximos tópicos).
Assim, a análise sintática de algum domínio específico, como parte da lógica da ciência, é a
sintaxe descritiva da linguagem, isto é, aquela que se ocupa das estruturas e relações sintáticas
dos objetos da física fazendo referência apenas a processos no espaço e no tempo. Carnap não
apresenta uma exposição completa dessa análise, diz que apenas oferecerá algumas sugestões
e que deixará a análise completa para uma futura investigação (1937, p. 316).
Ele apresenta as regras de transformação de uma linguagem que possui uma
sintaxe descritiva como sentenças ou leis primitivas, isto é, como sentenças ou leis
presumidas como verdadeiras extralogicamente (1937, p. 316). A questão de escolha de uma
sentença ou lei primitiva é arbitrária (1937, p. 29), isto é, uma questão de convenção. Caso a
nova sentença, ou lei primitiva, inserida na linguagem gere contradição, deve-se omiti-la, ou
mudar as regras de transformação para que a nova sentença, ou lei, seja válida (logicamente);
caso não gere contradição, deve-se conservá-la.
Além disso, apresenta as regras de formação de sentenças e expressões de uma
linguagem que possui uma sintaxe descritiva através de predicados e functors descritivos. Os
predicados descritivos expressam propriedades de um objeto linguístico, ou de uma posição,
ou uma relação entre vários objetos linguísticos ou posições. Por exemplo, “Verde(3)”
significa “a posição 3 é verde”; enquanto os functors descritivos expressam propriedades, ou
relações de posição, por meio de números. Por exemplo, “ !"(3) = 5” significa “a
temperatura na posição 3 é 5”.
Assim, uma sentença-objeto como: “No ponto k1, k2, k3, no instante k4, a
temperatura era k5”, pode ser traduzida para a sentença sintática: “ !"($% , $' , $( , $) ) = $* ”,
em que “temp” é um functor descritivo. Ou ainda, a sentença-objeto “No ponto k1, k2, k3, no
instante k4, há um campo elétrico com os componentes k5, k6, k7” pode ser traduzida para a
sentença sintática: “ +($% , $' , $( , $) ) = ($* , $, , $- )”, onde “el” é um functor descritivo.
Desse modo, a maioria dos conceitos da física e de outras ciências como a
biologia, a sociologia, etc., que são propriedades e relações de certos domínios, podem ser
traduzidas na lógica da ciência (em particular na Linguagem II), desde que apropriados
predicados e functors descritivos sejam introduzidas na linguagem como termos primitivos.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 60
sobre Babilônia. A sentença somente diz alguma coisa sobre a leitura de ontem e a palavra
“Babilônia”.
O mesmo ocorre com sentenças semânticas que envolvem relação de
designação, estas, geralmente, apresentam uma das seguintes expressões semânticas: ‘tratar
de’, ‘falar sobre’, ‘significar’, ‘nomear’, ‘é o nome de’, ‘designar’, etc. Uma sentença como
“A estrela-do-dia designa (ou significa, ou é o nome para) o sol” parece dizer alguma coisa
sobre a entidade física, sol, mas, na realidade, não diz nada sobre o sol, ela somente diz
alguma coisa sobre a palavra “estrela-do-dia” e a palavra “sol”.
Especificamente, fez parte do projeto de Carnap mostrar que as sentenças
semânticas podiam ser traduzíveis em sentenças sintáticas. Ele dedicou várias páginas à
apresentação de exemplos. Vejamos um deles: vamos construir a sentença sintática
correlacionada, ou seja, a tradução para o modo formal, de uma sentença que expressa relação
de designação. Consideremos novamente a sentença:
40
Grifos do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 62
Conteúdo:
Definição: o conteúdo de uma sentença é a classe das sentenças não analíticas (ou não
válidas), que são consequência de . (1937, p. 42, 120 e 175).
Equipolência:
Definição: duas sentenças são equipolentes quando tiverem o mesmo conteúdo. (1937, p. 42,
120 e 176).
Teorema: duas sentenças são equipolentes se, e somente se, cada uma delas for uma
consequência da outra. (1937, p. 120).
Sinônimo:
Definição: duas expressões, 1 e 2, são chamadas sinônimas quando cada sentença 1, em
que ocorre a expressão 1, é equipolente à sentença 2 que surge de 1 quando 1 é
substituída por 2 (1937, p. 42, 120 e 176-177).
Se esta sentença é verdadeira, então ela é falsa, porque o que ela diz é que ela é
falsa (e, portanto, verdadeira e falsa). Se ela é falsa, então ela deve ser verdadeira, pois ela é
exatamente o que ela diz que é. Assim, se ela é falsa, então ela é verdadeira (e, portanto,
verdadeira e falsa). Ou seja, a sentença é verdadeira se, e somente se, ela for falsa. Porém, de
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 64
Foi somente quando conheceu os artigos de Tarski, que Carnap percebeu que a
metateoria também poderia incluir a semântica e ser capaz de construir a “metalinguagem
semântica”, que é distinta e mais rica do que a linguagem-objeto e que permite fazer
enunciados sobre a relação de designação e sobre a verdade lógica e extralógica (1963, p.
111). Esta nova metalinguagem interessou sobremaneira a Carnap, ao ponto deste de tratar,
em suas obras posteriores, da integração da sintaxe com a semântica através da
metalinguagem semântica de Tarski.
Desse modo, o processo de mudança de pensamento de Carnap, frente às
inovações de Tarski, perpassou por discussões comuns entre eles. A fim de apresentar a
relação entre a metalinguagem sintática e a metalinguagem semântica, trataremos, neste
tópico, da metalinguagem sintática que Carnap expôs na “Sintaxe Lógica da Linguagem” e
retomaremos o assunto nos próximos capítulos.
Logo na introdução da “Sintaxe Lógica da Linguagem”, Carnap já apresenta a
distinção entre as duas linguagens, às quais ele dá o nome de linguagem-objeto, como chama
Tarski, e linguagem-sintaxe, no lugar de metalinguagem, que não vai ganhar adeptos na
literatura, e, por isso, usaremos indistintamente os termos “metalinguagem” e “linguagem-
sintaxe”:
(...) nós começaremos por construir a sintaxe e depois, mais tarde, prosseguir com a
formalização dos seus conceitos e, assim, determinar seu caráter lógico. Ao seguir
esse procedimento, interessamo-nos por duas linguagens: em primeiro lugar, pela
linguagem que é objeto de nossa investigação – iremos chamá-la de linguagem-
objeto – e, em segundo lugar, pela linguagem na qual falamos a respeito das formas
sintáticas da linguagem-objeto – iremos chamá-la de linguagem-sintaxe. Como já
dissemos, iremos tomar como linguagem-objeto certas linguagens simbólicas; como
linguagem-sintaxe, usaremos de início simplesmente a língua inglesa com a ajuda de
alguns símbolos góticos adicionais. (CARNAP, 1937, p. 4).41
Carnap é insistente nessa distinção ao longo de sua obra, chega a criticar bons
lógicos por omitirem essa distinção e apresenta várias situações nas quais ela é necessária. Por
exemplo, observa que, às vezes, a abreviação para uma expressão é confundida com a
designação da expressão, mas a diferença é essencial, além disso, enfatiza que, quando se
trata de uma expressão da linguagem-objeto, a abreviação dessa expressão deve pertencer à
linguagem-objeto, mas a designação dela deve pertencer à metalinguagem (1937, p. 157).
O filósofo inicia sua Parte II – A construção da sintaxe da Linguagem I – com
a seguinte pergunta: “Há a necessidade de duas linguagens separadas?” (1937, p. 53). Em
41
Grifos do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 66
42
Destaques do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 67
o que configura uma sentença que expressa a sua própria indemonstrabilidade. E é porque
essa sentença afirma a sua própria indemonstrabilidade que sua eventual demonstração, ou
refutação, produz uma situação paradoxal. Se supusermos que uma linguagem S, que
contenha apenas sentenças lógicas seja não-contraditória, isto é, quando uma sentença de S e
sua negação não são demonstráveis, ao mesmo tempo em S (1937, p. 128 e 207-208), essa
sentença será indecidível (nem demonstrável e nem refutável). Podemos perceber isso, com
base no teorema que afirma que “toda sentença demonstrável é analítica”43, através do
seguinte raciocínio:
(1) Se “Esta sentença não é demonstrável”, é analítica, então, ela não é demonstrável.
(2) Se “Esta sentença não é demonstrável”, é demonstrável em S, então ela não pode ser
analítica, pois em S toda sentença demonstrável é analítica, portanto, “Esta sentença
não é demonstrável”, não pode ser demonstrável em S.
(3) Consequentemente, “Esta sentença não é demonstrável” é analítica, (já que “Esta
sentença não é demonstrável” afirma que não é demonstrável em S), e temos
(4) “Esta sentença não é demonstrável”, é analítica e indemonstrável em S.
(5) Mais ainda, a negação de “Esta sentença não é demonstrável”, isto é, “Esta sentença é
demonstrável”, também não é demonstrável em S, pois se fosse, “Esta sentença é
demonstrável”, deveria ser analítica (toda sentença demonstrável é analítica), e nesse
caso, “Esta sentença não é demonstrável” seria contraditória, contrariando (4).
(6) Conclusão, “Esta sentença não é demonstrável” é analítica e, “Esta sentença não é
demonstrável” e “Esta sentença é demonstrável” são indemonstráveis em S, e,
portanto, nossa linguagem S é incompleta, ou seja, existem sentenças em S que são
analíticas, mas que não são demonstradas em S.
Já havíamos chegado a essa conclusão no tópico 2.2.1, no qual mencionamos
os resultados de Kurt Gödel e destacamos que os d-termos, demonstrável e refutável, são um
critério incompleto de validade para a Linguagem I. Com efeito, o método de aritmetização
permite a construção da sintaxe da Linguagem I, na própria Linguagem I, mas não possibilita
a construção de um critério completo de validade para a matemática.
Na busca do critério completo de validade para matemática, Carnap volta-se
para a construção da Linguagem II. Ainda em busca de defender sua análise estritamente
43
Esse teorema vale para as Linguagens I e II. Cf. CARNAP, 1937, p. 40 e 128.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 68
sintática, ele afirma que também é possível formular a sintaxe da Linguagem II, na própria
Linguagem II. Em suas palavras:
(...) A prova que dissemos anteriormente faz um uso essencial do termo ‘analítico
(em II)’; mas este termo (como nós veremos mais tarde) não pode ser definido em
alguma sintaxe formulada na Linguagem II. (CARNAP, 1937, p. 133-134).
(...) ‘analítico em II’ não está definido em II (veja p. 219) (...). (CARNAP, 1937, p.
149).
44
Colchetes nosso e destaque do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 69
para uma propriedade sintática formulada, em S, uma sentença de S que atribua essa
propriedade a si mesma cause uma contradição.
Como tratamos no tópico 1.2.1, os c-termos, analítico e contraditório,
constituem uma classificação completa das sentenças lógicas de uma linguagem, em outras
palavras, para uma linguagem S, toda sentença lógica de S ou é analítica ou é contraditória. Se
substituirmos na sentença do mentiroso a palavra “falsa” por “contraditório” obteremos:
que corresponde exatamente à sentença do mentiroso, pois, supondo que essa sentença
pertença à linguagem S, podemos observar que ela não está de acordo com o princípio de não-
contradição. Se afirmarmos que a sentença é analítica, ela afirma que é contraditória, e, desse
modo, ela é analítica e contraditória ao mesmo tempo. Do mesmo modo, se afirmarmos que
ela é contraditória, então, ela diz que não é contraditória, e, portanto, ela é analítica.
Conclusão, a sentença é analítica (logicamente verdadeira), se, e somente se, for contraditória
(logicamente falsa), contrariando o princípio de não-contradição.
E o seguinte resultado é apresentado através de um teorema: “Se S é
consistente, ou pelo menos, não-contraditório, então ‘analítico (em S)’ é indefinível em S”
(1937, p. 219)45. E o mesmo pode ser afirmado para outros conceitos do c-método (na medida
em que eles não coincidem com os conceitos do d-método), como válido, consequência,
equipolência, etc.
Desse modo, Carnap conclui que se a sintaxe de uma linguagem L1 contém o
termo ‘analítico (em L1)’, este deve ser definido em uma metalinguagem L2 que seja mais rica
em modos de expressão do que L1. Dessa maneira, o perigo da Antinomia do Mentiroso pode
ser evitado. Por exemplo, a sentença que inicialmente nos conduziu a uma contradição pode
ser reescrita da seguinte maneira,
45
Grifos do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 70
‘analítico em I’ não é definível em I, mas é definível em II; ‘analítico em II’ não é definível
em II, mas é definível em uma linguagem mais rica; ‘demonstrável em I’ pode ser definido
em I, desde que seja um d-termo; e ‘demonstrável em II’ pode ser definido em II (1937, p.
219).46
Enfim, apesar de Carnap apresentar a distinção entre linguagem-objeto e
metalinguagem, para defender sua análise estritamente sintática, ele acredita que é possível
trabalhar com as duas dentro de uma única linguagem, ou seja, acredita que se pode construir
a sintaxe de uma linguagem nela própria, de maneira particular, para os d-termos. Apesar
disso, no decorrer de suas discussões, reconhece que nem todo termo pode ser definido dentro
da própria linguagem-objeto e afirma que, para a definição dos c-termos, de maneira especial
“analítico”, é necessária uma metalinguagem mais rica que a linguagem-objeto para defini-los
e superar as antinomias.
Contudo, essa construção de uma metalinguagem externa à linguagem-objeto,
para definir os c-termos, invalida a análise sintática da linguagem de Carnap. O meio
requerido para definir o conceito de “analítico em II” não é sintático, pois exige uma
hierarquia de linguagens, isto é, há a necessidade de defini-lo fora da linguagem em
investigação (na metalinguagem), e o conceito, estando na metalinguagem, faz referências
extralinguísticas à linguagem em investigação. Carnap estava ciente disso e também propõe
uma solução: “Se nós tomarmos como nossa linguagem-objeto não o todo da Linguagem II,
mas regiões concêntricas, então a nossa linguagem-sintaxe não precisa estar fora do domínio
de II” (1937, p. 113).
O filósofo (1937, p. 88) entende por “regiões concêntricas” da Linguagem II
fragmentos ordenados II1, II2, II3, ..., que formam um série infinita, de tal maneira que a
Linguagem II pode ser considerada a soma das regiões II1, II2, II3, ... No que diz respeito aos
símbolos, sentenças e derivações da linguagem, toda região está contida em todas as regiões
sucessivas. Assim, Carnap faz a seguinte divisão da Linguagem II: a região II1 não contém
predicados e functors, mas contém todos os outros símbolos da Linguagem II. A Linguagem I
está contida em II1; e II1 está contida em todas as outras subsequentes regiões; a região II2
46
Outra conclusão importante de Carnap (1937, p. 221-222), que já tinha sido observada por Gödel, foi em
relação à Aritmética. Sua ideia de trabalhar com apenas uma linguagem foi justificada pela aritmetização da
linguagem, que permitia a interpretação dos termos e sentenças de uma linguagem como sentenças da aritmética,
porém as investigações das antinomias mostraram que qualquer extensão da aritmética formulada em uma
linguagem é necessariamente defeituosa em dois aspectos: não é possível definir alguns termos aritméticos e é
possível afirmar certas sentenças aritméticas irresolúveis, isto é, quando ela não é nem demonstrável e nem
refutável.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 71
contém predicados e functors de primeira ordem; e, de modo geral, a região IIn contém
predicados e functors de ordem . − 1.
Desse modo, não é possível definir “analítico em IIn”, para qualquer n, na
própria IIn como metalinguagem, mas é sempre definível em uma região mais extensível IIn+m
(em particular, na região IIn+1). Através dessa estratégia, toda definição de “analítico em IIn”
pode ser formulada em II como metalinguagem.
No entanto, é duvidoso que a diferença entre a hierarquia de linguagens e uma
linguagem construída hierarquicamente seja suficiente para manter a análise sintática da
linguagem em relação aos conceitos do c-termo. Carnap acredita que construir a hierarquia de
linguagens intralinguisticamente é capaz de preservar seus objetivos sintáticos, mas essa
defesa revela, implicitamente, sua falha. Pois, embora o conceito de analiticidade para alguma
região concêntrica possa ser definida em alguma região subsequente, o conceito geral de
“analítico em II” não pode ser definido na Linguagem II. Assim, mesmo que o método
sintático forneça meios para a análise de uma linguagem, sem recorrer a uma outra
linguagem, muitos conceitos fundamentais da lógica, especialmente o conceito de
analiticidade, não pode ser explicado pela análise sintática da linguagem. A definição desses
conceitos requer o emprego de uma metalinguagem que não esteja contida em sua respectiva
linguagem-objeto (FRIEDMAN, 1988, p. 93 e OBERDAN, 1992, p. 255-256).
Posteriormente, Carnap reconhecerá essa falha do sistema sintático em seu
livro “Introdução à Semântica” de 1942 (p. 247) e tratará de uma solução para a definição dos
c-termos através da utilização da teoria semântica. Voltaremos nesse assunto nos próximos
capítulos, em particular, quando tratarmos de linguagem-objeto e metalinguagem na
concepção de Alfred Tarski.
Devemos frisar que, para Carnap, o papel da lógica da ciência não era de
fornecer o valor-de-verdade de uma sentença sintática externamente à linguagem. A análise
do filósofo permanece sintática mesmo para sentenças sintéticas, isto é, ele desconsiderava a
possibilidade das sentenças sintáticas corresponderem a objetos extralinguísticos e rejeitava o
conceito de verdade extralógica por este não ser um termo sintático.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 72
Carnap atentou para o fato de que se aceitasse o termo “verdadeiro” (no sentido
de verdade extralógica), como sintático, poderia apagar a diferença fundamental entre os
modos material e o formal do discurso. Sua justificativa parte da definição de sentenças
quase-sintáticas. Seja L1 uma linguagem qualquer e L2 uma linguagem que possui apenas
sentenças lógicas, Carnap define a sentença 1 em L1, como uma sentença quase-sintática, se
existe uma sentença lógica 2 em L2, e as seguintes condições são satisfeitas: 1. L1 é uma
sublinguagem de L2; 2. L2 seria a metalinguagem que contém a sintaxe de L1; 3. A sentença
1 em L1 é equipolente à sentença 2 em L2, ou seja, a sentença 2 em L2 é a sentença
sintática correlacionada a sentença quase-sintática 1 em L1 (1937, p. 235-236). Desse modo,
as sentenças do modo material do discurso estariam contidas na linguagem-objeto L1, e as
traduções dessas sentenças para o modo formal do discurso estariam na metalinguagem L2,
sendo que as traduções são construídas através da substituição dos predicados quase-sintáticos
pelos sintáticos correlatos e todo símbolo referente a um objeto pela designação desse
símbolo. O problema surge quando adicionamos o predicado “verdadeiro” a uma linguagem
que possui uma sintaxe descritiva, pois toda sentença dessa linguagem tornaria uma sentença
quase-sintática. Se tomarmos “verdadeiro” como um termo sintático, toda sentença 1x de
uma linguagem descritiva, em relação a uma expressão x, tornaria quase-sintático, pois, pela
condição (3) da definição de quase-sintático, G1x seria sempre equipolente a sentença da
metalinguagem “x é tal que 1x é verdadeiro”, mas “x é tal que 1x é verdadeiro” é uma
sentença quase-sintática, visto que, a veracidade de 1x parece depender da correspondência
para certos objetos “x”, e não para a designação desses objetos, e, consequentemente, 1x é
também uma sentença quase-sintática. Assim, incluir termos semânticos, como “verdade
extralógica”, na metalinguagem sintática, trivializa a definição de quase-sintático e apaga a
distinção entre os modos material e formal do discurso.
Desse modo, Carnap rejeitou a “verdade extralógica”, pois ao contrário
invalidaria a sua análise sintática da linguagem. O instrumento metalinguístico na “Sintaxe
Lógica da Linguagem” só é possível dentro da própria linguagem em investigação, a qual não
tem riqueza suficiente para o tratamento de conceitos semânticos. Portanto, o seu argumento
47
Destaque do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 73
48
A doutrina dos Logicistas foi amplamente desenvolvida na célebre obra Principia Mathematica de Bertrand
Russel e Whitehead, cuja tese fundamental pode ser resumida assim: a matemática reduz-se à lógica. Cf.
COSTA, 1977, p. 3-7.
49
O criador e principal representante dos Formalistas é o analista alemão David Hilbert, um dos maiores
matemáticos contemporâneos. O formalismo nasceu das vitórias alcançadas pelo chamado método axiomático.
Segundo esse método, toda teoria formal Matemática deve ser organizada em um sistema axiomático, ou seja,
possui um certo conjunto de objetos e consta de termos primitivos, regras de formação de fórmulas a partir deles,
axiomas (ou postulados), regras de inferência, proposições e teoremas. Cf. COSTA, 1977, p. 31-33.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 74
interpretação da veracidade ou falsidade das mesmas. Por exemplo, para pelo menos uma
linguagem em geral, as duas sentenças poderiam ser verdadeiras; ou para todas as linguagens,
elas poderiam estar (em partes) erradas; ou para a linguagem da física ou da biologia elas
poderiam nem ser coerentes. Assim, a questão da verdade ou falsidade delas não pode ser
discutida sem referência a uma linguagem, mas podemos questionar se esta ou aquela forma
de linguagem é a mais apropriada para esses conceitos e suas finalidades.
Essa atitude de valorizar a clarificação das sentenças, através da tradução no
modo formal do discurso, e a necessidade de interpretá-las sempre relativa a uma linguagem
determinada, em detrimento da discussão acerca de qual, dentre dois ou mais conceitos,
aquele que é mais correto e da discussão acerca de quais conceitos são permissíveis e quais
devem ser eliminados, é uma atitude tolerante de Carnap que ele chama de: Princípio de
Tolerância.
A formulação geral do Princípio de Tolerância, segundo ele (1937, p. 51), era:
“não é nosso negócio criar proibições, mas chegar a convenções”50. As proibições deveriam
ser substituídas pela diferenciação definicional, isto é, deveríamos substituir as proibições por
uma distinção apropriada das diversas formas de linguagens. Em muitos casos, isso acontece
através de investigações simultâneas (análogo a Geometria Euclidiana e a Geometria Não-
Euclidiana), de formas de linguagem de diferentes tipos – por exemplo, uma linguagem que
admite regras definidas ou indefinidas de transformação, ou uma linguagem admitindo ou não
a Lei do meio excluído.
E acentuava que a discussão devia versar sobre regras sintáticas:
Em lógica, não existe moral. Todos têm a liberdade de criar sua própria lógica, isto
é, sua própria forma de linguagem, da maneira que desejar. Tudo o que se exige, se
quiser discuti-la, é que formule seus métodos claramente e dê regras sintáticas ao
invés de argumentos filosóficos. A atitude tolerante que aqui está sendo sugerida é,
(...), a atitude que é tacitamente compartilhada pela maioria dos matemáticos.
(CARNAP, 1937, p. 52).51
50
Destaque do autor.
51
Destaque do autor.
CAPÍTULO 2. A ANÁLISE SINTÁTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO RUDOLF CARNAP 75
simbólico era aquilo que, primordialmente, tem de ter significado. Se a construção de uma
linguagem formalizada poderia ser significativamente descrita, se seu regime de operação
simbólica poderia ser significativamente instituído, então não deveria haver motivos,
baseados em significado, para sua rejeição (TRANJAN, 2010, p. 237). Em outras palavras,
qualquer cálculo simbólico, desde que fosse bem formulado, era admissível como sistema
formal sintático. Nas palavras de Carnap (1937, p. 164): “Portanto, é uma questão de escolha
da forma da linguagem – isto é, do estabelecimento das regras da sintaxe e da investigação
das consequências destas”.
3. Introdução
significativa da natureza da verdade, mas também foi alvo de muitas críticas, principalmente
por apresentar um conceito que parecia se diferenciar das tendências do positivismo lógico52.
Posteriormente, Tarski apresentou outro importante artigo, “O Estabelecimento
da Semântica Científica” (um resumo da comunicação apresentada no Congresso
Internacional de Filosofia Científica de 1935 em Paris), que reportava o seu desejo de trazer a
semântica à discussão da metodologia científica, o que, até aquele momento, era visto com
bastante suspeição53. E, mais tarde, Tarski ainda publicou outros dois artigos sobre a natureza
da verdade, porém, sem todo o tecnicismo lógico do artigo de 1933, com um caráter mais
filosófico e também com o objetivo de expressar sua opinião a respeito de algumas objeções
que haviam sido levantadas sobre o tema. Tais textos foram publicados em inglês nos anos de
1944, sob o título “The Semantic Conception of Truth and the Foundations of Semantics” (A
Concepção Semântica da Verdade e os Fundamentos da Semântica), e de 1969, sob o título
“Truth and Proof” (Verdade e Demonstração).
No artigo “O Estabelecimento da Semântica Científica”, ele apresenta a sua
interpretação do termo “semântica”, que é usado em seus trabalhos num sentido mais
específico que o habitual:
Vamos entender por semântica a totalidade das considerações que dizem respeito
aos conceitos que, de modo geral, expressam certas conexões entre as expressões de
uma linguagem e os objetos e estados de coisas a que se referem tais expressões.
(TARSKI, 1935, p. 401).
52
Encontramos na autobiografia de Carnap: “Neurath acredita que o conceito semântico de verdade não podia
conciliar-se com o critério estritamente empirista e antimetafísico” (1963, p. 112) característicos do pensamento
de alguns dos componentes do Círculo de Viena.
53
Lembrando que a visão fortemente difundida por alguns adeptos do Círculo de Viena era que a análise da
linguagem deveria ser apenas sintática (como tratamos no capítulo anterior).
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 80
quais os conceitos estão relacionados com a forma e o arranjo dos símbolos que compõem
essa linguagem, em detrimento das línguas naturais54.
Como exemplo de conceitos semânticos de linguagens formalizadas, ele cita os
conceitos de “denotação”, “satisfação” e “definição”, que aparecem, por exemplo, nas
seguintes sentenças:
54
Em alguns de seus textos, Tarski parece se deixar levar pelo entusiasmo geral com sua teoria e acreditar na
extensão da sua teoria semântica para linguagens não formalizadas, como a língua natural. Cf. TARSKI, 1969, p.
114. Mas suas considerações a esse respeito é diferente em “A Concepção Semântica da Verdade e os
Fundamentos da Semântica”, quando ele é reticente quanto às possibilidades de extensão de seus métodos para o
domínio da língua natural. Cf. TARSKI, 1944, p. 338-339.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 81
55
Tarski se utiliza da terminologia lógica medieval. Cf. TARSKI, 1944, p. 334.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 82
56
Tarski se utiliza da terminologia lógica medieval. Cf. TARSKI, 1944, p. 334.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 83
(...) devemos sempre associar a noção de verdade, assim como a de sentença, a uma
linguagem específica; pois é óbvio que a mesma expressão que é uma sentença
verdadeira em uma linguagem pode ser falsa ou sem sentido em outra. (TARSKI,
1944, p. 333).
Para ele (1969, p. 113), a definição de verdade deve ser relativa a uma
linguagem particular. Tarski afirma que a verdade é um atributo das sentenças57 (enquanto
objetos físicos, ou classes de tais objetos), mas acrescenta que ela é um atributo que as
sentenças têm ou não, dependendo, entre outras coisas, do seu significado e da sua estrutura
gramatical na linguagem em questão.
Por isso, de certa maneira, não é correto afirmar “a definição de verdade de
Tarski”, mas sempre uma definição de verdade referente a uma dada linguagem. No ensaio de
1933, o que o autor faz é apresentar a definição de verdade para uma linguagem particular, no
caso a linguagem do Cálculo de Classes, e depois descrever, de um modo geral, como é que o
mesmo método de construção da definição pode ser aplicado a outras linguagens com uma
estrutura mais ou menos semelhante. Nas palavras dele:
Não pretenderemos de todo dar aqui uma definição geral única do termo [“sentença
verdadeira”]. O problema que nos interessa será dividido numa série de problemas
separados, cada um dos quais relativos a uma só linguagem. (TARSKI, 1933, p.
153).58
57
Respeitando as ideias do positivismo lógico, o portador-de-valor-de-verdade escolhido por Tarski precisava
necessariamente ser algo físico (uma cadeia de sons ou de sinais concretos) ou lógico-matemático, o qual, então,
era as expressões linguísticas, mais especificamente, as sentenças declarativas (TARSKI, 1933, p. 156 e
TARSKI, 1944, p. 332-333).
58
Colchetes nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 84
construir uma concepção infalível, neutra em relação a outras concepções e teorias, mesmo
que isso torne a concepção da verdade exclusiva de poucas linguagens.
Por exemplo, as línguas naturais não respeitam as condições impostas e,
consequentemente, falham na construção da concepção semântica da verdade (veremos os
motivos nos tópicos seguintes). Nas palavras do Tarski (1944, p. 338): “(...) para todas as
línguas naturais, linguagens “faladas” – o significado do problema [da definição da verdade] é
mais ou menos vago, e sua solução apenas pode ter um caráter aproximado”59.
Desse modo, Tarski se dedica, principalmente, ao estudo das “linguagens
formalizadas”, isto é, uma linguagem em que sua descrição é especificada claramente e
exatamente. Para ele (1935, p. 403), uma descrição da linguagem é clara e exata apenas
quando sua especificação é puramente estrutural, ou seja, quando empregamos nela somente
os conceitos relacionados à forma e ao arranjo dos símbolos e expressões compostas da
linguagem. Tarski é um daqueles pensadores que veem nas línguas naturais um meio
inadequado para a expressão e o desenvolvimento da ciência e que acalentam a esperança de
que linguagens mais apropriadas a esse fim possam, finalmente, substituir a linguagem de
todos os dias no discurso da metodologia da ciência (1944, p. 338-339 e 1969, p. 112-113). E
chega a afirmar:
59
Grifos do autor e os colchetes são nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 85
• Devemos indicar todas as expressões que decidiremos usar, sem defini-las e que se
chamam termos indefinidos ou primitivos.
• Devemos fornecer as regras de definição para introduzir termos definidos ou
novos.
• Devemos estabelecer critérios para distinguir, dentro da classe de expressões,
aquelas a que chamaremos sentenças.
• Devemos indicar todas as sentenças primitivas ou axiomas, isto é, as sentenças que
decidiremos afirmar sem prova.
• Devemos formular as condições nas quais poderemos afirmar uma nova sentença
da linguagem ou teorema.
• Devemos fornecer as regras de inferência (ou regras de transformação), mediante
as quais poderemos deduzir novas sentenças a partir de outras sentenças
previamente afirmadas.
x é verdadeira ↔ p
e que a palavra “verdadeira” não ocorra na sentença que ocupa o lugar de “p” (isto é, no
definiens). É também necessário evitar-se a falácia do círculo vicioso, que consiste em definir
um termo com base num outro que, por sua vez, é definido com base no primeiro (ou que,
mais indiretamente, é definido com base num terceiro que, por sua vez, é definido com base
no primeiro). Isto se evita impondo-se, como condição, que as expressões que ocorram no
definiens pertençam ao vocabulário primitivo (SANTOS, 2003, p. 99).
Enfim, para Tarski (1944, p. 337-339), uma definição da verdade formalmente
correta segue a especificação da estrutura de uma linguagem, ou seja, a especificação das
sentenças, palavras e conceitos que desejamos usar para definir a noção de verdade e também
das regras às quais a definição deve ser submetida.
Tarski considera que, a limite, a questão só poderá ser resolvida pelo método
do inquérito estatístico aos usuários da linguagem60. Todavia, ainda aí, coloca-se a questão de
saber se os falantes têm, em geral, condições para entender a definição que lhes seria
apresentada, especialmente se esta envolver o recurso a um certo vocabulário técnico.
Para o autor, (1944, p. 334), a questão da adequação tem o seu lugar quando a
definição pretende captar, ou ser, conforme o significado comum, testemunhado pelo uso, da
expressão. Assim, ele nos convida a refletir sobre a questão: ‘em que condições a sentença “a
neve é branca” é verdadeira ou falsa?’. Para Tarski devemos embasar na “concepção clássica”
da verdade, pois diremos que a sentença é verdadeira se a neve é branca; e falsa se a neve não
é branca.
Ele chama de “concepção clássica” a concepção filosófica da verdade que,
hoje, é mais comumente conhecida por “concepção correspondentista” ou “concepção da
verdade-como-correspondência” e opõe-na às concepções rivais como a pragmática61 e a
coerentista62. Como formulações representativas da concepção da verdade-como-
correspondência, Tarski menciona as seguintes (1933, p. 153-155; 1944, p. 333-334; 1969, p.
102):
(1) Dizer daquilo que é que não é, ou daquilo que não é que é, é falso, enquanto
dizer daquilo que é que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro.
60
Cf. TARSKI, 1944, p. 354-355.
61
A verdade pragmática é fundada em consequências básicas ou efeitos práticos de uma crença. O pragmatismo
teve, como fundador, Charles Sanders Peirce, em um artigo intitulado “How to make our ideas clear” de 1878.
Contudo, Peirce, mais tarde, muda o nome de sua teoria de pragmatismo para pragmaticismo, pelo fato de os
filósofos John Dewey, F.C.S. Schiller e William James (1907) terem se apropriado do nome pragmatismo. E, nas
palavras do Peirce, “pragmatismo é uma teoria de análise lógica ou de definição de verdade; e seus maiores
méritos estão em suas aplicações às mais elevadas concepções metafísicas”. (PEIRCE, 1934, v.6, p. 490 apud
IBRI, 1992, p. 102). Para Peirce (1878, p. 199), a distinção entre crença e dúvida constitui uma diferença prática.
As crenças guiam nossos objetivos e moldam nossas ações; a crença é uma indicação mais ou menos certa de
que se estabeleceu em nós algum hábito e, além disso, crenças diferentes são distinguidas pelos diferentes modos
de ação a que dão origem. Por outro lado, a dúvida não produz esses efeitos, ela constitui um estado difícil e
incômodo com o qual lutamos para nos livrar e passar para um estado de crença. E é esse estado incômodo, a
dúvida, que nos impele à investigação, à busca de um estado estável, à uma crença. Assim, para Peirce, a
verdade de uma concepção constitui-se na opinião, a qual está destinada a ser finalmente estabelecida por todos
que a investigam. Mas esse consenso deve ser o do final de uma exaustiva investigação empírica. Nesse
momento, e somente nesse, nossas concepções corresponderão à realidade.
62
As teorias coerentistas não seguem um padrão exato e o próprio termo “coerentista”, como acentua Richard
Kirkham (1992, p. 152), nunca foi definido satisfatoriamente. O máximo que pode ser fornecido como um
esboço geral, segundo Kirkham (1992, p. 152-153), é que um conjunto de duas ou mais crenças é dito coerente
se e somente se: (1) qualquer membro do conjunto é consistente com qualquer subconjunto de outros membros e
(2) cada qual é implicado por todos os outros tomados como premissas (ou, de acordo com algumas teorias
coerentistas, cada um é implicado por cada um dos outros tomados individualmente). Segundo Susan Haack
(1978, p. 138), nem todos os coerentistas concordavam com a necessidade dessas duas cláusulas, as quais ela
chama de consistência e amplitude, respectivamente. Por exemplo, ela cita que alguns coerentistas acreditavam
que a primeira cláusula era o suficiente, enquanto outros afirmavam a necessidade das duas.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 88
(2) Uma sentença verdadeira é uma sentença que diz que o estado de coisas é tal e
tal e o estado de coisas é efetivamente tal e tal.
(3) A verdade de uma sentença consiste na sua concordância (ou conformidade, ou
correspondência) com a realidade.
(4) Uma sentença é verdadeira se designa um estado de coisas existente.
em que a letra “p” deve ser substituída por qualquer sentença da linguagem e “X” por um
nome dessa sentença.
Como exemplo da forma T, temos:
sendo que “Sócrates é mortal” (com aspas), é um nome da sentença e Sócrates é mortal é a
própria sentença. A qualquer sentença com a forma dessa equivalência, passaremos a chamar
“sentença-T”.
Tarski (1944, p. 354-355), defende a convenção T como o critério de
adequação material afirmando que, se fosse feito um inquérito aos falantes de uma língua
natural como o português, em que lhes fosse apresentada uma amostra de sentenças-T, eles
dariam o seu acordo, se não todos, pelo menos uma grande maioria, a essas sentenças. Ou
seja, ele julga que as sentenças-T refletem o aspecto essencial do uso corrente da expressão “é
verdadeira” (na sua aplicação a sentenças declarativas), de tal modo que estar de acordo com
as sentenças-T é estar de acordo com o significado implícito no uso corrente da expressão.
É importante frisarmos que essa equivalência não pode sugerir que a sentença
que ocupa o lugar de “X” não seja o nome de uma sentença particular e pertença a uma
linguagem geral; e a sentença que ocupa o lugar de “p” seja como fatos no mundo, pois, com
isso, somos levados a acreditar que essa condição de adequação material seria a expressão de
uma concepção da correspondência entre linguagem e mundo63, o que não é o ponto de vista
de Tarski (trataremos mais desse assunto nos próximos tópicos).
Uma grande importância filosófica da convenção T e que, realmente, reflete a
relação entre os termos “X” e “p” está na distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem
para evitar antinomias. O termo “X” deve ser substituído por um nome de qualquer sentença
da linguagem-objeto e o termo “p” pela expressão que forma a tradução dessa sentença na
metalinguagem (trataremos mais desse assunto nos próximos tópicos).
Em resumo, nas palavras do próprio Tarski,
63
Por exemplo, Popper acreditava que a convenção T era uma reabilitação da teoria da verdade como
correspondência. Cf. POPPER, 1972, p. 249 e POPPER, 1973, p. 297-302. Cf. Tópico 3.6 A interpretação de
Carnap à teoria de Tarski.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 90
64
Grifos do autor.
65
Tarski expressa essa dificuldade em TARSKI, 1933, p. 188 e TARSKI, 1944, p. 336.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 91
Não se pode concluir dessas sentenças que o discípulo de Sócrates tem seis
letras, pela simples razão de que (II) não diz nada acerca de Platão (o discípulo de Sócrates),
mas fala apenas da palavra “Platão”, a qual é formada pelas letras “P”, “l”, “a”, “t”, “ã” e “o”.
Em casos como esse, diz-se que, em (I), a palavra “Platão” é usada para indicar a pessoa que
foi discípulo de Sócrates, enquanto, em (II), é a própria palavra que é mencionada – e
escrevemos “Platão”.
De modo análogo, na sentença ““A neve é branca” é verdadeira se, e somente
se, a neve é branca”, o definiendum nada diz acerca da neve. Enquanto o definiens fala da
neve e diz que ela é branca. O definiendum fala apenas de uma certa sentença e diz que ela é
verdadeira. Tal como para falar da neve usamos, não a própria neve, enquanto matéria, mas
apenas o seu nome, para falar de uma sentença usamos, não a própria sentença, mas um nome
desta.
A ilusão de circularidade é fruto dos termos usados para formar o nome da
sentença de que queremos falar. O método mais comum de citação é escrever a sentença que
pretendemos nomear entre aspas, mas existem outras maneiras de formarmos os nomes
destas. Nas línguas naturais, há a possibilidade de mencionar, por citação ou por outros
métodos, as sentenças de outras línguas. Isso permite, por exemplo, referirmo-nos (em
português) à sentença inglesa “Snow is white” e explicarmos, em português, em que
condições ela é verdadeira:
Essa é uma sentença correta, que deve ser considerada como uma definição em
português da verdade da sentença inglesa “Snow is white”.
A sentença-nome poderia também, segundo Tarski (1933, p. 156), ser descrita
quanto à sua estrutura. Por exemplo, indicando como uma sentença pode ser formada a partir
de um certo elenco de símbolos – de letras (maiúsculas ou minúsculas), acentos, sinais de
pontuação e espaços (em suma, de um conjunto de símbolos tal como aquele que encontramos
num teclado de computador). A principal vantagem desses nomes estruturais-descritivos, por
comparação com os mais habituais nomes citacionais, é que eles tornam mais claro o caráter
de objeto físico (ou de classe de tais objetos com uma forma semelhante). Por exemplo,
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 92
Vocabulário de L1:
Conectivos sentenciais: Λ , V
Parênteses: ( , )
A, B, (A Λ B) e (A V B).
66
Cf. Tópico 2.1 Definição Formalmente Correta da Verdade.
67
Cf. Tópico 2.2 Definição Materialmente Adequada da Verdade.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 93
Portanto, uma definição completa da verdade para essa linguagem seria uma
conjunção lógica de todas essas sentenças-T. A conjunção seguinte é exatamente esse tipo de
conjunção lógica68:
Nós, assim, chegamos à sentença que pode realmente ser aceita como a
desejada definição geral da verdade: ela é formalmente correta e adequada ao sentido em que
implicam todas as equivalências da convenção T.
A linguagem escolhida possui um vocabulário mínimo, para reduzir o trabalho
que deve ser realizado para definir a verdade, mas ela é o suficiente para observarmos que a
conjunção lógica de um número limitado de sentenças é viável. Porém, se houvesse um
número infinito de sentenças essa conjunção lógica seria inviável.
Então, Tarski, para resolver esse problema, desvia sua atenção para outro
conceito: o de satisfação. A ideia será definir o conceito semântico de satisfação e, depois,
definir verdade em termos de satisfação. Discutiremos essa estratégia nos próximos tópicos,
mas, antes, será importante compreendermos a visão de Tarski sobre metalinguagem e
linguagem-objeto, a partir da necessidade de superar os problemas advindos da Antinomia do
Mentiroso.
68
Cf. TARSKI, 1969, p. 107, item (5).
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 94
Vamos tomar “s” como sendo a abreviação dessa sentença. Podemos observar
que “s” é uma sentença autorreferente, mas também gramatical e pertencente à linguagem
natural. Olhando para a linha 29 da página 94 desta tese, nós facilmente observamos que “s” é
apenas a sentença impressa nessa página, ou seja,
Como nosso uso do termo “verdade” é adequado, nós podemos afirmar a forma
T em que “p” é substituído por “s”. Assim, temos que:
Agora, lembrando que “s” é a sentença (i), nós podemos substituir “s” por (i)
no definiens e obtemos:
(iv) “s” é verdadeira se, e somente se, a sentença impressa na linha 29 da página 94
desta tese é falsa.
Isso nos conduz a uma contradição: “s” prova ser tanto verdadeira quanto falsa.
Partindo de sentenças plausivelmente verdadeiras e usando regras de inferência que
conservam a verdade, somos conduzidos a uma conclusão logicamente falsa. Estamos diante
de uma grande dificuldade, mas, como bom lógico, Tarski declara que não podemos nos
conformar com esse fato. Temos de descobrir sua causa:
69
Regra de substituibilidade dos idênticos: dada a identidade afirmada em (ii), a lei autoriza que, em (iv),
substituamos “a sentença impressa na linha 29 da página 94 desta dissertação” por “s”, obtendo assim a
conclusão (TARSKI, 1944, p. 339).
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 96
(iii) não é realmente uma instância da forma T, ou ela é, mas nem todas as instâncias da forma
T são gramaticais. Porém, para que uma sentença se qualifique como uma instância da forma
T (X é verdadeira se, e somente se, p), basta que no lugar de “X” seja inserido um nome de
uma sentença, gramaticalmente correta, da linguagem a cujas sentenças o predicado “é
verdadeiro” se refere, e que, no lugar de “p”, esteja uma tradução dessa sentença. E sentenças
do tipo (i) são indubitavelmente da língua portuguesa, com significado, e não violam a
gramática dessa língua. Ora, se (i) é uma sentença da língua portuguesa, então (iii) é uma
equivalência irrecusável da forma T.
Assim, a responsabilidade pela contradição deve ser atribuída à ideia de que
todas as instâncias da forma T são gramaticais, porém, essa ideia é inerente à definição da
verdade (lembrando que a definição refere-se à conjunção das sentenças-T), ou seja, a
contradição acontece porque o nosso uso do termo “verdade” é inadequado. Logo, a
responsabilidade pela contradição está na própria “concepção da verdade”, a qual deveria, por
isso, ser abandonada.
Tarski está consciente de que é esse o dilema que enfrenta, ou seja, abandonar
a noção de verdade, e, com ela, uma série de outras noções semânticas, ou impor-lhe
restrições. Inclusive o autor cita uma solução radical do problema: “(...) devemos
simplesmente remover a palavra verdade do vocabulário inglês ou pelo menos nos abster do
seu uso em algumas discussões sérias” (1969, p. 110-111). Tarski (1969, p. 112), realmente,
pretende procurar uma solução que “mantenha essencialmente o conceito clássico da verdade
intacto”, mesmo que para isso “a aplicabilidade da noção da verdade tenha que suportar
algumas restrições”.
Para o autor (1933, p. 267), uma coisa é propor uma modificação de uma
linguagem artificial para uso exclusivo de lógicos e matemáticos, outra seria ter a pretensão
de reformar as próprias línguas naturais, cuja razão de ser está longe de se esgotar no objetivo
de expressar e comunicar teorias científicas. Como veremos, é essa atitude perante as línguas
naturais que está na origem da sua conclusão negativa segundo a qual: “Na linguagem
coloquial, parece ser impossível definir a noção de verdade ou, sequer, usar essa noção de
uma maneira consistente e de acordo com as leis da lógica” (1933, p. 153).
Analisemos, então, o argumento em que Tarski estabelece esta conclusão. Ele
cita três suposições referentes às linguagens que conduzem à antinomia do mentiroso:
(II) Temos suposto que, nessa linguagem, as leis ordinárias da lógica são válidas.
(III) Temos suposto que podemos formular e afirmar em nossa linguagem uma
premissa empírica como a sentença (2)70 [sentença (ii) é um exemplo de (2)] que
ocorreu no nosso argumento. (1944, p. 340).71
As três condições que Tarski aqui identifica devem ser aplicadas a qualquer
linguagem na qual a antinomia do mentiroso seja formulável. Desse modo, elas se aplicam
também às línguas naturais. Podemos dizer que (I) atribui às línguas naturais propriedades
responsáveis por tornar (iv), não só uma sentença com significado em uma dada língua
natural, mas uma sentença gramatical nela. E (III) faz o mesmo a respeito de (ii), isto é, ela
equivale a afirmar que (ii) é uma sentença gramatical em uma dada língua natural. As
propriedades que (I) atribui às línguas naturais são (SANTOS, 2003, p. 136):
Uma linguagem que possui as propriedades (a), (b) e (c) é uma linguagem
“semanticamente fechada”.
Estes três fatos, concernentes às línguas naturais, têm como consequência que
uma sentença contraditória, como (v), seja verdadeira em certa língua natural – e é isso que
Tarski quer dizer quando afirma que uma linguagem na qual se verifiquem as três condições
enunciadas é uma linguagem inconsistente. Nas palavras do autor:
Estas antinomias parecem fornecer uma prova de que todas as linguagens que são
universais no sentido acima [o mesmo que semanticamente fechada] e para quais as
70
Sentença (2): “‘s’é idêntica à sentença impressa na página 339, linha 11, deste trabalho” (TARSKI, 1944, p.
339).
71
Os colchetes são nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 98
leis normais da lógica vigoram, devem ser inconsistentes. (TARSKI, 1933, p. 164-
165).72
Ou seja,
• A condição (III), que corresponde a afirmar que (ii) é uma sentença gramatical
em uma dada linguagem, pode ser ignorada, pois, segundo Tarski, é possível
reconstruir a antinomia do mentiroso sem sua ajuda74.
72
Os colchetes são nossos.
73
Destaque do autor.
74
Tarski não esclarece porque a formulação da antinomia do mentiroso não precisa envolver uma premissa
empírica como (ii). Ele tenta reconstruir, de maneira aproximada, a formulação da antinomia sem se utilizar da
premissa (ii), mas não é inteiramente clara. Cf. TARSKI, 1944, p. 358, nota de rodapé 11.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 99
Assim, Tarski rejeita a suposição (I) por causa das consequências de aceitá-la,
ou seja, com a intenção de mostrar as condições que não se podem verificar em uma
linguagem, e aqui ele está se referindo a qualquer linguagem, isto é, não apenas à língua
natural, para qual seja possível um uso consistente e uma definição correta da noção de
verdade, relativa às sentenças dessa linguagem.
Tarski conclui que, se queremos construir uma definição satisfatória da noção
de verdade, temos de nos abster de tomar como objeto qualquer linguagem na qual a condição
(I) se verifica.
No artigo de 1933, a aceitação das consequências da antinomia é bem visível.
Depois de mostrar que a linguagem a que chama “coloquial” – isto é, a linguagem na qual a
antinomia pode ser formulada – é semanticamente fechada (ou ‘universal’) e, por isso,
inconsistente, Tarski conclui o seguinte:
Assim, devemos definir dois tipos de linguagens as quais serão (1933, p. 167;
1944, p. 341-343; 1969, p. 114-115):
Como regra geral, temos então de distinguir as duas linguagens que estão
envolvidas em cada definição parcial de verdade – X é verdadeira se ,e somente se, p –, por
um lado, a linguagem na qual a definição é expressa (metalinguagem) e, por outro, a
linguagem a que pertence a sentença cuja verdade estamos a definir (linguagem-objeto). Na
convenção T, o símbolo “X” deve ser substituído por um nome de qualquer sentença da
linguagem-objeto e do símbolo “p” pela expressão que forma a tradução dessa sentença na
metalinguagem (TARSKI, 1933, p. 188).
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 101
Concluímos, então, que a metalinguagem, que fornece meios suficientes para definir
verdade, deve ser essencialmente mais rica do que a linguagem-objeto; ela não pode
coincidir e nem ser traduzível nesta última, visto que, de outra forma, ambas as
linguagens se tornariam semanticamente universais [ou fechadas] e a antinomia do
mentiroso poderia ser reconstruída em ambas. (TARSKI, 1969, p. 115).76
76
Os colchetes são nossos.
77
No artigo “O Estabelecimento da Semântica Científica”, Tarski ainda enuncia um resultado quanto a essa
necessidade da riqueza da metalinguagem se nos restringirmos a linguagens baseadas na teoria de tipos: é
possível construir na metalinguagem definições metodologicamente corretas e materialmente adequadas dos
conceitos semânticos se e somente se a metalinguagem for dotada de variáveis de tipo lógico superior ao de
todas as variáveis da linguagem que é tema de investigação (TARSKI, 1935, p. 406).
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 102
Essa é uma característica que Carnap não reconhece na “Sintaxe Lógica da Linguagem”78. A
sua defesa de uma análise estritamente sintática não poderia permitir que a linguagem-objeto
e a metalinguagem fossem duas linguagens separadas. Esse é o ponto de fracasso que derruba
o conceito de analiticidade de Carnap, isto é, que o conceito geral de “analítico em II” só é
possível em uma metalinguagem mais rica que a Linguagem II.
Enfim, tendo em mãos esse conhecimento, partiremos agora para a definição
do conceito de satisfação, que auxilia na definição de verdade para linguagens com um
número infinito de equivalências da forma T.
78
Cf. Tópico 2.3 Linguagem-Objeto e Metalinguagem.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 103
membros do conjunto são construídos a partir daqueles mais básicos. Contanto que haja um
número finito de membros básicos do conjunto e um número finito de meios que podem ser
combinados para formar novos membros, um número infinito de novos membros do conjunto
pode ser definido por esse procedimento.
Os membros, segundo Tarski, são funções sentenciais (1933, p. 177; 1944, p.
345), que é uma função composta de sentenças abertas, sendo que estas são expressões
gramaticalmente completas exatamente como uma sentença, a não ser pelo fato de que
possuem variáveis, em um ou mais lugares nos quais se esperaria encontrar um nome, em
outras palavras, variáveis livres (KIRKHAM, 1992, p. 216). Como exemplos de funções
sentenciais temos,
x é discípulo de Sócrates.
x é o pai de z.
a está entre y e z.
y é verdadeiro e x é falso.
Uma sentença aberta não é uma sentença e não podemos afirmar nada sobre
ela, inclusive se ela é verdadeira ou falsa. Podemos transformar uma sentença aberta numa
sentença ao fechá-la. Há dois modos de se fazer isso: substituir as variáveis por nomes, ou
ligar as variáveis a quantificadores. (A lógica exigida pela matemática pode ser satisfeita
apenas com os quantificadores existenciais e universais). Desse modo, uma sentença pode ser
definida “simplesmente como uma função sentencial que não contém variáveis livres”
(TARSKI, 1944, p. 345). Por exemplo, a sentença aberta:
possui apenas um valor para x, a saber x = 2. Se atribuímos a x esse valor, obtemos a sentença:
funções sentenciais, a saber, as que não possuem variáveis livres. O método recursivo não
exibe todas as sentenças da linguagem, já que especifica as que são abertas e a composição
destas, mas não as sentenças.
Tarski (1933, p. 189), sugere, então, que busquemos um conceito mais geral,
que seja aplicável para as funções sentenciais, podendo ser definido recursivamente e que,
quando aplicada para as sentenças, conduza-nos diretamente para o conceito de verdade.
Essas exigências são encontradas na noção de “satisfação de uma dada função sentencial por
certos objetos”. Ele recorre ao termo semântico “satisfação”, pois este expressa relação entre
objetos arbitrários e funções sentenciais (TARSKI, 1944, p. 345).
Por exemplo, a sentença,
2 é um número par,
é satisfeita pela sequência vazia 〈 〉, isto é, por aquela que não contém nenhum elemento, pois
não depende de nenhum objeto específico para ser satisfeita. Note que, para Tarski (1933, p.
345), o conceito semântico de satisfação não deve ser visto como um critério de verdade,
desse modo, a sentença “2 é um número ímpar”, também é satisfeita pela sequência vazia 〈 〉.
Por outro lado, a sentença aberta com uma variável livre,
x é professor de y,
é satisfeita pela sequência 〈Sócrates, Platão〉. E podemos observar que a sequência contrária
〈Platão, Sócrates〉, intuitivamente, não satisfaz a sentença aberta. Quando mudamos a ordem
dos objetos numa sequência, mudamos a sequência. Notemos também que podemos conceber
sentenças com um número arbitrário de variáveis livres.
Desse modo, funções sentenciais compostas de sentenças abertas, Fx1x2...xn,
serão satisfeitas por sequências finitas, 〈a1, a2, ..., an〉, e sentenças (sem variáveis livres e sem
quantificadores), serão satisfeitas por sequências vazias. Porém, Tarski, para evitar
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 105
dificuldades técnicas79, prefere utilizar sequências infinitas, o que é apenas uma generalização
do caso com sequências finitas, defendida pelo
Lema A (1933, p. 198): Se a sequência 〈a1, a2, ..., an, ..., am〉 satisfaz a função sentencial
Fx1x2...xn e a sequência infinita 〈b1, b2, ..., bn, bn+1,...〉 é tal que para todo k, k ≤ n, bk = ak, se x1,
x2, ..., xn são variáveis livres, então a sequência infinita 〈b1, b2, ..., bn, bn+1,...〉 satisfaz
Fx1x2...xn.
Em outras palavras, uma dada sequência satisfaz, ou não, a uma certa função sentencial
depende apenas daqueles termos da sequência que correspondem (em seus índices) às
variáveis livres da função.
Para uniformizar o modo de expressão, a satisfação será definida como uma
relação entre funções sentenciais e sequências infinitas, sob a convenção de que Fx1x2...xn é
satisfeita pela sequência 〈a1, a2, ..., an, an+1,...〉, nos casos em que é satisfeita pelos primeiros n
objetos da sequência, podendo o restante ser ignorado (TARSKI, 1933, p. 191; HAACK,
1978, p. 151). Ou seja, por exemplo, a sentença aberta “x1 é verde” é satisfeita por uma
sequência infinita de objetos apenas no caso em que ela é satisfeita pelo primeiro elemento
dessa sequência. Não importa como sejam os outros elementos da sequência, e não importa se
esses outros objetos satisfazem “x1 é verde”; eles são irrelevantes. Como a variável na
sentença aberta é a variável de índice 1, somente importa o primeiro elemento da sequência.
Do mesmo modo, se a sentença aberta tiver uma variável de índice 2, somente importa o
segundo elemento da sequência. E esse mesmo raciocínio vale para as sentenças abertas com
variáveis livres de qualquer índice.
Todo esse processo pode ser descrito em termos gerais como segue (TARSKI,
1933, p. 192):
79
Cf. Nota de rodapé 15 em TARSKI, 1944, p. 359.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 106
1. Sentenças abertas simples não têm valores-de-verdade, isto é, não são verdadeiras
e nem falsas, mas são satisfeitas (ou não satisfeitas) por sequências de objetos (em
termos gerais por n-uplas ordenadas de objetos).
2. A negação de uma sentença aberta simples F1 será satisfeita por todas as
sequências que não satisfazem F1.
3. A conjunção de sentenças abertas simples F1 e F2 será satisfeita por aquelas
sequências que satisfazem tanto F1 quanto F2.
Neste contexto, Tarski (1944, p. 345), ressalta que essa noção de satisfação
pode sugerir o seguinte: cada variável livre, em uma função sentencial, pode ser substituída
por um nome de um objeto fazendo dela uma sentença verdadeira. E, assim, resulta que
nossas intuições, sobre quando a sentença é verdadeira, guia nossas intuições sobre quando
uma sequência satisfaz a função. Contudo, isso não pode entrar na definição formal de
verdade, porque ‘substituir a variável por um nome do objeto’ é uma noção semântica e a
definição da verdade de Tarski tem de ser construída apenas através dos conceitos usuais da
metalinguagem e, assim, reduzidos a conceitos puramente lógicos, os conceitos da linguagem
que está sendo investigada e os conceitos específicos da sintaxe da linguagem e evitar termos
semânticos primitivos (HODGES, 2010). Desse modo, o objetivo de Tarski, na construção da
definição de satisfação, é relacionar sequências de objetos às funções sentenciais de tal modo
que possamos, posteriormente, definir “verdade” com as sentenças resultantes. Nesse
raciocínio, toda função sentencial, composta de sentenças abertas, que for satisfeita por pelo
menos uma arbitrária sequência infinita de objetos transforma em uma sentença (sem
variáveis livres).
Agora, no caso de sentenças (sem variáveis livres e sem quantificadores), a
satisfação por uma sequência não depende, de modo algum, das propriedades dos termos
desta. Desse modo, pelo Lema A, se sabemos que uma sequência vazia satisfaz uma sentença,
então qualquer sequência infinita satisfaz essa sentença. E, através do
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 107
Lema B (1933, p. 198): se F é uma sentença e ao menos uma sequência infinita satisfaz a
sentença F, então toda sequência infinita satisfaz F,
podemos concluir, que toda sequência infinita satisfaz uma sentença (sem variáveis livres e
sem quantificadores), ou nenhuma sequência satisfaz. Tal conclusão serve de ponto de partida
para Tarski definir “verdade”.
Concluída a definição de satisfação para as funções sentenciais composta de
sentenças abertas e para sentenças (sem variáveis livres e sem quantificadores), sempre
relativas a uma linguagem, Tarski define diretamente a verdade e a falsidade de sentenças
através da satisfação dizendo “uma sentença é verdadeira se é satisfeita por todos os objetos
(ou toda sequência infinita de objetos) e falsa em caso contrário” (1933, p. 195 e 1944, p.
346)80.
Para completar a definição de satisfação, faltam as sentenças quantificadas. Na
definição de satisfação, até agora apresentada, as sentenças abertas, que são satisfeitas por
pelo menos uma arbitrária sequência infinita de objetos se tornam sentenças, e não
encontramos dificuldade em construir a definição de verdade a partir delas. No caso das
sentenças com quantificadores, a ideia é semelhante, mas é preciso observar uma
característica própria do quantificador (TARSKI, 1933, p. 193):
80
Destaques do autor e os parênteses são nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 108
é satisfeita por qualquer sequência R, naqueles casos em que “x1 é um número primo” (a
sentença aberta que resulta da eliminação do quantificador existencial), for satisfeita por
alguma sequência S, que difere no máximo na primeira posição, isto é, quaisquer dois termos
correspondentes de R e S deverão ser idênticos, com exceção do primeiro termo de R e S que
podem ser distintos (TARSKI, 1933, p. 171-172). Por exemplo, se tomarmos a sequência R
como sendo [2, 3, 4, 5, 6, 7, ...], a sequência S teria que ser:
ou seja, toda sequência S do seguinte padrão [x1, 3, 4, 5, 6, 7, ...], em que x1 pode ser
qualquer número primo, satisfaz “x1 é um número primo”. Logo, a característica que o
quantificador existencial exige para que a expressão “(∃x1) x1 é um número primo” seja
satisfeita por qualquer sequência R é que exista, ao menos, uma sequência S, diferindo de R
no máximo na primeira posição, que satisfaça a sentença aberta “x1 é um número primo”.
Como foi possível exibir essa sequência, qualquer sequência de objetos satisfaz a sentença
é satisfeita por qualquer sequência R, naqueles casos em que “x1 é um número par” (a
sentença aberta que resulta da eliminação do quantificador universal), for satisfeita por todas
as sequências S que diferem no máximo na primeira posição. Por exemplo, se tomarmos a
sequência R como sendo [2, 3, 4, 5, 6, 7, ...], todas as sequência S teriam que ser da forma:
para que a expressão “(∀x1) x1 é um número par” seja satisfeita por qualquer sequência R é
que todas as sequências S, diferindo de R no máximo na primeira posição, satisfaçam a
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 109
sentença aberta “x1 é um número par”. E como “qualquer” sequência R satisfaz “(∀x1) x1 é
um número par”, então, “todas” satisfazem.
Portanto, a definição de verdade ou falsidade de sentenças com quantificadores
também fica “uma sentença quantificada é verdadeira se, e somente se, é satisfeita por todas
as sequências de objetos e falsa em caso contrário”.
Enfim, de modo geral, a definição da verdade a partir de satisfação pode ser
enunciada da seguinte forma padrão (1933, p. 195):
F é uma sentença verdadeira se, e somente se, F é uma sentença e toda sequência infinita de
objetos satisfaz F.
(i) x1 é branca.
Seja S uma sequência infinita de objetos tal como <neve, x2, x3, ...>, para
quaisquer xn, . > 1. Temos como definição parcial de satisfação para essa função sentencial,
(iii) “neve é branca” é verdadeira se, e somente se, “neve é branca” é satisfeita por todas as
sequências de objetos.
(iv) S satisfaz “x1 é branca” se somente se “neve é branca” é satisfeita por todas as sequências
de objetos,
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 110
81
Para a função f definida do conjunto A para o conjunto B, se a pertence A, o elemento em B que corresponde a
a é chamado a imagem de a.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 111
Vocabulário de O:
As expressões de O são:
Variáveis: x1, x2, x3, ..., xn, ...
Letras predicativas: F, G, ... (cada uma tomando um dado número de argumentos)
Conectivos sentenciais: ¬ , Λ
Quantificadores: ∃ , ∀
Parênteses: ( , )
Definição de Satisfação:
4. S satisfaz (∃xi)Axi se, e somente se, há uma sequência Y, que satisfaz Axi e que
difere de S no máximo na posição i.
5. S satisfaz (∀xi)Axi se, e somente se, toda sequência Y satisfaz Axi e que difere de S
no máximo na posição i.
Definição de Verdade:
Uma sentença de O é verdadeira se, e somente se, ela é satisfeita por todas as
sequências.
modo. (...) Essa investigação não está restrita a análise formal mas toma em
consideração uma importante relação entre expressões linguísticas e outros objetos –
o de designação. Uma investigação desse tipo é chamada de semântica. (CARNAP,
1938, p. 393-394).
No que me diz respeito, não tenho dúvida alguma de que nossa formulação se
conforma ao conteúdo intuitivo da formulação de Aristóteles. (TARSKI, 1944, p.
51)
o que se assemelha à formulação aristotélica: dizer daquilo (Sócrates), que é (mortal), que é
(mortal), é proferir uma sentença verdadeira.
Por outro lado, defende Balthazar Barbosa Filho (2003) em seu artigo “Nota
sobre o Conceito Aristotélico de Verdade” que, na realidade, há um desencontro entre Tarski
e Aristóteles acerca do conceito de verdade e se justifica a partir das bases nas quais são
construídas as suas concepções.
Segundo Barbosa Filho (2003, p. 235-236), podemos pensar que o conceito
tarskiano formaliza, com os recursos da lógica de Frege, a noção aristotélica de verdade a
partir de duas etapas: (1) Se a sentença que diz que está chovendo é verdadeira, então está
chovendo (passamos do lógico para o real); (2) Se está chovendo, então a proposição que diz
82
Os grifos são nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 116
que está chovendo é verdadeira (passamos do real para o lógico). Das duas transições, segue-
se a equivalência do ser e da verdade afirmada na convenção T: a sentença “p” é verdadeira
se, e somente se, p. Mas, diz Barbosa Filho, isso é um erro, pois, em Aristóteles, há a
prioridade do ser sobre o verdadeiro, o que podemos evidenciar na passagem do texto das
Categorias:
Se, com efeito, o homem existe, a proposição pela qual nós dizemos que o homem
existe é verdadeira; e, reciprocamente, se a proposição pela qual nós dizemos que o
homem existe é verdadeira, o homem existe. Contudo, a proposição verdadeira não é
de modo algum causa da existência da coisa; ao contrário, é a coisa que parece ser,
de algum modo, a causa da verdade da proposição, pois é da existência da coisa ou
da sua não existência que dependem a verdade ou a falsidade da proposição.
(Categorias, 14b16-23 apud BARBOSA FILHO, 2003, p. 234).
Nós usamos o termo [verdadeiro] aqui em tal sentido que afirmar que uma sentença
é verdadeira significa o mesmo que afirmar a própria sentença; por exemplo, as duas
declarações “a sentença ‘A lua é redonda’ é verdadeira” e “A lua é redonda” são
meramente duas formulações diferentes da mesma afirmação. (CARNAP, 1942, p.
26).
83
Grifos do autor e colchetes nossos.
84
Cf. Tópico 2.2 Definição Materialmente Adequada da Verdade.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 118
tarskiana da verdade tem como ponto de partida os enunciados matemáticos, os quais são
indiferentes ao tempo: “uma proposição matemática, se é verdadeira, o é omnitemporalmente”
(BARBOSA FILHO, 2003, p. 243).
Ainda neste contexto, Tarski também deixa claro que nenhuma das
formulações da concepção da verdade-como-correspondência é satisfatória, nem mesmo a
aristotélica.
(1) Tarski pretendia escrever uma concepção da verdade como uma concepção
da verdade-como-correspondência?
(2) Independentemente de suas intenções, a concepção da verdade de Tarski é
uma concepção da verdade-como-correspondência?
85
Os grifos em itálico são nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 119
Jan Woleński e Peter Simons (1989) propõe que a teoria de Tarski é uma teoria de
correspondência apenas no sentido fraco (ou correlação). Sher (1998), por outro
lado, argumenta que ela é uma teoria de correspondência até mesmo no sentido forte
[ou congruência] (ou isso é pelo menos como Patterson (2003) o interpreta).
Niiniluoto (1999; 2004) argumenta que no caso de sentenças atômicas, a teoria de
Tarski é uma teoria da correspondência forte, mas com respeito a sentenças
compostas e sentenças quantificadas, ela é apenas uma teoria da correspondência
fraca. (RAATIKAINEN, 2007, p. 116).88
86
A correspondência como congruência pode ser entendida em termos de “encaixar” ou “ajustar”, como quando
nós dizemos que extremidades reunidas de um pedaço de papel rasgado se encaixam ou se ajustam. Tais teorias
da verdade alegam que há um isomorfismo estrutural entre os portadores-de-valor-de-verdade e os fatos aos
quais eles correspondem quando o portador-de-valor-de-verdade é verdadeiro. Segundo Bertrand Russell, em
seus artigos “Da Natureza da Verdade e da Falsidade” de 1910 e “Verdade e Falsidade” de 1912, a
correspondência consiste em um isomorfismo estrutural entre as partes de uma crença e as partes de um fato; é a
correspondência daquilo que se acredita ser verdadeiro ou falso com os fatos que tornam as crenças verdadeiras
ou falsas. Para Russell (1910, p. 155-157 e 1912, p. 21), acreditar consiste em uma relação do crente a vários
objetos unidos por outra relação. Por exemplo, a crença “A acredita que B ama C”, consiste no A (o sujeito)
relacionado a B (um termo-objeto), C (outro termo-objeto) e na relação amar (a relação-objeto). O sujeito A
anuncia uma crença que “B ama C” e esse enunciado será verdadeiro “quando uma pessoa que acredita nele
acredita de modo verdadeiro e, falso, quando uma pessoa que acredita nele acredita de modo falso” (RUSSELL,
1910, p. 152).
87
A correspondência como correlação pode ser entendida como o emparelhamento de itens, ou membros de dois
ou mais grupos de coisas, um-para-um, de acordo com algumas regras ou princípios. Podemos considerar, por
exemplo, o sentido de correspondência um-para-um dos matemáticos. Suponhamos que coloquemos a série de
números naturais com uma correspondência um-para-um com a série dos números naturais pares. Podemos dizer
que, da série dos naturais, o número 1 corresponde para o número 2 da série dos naturais pares, 4 da série dos
naturais corresponde para o 8 da série dos naturais pares, e assim por diante. Isso segue do seguinte raciocínio:
dado um número xi de um grupo, no caso o conjunto dos números naturais, e a regra y = 2x, há um único
membro yi do outro grupo, no caso o conjunto dos números naturais pares. E tudo isso significa dizer que xi
corresponde para yi, ou seja, xi do conjunto dos números naturais e yi do conjunto dos números naturais pares
estão correlacionados ou emparelhados um com o outro em concordância com a regra estipulada. Claramente,
nós temos especificado uma regra ou princípio para a correspondência, dado que na ausência de um contexto, ou
na ausência da indicação de um grupo, ou na ausência da explicitação de uma regra, dizer “5 corresponde para
10” não fica compreensivo.
88
Colchetes nossos.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 120
Por outro lado, alguns filósofos que respondem negativamente à questão (2),
discutem se a teoria de Tarski seria uma teoria deflacionista89. Por exemplo, o autor Devitt,
em seu artigo The metaphysics of truth, argumenta:
89
As teorias deflacionárias consideram que não há uma propriedade compartilhada por todas as proposições que
nós aceitamos como verdadeiras. Logo, o conceito de verdade não deveria ser entendido como expressando tal
propriedade, mas ser visto como exercendo uma outra função, por exemplo, segundo Strawson (KIRKHAM,
1992, p. 424), atribuições de verdade são, em realidade, gestos, ou seja, aparentemente atribuir verdade é
sinalizar (como inclinar a cabeça para cima e para baixo) que se está concordando com alguma coisa sem que se
diga ou se afirme nada. Assim, “verdade” funciona como “concordar”. Algumas visões deflacionistas chamam a
atenção para a transparência do sentido da verdade. Se considerarmos que é verdadeiro que “rosas são
vermelhas”, parece que podemos ver através de sua veracidade e considerar simplesmente que rosas são
vermelhas, como um simples tirar as aspas. Inferimos que é verdadeiro que rosas são vermelhas a partir da
proposição “rosas são vermelhas”, e vice-versa.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 121
vez dela, usemos a expressão “correspondência das sentenças com os fatos que descrevem”. E
ele introduz o seguinte esquema:
sendo que “F” deve ser substituído por nomes, da metalinguagem, das sentenças descritivas
de fatos da linguagem-objeto e “f” deve ser substituído por sentenças da metalinguagem,
descrevendo os fatos da linguagem-objeto.
Popper exige, tanto das sentenças que podem ser substituídas em “F”, quanto
das sentenças que podem ser substituídas em “f”, que estejam dentro da metalinguagem,
porque, por exemplo,
“The snow is white”, corresponde ao fato se, e somente se, a neve é branca,
tanto a sentença ““the snow is white””, quanto a sentença “a neve é branca”, dentro da
metalinguagem, dizem o fato que a neve é branca. Por isso, quando queremos falar sobre a
correspondência da sentença para o fato, a metalinguagem permite-nos dizer o fato, ou o
suposto fato, sobre o qual a sentença em questão fala. E, ainda, a metalinguagem contém o
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 122
nome ““the snow is white””, da sentença “a neve é branca”, por isso, a metalinguagem
permite-nos falar sobre a sentença e afirmar que ela corresponde ao fato (KEUTH, 1978, p.
426).
E Popper (1973, p. 53), conclui que, uma vez que possamos asseverar do modo
descrito, as condições sob as quais cada sentença da linguagem corresponde aos fatos,
poderemos definir:
pois, seguindo o mesmo raciocínio, os definiens de (T) e (A) também são extensionalmente
equivalentes, ou seja, o esquema (B) é equivalente ao esquema (C), que nada mais é que uma
tautologia (KEUTH, 1978, p. 427-428).
Notemos que, no argumento, assumimos que “f”, a sentença da linguagem-
objeto (que também pode ser encontrada na metalinguagem) requerida pela convenção T,
coincide com a sentença descritiva do fato, requerida pelo esquema (A). O argumento só tem
valor nesse caso. Nessa possibilidade de interpretação, a teoria de Popper não diz nada mais
que a teoria de Tarski, desde que assumimos que a definição de Tarski seja verdade-como-
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 123
correspondência. Essa parece ser a interpretação de Popper, pois ele considera o termo
“correspondência com os fatos” como sendo um sinônimo de “verdade”:
O caráter altamente intuitivo das ideias de Tarski parece tornar-se mais evidente
(como descobri ao ensiná-la) se primeiramente decidimos considerar “verdade”, de
forma explícita, um sinônimo de “correspondência com os fatos”, para então
(deixando “verdade” de lado) procedermos à explicação da ideia de
“correspondência com os fatos”. (POPPER, 1972, p. 249).90
E sua posição é que “De fato, Tarski, explicitamente, comenta que a teoria da
correspondência não pode ser considerada uma definição satisfatória da verdade” (HAACK,
1976, p. 324). Porém, o autor não diz que a teoria da correspondência não pode ser
considerada uma definição satisfatória da verdade. Ele diz que nenhuma das formulações
dadas pode ser considerada uma definição satisfatória da verdade e que, então, devemos
construir uma expressão que seja conforme as suas intuições e desejos (JENNINGS, 1987, p.
239).
90
Grifos do autor.
91
Grifos do autor e colchetes nossos.
92
Popper também replica os argumentos de Haack no artigo: Is it True What She Says About Tarski? de 1979.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 124
Embora a teoria dele não seja apresentada como uma teoria da correspondência, e
embora a condição de adequação material não esteja a favor da teoria da
correspondência e (de algumas) das suas rivais, a definição de satisfação de Tarski é
bastante análoga às tradicionais teorias da correspondência. (HAACK, 1976, p.
325).
93
Grifos do autor.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 125
procedimento não serve como um critério de verdade. E mais, o conjunto do domínio dessas
funções sentenciais é o conjunto de objetos linguísticos da metalinguagem, isto é, não é
formado de objetos extralinguísticos no mundo. Se há alguma relação de correspondência
com o mundo, isso deve ocorrer entre a metalinguagem e este (ou a realidade, ou os fatos, ou
estados-de-coisas, etc.) 94. Mas, não há nenhum esclarecimento disso nos textos de Tarski.
Essas discussões nos levam a concluir que Tarski tinha um motivo para não
expressar claramente sua posição sobre a questão se a concepção semântica da verdade é uma
concepção da verdade-como-correspondência (verdade extralógica), ou verdade lógica, ou
ambas. Talvez ele não estivesse preocupado em “reabilitar” a teoria da correspondência, mas
apenas interessado em buscar um sentido preciso que alcançasse o significado comum do
termo “verdade” e, para tanto, partiu da teoria clássica, mas não, necessariamente, preocupado
em permanecer nos moldes de uma teoria filosófica específica e, por isso, apresenta sua
afirmação de neutralidade, como podemos observar no trecho abaixo:
Tem-se sustentado que – a causa de que uma sentença tal como ‘a neve é branca’ é
considerada semanticamente verdadeira se a neve é de fato branca (em itálico pelo
crítico) – a lógica se encontra envolta de um realismo extremadamente acrítico.
Se eu tivesse a oportunidade de discutir essa objeção com o autor, (...) pedir-lhe-ia
que eliminasse as palavras ‘de fato’, que não figuram na formulação original e são
equivocadas, ainda quando não afetam o conteúdo. Pois estas palavras produzem a
impressão de que a concepção semântica da verdade tem por finalidade estabelecer
as condições em que teremos a garantia de poder afirmar qualquer sentença e, em
particular, qualquer sentença empírica. Contudo, uma breve reflexão mostra que essa
impressão é apenas ilusão; e penso que o autor da objeção se torna vítima da ilusão
que ele mesmo criou.
De fato, a definição semântica da verdade nada implica em respeito às condições em
que pode afirmar uma sentença tal como (1):
(1) A neve é branca
Apenas implica que, sempre que afirmamos ou rejeitamos essa sentença, devemos
estar atentos para afirmar ou rejeitar a sentença correlacionada
(2) A sentença “a neve é branca” é verdadeira.
Assim, podemos aceitar a concepção semântica da verdade sem abandonar qualquer
atitude gnosiológica que possamos ter tido; podemos permanecer sendo realistas
ingênuos, realistas críticos ou idealistas, empiristas ou metafísicos – o que tenhamos
sido antes. A concepção semântica é completamente neutra em relação a todas essas
posições. (TARSKI, 1944, p. 355-356).
94
Nós entenderemos o mundo, ou a realidade, ou os fatos, ou estados-de-coisas, etc., como algo extralinguístico,
ou seja, como algo que não pertence à linguagem.
CAPÍTULO 3. A ANÁLISE SEMÂNTICA DA LINGUAGEM SEGUNDO ALFRED TARSKI 126
lógica, além disso, a distinção deve ocorrer dependendo da linguagem em investigação. Com
efeito, a definição de verdade de Tarski para uma dada linguagem formalizada não se trata de
um critério de verdade, apenas estabelece um método formalmente correto e materialmente
adequado, que indica as condições de verdade tanto lógicas, quanto extralógicas das sentenças
dessa linguagem. Mas se quisermos determinar o valor-de-verdade das sentenças envolvidas
precisaremos ir além da definição e observar o mundo (ou a realidade, ou os fatos, ou estados-
de-coisas, etc.), que é o papel da ciência e não de uma definição de verdade. Devemos frisar
isso, a definição em si não é um critério prático para decidir se uma sentença particular em
uma dada linguagem é verdadeira ou falsa, isso é uma tarefa da própria ciência e não da
lógica ou de uma teoria da verdade. Tarski exemplifica esse fato a partir da seguinte sentença:
“as três bissetrizes de todo triângulo se encontram em um único ponto”. Se estamos
interessados em saber se essa sentença é verdadeira, e se queremos uma resposta a partir da
definição da verdade, a única informação que encontraremos é que a sentença é verdadeira se
as três bissetrizes de um triângulo sempre se encontram em um ponto, e é falsa se elas não se
encontram. Apenas uma investigação geométrica nos permitirá decidir qual é realmente o
caso (TARSKI, 1969, p. 116).
Neste contexto, defendem Chateaubriand (2001, p. 230), e Rodrigues Filho
(2006, p. 52-53), que a concepção de verdade de Tarski, por não esclarecer a relação entre a
linguagem e o mundo, não pode ser considerada uma concepção semântica da verdade, mas
apenas sintática.
(...) creio que a teoria de Tarski não pode ser considerada genuinamente semântica
porque não expressa as relações entre a linguagem e o mundo em virtude das quais
sentenças são verdadeiras ou falsas. A rigor, Tarski não construiu uma teoria
semântica, mas, antes, encontrou um dispositivo técnico (...) que lhe permitiu
eliminar as noções semânticas. (RODRIGUES FILHO, 2006, p. 54).
próximo capítulo, quando, voltaremos nosso olhar para as obras posteriores à sintaxe lógica
de Carnap, procurando estabelecer as influências da concepção semântica da verdade de
Tarski nos seus textos.
Capítulo IV
4. Introdução
Como apresenta Carnap, em sua autobiografia, não foi fácil para Tarski
convencer os filósofos da época a aceitar a teoria semântica. Por exemplo, as palestras
proferidas por este autor, no Congresso de Filosofia Científica, acontecido em Paris em 1935,
foram recebidas com indiferença e hostilidade (CARNAP, 1963, p. 111-114).
Em particular, ao contrário do que podia se esperar, Carnap foi um dos grandes
defensores no Congresso de Filosofia Científica da importância da discussão sobre a
semântica, a ponto de organizar uma sessão adicional, à parte do programa oficial, para
discutir as controvérsias. Assim, aos poucos, a teoria semântica de Tarski foi ganhando
adeptos.
Na autobiografia, Carnap se apresenta entusiasmado com as inovações de
Tarski, que, mesmo antes ainda da publicação do ensaio de Tarski, tinha se dado conta,
principalmente em discussões com o próprio estudioso e com Gödel, de que devia existir
outro modo, para além do sintático, de falar da linguagem. Dado que era obviamente possível
falar a cerca dos objetos extralinguísticos, bem como acerca das expressões linguísticas, nada
impedia de fazer ambas as coisas numa única metalinguagem, subsistindo assim a
possibilidade de falar sobre o significado e a designação das expressões de uma linguagem.
Nas discussões filosóficas, ocorridas no Círculo de Viena, já haviam se tratado
desses assuntos, mas não se dispunha de uma rigorosa metalinguagem sistematizada. Segundo
Carnap, os maus entendimentos dessas discussões se deviam à inexatidão da metalinguagem
(1963, p. 68). O novo aparelho metalinguístico da semântica permitia formular enunciados
sobre o nexo designativo e sobre a verdade. Isso atraiu em sumo grau o interesse de Carnap,
na medida em que parecia constituir, afinal, o meio requerido para explicar, com precisão,
muitos conceitos ocorrentes nas disputas filosóficas (1963, p. 110-111).
Para o filósofo (1963, 113), a utilidade da semântica na filosofia era tão
evidente que não havia necessidade de outros argumentos além daqueles que Tarski havia
proferido no Congresso de Filosofia Científica. Nas investigações filosóficas, sempre se havia
utilizado de conceitos semânticos, bastava, então, que se fizesse uma extensa sistematização
desses conceitos para torná-los adequados ao uso. De maneira especial, a análise da
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 131
95
Colchetes nossos.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 132
“Significado e Necessidade” (1947), diferencia-se das duas anteriores com novas teorias
semânticas e a inserção de assuntos relativos à lógica modal.
Com a finalidade de apresentar o sistema semântico e sintático de Carnap e a
influência de Tarski em suas teorias, faremos, neste tópico, um percurso pelas obras citadas na
passagem, tendo em vista à relação entre a análise sintática e a análise semântica da
linguagem.
96
Grifos do autor.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 133
Carnap explorará, com mais riqueza técnica e clareza, a distinção dos sistemas
sintático e semântico de uma linguagem no seu livro “Introdução à Semântica” de 1942.
97
Grifos do autor.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 134
Porém, o autor considera que essa obra é ainda uma primeira tentativa de esclarecer o
estabelecimento de um sistema sintático e semântico, não necessariamente a mais apropriada,
além de ser a que contém mais questões em aberto do que respostas (1942, p. xii e p. 57). O
filósofo considerava, na fase desse livro, que o desenvolvimento da semântica ainda estava no
começo, mas que o uso do método de construção da teoria de verdade por Tarski, e o uso da
teoria de dedução lógica e teoria de interpretações de um sistema formal, desenvolvidas nesse
livro, pareciam justificar a expectativa de que a semântica não era apenas uma ajuda acidental
para a lógica, mas que proveria a base para esta (1942, p. xii).
Nesse sentido, a visão defendida no livro “Introdução à Semântica” (1942), é
que a lógica é um braço especial da semântica e que a verdade lógica é um conceito semântico
(1942, p. 56). Para esclarecer essa defesa, Carnap inicia distinguindo semântica pura de
semântica descritiva e restringindo a intenção do livro:
98
Grifos do autor.
99
Cf. tópico 1.1 Linguagem I, Linguagem II e Sintaxe Geral.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 135
sintaxe quanto para a semântica, a relação entre a geometria matemática, que é uma parte da
matemática e por isso analítica, e a geometria física, que é parte da linguagem da física.
A fim de esclarecer melhor a distinção entre um sistema semântico e um
sistema sintático, voltemos inicialmente à definição de um sistema semântico e à utilização da
teoria de Tarski e, posteriormente, à descrição de um sistema sintático:
suplementada de símbolos lógicos como variáveis (x1, x2, x3, ..., xn, ...), quantificadores (∃ ,
∀), definições (se, e somente se,), entre outros; e, com relação a símbolos de classe ,
suplementada com símbolos da teoria de conjuntos como “x ∈ ”, que significa “x é um
elemento de ”, entre outros.
Assim, um sistema semântico S deve ser construído em uma metalinguagem M
da seguinte maneira: primeiro uma classificação dos sinais em S, depois as regras de
formação em S são estabelecidas, então as regras de designação em S e, finalmente, as regras
100
Grifos do autor.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 136
101
A definição D7-A foi escrita primeiramente por S. Lesniewski e definições similares são encontradas em
livros poloneses (CARNAP, 1942, p. 29).
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 137
Porém, como apresentado por Tarski102, essa formulação de adequação conduz a antinomias,
em particular, à Antinomia do Mentiroso. Para superar essa dificuldade, Tarski desenvolveu a
segunda (D7-B), que tem um caráter mais geral e vantagem em relação à definição D7-A, por
utilizar da metalinguagem para evitar as antinomias. Foi a partir de D7-B, que Tarski pode
construir “a primeira definição exata de verdade com relação a certas linguagens
formalizadas” (CARNAP, 1942, p. 29): a Concepção Semântica da Verdade.
Com a definição D7-B, já temos condições de apresentar exemplos de sistemas
semânticos para linguagens com um número finito de sentenças e com um número infinito
delas. Comecemos pela construção de um sistema semântico S1 na metalinguagem M para
uma linguagem-objeto com um número finito de sentenças (1942, p. 23-24).
Sinais de S1:
Constantes: a1, a2, a3
Predicados: P, Q.
Parênteses: ( , )
Regras de formação de S1:
1. Sentenças de S1 são expressões com a forma Pai.
2. Sentenças de S1 são expressões com a forma Qai.
102
Cf. tópico 3.4 Linguagem-objeto e Metalinguagem.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 138
Podemos notar, neste ponto, como Carnap segue a mesma construção proposta
por Tarski. Inclusive, o exemplo é igual ao apresentado no Capítulo II, quando definimos a
verdade para a linguagem L1103.
E através de um sistema de linguagem ficaria:
103
Cf. tópico 2.3 Definição de Verdade.
104
Grifos do autor.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 139
por uma função sentencial, por exemplo, uma função sentencial com a forma “Ax Λ Bx”,
determina a propriedade de ter a propriedade A e, ao mesmo tempo, a propriedade B.
Vejamos um exemplo desse sistema semântico que chamaremos de S2 (1942, p. 45):
Sinais de S2:
Constantes: a1, a2, a3
Predicados: P, Q.
Variáveis: x1, x2, x3, ..., xn, ...
Conectivos sentenciais: ¬ , V
Quantificadores: ∃ , ∀
Parênteses: ( , )
5. A sentença (∀x)Px é verdadeira se, e somente se, todo valor de x (isto é, todas as cidades
dos Estados Unidos) tem a propriedade determinado por P.
6. A sentença (∃x)Px é verdadeira se, e somente se, pelo menos um valor de x tem a
propriedade determinado por P.
106
Grifos do autor e colchetes nossos.
107
Nós entenderemos “fatos” como algo extralinguístico, ou seja, como algo que não pertence à linguagem.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 142
108
Grifos do autor e colchetes nossos.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 143
observar fatos. A partir da regra “Pa1 é verdadeiro se, e somente se, Chicago é grande” temos
um fato relevante: nós devemos olhar para a cidade Chicago e ver se a mesma é grande.
Como a observação mostra que esse é o caso, então Pa1 é verdadeira. Desde que a regras
semânticas não sejam suficientes para estabelecer o valor-de-verdade dessa sentença, Pa1 não
é verdadeira logicamente. E, por isso, Pa1 é verdadeira extralogicamente.
Assim, a ideia de verdade extralógica fica condicionada ao que excede a
verdade lógica, o foco é justamente a distinção entre elas e não encontrar um método que
relacione as sentenças de uma linguagem e os fatos.
Continuando um dos objetivos principais da obra “Introdução à Semântica”
(1942), que era demarcar as diferenças entre a semântica pura e a sintaxe pura, voltemos,
agora, nosso olhar para o sistema sintático:
109
Grifos do autor e colchetes nossos.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 144
Sinais de K1:
Constantes: a1, a2, a3
Predicados: P, Q.
Conectivos sentenciais: ¬ , V
Parênteses: ( , )
Qai, Pai}.
3. Definição de:
3a. Prova em K1: uma sequência R de sentenças em K1 é uma prova em K1 se, e somente se,
toda sentença Pai é uma sentença primitiva, ou diretamente derivável em K1 da classe de
sentenças que precede Pai em R.
3b. Demonstrável em K1: Pai é demonstrável em K1 se, e somente se, Pai é a última sentença
de uma prova em K1.
3c. Derivação em K1: uma sequência R de sentenças em K1 é uma derivação com a classe de
premissas i em K1 se, e somente se, toda sentenças Pai de R é um elemento de i, ou uma
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 145
Tenho que submeter modificações nos ponto de vistas apresentados no meu livro
anterior [Sintaxe Lógica da Linguagem], especialmente em relação à semântica.
Muito dos seus resultados permanecem válidos. Mas certos conceitos, especialmente
os L-conceitos [conceitos lógicos], são agora considerados semânticos e não
sintáticos; por isso, a tentativa de dar definições sintáticas a eles são abandonadas.
Muitas das discussões e análises anteriores são agora vistas como incompletas,
embora corretas. Elas precisam ser suplementadas pela correspondente análise
semântica. O campo teórico da filosofia não é restrito a sintaxe, mas compreende
toda a análise da linguagem, incluindo sintaxe e semântica e talvez também a
pragmática. (CARNAP, 1942, p. 246).
110
Cf. tópico 2.1.1 Sentenças Lógicas.
111
Cf. o sistema sintático K1 apresentado no tópico anterior.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 147
para “demonstrável em I”112. Considerando que não há mais a divisão das regras de
transformação, então, os dois conceitos coincidem, lembrando que “demonstrável em I”,
depende do conceito de derivação e “analítico em I”, depende do conceito de consequência.
Inclusive, os conceitos e regras da Linguagem I não são indefinidos, isto é, não cabe nessa
linguagem à definição de “analítico em I”.
Analogamente, as regras de redução, valoração e avaliação da Linguagem II,
para a definição de “analítico em II”113, devem ser mudadas para a terminologia
“demonstrável em II”. Neste ponto, como a definição apresenta apenas características de um
sistema sintático, então, ela não indica as condições de verdade das sentenças de II. Logo, as
sentenças de II não se tornam interpretadas.
Apesar disso, poucas mudanças são necessárias para transformar essas regras
sintáticas em regras semânticas, sugere Carnap (1942, p. 247), que basta inserir o método de
Tarski, empregado na definição da “Concepção Semântica da Verdade”, ou seja, definir o
predicado “analítico em II”, na metalinguagem semântica, e que esse predicado satisfaça a
seguinte condição: o uso do predicado relativo às sentenças da Linguagem II, significa o
mesmo que afirmar a própria sentença, isto é, que ela produza sentenças no formato da
convenção T de Tarski.
Quanto ao Princípio de Tolerância, segundo Carnap, deve ser mantido. Em
relação ao sistema sintático isoladamente, as escolhas de suas características e de sua
construção devem ser um assunto de convenção. Por outro lado, para o sistema semântico, os
conceitos definidos nele estão condicionados à definição de adequação (D7-B) e, assim, às
escolhas de suas características estão limitadas. E, se um sistema semântico for dado, a
construção do sistema sintático também fica condicionada ao sistema semântico e às suas
características passam a não ser puramente convencionais.
Também permanece válida a afirmação do perigo no uso do “modo material do
114
discurso” , ou seja, nas frequentes obscuridades que ocorrem quando expressamos as
declarações filosóficas usando a língua natural. Quanto às sentenças quase-sintáticas115 do
modo material do discurso, que incluem sentenças da filosofia e da semântica, Carnap
mantém as regras de tradução, mas afirma que estas devem ser complementadas com regras
semânticas. Em outras palavras, que essas sentenças devem ser, primeiramente, traduzidas
112
Carnap usa “demonstrable” e “provable” com a mesma definição: a última sentença de uma prova. No nosso
texto traduziremos somente como “demonstrável”. Cf. CARNAP, 1937, p. 29 e CARNAP, 1942, p. 160 e 251.
113
Cf. tópico 2.1.1 Sentenças Lógicas.
114
Cf. tópico 2.2 Modo Formal do Discurso.
115
Cf. tópico 2.2.3 Sentenças Quase-Sintáticas.
CAPÍTULO 4. A INTEGRAÇÃO DA SINTAXE COM A SEMÂNTICA SEGUNDO CARNAP 148
para sentenças semânticas e, então, se possível, sob certas condições adequadas, serem
traduzidas em sentenças sintáticas. Por exemplo, uma sentença como “A estrela-do-dia
designa o sol” é mais natural que seja traduzida para uma sentença semântica.
Enfim, uma última avaliação deve ser submetida às teses principais dessa obra:
Segundo Carnap, a tese (a) permanece válida, desde que a tese (b) seja
modificada, isto é, que em (b) a lógica da ciência inclua também a semântica e a pragmática.
Desse modo, (a) e (b) podem ser reescrito como uma única tese da seguinte maneira:
116
O filósofo norte-americano Charles Morris foi o primeiro a empregar o termo “semiótica” no sentido que aqui
lhe atribuímos.
Considerações Finais
1936, ano de publicação da primeira parte de Testability and Meaning, foi também o
ano em que Carnap iniciou o seu magistério nos Estados Unidos, como professor de
filosofia na Universidade de Chicago, após haver deixado a Europa em dezembro de
1935 por causa do acentuar do poder nazista. Na sua obra, teve então início a
chamada ‘fase americana’ caracterizada pelo desenvolvimento de temas mais
“semânticos”, para além dos interesses preponderantemente ‘sintáticos’ da ‘fase
europeia’. (PASQUINELLI, 1983, p. 75).117
No mesmo sentido, nossa tese foi dividida procurando contemplar as três fases
do pensamento carnapiano sobre a análise da linguagem. O primeiro capítulo corresponde à
fase fenomenalista; o segundo à fase sintaticista; e o quarto capítulo à fase semanticista. O
terceiro capítulo, por outro lado, trata das obras de Alfred Tarski, que provocaram a mudança
carnapiana da fase sintaticista para a semanticista. Justamente, essa mudança que foi o foco de
nossa pesquisa e da construção desta tese.
Assim, o Capítulo 1, que descreve a fase fenomenalista, procurou tratar da
primeira tentativa de Carnap em identificar a filosofia com a análise da linguagem, que
acabou por ser apenas um projeto inacabado. Apesar de inicialmente o autor acreditar que a
linguagem fenomenológica era potencialmente capaz de descrever todas as sentenças com
sentido e eliminar o discurso metafísico, mais tarde, ele mesmo reconhece que a ambição de
reduzir todos os conceitos da ciência a uma linguagem sobre dados dos sentidos não era
inteiramente adequada. Como vimos, anteriormente, ele conclui que não é logicamente
possível reduzir sentenças da ciência às sentenças condicionais sobre a possibilidade de
percepção de um determinado objeto extralinguístico (físico). E passa a admitir que a
117
Destaques do autor.
118
Colchetes nossos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 151
linguagem fenomenológica não era a mais adequada para uma análise filosófica do
conhecimento.
Sob forte influência de Otto Neurath, Carnap inicia a sua segunda fase, a fase
sintaticista, descrita no Capítulo 2. Paralelamente, surgem os textos de Alfred Tarski sobre a
análise semântica da linguagem, em particular, sobre a Concepção Semântica da Verdade,
descrita no Capítulo 3. Como os resultados apresentados por Tarski eram inovadores e
provocativos, vários autores, influenciados pelas ideias advindas do Círculo de Viena,
apresentaram-se contra os trabalhos tarskianos. Em particular, Carnap em sua fase sintaticista,
apresentada em sua obra a “Sintaxe Lógica da Linguagem” de 1934, rejeitou os termos
“verdadeiro” e “falso” no sentido extralinguístico e procurou demonstrar, com numerosos
exemplos, como é que afirmações de caráter aparentemente semântico poderiam ser
traduzidas em afirmações aceitáveis que se referiam apenas à forma ou estrutura lógica das
expressões de uma certa linguagem.
Como tratamos, anteriormente, o interesse de Carnap era defender as seguintes
teses: “a filosofia deve ser substituída pela lógica da ciência” (1937, p. xiii, 279)119 e “a
lógica da ciência é nada mais que a sintaxe da linguagem da ciência” (1937, p. 282, 315 e
332). Ou seja, essa fase carnapiana caracteriza-se pela identificação da filosofia com a análise
sintática da linguagem. Em outras palavras, seu empreendimento foi defender que os
problemas filosóficos são questões que dizem apenas respeito à forma, ao modo de
composição e às relações estruturais entre as expressões e sentenças da linguagem da ciência.
Para ele, uma teoria, uma regra, uma definição, uma sentença ou qualquer manipulação
simbólica só pode ser chamada de legítima quando nela nenhuma referência é feita, quer ao
significado dos símbolos (por exemplo, as palavras), quer ao sentido das expressões (por
exemplo, as sentenças), mas apenas aos tipos e à ordem dos símbolos dos quais as expressões
são construídas. Segundo ele, a linguagem deveria ser tratada de maneira estritamente
sintática e o autor via com suspeição a possibilidade de falar da linguagem de outro modo,
como o semântico.
No entanto, essa identificação da filosofia com a análise sintática da linguagem
era demasiadamente restritiva, faltava a análise semântica da linguagem. Ou seja, o sistema
sintático não provia meios suficientes para definir conceitos fundamentais como a verdade
lógica, pois estava sempre limitada apenas à linguagem em investigação. Mesmo quando se
estabelecia uma metalinguagem na análise sintática, ela precisava continuar pertencendo à
119
Destaque do autor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 152
linguagem-objeto. Com efeito, o conceito de analiticidade de Carnap não servia como uma
definição de verdade lógica, porque precisava ser definida em uma metalinguagem mais rica
que a linguagem-objeto em investigação, isto é, ela precisava ser definida fora da linguagem
em investigação e fazer referências extralinguísticas à linguagem em investigação.
Como apresentamos no Capítulo 3, Tarski provê meios lógicos para superar
esse problema através da semântica. Ele procurou estabelecer os fundamentos da semântica
teórica e superar a suspeição em relação a mesma. Ele apresentou a construção de um sistema
semântico através dos seguintes passos:
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