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92 A. 1. Perez Gomez. mento provisério, parcial, contaminado por distorgGes, minado de dilemas eaberto a incerteza (Berlak, 1993; Beyer, 1987; Elliott, 1993). Por isso, a autonomia profissional, dentro deste enfoque, deve ser concebida sempre como relativa ao processo- complexo, dialético & democratico de elabora- ‘ao do conhecimento prético. O docente se move constantemente no terreno dos Nalores e dos conflitos pela repercusstio moral ¢ politica de suas préticas. Elabo- 1a, experimenta e desenvolve um conhecimento pratico que € sempre tateante & provisorio, que legitima sua intervengao se é consciente de sua relatividade e das condigdes que garantem 0 controle democritico das praticas por parte dos agen- tes sociais que as vivem. A reconstrugio do pensamento pritico do docente através da reflexio sobre a pratica ‘Assim, uma das chaves fundamentais no desenvolvimento profissional do docen- te seré a formacio, a utilizagio ¢ a reconstrugao permanente de seu pensamento pritico reflexivo, como garantia de atuagio relativamente auténoma ¢ adequada “his exigéncias de cada situagiio pedagégica. “A formagio do pensamento pratico do futuro docente deve-se desenvolver ‘mediante um processo conflitante de reconstrugio do conhecimento pedagogico, iituitivo, vulgar e empirico que o pratico adquiriu ao longo de sua prolongada pérmanéncia como estudante na instituigao escolar, dentro do mesmo sistema edacacional, O poderoso influxo socializador da escola, tanto sobre o estudante como sobre o docente, cria, de forma técita, arraigadas e habitualmente acriticas concepgdes pedagégicas. Bstas concepgées tendem a se reproduzir facilmente na pritica do futuro profissional, jé que se encontram ancoradas nas crengas do sen- fo comum da ideologia pedagégica dominante ¢ so estimuladas e, inclusive, exigidas pelo funcionamento habitual das instituigdes, pelas formas de organizar ‘a vida nos centros escolares e pelas expectativas pessoais ¢ profissionais. Como provocar a reconstrugao do pensamento pedagégico vulgar dos do- centes? Como promover uma aprendizagem em que as teorias possam servir como ferramentas conceituais para questionar as prprias concepg6es, interpretar ra- cionalmente a realidade e projetar estratégias convincentes de intervengio? O problema pedagégico na formagio dos docentes niio parece se situar na negagio bu na ignorancia dos pressupostos, dos valores, das idéias e dos hibitos adquiri- ddos na experiéncia prévia e forentados pela cultura pedagégica dominante, uma ‘vez que se constituiram nos esquemas subjetivos mais significativos, poderosos ¢ relevantes que o docente utiliza para dar sentido & sua compreensto e atuagio profissional, mas na transformacdo consciente deles, como conseqténcia de pro~ Tongados e motivados provessos de reflexio, debate e experimentagio em con- textos reais, "A vida cotidiana de qualquer profissional prético depende do conhecimento técito que ativa e elabora durante sua propria intervengzo. O docente, sob a pres- ‘sio das méltiplas e simultaneas demandas da vida da sala de aula, ativa seus ———— " aberto cebida labora- sno dos Elabo- jeante © dec das 0s agen Jo docen- nsamento adequada senvolver dagégico, rolongada 20 sistema ) estudante te acriticas Jmente na as do sen inclusive, je organizar is. \gar dos do- servir como terpretar Fa- ervengio? O na negagio pitos adquiri- minante, uma 5, poderosos © so € atuacdo iéncia de pro- agfio em cOn- conhecimento nte, sob a pres- la, ativa seus "A CurTura ESCOLAR Na SoctepADE Neouperst 193 recursos intelectuais no mais amplo sentido da palavra (conceitas, eoniss, ee {gas, dados, procedimentos etécnicas), para elaborar um diagnéstico rapido dessa se mola, walorizar seus Componentes, esbocar estratégias altemativas ¢ PIV XJontro do possivel,o curso futuro dos acontecimentos. A maforia destes recursos faleetuals que se ativam na ago € de carder tfcito,implicito, e embor# possi se explicitar e se fazer conscientes mediante um exerci jo de metaandlise, sua sfiedeia consiste em sua vinculaglo a esquemas ¢ a provedimentos de carter ccmi-automético, uma vez consolidados no pensamento clo docente (Zeichner, 1987; Clandinin e Connely, 1986). pprovocar a reconstrugdo do peiisamento pedagdgico vulgar implica, neces: sariamente, um processo de desconsirugio dos esquemas de pensamen'o & a seriticos ¢ empiricamente consolidados. Ou seja, requer remover OS obsticulos spistemol6gicos que a partir da ideoldgia pedag6gicn dominani® ¢ partir da prati- Cusocializadora da escola foram se incorporando ao pensamento, 20 sentimento e 4 agio dos futuros docentes, até consttuir seu consciente ¢ cit tGcito pensa~ mento pedagégico prético: o conjunto de suas teorias € erengas implicitas. Para compreender a complexa vida da escola e da sala de aul, atendendo de forma prioritéria os aspectos que refletem os valores, as ida, as expectativas & te conhecimentos bésicos que determinam a conduta ¢ o pensamen'o dos que tla, Goodman (1992) propde analisar 0s mitos, os rituais, as PersPee= ods de pensamento que se eriam, estabelecem e intercambiam no participam n tivas © 0s m Aimbito de cada escola. Ho oe eaovante analisar as historias e os mitos® de cada coletividade profis: sional como docentes e suas concretizagdes em cada escolt, pois permitem @ idemtficngdo dos valores e das cosmovisdes ndo-explicitas sobre @ educagio, 0 vialividuo, a sociedade e 0s papéis de cada um no contexto escolar Os mitos € 05 Tugares-comuns que se expressam através de narragdes cumpFem™ © papel de man- tere consolidaro status quo de cada comunidade escolar, © de excluir e deslegi- timar os valores ou comportamentos dos individuos ou grupos dissidentes. Do mesmo modo, os Fituais Ue uma comunidade chegam a configurar os c6digos Simbolicos glue se utilizam para interpretar ou negociar 08 sueessos nt existéncia sotidiana do grupo. So mais que meros signos ou simbolos, formam 9 cenario de relagées ordenadas, segundo determinados crtérios que implicam valores. Tam- bém na escola, 0s Files transmitem normas de atuagio © intercimbio, 0s quais supdem valores concretos e cosmovisoes espectficas ‘sobre a educacdo e a socie- dade, sobre 0 que se considera valioso e sobre que se considera deslegitimado crtto do ambiente de cada grupo social especifico, em cada contexte escolar, Paricipar ativa eIegitimamente na vida da escola eda. aularequer ¢ aceitacao de ranvaae e comportamentos ordenados de forma ritual. Fora, s vezes, tenham a sparencia de comportamentos indcuos,ingenuos e Pouce importantes, os ritos deve ger considerados como meios de controle social. que legitimam determinados papéis, Seterminadas expectativas sociais, crengas coletivas formas de ‘comportamento. ‘ui aspecto importante para compreender os provessos Ue socializagao do docente na vida da escola e ajudar a desconstruir seus esquemas de pensamento é | 194 A. I. Perez. Gomez a identificagio das perspectivas sobre educagdo que se intercambiam no contex- to escolar. Ao contritio das teorias, crencas ou ideologias, e embora nelas se apéiem, as perspectivas incluem tanto as idéias como a ago; so esquemas de pensamento e atuagdo que sio gerados em cada situagaio, dentro de um contexto ‘concreto e para enfrentar um determinado problema ou situago problemitica. Orien- ‘tam, portanto, a ago dos gue participam na vida da escola, ao mesmo tempo em que egitimam e proporcionam justificativa para as formas concretas de atuagao. Por timo, os modos de pensamento, ideologias e teorias pedagdgicas vigentes constituem outra via importante para compreender os processos de socializagiio pro- ‘ fissional do docente. As cosmovisbes gerais € as ideologias pedagégicas, geralmente no explicitadas nem organizadas, séo fundamentais para se compreender as inter- pretagGes e as atuagdes do docente, pois se configuram como marco bisico que pro- porciona sentido &s informagies isoladas e &s expectativas e aos interesses pontuais. © pensamento pritico do docente que ird reger seus modos de interpretar € intervir sobre a realidade concreta da aprendizagem no grupo de estudantes se forma nestas redes de intercdmbio de significados através dos mitos, dos rituais, das perspectivas e dos modos de pensamento ideolégico que dominam na insti- tuicdo escolar. Mais do que teorias cientificas sobre os processos de aprendiza- ‘gem, ou sobre 08 métodos didaticos, ou sobre o planejamento e o desenvolvimen- to do curriculo, aprendidas academicamente na universidade, o pensamento pré- tico se forma nestes técitos, obscuros e, a0 mesmo tempo, simples intercambios de significados no contexto escolar. O objetivo prioritério dos programas de formagao e desenvolvimento profis- sional dos docentes deve-se situar na reconstrugio do pensamento pratico coti- diano, isto 6, na facilitagdio da reflexo. Como afirma Zeichner (1993), a reflexio implica a imerséo consciente do homem no mundo de sua experiéncia, um mun- do carregado de conotagoes, valores, intercimbios simbélicos, correspondéncias afetivas, interesses sociais e cendrios politicos. A reflexio, ao contrério de outras formas de conhecimento, supde uma anélise e uma proposta totalizadora, a qual captura ¢ orienta a ago. Nesta perspectiva, ela é um processo de reconstrugao da propria experigncia mediante trés fendmenos paralelos «+ Reconstruir as situagdes em que se produz a agiio, A reflexdo assim conce- | ida leva a que os docentes redefinam a situagao problemética na qual a ago se encontra, seja atendendo a caracteristicas da situagdo antes ignorada ou reinter- pretando e atribuindo novo significado as caracteristicas j4 conhecidas. «+ Reconstruir-se a si mesmos como docentes: este processo de reflexiio tam- bbém leva a que o professor adquira consciéneia das formas em que estrutura seus conhecimentos, seus afetos e suas estratégias de atuacio. « Reconstruir os pressupostos sobre 0 ensino aceitos como basicos. A refle~ xo 6, assim, uma forma de analisar criticamente as razes ¢ 0s interesses indivi duais e coletivos subjacentes aos princfpios e &s formas dominantes de conceber 6 ensino. Quais valores éticos e quais interesses politicos sustentam os pressu- postos teéricos ou os modos de acdio que aceitamos como bisicos ¢ indiscutiveis? ca | ‘A Cuttura Esco.ar Na Soctepape NeouperaL 195, Provocar a reconstrugio do pensamento pedagégico vulgar ¢ empftico dos do- centes requer atender a estes processos de intercmbio vivo de significados prag- méticos, no cenério real da aula, contrastar seu sentido, identificar e explicitar os valores sociais em que se apdiam, assim como as metas que se propdem e 0s F efeitos secundarios, explicitos ou nao, que a curto e longo prazo deles se derivam e oferecer alternativas. Utilizar 0 conhecimento ptblico para enriquecer a refle- xilo individual e 0 debate coletivo sobre a cultura da escola, sua fungdo edu- s cativa e os efeitos no desenvolvimento do pensamento pritico dos agentes 2 4 envolvidos, bem como elaborar, desenvolver e avaliar experiéncias alternati- vas de comunicagio e vivéncia da cultura critica podem ser estratégias funda- : mentais para reconstruir 0 pensamento profissional dos docentes e recriar a r cultura nas salas de aula. Autonomia e controle democrittico: a critica ao conceito de profissionalidade 0 segundo aspecto que constitui o desenvolvimento profissional do docente é 0 cariter relativamente aut6nomo de sua intervengio. Como se configura ¢ quais | so 0s limites da atividade auténoma dos docentes? | ‘A natureza do trabalho educativo relacionado com a construgo e a recons- trugdo critica e permanente dos modos de pensar, sentir e atuar das geragdes hu- rmanas exige questionar, de modo franco, os processos de socializagao, presididos | ¢ abarcados precisamente por aquelas tendéncias ¢ por aqueles valores sociais dominantes, que se constituem, muitas vezes, como obstaculos ao desenvolvi- mento autdnomo, criativo e diversificado dos individuos e dos grupos. A escola é uma instituigdo social e, por isso mesmo, inevitavelmente impregnada pelos va- lores circunstanciais que imperam nos intercambios sociais de cada época e cada comunidade. Para cumprir sua fungdo pedagégica com relativa autonomia, 0 do- cente deve estar atento e enfrentar e superar em si mesmo € na cultura da escola 60s influxos meramente reprodutores da dinamica social. Esta fungio educativa da escola, acrescentada & fungio socializadora, que especifica precisamente 0 carter préprio desta instituigao, diferenciando-a de outras instincias sociais também implicadas no processo de socializacao, justifi- ca, na minha opinido, a exigéncia insistente de uma relativa autonomia profissio- nal do docente. © conhecimento profissional prético e reflexivo cumpre exata- mente esta fungdio de instrumento de mediagio pata provocar a reconstruga0 do conhecimento experiencial das novas geracdes. A escola deve oferecer a ocasio do contraste permanente de pareceres, esquemas de pensamento, sentimento e de { atuago, de modo que os alunos compreendam o significado, as possibilidades as conseqiiéncias dessas diferencas e se ponham em contato com outras constru- | Ses pessoais alternativas que oferegam novos horizontes de exploragao. dificil pensar que se provogue esta reflexdo critica nos estudantes quando mio a exer- cem os docentes sobre si mesmos. ‘Alem disso, esta fungdo mediadora que estimula o contraste e a interrogacio | no deve se deter as portas da democracia. Pelo contrétio, 6, na minha opiniao, 196 A. L. Pérez Gomez parte essencial de sua natureza. A relativa autonomia profissional do docente ¢ da escola, tal como aqui a entendemos, faz parte desse fundamental e delicado equi- Ifprio de poderes que constituem a forma democrética de convivéncia humana. Com freqléncia, este delicado equilfbrio de poderes se manifesta em conflitos e tensdes, neste caso, entre as pretensdes de autonomia dos docentes ¢ o controle piiblico por parte dos representantes da sociedade. Pois bem, a funcdo educativa da escola exige a independéncia intelectual suficiente em docentes ¢ estudantes para sustentar, quando necessério, posturas discrepantes, que questionem os in- fluxos socializadores procedentes, inclusive, de instincias legitimadas democra- ticamente; para resistir a tendéncias ideol6gicas ou atitudes impostas pela pres: democratica da maioria da comunidade social. O equilibrio de poderes nao legiti- ma a inculcago ideol6gica, seja qual for sua origem, mas sim a intervengiio edu- cativa que estimula a interrogar a validade antropoldgica das decisées, das atitu- des, das convicgGes € dos interesses coletivos, inclusive os assumidos mediante procedimentos formalmente respeitosos com a convivéncia democratica. O conhecimento cientifico, cultural e artfstico acumulado pela comunidade humana, por sua potencialidade analitica e propositiva, deve ser oferecido na escola como instrumento intelectual de mediagio no processo de reconstrugiio do conhecimento pessoal. Este carter mediador do conhecimento para provocar 0 desenvolvimento de novo conhecimento supe, na minha opinizo, a base que justifica a relativa autonomia profissional do docente. pela natureza de sua atividade consistente em facilitar o desenvolvimento auténomo das novas gera- ges, requer autonomia profissional, independéncia intelectual suficiente, nao para evitar os influxos contaminantes dos interesses, dos valores ¢ das tendéncias do contexto social, mas para compreendé-los, situd-los e procurar sua transformacao consciente para valores explicitos ¢ publicamente debatidos e aceitos. Portanto, como afirma Contreras (1997), a autonomia nao pode ser concebida como distin- cia ¢ isolamento, mas como independéncia intelectual para questionar os influxos. sociais; e, ao mesmo tempo, ao ser considerada como consciéncia da parcialidade das prdprias convicgées, nos leva a buscar a complementariedade-enrcolabora- ao com os demais, f y Neste sentido, é conveniente ressaltar a énfase no cardter cooperativo da deliberagdo pratica. Pois, como afirma Elliott (1985), 0 professer que desenvol- ve suas teorias a partir unicamente da reflexdo sobre a experiéncia, deixando de lado as reflexGes passadas ¢ presentes dos demais, acaba inventando a roda, além de sucumbir a suas proprias deficiéncias e interesses. A reflexo individual é uma condigao necessdria; mas nao suficiente. O professor isoladamente considerado & uma vitima facil de suas proprias deformagdes, insuficiéncias e interesses, assim como das pressdes institucionais e sociais, deformagGes que se mantém com faci- lidade, alimentadas pela pr6pria inéreia da pressdo grupal, institucional e ambiental A generalidade das investigagdes sobre a evolugao do pensamento pedagdgico dos professores em exercicio, suas crengas ¢ atitudes, coincide em ressaltar a inexoravel tendéncia majoritéria & esclerose do pensamento e da ago, para de- senvolver esterestipos cada vez menos flexfveis e mais resistentes & mudanca que TY ‘A Cutura EscoLar na Soctepaps Neouiserat 197 docente ¢ da elicado equi- ieia humana, m conflitos & /e 0 controle jo educativa e estudantes ionem os in Jas democra 5 pela pressio es nfo legiti- rvencdo edu- es, das atitu- Jos mediante dtica, comunidade oferecido na onstrucdo do fa provocar 0 », a base que tureza de sua s novas gera- ente, no para endéncias do ransformacdo tos. Portanto, como distan- ar os influxos : parcialidade enrcolabora- operativo da que desenvol- - deixando de > aroda, além vidual € uma considerado é sresses, assim. tém com faci- e ambiental. 0 pedagégico sm ressaltar a ago, para de- /mudanga que se nutrem da ideologia técica ou explicita dominante, da reproduco acritica da tradigao profissional (Ayres, 1980; Halkes ¢ Olson, 1983; Pérez Gémez ¢ Gime- no, 1993; Porldn, 1989; Barquin, 1989). Por isso, toda pratica social, como a prética educativa, que no tem conseq{iéncias estritamente previsiveis e cujos resultados nao podem ser estabelecidos com clareza por estarem abertos & criagdo individual e coletiva, requér a deliberagao cooperativa como método mais racio- nal de intervengio. “Mediante a reflexio ¢ 0 didlogo, é possivel progredir no desenvolvimento de formas compartilhadas de compreensao dos conceitos éticos e dos dilemas contradit6rios da prética” (Elliott, 1983), Por outro lado, a finalidade da investigagao e da produgiio de conhecimentos em toda pritica social é a modificagaio da realidade, das concepgdes subjetivas ¢ das priticas sociais. A transformagao da realidade é evidentemente uma tarefa coletiva, nao apenas porque requer 0 esforgo cooperative, como também porque © proprio plano de intervengao € transformagao deve ser 0 resultado da reflexio, do debate, da negociagio e da decisio da maioria. Por isso, Elliott enfatiza a necessidade de passar da reflexdo individual para a reflexo cooperativa, para chegar a desenvolver conhecimentos préticos compartilhados que emergem da reflexdo, do didlogo e do contraste permanente. Esta reflexiio € mais necessaria quando nos convencemos de que as préticas sociais manifestam uma clara ten- déncia de encerrar-se em processos rotineiros e de que 0 caréter institucional da prética educativa restringe as possibilidades do contraste critico e do didlogo en- riquecedor. ‘Como combinar esta exigéncia de autonomia com o necessétio controle de- mocritico do servigo piblico que supde o sistema educativo? Na minha opiniao, a autonomia profissional do docente assim concebida e 0 controle democratico da educagiio como servigo piiblico nao sio termos incompativeis; representam, em principio, aspectos que integram a rede complexa de interc&mbios sociais, nos ‘quais tem lugar o acordo e a discrepancia, a divergéncia de alternativas, o surgi- mento de conflitos, a tolerdincia ¢ a colaboragio convergente no processo de re laboragiio e vivencia da cultura da comunidade social. Somente se pode produzir a reconstrugaio do conhecimento vulgar e experiencial dos alunos, fruto de seus prolongados processos de socializagao espontanea, quando formos capazes de construir na escola um espago vivo de intercdmbio de experiéncias, um cenério de vivéncias culturais, tanto de reprodugao como de transformago, no qual 0 aluno viva ao mesmo tempo que aprende, Neste novo espago de intervengio educativa ganha sentido a colocagtio de Clandinin e Connelly (1992), a qual, considera os docentes ativos construtores do curriculo. Recriar a cultura na escola, e nao apenas transmiti-la ou impé-la, supde uma concepgao democritica ¢ ndo-impositiva dos processos de producao e de distribuigdo do saber. De acordo com Elliott (1993), a qualidade da pritica educa- tiva dos professores depende do desenvolvimento de uma forma de discurso pit- blico que apdia mais do que mina o julgamento sébio e inteligente dos profissio- nais. O docente participa como mediador ativo na tarefa permanente de reinter- pretar as aquisigdes historicas da humanidade e de recriar alternativas, submeten- 198 A. I. Perez Gomez do-se, inevitavelmente, ao debate ¢ ao escrutinio piblico, como o resto dos agen- tes que constituem a comunidade democrética de aprendizagem. Este € 0 tipo de controle democrético, de dentro da prépria comunidade, nao-burocratico, admi- nistrativo e externo, compativel e convergente com a exigida autonomia profis- sional, que requer a responsabilidad mediadora da escola educativa, Uma vez que nao existam critérios inquestionaveis nem padres objetivos nna definigo da cultura, do saber e do comportamento vélidos, os quais devam ser aprendidos por todos, 0 processo ambfguo, incerto, complexo e conflitante de apropriagao e de recriago da cultura pelas novas geragdes deve-se abrir, inevita- velmente, para o debate ¢ para o contraste ptiblico e democrético, como o melhor procedimento conhecido para resolver os conflitos de valores e propésitos. A este respeito, € ilustrativo 0 pensamento de Labaree (1992, p. 149) quando afirma que ‘© componente politico do ensino nio é um aspecto fechado & experiéncia ou a sabedoria profissional, mas uma capacidade acessivel a0 piblico em geral, Isso faz com que a cconstrugao de barreiras profissionais para a influéncia piblica sobre a instrugio na esco- la signifique uma ameaca a um componente essencial da democracia, Neste sentido, pode-se concordar com Smyth (1987) quando ele diz. que © docente é um intelectual transformador; seu conhecimento profissional projeta-o 4 interrogagao e & busca de novos procedimentos ¢ interagdes que facilitem 0 conhecimento e as experiéncias criativas nas novas geragdes. E ao mesmo tempo uum educador e um ativista politico, por intervir abertamente na andlise e no deba- te dos assuntos piblicos, assim como por sua pretenséo de provocar nos estudan- tes 0 interesse ¢ 0 compromisso eritico com os problemas coletivos. Explicita-se aqui uma dimensio frequentemente esquecida na prética educativa: a necessida- de de vincular 0 pensamento e a agio, de evitar as dissociagdes escolisticas € cartesianas entre a teoria ea pritica, de dissolver a separacio esquizofrénica entre as idéias, os sentimentos e as atuagdes, tanto na atividade do docente como no desenvolvimento educativo dos estudantes. Este modo de conceber a fungio do- cente como intervengo cultural, num espago de vivéncias que reproduzem e re- criam a cultura da comunidade, desemboca inevitavelmente no compromisso de atuagdio publica. Quando se vive a cultura com os problemas e as condigdes que a limitam ou potenciam, parece inevitavel 0 compromisso pablico com a ago para remover os obsticulos que impedem o desenvolvimento autnomo e criador. Mais do que nunca, no momento atual de conformismo e ressignificagio diante das poderosas forcas que determinam os acontecimentos e cujo controle parece fora de nosso alcance, caberia lembrar que os problemas niio respondem a importantes caréncias cognitivas, mas ao insuficiente desenvolvimento de atitu- des e capacidades de atuacdo compartilhada e solidaria, Sabemos muito mais do que aplicamos e, em todo caso, como profissionais da educagio, desenvolvemos muito mais a capacidade de aprender que a decisio para atuar, Temos de aprender a transformar coletivamente a realidade que no nos satisfaz. Embora possam existir estratégias muito variadas e titeis para favorecer 0 desenvolvimento profissional do docente, a argumentagio precedente me leva a s A Cutura Escocar wa Soctsoape NeouseraL 199 considerar a investigaedo-acdo, a qual requer @ participagdo de grupos, integran- do no processo de indagagao e de diélogo os participantes e os observadores, um instrumento privilegiado de desenvolvimento profissional dos docentes, a0 exi- gir um processo de reflexdo cooperativa mais que privada; ao enfocar a anélise conjunta de meios e fins na prética; ao se propor a transformacao da realidade mediante a compreensio prévia e a participagiio dos agentes no planejamento, no desenvolvimento e na avaliagdo das estratégias de mudanga; ao propor como im- prescindivel a consideracao do contexto psicossocial e institucional nao apenas ‘como marca de atuacio, mas como importante fator indutor de comportamentos & idéias; a0 propiciar, enfim, um clima de aprendizagem profissional baseado na compreensio e orientado para facilité-la Bem distante do conceito classico de profissionalidade docente como posse individual do conhecimento especializado e como dominio de habilidades, a pré- tica profissional do docente é, na minha opinigo, um proceso de ago e de refle- xo cooperativa, de indagagiio e experimentagdo, no qual o professor aprende ao ensinar, e ensina porque aprende, intervém para facilitar e nao para impor nem substituir a compreensio dos alunos, e, ao refletir sobre sta intervengdo, exerce e desenvolve sua propria compreensao. A cultura da escola como instituigio ¢ a cultura dos docentes como grémio profissional so objeto de reconstrugio quan- do os docentes concebem sua pratica como um processo de aberta ¢ interminavel reflexio e aco compartithadas. Notas " E necessério considerar, como coloca Willis (1990), que a escola provoca fracasso escolar por seu caréterrefratério & cultura de origem das camadas mais marginalizadas e desfavorecidas, mas ao mesmo tempo este efeito, em prinefpio nio-desejado, pode serum objetivo no-confessado que favo- rece aclassificagao ea estratificagio social da populagio. 0 fracasso escolar orienta “voluntariamen- te” uma parte importante dos jovens mais desfavorecidos para o trabalho manual, que corresponde as expectativas de seu meio socal Elinteressante lembrar aqui os quatro marcos de experiéncia dialetcamente relacionados que, segun- do Giddens (1993), definem a experiéncia paradoxal e contraditéria das vivencias cotidianas dos daddos contemporineos: ‘Deslocamento e reancoragem: a intersegdo da familiaridade com a estranheza. Intimidade e impessoalidade: a intersegao da confianga pessoal com os lagos impessoais. Hoabilidade especializada e reapropriagio: a interseglo dos sistemas abstratos com o conhecimento catidiano. Privacidade ¢ compromisso: a interseglo da acetaeSo pragmética com o ativismo” (p. 132-133) 3 A este respeito, é conveniente repassar a interessante andlise que Beltran (1994) faz da ambighidade terminol6gica do discurso dominante: “Sem pretenso de esgotar 0s casos possiveis apenas com a | intengdo de exerplificar, considere-se aambiguidade no uso e abuso de termos,tais como: participa- | ¢o (incorporagao ao sistema formal de representatividade e tomada de decisGes ou capacidadeefeti- va de deliberagao e decisio), comunidade (conjunto informe de individuos receptores dos ser educativos ou rede articulada para a defesa de interesses coletivos), profissionalismo (incremento da capacidade para tomar decisdes profissionais suficientementeinformadas ou conhecimento especia- | Tizado para legitimar as espostas ts demandas de clientes ou usuérios), descentralizagdo(transferén- 200 A. 1. Perez Gomez cia de competéncia e responsabilidade &s unidades locais ou instauragio de micropoderes periféri cos), responsabilidade (prestagiio de contas ou consideragdes éticas relativas&s implicagdes das pro- prias atuagdes), autonomia (do individuo, profissional, usudrio ¢ insténcia administrativa ou do cida- {0 como sujeito social frente a instncias de poder politico, econdmico, corporativo, etc.) democra- cia (concorréncia entre partidos politicos ou capacidade de intervenca direta ~ nio-delegada — em todos os assuntos politicos), cultura (relativismo eticamente indiferente ou respeito aos tragos de identidade coletivos), avaliagio (emissio de juizos valorativos ou exerefcio ~ simulado ou real ~ de alguma forma de controle sancionador), etc (p. 86). ‘Convém lembrar aqui a relagdo entre complexidade, indeterminagio e acaso (Ferguson, Elster e Gil Calvo). Como afirma Gil Calvo (1995, p. 100)... aqui mesmo, nas consequéncias nfio-intencionais dos atos, onde melhor podemos reconhecer a presenga do acaso. Realmente, até as definigdes quase coincidem: num caso (0 das conseqiléncias néo-intencionais), temos resultados imprevistos; no outro (0.40 acaso),sucessos imprevisfveis. Desta maneira, a maior parte do continente do acaso (que pode- mos topicamente associar com a parte submersa do iceberg) é um produto sem inten¢o: o conjunto de todos 0s resiltados imprevistos (seja esta imprevisio atribuivel &jgnordincia, & inexperiéncia ou & imresponsabilidade) do comportamento humano, 5 Um exemplo claro desta tendéncia pode ser encontrado na substituigdo recente, na histéria do Reino Unido, das politicas social-democratas dos governos trabalhistas pelas politicas educativas neolibe- rais dos governos conservadores liderados por Margaret Tatcher. Reynolds (1989) nos oferece uma sintese das mudangas fundamentais acontecidas: 1. Enquanto que as tentativas dos governos trabalhistas passados tratavam de propor uma fungio transformativa e compensat6ria do sistema educativo, a politica conservadora se orienta para

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