You are on page 1of 12
Notas para uma introdugio a Genealogia Cearense RAIMUNDO GIRAO —tH A NOVA GENEALOGIA Como da alquimia empirica e em descrédito nasceu a qui- mica, para a explicagdo cientifica das propriedades e transforma- gdes das substincias, — da velha arte das linhagens e da herdl- dica surgiu a nova Genealogia, coordenando conhecimentos de alto valor para os estudos da interpretagio histérica e das desco- bertas bioldgicas. Nos velhos tempos og genealogistas compraziam-se no armar as Arvores de sangue, procurando-lhe uma puréza ilusdvia para a cunhagem de nobres e fidalgos das casas reais, que impavam de orgulho a posse de.titulos baronais, ndo poucas vezes ilustran- do individuos sem mérito algum, famulos dos reis recebendo ga- lardao gratuito. Fra jogo de espirito, poder-se-ia dizer recreagio austera, estruturar nobiliarquias e desenhar brazSes complicados, cheios de simbolismo nfo raro grotesto ou piegas, lembrando valentia militar, faganhas cavalheirescas. Ja viera dos tempos biblicos a preocupagio pelas progénies, como fez Moisés enumerando as geragées dos antigos patriarcas REVISTA DO INSTITUTO DO.CEARA 131 e fizeram S. Lucas e S. Mateus registando a ascendéncia dé Jesus Cristo. “Foi pela genealogia que os hebreus puderam li- gar a origem de Cristo 4 de David € a deste a Abraio. A ge. nealogia do povo escolhido desempenhava uma fungéo de mé- xima. relevaneia: cada familia pretendia ver sair da sua linha- gem o Messias profetizado e esta é razio por que fora talvez aquele o primeiro povo que cuidou da conservagio das suas tra. digdes de familia” (1) Era tida a genealogia, ento, como a “nobre ciéncia”, e na Franga fez o renome dos Le Lebourer, dos Duchesnes, dos D’Ho- zier, do Padre Anselme e, noutros paises, empolgava muitos eru- dites a cata de suas ancestralidades, de origens troncais que se perdiam nos horizontes da lenda e dos olimpos mitolégicos. Caiu, depois, no desagrado comum, desprestigiou-se ferida pela critica dos ridiculos, mas veio, logo mais, a reabilitar-se na Aiemanha, num reflorescimento estuante de novas forcas, mercé dos trabalhos perseverantes e seguros de Ottokar, considerado o eriador do novo ramo cientifico. Forst de Battaglia dé-nos esquema expressivo da obra do hisioriador alem&o, para quem a Genealogia moderna reune, es- tabelece e analisa factos que em relagdo a biologia, e mais espe- cialmente ao estudo da hereditariedade, desempenham papel idéntico ao das experiéncias de laboratério em relagio & qui- mica e 4 fisica. “Fornecerd a nova ciéncia —— afirma — o mate- rial necessdrio para descobrir, pela comparagio de mi- Jhares de casos, as leis biolégicas fundadas sobre a comunidade do sangue”. Converteu-se a Genealogia — acrescenta Battaglia, — numa ciéneia com terminologia adequada e a sua sistematizagdo de mé- todos é hoje intimamente ligada aos problemas histéricos, biolé- gicos, juridicos, socidlogos e outros cuja conexdo com as indaga- gées sobre a paternidade e maternidade é evidente. O mesmo Battaglia, ao lado de Ottokar, Ernest Devrient, Frederick Wecken, o Principe Charles d’ Isenbourg, Erie Murr € outros, na Alemanha, J. F. van Maanen, na Holanda, J. Wret- (1) — Cénego Florentino Barbosa, in Rev. Genealégica Brasileira, S. Paulo, ano 3, 2 5, pag. 21. 132 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA man, na Suécia, séo os codificadores da renascente disciplina, sem esquecer de ensaios do suigo Oscar Hager e os de Etienne Kelule von Stradonitz e do baréo Othon von Durger, professor da Universidade de Gratz. O coroamento da codificagio foi rea- Jizado com a Enciclopédia Genealégica, elaborada pelo Institu- to Central de Leipzig, sob a direcgio do professor Heiden- reich. (2) Na Franga as pesquisas gencalégicas nfo Jograram um re- vigoramento A altura, muito embora a eminéncia do livro “Les Bourbons” dos professores André de Maricourt ¢ Maurice Ber- trandfosse, e do outro “Race, Hérédité, Folié”, do doutor René Martial, que so mais arrojados excursos intentando resolver pela Genealogia questées histérico-biografico-psicolégicas. Depois das experimentagées pacientes e cheias.de éxito do abade Gregério Mendel, aclarando até A verdade indiscutivel os mistérios da hereditariedade na botanica, comprovadas, j neste século, pelas de De Vries, em Amsterdao, Tscermak, em Viena, e Correns, da célebre Universidade de Tubingen, Alemanha, e depois que Bateson, Cuénot ¢ Francis Galton, cada qual a sua vez, demonstraram a aplicabilidade das leis do frade de Briinn aos animais e ao homem—ndo mais se péde por em duvida a impor- tancia da Geneslogia, eujo caracteristico mais fundamental é a consaguinidade, o parentesco explicado através de geragées sucessivas de um antepassado comum, dispostas légicamente em esquema ou quadros, tudo triangulado pelo trés factos marcan- tes da vida humana: o nascimento, a unido sexual e a morte. Constitui-se, antes de tudo, a ciéncia genealégica um aper- feigoador dos métodos de pesquisa histérica, pelo acréscimo de material de que se valerdo os teéricos da hereditariedade. “Ela nic se resigna mais a ser apenas uma relagdo de factos nobili- Arquicos, nem a compilar quadros Aridos, compostos inicamente de nomes e datas. De trinta ou quarenta anos para ca (isto foi (2) — Leia-se O Renascimento da Genealogia, de O. Forst Batta- glia, na Revista do Instituto de Estudos Genealdgicos, S, Paulo, Ano 3, n. 5, pag. 56, transcrito da revista francesa “La Grande Revue”, mimero de Fevereiro de 1939, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 133 escrito em 1939), hd o mesmo interesse pelos camponeses e pelos operdrios, pelos criminosos e pelos principes e mesmo pelos reis; 0s quadros contém, além dos dados sobre os factos primor- diais da vida de um individuo, informagées sobre sua carreira, seus hibitos, seu fisico, suas qualidades intelectuais, especial- mente aquelas cuja hereditariedade é acentuada, por exemplo as trés dizias de qualidades que se transmitem segundo as leis de Mendel. Se possivel, publicam-se os retratos, as fotografias, de iodas as pessoas estudadas, e uma severa critica de fontes permite excluir as filiagdes duvidosas. Eliminam-se, por exem- plo, as paternidades legais que ndo passam de ficgio e elas so substituidas pelos lagos naturais, desde que estejam certificados por provas incontestdveis” — sdo outras palavras de Battaglia. “Percorrendo os quadros ascendentes -— acrescenta noutro lugar — constatamos que a partir de um momento que difere sempre, mas que nunca falha, tal ou qual personagem reapa- reece varias vezes entre os antepassados. O nimero teérico de costados néo corresponderd mais & cifra real de avés diferentes e essa divergéncia aumentaré com cada geragéo que remontarmos para trés. Este fenémeno chamado Ahnemverlus em alemio (por Lorenz) e para o qual nés sugerimos na nossa “plaquette” fran- cesa “Le mystére du Sang” 0 termo de implexo dos antepassa- dos & um postulado da légica confirmada pela experiéncia, Ele nos fornecera esclarecimentos inesperados sobre a endogamia que o vulgo e uma pseudo-ciéncia denunciam como perigosa € prejudicial a si mesma; eis pois um primeiro e fundamental documento que fornece a genealogia”. E’ preciso, no entanto, ponderar, neste ponto, adverte Batta- glia, que h4 uma ambivaléncia na endogamia: um implexo con- siderdvel de antepassados e que se manifesta desde as primeiras geragdes no quadro ascendente, reforga as taras funestas, se ele for constituido por individuos doentes, raquiticos ou disformes; ele acentua as boas qualidades se for formado por individuos de valor sob 0 ponto de vista biolégico”. (3) E’ a obra desses operdrios misteriosos que sio os gens ou genos, unidades bioldgicas, também chamados factores mende- (3) — Obr. cit. 134 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA lianos, que enformam 0 individuo fisico e psiquico, e moram, segundo a concepgio da Genética, nos cromosomas da espécie, na célula —- ovo orfgem do ser, e na relacdo directa de cujas variagées genéticamente hdo de variar os individuos e as pro- genituras. (4) Foram por certo estas ideias que abriram brecha na Jegisla- gio civil brasileira permitindo mais recentemente o casamento de tio e sobrinho, antes proibido, desde que precedido do exame antenupicial (Decreto-lei n. 3.200, de 19.4.41, art. 2.°). Outro adminiculo de relevo fornecido pela Genealogia sio as informagées que ela presta a respeito de moléstias, taras here- ditdrias e, mais especificamente, deficiéncias mentais. Para os que escrevem biografias é grandemente instrutiva a consulta ge- nealdgica neste particular, assim como para médicos ¢ antropolo- gistas. Nenhum deles pode esquecer a equagio de genética: Gendtipo + Ambiente = Fenstipo ou, em linguagem mais comum, Hereditariedade + Meio = Individualidade, querendo dizer que © individuo resulta de uma reacgio dos factores ambientes sobre a hereditariedade. Nesta é que estdo as virtualidades, origem da “continuidade biolégica”, disso que vulgarmente se chama “ata- vismo”, que para os fins da formagao individual recebe os efei- tos excitantes do “reactive” ambiencial. Das variagdes geno- tipicas ao contacto com os factores externos, fisicos e sociais, saem as variagGes individuais, em forma de génios, de normais, de mediocres, de inferiores, conforme o caso. (5) Também & sociologia interessam vivamente as ligses da ciéncia de Lorenz, pois os seus esquemas podem mostrar muita coisa util & interpretagdo dos factos sociais, notamente ao estudo da formagio de povos recentes, como por exemplo os das Amé- Titas. A par do lado sentimental a que nos arrastam docemente as garimpagens genealdgicas, pondo-nos em convivio com avoengos distantes, a ponto de acompanharmo-lhes as relagées familiares, (4) — Consulte-se Octavio Domingues, Hereditariedade e Eugenia, Biblioteca de Divulgagio Cientifica vol. VI. (5) — Veja-se a citada obra de Octavio Domingues. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 135 as amizades, as vitérias e as alegrias, as tristezas e fracassos, podemos por meio delas examinar-lhes a acgio politica, civica, econémica, construtiva ou errada, porém de qualquer modo rea- lizando o seu destino histérico. Igualmente nao é de obscurecer o quanto nos esclarecera a Genealogia do angulo da unidade nacional, num pais como o nosso, imenso em territério e apenas salpicado de gente em ilhas humanas entre si linginquas, mantendo pela entrosagem das familias uma solidariedade edificante, consistente, que ndo dei- xou se fragmentasse 0 colosso, como liliputianos sustentando Gu- liver. Foram troncos comuns localizados nos raros centros de civilizagéo de Pernambuco, Baia ¢ S. Paulo que centrifugamente esgalharam pelo resto do chao brasileiro, nas “bandeiras” ou expedigées atrevidas, povoando-o como quem semeia gros para as futuras colheitas. E’ certo que esse “familismo”, com a sua coesio grupal salvadora, muila vez se exagerou no malificio de Jutas crimi- nosas, matando-se e destruindo-se, mas é irresistivel a afirmativa de que a formagio social brasileira teve como sustentaéculo os grupos familias, gerando por cissiparidade grupos idénticos, bem podendo dizer-se, com Capistrano de Abreu, que a histéria do Brasil nao é sendo a histéria das suas familias. Escreve com acerto Gilberto Freire que, embora ndo deva perder-se de vista 0 aspecto genético da remessa inicial para o Brasil de elementos moralmente impuros, espécie de “tara étnica brasileira” a inquietar-nos na opinidéo menos fundamentada de alguns escritores,—‘“a partir de 1532 a colonizagio portuguesa do Brasil, do mesmo modo que a inglesa da América do Norte e ao contrario da espanhola e da francesa nas duas Américas, esracteriza-se pelo dominio quase exclusivo da familia rural ou semi-rural. Dominio a que s6 o da Igreja faz sombra atra- vés da actividade, As vezes hostil ao familismo, dos Padres da Companhia de Jesus. A familia, néo o individuo, nem tao pou- co o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é, desde o século XVI, o grande factor colonizador no Brasil, a unidade predutiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a forga social que se desdobra em politica, constituindo-se na aristocracia colonial mais pode- 136 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA rosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar. Os senados de cémara, expressées desse fami- lismo politico, cedo Jimitam o poder dos reis ¢ mais tarde o pré- prio imperialismo ou antes parasitismo econémco, que procura estender do reino as colonias os seus tentdculos absorventes. A colonizagao por individuos — soldados de fortuna, aventureitos, degredados, cristiios novos fugidos & perseguigéo religiosa, ndu- fragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira — quase néo deixou trago na plastica econémica do Brasil. Ficou to raso, tio & superficie e durou tio pouco que politica © eco- ndmicamente esse povoamento irregular e a t6a néo chegou a definir-se em sistema colonizador”. (6) E, portanto, projectando na tela histérica a influéncia das familias brasileiras, estudando-as nas minicias, pesquisando-Jhes a origem prosdpica, observando-lhes os desdobramentos, salien- tando as qualidades boas e mds dos seus membros, fixando as suas influéncias no meio, que havemos de escrever a verdadeira histéria nacional, a luz de uma exegese firme, apta a explicar e, com a aplicagio, dirigir a vida brasileira, —H— : UM SECULO SEM FAMILIAS No Ceard, porque a sua exploragéo civilizadora demorou de um século apés o descobrimento cabralino, é intuitivamente mais recente a formagio da familia, e talvez com relativa faci- lidade mais poss{vel uma sistematizagéo genealégica. Assim demorado de cem anos, outros quase cem se escoa- riam, correspondentes ao século XVII, sem que o povoamento s@ processasse, sendo em ligeiras tentativas, apenas arranhando aqui-e ali o litoral. Comegou em verdade o povoamento sertio a dentro sémente depois de 1680, época das primeiras doagdes sesmarias, Até entdo existira no forte de S. Sebastidio, barra do (6) — Casa Grande e Senzala, 2a, ed. Schimidt Editor, 1936, pag. 18 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 137 Ceara, depois mudada para a do Pajet pelos holandeses, um grupo de soldados de guarnigdéo ou de exploradores de minério da prata, vivendo a vida dos presidios do tempo, longe das fa- milias, sem mulheres brancas com que convivessem, sendo cru- zando com {ndias arancadas & forga aos maridos ou aos pais. A primeira mulher europeia a pisar terras cearenses, como se sabe, foi a desventurosa esposa de Pero Coelho, da. Tomasia, trazida por.ele da Paraiba com os filhos menores no intento de fixar-se como dono da regido da Nova Lusitania, cuja capital setia, nos seus sonhos, uma Nova Lisboa, a levantar-se e crescer 4s margens daquele riozinho, como a outra nas do Tejo glorioso. Sabe-se conto os ventos da desgraga apagaram, escritas nas areias praianas do Pais do Jaguaribe, as letras com que Pero Coelho descjou gravar numa obra sélida os objectives da sua expedigo colonizadora. Da investida dos Padres Pinto e Figueira, pela natureza mesma da sua inspiragdo, nao fizeram parte mulheres, e quando, en: 1612, Soares Moreno abriu comego aos contactos mais esta- veis do homem branco com a terra do Siaré, nao trouxe consigo mais do que seis soldados ¢ um padre. Ao sair mais tarde, dei- xou no fortim 20 pragas que “por serem t4o poucas néo podiam fazer mais do que sustentar-se ali dentro”, j4, no entanto, “10 ou 1] deles casados com indias e mamelucas com muitos filhos”, tal qual refere na espécie de autobiografia que dirigiu ao rei com o titulo de Relagao do Siaré. E apesar de aconselhar que “os soldados que ali residirem serdé bom serem casados para trabalharem com cuidado e para quietagdo dos indios”, melhor diriamos, das indias, nio ha no- ticia de familia que resultasse daqueles casamentos. Igualmente nao ha roteiro do destino dos seus “muitos pa- rentes € outros povoadores casados que, para cultivarem a ter- ra — segundo adianta Manuel Severim de Faria — o tiriam acompanhado em 1621, (7} tempo em que, feito capitio-mor por dez anos, volta ao Ceara, trazendo cavalos, vacas, cana de agi- (7) ~ Ver Tricentendrio da Vinda dos Primeiros Portugueses ao Ceard, Fortaleza. Tip. Minerva, 1903, pag. 174. 138 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA car e varias sementes na intengdo de estabelecer convenientemen- te a sua Capitania. Martim na carta que escreveu a El-rei em 1.° de Novembro. de 1621, dando noticia de como chegou ao Cearé em 23 de Se- tembro, refere-se, de facto, As sementes que semeou e nasceram, as canas de agicar que “se dio espantosamente”, As vacas que “se dio notévelmente” e ao gado mitido “pela mesma maneira”, sem entretanto, de qualquer modo, aludir a parentes ou outras pessoas casadas que com ele tiveram vindo. (8) E é certo que por ocasido da tomada do forte pelos holande- ses de Gartsman, em Outubro de 1637, aos portugueses que o guarneciam, foram tomados e embarcados para o Rio Grande 33 soldados, 50 indios e 18 prisioneiros, nao esclarecida a natu- reza destes ultimos (salvo a de dois: 0 governador € 0 sargen- toanor), néo havendo alusdo alguma a gente branca ou casais. Gedion Morris de Jonge, major da expedicéo flamenga, e Van Ham, tenente, mandaram aos directores da Companhia das {n- dias Orientais relatérios e cartas em que relatam as peripécias da excursio, minudentes até em mencionarem o numero de reses deixadas pelos vencidos e descreverem particularidades da vida dos indfgenas, e nada mencionam que indique a presenga de moradores civis europeus. (9) Os da Holanda também no conduziram famflias para o Ceara, quer na primeira ocupagio (1637-1644), quer na segun- da, sob a direegio de Matias Beck (1649-54). Ao tempo desta 86 ha noticia da permanéncia aqui da esposa do comandante Maes, chegada a 30 de Julho de 1649, pelo barco “Camamou”, do capitéo Eduardo Gosens. (10) As ligagdes entre holandeses e indios nunca permitiram © cruzamento racial, pois eram expressas neste particular as proi- bigdes e severas as punigdes, . Gonsalves de Melo Neto, no seu recente livro Tempo dos Flamengos, transmite-nos que por mais estreita que tenha sido (8) — Revista do Instituto do Cearé, volume 19, pagina 94. (9) — Revista: do Instituto do Cearé, volume 10, paginas 47 - 95. (10) — Idem, volume 17, pagina 389. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 139 a amizade de uns e outros nunca foi possivel criar entre as duas ragas lagos mais firmes do que os da simples alianga militar. O Conselho Supremo, o Conselho Eclesiastico e os predicantes ti- nham para com tais aproximagdes indisfaredvel reprovagio e mesmo gestos de indignagdo. “Poderiamos citar — acrescenta— diversos flamengos casados ou amigados com indias (Rabe, Don- cker, Jacob Kint); entretanto isto foi causa até de deportagio, como no caso de certo Gaspar Beem, ex-alferes que no Ceara, contra expressa proibigéo que daqui mandaram, dizem os Su- premos Conselheiros, que ninguém se unisse com brasilianos, per ser um povo muito cioso (“jalours”) (o que deu mativo a que os nossos fossem expulsos dali), apesar disto, amigou-se com uma. india, pelo que foi deportado”. (11) As referéncias mais pacfficas sio em torno da afirmagdo de que a primeira familia branca a habitar o Cearé foi a do capitéo-mor Jodo de Melo de Gusmao, empossado no cargo a 14 de Dezembro de 1663, depois de terem estado comandando o presidio Alvaro de Azevedo Barreto, Domingos de Sé Barbosa, Anténio Femandes Monxica e Diogo Coelho de Albuquerque. Até ali, como resume Studart, “gente branca no Ceara era a infantaria do presidio ou algum missiondrio na sua faina do sua mulher, todos debaixo de sua limitagdo, e nfo ter cabedal paar os deixar na Corte, nem perante quem arrime sua casa, permissiio para trazé-los e o Conselho Ultramarino 0 auto- rizou “por na Capitania do Ceard ndo haver mais que o gentio da terra e os soldados que defendem e por nao poder evitar que _ os casados se acompanhem de suas mulheres, e a proibigo que ha (e que é justo se guarde) ser de que os governadores das pracas povoadas nao levem a elas filhos ou parentes mancebos pelas queixas a que dao ocasiéo com os seus procedimen- tos”. (12) . (11) — Coleco Documentos Brasileiros, Livraria José Otimpio, ni- mero 54, pagina 247, (12) — Documentos, volume 4, pagina 109. 140 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Noutra petigéo, de 18 de Janeiro de 1667, Gusmao jd fala em dois casais, além da mulher e dos fithos. (13) Falecendo no. governo, a vitiva, da, Teresa, retirou-se com as trés filhinhas para o Maranhio, fazendo por terra viagem temerdria. (14) Ne- nla descendéncia ficou, portanto, desta familia. Nio se regista nos documentos da histéria cearense tenham os demais capitées-mores sucessores de Gusmio trazido-suas fa- milias ou outras para povoarem a terra, por todo o resto do século. Logo a partir de 1679 foram sendo dadas sesmarias a mo- radores do Rio Grande, Pernambuco e Baixo Sio Francisco,” mas na realidade muitos destes néo ocuparam as texras rece- bidas em data e alguns poucos o fizeram por intermédios da va- queiros. Na petigdo com que Manuel de Abreu Soares e outros soli- citam em 168] a primeira dessas sesmarias, alegam que a regifio do Jaguaribe seguinte as witimas povoagées do Rio Grande “nun- ca fora povoada por brancos”. Circunscreviam-se os moradores brancos 4 povoagdozinka do forte, na barra do Pajei, ai acuados e hostilizados a todo instante pelos {ndios, e somente depois do levantamento do pre- sidio de S. Francisco Xavier, em Russas, é que o povoamento tomou algam Animo, por ele protegido. A guerra feroz imposta 4 indiada indomavel, que “pelas suas rebelides ¢ infidelidades a merecia”——na textual expressiio da O. R. de 27 de Margo de 1725 — e a sua posterior pacifi- cagio garantiam infiltragdes de desbravadores mais seguras, po- rém é certo que, mesmo assim, a dar-se crédito ao informe do capitéo-mor Pedro Lelou, em carta ao governo da metropole, nao passavam de 200 os moradores da Capitania. E ainda em 1707 0 capitao-mor Gabriel de Lago calculava que nesta “nfo se acharia 0 ntimero de cicoenta casais”. (15) (13) — Idem, pagina 134. (14) ~ Idem, pagina 231. (13) — Em Algumas Origens do Cearé, de Anténio Bezerra, Fort. ‘Wp. Minerva, 1918. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 141 Penetragio a principio de cunho visceralmente e necessa- riamente bandeirante, destruindo os nativos ou afugentando-os, para limpar terreno aos currais de gado, crivada de mil e peri- gosas dificuldades, nao era possivel nesse povoamento de solda- dos ou de mercendrios 4 custa de homens poderosos ou ricos, riograndenses e pernambucanos, a presenga da mulher branca € a sua auséncia ou escassez quase absoluta motivou, nessa fase, como é ébvio, a ndo formagio de familias regulares, seniio a pro- dugio de mamelucos ilegitimos, gerados da violéncia sexual das iracemas preadas e indefesas, gragas a forte qualidade de espontanea miscibilidade do lusitano e do luso-descendente com a mulher de cor, tio posta em destaque pelos socidlogos, ac lado das duas outras, a mobilidade e a aclimabilidade — as trés dan- do-lhe capacidade e modos para formar 0 mundo que o portu- gués criou. (16) Em verdade pode-se resumir e assegurar que somente no sé- culo XVIII comegou no Cearé, come no Nordeste pastotil, a vida social, que viria modelar-se baseada num tipo de familia rural proprio, diferente, inconfundivel, duma genética e dum desdo- bramento histérico que necessitam de ser bem estudados e detinidos. (16) — Leia-se o Livro de Gilberto Freire com este nome, Liv. José Olimpic -Editora, Rio, 1940.

You might also like