You are on page 1of 12
BieMU No) ee OBRAS COMPLETAS VOLUME 9 OBSERVAGOES SOBRE UM CASO DE NEUROSE OBSESSIVA OOO UCM Be UMA RECORDAGAO DE INFANCIA nyeAM=O NIV HL). W YL) UO OS ait) (1909-1910) TRADUGAO PAULO CESAR DE SOUZA Coys Scanned with CamScanner Copyright da tradugio © 2015 by Paulo César Lima de Souza Grafia atualigada segundo 0 Acordo Ortogréfico da Lingwa Portuguesa de 1990, que entrou emt vigor no Brasil em 2009. Os textos deste volume foram traduzidos de Gesammelte Werke, ‘volumes vit, vitte xit (Londres: Imago, 1941, 1943 € 1947). Os titulos originais estio na pagina inicial de cada texto. A outra cedicio alemareferida¢ Studienausgabe, Frankfurt: Fischer, 2000. Capa e projeto grafico wwarrakloureiro Imagens das pp.3.€4 Figura feminina, Siria, c. 2000-17508.C., argila, 1,7em. ‘Abutre, Egito, 716-332 a.C., bronze, 4,3 em. Obras da colegao pessoal de Freud. Freud Museum, Londres. | Preparagao Célia Euvaldo {Indice remissivo Luciano Marchiori Reviséo Renata Lopes Del Nero ‘Valquiria Della Pozza Dados Intermacionais de Catalogasio na Publicagio (c1P) (Camara Brasileira do Livro, se, Brasil) Freud, Sigmund, 186-1939. ‘Obras compltss, volume 9: observagbes sobre um caso de neurose ‘bsessiva[“O homem dos rates"), una recordacio de inffnca de Leonardo dda Vineie outros textos (1909-1910) / Sigmund Freud; traducio Paulo (César de Souza. —1* ed. — Sio Paulo: Companhia das Letras, 2013. Tiulo esammelte Werke 188 978-85-359-2239-4 +. Freud, Sigmund, 1846-1959 2, Psicandlise 5. Psicologia 4. Psicoterapia 1. Titulo. Indice para etlogo sist 1 Sigmund Feud: Obras complets: Psicologia snaiea sags bor] ‘Todos os direitos desta edig&o reservados & EDITORA SCHWARCZ S.A. Rua Bandeira Paulista, 702, ¢j. 32 04532002 — Sao Paulo — sP ‘Telefone: (11) 3707-3500 ‘www.companhiadasletras.com.br ‘www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/companhiadasletras {nstagram.com/companhiadasletras twitter.com /cialetras Scanned with CamScanner SOBRE | PSICANALISE “SELVAGEM” (1910) TITULO ORIGINAL: “UBER ‘WILDE’ PSYCHOANALYSE”. PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM ZENTRALBLATT FOR PSYCHOANALYSE, V. 1, N. 3, PP.91-5. TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKEVIN, PP. 118-25. TAMBEM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE, ERGANZUNGSBAND [VOLUME COMPLEMENTAR], PP, 133-41. — Scanned with CamScanner gone PSICANALISE “SELVAGEM™ yd alguns dias apresentou-se em meu consultér vompanhada de uma amiga, uma senhora que din softer de estados de angustia. Tinha seus munians rantos anos, estava bem conservada, e claramente ainda nunciara a sua feminilidade. O ensejo precipita- nao rel dor da angistia foi a separacao de seu ultimo marido; sa angustia, 6s ela consultar um jovem médico da mas € conforme seu relato, aumentara con- sideravelmente ap! Jocalidade em que vivia, nos arredores de Viena, pois esse lhe explicara que a causa da angistia era sua carén- cia sexual. Ela nao podia se privar das relages com 0 marido, ; portanto, havia apenas trés cami- nhos para recuperar a satide: ou ela voltava para o ma- uy arranjava um amante, OU satisfazia a si mesma. tao ela estava convencida de que era incuravel, o marido nao desejava yoltar, e os dois outros gnavam sua moral e sua religiosidade. Pro- orque o médico Ihe havia dito onhecimento que se devia penas me visitar para ter a c uma senhora mais velha, mirr lia, implorou-me entdo que asse- dico se enganara. Nao podia va desde muito tempo € indo de angistia. que essa visi- a conduta ibrar segundo ele: rido, 0 Desde en pois para meios repuj curou-me p' de um novo ct ela necessitava a] daquilo. A amiga, aparéncia nao muito sadi gurasse 4 paciente que © mé ser verdade, ela propria era vith permanecera respeitavel, ndo softes Nao me deterei na dificil situagao em tame colocou; tentarei, isto sim, esclarecer do médico que a enviou. Primeiramente, quero lem! 7 ou oxalé —nao seja supér- ou — como teria que se tratava amim, e que onfirmagao ada e de - precaugo que talver la, iénci: i Uma longa experiéncia me ensin a Scanned with CamScanner soBRE pSICANALISE *SELVAGEM jquer outro — 4 nao tomar imediatamen- leiro 0 que OS pacientes, em especial os m de seus médicos. Em toda espécie de cialista em doengas nervosas nao ape- nte o objeto de muitos dos impulsos mo as vezes tem de conformar-se spécie de projegao, a responsabi- ios reprimidos dos neuréticos. que tais acusagdes achem ensinado a qual te como verdad neuroticos, relata tratamento, 0 espe nas se torna facilme! hostis do paciente, Co em assumir, por uma e: Jidade pelos ocultos desej Ralgo triste, mas significativo, crédito principalmente junto ao’ Portanto, tenho o direito de a me fez um relato tendencios édico, e que fago uma injustiga com ele, que pes- ao tomar esse caso como ponto s outros médicos. pensar que aquela se- nhor 0 das afirmagées de seu m soalmente nao conhego, ‘ida para minhas observagées sobre psicanilise de parti fazendo, no entanto, eu talvez im- “selvagem”.” Assim tros de prejudicarem seus pacientes. pega ou que o médico tenha dito exata- ‘Vamos supor, entao, mente o que a paciente me relatou. Qualquer pessoa lhe adiantard a critica de que, se um médico acha necessario discutir o tema da sexualidade com uma mulher, tem de fazé-lo com tato e discrigo. Ora, tal exigéncia coincide coma observancia de determinados preceitos récnicos da psicanilise; e, além do mais, o médico teria ignorado ou entendido mal uma série de teorias cientificas da psica- * “Selvagem”: tradugdo literal do adjetivo alemao wild, que é gra- fado como seu equivalente inglés e, como ele, pode ter o sentido de “desregrado, irregular” — sentido que nio € to frequente em portugués, mas que se acha, por exemplo, na expresso “capitalis~ mo selvagem”. 326 Scanned with CamScanner ac PSICANALISE“SELVAGEM” smostrando que pouco avangou na compreensio urea e seus PrOPOsitos. Comecemos com os tltimos, os erros cientificos. Os ro do médico mostram claramente em que sen- compreende a “vida sexual” naquele popular, no qual S€ entende por necessidades sexuais apenas a necessidade do coito ou de atos semelhantes que pro- uzam 0 orgasmo ea liberagaio de determinadas subs- tincias. Mas ele nao pode ter ignorado que costumam foser 3B bjegdo de que ela estende a nogao de sexual muito além da sua amplitude habitual. Isso le pode ser usado como uma objegio, é é um fato; se ©" algo que nao discutiremos aqui. O conceito de sexual abrange muito mais na psicandlise; vai além do sentido ular, tanto para cima como para baixo. Tal amplia- jo se justifica geneticamente; incluimos na “vida se- sual” todas a8 de sentimentos afetuosos manifestagdes que proven da fonte dos primitivos impulsos sexuais, ‘mesmo quando esses impulsos experiment inibigao de sua original meta sexual ou troc por outra nao mais sexual. Por isso preferimos falar em prcossexualidade, enfatizando que o elemento psiqui- co da vida sexual nao deve ser esquecido nem subesti- mado, Empregamos 0 termo “sexualidade” no mesmo sentido abrangente em que a lingua alema usa a pala- va fiben [amar]. H4 muito sabemos que pode haver insatisfagao psfquica, com todas as suas CO! também quando nao falta 0 intercurso sexual como terapeutas sempre levamos em conta que fre- quentemente os impulsos sexuais insatisfeitos — cujas nalise, de sua na consel tido el qual taram uma aram essa nsequéncias, normal, 327 Scanned with CamScanner ‘SOBRE PSICANALISE "SELVAGEM" satisfagdes substitutivas combatemos na forma de sin. tomas nervosos — somente em pequena medida encon. tram desafogo mediante o coito e outros atos sexuais, Quem nao partilha essa concepgao da psicossexua. lidade nao tem o direito de invocar as teses da Psica. nalise que tratam da importancia etiolégica da sexua lidade. Essa pessoa simplifica bastante o problema, ap acentuar exclusivamente o fator somatic na sexualj- dade; mas a responsabilidade pelo procedimento deve ser apenas sua. Outra incompreensio, igualmente grave, transpare- ce nos conselhos do médico. E certo que a psicandlise afirma que a insatisfacio sexual é causa de transtornos nervosos. Mas ela niio diz mais do que isso? Pretende-se deixar de lado, por demasiado complexo, seu ensinamento de que os sinto- mas nervosos nascem de um conflito entre dois pode- res, uma libido (que geralmente se tornou excessiva) e uma rejei¢ao da sexualidade ou repressio rigorosa de- mais? Quem nao esquece esse ultimo fator, que real- mente nao € secundario, nao pode crer que a satisfagdo sexual constitua, em si, um remédio de eficacia geral para as queixas dos neuréticos. final, boa parte des- ses individuos € incapaz de satisfagio, absolutamente ou nas circunstancias dadas. Se eles fossem capazes disso, se no tivessem suas resisténcias internas, a for- ga do instinto lhes apontaria o caminho para a satisfa- 40, mesmo quando o médico nao aconselhasse. Para que, entao, um conselho como o que o médico teria dado & senhora? 8 Scanned with CamScanner y s08RE PSICANALISE “SELVAGEM™ Mesmo que ele se justifique cientificamente, ela ndo tem como segui-lo. Caso nao tivesse resisténcias inter- nas masturbagao ou a relaco amorosa, hd muito ela ja teria recorrido a um desses meios. Ou o médico acredi- taque uma mulher de mais de quarenta anos nao sabe e é possivel arranjar um amante, ou superestima ele de tal modo sua influéncia que acha que ela jamais daria tum passo desses sem aprovacio médica? Tudo isso parece bastante claro, mas devemos ad- mitir que ha um fator que muitas vezes dificulta o jul- gamento. Varios estados nervosos, tanto as assim cha- smadas neuroses atwais COMO a neurastenia tipica e a pura neurose de angustia, dependem claramente do fator somatico da vida sexual, ao passo que nao temos ain- daideia segura sobre 0 papel que neles desempenham 0 fator psiquico ea repressao. Nesses casos é natural que omédico considere inicialmente uma terapia atual, uma alteragdo da atividade somatica sexual, e ele o faz com plena justificagao, se 0 seu diagnéstico foi correto. A se- nhora que consultou o jovem médico queixava-se prin- cipalmente de estados de angiistia, € provavelmente ele sup6s que ela sofria de neurose de angustia, sentindo-se justificado em Ihe recomendar uma terapia somatica. Novamente um cémodo mal-entendido! Quem sofre de angtstia nao tem necessariamente uma neurose de angiistia; esse diagndstico nao deve ser tirado do nome. Epteciso saber que manifestagdes constituem uma neu- ane e distingui-la de outros estados pa- $thod ey Abe Epatsee. a angiistia. Parece-me nue a questo sofria de uma histeria de angiistia, € 39 Scanned with CamScanner ‘SOBRE PSICANALISE “SELVAGEM” todo o valor dessas disting&es nosograficas (aquilo que também as justifica) est4 no fato de que indicam outra etiologia e outra terapia. Quem considerasse a possibj. lidade de uma histeria de anguistia nao incorreria nessa negligéncia dos fatores psiquicos que se mostra nas al. ternativas aconselhadas pelo médico. Curiosamente, nessas alternativas terapéuticas do suposto psicanalista néo sobra espago para — a psica- ndlise! A senhora poderia se curar da angiistia apenas se voltasse para o marido, ou satisfazendo-se pela via da masturbac4o ou com um amante. Onde ficaria o trata- mento analitico, em que vemos o principal recurso para os estados de anguistia? Com isso chegamos as falhas técnicas que perce- bemos na conduta do médico, no caso presente. Uma concepgao hé muito superada, baseada na simples apa- réncia, diz que 0 doente sofre devido a uma espécie de ignordncia, e que, quando removemos essa ignorancia através da informagao (sobre os nexos causais entre sua doenga e sua vida, sobre suas vivéncias infantis ete.), ele certamente se cura. O fator patogénico nio é a igno- rancia em si, mas 0 fato de ela se fundamentar em resis- téncias internas, que inicialmente a provocaram € ainda a sustentam. A tarefa da terapia é combater essas resis- tancias. Informar 0 que o paciente nao sabe, porque © reprimiu, 6 apenas um dos preparativos necessérios & terapia. Se a informagao sobre o inconsciente fosse tao importante para 0 doente como acreditam os nao inicia~ dos na psicanilise, bastaria, para seu restabelecimento, que ele frequentasse palestras e lesse livros. Mas es 330 — Scanned with CamScanner ‘SOBRE PSICAMALISE *SELVAGEM™ ¢ medidas tém to pouca influéncia nos sintomas di vflué omas da nervosa quanto a distribuigao de cardapios ntos numa época de fome. Ea comparagai odd do pode doente acerca do inconsciente sai doenga os fami jralém, pois informar ao ita, via de regra, em exacerbagao do conflitae in- ensificagao das dores. porém, come a psics comunicagas determina que ela nao suceda antes ese cumpram duas condigées. Primeiro, antes que aciente mesmo S€ avizinhe, mediante preparacao, a guilo foi por ele reprimidos segundo, antes que Be apegado 1200 20 médico (sransféréncia) que a ee ao emocional a esse torne impossivel a fuga. we ss repos de cumpridas esses condigdes seré sve conbecet © dominar as resisténcias que levaram pe ressiio € ainsciéncia. Logo, uma intervengao psica- Je um contato prolongado com 0 doen- tentativas de surpreendé-lo na primeira sessdo, cO- -Jhe abruptamente 0S segredos adivinhados, sio tecnicamente condendveis e acarretam muitas vezes ir a auténtica inimizade do impedir qualquer influéncia ulterior. siderar que as vezes © médico aconselha er- radamente e jamais pode perceber tudo. Na psicanilise, essas prescrigdes técnicas definidas substituem a exi- gincia do inapreensivel “tato médico”, que é visto como um dom especial. Portanto, para o méd concusdes da psicandlise; é pre arse com a técnica, se quiser que sua P: andlise nao pode prescindir des- paciente € Sem cons lico nao basta conhecer algumas ciso também familiari- rtica médica 33t Scanned with CamScanner = ‘SOBRE PSICANALISE “SELVAGEM” seja guiada pelas concepgdes psicanaliticas. Essa tg ainda nfo pode ser aprendida em livros, e cerns pode ser obtida apenas com grandes sacrificios de tee po, esforgo e resultados. Como outras técnicas médicay © individuo a aprende com aqueles que ja a domtham, Por isso nao deixa de ser relevante, na avaliagao do tag que tomei como ponto de partida para estas observa. ges, que eu nao conhega o médico que teria dado esses conselhos nem jamais tenha ouvido seu nome. Nao é agradavel, para mim e meus amigos e cola. boradores, monopolizar dessa maneira a Prerrogativa de exercer uma técnica médica. Mas nao tivemos outra escolha, em face dos perigos que traz consigo, para os doentes e a causa da psicandlise, o previsivel exercicio de uma psicandlise “selvagem”. Na primavera de 1910 fundamos uma sociedade psicanalitica internacional," em que a lista dos membros se acha A disposigio do publico, para poder rechacar a responsabilidade pelos atos de todos aqueles que nao sao um dos nossos e cha- mam de “psicandlise” seu procedimento médico. Pois, na realidade, tais psicanalistas “selvagens” prejudicam mais a causa do que os doentes. Frequentemente ob- servei que um desses procedimentos inabeis, embora * Com miniisculas no original: ein internationaler psychoanalytis- cher Verein. Esse tiltimo termo é 0 mesmo empregado na designa- 40 das sociedades psicanaliticas locais: Wiener [de Viena] Psycho- analytischer Verein, por exemplo. Na “Contribuicao a hist6ria do movimento psicanalitico” (1914, cap. 111) e na “Autobiografia (1925, cap. ¥), Freud fala de Internationale Psychoanalytische Veret- nigung, traduzida por Associagao Psicanalitica Internacional. 332 — Scanned with CamScanner — 08RE SICANALISE “SELVAGEM” tenha provocado uma piora na condigio do jente, acabou por leva-lo & recuperagao, Nem sem- a mas com frequéncia. Depois de xingar por algum po 0 médica e Sentitse 3 alguma distancia de sua inf wuéncia, © doente vé os sihromas cederem ou resolve docu bom passo no caminho da cura. A melhora fi- vote enta0 “por simesma”, ou éatribuida aalgum dino de um médico ao qual o paciente se No caso da senhora que se queixou do mea crer que, tudo somado, 0 psicana- mais por sua cliente do que alguma que lhe dissesse que ela sofria de iia tora”. Ele a fez voltar a atencao para 08 yerdadeiros motivos de seu problema, ou para asproximidades desse, e, apesar da revolta da paciente, essa intervengao ndo terd ficado sem consequéncias po- sitivas. Mas ele prejudicou a si mesmo e contribuiu para aumentar os preconceitos que, devido a compreensiveis resisténcias afetivas, os doentes nutrem em relagio a ati- vidade do analista. E isso pode ser evitado. 0 nici nal 0° i tratamento ano dirigia depois. médico, inclino~ lista “selvagem” fez restigiosa auroridade “peurose vasomo 333 Scanned with CamScanner

You might also like