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8. De Sartre a Huston: Freud, além da alma ng Em 1958, John Huston encomendou a Jean-Paul Sartre 0 rotelro para um filme sobre Freud. Nao uma biografia completa: queria mostrar 0 processo que levou A invengao da psicanilise, ou seja, a sucesso de descobertas dos anos 1890. “Tampouco seria preciso manter fidelidade total aos fatos: estes deviam ser incui- dos numa narrativa ficcional, que prendesse a atengio do espectador € 0 levasse se interrogar sobre essa estranha entidade que singulariza 0 humano —o in- consciente. or que um festejado diretor de Hollywood, em cujo currfculo constavam sucessos como O falco maltés, O tesouro de Sierra Madre ¢ The African Queen, pedi- ria semelhante coisa a um filésofo francés, além do mais adversario conhecido da psicanslise? f que Huston nada tinha de provinciano: na sua movimentada ju- ‘ventude, havia estudado pintura em Paris, portanto conhecia a lingua francesa, © ‘acompanhara —um tanto de longe, & verdade — 0 surgimento do existencialis- ‘mo nos anos 1940, ‘Também se interessava pela psicoterapia: embora ndo chegas- sea set exibido, seu documentirio de 1946 sobre os soldados traumatizados pela Scgunda Guerra Mundial (Let There Be Light) se detinha no tratamento deles por meio da hipnose, ea experiéncia deixowhe um fascinio pelos recnditos da alma ‘humana que certamente esté na origem do projeto Freud. wr Sartre se ent primeiro volume d \bém alguns textos de Freud (em particular os Estudos sobre a histeria e 0 Caso Do- 1a) aparentemente deixados de lado na sua primeira abordagem da psicanilise, «que resultara na impiedosa critica que encontramos em L'fitre et le néant (O sereo nada, 1942), Em dezembro de 1958, entregou ao cineasta uma sinopse de noven- ta e cinco paginas; Huston gostou do texto, o contrato foi firmado, ¢ Sartre pas- sou boa parte do ano seguinte redigindo o roteiro, Contudo, surgiram dificuldades inesperadas: 0 calhamago, “grosso como ‘minha coxa’, ia do americano, daria um filme de sete ho- ras, e ele pediu que fosse encurtado, Sartre concordou, mas, A medida que revi- i acrescentando novas cenas no Iugar das suprimidas, 0 que ‘obviamente ndo resolvia o problema. As divergéncias foram se tornando insupe- riveis, ¢, aborrecido com o que the parecia uma mutilagéo inaceitivel do seu trabalho, o fildsofo se desligou do projeto, deixando inacabada essa segunda ver- so, Huston nfo desistiu, porém: chamou dois roteiristas profissionais, pattici- pou ativamente na confecgao do script final, ¢ o filme estreou em 1962, com o ‘titulo Freud —logo emendado para Freud, The Secret Passion, que os produtores consideravam mais chamativo, Sartre exigiu que seu nome no créditos, © € voz corrente que sequer se deu ao trabalho de assistir & pelicula, «quando em junho de 1964 ela chegou as telas parisienses. Embora elogiado por alguns criticos americanos e ingleses,e indicaclo para dois Oscars — melhor roteiro original e melhor partitura original! — o filme fracassou nas bilheterias, para grande decepgio do diretor, que em 1961 havia ‘obtido éxito com Os desajustados, Depots de uma curta carreira em cartaz, seu Freud mofou por décadas nas prateleiras das distribuidoras, das quais saia de vez. ‘em quando para uma exibicio em salas de arte, ow na televisio. Quanto aos psi- ccanalistas, de quem se poderia supor que comentassem o filme, a rea¢io foi a ‘mesma: ignoraram-no por completo, inclusive na Franga — em parte, como su- gete Elizabeth Roudinesco, por ter 0 langamento coincidio com a fundagio da tem mais candente na época), mas também wes Lacan & Co A History of Paych Press, 1990. p. 166. CE Wikipedia ‘Talvez. a obra tivesse permanecido nessa imeyecida obscuridade se, em 1984, Jeat-ertrand Pontalis —entéo editor da Nose Remi de Psychanalyse — no houvesse publicado 0 material escrito por seu ex professor de filosofia. Os tempos eram outros, € a cuidadosa edigfo, enriquecida com um preficio no qual Pontalis relata as circunstAncias do encontro entre 0 cineasta ¢ 0 filbsofo-drama- ‘turgo, ¢ analisa a forma como este retratou o fundador da psicand acrescentar a uma série de estudos franceses dedicados & relagio de Freud com sua descoberta. B foi sob a forma de um pedido de Conrad Stein para comentar alguns deles que tomei conhecimento de Le Scénario Freud? » velo se PREUDOLOGIA “Six auteurs en quéte d'un personnage” sait no miimero 29 de Btudes Frew- diennes.‘ Uma observacio de Victor Smirnoff — um dos autores estudados — forneceu o fio condutor para o artigo: “Na Franca, o texto freudiano tornow-se de certo modo o objeto idealizado on fetichizado da pesquisa analitice’,? Com feito, chamava a atengio 0 contraste entre a figura de Freud segundo Sartre, ‘Smirnoff e Monique Schneider, ¢ a que emergia dos livros de Picrre Byguesier, Gérard Haddad e Bliane Lévy-Valensy: - psicandlise, A meu ver, tratava-se de um equivoco: sem descurar a importncia dda obra freudiana, nem o evidente vinculo entre suas ideias e sua vida, —a época em que viveu; condigoes epistemolégicas — i 3. Jean Paul Sartre, Le Scéuario Freud Pris: Gallimard, 1984, HludesFredtennes, 2.29, Pais, 1987. Versfo brasileira em A vingonpa da esfng (1987), atualmente na Casa do Psicélogo (2005): “Seis autores em busca de um pereonagem”, tego de Lila Perea a 5. Vietor N. Smirnoff, "De Vienne a Paris: sur les origines «une psychanalyse ‘A a fangaise™, Nouvelle Revue de Paychanase 20, Pais, p21, 1979. (ESTE — ecte ax qual Se 10 convestido no chefe de umn movies: to que comeca com meia dtizia de discipulos, ¢ ao longo da sua vida evoluiu no sentido da diversificagio de que vimos falando neste volume; Consequéncia inesperada do retorno a Freud promovido por Lacan nos anos 1950 — “o sentido do retorno a Freud 6 um retomno ao sentido de Freud”, como lemos em “La chose freudienne™ — o resultado dessas operagées no poderia ser mais paradoxal: sea psicanilise tivesse com seu fundador esse tipo de telacio, ele nfo teria sido apenas o primeiro psicanalista; seria também o dinico ¢ ‘0 iltimo. Ninguém mais poderia pretender s®-lo — inclusive aqueles que liam as Gesammelte Werke & luz das cartas de Freud para seus alunos e dos dados bioge’- ficos contidos nos textos mencionados ha pouco. ‘Em particular asituagfo analttica —que pode perfeitamente ser estabeleci- a por qualquer terapeuta que tenha passado por uma formagdo adequada — é ‘esvaziada como espago no qual surgem quest6es a ser trabalhadas no plano teé- rico, de novo por quem quer que se tenha preparado pars a tarefa, seja psicana- lista ou de outro métier. £ esta, creio, a origem da idealizago da qual fala Smir- nnoff, e para tal movimento cabe até melhor o sen segundo tetmo, “fetichizagio”” De fato, se 0 fetiche serve para proteger da angistia de castracio, erigir 0 texto freudiano como falo materno vem obturar o imenso buraco deixado pela remo- ‘so de tudo 0 que torna a psicanslise inteligivel como pritica, como teoria e co: ‘mo fato de cultura. Julgue o leitor: para Byguester, a psicanilise estaria virtualmente contida nos estudos de Freud sobre a cocaina, visto que ele "s'est trouvé” (achou-se) diante do problema da sexualidade — como se um belo dia tivesse acordado ¢ © encontrado ao pé da cama, a0 lado clo penico — e uma observacao de pas- ‘sagem sobre as influéncias psiquicas que podem fazer um homem perder mui- ‘to peso “permite supor” () que ele “dispde, desde este momento, da alavanca 6. Jacques Lacan, “La chose eudienne", p40 360 de uma teoria que levaria em conta a linguagem, portanto o sintoma”! Jé Haddad vé no pensamento de Freud a ressurreigadfta arte de interpretar de- s do Talmud, que este judeu “marcado sem o saber hico” teria resgatado do recalque a que a condenara a civili- senvolvide pelos pelo efeito ‘Mie. Valensy concorda com a ideia de que a psicanilise 6 0 judafsmo sem aleirabinica, mas para ela a fonte de Freud nlo é 0'Talmud, e sim um fragmento do Zohar, que aludiria & origem egipcia de Moisés ("um egipcio nos salvou, disse- ram as filhas de Jetro”). Para a professora, mesmo que nada indique ter Freud alguma vez folheado 0 classico da Cabala, a reminiscéncia “oculta” em seu in- consciente teria voltado a tona por ocasido da escrita de Moisés ¢o monoteismo, e, caso cle a tivesse levado a sétio, teria sido obrigado a redefinir nada menos que 0 papel do pai no complexo de fidipo. Mas, a velho ¢ doente, néo teria se sentido com forcas para efetuar tamanha reviravolta em sua teoria, que implicaria “um possivel alargamento de todas as teses psicanaliticas”.” Frente a absurdos desse quilate, 0 roteiro de Sartre era uma parte para Paris a fim de estudar a histeria junto a Jean-Martin Charcot, a0 outo- no de 1897, época das draméticas cartas que relatam a Fliess 0 abandono da teo- ria da seducio e os primeiros vislumbres do triangulo edipiano. Cobre, portanto, 2. Pierre Byguesics, Comment Freud devintdregman, Paris: Navain, 1983, p68, 8, Gérard Hadkiad, Ltnfane ilgiime — sources tabuudiques de a prychanalee, Pari: Hachette, 1981. p. 105, Midrash €o nome dado 8 interpretagto de umn aspecto da lei ow dasnarrativa bla, s9ba form de uma histéra atribuida a um personagem prestigioso do passado, Segundo o autor, “significa aproximadamente interpretacio, no sentido dado por Freud e por Lacan a este termo, ot . joo enigma.” (op. ci, p. 39). Em sua missfo recuperadora, Freud teria sido venenses, “que faziam Midrash sem saber” (p. 6), Fancamente 9 Le Moe de Freud ow a nfrenc cele, MOnaco: futons da Rocher, 1984 Pp 712e 1312, ara sorte do filésofo, 0 retorno a Freud — que em 1958 estava no auge — ainda nao tinha parido os desvarios freadoligicos: nada encontramos em seu texto do misterioso “desejo de Freud’, que segundo uma das frases de efeito de Haddad sustentaria toda a psicanalise,’ ficagio sem resto das ideias dele as de Lacan, uma constante do género que complements a abolicio da his- t6ria da descoberta fieudiana e da evolugio subsequente das suas ideias com a supressio da hist6ria da disciplina entre a morte de Freud e 0 inicio dos Seminé- ros, na década de 1950 — omitindo nada menos que a escola inglesa e a psicolo- gia do ego, assimiladas a “desvios" dos quais a epifania lacaniana a teria resgata- do, Tampouco ha em Le Seénario Freud fetichizagio alguma do inconsciente de Freud, como fonte da qual emanatia como por geracio esponténea uma teoria to complexa e sutil: do talento de dramaturgo de Sartre surge um retrato bastan- te fidedigno do que foi o processo rel de criagio dela por Freud (¢ nfo em Freud), ‘isso apesar de certas entorses d veracidade dos fatos, como veremos a seguir. 05 FREUDS DE SARTRE Freuds?, talvez se espante o leitor. Sim, porque so ao menos trés: 0 de O ser eonada, 0 do roteiro, ¢ 0 da Critien da razdo dialética — este, a julgar pela meticu- losa leitura de Camila Salles Goncalves," quase invisivel, embora sua sombra perpasse 0 método que o filésofo apresenta naquela obra, Dada sua formagio como fenomendlogo, o interesse do jovem Sartre se concentra na atividade da consciéncia, Era portanto inevitével que viesse a se 10, Uma apresonragio suméria dessa época pode ter encontrada em “Um trabalho de civlieagr Freud ea psicandlse’, este volume. Para letor que desejar mais detalhes, pesmito-me remete 205 doisprimeiros capiulos de Freud, pensader da cultura (4 0d, Corapanbia ds Letras, 2005), ca "Explo- sos na sala de vistas: A smbra de don Juan outraxenaio (ed, Casa do Pscélaga, 2005) 11. A idea enguadra todo desenvolvimento de 1Ewn igiime — sources elmudiques de a male: aparece & p20, e, no final, ap. 266 12, Camila Salles Goncalves, Desist ehistéia na pricondlise de P. Sate. Sto Paulo: Nova Ale- ‘xandtia, 1996, originalmente uma tese de doutorado em flosofis na Universidade de So Paulo, "Nas piginas que se seguem, as frases entre aepas— exceto quando indicada outrafonte — slo de ‘Camila, a quem agradeco 0s comentrios com os quais ensiquecei o presente estado, 36 defrontar com 0 que a psicanslise sustenta sobre 0 funcionamento psiquico —e sua atitude em relagio a ela fo tinha como & favoravel: seria imposs vel conciliar a nogéo de inconsciente com uma perspectiva na qual a cons- cigncia, embora por vezes opaca a si mesma, € o fundamento iltimo e indivi- sivel do humano. Mas, se ao se debrucar sobre a imaginaglo ¢ 0 imaginatio 0 filésofo podia de certo modo ignorar as teses freudianas, simplesmente oferecendo deles uma descrigéo que Ihe parecia mais adequada, o esforco de construir uma ontologia fenomenolégica o conduziu @ uma critica bem mais precisa da viséo psicanalit a. Assim, em O ser eo nada encontramos uma “psicanilise existencial”, cuja ta- refa seria proporcionar acesso a algo que nao podia ser examinado no plano no qual se move a ontologia: o individuo, Para compreender a leitura sartriana, convém dar uma ideia do que erm. seus pressupostos. A realidade humana se distingue do em-si—a ordem da Na- ‘ureza e das coisas — pelo factum da consciéncia, ou, no seu vocabulétio, do pa- rai, Bste nasce de um “jorto de liberdade”, que nega o compacto do Ser e nele introduz um ente que se caracteriza simultaneamente pela presenga e pela dis- tncia a si: a consciéncia, pela qual vem ao mundo 0 Nada. Caracterizado pela “falta de ser”, 0 para-si encontra-se na necessidade de se determinar, 0 que faz, or meio de suas escolhas: nestas, se expressam simultaneamente sua existéncia, sua liberdade e seu “projeto” A ontologia focaliza, portanto, as estruturas gerais que constituem o para-si quando se trata de compreender a singularidade de cada um deles, porém, é ne- cessario um método que alcance o cariter contingente, até aleatéxio, das condi ‘sOes nas quais esta ou aquela consciéncia materializaré aquelas estruturas em sua vida. 8 essa a fun¢io da psicanélise, que seré “existencial” na medida em que Puder esclarecer os motivos da aco individual ¢ relacioné-los com o projeto igualmente individual que nelas se exprime e se realiza. gado a explicar no que a sua psicandlise difere das “psicandlises empiricas”: Freud, claro, mas também a de... Nietzsche. © inusitado da aproximagio talvez se deva a forma como ele compreende a nogio nietzschiana de genealogia, que, 36 ‘a seu modo, também & um método para alcangar a “significagio fundamental” dos atos ¢ ideias humanos.” Seia como for, ambas essas “psicandlises” so inaccitiveis para 0 filésof, porque, segundo ele, ao realizar aquilo a que se propdem perdem de vistaaisre dutibiidade de cada projeto individual, reduzindo.o a “absteagées" como o in- consciente, a libido e a vontade de poténcia, Neste ponto, é intransigente: o sin- ular deve ser explicado pelo singular, e em nenhum momento a contingéncia radical do sujeito pode ser anulads referindo.a a uma ordem universal. O objeto da psicanalise existencial ser, portanto, a série de escolhas, sem que se procure ‘2 um principio “geral ¢ abstrato de todos os comportamentos” Bla procederia efetuando “Ieituras da relacio global com o mundo, pela ‘qual 0 sujeito se constitui como um si mesmo”, ‘Tal relagio nao é postulada, ¢ sim construida pela comparagio de condutas sempre parciais e incompletas, caja sobrep em “cada in (o perimitiria vislambrar uma “plenitude individual” que se expressa inacio ¢ cada tendéncia’." Assim seria descoberto 0 “projeto fun damental”, que — outro ponto-chave — é sempre e por definigio consciente. © postulado da consciéncia integral é necessério para sustentar a responsa- bilidade do individuo por suas escolhas: afilosofia da liberdade deve desembocar ‘numa ética, Mas seria errdneo supor que Sartre afirme uma consciéncia sempre coincidente consigo mesma, sempre totale transparente, Ao con poralidade intrinseca implica que seja habitada por ume distancia pela “falta a ser” que esté em seu amago que ela se transcende continuamente na ditegio dos seus possiveis. Feita essa ressalva, 0 fato & que para Sartre a ignorancia desses posstveis nfo pode ser assimilada a0 inconsciente. para dar conta dela que recorte a distingo centre “tomar consciéncia” ¢ “tomar conhecimento”: a iluminagZo do sujeito € um fato. (...). Isso $6 6 verdadeiramente compreensivel S€ 0 sujeto jamais detxou de ser consciente das suas tendéncias profundas, ou me 13. CE Scarlett Marton, Nese das forges fsmicas aos valores humanos, So Paulo: Braslense, 1990, «em especial 0 capitulo “O procedimento genealégico: vid e valor’. Diz.a autora "se inicilmente 'Nietache concebe a pscologia como oestudo da origem edahistbia dos entimentos moras, qu do intros nogode valor passa a identifica a0 procedimento gencalégic... Nao por acaso, Pos, que nos textos do lkimo periodo da obra insste em stitodenominar se psicdlogo” (p. 8). 14. CF Camila Sales Gongalves, op cit, p. 156. 364 Sig thor, se elas no se distinguem da sua consciénela. A jpterpretago psica 6 faz tomar consciéncia do que ele é ela 0 faz tomatonhecimento disso, Entra entio em cena 0 movimento pelo qual o sujeito evita admitie como to privilegiado da cri- ssa mé-fé, Como este € o instrum suas as ditas tendén tica sartriana ao inconsciente, vale nos determos um instante no conceito. A mé-fé é mentira asi, e, dada a identidade entre tendéncias profundas e conscién- cia, s6 pode ser consciente, portanto deliberada, Para se efe ‘uma série de ardis, dos quais o principal é um uso desvirtuado da dupla condigio do para-si, constituido simultaneamente por “facticidade” ¢ “transcendéncia’ at, ela recorre a transcendéncia & superar-se na diresio de algo superior; facticidade € a condiglo de fato do homem. A mi-fé nega quem sou: visa a estabelecer que nifo sou o que sou t {um projeto original de se representa as propras disposes de mancira migua: “o ato primeiro da mi-@ & para fugir daquilo de que nfo se pode Fagin, para fugir daquilo que se &”." ‘A mé-fé nega a temporalidade apoiando-se na liberdade (na formulagio con- cisa de Camila Gongalves, afirmando que “sou o que fui e continuo a ser o mes- ‘mo”), ou nega que 0 que sou hoje seja consequéncia das escolhas que fiz.no pas- sado (“sou outra pessoa, nada mais daquilo que fui permanece em mim"). , como ver'se na perspectiva de outrem, ‘Também recorre a outros subter ou servirse da nogdo — para Sartre essencialmente iluséria — de “sinceridade’ Por que a ideia de mé-fé serve para afastar a de inconsciente? Porque, segun- do Sartre, é para elucidar os efeitos dela que Freud utiliza sen conceito princeps, assim como o de censura, Além de supérfluos, considera-os confusos: ao dividie ‘ consciéncia em “ego” “id”, introduzem um no eu no cerne do eu, ¢ com isso obrigam seu inventor a imaginar “uma mentira sem mentiroso”. Ora, a mentira supe um enganado e um enganador, que de modo algum podem ser substitut dos por um “mot” e um “ga”. Seria, porém, um contrassenso supor que o inconsciente seja apenas um nome equivocado para a mé-fé: para o Sartre de 1942, simplesmente ndo hd in- op ct p16. yp. 159. 175 15, Jean-Paul Sartre, LBtvee le nant, p. 662, citado por Camila Salles Gong 1, CE Camila Salles Gongalves, op. 17. Camila Salles Goncalves, op. cit, pp. 163 5s. ss para as quais Freud o invoca podem ser explicadas sem recorrer a tal monstrengo tedrico,” As resi as na terapia e a censura do so- rele, nem os “complexos”, outra ideia inaceitavel pelo vicio de origem de ser uma abstragio. O conceito de censu- 1a € particularmente repugnante para o rigor filos6fico, pois designa um meca. sho, por exemplo, no precisam se origi njsmo ao mesmo tempo impessoal (exerce-se con fico (ela tem finalidades, se “disfarga”, & tus ‘material onirico, ¢ assim por diante). uma “Forga")e antropomér riada pelo aspecto anédino do (Ou seja: condenada por ser mecanicista € substancialista, por decompor a totalidade do para-si em uma parte consciente e outra inconsciente, por crer que " atinge a singularidade quando opera essencialmente com abstracSes, por supor ‘que o homem € movido por forgas que ignora ¢ assim arruinar a ética da respon- sibilidade, a psicanilisefreuiana ¢inéuil para compreendera realidade humana lésofo mediocre, chefe de escola doutrindrio © um tanto limitado (borné), cujos conceitos no resistem ao exame”: assim Pontalis caracteriza a viséo que Sartre tinha de Freud quando Huston 0 convida a redigir o script para o filme.” Esta opinido é consideravelmente modificada no decorrer das leituras a que ros referimos, em especial as cartas a Fliess e os Bstudos sobre a histeria clos quais ele se servid em seu trabalho. O Freud que ele descobre nesses textos tem qua lidades pessoais que o tornam bem mais digno de admiracio: desassombro, tena- cidade, determinagio, buses ‘olerdincia total a0 que po: deria ser sua propria mé.f — por exemplo, em vez. de se escorar na stia autoridade de médico, dispde-se a ouvir as histéricas, e reconhece a semelhanca de alguns dos seus sintomas com os delas. Do ponto de vista conceitual, a nogio de mé-f¢—téo laboriosamente cons- truida no texto de 1942 — se mostra insuficiente quando confrontada com as icas: Sartre se vé forgado a admitir a existéncia do inconsciente, ¢, 18."A psicaniliseexistencalrejeita 0 postulado do inconsciente; para ela, ofato psiquico & coex ‘tensivo& consciénci.” CE. Christian Descamps, “Os existencialimos”. in: Frangots Chatelet (Org). Histéria da filesofia, Rio de Jancivo: 2 3 (nfelizmente, 0 autor nfo ‘menciona a pigina de Live ele nant da qual retiou a frase citad.) 19, Jean-Bertrand Pontlis, Pefico a: Jean-Paul Satre, Le Scnaria Few, , 15. rofundo conhece- dor da obra da vida de Sartre, Ponals tem observagSesargutas sobre aspectos mais pessoas da ‘elaco dele com a psicanlise, sobre sua fantasia de “nfo ter pai. Mas las nfo cabern neste e ‘tudo; letor ques interessar pelo assunto pode consular o preficio mencionado, 36 sean aaa ‘numa saborosa carta a Simone de Beauvoir, conta como € impossi Huston, o qual afirma que no seu “nfo existe nada”"Wegundo Pontalis, ele teria mesmo cogitado submeter-se a uma andlise, mas no levou adiante a idcia. 0 Freud do roteiro é antes um exemplo das suas prOprias teorias, ¢ nfio acaso Sartre se detém na identificacio dele com seus pacientes: “mais dites-mo observou um dia a seu antigo aluno, “votre Freud, il était névrosé jusqu’é la mole (vamos € venhamos, esse seu Freud era neurético imo fio de cabelo}". ‘Veremos logo mais como 0 retratou no Roteiro; para completar este répido qua- dro da sua relagio com a psicanilise, nos voltaremos agora para a imagem que dela surge nas obras dos anos 1960, Apés 0 interkicio do roteiro, Sartre se dediica a Critica da razdo dialétiea, a cujo texto introdutério (“Question de méthode”) presta homenagem o titulo do primeiro capitulo do presente livro.™ Para nossa finalidade atual, merecem des- taque dois pontos: a radical revisio da psicanilise existencial, que passa a scr parte do método progressivo-regressivo, e o tom bem mais ameno das referén- cias & psicanslise tout cour. © tema da Critica nfo & mais a consciéncia indivic voltas com suas cescolhas, mas a préxis historica vista contra o horizonte da “filosofia insupervel do nosso tempo”, o marxismo. A anilise parte do grupo e das formas como ele se inscreve na totalizagao historica em curso, porém mais adiante retorna a preo- ‘cupagio com o singular; Este no é mais abordado com os recursos da fenome- nologia; a mé-fé desaparece do cenério, substituida pelo conceito de alienagio. B surge um novo problema: na relacio do individuo coma sociedade (e nfo apenas com “os outros”), é preciso levar em conta a mediagdo da classe @ que pertence. i neste contexto que sero retomadas as observagiies sobre a psicandlise, Mais uma vez, & preciso complementar as determinacées gerais (agora to- ‘madas da anélise marxista do social) por uma abordagem do individuo que no pperca de vista a sua irredutivel especificidade, aqui chamada de “concreto singh lat”, Sartre encontrard nas biografias 0 material para essas anslises, e certamente ‘nfo & por acaso que a Critica se seguem a sua propria (As palavras, cujo texto ini- ‘al de 1954 foi remanejado para a publicago em 1963), eo estudo sobre Gustave Flaubert. Na Critica forja os instrumentos de que se servird nesses textos, bus- 20, Thaducto brasileira por Bento Prado Jinior: Jean-Paul Sartre, Questo de métad. Sao Paulo: Difsio Europeia do Liveo, 1967 397 cando determinar 0 “ponto de inser¢o” do individuo na sua classe. Onde o en- contra? Na familia. E & por essa via que algo da psicanslise pode ser resgatado: a psicanilise no ‘nha — em jung ¢ em certas obras de Freud — por tuma mitologia perfeitamente inofensiva. De fato, é um método que se preocupa antes de tudo em estabelecer a rincipios, nfo tem base tebrica. No méximo ela se acompa- imaneira pela qual a ctianga vive suas relagSes familiares, no interior de uma socie- dade dada. iso nfo quer dizer que ela ponha em davida a priovidade das 8es. Muito pelo contriio, seu objeto depend, por sua vez, da estrutura de tal fami particular, e esta é apenas uma certa singularzagio da extrutura familiar propia atl classe, em taiscondiges" Denociva e confusa, a psicanilise passa agora a ser —desde que despida da sua mitologia “inofensiva” — preciosa auxiliar do marxismo, Hi portanto verda- de nela — e sem diivida esta conviceio resulta do trabalho de Sartre no roteiro. No que consiste tal verdade? Na percepgio de que a crianga é determinada pelo meio familiar, este por sua vez.uma “singularizagio” das condigdes de classe pr6- prias aquela sociedade espectfica, em tal momento da sua evolugio. A grande descoberta de Freud seria, assim, a de que o pequeno ser humano vivencia a fa- ‘milia como um absoluto, “na profundeza ¢ na opacidade da infincia”, O termo central aqui é opacidade, porém no mais como produto da mé-fé, e sim das condig6es objetivas da infincia, Pois é durante os primeiros anos que se organiza 0 mod especifico de pertinéncia do sujeito a sua classe, processo em. 10 formato do projeto individual, e no qual tém peso consi familiares": parte responsivel derivel os “preci s6.a psicanilise permite, hoje, estudar a fundo 0 processo pelo qual uma erianga, tentar desempenhar, sem compreendé- © personagem social que os adultos the impéem, s6 e papel, se procura fugir dele ou se 0 as nos mostrar se a crianga sufoca em seu. intelramente, Apenas ela permite en- to 6, nfo somente suas determinagées pre sentes, mas também o peso da sua histéria.* 2, Jean-Paul Sartre, Questdo de métde,p 4. Uma radu ligeiramente diferente € citada por Cana Salles Gongales, op ct, p 198 22 Jean Paul Sartre, Quo de mét, p53. 368 Se compararmos os meios propostos em O ser ¢0 nada e na Critica para al cxigad « sogglartdaca notiensn gus paquele ott Aile da pein exlgrencial é descrito repetidamente em termos gerais: é um programa cuja realizagao con- reta fica para trabalhos futuros. Nido encontramos alinenhum exemplo de com: do mesmo sujeito, a partir do qual se paragio sistemstica de “condutas parc pudesse extrair a “significagio fundamental” do seu projeto. Essa auséncia — grave — nio ocorre no método progressivo-regressivo do qual ela faz parte na segunda obra, Ja em Questo de método encontramos esbocos da sua aplicagéo: ‘0 marxismo mostra, por exemplo, que o realismo de Flaubert esta em relagio de simbolizagio reciproca com a evelugio social e politica da pequena burguesia do Segundo lmpério, Mas ele munca mostra a génese desta reciprocidade de perspect gun cura a tudo o mais, nem vas, Nao sabemos nem por que Flaubert preferin & por que viveu como um anacoreta, nem por que esereveu estes livros [J 1 a paticulatidade de ums histéis, através dos contradigbes propre deta familia «que Gustave Fauber fez obscuramente o aprendizado de sua classe. [..} A erin atorna-se esta on aquela porque vive o universal como particular Bem Lldiot de a famille, a monumental —e inacabada — biografia de Hlau- bert —que podemos ver como Sartre poe em prética a nova versio da psicandl: se existencial, embora sem a mencionar por este nome. Um exemplo basta: de pois de uma minuciosa reconstituigio dos conflitos de classe na sociedade francesa, na época do nascimento do escritor (1825, quando re da posicio social dos seus pais e das consequéncias dela para a ideologia familiar, assim co- ‘mo da maneira como ambos organizaram a vida afetiva do casal e da familia — tudo isso complementado pelo exame dos textos de juventude de Gustave — chega-se a conclusio de que ele nfo se sentia amado, ¢ que essa falta de amor essencial da sua personalidade: a passivida cstaria na base de uma caracter de, 0 desejo de ser uma “coisa inerte”, a sensacio dolorosa de nfo passar de um. 24.14, capital “O problema das medi Pouco antes critica a insufieiéncia da de comtespondéncias entre univassis abstratos € cont homem ou o grupo que se pretende consider”. E conelui sa ‘evaporouse” (pp. 483). “Quanto a Valery, 369 ‘Ji em Questio de método, 0 vinculo preferencial com o pai ou com a mie & valorizado como chave interpretativa,diferenciando por exemplo Flaubert re, cuja “fixago” se dew na figura de seu contemporneo Baudel xado no pai da mie, Caracteristicas como essa terdo consequéncias decisivas tanto na vida como na obra romanesca de Flaubert: liga-se por ex de cientificismo ingénuo ¢ de religio sem Deus que cor tenta ultrapassar pelo amor da arte formal”, como lemos na sequéncia do pari- lo 4 “mistura explosiva i Flaubert, eque ele grafo citado anteriormente. Assim se materializa a ideia de que o projeto indivi . 47.P D James, citada por H. Keating, Wing Crime Fiction. Londres: A&C Black, 1994p. a8 confusio na qual se vé lancado & medida que prossegue em seu camninho: sexs 0 pai culpado? A questo é respondida na parte final, gracas a autoanilise: 4s vezes sim, Is vezes nfo (existe abuso sexual), mas, independentemente disso, a mulher fantasia ter tdo algum contato com o pal porque assim 0 desejou na infincia (Baipo). (Ora, no inconsciente nfo exist indice de realidade — ou melhor, como dirs {Jean Laplaniche, nfo existe indice de ireatidade: tudo aparece como real, especal- ‘mente o desejo, Em suma, o axioma da fantasia pode ser enunciado como “pen- s0, logo existe”. Essa descoberta—que Freud anunciaa Hess na célebre carta 6, de 21 de setembro de 1897" — & 0 que Ihe pecmite admitir que também abrigue sentimentos condendveis em relagfo aos seus pals, e postular que de modo geral “todos fomos nainfincia pequenos Lidipos”. Mas nfo foi s6 para mostrar por meio de imagens os conceitosfreudianos que Huston precisou de “algum esforga": a exemplo dos desentendimentos ‘quanto ao roteiro, afilmagem esteve repleta de incidentes. Na carta a Simone de Beauvoir que mencionamos atrés, Sartre descreve com palavras atrozes 0 clima em St. Clerans: que histéria! ah, que histérial Quantas mentiras aqui. "Todo mundo tem seus com plexos, vaise do masoquismo 4 ferocidade, Mas no creia que estejamos no infer- rho, Antes, num grande ces _gelados. Pouca vida, pouca, pouea.’ ‘Todo munclo esté morto, com complexos con: Ao contréio do que ocorreu com a imagem que o filésofo tinha de Freud, modificada para melhor quando se inteira dos dados biogréficos com os quaisiré ‘rabalhar, Huston — que admirava 0 autor Sartre, cuja peca Entre quatro paredes eténcia usar a imagem de preferéncia as palavras para obter tais efeitos. Como Huston tomou como paradigma os filmes de suspense, nfo & descabi- tirado do mestre supremo do género. Em Suspeita do mencionar um exen a 4, Jen le 9/6/1925. ln: Sigand Froud Kal Al fertrandPontalis,Preficio a: Jean-Paul Saree, responce 1907-26 Setnaro Freud p. 2, cs the pede ts 0060 Ae lie wena Gran ma coli, vevendo 6 liquido num copo, Corte para ele subindo a escada. ft de noite, 0 copo brilha contra o fundo «scuro: inquieto, o espectador agarra os bracos da poltrona— ter Grant colocado veneno nele? Na verdade, nfo, mas por alguns segundos temos a impressfo de que sim, © diretor explica como obteve o resultado que queria (apavorar 0 especta- dor): uma simples limpada dentro do copo. “Tinha de ser extremamente lumino- so. Cary Grant sobe a escada, ¢ era preciso que s6 se olhasse para aquele copo."* Suponhamos que, em vez. deste truque sensacional, vissemos 0 ator se per- guntandlo: “ser que ponho veneno no leite dela? Nao, € melhor maté-la de outro jeito... ou talvez sim... mas quanto?”, ‘ento 0 médico pensou em envenenar sua mulher, mas desistiu da ideia”, preciso discorrer sobre as consequéncias... Embora simples, 0 exemplo serve para avangarmos no argumento, A arte do cineasta, diz Truffautna introdugio que escreveu para Bntrevistas, consiste em. rage de apenas embelezarem o contetido, 0 criatn.M* lo indica que Freud nfo tinha nogio das porisso duvidava de que pudesse “representat” os conccitos psicanaliticos — no que, aids, seguido or muitos analistas, para os quais seria impossivel fazer justiga na tela A mirfade de textos e subtextos presentes numa simples sessio, quanto mais num trata- inventar formas, ¢ es Apesar de sua argicia costumeit lades que o cinema oferece &inventividade visual mento completo. Falando de Segredos de uma alma, por exemplo, Patrick Lacoste — que em ‘outros momentos clogia os “bons achados” de Pabst, assim como a edigio e 0 uso judicioso da iluminagio para transmitir o que se passa na mente do persona gem central —lamenta que “o filme nfo dé meios para captar a natureza incons- representar o que releva unicamente do tratamento pela linguagem, sob pena de abandonar seu prinefpio de intelipibilidade’ Nao seria exigie demais? Quem quiser estudar os conceitos de inconsciente ou de transferéncia (da qual Lacoste esté falando na segunda frase citada), tem ichcock Tran: Kntrevitas, Tend, de Rosa Preie Aguiar po, 45. Frangois Teaffa ‘So Paulo: Companhia das 46.16, p27. 47. Patil Lacoste, 1trange ens du Profeseur M. — Psychanalye a éron Pris: Gallimard 190. p49. a eios mais eficazes que assistir a um filme: precisa apreendé-tos nos textos que ‘os definem, comentam e ilustram, Disso néo se segue, porém, que o cinema seja por natureza ineapaz de dar seja, inclusive das “absteagGes” freudianas. Elas podem ser representadas no enre- ‘do — pelas rclagées passionais entre os personagens, cujos motivos podem resi- dir, digamos, em traumas infantis, em ameagas @ integridade narcisica, em fanta- ounnas defesas erigidas contra elas —mas ideia razoavelmente precisa do que quer que sias que a moral conve também pela forma do filme, ¢ isso de iniameras maneiras, Uma delas € a repetigéo variada, da qual Pabst se serve para mostrar que 0 professor Mathias tem medo dos seus impulsos agressivos, derivados do ciiime (pensa que a esposa o trai). Na historia, eles so recalcados, e aparecem pelo avesso, sob a forma de uma fobia dos instrumentos cortantes, No inicio de Segre dos, o vemos barbeando-se a navalha; a mulher the pede que remova uma mecha de cabelo. Corte para 0 ext vizinha, Distraido pelos gritos, 0 professor se da conta de que fez umn pique na rnuca dela: um filete de sangue mancha a lamina. “A navalha se torna portadora de uma ameaga... Formagio de sintoma”, comenta Lacoste." Mais adiante, um cortador de cartas, uma fea na mesa, um sabre japonés reforgario a mensagem, tum brutal assassinato acaba de ocorrer na casa pois 0 professor se assusta a cada vez que aparece um objeto capaz de ferir. Mais sutil —¢ por isso mesmo mais poderoso — & o recurso ao que pode- rfamos chamar de “esquema visual”. ‘Trata-se de um procedimento que metafo- riza 0 contetido na e pela forma, ¢ Norman Holland mostra o partido que Hus- ton tira de algo desse género, Para mostrar o caréter “escuro” do inconsciente, {Joga com o contraste entre a hz € a obscuridade: desorientado pelos problemas te6ricos e pessoais que precisa resolver, Freud & mostrado sistematicamente ca- minhando de noite, enquanto Cecily, que ignora a existéncia do inconsciente, aparece vestida com roupas claras ¢ numa varanda iluminada pela luz do dia, Quando comeca a intuiro que se passa nos desvos da sua mente, nés a vemos & noite (no convento italiano, na tentativa de suicidio, € no bordel onde encontra © pai morto). Mais até que a ideia de escuridéo — metéfora cuja chave é fornecida na aber tura do filme, quando Huston fala sobre uma regio “as dark as hell” —, a analo- gia da anslise com uma viagem para dentro de si 6 visualmente exposta pela 8.14, po, 38 movimentagio constante dos personagens: Freud e Breuer discutindo conceitos cenquanto vao de caleche para algum lugar, caminhadas soit amigo, Freud andando para lé € para ed em recintos fechados, como seu consul t6rio ou a sala dos Breuer (esti perplexo, “sem saida”). Um fato da sua vida —a fobia que tinha dos trens — € emipregado no modo da repetico variada: o trem, que o leva a Paris, o que o trouxe de Freiberg, e até um de brinquedo, que ele junto com o manuseia quando vai perguntar & mie sobre aquela viagem, aos trés anos de idade, na qual suspeita t@-la visto nua, A inventividade visual de Freud, além da alma é imensa, ¢ s6 limitada pela autocensura entdo imposta pelo Cédigo Hays: em vez de © menino ver matrem ‘dam na cabine, como sabemos por uma carta a Hess, a cena se passa no quar- to de um hotel — ela esta colocando a camisola, vemos suas costas, e © matido ‘vem buscé-la para levé-la a outro quarto, apenas sugerindo que se entregario a0 ato sexual A ideia de penetrar num lugar oculto é indicada pela quantidade de portas € portdes presentes no filme: logo na primeira cena, Meynert é visto passando por uma, e Freud fica para trés —ndo “segue” as ideias estreitas do seu professor. Mais adiante, a identidade de desejos que tanto o assusta ao vé-los enunciados no mostra diante do portio fe- ccuamnente por Karl é sublinhada quando Hust chado da casa do rapaz — ele se suicidou, é impossivel saber o que havia da casa”. © mesmo recurso est presente nos arcos sob os quais tem decisivo quanto a repressio, ou quando desmaia frente ao portio do cemitério onde esté enterrado seu pai. Por outro lado, & certo que as vezes o cinema simplifica demasiado. f 0 caso, entre outros, de muitos sonhos em filmes, que apresentam 0 contetido ‘dipiano de modo direto: apesar da arte de Salvador Dali, € 0 que ocorre no que desenhou para Quando fila ocoragao, e também no do alpinista amarrado a corda do qual falamos atris, Aqui, nem Sartre nem Huston levaram em conta 0 que © fil6sofo anotara logo no inicio da Sinopse: 0s sonhos analisados por Freud f.. parecem absurdos ou despropositado analise, mas permanecem muito cotidianos; o fantéstico ou o misterioso slo raros nneles. Parece assim necessirio mostei-los ainda com mais relismo que as cenas 4 vida desperta, £ pelo absurdo dos comportamentos, ¢ pelo conflco visivel entre 285 esse absurdo ¢ o realismo dos lugares e dos objetos, que transmitiremos a surreal: dade particular ea “sobredeterminacao dos sonhos relatados por cl A questio do realismo, alids, remete a atuagio de Montgomery Clit, cujo olhar frequentemente esgazcado lembra a teatralidade dos filmes expressionistas alemies, f interessante observar que em Segredas de wma alma Pabst preferiu evi tibla,¢ isso apesar de estar fazendo unta pelicula muda: Lacoste mostra com de- talhes como ele optou pelo estilo mais sobrio dos Kanmerspiele, um tipo de filme mais parecido com os dramas burgueses. “O estilo realista no cinema — uma fi- _guracio de realidade continua — nio indica melhor uma real um expressionismo geralmente supérfluo?”, pergunta-se a pégina 120." Seja como for, tanto Sartre quanto Huston conseguem dar da invengio da psicandlise um retrato bastante verossimil, ¢ isso, como disse no inicio deste es- tudo, apesar das ocasionais licengas que tomam com a verdade fi nos clamos conta de que talvez este resultado se ceva precisamente a nem 0 roteiro nem o filme pretendem ser biografias exatas, e criagBes como Cecily ou 0 sonho da montanha cumprem melhor a fungao de informar 0 espec- tador sobre o que Freud estava desenvolvendo do que a sucesso de pacientes em ambas as versGes do roteiro. O mesmo se pode dizer da condensagio de Breuer € Fliess no personagem do médico mais velho, assim como da cena em que Freud cexpée como se fossem de 1897 um conjunto de ideias que levou dez. anos para claborar— tanto faz. que seja a Fliess no lago alpino, a Breuer no cemitério, ou ia que faz, & Sociedade Médica ao final de Além da alma, Se Holland tem ou nao raziio ao sustentar que a obra do cineasta americano reflete sua visio da psicandlise, deixo aos especialistas decidirem. © que se pode afirmar com certeza 6 que sem ela o mundo seria mais pobre — e que, tanto para quem se inicia na psicandlise como para quem jé a conhece bem, & um de- ¢ assistir aos embates de Freud consigo mesmo € com os mistérios da psique nna conferéi 4. Jean-Paul Sate, Le Scenario Freud p. 532, Grifos no original 50. Patrick Lacoste, op cit, p 120, sa 9. “E dai — o que apareceu de tao interessante?” Freud e Dora ‘Ontem ficou pronto Sonhos ¢ histera, © hoje jf sinto falta de wm nateético. & um fragmento da anilise de uma his ia, na qual as explicagées se agrupam em tone de dois sonhos. & a coisa mais suil que jé escrevi, e terd um efeico ainda mais des: concertante que de costume,” O leitor terd reconhecido a referéncia 20 Caso Dora, que Freud redigiu nas ptimeiras semanas de janeiro de 1901, Uma carta ni 4a corvespondéncia, porém dispontvel na versdo integral, conta que estava “men- te animado": escrevia 0 texto ao lado da Psicopatologia da vida cotidiana, luida na primeira edigio iniciada algum tempo antes.’ Seu projeto era divulgar ambos os trabalhos no editor da Monatschrif fr outono, e na carta de 25 de janeiro diz. que Zieh 4. Carta 140 a Plicss (25/01/1901) in: Los Origenes de Psicoandlss, wr np. 3646. Tarnbém em Je fiey Masson (Org) coresponéucia completa de Sigmund Fred para Wien Pies 1887-1904, p 434 Em ainbas,Ié-se queo texto “hortorizari as pessoas sida mais que de castume”. Cantado 001 ‘inal —que se pode consular na versio alm da Introducio de James St ML. Ba) — diz que ele “wird noch abscreckender ale gewiklich wirkr Abicireken, segundo os dcionsvios,¢"desalenta”, “itimidar’,“desconcertats abuclneckend & Dantoso”. Por iso opt pela 2. Carta ess de 10/01/1901, In: Masson, ap cit, 433 a7

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