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DA DEMANDA DE AJUDA A DEMANDA DE ANALISE PARA UMA TOPOLOGIA DE ENTRADA EM ANALISE Ricardo Carrabino [...] O percurso da fungdo estruturante de uma falta[...], a falta-a-ser. Jacques Lacan, Seminério livro XI O PROCESSO PSICANALITICO. Do ponto de vista légico e estrutural o proceso psicanalitico é marcado por trés passagens que correspondem as varias trocas da estrutura de discurso. Trata-se em particular da passagem da demanda de ajuda a demanda de analise, depois da passagem ao analisante e, enfim, da passagem ao analista. Aparentemente na primeira passagem prevalece o discurso, enquanto nos outros dois prevalece o sujcito. Na realidade, ao contrario, todos as trés passagens dizem respeito sobretudo a relagao do sujeito com o objeto no campo do Outro. A diferenga entre as trés passagens pode ficar muito clara e tigorosamente caracterizada se consideramos a estrutura do ponto de vista topoldgico e/ou do ponto de vista da estrutura de discurso. O paralelismo entre estas duas vias — topologia ¢ estrutura de discurso — é surpreendente ¢ pode induzir a refletir sobre © fato que a introdugdo da estrutura de discurso, por parte de Lacan, aconteceu no momento central do desenvolvimento da sua topologia, exatamente no momento de transigao da centralidade da topologia das superficies aquela da topologia dos nos. Topologicamente as operagdes que representam as trés passagens sao radicalmente diferentes entdo elas dizem respeito a trés figuras diversas. A primeira passagem, de fato, pode ser representada somente mediante 0 oito interior. A segunda, ao contrario, pode ser representada somente sobre 0 toro e é efeito da operacao de reviramento do toro. Em seguida de tal operagao ha uma inversao entre 0 espago do objeto e aquele do sujeito, assim que 0 objeto vem a ocupar 0 espago que antes era aquele do sujeito e este ultimo vem a encontrar-se no lugar do Outro. Esta segunda passagem pode ficar menos enigmiatica se, em vez de referir-se ao toro nico, considerarmos os dois toros enlagados. Na psicanalise, de qualquer forma, a topologia do toro tnico ¢ uma abstracao, assim como € pensar 0 sujeito sem o Outro, nao se pode dar, de fato, alguma situagdo clinica ou subjetiva em que 0 sujeito ex-siste a prescindir da relagao com 0 Outro. A topologia do toro tinico,portanto, é para entender-se sé como um momento légico da topologia dos dois toros. A terceira passagem,enfim, comporta o recurso ao plano projetivo ou cross-cap é representado pela operagao do corte em duplo-giro em torno ao ponto central — ponto especifico ¢ irredutivel — desta superficie. Tal operacdo produz sujeito no momento mesmo em que pde o objeto como ponto fora da linha. Tomando como referencia, ao contrario, as estruturas do discurso e a rotagao (no sentido hordrio) que gera a diferenca, se pode dizer que a relacdo analitica nasce como discurso do Mestre e, entdio, como discurso que tem por produgao a falta e 0 buraco no discurso. O sucessivo situar-se desta falta no lugar da verdade — e ento no lugar que provoca e orienta a interrogagio ~ da origem a histericizagao do discurso e ent&éo a demanda de analise. Esta primeira passagem coincide, na praxis, com o fim das entrevistas preliminares € a passagem ao diva. Si SB SY a 8 So—+ a eye eS S| so A analista acolhe a demanda de analise,mas deixa sem resposta — nao poderia ser de outra forma - a demanda que barra 0 sujeito na dialética da demanda e do desejo; e isto faz com que a falta (se penso, por ex..na fungaio do silencio) venha ocupar 0 lugar do agente. Mas esta insergao, nao acontece automaticamente com o fim das entrevistas preliminares,mas so gragas a colocagao de um ato analitico, cujo efeito é a passagem do paciente a analisante e, entdo, a instaurago do discurso do analista na relaco analitica.. Por efeito desta segunda passagem o sujeito se torna o destinatério da interroga¢ao colocada pelo objeto ‘agente’ [a>$] e S1 nao somente nao é¢ mais 0 aparente destinatario da interrogagao do sujeito — como ao contrario temos na relacdo histérica [$>S1] — mas se torna o produto naquele tipo absolutamente peculiar de ligagfo social que ¢ a relagao analitica. A terceira e ultima passagem é a que leva do analisante ao analista ou em termos de estrutura, do discurso do analista ao discurso da universidade, isto é aquele discurso em que a falta se coloca no lugar do Outro e no qual 0 produto € 0 sujeito. AS ENTREVISTAS PRELIMINARES E A ENTRADA EM ANALISE. Colocado este rapido panorama sobre os momentos de mudanga radical no processo analitico e sobre a utilidade de dize-los em termos de topologia e de estrutura de discurso, passamos agora a ilustrar um pouco mais em detalhe a topologia da primeira passagem, aquela que leva 0 sujeito da demanda de ajuda a demanda de analise. No Seminario IX, A Identificagao, Lacan reserva um amplo espago a topologia da repetigao, identificando-a como a topologia do oito interno, mas antes de falar desta topologia precisa-se colocar em foco 0 conceito de repetigao. Para que se possa entender a repetigao é necessario saber contar; mas basta saber contar até um. © sujeito, falando das préprias repetigdes, nao diz “me aconteceu X vezes de....”, ou “Eu fiz X vezes...”, mas diz “cada vez que acontece..eu [je]... Na repetigao néio se conta o “n® de vezes” (0 que em casos particulares pode ainda se limitar a dois) mas se precisa que, no encontro com 0 evento que coloca em movimento a repetigdo, pode ser encontrado cada vez 0 espago do sujeito, assim como a presenca de Robson Crusoé esta implicada por contar cada marca que ele mesmo traga — uma de cada vez — para contar um a um os dias que passam. Esta marca, isto é 0 evento que se repetindo re-envia © sujeito, é 0 que Lacan identifica como trago unario, retomando a conhecida expressdo freudiana. E na mesma ligdo, simplificando e querendo propor uma definigao do trago unario, diz que este é 0 proprio sujeito enquanto repetente.A repetigao, ent&o, néo é o puro suceder-se de fatos idénticos, mas tal sucesso sO se torna repeticao quando 0 sujeito se percebe 14 como trago unario. Como figura topolégica idénea a representar a repeti¢ao Lacan prope utilizar 0 oito interno [v. o bordo da primeira figura], que pode ser descrito como um duplo giro para circunscrever 0 vazio, a falta, 0 buraco. O oito interno é uma figura assim chamada porque pode ser imaginada como um oito cujo toro é dobrado sobre o outro. O duplo giro é necessario porque, para nao enodar-se [v. figura], este néo pode reduzir-se a um ponto, com a consequente eliminagdo do vazio interno (como ao contrario pode acontecer para 0 circulo), mas para obter este é necessrio que algo de irredutivel faga resisténcia. Este irredutivel ¢ 0 vazio em torno do qual se traga 0 oito interno ou, clinicamente, 0 espago do objeto, como fica intuitivamente evidente se 0 oito interno esta tragado sobre 0 toro, onde o vazio central é de fato 0 espago do objeto. Uma tal referencia ao toro é implicada, por ex..mesmo se nao enunciada explicitamente, no oito interior relatado a pg. 244 do Sem., livro Um giro unico constitui uma figura banal, enquanto este nao opde resisténcia a sua redugdo a um ponio, isto é 4 eliminagdo da sua area interna, por efeito de um restringimento continuo e pode ser colocado no plano sem intervengdio de medidas particulares; por ex. pode ser desenhado corretamente sobre uma folha de papel sem nenhuma necessidade de levantar o lapis porque nao ha pontos de superposi¢Ao para representar. O duplo giro, ao contrario, nao pode ser colocado imediatamente no plano porque a conjungao do ponto de chegada do segundo giro com o ponto de partida do primeiro implica um ponto de sob/sobre, isto é um ponto em que as duas linhas se cruzam, passando uma por cima ¢ uma por baixo; 0 encontro deste ponto particular faz com que 0 segundo giro nao seja mais idéntico ao primeiro, mesmo sendo uma repeti¢do do percurso. Propriamente neste ponto de sobreposigao, em que o segundo giro se constitui como uma ‘ ainda uma vez’ em respeito ao primeiro, é 0 espago do sujeito;e no momento em que o sujeito se percebe como trago unario, e entdo como repetente no suceder-se dos giros, 0 que acontece de qualquer forma no discurso (L’Etourdit enquanto Les tours dits), entdo este esta pronto a formular a demanda de analise, isto é a interrogar 0 Outro sobre seu ser — como sujeito, e no mais como ‘alma bela’ — na repetigao. As entrevistas preliminares, entéo, partem estruturalmente de uma demanda de ajuda, que pode assumir por Ex. a forma de demanda de cura ou de uma demanda de sentido para 0 sintoma; prossegue em dire¢ao ao dizer-se da repetig¢ao e da posi¢ao do sujeito nessa, com o conseguinte desabamento pela ilusdo da ‘alma bela’. Instala-se no discurso, neste ponto, a demanda do sujeito ao Outro (histericizagao) sobre a falta em torno da qual os giros da Tepetigao (que na topologia do toro sdo os giros da demanda) ou, se preferir, sobre 0 objeto em torno ao qual se repete 0 movimento pulsional assim como este € representado no grafo pelo circuito pulsional no Seminario, livro XI, pg. 163. Neste ponto do processo 0 oito interior é idéneo para definir a area do discurso na analise e se torna bordo da fita de Moebius [v. primeira figura], sendo este o lugar do discurso. A partir deste momento — e ndo antes, se quer que a analise comece — o analista podera intervir com a interpretagdo “equivoca’, ainda se nao houve a passagem de paciente a analisante. Para esta passagem, de fato, devera intervir um ato analitico — diferente da interpretagdo porque neste é agente 0 objeto — que subverte a posicgao do sujeito afim de que de interrogante ao Outro sobre 0 objeto como verdade, se torna 0 destinatario da interrogacao da parte do objeto para produgao do SI no seu dizer. Notas 1 — No contexto do presente escrito a representagdo topolégica ESTA sempre como apresentacio ¢ tepresentag%o ao mesmo tempo. 2 Cfr., especialmente, lez, 7-3-1962. Tradugao de Celia Salles, para uso interno do Niicleo de Pesquisa de Psicanalise e Medicina do Instituto de Psicanalise da Bahia .ndo revisada pelo autor.

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