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ORC CORO CO COT psicandlise ¢ faz uma viagem pela Africa, como arquivista da missio etno- ‘grifica DacarDjibutl. Desse periodo conturbado resultam dois livros abso- Jutamente geniais: 0 espetho da tauromaquia [1938: Cosac & Naify, 2001] Cannon Pn ee eee ee ees ‘aria ainda com os quatro volumes de A regra do jogo. Obra inicidtica, gesto COO ee Rc otnologia do eu, A idade viril pode ser lida como um livro de fotomonta- OMe OO a On Ono eee coe ed CL eT Gn nd quo gravitam em torno de figuras femininas: Luerécla, Judite, Salomé, SO ORC CC OSORIO od CR ee ROR cen Tn tae Ce CTC ON en ce OC POR SCs cnn de forgas: arcaico e moderno, sacrificio e sagrado, risco e nudez moral. CO AL CCC Cd om o pintor André Masson — forca oculta na obra — uma espécie de culto 4 Eros, sob o signo do touro. Como no lembrar das revistas surrealistas Gs ae COO ROLL a CTL RCC Co gia do sacrificio, OL OC Barthes por Roland Barthes {1975}, recoloca o romance autobiografico na dimensio dos Ensaios de Montaigne: “cada homem leva em si a forma oe oa ee ce Ce ROT OC OCMC Run maO nC do frente ou agarrada pelos chifres®. CORT See Os fT tT —————— ee TURAL ee ieee ro A idade viril Da literatura como tauromaquia Michel Leiris ‘rnapucko Paulo Neves Cosac &Naify A Georges Bataille, na origem deste livro. Sumario DA LITERATURA COMO TAUROMAQUIA, 3 Acabo de completar trinta e quatro anos, 27 Velhice ¢ morte, 31 Sobrenatural, 35 0 Infinito, 36 Aalma, 36 O sujeito ¢ 0 objeto, 38 L-TRAGICOS, 4r 11, ANTIGOIDADES, 51 Mulheros antigas, 55 Mulher de cavaleiro medieval, 56 Sactificios, 57 Lupanares ¢ museus, 59 0 genio do lar, 62 Dom Juan ¢ 0 Comendador, 64 MIT. LucrEera, 67 Meu tio, 0 acrobata, 74 Olhos vazados, 7 Jovem castigada, 78 Santa martirizada, 80 wv. suprre, 83 Carmen, 89 0 visco, 90 Salomé, 9 Electra, Dalila e Floria Tosca, 93 O navio fantasma, 94 Narciso, 95 V. A CABEGA DE HOLOFERNES, 97 Garganta cortada, 101 Sexo inflamado, ro2z Pé ferido, nédega mordida, corte na eabega, 103 Pesadelos, 105 Meu irmao inimigo, 109 Mow irméo amigo, 14 Pontos de sutura, 123 VI. LUCREGIA E JUDITE, 127 VI. AMORES DE HOLOFERNES, 145 Kay, 150 0 fostim de Holofernes, 169 VIII. A JANGADA DA MEDUSA, 181 Ha. cerca de um ano ¢ meio, 189 Armulher turbante, 189 umbigo sangrento, 190 Notas do autor, 193 DA LITERATURA COMO TAUROMAQUIA Se nos ativermos A fronteira quo a lof francesa impde a cada um de seus subordinados— regra & qual sou nascimento quis que fosse submetido fol om 1922 que o autor de A idade viril atingiu aquela curva da vida que Ihe inspirow o titulo de sou liveo, Bm 1922: quatro anos depois da guerra, que ele atravessou, como t pouco mais que umas longas férlas, conforme a expressio de um deles. J4 om 1922 ele tinha poucas ilusies sobre a realidade do vinculo que, teorica~ mente, deveria unir & matoridade legal uma maturidade fisica, Em 1935, quando pés 0 ponto final em seu livro, ele certamente imaginou que sua existéncia jé havia dado voltas suficientes para que pudesse vangloriar-se de finalmente estar na idade vir. Noste nosso ano de 193y, quaudu os jovens do pés-guorra véem decididamente oscilar aquele edificio de indul- géncia no qual se desesperavam, esforgando-se por nele colocar, ao mes~ mo tempo quo um auténtlco fervor, uma terrivel distingao, 0 autor confessa sem corar que sua verdadeira “idade viril” ainda esta por ser escrita, quando tiver se submetido, de uma forma ou de outra, & mesma prova amarga que @ geragdo anterior enfrentou. ‘Ainda que 0 titulo do livro Ihe pare¢a, hoje, no multo hem justificado, co autor achou conveniente manté-lo, considerando que, afinal, ele nio des- mente seu propésito dltimo: busca de uma plenitude vital que nfo se pode- intos outros rapazes de sua gerago, vendo nela ria obter antes de uma catharsis, uma liquidagdo, da qual a atlvidade literé —e par comodos instrumentos, cularmente a literatura dita “confessional” — 6 um dos mais Entre tantos romances autobiogréficos, diévios intimos, lembrangas, confiss6es, quo do uns anos para cé conhecem uma voga téo extraordind- ia (como se, da obra literdria, fosse negligenciado o que 6 criagdo para consideré-la to-somente do angulo da expressdo, observand do objeto fabricado, o homem que se aculta— ou se mostra— por trés), A dade viril vem portanto ocupar seu hugar, sem que seu autor queira van- Sloriar-se de algo mais do que ter tentado falar de si mesmo com o méxi- ‘mo de lucidez e sinceridade, Um problema o atormentava, dando-lhe mé consciéncia e impedindo- © de escrevor: serd que o que se passa no dominio da escrita nio 6 despro- vido de valor se permanecer “estético", anédino, privado de sangéo, so nada houver, no fato de escrever uma obra, que soja um equivalent (o aqui inter- vém umas das imagens mais caras ao autor) daquilo que 6 para 0 torero 0 chitre acerado do touro, capaz de conferir— em razio da ameaga material quo contém— uma realidade humana & sua arte, de impedir quo ela soja apenas encantos fitois de bailarina? Por a descoherto certas obsessOas de ordem sentimental ou sexual, confessar publicanente algumas das delleiéncias ou covardias que mais o onvergonham, tal foi para o autor 0 meio— grosselro, sem divida, mas que le confia aos outros na esperanga de ver-se corrigir— de introduatr nem que seja a sombra de um chifre de touro numa obra literdria, Esse foi o adendo quo, as vésperas da Segunda Guerra, escrevi para A idade viril. Relejo-o hoje no Havre, cidade onde, pela nona ver, venho passar férias e alguns dias, e onde hé tempos tenho diversas ligagées (meus amigos Lim- our, Queneau, Salacrou, naseidas am i: Sartre, que foi mou professor nessa cidade @ & quem me liguei em 294, quando a meior parte dos escrtores que permaneceram na Franga ocupada so viu unida contra a opressio nazista). 0 Havre osté atualmento em grande parte destrafdo, e percebo isso de minha Sacada, que domina o porto a uma distancia e altura suficiontemonte grandes ara que se possa avaliar com exatidéo a espantosa tébula rasa que as bom- 6 bas fizeram no centro da cidade, como que a renovar, no mundo real, numa Grea povoada de seres vivos, a famosa operagdo cartesiana, Nossa escala, 05 tormentos pessoais expostos em A idade viril contam evidentemente pouco: ae sinceridade, a dor ‘qualquer que tonha sido, no melhor dos casos, sua {intima do poeta nada pesa diante dos horrores da guerra, nfo sendo mais que uma dor de denies sobre a qual 6 descabido gemer; que importncia teria, no enorme alarido torturado do mundo, esse dellcado gomido sobre lllculdades estritamonte limitadas e individuats? Nao obstante, no Havre mesmo as coisas continuam e a vida urbana porsevera. Tanto sobre as casas intactas como sobre 0 local das rufnas, ha por cias, apesar do tempo chuvaso, um sol belo e claro, As docas ¢ os sno vago telhados reluzentes, o mar espumoso ao longe ¢ o gigantesco 1 dos quarteirdes arrasados (abandonados hé muito tempo, em vista de no set que espantoso afolhamento) sofrem— quando a meteorologia o quer— a nfluénola da umidade do ar que raios perfuram. Motores roncam; bondes e ciclistas passam; pessoas andam devagar ou apressadas, muita fumaca jou na chuva (ou que molhou sobe. Quanto a mim, espectador quo néo se molh pones a ponta do pé) e se arroge sem vergonha o dirsito de admirar essa paisagem semidevastada como faria a um belo quad, avallando em unlda- des sombra ¢ luz, nudez patstica ¢ hulfoio pitoresco, observo o lugar ainda hoje habitado onde uma tragédia, hd pouco mais de um ano, aconteceu Bu ponsava, portanto, em chile de touro, Resignave-me com difculdade em ser apenas um literato. 0 matador que corre perigo em nome da oporta- nidade de ser mais brilhante que nunca, e mostra toda a qualidade de sou estilo no instante em que 6 mals ameagado: es 0 que me maravilhava, eis 0 «que ou queria ser. Por melo do uma autobiografia relactonada a um domf- rio no qual, goralmente, a reserva 6 indispensdvel— confissio cuja publi cago me sorta pevigosa na medida em que seria comprometedora e susce- ‘vol de tornar mais dificil, o torné-la mais clara, mink vida privada —, eu Duscava desembarager-me decididamente de cerlas representagSes incd- modas ¢, ao mesmo tempo, distingulr com o mximo de pureza meus trapos, tanto para uso préprio quanto para dissipar toda idéia errOnea que os ou ‘os pudessom ter de mim. Para que howvesse catharsis, 6 para que minha 7 Ubertacdo definitiva se operasse, era necessério que essa autobiografia ad- ‘quirisse uma certa forma, capaz de exaltar a mim mesmo e de ser entendida pelos outros, tanto quanto possivel. Para tanto eu contava com uma. atengio rigorosa dada & escrita, também com o brilho trégica que iluminaria o conjunto do men relato através dos préprios sfimholos que eu emprogasse: figuras bibit- cas 6 da Antigtidade cldssica, hor6is de teatro ou entéo 0 Torera— mitos psiool6gicos que se impunham em razo do valor revelador «que haviam tido para mim, que constitufam siinultaneamente, quanto a face literéria da operagdo, temas diretores e intérpretes por metos dos quais se introduzia Juma grandeza aparente ali onde eu sabia multo bem néo haver nenhuma, Executar da melhor maneira o retrato e fazé-lo 0 mals parecido com © personagem que eu era (como alguns que pintam com luxo paisagens estérels ou utensflios cotidianos), nao deixar intervir uma preocupagdo com a arte seno no tocante ao estilo © & composig&o: eis o que me propu- na a fazer, como se tivesse descontado o fato de que meu talento de pin- tor 6 a lucidez exemplar que pudesse domonstrar compensariam minha modiocridade enquanto modelo, e sobretudo como se wm acréscimo de ordem moral devesse para mim resultar do que havia de érduo em tal empreendimonto, uma vez que — mesmo sem eliminar algumes de mi- nhas fraquezas— eu teria sido capaz, pelo menos, de ur olhar sem com- placéncla diigido a mim mesmo. © que eu desconhecia é que na base de toda introspeceSo hé 0 gosto de contemplar-se, e que no fundo de toda confisséo hé o desejo de sor absolvi- 0, Othar-me sem complacéncia ora ainda olhar-me, manter os olhos fixes (om mim em ver de ditiyi-lus # algo mals amplamente humano que me ul- trapassasse. Despir-me diante dos outros, mas fazé-lo num escrito que eu Gosejava fosse bom redigido e arquitetado, rico de apanhados e comovente, ora temiar seduzi-los para que fossem indulgentes comigo, era limitar— de todo modo—o escandalo, dando-Ihe forma estétlea. Creio portanto que, se Aesallo houve o chifre de touro, nao fol sem um pouco de dupl dendo, de um lado, uma vez mais minha tendéncla narefsic dade: ce- ontando, ae outro, encontrar em outrem menos um juiz que um ctimplice. Assim também 0 matador, que parece arriscar tudo por tudo, cuida de sua com- Postura e confla, para triunfar do porlgo, na sua sagacidar técnica, 18 ‘Todavia, para o tourelro existe a ameaga real de morte, o que jamais ira exterior & sua arte (6 0 caso da. oxistiré para o artista, a nfo ser de man Uteratura clandestina, durante a ocupagao alema, que por certo implicava um perigo, mas na medida em que se integrava 6 uma Juta bem mais goral 6, acima de tudo, independentemente da prépria eserita). Terei entiéo 0 direito de manter a comparagio e de considera como vélida minha tentati- va de introduzir “nem que seja a sombre de um chifre de toure numa obra "7 Pade o fato do escrever, para quem faz dele profisséo, implicar Merde ‘um perigo que, nfo sondo mortal, seja a0 menos positive? Escrever um Livro que representasse um ato fol, em suma, o objetivo que achel que dovia buscar quando escrevi A idade viril. Ato om relagio a gragas 2 essa formula- a psicandlise, sem ‘mim pr6prio, pois ao redigi-lo eu pretendia eluctai mesma, cartas coisas ainda obscuras para as qui torné-las inteiramente claras, havia desperiado minha atengéo quando a ‘am; por sor evidente experimentel como paciente, Ato em relagéo a oute que, a despeito de minhas precaugdes oratérias, © modo como eu seria visto pelos outros nao serie mais 0 mesmo de antes da. publicago dessa confissao. Ato, enfim, no plano Literdrio, consistindo em mostrar 0 avesso dos mapas, om fazer ver em toda a sua nudez pouco excitante as realidades as que se que formavam a trama mals ou menos disfargada, sob apart queriam brilhantes, de meus outros escritos. Tratava-se menos, af, do que se convencionou chamar “literatura engajada”, e sim de uma literatura na do qual eu tentava me engajar por inteiro. Por dentro e por fora: esp que ela me modificasse, ajudendo-me a tomar consciéneia, e que introdu- zisse igualmente um elemento novo em minihas relagoes com os outros, a comegar pelas relagées com meus familiares, que no mais poderiam sor exatamente as mesmas quando ou tivesse revelado o que talvez Jé se sus peitava, mas sem divida confusamente. Nisto no havia o desejo de uma brutalidade efnica, Antes, a vontade de confessar para partir de novas bases, mantondo, com aqueles cuja afeiedo ou estima eu valorizava, rela~ Ges som trapaga dali por diante. Do ponto de vista estritamente estético, tratava-se para mim de conden- ‘sar, no estado quase hruto, um conjunto de fatos e de imagens que me recu: sava a explorar, deixando trabalhar sobre ele a imaginagdo; em suma, 9 nogagio de um romance. Rejeitar toda fabulagdo e s6 admitir como materiats fatos verfdicos (@ nfo apenas fatos verossimeis, como no romance eléssico), nadia senfio esses fatos e todos esses fatos, era a rogra que cu escolhera. Um caminho nesse sentido jé fora aberto pela Nadja de André Broton, mas eu sonhava sobretudo rstomar por minha conts— tanto quanto se pudesse fazer — © projeto inspirado a Baudelaire por uma passagom das Margindlia de Edgar Poo: por sou coragéo a nu, escrever umn livro sobre si mesmo em qua a reocupagio de sincaridade fosse levada a tal ponto que, sob as frases do ‘autor, “o papel se enrugaria e arderia a cada toque da pena de fogo" Por diversas razSes— divergéncias de idéias misturadas a ques! nnessoais, o que seria demasiado longo expor aqui— ou havia rompido com 0 Surrealismo. 0 fato, porém, 6 que continuava impregnado dele. Receptivi- dade em relagio ao que nos parece dado som que o tenhamos buseado (na forma do ditado interior ou do encontro casual), valor poético atribufo aos sonhos (considerados ao mesmo tempo como ricos em revelages), emplo ‘6dito concedido & psicologia freudiana (que pe em Jogo um material sedu- tor de imagens e, por outro lado, oferece a cada indivfduo um mefo cdmodo de se alcar a um plano trégion, tomando-se por um novo fdipo), repugnén- cia em relagdo a tudo o quo 6 transposigio ou arranj ou sola, compromis- s0 falacioso entre os fatos reais @ os produtos puros da imaginagao, necessi« dade de faltar as convenincias (quanto ao amor, especialmente, que a hipocrisia burguesa trata muito facilmente como matérla de vaudeville, quando nao o relega a um setor maldito): ols elgumas das grandes linhas de forga que continuavam a me atravessar, quando tive a idéla deste livro no qual 09 ashem confrontados lombrauyas da lulQncla, relates de acontoct- ‘montos reais, sonhos ¢ impresses efetivamente expetimentados, numa es Pécio de colagem surrealista ou, methor, de fotomontagem, jé que nenbum elemento nola é utilizado que nao soja de uma veracidaide rigorosa ou que no tenha valor documental, ssa posigio assumida de realismo— no fingl- do como geralmente nos romances, mas positive (pais tratava-se exclusiva- ‘mente de coisas vividas ¢ apresontadas som 0 menor disfarce)— me er: imposia no apenas pela natureza daquilo que mo propunha a fazer (tragar minhas préprias coordenadas e desvelar-me publicamente), mas respondia. também a uma exigénola estética: nfo falar senfio do que ou conhecia por oxperiéncia e me tocava mais de perto, para que fosse assegurada a cada uma de minhas frases uma densidade particular, uma plenitude comovente — om outras palavras: a qualidade propria do se que diz “auténtico”. Ser vordadetro para poder atingir aquela ressonfncla to diffell de definir e que a palavra “auténtico” (aplicavel a coisas muito diversas e, em particular, a criagdos puramente posticas) osté longe de tor explicado: eis o que huscava, minha concepro quanto & arte de escrever convergindo aqui com a idéia oral que eu fazia de meu engajamento ne escrita, Voltando-me para o toureiro, observo que também para ele hé. re- gras que nao podem sor inftingidas ¢ autenticidade, pois a tragédia que representa é uma tragédia real, na qual derrama o sangue e arrisca a propria pole. A questiio 6 saber se, em tais condigSes, a relagio que esta~ helego entre a autenticidade dele © a minha nfo repousa sobre um sim- ples jogo de palavras. Esté ontendido de uma voz por todas que escrover @ publicar uma autobiografia néo acarreta para quem se responsabiliza por ela (a menos que tenha cometido um delito cuja confissio tal) nenhum perigo de morte, salvo circunstancias excepcionais. Certa~ a expor-se & pena capi- ‘mente, o autor se arrisca a padecer nas relagies com seus proximos, © a ser desconsiderado socialmente, se as confissbes que faz vAo demasiado contra as idéias aceltas; mas 6 possfvel, mesmo nao senda um puro efni- co, que tais sangdes tenham pouco peso para ole (© até mesmo o satisfa~ gam, se considera salubre a atmosfera assim crinda a seu redor), @ que portanto ele faga seu jogo com uma aposta inteiramente ficticia. Soja ‘como for, esse risco moral no pode se comparar ao risco material que en- frenta 0 touretro; mesmo admitindo que haja entre eles medida comum no plano da quantidade (se a afeigéo de alguns ¢ a opinido de outros con- tam, para mim, tanto ou mais que minha prépria vida, embora em seme: Ihante dominio seja facil iludir-se), o perigo a que me exponho ao publicar minha confissii difere radicalmente, no plano da qualidade, daquele que assume 0 matador de touros, que faz do risco constanté seu offcio. Do mesmo modo, o que pode haver de agressivo na intencéo de proclamar sobre si a verdado (@ por mais que sofram com isso aqueles que amamos) 6 muito diforonto de uma matanga, no importa os danos que so vonha a causar. Sendo assim, devo considerar como decididamente abusiva a ana- logia que me pareceu se esbogar entre duas formas espetaculares de agir ede se arriscar? Faloi mais acima da regra fundamental (dizer toda a verdade e nada ‘mais que @ verdade) & qual se submote o fazedor de confissio, ¢ me referi também & otiqueta precisa a.que se deve conformer, em sou combate, 0 t rolro, Em relagdo 2 este, 6 evidente que a regra, longe de ser uma protagao, contrilvui para colocé-lo em perigo: dar a estocada nas condigées requeridas implica, por exemplo, que cle coloque seu corpo, durante um tempo aprecié vel, ao alcance dos chiftas; existe af, portanto, uma ligegéo imediata entre a obedincia & regra e o perigo que se corro; ora, guardadas todas as propor- um perigo diretamente proporeionel ao rigor da regra escolhi- Ga, que se v6 exposto o escritor que faz sua confisstio? Pots dizer a verdade, nada mais que a verdade, nfo tudo: ainda 6 proclso abordé-la com firmeza © dizé-la sem artificios tais como grandes drias destinedas a faz8-la se impor, como tremoles ow solugos na voz, floreios e douraduras, que no teriam ‘outro resultado sento mascaré-le em maior ou menor grav, seja atanuanda Sua crusza, soja tornando menos sensivel o que ela pode ter de chocante. 0 Ges, no fato de o perigo que se corre depender de uma observanela mais ou menos cstrita da regra representa, portanto, aquilo que posse reter, sem demasiada Jactancla, da comparago que me comprazi em estabelecer vidade como autor de confissio ¢ a do toureiro, tre mina atl Se me pareceu, a primeira vista, que escrever o relato de minha vida Sob 0 Angulo do eratismo (ngulo privilegiado, jé que eu vie entio a sexua~ dado como a pedra angular du euiffelu da personalidade), se me parecen quo tal confissio sobre aquilo que o cristianismo chama as “obras da carne” era suficionte para fazer de mim, pelo ato que isso representa, uma espécle de tourciro, cumpre ainda examinar se @ regra que me imp regra da qual me contentei em afirmar que seu rigor me colocava em pert g0— 6 de fato assimilavel, pondo de lado a relago com o perigo, a que re: ge 0s movimentos do toureiro. De uma maneira geral, pode-so dizer que a regra tauroméquica per- Sogue um objetivo essencial: além de obrigar 0 homem a colocar-se seria monte em perigo (embora armando-o de uma indispensével técnica), a nfo subestimar, nfio importa como, sou adversério, ela impede que o combate soja uma simples carnifieina; t@o minuctosa quanto um ritual, ela apresen- la um aspecto tétieo (pdr o animal em ostado de receber a estocada, sem. \é+lo fatigado mais do que o necessério), mas também um aspecto estético: 6 na medida em que o homem “se perfila” como deve ao desfarir seu golpe do espada que haveré em sua atitude essa arrogéncla; 6 na medida igual mente om que seus pés permanecem Imévels ao longo de uma série de passes bem cerrados ¢ bem ligados, a capa movendo-se com lentidéo, que ele formar com 0 animal aguele composto prestigioso no qual homem, lecido @ pesada massa cornuda parecem unidos num jogo de influéncias reciprocas; tudo concorre, em suma, para marcar 0 confronto do touro do toureiro com um earéter escultural. Ao considerar meu empreendimento & maneira de uma fotomonta- gem e ao escolher como expresso um tom 0 mais objetivo possivel, ao ‘tentar concentrar minha vida num tinico bloco sélido (objeto que eu pode- rie tocar como para assogurar-me contra a morte, ainda que, paradoxal- mente, pretendesse arriscar tudo), mesmo sbrindo minha porta aos sonhos (elemento psicologicaments justificado mas colorido de romantis- ‘mo, assim como os jogos de capa do toureiro, titels teenicamente, so tam- ‘eas), eu me impunhe, em suma, uma regra tio severa, bém revoadas coma se eu quisesse ter feito uma obra elssica. B, afinal, 6 essa severida- de mesma, 6 esse “classicismo”— que ndo exclui a desmedida existente inclusive em nossas tragédias mais codificadas, ¢ que se baseia néo s6 em consideragées quanto & forma mas na idéia de cheger com elas ao méxi- mo de veracidade— que parece ter conferide a meu empreendimento (50 6 que fut bom-sucedido) algo de anélogo ao que é para mim o valor exemplar da corrida;* e que o imaginério chifre de touro no Ihe teria podido dar espontaneamente Usar materials que eu nfo dominava e que precisava tomar tais como os encontrava (4 que minha vida era o que era, ndo sendo Icito alterar uma virgula de mou passado, dado primeiro que representava para maim um destino to pouco recusével quanto, para o foureiro, o animal que irrompe ‘Bm espanhol, no original. [8-7] 23 do touril), dizer tudo e dizé-lo som a menor énfase, sem nada reservar ao prezer e como que obedeconda a uma necessidade, tals eram 0 acaso que eu aceitava e a lei que me havia fixado, a etiqueta com a qual no podia tran- sigit. Se 0 desejo de me expor (om todos os sentidos do termo) constitufa 0 impulso primeiro, o fato que essa condig&0 nocesséria nfo era condi¢o Suficiente, sendo preciso tambéun que desso objetivo original so deduzisse, com a forga quase automética de uma obrigaglo, a forma a adotar. As ima- gens que eu juntava, o tom que assumia, ao mesmo tempo que aprofunda- vam © tornavam mais vivo 0 conhecimento que tinh de mim, deviam ser 0 que tornaria, salvo fracasso, minha emog&o capaz de ser partilhada. Do ‘mesmo modo, a ordem da tourada (quadro rigid imposto a uma ago na qual, teatralmente, o acaso deve mostrar-se dominado) 6 sirultaneamente \écnica de combate cerimonial. Era preciso, pois, que a regra de método quo eu me impusera — ditada pela vontade de ver-me com a maior acuida- do possivel— funcionasse ao mesmo tempo, de maneia ofleaz, como cdno- ‘ne de composigao. Identidade, se quisorem, de forma 6 de fundo; porés ‘mais exatamente, procedimento tinico que me revelesse o fundo & medida, que eu Ihe desse a forma, forma que fosse fascinante pare outrem 6 (levan- do as coisas ao extrema) que o fizosse descobrir nele mesmo algo de homé- fono a esse fundo quo me ara mostrado, Formulo isto, evidentemente, muito a posteriori, para tentar definir da melhor maneira o jogo que ou conduzia, ¢ sem que me eaiba, 6 ébvio, deci- dir se osse regra “tauroméquica”, ao mesmo tempo guia para a ago e garantia contra as facilidades possivels, mostrou-se capaz de tal eflcdcia como meio de estilo, © alé uesuuv (quanto a certo dotalhes) se aquilo em que ou prétendia ver uma necessidaude de método nfo correspondia antes a ‘uma idéia preconcebida referente & composigao. Estando entendido, porém, que distingo, em literatura, uma espécie de género para mim maior (que compreenderia as obras em que o chifre est presente, de uma forma ou de outra: risco direto assumido pelo autor soja de uma confissio, seja de um escrito de contetido subversive, modo como a condigio humana é oltada de fronte ou “agarrada pelos chiftes", concepgao da vida que compromete sou defonsor diante do outros homens, atitude diante das coisas como o humor ou a loucura, posi 0 assumida de 24 Tizor-se o ressoador dos grandes temas do trégico humano), posso Indicar ‘um todo caso— mas nfio sord forgar uma porta aberta?— que 6 na medida ‘vxata em que nfio se pode descobrir outre regra de composigao a niio ser a quo serviu de flo de Ariadne a seu autor, no curso da explicagio abrupta, {quo olo oper sigo mesmo, que uma obra desse gonero pode ser tida como literariamente ra— por aproximagbes sucessivas ou & queima-roupa — con- “qut@atica”, Isso por definigdo, desde 0 momento em que se admite que a ‘lividad literérfa, no que ela tem de espectfico como disciplina do espirito, Justificago a no sor iluminar certas coisas para si r6prio ao mesmo tempo que elas se tornam comunicdveis para outrem, & que um dos objetives mals elovados que so pode atribuir & sua forma pura —rofiro-me & poesia— 6 rostituir por moto das palavras certos estados Intensos, conerotamonte experimentados ¢ tornados sigaificativos para do pode ter outra sorom postos assim om palavras. de aeontecimentos absolutamente atuais ¢ cons- tio diferente hoje do Estou muito distante, aq ternadores, como a destrulgo de uma parte do Havr que conheci, e emputado de lugares aos quais me ligavam, subjetivamente, Iembranges: 0 Hotel do Alrairantado, por exemplo, ¢ as ruas movimentadas com prédios agora om rufnas ou semidestrufdos, como aquele em cujo flan- 0 e18 ainda. a insorigo “LA LuNE/The moon”, acompanhada do uma ima gem que representa uma face risonha om forma de disco lunar. Hé também «8 praia, juncada de uma estranha floragdo de ferragens ¢ coberta de mon- tes de pedras laborlosamente reunidas, frente ao mar, onde outro dia um cargueiry explodiu av baler nui aise, jaalando seus destrogos a outros tantos restos de nauftagio. Estou muito distante, por certo, desse chifre aut@ntico da guerra, do qual vejo apenas, nas casas destrufdas, os menos sinistras efeitos, Mais envolvido materialmento, mais atuante e, assim, mais ameagado, teria en considerado a coisa literéria com maior superficialida- de? Pode-se presumir que eu seria movido de forma menos manfaca pela preocupagi de fazer disso um ato, um drama no qual sou obrigado a assu: ri positivamente um ris para mo realizar por inteiro, Subsistiria, no entanto, esse engajamento cessencial que 6 Ifelto exigir do escritor, engajamento que decorre da nabure- 25 za mosma de sua arte: nfo abusar da linguagom,e fazer portanto que sua palavra, ndo importa como vier a ser transcrita no papel, sea sempre ver- dado, Subsisttia que ele deve, situando-se no plano intelectual ou passto- nal, aprosentar provas convincentes no procasso de julgamento de nosso anual sistema de valores 6 fazer ponder, como todo 0 peso que tio fretien- temente 0 oprime, o lado da balanga em que esté a lbertagho de todos os Jhomens, set o que ninguém poderla chegar & sus bortagio particular Havre, dezembro de 1945. Parts, fanetro de 1946. 26 \vubo de completar trinta e quatro anos, a motade da vida. Fisica- muito, sou de porte médio, mais pequeno que médio. Tenho cabelos cwitunhos, cortados rente a fim de evitar que ondulem, também por lomor de que se desenvolva uma calvicie ameagadora, Tanto quanto wowio julgar, os teagos caracterfsticos de minha fistonomia so: uma, swuen muito reta, caindo verticalmente como uma muralha ou uma, lulivla, marca cléssica (a acreditar nos astrélogos) das pessoas nas- telus sob signo de Touro; uma fronte larga, um tanto achatada, ‘umn voias temporais nodosas ¢ salientes. Essa ampliddo da fronte mii rolacionada (segundo os astrélogos) ao signo de Aries; de fato, swe] oma vinte de abril, pertanto no limiar destes dois signos: Ar Touro, Meus olhos so escuros, com a beira das pélpebras habi- ‘wilmonte inflamada; minha tez 6 corada; tenho vergonha de uma tuciimoda tondéncia aos rubores e & pele luzente. Minhas méos so suyras, bastante peludas, com veias muito marcadas; meus dedos uillos, curvados na. ponta, devem denotar algo de bastante frégil ou ilo bastante fugidio em meu cardter. Minha cabega é um tanto grande para 0 meu corpo; tenho as jwrnins um pouco curtas em relagao ao torso, os ombros demasiado otpollos em relagio aos quadris. Caminho com a parte superior do 7 corpo inclinada para a frente; tenho tend@ncia, quando estou senta~ do, aficar com as costas arqueadas; meu peito néo é muito largo e a musculatura, pouco desenvolvida, Gosto de me vestir com o maxi- mo de clegincia: no entanto, por causa dos dofeitos que acabo de mencionar em minha estrutura © de meus recursos limitados, em- bora eu nao possa dizer-me pobre, julgo-me em geral profunda- mente deseleganto; tenho horror de me ver inesperadamente num espelho, pois, nfo estando preparado para isso, deparo toda vez com uma feitira humilhante. Alguns gestos me foram— ou me siio— familiares: cheirar 0 dorso da mao; roer as unhas do polegar quase até o sangue; incli- nar a cabega ligeiramente de lado; comprimir os lébios ¢ as nari- has com um ar de resolugao; bater bruscamente na testa com a palma da mao— como alguém a quem ocorre uma idéia— e man- té-la apoiada af por alguns segundos (outrora, em ocasides andlo- fas, eu passava a mio no occipfcio); ocultar meus olhos atrés da méo quando sou obrigado a responder sim ou néo sobre algo que me incomoda, ou tomar uma decisio; quando estou sozinho, cogar-me na regitio anal etc, Esses gostos, os abandonei um a um, pelo menos a maior parte. Terdo sido apenas modificados e subs- tituidos por novos que ainda no identifiquei? Por mais acostu- mado que esteja a observar a mim mesmo, por mais manfaco que Soja meu gosto por esse género amargo de contemplagéo, hé sen Ativida coisas que me escapam e provavelmente entre elas esto as mais aparentes, pois a perspectiva 6 tudo, 0 um rotrato meu pintado segundo minha prépria perspectiva tem grandes chances de deixar na sombra certos detalhes que, para os outros, devem ser os mais flagiantes Minha atividade principal 6 a literatura, termo hoje bastante desacreditado. Nao hesito porém em empregé-lo, pois 6 uma ques- tio de fato: 6-se literato como se é hotdnico, filésofo, astrénomo, fisico, médico. De nada serve inventar outros termos, outros pretex- tos para justificar 0 gosto que se tem de escrover: 6 literato todo aquele que gosta de pensar com uma caneta na mio. Os poucos 28 livros que publiquei néo me valeram nenhuma notoriedade, Néo me {iuoixo nem me enalteco disso, tendo o mesmo horror pelo género oscritor de sucesso quanto pelo género poeta desconhectdo. Sem ser propriamente um viajante, visite um certo nimero de patses: muito jovem, a Sulga, a Bélgica, a Holanda, a Inglaterra; mais lurde, a Rendnia, o Bgito, a Grécia, aItélia e a Espanha; muito recen- lomente, a Africa tropical. Entretanto, no falo convenientemente honhuma Ingua estrangeira, o que, somado a muitas outras coisas, me dé uma impressdo de deficiéncia ¢ isolamento. Embora obrigado a trabalhar (numa tarefa alifs pouco peno- sa, j que minha profissio de etndgrafo esté bastante de acordo com meus gosios), desfruto certo conforte; gozo de uma satide bas- tante hoa; disponho de relativa liberdade ©, sob muitos aspectos, devo me classificar entre aqueles que se convencionou chamar os “afortunados da vida". No entanto, hé poueos acontecimentos em minha existéncia que su possa recordar com alguma satisfagio; tenho cada vez mais nitidamente a sensagiio de me debater numa. armadilha e — sem nenhum exagero literdrio— parace-me que sou atormentado. Sexualmente nfo sou, creio, um anormal— simplesmente um homem um tanto frio—, mas hé tempos venho tendendo a conside- rar-me como quase impotente. Em todo caso, faz torspo que nao con- sidero mais 0 ato amoroso como algo simples, mas como wm aconte- cimento relativamente excepeional, que requer certas disposigées, interiores ou particularmonto trégicas ou particularmente felizas, muito diferentes, tanto numa alternativa como na outra, daquilo que seriam minhas disposigdes médias. De um ponto de vista menos imediatamente erdtico, sempre tivo avorsio por mulheres grévidas, um temor do parto 6 uma fran- ca repugnincia em relagdo aos recém-nascidos. & um sentiment que acredito ter experimentado até em minha mais remota infan- cia, e possivel que ante uma f6rmula dos contos de fade como “eles foram muito felizes e tiveram muitos Silhos” eu tenha reagido, muito cedo, com desdém, 29 Quando minha irma dew & luz uma filha eu tinha cerca de nove anos; fiquei literalmente enojado quando vi a orianga, seu erdnio em Ponta, suas fraldas sujas de excrementos e seu cordio umbilical, que me fez exclamar: “Ela vomita pela barrigal”. Sobretdo, eu nio tolerava deixar de ser o mais jovem, aquele que, na familia, chamavam o “ca gulinha”, Percebia que nfo representava mais a titima geragéo; tinha a revelagio do envelhecimento; sentia uma grande tristeza © um mal- estar— angtistia que desde entéo s6 se acentuou. Adulto, nunca pude suportar a idéia de ter um filho, de pér no mundo uma criatura que, por definigfio, néo pediu para nascer e que fatalmente acabard por morrer, depois de, por sua vez, quem sabe, ter proc lado. Para mim seria impossivel fazer amor se, a0 realizar esse ato, nflo o considerasse como estéril e sem nada em Comum com o instinto humano de fecundar. Chego a pensar que o amor e a morte— engendrar e desfazer-se, 0 que dé no mesmo— S80 coisas tao préximas que toda idéia de alegria carnal sempre Yom acompanhada do um terror supersticioso, como se os gestos do amor, a mesmo tempo que levam minha vida a seu ponto mais Intenso, devessem me trazer apenas infelicidade, Embora nossa unido no tenha ocorrido sem algumas tempesta- des devides a meu caréter instével, & minha falta real de coragem e, acima de tudo, Aquela imensa capacidade de tédio da qual decorre o esto, amo a mulher que vive comigo e comego a crer que acabarei ‘mous dias com ela, na medida em que se pode proferir tais palavras Sem expor-se a um sangrento desmentido do destino. Coma muitos outros, fiz minha descida aos infernos e, como alguns, tornei a sair mais ou menos dele. Aquém dese inferno, hé minha primeira juven- ‘tude, om diregao a qual, de uns anos para cé, me volto como para a época de minha vida que fol a tinica foliz, embora contendo jé os ele- ‘mentos do sua prépria desagregago e todos os tragos que, aos pov cos sulcados de rugas, dao sua semelhanga ao retrato Antes de tentar isolar alguns dos lineamentos que se mostram permanentes através dessa degradacao do absoluto, dessa progres- siva degonerescéncia na qual, segundo erelo, se poderia em grande 30 parte traduzir a passagem da juventude a idade madura, gostaria de fixar aqui, om algumas linhas, 0 quo sou capaz de reunir em matéria de vestigios da. metafisiea de minha infancia. YVELHICE B MORTE B-me impossivel descobrir a partir de que momenta tive conheci- mento da morte e por qual caminho ela acabou por adquirir em meu espirito uma realidad, deixando do significar simplesmente “ir para 0 og”. Minha mae levava-me as vezes ao cemitério de Pere Lachaise, ao ttimuld de seus pais, onde estavam expostas, sob um globo de vidro, as insfgnies mag6nicas de meu avé, alto funcio- nétio da Terceira Repdblica, que havia sido discfpulo de Auguste Comte e mombro da loja “A Rosa do Perfeito Siléncio”. Encontran- do sempre o globo quebrado ¢ as insignias postas em desordem pelas mios de pessoas mal-intencionadas, minha me acabou por renunciar @ essa exposigo de reliquias © contentou-se em ornar 0 timulo com flores, perpétuas e pequenas coroas funerdrias. Essas visitas a0 cemitério, tAo afastado do bairro burgués— quase pro- vincial— onde morévamos, davam-me de fato 0 antegosto de algu- ma coise, mas que ainda nfo era verdadeiramente a Morte. Bu tinha no pensamento algumas idéias pouco trangtiizadoras em relagio & Morte, mais exatamente ao adver (uma, em particular, vinha-me de uma gravura encontrada num peri6dico fustrado, que mostrava, se no me engano, um homem atingido por um raio, sendo que em seu olho estava fotografada a imagem da arvore sob a qual fora fulminado). Eu tinha também— ou tive um pouco mais tardo— cortas representagdes relacionadas ao suicfdio; num suplemento ilus: trado de jornal, vira figurado o suictdio de um rajé com suas mulher‘ em meio a um incéndio, acontecimento que deve ter se passado em alguma ina ou pentnsula da Malésa; 0 rajé era um homem bastante jovom, esbelto e amarelo, com um bigode preto e um turbante com penacho; tendo ele préprio matado ou mandado matar suas mulheres, ar ora representado no momento em que, por sua vez, apunhalava-se; ele enfiava no peito um longo kris;* ¢ seu corpo, jé um pouco vacilante, dostacava-se sobre o incéndio ao fundo. Eu ndo compreendia exatamente em que consistia o suictdio, ¢ so- bretudo em que medida a vontade intervinha nesse ato; perguntava~ me, por exemplo, se as mulheres que o rajé havia matado ou manda- do matar eram ou no suicidas, até.que ponto haviam consentido, até que ponto haviam sido forgadas. A tinica coisa clara que percebia era a prépria palavra “suicidio”, cuja sonoridade eu associava com a idéia de incéndio ¢ a forma serpentina do ris, © ossa associagao esta tio enraizada em meu espirito que ainda hoje niio posso escrever a palavra surcfpro sem rever 0 rajé em seu cenério de chamas: hd o s cuja forma eo sibilar me lembram néo apenas a toro do corpo prestes a cait, mas a sinuosidade da lamina; ui, que vibra curiosamente a so insinua, se assim se pode diz6-lo, como a fusiio do fogo ou os angulos obtusos de um raio congelado; cfdio, que intervém enfim para tudo coneluir, com seu gosto cido que implica algo de incisivo e de aflado, Constato portanto que, por mais vaga que fosse minha nogdo da morte (para mim ela no era muito mais que esta pura alegoria: um esqueleto armado de uma foice), eu tinha pelo menos alguma idéia do que 6 a morte violenta: ser fulminado, ou suicidar-se. Os que mortiam no leito exam as pessoas de minha familia, as pessoas que por defini. so “iam para o e6u” 6 para as quais a felicidade eterna estava pro- metida. Os outros eram personagens excepcionais que, por pouco, seriam vistos como monstros e até mesmo malditos. A morte nfo era, para mim, 0 acidente que aniquilava subitamente, nem o desapareci- ‘mento trégico durante um incBndio; néio era, com certeza, a perda da existéncia, mas a passagem ao repouso do cemitério, & dupla vida do paraiso ¢ do timulo que mos piedosas vém florin. Se, portanto, tudo permanece confuso quanto a maneira como, 0s poucos, tomei consciéncia do que 6 na verdade a morte, reon- contro uma imagem bastante precisa que muito contribuiu para me * Bspécle de punhal de lamina ondulada. 0 dos sucassivos estégios da axist8ncia, do escoamento do tempo, da passagem ao estado adulto e depois 8 decrepitude, em uma palavra: envelhecimento, Trata-so de uma série de composi- ges que vi quando pequeno, ornando o dorso de uma encaderna- go de um élbum editado em Epinal e intitulado As cores da vida. Nao estou certo de me lembrar exatamente quais eram essas cores nem sobretudo a que fases da vida correspondiam, mas ei-las aqui tais como me voltam & meméria, A casa correspondente cor “lusco-fusco” (a primeira no alto @ & esquerda) era coberta de um tom ind leta. De um lado viam-se reeém-nascidos em apuros, de outro um bebé esfregando os olhos com os punhos e berrando, sustentado sob os bragos por uma armagéo circular com rodinhas que fazia 0 papel dos atuais “cercados” © chamada na época “carrinho”. Eu me preocupava muito em saber se jé havia ultrapassado a dade do “lusco-fusco”. Interrogava com freqiiéncia meus irmaos so- bre o assunto; para me irritar, eles diziam obviamente que nao, € toda vez isso me mortificava terrivelmente. Néo aspirava aos esté- ‘gi08 mais elevados; a bem dizer, eles se fundiam na noite dos tempos ‘eeu nem sequer cogitava que um deles (a néo ser, talvez, a idade do casamento) pudesse representar um apoget. Simplesmente estava ansioso para passar da-fase “Iusco-fusco” & que era representada na 0, cor de azeitona ou vio~ casa seguinte, a que tinha: a.oor rosa, ou da adolescéncia, e na qual se distinguie, ao lado de um garotinho com os cotovelos apoiados a janela, o fazendo bo- has de sabéo, um grupo de meninas ¢ rapazes brincando e corren- do alegremente, Minha ambigao se limitava a isso, ¢ todas as outras casas— exceto talvez.a tiltima— eram para mim esquemas inteira- mente abstratos. Havia, entre outras cor azul, com namorados ao luar: a cor verde (?), onde aparecia uma cena relative & maternidade; depois as cores da maturidade, as tinicas, com as duas primet- as cores da infancia, que recordo com suficiente preciso; 33 a. cor de “castanhas cozidas”, correspondendo a dois homens bébados de uns quarenta anos de idade, vestidos como trapeiros ou vagabundos ¢ que trocavam murros, cuja violéneia era expressa por muitas estrelas de diferentes tamanhos; a cor vermetha, onde se via umn homem barbudo com um bar- rete na cabega, afundado numa larga polirona, os pés calgados com confortéveis pantufas e estendidos em diregao & lareira, evocando —enquanto fumava um cachimbo— suas lembrangas de gloria e de valentia, cenas militares que apareciam representadas, com trajeté: las de balas ¢ explosdes do granadas, na fumaga que subia do car- véo avermelhado junto ao qual se aquecia; a cor amarela (nfio sei bem so era isso, mas para mim a imagem queria dizer: a ictericia); via-se um homem sem idade, quase som sexo, glabro, tortuoso, de aspecto frégil, com um robe e um lengo amarrado na cabega, ¢ reconfortendo-se com uma xicara de ché; a. cor cinza, reservada a uma cena de familia do género mais classicamente otimista: pais ¢ avés passando uns aos outros, de Drago em brago, um mintisculo bebé; 8 cor preta, enfim, cujo elemento essencial era um personagem muito Kigubre ¢ de uma magreza ressequida, sontado numa espécie de adega onde “mofa a escurido", parece-me, com o auxilio de um aparelho & manivela semolhante aos usados para moor café; com uma cartola na cabega ¢ vestindo um terno preto que Ihe dava 0 aspecto de um coveiro, os olhos lacrimosos, 0 nariz ranhento, ele sagnrava na mio uma vola prestes a se extinguir e quase derrotida, Cada uma dessas imagens devia ter um titulo correspondente sua cor, do género “Iusco-fusco” ou “castanhas cozidas”. Também deviam ser bem mais numerosas, @ provavelmente a maior parte as ocupagées usuais inerentes as diversas idades da vida estavam ali representadas. Todavia, no me lembro de nenhuma, excsto as que acabo de citar; 0 que mostra que talvez nfo me tive: pressionado tanto quanto hoje quero erer, A tinica que continua realmente carregada de sentido para mim 6 a do “lusco-fusco", porque exprime perfeitamente 0 caos em im- 34 que 6 0 primeiro estégio da vide, esse estado insubstitufvel no qual, como nos tempos miticos, tudo ainda se acha mal diferenciado, no qual, no tendo ainda se consumado inteframente a ruptura entre micro e macrocosmo, estamos imersos numa espécie de universo fluido como no seio do absoluto. Jé passei por um certo mimero dessas cor‘ “castanhas cozidas”, bem antes dos quarenta anos. A cor amarela— ou de doenga do figado—me espreita, e hé pouco mais de um ano eu esperava escapar, gragas ao suicidio, da cor preta. Mas assim as cot sas se fazem e se desfazem: permanego encaixado nessas Idades da Vida e tenho cada vez menos a esperanga de escapar a seu enquadra- mento (a0 menos por minha vontade), engastado que estou em sua guarnigo retangular, como um mau daguerrestipo coberto aqui e ali por manchas de mofo frisadas nas bordas e semelhantas a laivos de arco-fris que a decomposigao pinta no rosto dos afogados. , Inclusive a das SOBRENATURAL Um dos grandes enigmas de meus primeiros anos, além do enigma do nascimento, foi o mecanismo da descida dos brinquedos de Natal através da chaminé. Eu arquitetava objegies bizantinas a propésito dos brinquedos demasiado grandes poderem logicamente passar pela chaminé, tendo Papai Noel os largado do alto. A propésito de um arco a vela que mo fora dado assim o quo, soubo mais tardo, ora. um presente de um amigo de meu irmao mais velho, resolvi a questo admitindo a seguinte hipétese: j4 que Deus 6 todo-poderoso, ele cria os brinquedos no local mesmo onde os encontro, sem que precise “ passar pela chaminé. Esse maravilhamento, ante 0 espetéculo de um barco tao grande descoberto na base de um conduto proporcio- nalmente tio estreito, era de natureza um pouco semelhante ao que me causava, toda vez que passava por esse lugar, a visio de um navio dentro de uma garrafa na vitrine de uma loja de meu bairro. Quando fique’ sabendo que as criangas se formavam no ventre 6 35 © mistério do Natal me foi revelado, tive a impressio de alcangar ‘uma espécie de maioridade; isso so confundiu para mim com a no- go de idade da razo, época que— em prinofpio— se recebe o pi meiro grau de iniciagio, Desde que soube o que era a gravider, 0 problema do parto se colocou para mim de maneira anéloga ao colo- cado pela vinda dos brinquedos pela chaminé: Como podem passar os brinquedos? Como podem sair as criangas? © INFINITO Devo meu primeiro contato preciso com a nogéo de infinito a uma cai- xa de cacau de marca holandesa, matéria-prima de meus desjejuns. Um dos lados dessa caixa era ornado de uma imagem que represen- tava uma camponesa com touca de renda, que segurava na mio es- querda uma caixa idéntica, ornada da mesma imagem, e a mostrava, rosada e vigosa, sorrindo, Fui tomado de uma espécie de vertigem ao imaginar essa infinita série de uma idéntica imagom, reproduzindo um niimero ilimitado de vezes a mesma jovem holandesa que, teori- camente reduzida cada vez mais sem nunea deseparecer, me olhava com um ar zombeteiro ¢ me fazia ver sua prépria efigie pintada numa caixa de cacau idéntica aquola na qual ela mesma estava pintada. Nao estou longe de acreditar que @ essa primeira nogio do infi- nito, adquirida por volta dos dez anos (2), misturava-se um elemento bastanta pertnrhador: o carter alucinante 6 propriamonte ina preensfvel da jovem holandesa, repetida ao infinito como podem ser indefinidamente multiplicadas, por meio de jogos de espelho de uma alcova conveniantemente arranjada, as visdes libertinas. A ALMA Um pouco mais tarde, quando estava na escola ¢ jé possufa algu- mas nogées de cosmografia, tive da alma a seguinte representa- 36 gio, que eu sabia ser apenas uma pura fantasia mas que mesmo assim estava indissoluvelmente ligada a idéia que fazia dessa identidade: atravessada de um lado e de outro por uma longa agu- Iha vertical, uma daquelas massas levas e secas chamadas “comi- da esmigalhada” que se inserem entre as barras das gaiolas para servir de alimento aos passarinhos; E mais provavel que essa imagem me tivesse sido fornecida pela experiéncia seguinte, descrita num livro elementar de geo- grafia © que transcrevo aqui tal como recordo, sem me preocupar om verificar se a reproduzo de modo exato ou no: sendo posta em suspensio num Iiquido, uma massa de 6leo é atravessada por uma agulha na qual se aplica a seguir um forte movimento de ro- tagio; arrastada pela agulha, a massa de 6leo, a prinofpio mais ou menos esférica, sofre a ago da forca centrifuga ¢ se achata ligel- ramente, fenémeno por meio do qual podemos conceber 0 que se produziu em relagdo & Terra, que nao 6 rigorosamente esférica mas deformada de maneira anéloga 4 massa de éleo, pelo efeito de sua rotagéio em torno do eixo dos pélos; se a rotagao da agulha for bastante répida, a deformacao se acentua, para em seguida uma parte da massa destacar-se e formar um anel, como aconte- cou com Saturno. ‘A identificago da alma a uma comida esmigalhada— ou ain- da a um crepe da festa da Candeléria, atravessado da mesma ma- neira pelo meio —, tenho corteza de que se baseava em minha crenga na. existéncia substancial de minha alma, quo ou 66 podia imaginar como um corpo sélido feito no entanto de uma matéria pouco consistente ¢ de uma forma bastante irregular— corpo sélido aninhado talvez numa dobra qualquer de meu cranio, mas essencialmente aéreo ou sem peso, relacionado com os passari- nhos (comida esmigalhada) ou os morcegos (crepe mole e estendi- do como asas de morcego ¢ que se faz saltar na frigideira, 0 que re- produz— junto do escuro do forno, da fumaga gordurosa 6 da banha— uma espécie de vo desajeitado comparével ao esvoagar zarolho desses mamfferos noturnos). 0 susEITO B 0 oBsETO Durante meus primeiros anos, néio me interessava muito pelo mun- do exterior, a nao ser em fungao de minhas necessidades mais ime- diatas ou de meus temores. 0 universo estava quase intoiramente circunscrito em mim, compreendido entre esses dois pélos de mi nhas preocupagGes que eram, de um lado, minha “lua” (assim ha- viam me ensinado, em linguagem infantil, a designar meu traseiro) ®, de outro, minha “maquininha” (nome que minha mae dava a mi- nhas partes genitais). Quanto & natureza, ela no era muito mais do ue pretextos para desconfianga, seja porque me haviam prevenido contra as viboras que pululam na floresta de Fontainebleau (¢ sobretudo, ao que parece, nos lugares onde hé urzes-— tanto que eu imaginava que toda florzinha cor de malva de urze continha 0 ovo do uma vibora), seja porque, ao me levar para brincar no Bois de Boulogne, minha mae me tivesse recomendado insistentemente a nao dar ouvidos ao que pudessem me dizer, para me seduzir, as ‘pessoas ruins” quo freqitentavam, segundo ola, as imediages das fortificagdes © do hipédromo de Auteuil, individuos mal definidos «que eu pressentia vagamente néo serem outros sondo sétiros. El deve ter desempenhado para mim o mesmo papel que os ciganos ara as criangas do campo: duendes, faunos, deménios da nature- za, lado inquietante dos formigueiros © das chogas dos carvociros. Mais tarde, concebi-os como espécies de antropéfagos, por causa de um desenho do Péle-Méle* onde eu vira represontados selvagons de um cinza violéceo de gangrena— comendo um explorador. Bram também as pessoas das crénicas policiais dos jornais cuja leitura me proibiam, assim como fizeram posteriormente em relagdo as ublicagses obscenas, outra face desse mesmo mundo estranho. ___Com seis ou sete anos de idade, eu passeava certo dia com minha mae, meus irméos ¢ minha irma, num bosque da periferia parisien- * Jogo para crfangas no qual uma recomposta. in] sagem, fregmentada e desordenada, dove ser 38 se préximo & localidade onde minha familia, naquele tempo, ia pas: sar o vero, Detivemo-nos numa clareira para aprecié-lo e, de uma maneira absolutamente inesperada, esse lugar tornou-se 0 palco de minha primeira eregao. 0 acontecimento que me causou comogao foi a visto de um grupo de criangas—meninas ¢ meninos mais ou me- nos da minha idade— esealando érvores com pés descalgos. 0 que me perturbou foi a piedade, parecia-me, sentimento que me haviam ensinado a ter em relago aos “pobrezinhos”. Na hora ndo estabeleci nenhuma relagio direta entre « modificagao que afetava meu sexo € © espetéculo que me era oferecido; simplesmente constatei uma es- tanha coincidéncia, Bem mais tarde, acreditei lembrar-me da sen- sagiio estranha que eu experimentava ao imaginar como devia ser a9 mesmo tompo agradével e doloroso, para as criangas em questo, © contato da planta de sous pés e de seus artelhos nus com a casca rugosa. Seré, que o aspecto miserével daqquelas criangas— vestidas de farrapos—tinha uma participagao imediata em minha agitaglo, as- sim como a ponta de vertigem que o receio de sua queda engendrava? Seja como for, essa erect repentina e misteriosa em sua cau: sa, j4 que eu nfo estabelecia nenhuma ligagdo entre a representa- G0 que a havia provocado ¢ o préprio fendmeno, correspondia a uma espécie de irrupgao brusca da natureza em meu corpo, sibita entrada em cena do mundo exterior, uma vez que, sem ser ainda capaz de encontrar a palavra enigma, notel pelo menos uma coin- cid@ncia, que implicava um paralelismo entre duas séries de fatos: 0 que se passava em meu corpo ¢ 08 acontecimontos oxtorioros, oF quais, até ento, eu nunca havia considerado como se desenrolan- do num meio realmente separado, ‘Nao dou uma importdncia excessiva a essas lambrangas, escalona~ das em diversos estégios de minha infncia, mas para mim hé uma certa utilidade em reuni-las aqui neste instante, porque sfio 0 qua- ro— ou fragmentos do quadro— dentro do qual todo o resto se alojou. Muito mais decisivos, acredito, foram certos fatos precisos, sendo que de uns jamais ignorei a influéncia— os que se referem 39 a0 teatro ¢ particularmente a pera —, enquanto dos outros a sig- nificagao mais socreta s6 se revelou a mim fortuitamente, a luz de uma pintura de Crenach que representa duas figuras femininas especialmente atraentes: Lucrécia e Judite, Por essas duas criaturas— as quais associei, talvez arbitraria- ‘mente, um sentido alegérico— minha visio foi perturbada hé alguns anos, no final de um tratamento psicolégico que, apesar de minha Tepugninela por tudo o que pretande curar males que nao os do corpo, minha angéstia interior me havia forgado a aceitar, B daf me veio a idéia de oscrever estas paginas, a principio simples confissio basea. da no quadro de Cranach e com o objetivo de liquider, formulando-as, ‘um certo nimero de coisas cujo peso me oprimia; em segulda, resumo de memérias, visio panordmica de todo um aspecto de minha vida, Eu poderia comparar o que representa a meus olhos essa galo- ria de lembrangas com o que era para mim, antes de completar sete anos, o rosario que pendia & cabeceira do meu leito: o mundo resumido em dezenas (com um gro maior separando as dezenas ¢ uma cruz na ponta) e capaz de caber em minha mao; ou, ainda, a natureza vegetal contida por inteiro (sob a forma de ervilhas-de- cheiro, capuchinhas, ervas-bezerras) no pequeno jardim que, no campo, eu me entretinha entao em cultivar; ou também ainda o sinal estranho que eu ficava maravilhado de descobrir no corte dos caules de filifolha ¢ que me parecta— verdadeiro selo de Salomao —condensar todo o meu universo Se se tratasse de uma poga do toatro, de um daqueles dramas pelos quais sempre fui to apaixonado, pareco-me que o tema pode- ria se resumir assim: de que maneira o heréi— isto 6, Holofern passa bem ou mal (¢ antes mal do que bem) do caos miraculoso da inffncia & ordem foroz. da virilidade. 40 1. TRAGICOS FAUSTO Mefisto, vés wna jovem pdlida ¢ bela que mora sozinka na distancia? Bla se retiva languidamente desse lugar & parece andar com grilhdes nos pés. Crelo perceber que ela se parece com a querida Margarida. MEFISTOFELES Esquega isso. Néo existe ninguém assim. £ uma figura mégica, sem vida, um tdolo. Nao convém defrontar-se com ela; seu olhar fixo entorpece o sangue do homem ¢ 0 transforma em pedra. Jd owviste falar da Medusa? rausro So realmente os olhias de um morto, que wna mio queri- da nao fechou. 8 de fato 0 selo que Margarida me entre- g0u, 6 realmente o corpo tdo doce que possui. MarISTOFELES Trata-se de magia, pobre louco, pois cada wm cré encon- trar nela a muther amada, Fausto Que delicias... ¢ que sofrimentos! Nao consigo despran- der-me desse olhar: Como é estranho, essa tinica fita ver- metha que parece ornar seu belo pescogo... Nao mais larga que a lamina de ume face. MEPISTOFELES Também a vejo multo bum; elu pode perfettamente volo ear sua cabeca sob 0 brago, pois Perseu a cortou. {Mracho do Fausto, de Goethe) Grande parte de minha infancia desenrolou-se sob 0 signo dos espe: tdculos, éperas ou dramas lIiricos que meus pais me levavam a ver, ambos igualmente apaixonados pelo teatro, em particular quando acompanhado de musica. Freqiientemente eles dispunham de um camarote no Théatre de Opéra, emprestado pela principal cliente de meu pai, mulher rica cuja fortuna era encarregado de adminis- trar. Desse camarote—o segundo a partir do palco, do lado direito da sala— assisti desde os dez anos de idade (Inclinando-me muito, pois mesmo sentado na primeira fila do camarote era dificil ver 0 que se passava na metade esquerda da cena) a muitas produgées operisticas: Romeu e Jultesa, Fausto, Riyoletu, Atdu, Luivengrin, Os mestres cantores de Nuremberg, Parsifal, Hamlet, Salomé; ¢ foi devido talvez & impresséo causada por esses espetdculos que me habituei a proceder sempre por alusées, por metéforas, ou a mo comportar como se estivesse num teatro Sem avaliar o que tal emogéo pudesse ter de sincero ou de fin- gido, posso dizer que chorei com a morte do casal de Verona, extasiel- me diante das bailarinas vestidas de malha, dos cenérios de pape- do dourado, dos jogos de luz ¢ de outros Iuxos da Noite de Walpurgis (nome que, por suas duas titimas sflabas, me fazia pensar em “or- 4B gia’); estremeci quando o buféo Rigoletto mata por engano sua filha, vivi os horrores de Radamés ¢ Aida condenados & asfixia em sua prisio subterranea, abandonei 0 monte Salvat com 0 cavaleiro do Cisne, esvazici a taga da. loucura de Hamlet, senti pela primeira voz uma angtstia, cuja, natureza erética entdo ignorava, ao vor Salo- mé rebolar-se seminua diante da cabega de Yokanaan. Os mestres cantores me decepcionaram, pois esperava uma histéria trégica, matanga sinistra de “mestres cantores” vigaristas praticando uma espécie de racketeering" antecipado, ou entio artistas ferozmente rivais uns dos outros que, no final, matavam-se mutuamente. No que concerne a Parsifal, nao me interessel muito pelas “meninas- flores", mas a ferida de Amfortas— chaga no flanco feita pela langa sagrada depois que ele rompeu seu voto de castidade— me pertur- bava ¢ seus lamentos me tocavam estranhamente, Sobretudo acerca de Parsifal eu me colocava questées, saben- do que havia algo a “compreender”, jé que falavam diante de mim de pessoas que “compreendem” Wagner e das que néo 0 “com- preendem’”; eu ouvia dizer que era preciso néo apenas ser adulto, mas também particularmente dotado, para perceber sua significa- do profunda; aquilo se tornava para mim como o mistério do Natal € 0 mistério do nascimento, algo cujo sentido s6 podia pressentir vagamente por enquanto, sem ser capaz, devido & minha impubor- dade, de penetré-lo realmente. a antes de estar em idade de ir ao teatro, eu havia escutado os relatos quo a. iris ze anos mais velha yuv eu— me fazia das pecas que tinha visto. Havia o caso de I paglaec cujo @uplo drama mergulhava-me num abismo de perplexidade: 0 palha- ¢o mata sua mulher, me contava minha irma, ¢ mata-a de verdado, diante dos espectadores que gritam: “Bravo!”, entusiasmados pelo realismo do desempenho dos atores mas convencidos de que se trata apenas de uma simulagdo, quando o assassinato 6 de fato veridico, 0 quo eles 86 vém a perceber depois. Eu nfo compreendia que a repre- * Gangsterismo. bv] 44 sontagio de um drama. estivesse embutida na pega e que aqueles ospectadores entusiastis, que aplaudiam o assassinato realizado diante de seus olhos, no fossem os espectadores reais — os que ostavam na platéia e dos quais minha irmé fazia parte —, mas sim ospectadores figurados, eles préprios inclufdos no espetéculo. Por: tanto ou acreditava, toda vez que representavam I pagliacci, que 0 protagonista apunhalava efetivamente sua parceira e, sem duvidar em absoluto da autenticidade de semolhante prética, perguntava-me como era possivel que uma coisa tio extraordinaria assim aconteces- se. Resolvia o problema estahelocendo uma analogie entre esse fato @ 05 duslos no reinado de Luis xr (que eu considerava entéio como espetiiculos puramente esportivos, a despeito de suas conseqiiéncias mortais) ¢ os combates de gladiadores ou martitios de cristios no circo, dos quais tinha ouvido igualmente falar. ‘A primeira vez. que me levaram ao teatro foi A pequena sala do museu Grévin, onde se exibia, creio, um prestidigitador. Absorvido pelo espetdculo, negligenciei pedir & minha mae para me levar para fora a tempo ¢ me aliviei nas calgas. 0 cheiro eo rubor intenso que me subiu 4 face revelaram a vergonha de meu delito. Pelo que conheco de minha mao, ela nfo me repreendeu muito, mas me senti mortifi- cado ao ser lovado por ela para casa impregnado de meu fedor. Outra vez fomos ao teatro do Chatelet, ver A volta ao mundo em 0 dias. Bscutei a pega bastante ajuizadamente ¢ as serpentes— embo- ra me perguntasse se eram vivas— néo chegaram a me causar muito edu, assim como a detonago que acompanha a oxplocio dar caldel- ras do vapor Henrietta; mas, ao voltar de harco pelo Sena, com minha mie e meus irmaos, fui tomado de um acesso de panico, certo de que o arco ia estourar e afumdar como o vapor, de modo que comecei a cho- rar e a berrar: “Nilo quero que estoure... Nao quero que estoure...”, @ sé com dificuldade conseguiram me acalmar, Ainda hoje, sou as vezes tentado a langar semelhantes gritos pare tentar deter a marcha dos elementos: “Nao quero que haja guerra!”, eu ditia, mas os elementos, como outrora, néo parecem dispostos a me obedecer: Na época em que me levavam & opera, eu jé era demasiado grande para conceder aos acontecimentos to palco o mesmo crédito que aos acontecimentos reais— ou para deduzir, inversamente, marcha dos acontecimentos reais a partir do que vira no paleo —, mas conservava ainda uma nogao magica, se posso dizer, do toa- tro, conesbido como um mundo a parte, distinto da realidade, cor- tamente, mas no qual todas as coisas, misteriosamente dispostas nno espago que comega para lé das luzes da ribalta, so transpostas a0 plano do sublime e se movem num dominio to superior ao da realidade cotidiana que o drama que nele se forma e se desfecha deve ser visto como uma espécie de ordculo ou de modelo. Vendo 0 ‘ThéAtre de Opéra como o apandgio dos adultos o mais nobre de todos os teatros, por causa do caréter de gravidade trégica dos espetéculos, da solenidade do prédio e da pompa com que a ole se comparecia, 0 fato de ser conduzido até Ié adquiria para mim um aspecto de iniclago, © eu gozava do privilégio de ser introduzido num meio tide como acima de minha idade. Eu sabia também que alguns abonados tinham direito ao foyer, e que muitos deles tinham por amantes (palavra que sempre detestei porque me faz pensar em professoras**) dangarinas. Os espetdculos que me levavam para ver no Opéra, teatro por exceléncia das pessoas adultas, me pareciam naturalmente o refle- x0 da vida destas — ou, pelo menos, das que dentre elas eram as mais belas © as mais privilegiadas — , modo de existéncia prestigio- so ao qual, com certo temor, mas das profundezas mais remotas do mou sex, ou aspirava, Assim, a partir dessa época live um gosto muito pronunciado pelo trégioo, pelos amores infelizes, por tudo 0 que termina de maneira lamentével, na tristeza ou no sangue. Decalcando minha representagao da vida sobre o que eu via no Opéra e me preocupando acima de tudo com 0 amor (a cujo acesso eu achava néo haver necessidade de ser adulto), era-me impossivel conceber uma verdadeira paixdo a nfo ser como algo que envolve a * Mattresses, no original, wn) % Mattresses d'école, no original 46 vida ¢ a morte, © que acaba necessariamente mal, pois se acabasse bem nao seria mais o Amor, belo como o erguer de uma cortina de teatro, quando se sabe perfeitamente que ela voltard a cair, lustres apagados e capas recolocadas sobre as poltronas, anincio de uma representaco & qual me levariam me deixa- va febril; de antemao calculava tudo 0 que se passaria; aprendia de cor os nomes dos cantores; no dormia na noite anterior, ardie de impaciéncia durante o dia, mas pouco a pouco, & medida que a hora se aproximava, sentia uma ponta de amargura misturar-se & minha alogria, e, tao logo erguida a cortina, uma grande parte de meu prazer cassava, pois previa que em pouca tempo a pega estaria terminada e a considerava, em suma, como virtualmente finda pelo fato de ter comecado. 0 mesmo acontece hoje com todas as minhas alegrias, pois penso em seguida na morte, e ndo consigo me lembrar daque- las tristezas infantis durante as pegas de teatro sem ser obrigado a roprimir uma vontade de chorar. Bu colocava o Opéra acima de todos os outros teatros, inclusive © Opéra-Comique, onde no entanto tinha visto dois espetéculos que me impressionaram fortemente: 0 navio fantasma 6 Os contos de Hoffmann. Voltarei a falar, a propésito de 0 navio fantasma, da bm- ressio que me causou o “holand@s voador”, personagem romantic entre todos, espécie de judeu errant dos mares que persegue sex ‘tréguas um castigo. Tudo que direi por ore desse drama é que, estan- do a s6s em casa, eu. mous irméos nos divertimos um dia em repre seulé-lo uu hull de entrada (batizado para a circunstancia de “Teatro Paris-Lirico”), com cendrios e trajes improvisados. Sendo 0 mais jovem, eu era encarregado do tinico papel feminino, o de Senta, a fi- Iha do pescador; meu irmao mais velho fazia.o holandés, ¢ um de seus amigos — 0 que me havia dado o bareo a vela—, 0 velho Da- land, pai de Senta, Meu papel me agradava, assim como todos os papéis de “burro de carga” que invariavelmente me eram confiados nas brincadeiras com meus irméos; assim, quando famos ao campo, aquele onde tive a revelag&o de minha virilidade numa clareira de Dosque, era sempre eu, nas brincadeiras de peles-vermelhas, quem a7 azia o papel do prisioneiro, aquale que amarravam no poste de tor- turas, que fingiam escalpelar e que efetivamente aterrorizavam, Acessa aspecto “burro de carga”, que é um dos tragos profundos de ‘meu cardter, esté ligada a seguinte lembranga, que 6 ainda uma Jem- branga de teatro: 0s cartnzes aterrorizantes do Prisdes de crianpas,pe- $a realista sobre as casas de corregio, que foi representada no teatro Ambigu-Comique poucos anos antes da guerra, No cartaz estavam pintados adolescentes de rostos descarna dos ¢ lividos, calgando tamancos, usando gorros azuis, @ seu car- cereiro, um brutamontes barrigudo, com um grande bigode e olhos furibundos. Essa lembranga 6 certamente a primeira am que figu- ram 0 édio ¢ a aversdo profundos que tenho pela policia (fisica- mente: homens grosseiros, fedendo a suor, o traseiro hrumoso e 0 prepticio mal lavado— bem mais sujos do que operarios, pois estes, pelo menos, nfo carregam o mau cheiro da caserna). Para- Jelamente ao temor instintivo que me inspira a “corja”, temor mui- to ambfguo, mesclado de certa atragio, como o duplo sentimento que oxperimentava ao olhar os jovens prisioneiros do cartaz: repugnancia insuperavel, de um lado, por seus rostos pélidos de vadlos; piedade ¢ simpatia, de outro, em razao de sua infelicidade © Por ou me imaginar imediatamente um deles, menino de boa familia que o pai, por uma ninharia, coloca nessa priséo de erian- as @ que acaba se enforcando, No que concerne aos Contos de Hoffmann, seduzia-me o fato de haver no enredo algo a “compreender”, a discarnir, um pouco como om Parsifal. Trés herofnas— a automata Olympia, a cortesa Giulotta, a cantora Antonia — so apresentadas em trés hist6rias independon. ‘05, cada uma delas constituindo um ato; no final, descobre-se que cssas trés crlaturas, nascidas da imaginago de Hoffmann, que, sob © dominio da embriaguez, sonhou os trés contos, nfo siio sendo trés ‘imagens de uma mesma mulher: a coquete Stella, por quem Hoff- mann esté inutilmente apaixonado, Pouco antes de baixar a cortina, uum tonel se ilumina e nele se vé aparecer a Musa que, com doces Palavras, consola Hoffmann, adormecido com a testa na mesa, Essa 8 trfplice encarnagao, sob aspectos diversos, de uma mulher inapreen- sivel— tanto nesses trés casos quanto na realidade —, deve ter sido ‘um dos primeiros moldes em que se elaborou minha nogao de Mulher Fatal, Automato quo se quebra, cortesi que trai, cantora que morre tuberculosa, tais so 03 avatares pelos quals passa a desde- nhosa no devaneio de Hoffmann, formas mutiiveis como a medusa om quem cada um exé reconhecer a mulher amada. B ébvio que eu s6 percebia isso muito confusamente. Consigo reconstitui-lo aqui com base em minbas lembrangas, acrescentando- Ihes @ observago daquilo que me tornei desde entdo e comparando antre si os elementos antigos ou recentas que minha meméria mo for- noce. Esse modo de proceder 6 talvez.arriscado, pois quem mo ga- ante que nfo dou aessas lembrangas um sentido que elas no tive ram, carreganda-as posterlormente de um valor emotive que no possufram os acontecimentos reals aos quais elas so reforam, em su- ma, ressuscitando esse passado de uma maneira tendenciosa? Deparo aqui com 0 obstéculo que enfrentam fatalmente os fa- zedores de confissées e de momérias, e isso constitul um perigo «quo, se quiser ser objetivo, devo Jevar em conta. Portanto, limitar- me-oi a afirmar que eu via tudo como no teatro, & luz dos espet las que me levavam para ver. Apatecendo-me todas as clses sob uum Angulo trégico, o que germinou entio em meu coragao e om minha cabega foi tio marcado por essa luz sangrenta que mesmo hoje nfo me 6 possivel amar uma mulher soi pergunta, por exem- plo, eum que draua eu serta capaz de me langar por ela, que suplicto poderia suportar, esmagamento dos ossos ou dilaceramento das carnes, afogamento ou combustio em fogo lonto— questo & qual respondo sempre com ume conseiéncia tio precisa de meu terror em relago ao softimento fisico que jamais consigo livrar-me disso a ndo ser esmagado pela vergonha, sentindo todo o meu ser apo- Arecido por essa incurdvel covardia, Tais pensamentos voltam-me hoje com a imagem da Medusa, grandiosa figura que ilumina, com sua cahega andnima sobre um pescogo cortado, o primeiro Fausto de Goethe, esse Fausto que co- 49 tulrt prluotrumonto tal como os libretistas de Gounod o puseram em. unt, oun cujo tercsiro ato aquele-que-assinou-um-pacto-com-o-diaho v6 surgir diante dos olhos, trazendo em volta do pescogo uma fita ver- melha “niio mais larga que a lémina de uma faca”, o espectro de Mar- garida, espectro que toda vez. que assisti ao Fausto fiquei aflito de no erceber direito, quaisquer que fossem mous esforgos e por mais que me inclinasse sobre o debrum despelado do camarate, pois ele s6 se manifestava muito fuliginoso e do lado direito da cena, Mas outras imagens simbélicas da Mulher me solicitaram muito cedo, tio diversas como os avatares da Stella dos Contos de Hoffmann, fascinantes como a Medusa ¢ fuliginosos como ela. Entre as mais recentes, citaroi Ana Bolena, acerca de quem ouvi no iiltimo Natal, em Londres, uma curiosa cangdo: num tom de lamento, com orquestragéo deliberadamente ligubre, so cantados 0s infortinios da decapitada que passeia pela Torre* e certamente também pelas ruas, sua eahega cortada sob o brago, vagabundagem que termina num vulgar resfriado. A Ana Bolena, assim como a Ju- dite, esté ligada, por cause do sous lébios finos, de seus olhos pene ‘trantes e de seu traje antiquado de criada, uma garconote vista na mesma época no restaurante do Hotel Cumberland, Entre as mais antiges, hé Santa Genoveva, Joana d’Arc, Maria Antonieta, na época em que eu ainda confundia a historia da Fran £4 com 0 Dever e no concebia que pudessem existir figuras femi- ninas mais atraentes que as de suas herofnas, * Antige priso de Londres. fn] ML, ANTIGUIDADES Num cabaré ou boate que se assemetha ao Zell's (dancing de Mont- martre que eu freqiientava entdo assiduamente), vejo-me diante de mulheres que estéo ali néo para fazer amor, mas para predizer 0 futuro, Bstiio vestidas como se vestem geralmente as mulheres de bordel. Detso-me lvar por algumas delas. ue querem me revel a sorte. Para tanto, invocam sex duplo astral, que & 0 dinico verdadet- 2. Apés diversos encantamentos, acompanhados de ramente vide combustdes de certas matérias, de dangas, de gritos etc., as videntes astrais ¢ verdadetras aparecem. So mulheres muito belas de corpo, vestidas de camisolas de linho branco sobre as quais flutuam soltos seus eabelos louros. Tém a pele muito suave ¢ os olhos esgazeados. ‘Mas, no lugar do nartz, véem-se apenas duas pequenas fendas que lembram vagamente as narinas, ¢, no lugar da boca, uma pequena mancha de sangue, Esse tiltimo detalhe prova que séo vampiras. (Sono de jutho de 1925] Sempre fut seduzido pelas alegorias, ao mesmo tempo ligées pela imagem e enigmas a resolver, em geral atraentes figuras femnininas om plena forga de sua prépria beleza e de tudo o que um simbolo, por dofinigio,-tem de perturbador. Desde muito cedo, minha irm& me havia iniciado om algumas dessas representagdes mitolégicas como a Verdade, saindo nua de seu pogo, com um espelho na mao, ¢ a Mentira, mulher de sorriso sedutor e suntuosamente en- feitada. Eu era tdo fascinado por essa tiltima apari¢&o que certa ‘vez cheguei a dizer, ao falar com minha irma de uma mulher que no sei mais se era um ser real ou a herofna de uma histéria: “Ela 6 ela como a Mentira!” Contudo, nio havia apenas alegorias graciosas, deusas semi- nuas ou ricamente ajaezadas, semelhantes a ninfas ou fadas; havia algumas abstratas e severas (como a fébula do pavéo Ilusio e da tartaruga Bxperiéncia, lida nas Belles Images, conto em que se v8 um jovem principe que segue pela vida acompanhado de um pavéo cujas plumas vo perdendo aos poucos a cor e de uma tartaruga ue paca se incrusta de miltiplas pedrarias), e até mesmo sinistras (co- mo a hist6ria da Miséria, lenda de origem russa e lida num livro e, inversamente, torna-se cada vez maior & medida que sua cara~ 53

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