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2° e e e e e s e e e e e e e e e e e e e e e e e = e e e e e e e * 4 be Carfruto 1 ESPACO ROMANESCO Conceito € possibitidades. Antes de examinarmos, como & nosso objetivo, 0 problema do espago nos romances de Lima Barreto — sua importincia decorréncias —, especialmente em Vida e Morte de M. J. Gon- zaga de Sé, tentaremos uma breve introdugio teériea, Nao cons- tituiro as paginas seguintes, esperamos, uma monogratia dentro da monografia, ou, alternativa ainda mais ambiciosa e que abso- lutamente no me’ atrai, um roteiro ondé fossem enumerados ¢ classificados todos 0s casos possiveis de aparecimento e introdugio do espago no romance. Ronda em nossos dias a criagio literdria, implicito na conviceio de que tudo nos contos pode ¢ deve ser catalogado, previsto, encerrado num diagrama, algo de académico ¢ csterilizante, sendo de estéril. Quando a arte de escrever, re- Pousando no desafio as solugGes candnicas, na insatisfagio ¢ no isco, tem pouco a ver com os Lincus: ela, como diz Gilles La- pouge, referindo-se A besta, em uma bela pagina onde pret mente fala do naturalista, "é imprevisivel, e tenebroso 0 seu co- ragio". ! Assim, em harmonia com a minha compreensio da Litera tura — terreno, pare mim, jubiloso © mével —, apenas buscarei assentar certos pressupostos indispensdveis & conclusao do estudo. Ver-se-& mais tarde, que nem sempre 0s mencionados pressu- ostos encontrario correspondéncia ¢ exemplo nos livros de Lima Barreto. Pode suceder, inclusive, que certas manifestagdes do espaco lembradas a seguir erijam-se em simples ponto de refe- fEncla: que nfo sjam exemplificadas nos textos do eseritor, mas contrastadas, rompidas, negadas, subme 2 uma espécie de dksvio.Objevando oferseruin exemplario (U9 variade quaets possivel da presenga do espaco na ficgd0, chegaremos mesmo a esquecer um pouco o autor de Policarpo Quaresma. Ci diversos invadirdo as piginas que se seguem. © Im: Utopie et Civitivations. p. 180. CONCENTO E PossIBILIDADES 63 Move-se © homem ¢ recorda o passado. Nada disto o paci- fica ante 0 espago ¢ 0 tempo, entidad:s unas e misteriosas, desafios constantes 2 sua faculdade de pensar. Acessiveis & experiéneia imediata © esquivos as interrogagées do espirito, sugerem — es- aco e tempo — miltiplas versdes, como se monstros fabulosos. Vemos Santo Agostinho, meditando sobre © tempo, expressar élebre confronto entre a apreensio intutiva © 0 pensamento dis- cursive: “O que €, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, cu sei; se-0 quiser explicar a quem me fizer esta per- usta, ji nfo sei"? Muito antes, um diseipulo de Parménides, Zenio de Elia, concebe 0 paradoxo da flecha. A cada momento do tempo, lembra Zendo, ocupa a flecha disparada um determi- nado espago: ocupar um determinedo espago quer dizer: estar em. repouso, Seria. possivel, somando vérios repousos, obter 0 movimento, esse trAnsito no espago € no tempo? Conclui estar imovel a flecha que voa — e talvez tenha razio. Mergulhados, pois, no espago €-no tempo, movenco-nos despreocupados no es- ppago © no tempo, sendo nés proprios espaco e tempo, experimen- saga0 de invadirmos uma regiao minada por inume- riveis armadilhas, iluses © equivocas quando os nomeamos. E se ouvimos os que sobre © assunte meditam, eis-nos enredados entre as teorias felacionais (segundo as quais espago e tempo so redutiveis @ coisas eventos) © as absolutas (que. proclamam, considerando o tempo e 0 espago, sua irredutibilidade), ou entre as teorias objetivas (para estas, os predicados temporais bésicos apontam relagdes fisicas entre instantes e acontecimentos também fisicos) e as subjetivas, mais sutis (onde aprendemos que as enti- dades temporais bésicas si0 apenas instantes ou eventos ocorridos na mente). Como, entio, discorrer sobre 0 espago, clandestina- mente, sem legitimar o conceito na: controvertidas fronteiras da Filosofia? Ou, irresponsabilidade mais grave e talvez imperdosvel, como ocupar-se alguém do espago dissociando-o do tempo? Nio S6 espaco ¢ tempo, quando nos debrucamos sobre a narrativa, so indissociéveis. A‘ nartativa¢ um objeto compacto ¢ inextrincavel, todos os seus fos-se chfagam entre si e cada tum reflete intimeros outros.® Pode-se, apesar de tudo, isolar art ficialmente um dos seus aspeetos ¢ estudé-lo — ni, compreende- 2 Acosmmnio. Confssdes. p. 321 3 Refetindosse is ligagies ‘nire os perscnagens de um romance, escreve Guy Michaud: “E nio € senlo por tim esforgo de abstragio e de sintese fue reconatituimes a linha aparente ‘de ama agio, do mesmo modo que fos apercebemos, a um) 6 olkar, das linhae e das figuras que se Wolain dO pomitismo da tapesaria.” (L'Ocwire ef ses Techniques. p- 128.) 64. CAP, I — FSPAGO ROMANESCO se, como se os demais aspectos inexistissem, mas projetando-o sobte eles: neste sentido, € vidvel aprofundar, numa obra literiria, ‘a compreensio do sew espaco ou do seu tempo, ou, de um modo mais exato, do tratamento Concedido, ai, a0 espago ou a0 tempo: que fungio ‘desempenham, qual a sua importincia © como os in- troduz 0 narrador. Note-se ainda que o estudo do tempo ou do eespago num romance, antes de mais nada, atém-se a esse universo romanesco € nfo ao mundo. Yemo-nos ante um espaco ou um tempo inventados, fiecionais, reflexos criados do mundo © que nfo raro_subvertem — ou ‘enriquecem, ov fazem explodir nossa visto das coisas. * Atirma, por isto, A. A. Menditow, na “Conclusio”. justamente, de um ensaio sobre O Tempo e 0 Ro ‘mance, que, vealizando um estudo literdrio “ou, mais verdadei- ramente, de certos aspectos de uma forma particular de literatura”, setiam irzelevantes “teorias teoldgicas, metafisicas, matemsticas ¢ psicolégicas.”* Mais ou menos 0 mesmo adverte Robert Lidell em Some Principles of Fiction: “e no sio necessérias aqui espe- culagdes metafisicas sobre a natureza do Tempo”.* Seja-nos en- tio permitido nfo apenas isolar, de modo um tanto arbitrétio, fespago € tempo, como manipular, com ligeireza, palavras digni- ficadas — sacralizadas, dirfamos — por um solene passado n tafisico. Havendo, desde sempre, cesafiado os fil6sofos, adquire 0 problema do tempo, neste século, uma importincia dramstica, ate- tando visivelmente outros dominios do espirito. Experiéncias’po ticas recentes opéem-se 4 apreensio linear e esculturas movemse, saltando decididas para uma insergdo mais funda no tempo. A ficcio tem sido particularmente sensivel a0 seu fascinio — e, nao menos, os estudos literdrios. Decerto, ha correlages muito claras entre o tempo ¢ a Lite- ratura, arte temporal, especialmente no recinto da arte narrativa, ‘onde tanta importincia assumer os conceitos de erescendo, adia- mento, salto, ritmo, anticlimax, climax, troca de tempo, retros pecto e vidéncia, todos ligados estreitamente ago, no se de- vendo esquecer ‘a importincia do chamado tempo. psicoldgico. 4 Niio esquesamos, por exemplo, as obris construidas como que fora do fempo eas iluminades por outta espéeis de tempo, mitico ou. eligioso, como a tetralogia de Jose, de Thomas Mann. Ve José, enguanto uve fs girs de Eliezer, a infinda neropectia da: figuras do mestre, "que diriam todas "ew pela boca da presente mani estagso.” (O Jovem José p3sie) Pint O Tempo ¢ 0 Romance, p 20. Int Some Principles of Fiction, p. 59. CONCEITO H rossiBpADES 65: Todos esses recursos da arte de contar exigem do escritor discer~ rnimento e dominio dos meios expressivos. ? Mas também 0 espago proporciona grandes possibilidades de estudo, variadas ¢ atraentes. ‘Observa-se que em algumas narrativas’o espaco & rarefeito © impreciso. Mesmo entio — excetuada, evidentemente, a even- tualidade de inépeia —, hé designios precisos ligados ao problema | espacial: intenta-se, por um lado, concentrar o interesse nas per- |* sonagens ou nas motivagdes psicol6gicas que as enredam; pode | set também que se procure insinuar — mediante a rarcfacio © | » juaprecisio do espago — que essas mesmas personagens e as | relagoes entre elas sao mais ou menos gerais, eternas por assim | dizer, carentes, portanto, de significado hist6rico ou sociol6gi de significado’ circunstancial. Entretanto, inclusive neste caso, alcangam em geral vibragao mais intensa aquelas obras onde 0 fespago atua com 0 seu peso. A impossibitidade de ingresso num determinado espago, espago que ocupa 0 centro do romance exa- tamente por ser inacessivel — e sem 0 qual nfo existiria a obra € 0 tema central de O Castelo, de Franz Kafka. A presenga inclutivel desse espaco, 0 castelo, em nada restringe a impor- Ancia simbélica do relato, seu cardter a-hist6rico, ndo-circunsta cial, “Nao se trata de um castelo ou de um verdadeiro dominio feu- dal, mas sim de uma grande simbologia. Imediatamente 0 proprio K. tomar conhecimento disso, integrando-se assim mesmo nessa totalidade mitica, pois & assim que © homem pode situar-se face A realidade global.” * Também Herman Melville confia 4 vastidao marinha, a0 espago concebido numa de suas expressdes mais grandiosas, a fungdo de sugerir a extensio da luta entre homem € 0 seu destino. Que pode haver de mais empolgante, esse an- gustindo Capitio Ahab cruzando © oceano a procura’de Moby Dick, fazendo do encontro com a baleia branca a Gnica razio de viver — e que outro cenario poderia conferir mais densidade altura ao seu drama? Toda uma em de romance de aventuras vai buscar no mar forga e mistério — e sio ainda © mar e os navios mercantes 0 grande tema de Conrad. O esforgo de Lord Jim no sentido de reconstruir “penosamente © respeito de si mesmo numa longa vida de perigo, luta, dedica- (© autor, numa experiacia realizada em 1972 na Faculdade de Filosofia, Citncias € Letras de Marilia (SP), orienfou alguns grupos de alunos, que ‘screveram, conjuntantente, varias narratives. Fol, Gm toot O8 C4805, 0 tempo, © problema que os inexperientes (ndo, porém, malogrados),contstas tiveram mals difeuldade em solucionar. Seus relatos, nas primeiras reda- ‘Ses, Imablizavamse ou voavam, faltandorthes fluéncia e harmonis E'Roxes, Sérgio. Front Kafka ea Expreso da Realldade. p. 107 SCOSCOOHOSHSHOSHHHOHOHOOHOSCHO HOSES OEHOE 66 CAP, 1 — ESPAGO ROMANESCO glo", prende-se a0 naufrigio do Patna, onde sogobram i Tente seus sonhos de heroismo. Jean Paris, que viria a est dar, em ensaio brilhante ¢ rico de poesia, 0 espago € 0 olhar nas artes plisticas, 9 salienta a importincia do labitinto na obra de James Joyce. © mesmo tema, segundo Jean Pais, impregnaria foutras obras mestras: “Como a’ viagem, a grande obra, a busca do Graal, 0 Labirinto propée uma alegoria do destino’ humano. A esse titulo, figura, senao diretamente, a0 menos sob forma de plano, de encadeamento das peripécias, em todos os romances ‘que, de Simplicissimus Montanha Mdgica, de Wilhelm Meister a0 Retrato do Artista Quando Jovem, descrevem a infancia, a ‘educagio de um herbi.” " Conhece-se, por outro lado, a impor- tincia’ do labirinto, dos espelhos e outros elementos espaciais na obra de Jorge Luis Borges, temitica que muitos tiulos seus evidenciam: As Ruinas Circulares, A Biblioteca de Babel, O Jar- dim das Veredas Bifurcadas; Abenhacam el Bokhari, Morto no sew Labirinto; Os Dois Reis e os Dois Labirintos. Swift conste6i As Viagens de Gulliver a partir de um vinculo constante entre Gulliver e 0 espago, obtendo variados efeitos de singular Inventa_ paises fantisticos, orientando a fantasia no sentido de 4questionar idéias e problemas da sua época. Liliput, Brobdingnag, Laputa, Baluibarbi, Glubbdubrid, o Pais dos Houyhnhms, eis uma toponimia tao extravagante ¢ inesperada como os lugares nomea- dos, Espago imaginério, igualmente importante e ins6lito, mas de natureza bem diversa 0 de Lewis Carroll. As aventuras de Alice efetuam-se em paises, do Espelho ou das Maravilhas: ai, ha animais que falam, cartas de baralho adquirem existéncia humana, reinam aparecimentos ¢ desaparecimentos, instauram-se transformagies (sibitas metamorfoses) como lei constante do ‘mundo e que, inclusive, nfo poupa a personagem, como se a conta- rminasse o espaco: “Ela continuava a crescer, a crescer, ¢ logo teve de ajoethar-se no assoalho: um minuto depois, jé nao dispunha de lugar para manterse de joclhos ¢ tentava deitar-se, com um joetho’ contra a porta e 0 outro brago dobrado por cima da ca- boca. Mesmo assim, ctescia ainda e, como iltimo recurso, pos ‘um brago para fora da janela e um dos pés na chaminé, e disse fa si mesma: Mais do que isto, no posso fazer, acontega 0 que acontecer.” ? Em José J. Veiga, um elemento aparentemente Cawowe, Antonio, Tese ¢ Anitese. p. 67. oI: EBipace. et le Regard. In: James Joyee par tucméme, p. 106. 12 Ins dices Adventures n Wonderland. p. 126 CONCEITO & possimunanrs 67 ordindrio (fabrica, méquina, comunidade alienigena mantida & dis- tincia) e que algum fator faz parecer fantéstico, impregna © do- mina a narrativa: A Hora dos Ruminantes; 0 conto-titulo de A Maquina Extraviada; Sombras dle Reis Barbudos. Se obras fantasticas ou miticas beneficiam-se do espago, utilizando-o cortio elemento dominante, pode-se prever sua importincia em narra: tivas de cunho declaradamente realista. Vidas Secas, de Graci- iano Ramos, sendo romance social, é também tim romance do espaco; seu tema dominante é um certo espago antes habitavel € cuja transformagio expulsa as personagens, triturando-as, Néo s6 0 sertio © a seca expulsam 0 homem, também uma cidade ‘magnificente pode tornar-se ameacadora, como em A Morte em Veneza, de Thomas Mann, John dos Passos escreve a trilogia U.S.A, (Paraleto 42, 1919 e Dinheiro Grado), afresco ambicioso, onde as personagens — construidas, aliés, com solidez —, inca. pazes de permanecer num s6 lugar, planejadas para ndo perma- hnecer num s6 lugar — deslocam-se continuamente de um lado a outro dos EE.UU., alcancando inclusive regiées onde a nagio americana exerce influéncia — ¢ 0 projeto visa a aprender no 6 as cidades € as estradas americanas, mas o seu clima politico econdmico. De modo algum procuramos, com os exemplos dados, esta belecer mesmo de longe uma tipologia do espago; eles constituem uma ilustragio das suas possibilidades; reforgam, simultaneamente, ‘a importincia que pode ter na ficgio esse elemento estrutural € indicam as proporgées que eventualmente alcanga 0 fator es- pacial numa determinada narrativa, chegando a ser, em alguns casos, 0 mével, o fulero, a fonte da agio. Lembraremos ainda a transcendéncia do espago na Odisséia, anunciada a partir da invocagao. A circunstancia de ocupar-se 0 Aedo, na Miada, da Guerra de Tréia, ja indica a presenca que teria no poema o espaco: luta-se pela defesa ou conquista de um espaco definido. Enéias, vencido, partiria em busca de um lugar onde reedificaria a Cidade © 0 Reino. Toda uma temitica do espago, sustentando © pocma virgiliano, O mesmo Virgilio, antes de ceder o lugar Beatriz, guiaria Dante Alighieri na sua peregrinagio. A mais imbiciosa concepgio literdria do espaga, o espago sobrenatural, abrangendo 0 Inferno, © Purgat6rio , ‘afinal, o Paraiso, surge ‘ao romper o século XIV. Os “mares nunca dantes navegados” Sio 0 espaco privilegiada fia épica de Camdes, “O meio — como diria 0 hingaro Jean Hankiss"? —, onde se move o her6i de 13 "La Litérature et Ja View" In: Boletim de Letras. 1961, 0.9 8. £10 SOSSHSSHSSSHOHHOSSEHESCHHSSHHOSHEHHEHEOEL 68 car WW — wsPAGO ROMANESCO romance ou de um drama, no se limita a contribuir para 10 herdi, suas origens espirituais, suas ages e suas reagbes. Jpa-se, (...) pata ocupar, na hierarquia dos fatores, tum posto mais elevado do que Ihe seria assegurado pelo seu ca riter de suporte, de atmosfera, de verdadeiro pano de fundo.” Este 0 pensamento de Leon Surmelian, cuja visto é também a de um ficcionista: “O cenétio (setting) pode ser 0 mais impor tante elemento numa histéria, como em Madame Bovary, ¢ existe boa prosa narrativa que € antes de tudo descricao cuidadosa.” "" Jé Robert Lidell toma posicdo diferente: “E tempo de inves- tirmos contra elemento descritivo na literatura.” Ainda: “Na ficgdio, que mostra personagens em aco, 0 cendrio teré provavel mente um cardter mais negativo que postive.” ** Concede, em Some Principles of Fiction, apenas uma pigina ao background, ‘quase toda de transcrigSes: a primeira, de Remy. de Gourmont, diz que “o cenério de um romance €'coisa de bem pouca im- portancia”. 7 Ora, € esse controverso © (pode Robert Lidell contestar?) amplo aspecto da arte romanesca que, veriamente visto, inven- tado e tratado pelos criadores, permanece ainda — ao contririo do que se observa em relacio ao tempo —, insuficientemente iluminado por um esforco analitico. A caréncia, entretanto, tende ser suprida e Gérard Genette encoraja-se mesmo a indicar que, no plano da ideologia geral, um fato parece certo: “é que o des- crédito do espago que tio bem exprimia a filosofia bergsoniana cedeu hoje lugar a uma valorizacio inversa, a qual diz A sua maneira que o homem prefere 0 espaco ao tempo.” "* Mesmo no romance de Proust, afetado a partir do titulo geral pela realidade bergsoniana do tempo, uma realidade intuitivamente apreendida pela sensibilidade (oposigdo a0 tempo da inteligéncia conceptual, abstrato), comega-se a descobrir a importincia do espago. lo, FECL, da USP. p. 155, citado por Coro, Nelly Novaes © Entino da Literatura. p. 189. Tn: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness. p. 37. In A Treatise on the Novel. p10 Liven, Ro Op. it, p. 111-12. In: Some Principles of Fiction. p. 107. Op. elt. p. 107, Sobve a paisagem ideal, ver Cunmius, F. R. Literatura Européia ¢ Idade Média Latina, pe 190 ef segs. A evita Podtigne. 1972, © 10, publica ‘bm interessante extrato do fvro de Joseph Frank. “La Forme Spaciale dans La Literature Moderne." In: The Widening Gyre, Crisis and. Mastery in Modern Literature, p. 244 et seqs.-Atese de Joseph Prank, das. mais Sstimutantes, die qué * literatura’ contemporinen evolui no sentido” da CONCEITO F PossiBLADADES 69 Ora, como deveremos entender, numa narrativa, 0 espago? Onde, por exemplo, acaba a personagem e comega o seu espaco? A separagio comeca a apresentar dificuldades quando nos ocorre que mesmo a personagem & espaco; © que também suas recor- dagdes e até as visdes de um futuro feliz, a vitéria, a fortuna, flutuam em algo que, simetricamente ao tempo psicoldgico, desis imos como espaco psicoldgico, nio fosse a adverténcia de Hugh M, Lacey de que aos “denominados eventos mentais (percepgSes, Tembrangas, desejos, sensagdes, experiéncias) no podemos, em nenhum sentido habitual, atribuir localizagao espacial.” ** Exce- tuando-se 0s cas0s, hoje pouco habituais, de intromissiio do nar- rador impessoal mediante o discurso abstrato, tudo na ficgio su- gere a existéncia do espago — € mesmo a feflexdo, oriunda de luma presenga sem nome, evoca o espago onde a proferem e exige uum mundo no qual cobra sentido. Temos, pois, para entender © espago na obra de fiegio, que desfiguré-lo um pouco, isolando-0 dentro de limites arbitrérios, “Descansou os embrulhos em cima da mesa nua — Ié-se num conto de Marques Rebelo —, ocasionando um vo preci- pitado de moscas, dobrou 0 jornal ‘com cuidado, obedecendo as suas dobras naturais, e escovava 0 chapéu, preto e surrado, quan- do Dona Veva, pressentindo-o, perguntou da cozinha: “— Voeé recebeu, Jerome? forma espacial”. Cortesponderia. a forma espacial, a uma tica extre- temporal e seria o resultado de tima susénein de-harmonia entre 0 criador 0 mundo. Estuda, sob esse. ponto de vista, Ezra Pound, T. 8, Ella, Proust, Joyce e um romance praticamente desconhecido no' Brasil, Night- wood,’ de Djuna Barnes. Merecem toda a atencio os ensinamentos. de Antonio Candido, no seu enssio “Da Vinganga” (Tese ¢ Amiitese. p- 1-28), fonde, analisando O Conde de Monte Cruvo, mostra a” importhncla da alr, dos protundezas no Romani. “Lema, ese mesmo esa, (que Proust desejava escrever um ensalo sobre os Nigares elevadoe not omances de. Stendhal, o que denuncia claramente 0 seu inteesse pelo problema espacial no romance, Diz 0 narrador a Albertine, em. Prisi hetra: "voce veria em’ Stendhal um certo sentimento de altude ligando-se Aida esprital: 0 lugar clevado onde Julien Sorel fica. prisioneira, forre no alto ds qual esti encateernio. Fabricio, 0. campanério onde 0 Padre ‘Barnés se ccuipa de astologia ¢ de onde Fabricio langa uma vista de thos to Bonita” (p. 323.) O leltorinteessado nas possibiidades que ofe- fece estudo do expago na ficgdo, encontrard um. exempl fstudo de Antonio Candido, a quem o assuato parece fase $30 do Espago" Ini Revitta de Levras. Asis, F- F.C. Ly de Ass Anulise Antonio Candilo. a correlagio. faneio ¢,do comportamento em L'Astomoir Sous A Linguagem do. Fxpara edo. Tempo. o e e eo e e e e e oe s e e e e e e e e e e e es e e e e s e e e oe e oe - 70. car. w — EsPAGO ROMANESCO filha, respondeu pendurando o feltro no cabide japonés, que atulhava o canto da sala, por baixo duma tri- cromia, toscamente emoldurada, representando 0 interior dum sub- ‘marino inglés em atividade na Grande Guerra." = Eis um setor do espago com petsonagens € situagio, © ambiente pequeno-burgués, pobre de adomos, com sua tri- cromia ordinéria e a sala tio exigua que ‘um cabide de bbambu parece demais, tudo ai esté. O delineamento do espago, processado com célculo, cumpre a finalidade de apoiar as figuras © mesmo de as definir socialmente de mancira inditeta, como adiante veremos. Surge a sala, pressente-se a_cozinha, divisa-se © homem e calcula-se aproximadamente um intervalo, uum espago, entre ele e a mulher que o interroga. Essas dduas figuras (personagens) e a casa modesta onde se encontram (espago), ao mesmo tempo em que se optiem, completam-se. A divisio, porém, entre espago € personagem € realmente nitida ou deixa margem a dividas? Traz 0 homem alguns embrulhos, jornal ceusa chapév, Podemos dizer, ao vé-lo, que 0 jornal, os embrulhos 0 chapéu fazem parte do espaco? Compiem, nesse instante, 0 ppersonagem, completando — material, social ¢ psicologicamente — a sua figura, Jomal e embrulhos ainda podem ser ocasionsis; 0 chapéu pertence ao personagem e concorre para a sua caracteriza- gio. (Nao conhecia D. Casmurro “de nome e de chapéu” seu com- pankeiro de trem?) Aquele mesmo chapéu, uma vez pendurado no abide de bambu japonés, pertencendo ainda a0 personagem, as- socia-se ao mével ¢ passa a integrar o espago. Hé, portanto, entre personagem e espaco, um limite vacilante a exigir nosso discerni- mento, Os liames ou a auséncia de liames entre 0 mesmo objeto € a personagem constituem elemento valiso para uma aferigio justa. em Clarice Lispector encontramos (“Amot", conto inet do em Lacos de Familia) um dos mais fascinantes exemplos de ser hhumano com fungio espacial: “0 bonde se arrastava, em seguida estacava, Até Humaité ti- nha tempo de descansas. Foi entZo que olheu para o homem para- do no ponto. ‘A diferenca entre ele € 0s outros & que ele estava realmente parado, De pé, suas mios se mantinham avangadas. Era um cego, tn: Oscarina. p47. CONCERTO & rossimumaDes TH “O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desei ga? Alguma coisa intrangii ‘cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.” 2 Quando toma o bonde, Ana parece estar executando um ato inconseqiiente: uma cena habitual na classe média, uma mulher trazendo as suas compras. O leitor atento ird talvez considerar a seguir um erro imperdodvel da contista, a auséncia de qualquer alu- so aos outros passageiros do bonde. Ana é como se seguisse num bonde fantasmagérico. Quando ela vé o cego € que percebemos por que tomou 0 bonde; e por que o trajeto, até agora, realiza'se um mundo desabitado. Viesse a pé ou de automével, poderia deter-se a vista do cego que masca chicles, quando a breve cena, breve e importante, tem de ser rapida, para que essa fugacidade comunique certa impressao de magia e de incerteza; uma aparigdo. © cego visto na rua Jogo fica “atrés para sempre” e, simples coisa vista, associa-se ao bonde, as ruas largas ¢ a0 vento dmido que anuncia “o fim da hora instivel". Pela sua impessoalidade, pelo seu cariter de coisa, inscreve-se no puro espaco, um elemento a ‘mais no espaco hostil em que, por algum tempo, Ana se move, an- tes de apagar “a chama do seu dia.” E se nfo vemos seres vivos no bonde no trajeto, é para ressaltar a figura do cego, que assim nos surge solitéria e como ampliada, coisa ocupando o vazio, numa paisagem sem habitantes visiveis. Inversamente, a tentativa de humanizar seres inanimados no (5 subtrai A condigao de elementos espaciais, como no conto de Gustav Meyrink, citado por Wolfgang Kayser, “As Plantas do Dou- tor Cinderela”, em que 0 narrador, indo por um subterrineo, vé trepadeicas “com veios cor de sangue” e das quais surgem centenas de olhos: “Eram olhos de todos os tamanhos ¢ cores imaginaveis, (...) E parecia que todos eram partes arrancadas de corpos vivos, cengastadas com uma arte inconcebivel, privadas de sua alma huma- nna e rebaixadas a um crescimento vegetativo. Quando, aproximan- do-me, iluminei esses olhos, vi claramente que viviam, pois as pupi- las logo se contrairam.” ** Trata-se de um conto inscrito claramente na tradigdo negra, mas 0 processo — com fungdes bem diversas e ‘num grau atenvado — ¢ freqiiente, como em Lima Barreto: “Con- siderei também a calma face da Guanabara, ligeiramente crispada, ‘mantendo certo sorriso simpitico na conversa que éntabulara com a grave austeridade das serras graniticas, naquela hora de efusio Lagos de Familia. p. 25 i: Lo Grotesco. ps 1, SCOHSKCOCHSSHHOOHHSVOHSHHEHOHHHESEOSEEEE 72 car. 1 — FsPago ROMANESCO ¢ confidéncia.” * Ou como no capitulo XII de Dom Casmurro: “Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmu- rou de cima de si que nao era feio que os meninos de quinze anos landassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contri adolescentes daquela idade no tinham outro oficio, nem os c: outra utilidade. Era um coqueito velho, e eu eria nos coqucitos yelhos, mais ainda que nos velhos livros. Péssaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da ‘mesma opiniao. Podemos, apoiados nessas preliminares, dizer que 0 espaco, no romance, tem sido — ou assim pode entender-se — tudo q intencionalmente disposto, enquadra a personagem € que, inventa” riado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela’ persona~ ‘gem, sucedendo, inclusive, ser constituido por figuras humanas, en- tio ‘coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para zero." Difere, portanio, nossa compreensio do espago, da de Massaud Moisés, para quem no “romance linear (0 romfintico, 0 realista ou 0 moderno), © cenério tende a funcionar como pano de fundo, ou seja, estatico, fora das personagens, descrito como um tuniverso'de seres inanimados e opacos.” = Deve-se ter presente, no estudo do espago, que 0 seu horizon- te, no texto, quase nunca se reduz a0 denoiado. Por vezes, claro, tende a fechar-se, como nas histérias policiais e de horror, onde proliferam as ilhas, as mansbes solitérias, 0s pogos, os ealabougos, 6s subterrdneos, 05 quartos fechados, tudo indicando a existéncia de um seccionamento radical entre 0 mundo da narrativa e o mun- do da nossa experiéncia. O horizonte do subterrineo de Gustav Meyrink, por exemplo, com as suas pupilas florais, nao o ultrapas- sa: este subterrineo é um espaco fechado, monstroso, ‘nico, her- miético em todos os sentidos. A sala de Marques Rebelo, 20 con- trério, inserindo-se no mundo conhecido ena meméria que possu mos do mundo, transcende 0 que registra 0 texto. Eis 0 que lemos vemos: uma sala e, fora de foco, suscitada por uma alusio tio branda que nos infunde a idéia de distancia, a cozinha, Nao se pode dizer que a imagem casa esteja fora do texto: implicita, zona pouco iluminada, apenas pressentida, orla do nomeado, quem nio 24 In: Gonzapa de Si. p. 39. 35 Dizemos que tem sido © no que é Move constantemente © escritor a necessidade de romper as. normas, de contestar 0 que. parece assentado, No seria, por exemplo, desttuida de interesse uma narrativa na qual 0 espago se constulsse a partir da personagem, Tal arrativa, alls, $4 tem fte modelo no Génesit ¢ em outros mitos Cosmogdnicos, tn Guia Pratico de Andlise Litera. p. 103, wanes 79 @ entrevé? Elastecem ainda os seus limites outros indicios apa rentemente ociosos. © do precipitado das moscas, o estado do chapéu escovado pelo homem, a tricromia e a sua moldura abrem © cenério ¢ revelam-nos bastante sobre os arredores da casa, sit dda em baitro pobre, de condigées sanitérias no ideais. O desen rolar do conto vai confirmar tudo isto (e hi ainda, antes do trecho transcrito, um carcomido relégio de parede, cujas paneadas soam como um ranger de ferros velhios), mas 0 que transcrevemos & su- ficiente. Os limites, fornecidos pelo texto, do espaco fisico, na ultrapassam a rigor 0 que acima registramos; para além do bairro, nada mais vemos, Dispensivel acrescentar que os poucos méveis, nomeados — mesa nua e cabide de bambu japonés —, proliferado- res de espagos ainda mais potentes que a sala e a cozinha, aludem a0 restante da mobilia ou a nomeiam em siléncio, quase como se pudéssemos vé-la. “Necessitamos pormenores, que nos seja apre- sentada uma amostra do cenztio, objeto, mével, destinados a exer- cer uma fungao de insignia. Outras coisas ainda so insinuadas nesse breve trecho (por si nal, um caso dos mais simples) e no se deve concluir que 56 a anilise as revele. A andlise, aqui, limita-se a ordenar ¢ a especifi- car 0 que 0 leitor apreende com a percepgio desarmada, Situam- -se as personagens do conto na periferia de alguma cidade © por- tanto da sociedade; pessoas de reduzidas posses, desconhecem ou no tém acesso ao estético, embora flutue em suas almas um anseio restrito de beleza; isto diz a tricromia do submarina, que nos situa no tempo (nao muito depois da I Grande Guerra, definida ai pela auséncia mesma do ordinal, obrigat6rio depois de 1945) e que su- gere talvez algum desejo vago de evasio ou de um destino menos insignificante; falta nesse espago qualquer nota de alegria, para 0 que concorrem os gestos do homem, dobrando cuidadosamente 0 jornat (expresso do seu respeito ante esse liame entre a sua e3 ‘ncia suburbana e 0 mundo) e escovando o chapéu “preto e surra- do”, alusdes & austeridade da sua vida, a hibitos de vestudrio (in- dicio temporal atenuado) e & necessidade de conservar os objetos de uso pessoal, evidentemente pouco numerosos. Observe-se que tudo ai converge, harmonicamente (persona- ‘gens, ago, espago e mesmo tempo, um tempo vagaroso, sugeride Pelo verbo “descansou”, ao invés, por exemplo, de “jogou”, e pela 2 Buron, M. Repertoire Il. p. 45 74 car. I — ESPAGO ROMANESCO locusio “com euidado”), * para estabelecer, desde 0 inicio, a idéia geral do conto, Objetiva o escritor apresentar dois quadros con- liguos de pobreza: os hébitos domésticos de um pequeno funcio- nitio a desolagio da mulher apés a sua morte ilustrando assim © desamparo e, em conseqiiéncia, 0 caréter sombrio de um deter- minado setor da sociedade. Sera correto dizer que as indicagbes cénicas de Marques Re- belo nos conduzem a um espaco social? Menciona Nelly Novaes Coelho o ambiente natural como equivalente & paisagem, natureza livre; 0 ambiente social seria a natureza modificada pelo homem: casa, castelo, tenda etc. #? Parece-nos, contudo, que se pode fazer dda expresso um uso mais amplo, se bem menos nitido. Como no- ‘mearfamos, senio assim, certo conjunto de fatores sociais, econd- rmicos ¢ até mesmo histéricos que em muitas narrativas assumem extrema importincia e que cercam as personagens, as quais, por vvezes, s6 em face desses mesmos fatores adquirem plena significa- sio?'A que se refere, por exemplo, Francisco de Assis Barbosa, quando diz nao ser possivel “proceder-se & revisio da nossa hist6= fia republicana, do 15 de novembro ao primeiro 5 de julho", pres- cindindo da obra de Lima Barreto? Ao tempo ou a0 que propomos denominar espaco social? A nocdo de um espaco assim compreen- dido parece-me alids bem stil quando apreciamos romances co- ‘mo Isaias Caminha, Policarpo Quaresma ou Numa e a Ninfa. Con- fronta-se 0 futuro escrivlo com um espago social caracterizado com muita preciso (ao mesmo tempo que 0 espaco fisico) € no estaremos longe da verdade se dissermos que, nao obstante a it portincia da paisagem, maior € a importancia — e também o efei- to sobre Isaias — do espaco social. A luta de Quaresma, travada contra a terra, € ordinariamente empreendida contra entidades ‘menos concretas: circunstfncias sociais, econémicas ¢ hist6ricas nas quais est mergulhado, A Revolta da Armada, tio importante para 0 seu destino e essencial no plano do romance, cria um cené- rio especifico, inconfundivel, no construido com volumes, linhas, cores, mais respirdvel e que nos parece necessério precisar. Certo espago social, ndo a totalidade de um povo, mas © mundo da po- litica como expresso desse povo, cerca os titeres de Numa e a Ninja. A categoria das edificagies existentes no local onde vive ‘ou se move a personagem pode indicar o seu espaco social; e, nes- 5° Lembra Gérard Genette que a designagio mais sdbria de uma ago pose. ter algum cardter descriivo ¢ que “nenhum_ verbo € inteiamente IKento de tessondncta descriuva.” (Figures Ip. 57.) "tn: 0 Ensino da Literatura. p. Sh CONCTIFO # rossimu wanes 7S te sentido, aproximamo-nos do conceito de Nelly Novaes Coelho, Dirfamos, ainda como exemplo, que 0 cortico, em Aluisio Azevedo, € espaco, simplesmente; mas 0 veremos parcialmente se no 0 en~ tendermos, pelo estilo de vida em que implica, com todo um qua- dro de habitos, de relacionamento humano, de perspectivas etc também como éspago social. Tanto pode o espaco social ser um: Epoca de opressio como o grau de civilizagao de uma determinada rea geografica. Outras tantas manifestagGes de tal conceito podem ser indentificadas na classe a que pertence a personagem e na qual cla age: a festa, a peste ou a subversio da ordem (manifestagdes de rua, revolta armada). (O espago social, entretanto, no se confunde com a atmosfe- ra. Estando a nogio de atmosfera associada ao espaco ¢ denotan- do, inclusive, 0 ar que respiramos, tende-se a concebé-la, no estudo da fiegdo, como uma manifestacéo do espago, ou, no minimo, como sua decorréncia. Compraz-se Lima Barreto em descrever aspectos do espago social durante a Revolta da Armada; mas uma atmos- fera de magia, de irrealidade, que defrontamos na noite enluarada, quando Floriano Peixoto, em plena Revolta, encontra Policarpo ‘Quaresma no quartel, Ji em “Penélope”, de Dalton Trevisan, dra- ‘ma de suspeita e cime anacrénicos, vivido por um casal de velhos, © espago € bem pouco significativo, surgindo apenas como pretexto, algumas vezes, para manifestagdes do estado de espfrito do velho: “Afastou a cortina, descobriu na sombra do muro o vulto daquele homem. Ficou ali, a mio trémula na cortina, até 0 outro irse embora.” “Reconstitui os passos da mulher pela casa: se os méveis, fém pS ou no, se a terra nos vasos de flores esti molhada ou seca...” 5° Concentra-se no texto, calculada com sabedoria, uma almosfera crescente de angistia, nascida exclusivamente de alusGes ‘a0s pequenos gestos do velho — as suas palavras, poucas, nada dizem — e para a qual, ao contrario do que observamos em outro conto do autor, “Na Praga”, nio concorre 0 espaco. No exemplo de Clarice’ Lispector (""Amor"), a atmosfera do conto, igualmente opressiva, € obtida por intermédio da persona- gem, mediante uma subjetivagio do cenério. Bascia-se 0 conto nas relagSes de Ana com o exterior. Isto num grau tio elevado que ‘© horizonte do espaco, pode-se dizer, coincide com 0 mundo. Re- conhecemos a cidade e © mundo natural, para nés familiares, ¢ nada ignoramos, conquanto pouco se diga, sobre o nivel social de Ana e 0s problematicos valores da classe a que pertence, mas essas mesmas coisas, mediante recursos verbais sabiamente agenciados, 80 In: Novelas Nada Exemplores. e oe oe e e e e e e e e e e e es e eo e e e e e e e e es e es e e e e e e r 76 car. Ww — ESPACO ROMANESCO revestem-se de estranheza, com 0 que 0 espaco & invadido pelo simbolo, pela miagia, pelo pesadelo, a tal ponto que o Jardim Bo- Unico, “onde vitérias-rédias boiavam monstruosas” e a “decompo- jo éra profunda” nio esta muito longe do subterrineo de Mey. rink, com iis suas pupilas vegetais. As coisas que cercam Ana frutas, dala, tulipas, vit6rias-régias, pequenas flores espalhadas nna relva'— sio quase todas prestigiosas, ligadas, inclusive, aos topoi do bosque ¢ do lugar ameno. #1” A personagem, atingida € de- sorganizada pelo encontro com 0 cego, transmuda-as, segregando em torno de si, a partir de elementos naturalmente apraziveis, uma ‘tmosfera de horror: “O Jardim era to bonito que ela teve medo do Inferno.” *? J4 em Fronteira, de Cornélio Penna, a atmosfera de mistério ¢ alucinagao emana igualmente do espaco (espago na- tural e espago doméstico, a paisagem acidentada de Minas © os pesados méveis coloniais), da fabula ¢ da mérbida constituigio psi- coldgica da personagem que narra os acontecimentos — ou 0 modo como reage ante eles. ‘Antonio Soares Amora, em estudo sobre Tracema, escreve que, além da “pintura de seus elementos naturisticos (a paisagem, 0s fendmenos metedricos, os animais)", “o desenvolvimento da ago do romance” e “a concepcio de seus caracteres” realizam-se “em fungo unicamente da obtengdo de uma atmosfera poética”. * Chega a sugerir que a contribui¢ao do espaco para o estabelecimen- to dessa atmosfera é secundaria, quando diz que “a natureza é sem- pre elemento to importante na formacdo da atmosfera lirica do Fomance, quanto a agio © os caracteres que ela envolve © plasma.”"*4 Diremos, -finalizando, que a atmosfera, designacZo ligada a idéia de espago, sendo invariavelmente de carster abstrato — de angistia, de alegria, de exaltagio, de violéncia etc, —, consiste em algo que envolve ou penetra de maneira sutil as personagens, mas no decorre necessariamente do espago, embora surja com freqiién- cia como emanagao deste elemento, havendo mesmo casos em que © espago justifica-se exatamente pela atmosfera que provoca, 81 CC. Cunnivs, E.R. Literatura Europtia € Idade Média Latina, p. 202 Se Titpecton, Cla ©, Lagos de Familia 23 “race itt Romance de Atmostera tismo mo Brasil pe 12 AU Aadama, Antonio Sostes. Op. eit. p. 128 In: Classicinmo ¢ Roman CariruLo v ESPACO ROMANESCO E AMBIENTACAO. Ambientacio reflexa. Ambientagio me mindcia, — A. perspectiva, ‘Tentamos, no capitulo anterior, identificar 0 espago no ema- ranhado da obra literdria e, dentro’ do possivel, tormclo familiar a0 Ieitor. * Acentuavam, os exemplos apresentados, sob que varia- das formas pode o espaco surgir nos relatos e os graus de imp tancia que assume. Outra € a perspectiva em que agora nos tuamos. ( estudo de uma determinada personagem ser4 sempre incom- pleto se também néo for investigada a sua caracterizagdo. Isto € 105 meios, 05 processos, a técnica empregada pelo ficcionista no sentido de dar existéncia a personagem. Pode-se dizer, a grosso ‘modo, que a personagem existe no plano da hist6ria e a caracteri- zagio no plano do discurso. A personagem diz respeito a0 objeto cm sis a caracterizagéo, & sua execugio. Esta a distancia que sub- siste entre espaco e ambientacao. Por ambientagdo, entenderiamos © conjunto de processos conhecidos ou possiveis, destinados a pro- vocar, na narrativa, a nogdo de um determinado ambiente, Para a aferigao do espago, levamos a nossa experiéncia do mundo; para ajuizar sobre a ambientacio, onde transparecem os recursos ex- pressivos do autor, impde-se um certo conhecimento da arte nar- rativa, Conquanto a apreensio simultinea da imagemt seja em grande parte ilus6ria, exigindo © que poderiamos chamar uma leitura (nao linear, mas fragmentézia ou sinuosa), o certo & que © quadro, a sala, a paisagem, apresentam-se aos nossos sentidos como uma tolalidade, Atenda-se ainda a circunstdncia de que toda contempla- 20 € um fenémeno nada simples ¢ infinitamente matizado: diante 2 Problema delicado, em trabatho que exit certas premissa te6ricas, 0 do Aestinatrio. Comrese 0. isco. de ‘parecer. demasiado explicto a0 litor informado:_ ou obscura’ a0. letor:pouco.afeito 3 matéritatada, Nossa fenuéncl, agi, € pela. primeira, alternatv 7B. CAP. V — BSPAGO ROMANESCO E AMBIENTAGO Io, 66 a visio 6 invocada, mas a intensidade da sua leitura vvai depender do estado de espirito e, principalmente, do nivel cul- tural do contemplador; @ temperatura, o siléncio reinante ou os rruidos, eis também alguns pormenores que poderdo pesar quando observamos uma sala; a leitura da paisagem ¢ incompleta se nao se nota a auséncia ou a intensidade do vento, o odor de resina ou de fumaca, o zumbir dos insetos etc. Apesar de tudo, verifica-se, ante ‘a doaglo da imagem, uma aquisi¢ao imediata e que, mesmo quando imperfeita e parcial, satisfat6ria © texto, a0 contritio, em virtude da sua linearidade, de fronta, se aspira a certo grau de eficigncia, este problema basico: as coisas so, a0 passo que a linguagem flvi, havendo, portanto, entre elas, certa incompatibilidade. Laocoonte, o classico estudo de Lessing, desenvolve precisamente essa idéia, muitas de proposig®es sobre poesia ¢ movimento continuando validas. (Devido & natureza das transformagbes ocorridas desde o século XVIII no campo das artes plisticas, algo do que diz sobre escultura ¢ pintura envelheceu.) “Oa objeios que, eles ou suas partes — escreve 0 fino erudito alemo —, existem simultane ‘mente, chamam-se corpos. Por conseguiate, 0s corpos, cot suas propriedades visiveis, so os objetos préprios da_pintu “Os objetos que, eles ou suas partes, sucedem-se, em geral sao ch: mados ages. Por conseguinte, também as acées so 0 objeto pré- prio da pocsia.”"* Demonstra Lessing, leitor admiravel © contem plador iluminado de obras de arte, manipulando, com penetracio e ciéncia, exemplos variados, este pensamento. Aristoteles, na Arte Retérica, ensinando os meios de tornar 0 estilo pitoresco, reporta se a0 “‘processo usado freqiientemente por Homero © que consiste em animar o inanimado, pela metéfora.” * Lessing, vendo de outro Angulo os métodos do grande rapsodo, sublinha a sua inclinagio pela histéria dos objetos, mais que pela sua aparéncia, Apresenta- -nos Homero muitos dos seus “corpos — refere Lessing — em uma sucessio de instantes”. * Assim, ao invés de simplesmente descre~ ver um cetro, mostra-o primeiro como um verde ramo crescendo na montanha, Tal solugo revela a consciéncia, nada surpreendente rele, do conflito entre linguagem ¢ descricdo, sensivel — mais do {que em qualquer outro campo — no poema épico e, mais tarde, no Tomance, géneros que representam individuos em ago (objetos que se sucedem), por isso distinguindo-se como especialmente favors- Laocoonte 6 de los Limites de ta Pintwa y de la Poesia. p. 125 ‘Retdriea. p. 220 vonte 6 ie Tor Limites de la Pintura y de la Poesia, p. 128 AMBUENTAGKO FRANCA... 79) veis & linearidade da linguagem. Entretanto, Ié-se em Leon Sur- melian, nio pode existir “pure action in a vacuum”: “a moderna historia realista € ago e cenfrios.” > Ou seja: alternam-se ou mes- clam-se, nos relatos, agio ¢ descricao, aplicada esta iltima a0 g&- nero de objetos que, “les ou suas partes, existem simultaneamen- te”. Vai, tal alternincia ou mescla, para dissimular o contraste que 8 narrativa oferece entre motivos dindmicos ¢ motivos estéticos (nem todas as solugées, felizmente, estio em Homero), exigir uma série de recursos, mediante os quais seja possivel, sem’ comprome- ter 0 fluxo dos eventos, introduzir 0 cenério, o campo onde atuam as personagens. Daf o interesse do que denominamos am- bientagio — o interesse dos recursos literarios para estabelecer, nas hist6rias, 0 espaco. A ambientag#o, no que conceme as suas relagBes com 0 desenrolar da narrativa, interessando, portanto, narrador © perso nagens, repousa normalmente sobre trés principios basicos, empre- gados isoladamente ou conjugados. Assim tem infcio a segunda parte do Triste Fim de Policarpo Quaresma, que transcrevemos in extenso: . “Nao era feio 0 lugar, mas no era belo, ‘Tinha entretanto, 0 aspecto trangiilo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte “A casa erguia-se sobre um socalco, uma espécie de degrau, formando a subida para a maior altura de uma pequena colina que Ihe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambus da cerca, olhava uma planicie a morrer nas montanhas que se viam a0 longe: uum regato de guas paradas e sujas cortava-a paralelamente a tes- tada da casa; mais adiante, o trem passava vineando a planicie com a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com casas, de um de outro lado, safa da esquerda € ia ter & estacdo, atravessando 0 regato c serpeando pelo plaino. A habitagdo de Quaresma tinha assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a ‘noruega’, ¢ cra também risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada a desoladora indigéncia arquitetOnica das nossas casas de cam- 1, possuia, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com jane- Tas, © uma varanda com uma colunata heterodoxa Tem-se af um tipo de ambientagao que denominaremos franca € que se distingue pela introduglo pura e simples do narrador. Nio falta sequer, para melhor caracteri2é-la, 0 discurso avaiat6ro, e Jn: Techniques of Fiction Writing: Measure and Madness, p. 36 80. CAP, ¥ — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENTAC dene dest a sbertura do aia (gu apes es dale revetment Tong, como desenvolvimento da pring Cr en ee er maaiobe eqn. cake dha e campo” ena “colunata haerodoxa" por “veres, a ambientagio franca é levemente rmediatal cls resenga Je a OU mals personagens: "Quarema dspi-s, lt {ote enfou aroupa de cas, veto para bblioreca, seo 2 tn ies de stn, dscns, /Fstva num apenas com nls para umf neal todo ek forrado de estan de fer avi peo de de, com gato pata, fra a pie Com os vos de rain tomo" Sepuese aemuneracio Je oak txitcates Tambo jim do major € desert com a aud des SUiedlagdoatemonds *Aeabadoo Jantar fram ver o ari. Fra atv atin nem oa flere sli rar por tales bejrde-rde,palnaedesantiat le? Utd craton simplemente 8 psagen da personage dfarago continua ase onarrador. Matiz, ‘cent 2 biemtagio ca, quando o narrador é também _personagem. Fesnonagemnareson, como cxfeve Tien Todos, petal aes “56 existe em sua fala; ent. no emprego tradicional do ex, "sO existe em nana tas personagens S80, antes de tudo, imagens fefletias nn ‘Since ne cea mma concen Asim, aac apresenar a cst pte de Pep Ouresms sean vino Mp, Ives Irene sable oem, quando cana pene Fs que se descreve, a presenga do ador. Isto porque a 7 or fs Tamente, ‘i cira pessoa, represen- ‘jeividade do nartador i pimita pessoa, tameny Care’ intermupgbes mals fundar do fixo.naralvo. A intense patieipagio de Tsas a ‘aminha ne trecho desc 224 ta: Poticarpo Quaresma. 1 Bantero, 1 Op. cit, 3. hia Buruuvaismo e Paden. p46 AMBIENTAGIO FRARICA segue, estabelecendo uma tensio entre o narrador ¢ a psisagem, ésbate_a eesura que o descritivo impoe ao narrative, levando certo dinamismo a um motivo esttico: "Evoleva-se do ambiente tm peo fame, uma poesia, algama cousa de unificador, a abragar © ‘hen, as casas, montanhas e 0 céu; pareciam erguidos por um 35 pence: mento, afastados © aproximades por uma intliggncia coordenade. Fa que calculasse a divisio dos planos, abisse vales, ecortasse os vas, a fim de agitar viva e harmoniosamente aquele smontoado de cousas diferentes... © aconchego, a tepider da hora, a solenidade do lugar, © erenulado das montanias engastadas no’ céu cOneave, dleram-me impresses varia, fantistica, discordantes © fugidioe avia um brando ar de sonho, e eu fiquel todo peneteado dile** Desereve Isaias sua chegada 20 Rio e a ambientacao franca, quando assim conduzida, aproximase da ambientagio rejlesa, No ensaio entiemeado de notas que publica na revista Pocigue, ww Jeitor minucioso de Zola, Philippe Hamon, procura sistematizat os Processos descrtivos no Naturalismo e, em particular, no romances {de Germinal. Distingue uma série de motivos —- janclasabertas, Passeios, chegadas a um lugar desconecido, olhar maquina, curio, sidade etc. — “cuja funcao & antes de tudo evitar uns certo havo entre descrigio e narraglo, de preencher os intersticios da narrate a, tomando verossincis as inlerrupgdes.”" “Todo o problema do autor realista seré entio transformar essa temitiea Vacia em uve temitica plena.” Quer dizer: em compensar, dentro do possivel, 40 inserir no texto ficcional uma unidade descritva (vasid), a te, dduzida cficdcia da linguagem para a reprodugio do eatatce, mess clando & descrigio elementos dinimicos (plenos). 0 romosce de Zola, onde se processa, programaticamente, uma hipertrofia do deseitivo, prestase a esiulos desse genero, mas vero sesunte ape, nas sob 0 ponto de vista do preterto, €simplificélo em deme, \ Wesfigurando-o. Examinemos um breve trecho de Flaubert. Emme Bovary acaba de receber, de Rodolfo, uma carta de rompimenta (com o que ela retorna, desesperada, a aridez da sua vida)'e rele, S¢ no s6tio para lea As ardésias deisavam cair @ prumo um calor pesado, que the apertava as fontes a sufocava, Arrastou-se al6 a égua-furtoden fechada,trou-Ihe o ferrolho e a luz deslumbrante entrou num jorta “A frente, para Ié dos telhados, a campina estendia-e a per, der de vista, Embsixo, a praga da aldeia estava deserta; as pense "Tn: saiae Caminha, p. 39, 10 "Quest-ce qu'une description?” In: Poctique, 1972. n° 12, p. 473-74 MHaMton. Philippe. “Op. cite p. ABS 82 CAP Vv — ESPAGO ROMANESCO F AMBIENTAGIO «tas calgadas cintilavam, as ventoinhas das casas estavam iméveis; da esquina da rua vinha dum andar térrea uma espécie de ronco de modulagdesestridentes. Era Binet que trabalhava no torno.” 2 O objetivo do realista Flaubert, ai, ndo é tomar verossi- mil a interrupeao e “transformar essa temética vazia em uma temé tica plena.” Emma conhece bem a cidade; ¢ 0 verbo no condicional substituiria o seu olhar, indtil além do mais para as estridentes” do torno. Acresce que © romancista no uti como um élibi para mostrar a aldeia na hora ensolarada. Conjugam: se, nesse passo, fatores de ordem fisica que acentuam o desespero de Emma. Ela refugia-se no s6tio, lugar de isolamento e sobre 0 4qual, enti, cai “a prumo um calor pesado” e sufocante, apertando as sas fontes; fere-a, quando abre a janela, a “luz deslumbrante”; tas imagens denotam'o horror da sua vida nessa aldeia morta € onde, na hora canicular, nem sequer se movem as ventoinhas (0 {que seria, apesar de tudo, uma nota de alegria); 0 rumor do torno irige-se as suas fontes, afligindo-a, como antes o calor que desce das ardésias e acentua, tornando-o mais agudo, um siléncio de que a texto nfo Ila x austnca de figuras humana a campina een dendo-se “a perder de vista” ampliam a solidio da égua-furtada 1a qual, por sua vez, evoca a solido e vazio de Emma. Ha ainda a observar que essa ambientacio, classificavel em principio como franca, na verdade € reflexa: as coisas, sem engano possivel, so percebidas através da personagem. Atento a eficacia da linguagem, reconheceria Flaubert a inutilidade de reiterar, mediante pronom pessoal e os verbos correspondentes, informagées ja implicitas no texto. ‘A ambientacao reflexa é caracteristica das narrativas na ter- ceira pessoa, atendendo em parte & exigéncia, proclamada pelo es- tudioso de Zola, de manter em foco a personagem, evitando uma temética vazia. Sucede, porém, embora mais raramente, que mes- ‘mo o personagem-narrador transfira a outrem a percepgao do am- Diente, como podemos ver em Gonzaga de Sé: Oral... fez cla alongando 0 busto por sobre o espaldar da cadeira até poder ver o céu pela janela que Ihe ficava & vista.” 33 ‘Ou, de modo ainda mais ostensive, na cena em que © narra- dor, acompanhando Gonzaga de Si, descreve parte do trajeto como se Visse com 0s olhos do amigo: spendeu a palavra; e, de acordo com a marcha da caleca, povse a vagar 0 olhar pelos lados. Cont ele, seguia 0s ornatos 12 In Madame Bovary. p. 214 13 In: Gomeage de Si pe 118 AMDIERETAGRO FRANCA... 89 das cimathas, as grades das sacadas; adiante, demorava-se mais a ver um bando de mogas em traje de passeio, postadas & porta de uma casa burguesa. Afastando-se dali 0 carro, 0 sew olhar lento € macio foi parar sobre os bondes que passavam, € 0s transeuntes zna rua; deles resvalou, pela calcada, no ponto em que uma mulher andrajosa dormia ao relento, im6vel, enrodilhada, como uma trou- xa esquecida e por fim, durante segundos, fixamente, insistente- ‘mente, pousou a vista no coche finebre que rodava na nossa frente.” A esta altura, uma pergunta se impie: os casos em que 0 es- ago nasce através do discurso direto, emitide por uma das perso- hnagens (no o personagem-narrador) representam uma modalidade de ambientagio reflexa? Parece ldgica, ao primeiro exame, a res- posta afirmativa, Observemos, entretanto, que, nesse caso, deslo- ¢ea-se o cixo da enunciagao. Assumindo a palavra, pode a persona- gem, por sua vez, empregar — em segundo gra, dirfamos — os ‘mesmos recursos do narrador. A situagao nao se modifica substan- cialmente, sofrendo apenas uma gradagdo, se o discurso direto substituido pelo discurso indireto ou indireto livre. Conduzidas através de um narrador oculto ou de um perso- nagem-narrador, tanto a ambientagdo franca como a ambientagio reflexa so reconheciveis pelo seu cardter compacto ou continuo, formando verdadeiros blocos e ocupando, por vezes, varios paré- grafos. Constituem unidades tematicas perfeitamente identificdveis: © 0caso, 0 desfile, a sala, a casa, a estagio, a tarde, a cidade. Com a ambientagio dissimulada (ou obliqua) '*, sucede 0 contrétio. A ambientagio reflexa como que incide sobre a personagem, néo implicando numa ago. A personagem, na ambientagio reflexa, tende a assumir uma atitude passiva e a'sua reagio, quando regis- trada, é sempre interior. A ambientacdo dissimulada exige a perso- nnagem ativa: 0 que a identifica é um enlace entre espago e a aco. Leon Surmelian designa-a como “o método dramético”: “descri tion blending with the flow of action”. © & também & ambientagio dissimulada que se refere Georg Lukées quando adverte, no seu ensaio “Narrar e Descrever”, nao se deter a reconstituigio do am- biente, em Balzac, na pura descrigao, vindo “quase sempre traduzi- da em ages (basta evocarmos o velho Grandet, consertando a es- 14 Basneto, I. Op. city p. 12728, 35 A’ denominasio, evidentemente, inspra-se em Machado de Assis: “Voct jf reparou nos olhos dela? ‘Soo assim de cigana obliqua¢ di Stn Techniques of Fiction Writing: Meature and’ Madness. p. 38°34, AA CAP v — RSPACO ROMANESCO E AMBIENTAGTO ceada apodrecida)”. "7 Assim €: atos da personagem, nesse tipo de ambientagio, vio fazendo surgir 0 que a cerca, como se 0 espaco se dos seus proprios gestos. Exemplo sob todos os pontos admiravel de ambientagio dis- simulada vamos encontrar no primeiro capitulo de Sdo Bernardo, de Graciliano Ramos '* Azevedo Gondim “tomava a bicicleta e, pe- dalando meia hora pela estrada de rodagem que ultimamente Casi- miro Lopes andava a consertar com dois ou trés homens, alcancava S, Bernardo. (...) famos para o alpendre, mergulhdvamos em ca- deiras de vime e ajeitavamos 0 enredo, fumando, olhando as novi- Jhas earacus que pastavam no prado, embaixo, e mais longe, 2 en- trada da mata, o telhado vermelho da setraria. (...) Levantei-me ¢ encostei-me & balaustrada para ver de perto 0 touro limosino que Marciano conduzia ao estabulo, Uma cigarra comecou a chiar. A vyelha Margarida veio vindo pelo paredio do agude, curvada em duas, Na torre da igreja, uma coruja piou. Estremeci, pensei em Madalena.” Ai, mesmo os verbos ver e olhar, to comuns na am- bientagdo reflexa, so impregnados de energia, nao sendo certa- mente por acaso que aparecem ligados a coisas vivas © em movi mento — “novilhas earacus que pastavam no prado” € “o touro Timosino que Marciano conduzia ao estabulo” —, de modo que jbilidade dos que observam & entdo compensada pela mobili- dade das coisas observadas (novilhas, touro), e © movimento des- tas comunica certa animacio aos elementos inanimados que se se- guem: prado, estabulo, mata, telhado, serraria. A introdugio, tam- bém em movimento, de uma personagem secundéria, a velha Mar- garida, revela 0 agude. Esta tentativa, evidentemente sintétiva, de classificagio dos processos de indicagio do espaco na obra narrativa e onde se pro- oe, inclusive, uma nomenclatura, no pretende abranger todos os métodos possiveis, mas alcanca um espectro bastante amplo. Gran- de parte da capacidade imaginativa dos escritores realmente preo- cupados com os problemas do oficio trabalha no sentido de encon- trar solugSes expressivas novas e satisfat6rias — 0 que reduz. muito (9 valor das esquematizagies te6ricas; nem sempre € a invengio no plano do enredo, de qualquer modo nunca é apenas a invengio tno plano do enredo que revela o verdadeiro ficcionista, Eis como nos fala Machado de Assis, numa ambientagio obliqua, das colu las (cxistentes de um s6 lado) e dos tijolos que revestem 1 tn: Emsaios sobre Literatura. 8 MV sso. artigo “Um Aniversisio. Sdbrio. como sua Pros." Jornal do Brant Rio de Faneto, eligi. de. 21/10/1972, eaderno By p. 5 AMMIENTAGEO FRANCA... 5) © alpendre, na casa de Bentinho: “Tijolos que pisei e repisei Ia tarde, colunas amareladas que me passastes a direita ou querda, segundo eu ia ou vinha, em v6s me ficou a melhor da crise, a sensagio de um goz0 novo, que me envolvia mesmo, e logo me dispersava, e me trazia artepios, e me derramava nao sei que balsamo interior” (Dom Casmurro, capitulo XII). Ja- ‘mais esqueceremos esse alpendre, ligado a um momento vital na existéncia do herdi, A carga concedida no texto as emogies de Bentinho, motivo dominante do parsgrafo, faz parecer casual a alu- sao ao alpendre. Entretanto, & 0 modo como o narrador nos descre- ve aquela parte da casa, do ponto de vista da arte literdria, 0 que hha de mais fino © notavel nesse passo, Deve-se também levar em conta que 0 romance tende a mesclar vérios processos, inclusive ‘numa tinica unidade temética. Precede muitas vezes a ambientagio reflexa um motivo introdutério com cariter de ambientagio dissi- mulada. Assim quando vemos Emma Bovary subir & égua-furtada eabri-la, A separacio, sutil, pode ser notada inclusive pela mudan- ga de tempo verbal: o pretérito imperfeito assinala a hegemonia da ambientagao reflexa, predominante na cena, J4 em Sdo Bernardo, © chiar da cigarra e 0 pio da coruja representam a mescla, na am- bientacdo obliqua, da ambientagao franca, na qual o narrador alu- de sem intermedidrio a elementos do espago. Cada um desses processos tem o seu lugar na obra ¢ s6 a sa bedoria do escritor ira responder pela sua eficdcia. Contudo, pelo ‘menos no nivel da micro-estrutura, a ambientagio revela comple: xidade e engenho na medida em que 0 narrador, recusando a des- crigav pura e simples, tece ordenadamente espago, personagem € agio, Tomamos a lembrar que, ao cardter fluvial — e no lacus- tre — da linguagem, corresponde melhor um mundo mével, ou, se imével, animado por uma forga interior. ‘A classificagio aqui sugerida atende as relagBes do espago ‘com o fluxo da narrativa, envolvendo, segundo foi dito, narrador personagens. Consideraremos a seguir dois aspectos de algama in portincia na ambientagdo e que, de certo modo, relacionam-se en- tte siz a ordenagdo e a preciso dos elementos espaciais, “Até ago: ra, este quarto que se define sob 0 nosso alhar é wim continente amorfo, uma espécie de saco, onde os objetos esti postos sem or- dem, ¢ onde o narrador os extrai um a um, a0 acaso, Logo, desejare- 86 car. v — ESPAGO ROMANESCO F AMBIENTAGIOL ros suas situagGes: méveis muito juntos, méveis afastados. .." 1° Na ambientagao desordenada, 0 natrador, sucumbindo ao desajus- te entre a linguagem ¢ a descricio, restringe-se a catalogar. Joa- {quim Manuel de Macedo, cujo instrumento € pobre ¢ sem ambigdes, assim esboca 0 quarto do seu her6i: "E init! descrever 0 quarto de um estudante, Ai nada se encontra de novo. Ao muito acha- ro uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde pendura a casaca, 0 moringue, o castigal, a cama, uma, até duas canastras de roupa, o chapéu, a bengala e'@ bacia; a mesa onde reve © que s6 apresenta recomendavel a gaveta, cheia de papéis, de cartas de familia e fitinhas misteriosas; ¢ pouco mais ou menos assim 0 quarto de Augusto.” * Confunde Joaguim Manuel de Ma- cedo 0 tipico com a sensaboria. Note-se a insisténcia em tauto- logias como as de que na estante “ele guarda os seus livros” ¢ de que, na mesa, “escreve”. Adiante, ao descrever a casa da av6 de Filipe, onde iri ocorrer grande parte do romance, pede que imaginemos, “fazendo frente para o mar e em toda a extensio da sala e dos gabinetes, uma varanda terminada em arcos; no interior meia dizia de quartos, depois uma alegre ¢ longa sala de jantar, com janclas e portas para 0 pomar e jardim”. Assim, conelui, “Yer-se-8 feito da casa a idéia que precisamos dar.” Nio inferir, das citagSes acima, que a embientacio de- sordenada signifique incompeténcia, A casa de Dom Casmurro, {Go importante para a personagem, & apresentada sem preocupagies de ordem: "6 0 mesmo prédio assobradado, trés janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e saias, (...) Tenho cl carinha, flores, legume, uma casuarina, um poco ¢ lavadouro.” * As janelas e portas de Macedo, dando para o pomar e jardim, chegam a ser mais precisas que as irés janelas de Machado, que nao enu- mera as alcovas e salas. Apesar disso, muito aprenderemos sobre a arte da ficgdo (e ressalta, da experiéncia, como numa prova efetua- da em laborat6rio, a superior maestria do “bruxo de Cosme Ve-~ Iho"), se confrontarmos esses casos extremos: as solugdes de Ma- cedo € de Machado de Assis nos motivos a que nos reportamos. Dom Casmurro, homem maduro, faz reconstruir a casa em que , sendo através desse meio, to engenhoso, dgil ¢ significativo, que vamos conhecer as duas casas: a que jf desapa- receu ¢ a sa c6pia, uma projetando-se sobre a outra, como 0 pré- © Boron, M. Repertobe HL p. 45. 20 In: a Moreninha. p17 Mactoo, Joaquim Manvel de. Op. cit p.2 = Aes, Machatlo der Dom Ciamurra. pe AMMIENTAGKO VHANCA. 8 prio personagem-narrador se projeta sobre a sua imagem antiga, A significagdo simbdlica da casa é ainda reforgada pelo estado de es Pirito com que seu habitante, sem muita ordem, a descreve: “0 ‘meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescéncia.” ® Todo um mundo interior, caprichoso nostilgico, na confisséo que explica a reprodugio ‘do. ambiente. Reprodugio, note-se, em dois niveis: 0 da histéria e 0 do discurso, No que diz respeito & visualidade, a sala principal, com as fi das estagies nos quatro cantos do teto (alusio, decerto, & passagem do tempo) © os medalhbes de César, Augusto, Nero € Massinissa no centro das paredes, comunica-nos o carter de toda a constru- Gao, seu peso e colorido, dispensando ordem e minicia, Machado de Assis, nao obstante certa fragmentagio imposta af 20 espaco, transforma o motivo da residéncia do protagonista mum caso pre- cioso e unico de ambientacio dissimulada No capitulo I de Os Buddenbrook, Thomas Mann, que se ‘compraz como poucos —e com alto senso de medida — no des- critivo, oferece-nos um exemplo modelar de ambientagio franca € ordenada: “Além das poltronas sébrias, distribuidas ao longo das paredes, a espagos regulares, via-se apenas, perto da janela, a mesa de costura e, cm frente do sofi, uma frigil escrivaninha de luxo, coberta de bibelots. / Através de uma porta envidracada, frontcira as janelas, enxergava-se vagamente um fitrio, ao paso que. & esquerda da entrada, havia uma porta de dois batentes, alla © bran de jantar, Noutea parede, num nicho semicircular © atris de uma porta’ de ferro batido, artisticamente trabathada, crepitava o fogo." ** Crénica minuciosa de uma familia e de sua decadéncia (transctevemos s6 um frag- mento da descriggo, que € muito mais extensa), pede Os Buddenbrook solugbes diferentes das que observamos no romance de Machado, Ambos, cada um a seu modo, nos impéem com idén- tico vigor os respectivos espagos. * que dava para a sé 23 Assis, Machado de, Op. city p. 25. 24 Observar af a “insti. impessoal” (enxergava-se, via-e) 8 que se refere Philippe Hamon: "Algumas vezes, 0. personagem chega & desapa Tecer em proveito de uma instancia impessoa!” (Poérique, 1972, n° 12, B, 467). Tambémm o narrador se disfarga mediante tal recurso lingistico © atual romance francés, como se sabe, transformed ‘en norma a, am vient ovfranca e ordenada. 0 pormency ea prec, em Robbe Crile € outees chegam a mindsas de mope como st Ve dese 5 primera pl dea hainsie. Disutireron ainda, quando. atarmos. des, Tages Talos que obedeve. : SOHOSHHSSOSHSOSSHHSSOHOHHOHHSOHHHHHOECECECESE BH Car ¥ —1sPj0 ROMANESCO E AMMIENEAGKO Pode-se observar, nos exemplos dados, certa relago entre or- dem ¢ minticia na ambientagdo. © esforgo ardenador, no descriti- vo, tende a conferir uma organicidade a0 pormenor, muitos sendo ‘os graus através dos quais o escritor define o espago: sua liberdade de escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente a estrutura global do texto) oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como em Thomas Mann, a simples nomeagio de uma rua, um hotel, uma cidade etc., havendo ainda os casos em que nem sequer se chega ao nome, observando-se, em relagdo ao espago, uma imprecisio gue, de certo modo, nega-o. A precisio ou a imprecisio, certamente, refletem determinada época ou tradigéo literaria: “os procedimentos concretos e parti- cculares, suas combinagdes, sua utilizagio e em parte suas fungdes mudam enormemente no curso da historia da literatura”, Assim re- sumia Tomachevski 0 Tato, acrescentando que “os processos nas- cem, vivem, envelhecem e morrem.” 2" Vése isto com muita niti- dez no tratamento do espago; comprova-o a leitura de relatos inse ridos numa tradigio remota, tanto do Ocidente como do Oriente Na India: "Em certo lugar viviam quatro irmaos brimanes”. “Em certo lugar do bosque vivia um leio” (Fanichatantra). *Vivia nas ilhas de Khalidén, proximo a0 reino da Pérsia” cidade engalanou-se durante sete dias © rufaram os tambores.” (As Mile wma Noites). Nos contos edificantes de Si0 Francisco: “Estando uma vez Santo Antonio em Rimini” ‘Movido Sao Francisco do zelo da fé de Cristo e do desejo do mar- tirio, passou uma vez para o outro lado do mar com doze c heitos seus mui santos, para dirigir-se a0 Sultao de Babilénia’ Em Bocaccio, adquirirao importincia os tontis, as clausuras, 0s es- conderijos, instrumentos necessirios & evolugdo dos contos, mas deseritos com parciménia, sendo os lugares apena tnada 2 obrigagio, ficou Barnabe em Pars. ¢ Ambrosinho, logo que péde, viajou para Genova." No sécule XIV, nio € Chaucer mais explicito nos Contos de Canterbury: “Havia uma vez em Flandres um grupo de jovens entregues a loucuras tais como orgias, jogos de azar, bord 26 Tommcntevskt, “Thorie de ta Litérature.” We: Teater dex Bormalises Ruse p. 298 © 301 Brad inautiiéncia io. sever nna epopti, Homero ambienta. muito bem a sua ago, como na rapsidia VI-da Ouse, quarto pinta 0. patécio Paredes de bwonve elevavinyse dm toe. Joule, (0 fumo rematavieay em volts unt connija de cor a Inpediam a entrada "no palicio, solamente. eficado, potas também de bronze, “cujas ombreia® ae pest se. pot eco. Henry Reporta-se Michel Butor a essa imprecisio quando escreve “Inicialmente, como no teatro antigo, sera suficiente um distico “lugar magnifico’, ‘bosque agradavel, ‘floresta horrenda’, ‘um canto de rua’, ‘um quarto’. Especificagdo que se tornard mais precisa; de sejaremos saber que espécie de quarto. Lugar magnifico, nos di zem, mas que estilo de magnificéncia?” * “O romance do século XVIII (Lessage, Voltaire etc.) mal conhecia a descrigio, que nele cxercia uma fungao minima, mais do que secundéria — acentua Lu: kkaes. A situaego muda somente com Romantismo.” * A asser- tiva pode ser ilustrada mediante uma comparagio entre as cenas do tomneio em La Princesse de Cleves e em Ivanhoe. Limita-se Ma: dame de Lafayette a um custo parigrafo meramente indicativo: “Fez-se uma grande liga, proxima a Bastitha; vinha do castelo de Tournelles, atravessava a rua Saint-Antoine ¢ ia ter as cavalarigas reais, Havia, dos dois lados, esteados e anfiteatros, com abrigos €0- bertos, formando espécies de galerias, as quais produziam um belo efeito © podiam conter um numero infinito de pessoas." °" Walter Scott, 20 contritio, elabora um quadro amplo e colorido, 20 qual “Sobre uma plataforma construida por tris do Portio Sul, havia cinco magnificos pavilhdes, ornados de escudos de armas castanhos € negros, cores escolhidas pelos ros campedes do torneio.” “Uma passagem de trinta pés de largura conduzia, por um declive brando, da porta da arena 2 plataforma sobre a qual estavam erguidas as tendas." A topogra- fia do terreno, 0s costumes dos escudeiros, a disposigao das tendas, fs tapetes © até os espectadores aglomerados num campandrio & distancia, vendovse inclusive quando as galerias, “pouco a pouco dle prata era igualmente orga, mas 0 anel de oiro, De cada lado. havia lune eles de oito e pata, imortais e ienfos perpetuamente da velbice, Hefestos tina executado com atte para guardarem 0 paticio do. magnd- imo. cinoo." “Nao. omite os. eadetdes, os lapetss, "0. holo do- qual homcia as arvores. as fontes. Observe se como Homero, também aly anima © inanimado: as paredes corriam, portas impedian x entrada no. palécio fombreiras de_prath se apciavam. Temos também a historia. dos eies de iro e prata, "que Hefestos linha exeeutado™ ete, Mesmo Longus mostra-se ftento “1 sucessio dus estagies e 0 frescor de muir cenas nio esmaece, Aecerto," na tradugio de Amyot, em Daphnis et Chlod: “Or étaital lors fnviron le commencement ui printemps, que toutes fleurs sont en. vigueur elles des bois, celles des prés, et celles des montagnes. Aussi a commen’ gait a Sout” par les champs bourdonnement-Wabeiles, grzouillement oiseaux, element dagneatt nouvesv-nes” Entaion sobre Livratara, $051 a0 In: Ta Princewe de Choven pr 9498 90 CAR, Vv — stag ROMANESCO E AMBIENTAGRO foram sendo ocupadas por nobres ¢ cavaleiros", °* tudo 6 cuidado- samente arrolado. Havia uma diferenca essencial entre os leitores de Madame de Lafayette € os de Walter Scott: defrontavam estes luma realidade muito distanciada no tempo, necessitando de solu: bes aproximadoras. Mas a responsabilidade maior nas diferencas entre a ambientacZo apenas alusiva da narradora francesa ¢ a am: bientagéo exaustiva do escocés deve ser atribulda a tendéncias ca- racteristicas das épocas em que escreveram, Observa-se, mesmo, certo paralelismo entre a atengio concedida ao espago no romance ¢ a presenga da paisagem na pintura, Testemunha Fr. Paulhan, no L'Esthétique du Peysage: “Aparecendo ocasionalmente em diver- sos lugares e em diversas épocas, parece ter-se desenvolvido e cons: tituido em Flandres e nos Paises Baixos. Mas 6 no século XIX que alcanga pleno florescimento; e sua evolugio, decerto, ainda nao ter- minou.” * Coexistem, en:retanto, em obras modernas, sintese © mit na ambientacio, observando-se comumente, na mesma narr gradagdes variadas, decorrentes de motivos que nem sempre 0 cri- tico ou o estudioso podem identificar com seguranca. As Re cordacdes do Escrivao Isafas Caminha ilustram bem essa varie- dade. Nas. primeicas paginas, enquanto tomamos. contato com 1 insatisfago do adolescente, o espaco mal se delineia, sendo apenas insinuado alravés das reagdes do personagem: “A tristeza, ‘2 compressio e a desigualdade de nivel mental do meu meio fami- liar, agiram sobze mim de modo curioso: deram-me anseios de in- teligéncia.” Tem-se uma idéia dos professores, sobre os quais, des ‘mesurados, brilham os olhos azuis de Dona Ester — e 6. Omite- -se, inclusive, o neme da cidade onde vive o adolescente Isafas: “Demorei-me na minha cidade natal ainda dois anos”. A omissi0, que poderia af parecer involuntéria, manifesta-se pelo uso de aste- riscos quando se refere 2 freguesia'em que o pai, um padre, exer- ce 0 sacerdécio: “quando veio a morrer meu pai, vigario da fregue- sia de***,” Essa imprecisdo domina a parte inicial do livro, reve- Tando o total desinteresse do escritor em precisar, fisicamente, 0 familiar do jovem: ‘'Calamo-nos ¢ minha tia saiu da sala, Tevando [perguntariamos para onde] 0 capote molhado, e logo depois voltou, trazendo 0 café". “Descansou [onde?] alguns pa- cotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou 0 boné com © emblema do Correio [té-lo-ia posto sobre algum mével?] e pediu café.” “Num dado momento, pretextando qualquer cousa, levan- 8 In: Peanhoe. In: L'Esihdtique du Paysege. p. 247 AnonEN agi HANA... OF tow-se € foi aos fundos da casa.” A mesma imprecisio na visita que faz ao Coronel Belmiro: “O coronel no se deteve, fez-nos sentar, mandou vir café € foi a um compartimento junto escrever ‘a missiva.” Antes de partir, Isaias vai “até & cidade préxima” para fazer as suas despedidas ¢ alude, ainda impresisamente, a “uma cidade de terceira ordem”, nas proximidades da qual ficaria a sua mie. Essa imprecisio contrasta com o cuidado atribuido a0 expa- go exterior. Uma chuva constante acompanha os movimentos de Isafas relacionados com o projeto de deixar “a cidade” (como para acentuar a tristeza do mundo que abandona) e, curiosamente, li- gam-se & chuva as poucas informagdes que afinal teremos sobre a ‘casa e seu mobilirio, atenuando a imprecisio dominante: “Eu es- fava deitado num velho sofé amplo. Lé fora, a shuva cafa com re- dobrado rigor e ventava fortemente. A nossa casa frdgil pareci que, de um momento para outro, ia ser arrastada, Minha mie ia e vinha de wm quarto préximo; removia batis, arcas.” ‘A imprecisio quanto & cidade e & casa onde vive Tsafas até a adolescéncia, contrasta, a partir do capitulo II, com a mindcia des- critiva que acompanha’a chegada e a permanéneia do personagem- arrador no Rio, podendo-se observar (isto, em grau bem maior mais justificadamente, ocorreré em Vida e Morte de M. J. Gon- zaga de Sé) uma tendéncia a negligenciar os interiores, enquanto (os exteriores sio descritos minuciosamente. O grau de preciso, por exemplo, concedido ao hotel onde se hospeda Isaias nao 6 Wuito superior ao que se nota quando menciona a casa familiar “recomendaram-me 0 Hotel Jenikalé, na Praga da Repiblica, de \odica disria”, ‘Temos © nome do hotel e, de passagem, sua loca- lizagio; nada é acrescentado quanto a0 seu aspecto. Na mesa re- donda, “onde havia ja muita gente a falar de tudo e de todas as cousas", servem-se as refeigdes; nfo sabemos de que género e nivel siio 05 quadros que guarnecem a sala, sendo portanto exiguo ou mesmo nulo o seu teor informativo. Néo sucede assim com as li- geiras indicagBes sobre a casa onde vive a amante do deputado ‘Castro, indicagGes que — para lembrar mais uma vez o ensaista de Repertoire — desempenham uma fungao de signo: “Quando perdi de vista a moga pus-me a reparar na sala, com umas oleogravuras sentimentais e uns bibefots de pacotitha.” ® Trtroduz-se aqui, in- elusive, uma avaliagfo a respeito dos breves dados eénicos. Embo- 1a as diferengas de grau observadas nas mengies a espacos diferen- tes, numa mesma obra, no decorram forgosamente de célculo, a 33 Buron, M. Repertoire I. p. 65. As outras citagies do 1 sulieentemente indicadas no” ext nce eto SOHOHHHSHSHSOHSHSSHHSOHHOHHCOHOHOHOOEEOHE 92 CAP v — ESPAGO ROMANESCO E AMBIENIAGIO. pobreza de indicagSes sobre a casa familiar de Isaias Caminha e a imprecisio a respeito da cidade onde passa os primeiros anos de vida, ao contrério do que sucede com a paisagem do Rio, exaustiv mente evocada, podem bem decorrer de um pressuposto técnico: deixar na sombra o que 6 passageiro e eecundério no relato, ilum nando a zona que domina o romance e na qual a personagem vai viver a parte mais significativa da sua experiéncia; também podem cexpressar (por parte do escritor e da sua personagem) a finsia de fugir as limitagdes em que vivem e ingressar numa realidade mais ampla. Qualquer dessas hipéteses & vivel, a segunda mais que a primeira: o romance pouca atengao concede aos interiores, e $6 a Tedagio de O Globo — além do comissariado de policia — mere- cera cuidados, Mas o jornal, em Isaias Caminha, & espelho ou a caixa de ressondncia do mundo exterior. Nao deve 0 estudioso do espaco, na obra de ficcio, ater-se apenas & sua visualidade, mas observar em que proporgio 0s de- mais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os seus limites, tum lugar tende a adquirir em nosso espirito mais corpo na medida em que evoca sensacdes. Jean-Pierre Richard, estudando a pre senga do mundo exterior na obra de Chateaubriand, registra a freqiiéncia dos latidos de cdo no siléncio noturo, os gritos de passaros, os murmarios, observando ainda como o som do canhio de um navio que ergue as velas vem “redobrar intelectualmente (0 imediato poder sugestivo, e expansivo, do impacto." José Lins do Rego anima com canto dos passarinhos a casa do mestre José Amaro, na qual flutuam, desde o primeiro capitulo, além dos bogaris € da arruda, cheiros de comida e de couro: “Dentro de casa o cheiro de sola fresca recendia mais forte que © da comida no fogo.” Nao é menos importante, no espago que rodeia 0 seleiro, 0 rumor do seu martelo ¢ sio as campainhas do cabriolé de Seu Lula, ecoando tristemente pelas estradas do Santa Fé, que tornam inconfundivel, ‘nico, 0 espago de Fogo Morto. Tudo 0 que acabamos de expor relaciona-se com um fend- meno da maior importincia no contexto da arte contemporanea © do qual, apesar disto, apenas 0 ensaista Anatol Rosenfeld se vcupou até agora_no Brasil: © da perspectiva. Liga-se este problema, principalmente ao foco narrativo, mas as suas im- plicagdes' como espago ea ambientacio’ solicitam algumas 4 In: Pavwae de Chateaubriand, p. 80 et pass Ammueneragio rmanes... 98 linhas, J& no seu estudo sobre a descrigio em Zola, fem nota de pé de pagina Philippe Hamon, quando enumera as possibilidades de acesso 4 manifestagio do’ espaco no romance Estamos. af muilo proximos daquela perspectiva inventada pelo mundo ocidental no Renascimento © que subordina a organizaso Ge" um quadro a um sujcito-espectador fixo, central, cicl6pico, Sinica." Quer dizer: temos falado, quando mencionamos, na am? bientagao, © personagem, 0 personagem-narrador ou 0 narrador andnimo como contempladores ou reveladores do. espaco, de uma entidade central, humanamente situada e a partie da qual 0 espago se organiza. Dai a necessidade de janclas, torres © outros pontos privlegiados, dos quais o olhar humano possa abranger um certo Segmento do espaco. © fato de a perspectiva surgir no Renasci- mento, quando a visio religiosa do mundo amortece, nfo parece destituido de signficagao. © exame comparative de um afresco roménico e de uma pintura de Rafael 6 ilustrativo. No Rominieo, inexiste 0 olho cata, humano, que contempla rigorosamente 0 quadro, como no Renascimento.’ Lugares diferentes e tempos afas- tados unificam-se numa visio transcendental: contempla-se com 2 liberdade do espirito © nio com a servidio da care. Curiosamente, em nossa época, 0 ponto de vista perspec: tivieo, imposto pelo Renascimento (como um sinal da gléria € do. orgulho humanos) entra em declinio, atingindo inclusive a ficgio. Hoje, escreve Anatol Rosenfeld, “o individuo jf mio tem a fé renascentista na posigio privilegiada da consciéncia humana fen face do mundo € nao actedita mais na possbilidade de a partir dela poder constituir uma realidade que nio seja falsa e ilusionista”. 8" Assim, vem a visio perspectivica do espago sendo negada nas artes plisticas. No romance, arte da Tinguagem c, portanto, temporal, a analogia com outras artes manifestar-se-ia no tempo: “A eliminagao do espago, ou da ilusio do espago, parece corresponder no romance a da sucesso temporal.” 37 Mas © pr6prio Anatol Rosenfeld, aprofundando 0 exame, nomeia obras “eujo tema € a simultaneidade da vida coletiva de uma casa ou cidade ou de um amplo espaco geogréfico num segmento do tem- po", acrescentando que a técnica simultinea, jogando “com grandes espagos e coletivos", tende a eliminar “o centro pessoal ou a enfo cagdo coerente ¢ sucessiva de uma personagem central." Aprox: 88 In: Poétique. 1972, 12, p. 473, M9 In: Texto/Contexto. p86 Hd, ibid p78 8 hd ibid, BON 2 visio ou foco narrative, A visio no perspectiviea, expansio ¢ transfiguragio do natrador onisciente, agora livre das limitagoes humanas e evocando uma espiritualizagio nio muito diferente da (que conhecia 0 a nea. Anunciando um espago com espago profano do Renascimento, uma percepgiio. mais profi do mundo logo ira provocar recursos mais sutis de insergs espaco, com 0 que no mais serio indispensiveis os te plausiveis — janela aberta, visita etc. — que Philippe 1 enumera. Nio apenas no tempo, mas no espago mesmo, expres sara romance contempordneo sua desconfianca ‘na’ posicio privilegiada da consciéncia humana em face do mundo” e que 08 criadores do Renascimento erigem em dogma. CarfruLo vi ESPACO ROMANESCO E SUAS FUNCOES Relagdes personagem/espago. — 0 espaco-moldura. — 0 espaso instil. (© conceito de ambientacZo, ligado a arte romanesca, esvazia- se quando uma unidade relacionada com 0 espaco surge & ma- neita de apéndice, isto & sem fungdo definida. Entretanto, a fancionalidade de um fator incorporado 3 narrativa, s6 chega a ser devidamente captada e avalinda em termos de macro-estru- ura, Nao se pode, a rigor, estudar isoladamente a funcionalidade de um elemento espacial (como também de uma_personagem, de uma esteutura tempo no admitir a hip6 tese, digamos, de 0 esp: mente funcional em deter- minada seqiiéncia ¢ esta seqiiénc constituir um corpo estranho no conjunto da obra, Este o motive pelo qual s6 agora abordamos, dentro do assunto estudado, 0 problema das fungies. * Mais de uma vez, no presente ensaio, referimo;nos & narra~ iva como um sistema altamente complexo de unidades que se refletem entre sie repercutem umas sobre as outras. Podemos, com certeza, ir ainda mais longe e afirmar que uma, determinada obra enreds-se, no raro, nas demais obras do mesmo escritor. As andlises intertextuais procuram deslindar os fios que unem lum texto a textos alheios, por vezes remotos no espago e no tempo. Esses liames, essas repercussbes, em grande parte secretos, diluem-se ao longo da execugio e o préprio escritor esquece muitas dde suas intengdes, Também ocorre que certos pormenores de modo algum sejam intencionais e, enraizados em sombras, im- * Evitamos, quando em capitulos anteiored nos ocupamos do espago ou dda ambientagio, abordar @. problema das funcses.- Visto que a obra lite rin é um tecido, permitime-nos, a0 tratarmos de um oU de gutro aspecto do tema, referéncias funcionalidade ‘do espago no romance (como em Moby Dick e em Vidas Secas), mas unicamente na medida em que uma Alusio “a isto ‘pareclalndspensivel. Dentro. do possivel, bjetvavames fsolar, do corpo da obra, 0 esparo e 4 ambientagdo, eles concentrando 2 antic, 96 CAP. VE FSPAGO ROMANESCO E SUAS FUNGOES ponham-se dissimuladamente ao criador, a ponto, de um esritor vernal como Alain Robbe-Grilet afar que “as obras novss aera ania de ser sen quando tram no amund, por st tae Waves iniicagbes, anda desconhecfas dos propris auores, we aes ue 8 exlsrao mais tude, gragas a esos obra see eesiguer estudo leririo, por mals profundo que seit — S50 ponte gulp sutl e precio o instrumental uilizado —, Se cia apenad a superticie da obra. Esta € insondivel © a8 iustagvas dea revelar, ampliando-, multipicam igualmente 0 serneteigs Compreender melhor uma cbra ‘no significa decile Sia oe seuy corredores sto infindos. Fosse construida com win Jipso cu tun srmirio, com finalidades precisas © sueta 0 wn PURSE al ptajeto = projet mio passvel de enriguecimento © a0 wipe devanrpresag > poderia 0. esritoe dominalaintirmente arSponder por todos Os pregos e potas. Decerto,embora mato ser Re ta Tne ‘soja esto (eno menos estranho 0. modo Semis faz), grande € a margem das opybes conscentes. Entre torte, tains Ent, © simples emprego de um tempo verbal ci eergetato, a eliminagao de um ponto ou de uma virgula, um wean endo uma aceia no quintal, por que em tal insante ‘ee Niueaor voande endo cinco, cada escolha se. opera sobre tierdativasIngmeras (a obra iterdtia € uma aposta venida contra into eo eaos), de modo que a explicages, as jusifca (dn fin por assim dizer, tal 0 emaranhado de’ motivos em nee EP pla ow merguham. Pole-se imaginar, eno, 0 {err mri das cosas yaaa no epsto| Jo rte Cece), Sao influencar a obra, talvr determina, nio seno sar verona as enigencas.que propria obra va, grando Tong dan cxeruto. Oto de cceve roma, cl craves itertoga una sombra tolerate, exigent, rigrosa — Pus sombra gee sabe —- e por vezessucede a0 nairador, assim re aettul na ras, segedaments, vin termo dado por todos

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